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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHOS E AMANTES / D. H. Lawrence
FILHOS E AMANTES / D. H. Lawrence

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

AS BOTTOMS vieram substituir as Hell Row. As Hell Row era uma correnteza de casas rústicas, abauladas, de telhado de colmo, construídas nas margens da ribeira, em Greenhill Lane. Aí viviam os mineiros que exploravam as pequenas minas à nora, duas searas mais abaixo. A ribeira corria entre os amieiros, quase nada poluída pelas pequenas minas, cujo carvão era trazido para a superfície por burros que andavam pachorrentamente em torno de uma nora. Por toda a região havia minas destas, datando algumas delas do tempo de Carlos II; os poucos mineiros e burros existentes enfiavam-se pela terra dentro como formigas, salpicando de curiosos montículos e negras manchas prados e searas. Eram as casas destes mineiros, espalhadas pela paróquia em pequenos aglomerados ou aos pares, à mistura com as quintas dispersas e as casas dos tecelões, que constituíam no seu conjunto a cidadezinha de Bestwood.
Até que, há cerca de sessenta anos, se deu uma transformação radical. As pequenas minas à nora foram preteridas pelas minas dos grandes financeiros, e descobertos os campos mineiros do Nottinghamshire e do Derbyshire. Surgiu então a Carston, Waite & Co., e, no meio do maior entusiasmo, Lord Palmerstone inaugurou oficialmente a primeira mina da companhia, em Spinney Park, na orla da floresta de Sherwood.
Pela mesma altura, as tão faladas Hell Row, que com o passar dos anos foram ganhando má fama, foram totalmente queimadas e, com elas, eliminada muita imundície.

 

 

 

 

A Carston, Waite & Co. não tardou a aperceber-se do êxito da iniciativa, e novas minas foram sendo abertas nos vales do Selby e do Nuttall, até que, em pouco tempo, já eram seis as minas a laborar. Partindo de Nuttall, e encarrapitada nos montes de arenito, por entre o arvoredo, a via férrea passava pelo priorado em ruínas de Carthusians e o Poço de Robin Hood, descendo depois para Spinney Park e Minton, a enorme mina no meio das searas, atravessando em seguida as quintas do vale até Bunker Hill, onde entroncava com um ramal, seguindo então para o norte, para Beggarlee e Selby, de onde se avistam Crich e os montes do Derbyshire; seis minas, quais garanhões pretos na paisagem, ligadas por uma corrente serpenteante – a via férrea.

Para alojar os mineiros, a Carston, Waite & Co. construiu as Squares, grandes urbanizações quadrangulares na encosta de Bestwood, e, no vale, erigiram as Bottoms no local antes ocupado pelas Hell Row.

As Bottoms eram seis quarteirões de casas de mineiros, com duas fiadas de três casas cada um, à laia das pintas do seis no dominó, ou seja, doze casas por quarteirão. Esta dupla fiada de habitações situava-se no sopé da encosta íngreme de Bestwood e, pelo menos das janelas dos sótãos, avistava-se a ladeira suave que subia do vale em direcção a Selby.

As casas propriamente ditas eram sólidas e bastante apresentáveis. Quem por ali andasse a passear, deparava-se com jardinzinhos floridos, de prímulas e saxífragas, nas casas de baixo, mais sombrias, e de cravos e cravinas nas casas de cima, mais soalheiras; janelas airosas, alpendres, pequenas sebes de alfena, mansardas nos sótãos. Mas tudo isto era por fora, a vista exterior da sala, onde as mulheres dos mineiros nunca entravam. A divisão onde passavam o dia, a cozinha, ficava nas traseiras, virada para a outra fiada de casas, e dava para um jardinzeco mal tratado e, mais adiante, para os aterros de cinza. E entre as duas fiadas, entre as longas filas de poços de cinza, corria o beco onde as crianças brincavam, as mulheres davam à língua e os homens se entretinham a fumar. Assim, as condições reais de vida nas Bottoms, casas aparentemente bem construídas e com tão bom aspecto, eram bastante deficientes, porque os moradores passavam a maior parte do tempo na cozinha, e as cozinhas davam para o tal beco miserável dos poços de cinza.

Quando desceu das alturas de Bestwood, Mrs. Morel não tinha grande vontade de se mudar para as Bottoms, construídas há doze anos e apresentando já alguns sinais de degradação. Mas era o que podia arranjar. Vindo morar para uma das casas da ponta, num dos blocos superiores, tinha apenas um vizinho, e, do outro lado, um jardim suplementar. Além disso, o facto de possuir uma casa de topo conferia-lhe um estatuto aristocrático entre as restantes mulheres das casas intermédias, pois a renda era cinco xelins e seis dinheiros por semana, em vez dos habituais cinco xelins. Todavia, esta superioridade social não trazia grande consolação a Mrs. Morel.

Tinha trinta e um anos e estava casada há oito. Pequena, frágil, mas resoluta, furtava-se ao contacto com as outras mulheres das Bottoms. Mudara-se em Julho e esperava o terceiro filho para Setembro.

O marido era mineiro. Só viviam na casa nova há três semanas, quando chegou o dia da feira anual. Sabia bem que Morel não ia perder a oportunidade de se divertir. Na segunda-feira, dia da inauguração da feira, saiu de casa logo pela manhã. As duas crianças estavam excitadíssimas. William, um rapazinho de sete anos, escapuliu-se mal tomou o pequeno-almoço, para ir passear pela feira, deixando Annie, a irmã de cinco anos, toda a manhã a chorar porque também queria ir. Mas Mrs. Morel tinha a lida da casa para fazer, e ainda mal conhecia os vizinhos, não tendo por isso ninguém de confiança para tomar conta da filha. Prometeu-lhe por isso que a levava à feira depois do almoço.

William voltou ao meio-dia e meia hora. Era um garoto muito activo, de cabelo louro, sardento, de aspecto nórdico.

– Posso almoçar já, mãe? – gritou, entrando de rompante com o boné na cabeça. – É que a feira abre à uma e meia. Foi o que o homem disse.

– Podes comer assim que estiver pronto – respondeu a mãe.

– O quê, ainda não está? – gritou ele, indignado, fulminando-a com os olhos muito azuis. – Então não almoço.

– Isso é que era bom... – respondeu a mãe.

– Mas está quase a começar – gritou o garoto, quase aos berros.

– Não morres se quando chegares já tiverem começado – disse a mãe. – Além disso, ainda é só meio-dia e meia hora e ainda tens uma hora à tua frente.

O garoto começou a pôr a mesa a toda a pressa e sentaram-se os três. Estavam ainda a comer as panquecas com geleia quando ele saltou da cadeira e, bruscamente, parou, completamente estático. Ao longe, ouviu-se o carrocel arrancar para a primeira volta e o som vibrante de uma corneta. O rosto contraiu-se-lhe e olhou para a mãe.

