Biblio VT
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
CONTINUA
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
O melhor da literatura para todos os gostos e idades