– Eu bem dizia! – exclamou, correndo para a cómoda e pegando no boné.

– Leva a panqueca... ainda é só uma e cinco, por isso estavas enganado... Olha que não levas os dois dinheiros – gritou a mãe de um só fôlego.

O garoto voltou para trás, pelos dois dinheiros, visivelmente contrariado, e saiu de imediato sem dizer palavra.

– Também quero ir, também quero ir – dizia Annie, já a chorar.

– Pronto... pronto... também vai, sua rabina – disse a mãe. E, mais tarde, lá foi Mrs. Morel encosta acima com a filha ao colo, penosamente, à sombra da sebe alta que ladeava o caminho. O feno já tinha sido apanhado e as vacas andavam à solta. O dia estava quente e bonançoso.

Mrs. Morel não gostava de arraiais. Neste, havia dois carrocéis de cavalinhos – um a vapor e outro puxado por um pónei. Os acordes de três órgãos arranhavam a tarde, e ouviam-se estampidos desencontrados de pistolas, a chiadeira infernal da caranguejola do vendedor de cocos, os gritos do homem da barraca da Tia Sally e o pregão estridente da mulher do Olho Mágico. A mãe avistou o filho parado em frente da barraca do Leão Wallace, a olhar embasbacado para as fotografias desse leão que já tinha matado um negro e mutilado dois brancos, mas não se aproximou e foi comprar algodão doce para Annie. O garoto, porém, veio ter com ela, excitadíssimo.

– Não disse que vinha... Há tantas coisas, não há?... Aquele leão ali já matou três homens... e eu já gastei os meus dois dinheiros... olhe...

Do bolso tirou dois suportes para ovos, decorados com florinhas cor-de-rosa.

– Comprei-os naquela barraca onde a gente mete os berlindes nos buracos... e ganhei estes dois de seguida... um dinheiro cada jogada... têm rosinhas pintadas, olha. Era mesmo o que eu queria.

Ela sabia que era para lhos dar que ele os queria.

– Hum! – disse ela, satisfeita. – São muito bonitos!

– Leve-os a mãe, qu’eu tenho medo d’os partir.

Não cabia em si de contente por ela ter vindo, e foi mostrar-lhe a feira toda. Quando chegaram ao Olho Mágico, pôs-se a explicar-lhe as imagens, encadeadas numa espécie de história que ele escutava como se estivesse enfeitiçado. Mas não a largava. Mantinha-se perto dela, exibindo o seu orgulho de menino pela sua mãe. É que nenhuma outra mulher se lhe comparava em elegância, com o seu chapelinho preto e a capa sobre as costas, trocando sorrisos com as mulheres conhecidas que encontrava.

Quando se cansou, Mrs. Morel disse ao filho:

– Então, vens comigo agora, ou voltas mais tarde?

– Já se vai embora? – exclamou ele, amuado.

– Já?... São só quatro e meia, eu sei.

– Porque vai já? – disse ele, lamuriento.

– Mas tu não precisas de vir comigo, se não quiseres. – E afastou-se com a filha, enquanto o filho ficava parado a olhar para ela, cheio de pena de a deixar voltar sozinha, mas incapaz de virar as costas à feira. Ia a atravessar o largo da feira quando ouviu uns homens a berrar e sentiu o cheiro da cerveja. Então, estugou o passo, pensando que o marido estaria provavelmente na taberna.

Por volta das seis e meia, o filho chegou a casa, cansado, muito pálido e abatido.

– Sim senhor! – disse ela, fingindo-se zangada. – Se te atrasasses mais cinco minutos, já tinha levantado a mesa. É sempre a mesma coisa, já deves estar com fome há muito tempo...

Deu-lhe a merenda. Embora ele não se apercebesse, estava triste por tê-la deixado voltar sozinha. A feira perdera toda a graça desde que ela se tinha vindo embora.

– O pai já veio? – perguntou ele.

– Não – respondeu a mãe.

– Está na taberna a dar uma ajuda ao balcão. Vi-o de mangas arregaçadas através daquela chapa preta aos buraquinhos que eles têm a tapar a janela.

– Ah! – exclamou a mãe. – Está sem dinheiro. Se lhe derem que chegue para a bebida, já fica satisfeito; tanto se lhe dá que lhe paguem mais ou não.

Com ordem da mãe, os garotos foram pôr-se à janela do quarto dela a verem as pessoas regressar da feira com brinquedos do bazar, a ouvirem a cegarrega da música a tocar, o alarido das vozes, o estampido das pistolas, o «pim» das balas no fino alvo de ferro. Por fim, o cansaço venceu-os e foram para a cama.

Quando a luz esmoreceu e Mrs. Morel já não via para coser, levantou-se e foi para a porta da rua. Por todo o lado se ouvia a algazarra própria dos feriados, e ela acabou por ser contagiada. Saiu e foi até ao jardim de topo. As mulheres voltavam do arraial, com as crianças abraçadas a um cordeirinho branco de pernas verdes ou a um cavalo de madeira. De vez em quando, passava um homem aos tombos, cheio de cerveja até mais não poder. Outras vezes era um marido às direitas, com a família atrás, tranquilamente. Mas geralmente as mulheres e as crianças vinham sozinhas. As mães mais caseiras entretinham-se na má-língua pelas esquinas da ruela, à luz do entardecer, com os braços cruzados por baixo do avental.

Mrs. Morel estava sozinha, mas já estava habituada. Com o filho e a filhinha a dormirem lá em cima, a casa, atrás de si, parecia-lhe um lar sólido e estável. Atormentava-a, porém, a ideia de ser mãe mais uma vez. O mundo parecia-lhe um lugar desolado que nada tinha já para lhe dar – pelo menos até o William crescer. E tantos filhos! Não podia ter este terceiro. Não o queria. O pai vendia cerveja na taberna e bebia até cair. Ela desprezava-o e, ao mesmo tempo, sentia-se presa a ele. Este novo filho era de mais para ela. Se não fosse pelo William e a Annie... Estava farta de tudo aquilo, de lutar contra a miséria, a fealdade e a maldade humanas.

Passou para o jardim da frente; já estava muito pesada para sair, mas também não conseguia ficar em casa. O calor era sufocante, e, ao olhar o futuro, a vida que a esperava era semelhante a ver-se enterrada viva.

O jardim da frente era um quadradinho de terra cercado por uma sebe de alfena. Por aí se quedou, tentando amenizar os pensamentos com o perfume das flores e a beleza da tarde que findava. Frente ao pequeno portão ficavam os degraus que permitiam transpor a cerca que vedava o caminho da encosta, debaixo da sebe alta, entre o fulgor ardente dos prados divididos. Lá no alto, o céu palpitava e pulsava de luz. O esplendor depressa se apagou dos campos e o crepúsculo subiu como fumo da terra e dos arbustos. Quando começou a escurecer, um clarão avermelhado surgiu por detrás da colina, dele parecendo emanar a agitação distante da feira.

De vez em quando, homens aos tombos, de regresso a casa, passavam pelo túnel de breu formado pelo trilho aberto sob os arbustos. Um rapaz galgou em desenfreada correria o último troço da encosta, muito íngreme, e estatelou-se com força de encontro à cerca. Mrs. Morel estremeceu. O rapaz levantou-se a praguejar, conforme pôde, numa atitude patética, como se achasse que a cerca o tinha magoado de propósito.

Ela voltou para dentro, a pensar se as coisas não iriam mudar nunca. Começava agora a perceber que não. Sentia tão longe os seus tempos de menina, que duvidava até se aquela pessoa que subia pesadamente o jardim das traseiras, naquela casa das Bottoms, era mesma que há dez anos corria ligeira pelo molhe de Sheerness.

– Que tenho eu a ver com isto! – disse ela para consigo. – Que tenho eu a ver com tudo isto. Ou com a criança que está para nascer! Até parece que ninguém me pediu a opinião.

A vida às vezes toma conta de uma pessoa, apodera-se-lhe do corpo, escreve-lhe a história e, no entanto, nada é real e a pessoa sente-se como se tivesse sido ignorada.

– Vou esperando – disse Mrs. Morel para consigo. – Vou esperando, e aquilo por que espero nunca vem.

Depois, arrumou a cozinha, acendeu o candeeiro, pôs mais carvão na lareira, separou a roupa que havia de lavar no dia seguinte, pô-la de molho e, em seguida, sentou-se a costurar. Durante horas a fio, a agulha brilhou a intervalos regulares, atravessando o pano. De vez em quando, suspirava e mudava de posição, para aliviar as costas. Durante todo esse tempo só pensava numa coisa: como tirar o melhor partido daquilo que tinha, para bem dos filhos.

O marido chegou às onze e meia. Vinha de faces vermelhas e luzidias por cima do bigode preto. Meneava a cabeça afirmativamente. Via-se que estava contente consigo mesmo.

– Oh!... Oh!... estavas à minha espera, cachopa? ’Tive ’àjudar o Anthony, e qu’achas tu qu’ele me deu? Uma triste meia-coroa e mai’ nada, nem mais um tostão...

– Ele deve achar que o resto é para a cerveja que tu bebeste – disse ela, secamente.

– Mas não bebi... não bebi, não... palavra. Hoje inté bebi muito pouco. – A voz adocicou-se. – Toma, trouxe-te um bocado de pão de gengibre e um coco para as crianças. – E colocou em cima da mesa o pão de gengibre e o coco, aquela coisa peluda. – Nã, nunca foste capaz d’agradecer nada na vida, poi não?

Como se cumprisse um ritual, ela pegou no coco e chocalhou-o, para ver se tinha leite.

– Esse é dos bons, podes apostar o que quiseres. Deu-mo o Bill Hodgkisson. Bill, disse eu, tu num vais precisar de três cocos só pra ti, poi não? Num me queres dar um pròs meus miúdos? Tá bem, Walter, disse ele, escolhe o que t’agradar mais. E eu peguei num e agradeci-lhe. Num o queria abanar à frente dele, mas vai ele e diz: É melhor veres s’é memo bom, Walt... Por isso, vi logo que era, tás a perceber? É um tipo porreiro, o Bill Hodgkisson, é um tipo memo porreiro!

– Um homem dá seja o que for, se estiver bêbado, e vocês estavam os dois bêbados – disse Mrs. Morel.

– Vá, diz lá, minha desavergonhada, quem é que estava bêbado? Sempre gostava de saber – disse Morel. Estava todo inchado por ter dado uma ajuda na taberna, e nunca mais se calava.

Mrs. Morel, já muito farta da lengalenga, foi para a cama o mais depressa que pôde, deixando-o a tratar do lume.

Mrs. Morel descendia de uma família tradicional da burguesia, de famosos independentes que tinham lutado ao lado do Coronel Hutchinson, e se mantinham arreigados Congregacionistas. O avô vira falir o seu negócio de rendas numa altura em que muitos fabricantes de Nottingham haviam ficado arruinados. O pai, George Coppard, era mecânico. De constituição forte, bem-parecido e imponente, tinha grande orgulho na brancura da sua pele e nos seus olhos azuis, mas mais orgulho ainda na sua integridade de carácter. Gertrude parecia-se com a mãe na fragilidade da estatura, mas herdara dos Coppards o temperamento orgulhoso e inflexível.

George Coppard ressentia-se amargamente da pobreza em que vivia. Chegou a capataz dos mecânicos dos estaleiros de Sheerness. Mrs. Morel – Gertrude – era a sua segunda filha. Ela só tinha olhos para a mãe, que amava acima de tudo: mas tinha os olhos claros e provocantes dos Coppards e a sua testa alta. Lembrava-se de detestar a forma prepotente como o pai tratava a mãe, mulher gentil, bem-disposta e afável. Lembrava-se de ir a correr pelo molhe até ao barco. Lembrava-se de ser mimada e elogiada por todos os trabalhadores quando entrava nos estaleiros, pois era uma criança delicada e muito segura de si. Lembrava-se da velha professora, mulher caricata, de quem se tornara assistente e com quem sempre gostara de trabalhar. E ainda conservava a bíblia que John Field lhe dera. Costumava voltar com ele da missa quando tinha dezanove anos. Filho de um comerciante abastado, tinha ido estudar para Londres e viria a dedicar-se aos negócios.

Lembrava-se sempre em pormenor de uma certa tarde, num domingo de Setembro, em que se tinham ido os dois sentar debaixo da parreira nas traseiras da casa do pai dela. O sol rompia por entre os recortes das folhas da videira, cobrindo as suas cabeças de arabescos de luz, de belo efeito, como mantilha de renda. Algumas das folhas, de um amarelo muito puro, pareciam flores abertas, amarelas e planas.

– Agora não te mexas – exclamara ele. – Os teus cabelos nem sei o que parecem! Brilham como o cobre ou como o ouro, estão vermelhos como cobre incandescente, raios de fios de ouro onde o sol os ilumina. Não sei porque dizem que são castanhos. A tua mãe chama-lhe pêlo de rato.

Os olhos dela encontraram os dele, cintilantes, mas o seu rosto cristalino não deixava transparecer a exaltação que sentia crescer dentro de si.

– Dizes então que não tens queda para o negócio – continuou ela.

– E não tenho... Detesto negócios – gritou ele, empolgado.

– E que gostavas de seguir a vida religiosa – disse ela, quase implorando.

– Gostava... Gostava mesmo muito, se achasse que podia vir a ser um pregador fora de série.

– Então, porque não segues... Porque não segues? – A voz dela era um desafio. – Se eu fosse homem, nada me conseguia deter.

A pose era altiva, a cabeça erguida – ele quedava-se tímido diante dela.

– Mas o meu pai é tão casmurro. Jurou que me há-de meter nos negócios e sei que assim será.

– Mas tu já és um homem! – gritara ela.

– Ser um homem não é tudo – respondera ele, com um gesto de confuso desalento.

Agora, enquanto tratava da lida da casa nas Bottoms, e sabendo já o que significava ser um homem, ela percebia que isso não era tudo de facto.

Aos vinte anos, saíra de Sheerness por razões de saúde. O pai tinha-se reformado e voltado para Nottingham. O pai de John Field ficara arruinado e o filho era professor em Norwood. Ao fim de dois anos sem notícias, resolveu investigar: ele tinha casado com a senhoria, uma mulher de quarenta anos, viúva abastada.

Mesmo assim, Mrs. Morel conservava a bíblia que John Field lhe dera. Não acreditava que ele fosse aquilo que ela tinha pensado – enfim, compreendia agora muito bem o que ele podia ou não podia ter sido. Guardava por isso aquela bíblia e a sua lembrança no fundo do coração, para seu próprio conforto. Em trinta e cinco anos, até ao dia em que ele morreu, nunca pronunciou o seu nome.

Aos vinte e três anos, encontrou um rapaz de Erewash Valley numa festa de Natal. Morel tinha então vinte e sete anos. Boa figura, garboso e elegante. O cabelo era preto e ondulado, luzidio, e ostentava uma barba negra, vigorosa, que se via nunca ter sido rapada. As faces eram coradas, e a boca vermelha e húmida chamava a atenção porque se ria muito e com vontade. Tinha essa qualidade rara que é um riso cheio e musical. Gertrude Coppard contemplara-o fascinada: era atraente e divertido, a sua voz adquiria facilmente requebros cómicos e grotescos, e mostrava-se sempre disponível e amável com toda a gente. O pai dela também tinha um acentuado sentido de humor, mas a atirar para o sarcástico. O deste homem era diferente: doce, sem pretensões intelectuais, caloroso, dir-se-ia uma constante cabriola verbal.

Ela era o oposto. Tinha um espírito receptivo e curioso, que se deleitava e divertia a ouvir os outros, e era hábil a fazê-los falar. Adorava discutir ideias, pelo que a consideravam muito intelectual. Nada lhe dava mais prazer que falar de religião, filosofia ou política com um homem sabedor. Porém, raramente se podia dar a esse luxo. Contentava-se por isso em ouvir as pessoas falarem-lhe dos seus problemas.

Fisicamente, era pequena e de constituição frágil, testa muito alta orlada de cachos de caracóis castanhos. Os olhos eram azuis, francos, honestos e inquiridores. As mãos eram as belas mãos dos Coppards. Sóbria no trajar, envergava nesse dia um vestido de seda azul-escura e, como únicos enfeites, um original cordão de prata com berloques e um alfinete de ouro entrançado. Ainda intacta e sem mácula, era profundamente religiosa e impregnada de genuína candura.

Walter Morel sentia-se literalmente derretido perante ela. Para este mineiro, ela era algo de misterioso e fascinante: uma senhora. Quando lhe dirigiu a palavra, fê-lo com o sotaque do Sul e num inglês tão puro que o deixou emocionado. Ela observava-o. Ele era bom dançarino, como se, para ele, dançar fosse algo de natural, puro prazer. O avô dele era um refugiado francês que se casara com uma criada de bar inglesa – se é que tinham chegado a casar. Gertrude Coppard contemplava o jovem mineiro, vendo-o dançar com subtil exultação em cada requebro, em cada movimento, e o seu rosto dir-se-ia a flor do seu corpo, rosado e envolto em negras madeixas, de riso qualquer que fosse o par que tivesse ido buscar para dançar. Achava-o maravilhoso, diferente de todos os outros homens que já tinha visto. O pai era para ela o homem-modelo. Mas George Coppard, o orgulho em pessoa, homem bem-parecido e um tanto amargo, que elegia como leitura a teologia e nutria simpatia apenas por um homem – o apóstolo São Paulo –, George Coppard, homem de pulso inflexível e ironia à flor da pele, para quem o prazer sensual não existia, era radicalmente diferente do mineiro. A própria Gertrude desprezava a dança: era arte para a qual não sentia a menor inclinação, e nem a quadrilha ela aprendera a dançar. Era puritana, como o pai, um espírito elevado e determinado. Não admira pois que a dourada e nocturna suavidade do fogo sensual que jorrava do corpo daquele homem, incandescente como a chama de uma vela, sem submissão nem repressão da mente, tão diferente da vida que ela se impunha, fosse aos olhos dela algo de maravilhoso, de transcendente.

Ele aproximou-se e curvou-se diante dela. Uma onda irradiante de calor invadiu-a, como se tivesse bebido vinho.

– Agora, vossemecê vem dançar esta comigo – disse ele, acariciando-a com a voz. – É fácil, vai ver. Estou morto por vê-la dançar.

Ela, que já lhe tinha dito que não sabia dançar, ergueu os olhos perante tanta simplicidade, e sorriu. O seu sorriso, belíssimo, deixou o jovem sem discernimento.

– Não, não danço – disse, docemente. As suas palavras soaram cristalinas, musicais.

Sem saber porque o fazia – geralmente adoptava a atitude correcta por instinto –, ele sentou-se ao lado dela, inclinando-se com reverência.

– Mas não quero que fique sem dançar – protestou ela.

– Não, não me apetece dançar esta... não é das que eu mais gosto.

– O que não o impediu de me vir buscar.

Morel deu uma sonora gargalhada.

– Nem tinha pensado nisso. Vejo que não perde tempo a cortar-me o topete.

Foi a vez de ela dar uma risadinha breve.

– Olhando para si, ninguém há-de dizer – disse ela.

– Sou como o galarote: quando arrebito o topete, não há nada a fazer – rematou ele, com forte gargalhada. – Não quer beber nada? – perguntou a seguir.

– Não, obrigada... não tenho sede.

Ele hesitou, percebeu que ela era completamente abstémia, e sentiu o peso da recusa.

Enveredou então por uma série de perguntas delicadas, sobre questões interessantes, a que ela respondeu com brilho. Ele parecia-lhe fascinante.

– E pensar que você é mineiro! – exclamou ela, surpreendida.

– É verdade. Desde os dez anos.

Ela olhou-o com enlevada tristeza.

– Desde os dez anos!... E não era duro de mais?

– Depressa nos habituamos. Vivemos como ratos, e vimos cá acima à noite para ver como vão as coisas.

– Fico cega só de pensar – disse ela, fazendo uma careta.

– Como as toupeiras! – disse ele com uma risada. – É isso mesmo, e há tipos que andam às voltas como as toupeiras. – Depois, espetou a cara, como as toupeiras fazem ao focinho para farejarem o caminho, semicerrando os olhos para se orientarem. – Custa, mas conseguem! – disse ele, ingenuamente. – Vossemecê nunca há-de ter visto os buracos por onde elas entram. Qualquer dia, tem de me deixar mostrar-lhe um, e então já fica a saber como é.

Ela olhou para ele estupefacta. A vida abria de súbito um caminho novo à sua frente. Ela sabia como era a vida dos mineiros, a trabalharem às centenas debaixo da terra, só à noite vindo à superfície. Havia nele muita nobreza. Arriscava a vida diariamente e fazia-o com alegria. O olhar dela era um apelo, em toda a sua pureza e humildade.

– Vossemecê gostava de ir ver, não gostava? – perguntou ele, ternamente. – Se calhar não; era capaz de se sujar.

Nunca ninguém a tinha tratado por vossemecê.

Casaram no Natal seguinte. Durante três meses ela foi perfeitamente feliz, e muito feliz por mais seis meses.

Ele tinha assinado o juramento e ostentava a fita azul dos abstémios: gostava de dar nas vistas. A casa onde moravam era dele, pensava ela. Era pequena, mas razoável, e estava bem mobilada, com peças sólidas e dignas, a condizer com a sua alma austera. Mrs. Morel dava-se pouco com as vizinhas, e a mãe e as irmãs do marido desdenhavam dos seus modos senhoris; mas vivia bem sem elas, desde que tivesse a companhia do marido.

Às vezes, quando se cansava das juras de amor e tentava abrir-lhe o coração e falar de assuntos sérios, percebia que ele a escutava com deferência, mas sem compreender. Esta atitude cerceava o seu esforço para aprofundarem o conhecimento íntimo um do outro, e chegava a sentir medo. Havia noites em que ele se mostrava visivelmente inquieto, ansioso para sair: era óbvio que a companhia dela não lhe chegava. Viu, por isso, com bons olhos ele começar a fazer pequenos biscates.

Morel era um homem extremamente habilidoso, capaz de fazer ou consertar fosse o que fosse. Mal ela dizia, por exemplo:

– Gosto tanto do esborralhador da tua mãe... é pequenino e tão jeitoso.

Logo ele respondia:

– Gostas, minha linda? Pois bem, se eu fiz aquele, também posso fazer um para ti.

– O quê... mas é de aço!

– E depois? Vais ter um igual ou muito parecido.

Não se importava com a porcaria que ele fazia, nem com o barulho das marteladas. Via-o entretido e feliz, era quanto lhe bastava.

Mas um dia, no sétimo mês de casada, estava ela a escovar-lhe o casaco domingueiro quando sentiu uns papéis no bolso interior. Num acesso de curiosidade, tirou-os do bolso para ver de que se tratava. Ele raramente usava a sobrecasaca do dia do casamento, e ela nunca sentira curiosidade pelos seus papéis. Ao lê-los, viu tratar-se das contas da mobília, ainda por pagar.

– Ouve lá – disse-lhe ela à noite, depois de ele se ter lavado e acabado de jantar. – Encontrei isto no teu fato de casamento. Então ainda não pagaste as contas?

– Não... ainda não tive tempo.

– Mas disseste que já estava tudo pago. O melhor é eu ir a Nottingham no sábado e pagar tudo. Não me agrada nada estar sentada numa cadeira que não é minha, nem comer numa mesa que ainda não está paga.

Ele não respondeu.

– Posso levar o teu livro de cheques, não posso?

– Podes, mas não te vai servir de nada.

– Mas eu julgava... – começou ela. Ele tinha-lhe dito que tinha algum dinheiro de lado. Percebeu, porém, que não adiantava fazer mais perguntas, e ficou sentada muito hirta, ofendida e indignada.

No dia seguinte foi falar com a mãe dele.

– Não foi a senhora que comprou a mobília para o Walter? – perguntou-lhe.

– Fui, sim. – respondeu a outra, sacudida.

– E quanto é que ele lhe deu?

A mulher mostrou-se indignada:

– Oitenta libras, se é isso que quer saber.

– Oitenta libras! Mas ainda falta pagar quarenta e duas!

– E que tenho eu com isso?

– Mas, então, para onde foi o dinheiro?

– Se procurar, há-de encontrar os recibos... acho eu... tirando dez libras que ele me devia, e seis libras que é quanto custa aqui um casamento.

– Seis libras! – repetiu Gertrude Morel, sem querer acreditar. Parecia-lhe uma aberração que, depois de o seu pai gastar tanto dinheiro com o casamento, os pais de Walter fossem capazes de tirar mais seis libras ao filho para a comida e bebida que tinham oferecido.

– E quanto é que ele enterrou nas casas dele? – perguntou Gertrude.

– As casas dele?... Que casas?

Gertrude Morel ficou sem pinga de sangue. O marido tinha-lhe dito que a casa onde vivia e a outra ao lado eram suas.

– Estava convencida de que a casa onde moramos... – começou ela.

– Essas casas são minhas, as duas – disse a sogra. – E não estão livres de encargos. Tenho de arranjar maneira de pagar as hipotecas.

Gertrude estava lívida e sem fala. Neste momento era a réplica do pai.

– Então nós devíamos pagar renda – disse friamente.

– O Walter paga-me renda – replicou a mãe.

– E quanto é? – quis saber Gertrude.

– Seis xelins e seis dinheiros por semana – retorquiu a mãe.

Era mais do que a casa valia. Gertrude continuou a olhar em frente de cabeça bem levantada.

– Sorte a sua – disse a mulher, em tom mordaz. – Ter um marido que lhe poupa as preocupações com o dinheiro, e a deixa fazer o que quer.

A jovem manteve-se em silêncio.

Ao chegar a casa, pouco contou ao marido, mas a sua atitude para com ele mudou. Algo na sua alma honrada e orgulhosa ficara cristalizado, duro como rocha.

Quando Outubro chegou, ela só pensava no Natal. Dois anos antes, pelo Natal, tinha-o conhecido. No Natal anterior tinha-se casado com ele. No próximo Natal ia dar-lhe um filho.

Graças à sua natureza afável, depressa travou conhecimento com as vizinhas, com quem passava bons bocados a conversar, e só tinha receio de que a diferença na maneira de falar as levasse a pensar, como a família dele, que ela se estava a dar ares. Deixavam-na sempre tomar a iniciativa de meter conversa, mas gostavam dela.

– A senhora não dança, pois não? – perguntou-lhe a vizinha do lado em Outubro, quando todos falavam na escola de dança que ia abrir por cima da estalagem Brick and Tile, em Bestwood.

– Não... nunca senti a menor inclinação – respondeu Mrs. Morel.

– Veja como são as coisas! E logo foi casar com o seu homem. Sabe que ele é um dançarino famoso?

– Não sabia que era famoso – disse Mrs. Morel a rir.

– Pois fique sabendo que é! Pois se ele até deu aquelas aulas de dança durante mais de cinco anos no Clube dos Mineiros.

– Ah, deu?

– Deu, pois. – A mulher assumiu um ar de desafio. – E a casa estava à cunha todas as terças, quintas e sábados... e muita coisa por lá se passava... pelo menos era o que se dizia...

Nada era mais penoso para Mrs. Morel do que este tipo de conversas com que se via assediada. Nos primeiros tempos, as mulheres não a poupavam, pois, mesmo sem querer, ela estava muito acima de todas elas.

Entretanto, o marido começou a chegar a casa muito tarde.

– Eles agora trabalham até mais tarde, não é? – perguntou ela à lavadeira.

– Não mais tarde qu’o costume, não me parece. Mas param na taberna da Ellen p’ra beberem uma caneca de cerveja e depois ficam à conversa, ora aí tem!... Depois comem o jantar frio... e é bem feita.

– Mas Mr. Morel não bebe.

A mulher deixou cair a roupa que tinha na mão, olhou para Mrs. Morel e continuou no seu trabalho sem dizer uma palavra.

Gertrude Morel passou muito mal quando o filho nasceu. Morel tratou-a bem, o melhor possível. Mas ela sentia-se muito sozinha, longe da família. Agora, sentia-se só na companhia dele, e ainda mais só quando ele estava presente.

O menino nasceu muito pequenino e débil, mas depressa recuperou. Era uma bela criança, de cabelo louro escuro todo aos caracóis e uns olhos azuis, muito escuros, que se foram tornando a pouco e pouco cinzento-claro. A mãe tinha por ele um amor desmedido. Chegara precisamente no momento em que o peso da desilusão lhe era mais difícil de suportar – quando a sua vida começava a ficar tremida e a sua alma desolada e solitária. Ela só tinha olhos para o filho, e o pai sentia ciúmes.

Com o tempo, Mrs. Morel acabou por sentir desprezo pelo marido. Entregou-se ao filho e afastou-se do pai. Ele passara a dar-lhe menos atenção e a novidade de viver em casa dele já passara. Não tinha cabeça, dizia ela amargamente para si própria. Só se preocupava com o presente. Não tinha força de vontade e os seus actos eram só fogo de vista.

Começou então uma batalha entre marido e mulher, uma batalha terrível e sangrenta que só terminou com a morte de um deles. Ela lutava para o fazer assumir as suas responsabilidades, cumprir as suas obrigações. Mas ele era muito diferente dela: a sua natureza era puramente sensual, e ela esforçava-se por torná-la moral, religiosa. Tentava a todo o custo fazê-lo enfrentar a realidade, mas ele, não conseguindo suportar a pressão, perdeu a cabeça por completo.

Quando o bebé era ainda pequenino, o temperamento do pai tornou-se de tal maneira irascível que chegava a ser perigoso. Bastava a criança fazer a mais pequena coisa, para ele começar logo a ralhar. Mais qualquer coisa, e logo as suas mãos rudes de mineiro agrediam o bebé. Nessa altura, Mrs. Morel ficava zangada com o marido dias a fio, e ele deixava-se ficar a beber até tarde pelas tabernas, e ela já não se importava. Porém, quando ele chegava a casa, zurzia-o com sarcasmo.

O fosso que se cavava entre eles levava-o, consciente ou inconscientemente, a ofendê-la com grosserias de que anteriormente não seria capaz. William tinha apenas um ano e começava a andar e a dizer gracinhas. Era uma criança encantadora, conservando ainda os seus caracóis louros de bebé, que começavam agora a escurecer. Gostava muito do pai, que se mostrava carinhoso, indulgente e cheio de paciência com ele e jeito para o entreter, quando estava de maré. Quando se punham os dois a brincar, Mrs. Morel chegava por vezes a pensar qual deles seria o mais infantil.

Morel levantava-se sempre muito cedo, entre as cinco e as seis horas da manhã, fosse ou não dia de trabalho. Aos domingos, levantava-se e fazia o pequeno-almoço. O fogo ficava aceso toda a noite, pois era ateado antes de se irem deitar. Isto é, punham na lareira um grande bocado de carvão, que ia ardendo lentamente até de manhã. Aos domingos de manhã, o menino levantava-se com o pai, e a mãe ficava na cama mais uma hora. Esses eram para ela os momentos mais tranquilos: quando pai e filho brincavam e tagarelavam no andar de baixo.

William tinha só um aninho, e a mãe tinha muito orgulho nele – que bonito que ele era. Ela não tinha grandes possibilidades, mas as irmãs traziam o menino bem vestido. Ao vê-lo com o chapelinho branco de aba revirada enfeitado com uma pena de avestruz, casaquinho branco, e a cabeça emoldurada de fartos caracóis, sentia-se a mãe mais orgulhosa do mundo. Um domingo de manhã, Mrs. Morel deixou-se ficar a ouvir os dois a tagarelar, e acabou por adormecer. Quando desceu, brilhava uma grande fogueira na lareira, a sala estava aquecida, o pequeno-almoço atabalhoadamente colocado em cima da mesa, e Morel sentado no seu cadeirão, encostado à chaminé, com ar tímido. De pé, entre as suas pernas, estava o filho – com a cabeça muito redonda e bizarra, tosquiada que nem uma ovelha – a olhar para ela, espantado; e, numa folha de jornal aberta sobre o tapete, uma miríade de caracóis em forma de meia-lua, luzindo à luz rubra da fogueira como pétalas de malmequer.

Mrs. Morel estacou. Era o seu primeiro filho. Ficou lívida, muda com o choque.

– Então, que tal? – disse Morel, rindo contrafeito.

Ela cerrou os punhos, ergueu-os e avançou para ele. Morel encolheu-se.

– Estou capaz de te matar! Isso é que eu estou! – disse, sufocada de raiva, brandindo os punhos.

– Num queres qu’ele fique uma menina, poi não? – disse Morel, com o medo na voz, baixando a cabeça para não olhar para ela. A vontade de rir desaparecera como por encanto.

A mãe contemplou a cabeça do filho, rapada, coberta de mechas escortanhadas. Pousou-lhe as mãos no cabelo e acariciou-lhe a cabeça.

– Oh... meu menino! – balbuciou. Os lábios tremiam-lhe, o rosto contraiu-se-lhe, e, pegando na criança, agarrou-se a ela a chorar sentidamente. Ela era uma dessas mulheres que não conseguem chorar: a quem chorar dói tanto como dói aos homens. Era como se cada soluço lhe arrancasse um pedaço de si mesma. Morel continuava sentado com os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos entrelaçadas e tão crispadas que os nós dos dedos estavam brancos. Tinha o olhar pregado no fogo, atordoado, mal conseguindo respirar.

A cena finalmente terminou, ela acalmou a criança e levantou a mesa do pequeno-almoço; mas deixou ficar o jornal pejado de caracóis aberto sobre o tapete. Até que o marido se resolveu a apanhá-lo e a deitá-lo para a lareira. Ela entregou-se às suas ocupações de boca fechada e sem fazer barulho. Morel, de orelha murcha, arrastou-se pela casa o dia todo, com um ar muito infeliz, e nesse dia as refeições foram para ele um suplício. Ela falava com ele delicadamente, sem aludir ao sucedido, mas ele sentia que algo chegara ao fim.

Mrs. Morel disse mais tarde que tinha sido um disparate reagir como reagira, pois o cabelo do menino teria de ser cortado mais tarde ou mais cedo, e acabou mesmo por reconhecer que até tinha sido bom ele fazer de barbeiro naquele dia. Porém, ela sabia, tal como Morel, que aquele acto lhe tinha provocado na alma uma transformação radical. A cena perdurou na sua memória para sempre, como o momento mais penoso de toda a sua vida.

Este exemplo de flagrante boçalidade masculina foi a lança que matou o seu amor por Morel. Anteriormente, embora lutasse amargamente contra ele, logo corria atrás dele preocupada, como se tivesse medo de que ele lhe fugisse. Mas agora deixara de recear pelo seu amor: olhava-o como um estranho e a vida parecia-lhe muito mais suportável.

Não obstante, as zangas continuavam. Os seus elevados padrões morais continuavam intactos, herdados de gerações e gerações de Puritanos. Sentia-os agora como um instinto religioso, e comportava-se com ele de um modo quase fanático, porque o amava, ou, pelo menos, o tinha amado. Se ele pecava, ela torturava-o. Se ele bebia e mentia, umas vezes chamava-lhe poltrão, outras valdevinos, mas as chicotadas sucediam-se, impiedosas.

O mal era ela ser demasiado o seu oposto. Não se contentava com o pouco que ele tinha para lhe dar, exigia que ele fosse tudo aquilo que deveria ser. E, assim, ao tentar torná-lo mais nobre do que era possível, destruiu-o. Feriu-se, magoou-se, cobriu-se de cicatrizes, mas sem perder nada da sua dignidade. Além disso, tinha também as crianças.

Ele bebia demasiado, se bem que não mais do que muitos mineiros, e só bebia cerveja, pelo que a sua saúde, embora afectada, nunca o foi com gravidade. Os fins-de-semana eram os seus dias de maiores desmandos. Ia todas as sextas, sábados e domingos para o Clube dos Mineiros, e por lá ficava até à hora de fechar. Às segundas e terças só muito a custo se levantava para sair de casa por volta das dez horas. Às vezes ficava em casa às quartas e quintas à noite, ou saía só por uma hora. E, geralmente, nunca deixava de ir trabalhar por causa da bebedeira.

Mas, embora fosse um operário cumpridor, o salário baixava cada vez mais. Era um fala-barato, um língua de trapos; detestava qualquer forma de autoridade e passava a vida a desrespeitar os capatazes. Era ouvi-lo dizer na taberna do Palmerston:

– O gajo veio à nossa galeria esta manhã e disse: «Sabes, Walter, ist’assim num tá bem. Quando é qu’arranjas estas vigas?» E vou eu e digo: «De qu’é que tás a falar? Qu’é qu’as vigas têm?» «Num tão bem, isto aqui tá mal», diz ele. «Um destes dias, o tecto ’inda vem por aí abaixo.» E vou eu e digo: «Atão o melhor é pores-te em cima duma rocha e segurares o tecto coa cabeça». Ele então perdeu a cabeça e pôs-se a berrar e a praguejar, e os outros gajos todos a rir. – Morel era um bom imitador. Arremedava a voz encorpada e roufenha do capataz, a dar-se ares de bem falante.

– «Num admito faltas de respeito, Walter. Quem sabe mais, tu ou eu?» E vou eu e digo: «Nunca tive oportunidade de ver o qu’é que tu sabes, Alfred. Mas vê lá, não te saia o tiro pela culatra».

E Morel continuava a contar histórias, para gáudio dos companheiros de farra. Algumas eram verdadeiras. O capataz não era um homem culto. Ele e Morel conheciam-se desde miúdos, pelo que, embora não gostassem um do outro, ambos sabiam mais ou menos com o que podiam contar e aceitavam-se mutuamente. Porém, Alfred Charlesworth não perdoava ao seu tarefeiro estas graçolas de taberna. Por conseguinte, e embora Morel fosse um mineiro competente, tendo chegado até a ganhar cinco libras por semana na altura em que casou, começou a apanhar galerias cada vez piores, onde o carvão era fino e difícil de extrair, logo, de baixo rendimento.

Um tarefeiro era um subempreiteiro. A dois ou três tarefeiros era dada uma certa extensão de um filão, que eles tinham de explorar até determinado comprimento, recebendo cerca de três quartas partes por cada tonelada de carvão que extraírem. Daí, tinham de tirar dinheiro para pagar aos trabalhadores, os mineiros propriamente ditos e os carregadores, que eram contratados ao dia, e ainda comprar as ferramentas, o pó, e tudo o que fosse necessário. Se a galeria fosse das boas, e a mina trabalhasse em contínuo, podiam chegar às cem ou duzentas toneladas de carvão e ganhar um bom dinheiro. Se a galeria fosse das más, podiam trabalhar o mesmo, mas ganhar muito pouco. E, em trinta anos, Morel nunca tinha apanhado uma boa galeria. Mas, a fazer fé na mulher, a culpa era toda dele.

Por outro lado, no Verão há pouco trabalho nas minas. Nas manhãs soalheiras, é frequente ver os homens voltarem para casa em grupos por volta das onze ou do meio-dia. Não se vêem os vagões vazios junto às minas. Na encosta, as mulheres olham para o vale enquanto batem os tapetes contra a cerca, e põem-se a contar os vagões que a locomotiva leva pelo vale fora até às minas.

– Sete – dizem umas para as outras – vão pra Minton ou pra Spinney Park. Num dá pra manter uma mina.

E as crianças, quando voltam da escola à hora de almoço, olham para os campos e, ao verem as roldanas paradas nas torres, dizem:

– Minton já parou. O pai vai voltar pra casa.

E há em toda a gente, homens, mulheres e crianças, uma espécie de tristeza que os ensombra, porque o dinheiro vai ser pouco no fim da semana.

Morel devia dar à mulher trinta xelins por semana para as despesas da casa – renda, comida, vestuário, cotas das associações, seguro, médico. Às vezes, quando a semana era farta, dava-lhe trinta e cinco; mas essas ocasiões não chegavam para compensar as vezes em que só lhe dava vinte e cinco. No Inverno, com uma galeria razoável, Morel podia fazer cinquenta ou cinquenta e cinco xelins por semana. Com isso já se dava por contente. Às sextas à noite, sábados e domingos, gastava principescamente, esbanjando até ao último tostão, ou quase. E, de tanto dinheiro, raramente guardava algum para dar aos filhos, ou para lhes comprar duas libras de maçãs. Gastava tudo na bebida. Nos tempos difíceis, a situação tornava-se preocupante, mas ele também não se embebedava tantas vezes, e Mrs. Morel costumava dizer:

– Acho que prefiro quando andamos sem dinheiro, porque quando ele ganha muito não há um minuto de sossego nesta casa.

Se ele ganhasse quarenta xelins, guardava dez; de trinta e cinco, guardava cinco; de trinta e dois, guardava quatro; de vinte e oito, guardava três; de vinte e quatro, guardava dois; de vinte, guardava um xelim e seis dinheiros; de dezoito, guardava um; de dezasseis, guardava seis dinheiros. Não poupava um tostão, nem dava à mulher a oportunidade de poupar. Pelo contrário, era ela muitas vezes que tinha de pagar as dívidas que contraía; não as da taberna, que essas nunca eram cobradas às mulheres, mas quando, por exemplo, comprou um canário, ou uma bengala da moda.

Por alturas da feira anual, o trabalho estava a correr mal e Mrs. Morel esforçava-se por poupar para as despesas do parto. Sentia-se, por isso, indignada quando pensava que o marido andava lá por fora a gastar dinheiro e a divertir-se, enquanto ela ficava em casa, mortificada. Havia dois dias feriados. Na terça de manhã, Morel levantou-se cedo, muito bem-disposto. Mal o dia rompeu, ainda antes das seis horas, ouviu-o descer a escada a assobiar. Assobiava muito bem, com alegria e musicalidade – quase sempre hinos religiosos. Ele tinha sido menino de coro, com uma linda voz, e solista na catedral de Southwell. Bastava ouvi-lo assobiar para se perceber.

A mulher ficou a ouvi-lo traquinar no jardim, enquanto serrava e martelava, sempre a assobiar. Sentia-se protegida e tranquila quando ficava assim a ouvi-lo de manhã cedo, ela na cama e as crianças ainda a dormir, e ele enchendo a manhã ensolarada, feliz, à sua maneira masculina.

Às nove horas, enquanto as crianças, descalças, brincavam em cima do sofá e a mãe lavava a loiça, ele parou de carpinteirar e voltou para casa, de mangas arregaçadas e colete todo aberto. Ainda era um belo homem, com os seus cabelos pretos ondulados e um farto bigode preto. As faces estavam talvez coradas em demasia e havia nele um certo ar enfadado. Mas desta vez estava bem-disposto e foi direito à copa, onde a mulher estava a lavar.

– O quê, tás aí? – disse ele, fanfarrão. – Gira mas é daí pra fora qu’eu quero lavar-me.

– Já agora podes esperar que eu acabe – respondeu ela.

– Ah, posso? E s’eu num quiser?

Esta ameaça brincalhona animou Mrs. Morel.

– Tens bom remédio: vais lavar-te na selha.

– Ah! Ah! Estás hoje muito sirigaita.

E, dizendo isto, ficou parado a olhá-la por uns segundos, afastando-se em seguida, à espera de que ela terminasse.

Quando queria, ainda sabia pôr-se todo galante. Caprichava geralmente no lenço que punha ao pescoço. Desta vez, porém, aperaltou-se todo. Foi tanto o entusiasmo com que se lavou com grande estardalhaço, tal a alacridade com que correu para o espelho da cozinha e, curvando-se, porque o espelho era muito baixo, penteou o cabelo molhado, abrindo um irrepreensível risco ao lado, que Mrs. Morel acabou por se irritar. Escolheu para a camisa um colarinho virado para baixo, pôs a gravata preta e vestiu o fato domingueiro. Estava todo janota e o que o fato não conseguia dar-lhe, dava-lhe o instinto que tinha para tirar partido da sua boa figura.

Às nove e meia, Jerry Purdy veio chamar o amigo. Jerry era o melhor amigo de Morel, mas Mrs. Morel não gostava dele. Era um homem alto e magro, com uma daquelas caras afiladas que parecem não ter pestanas. Caminhava muito hirto, com rígida dignidade, como se tivesse engolido um pau de vassoura, e tinha uma personalidade fria e astuta. Generoso, quando e com quem queria, parecia gostar muito de Morel, a quem mais ou menos servia de mentor.

Mrs. Morel detestava-o. Tinha conhecido a mulher dele, que morrera tuberculosa e fora acometida, perto do fim, de um ódio tão violento pelo marido, que mal ele entrava no quarto, tinha logo uma hemorragia. Nada disto, no entanto, parecia ter abalado Jerry. Agora, era a filha mais velha, uma rapariga de quinze anos, quem tratava da casa pobre onde moravam e cuidava dos irmãos mais novos.

– É um pau de virar tripas, ruim e unhas de fome! – disse Mrs. Morel.

– Nunca em toda a minha vida dei por que o Jerry fosse ruim – protestou Morel. – Cá pra mim, num s’encontra em lado nenhum tipo mais mãos-largas e mais liberal do qu’ele.

– Mãos-largas para ti – retorquiu Mrs. Morel. – Porque para os filhos dele, coitadinhos, a mão está sempre fechada.

– Coitadinhos, uma ova!... Coitadinhos porquê? Sempre gostava de saber.

Mas Mrs. Morel não alargou os comentários sobre Jerry.

O pomo da discórdia chegou e, esticando o pescoço escanzelado, espreitou por cima das meias cortinas da janela da cozinha, dando de caras com Mrs. Morel.

– Bom dia, minha senhora!... O seu marido está?

– Está sim.

Jerry entrou sem ser convidado e ficou parado à porta da cozinha. Não o mandaram sentar, mas ele ficou de pé, fazendo jus aos direitos dos homens e dos maridos.

– Está um belo dia! – disse, virando-se para Mrs. Morel.

– É verdade.

– Esta manhã está-se muito bem lá fora... uma rica manhã para passear.

– O senhor vai então dar um passeio? – perguntou ela.

– É verdade. Fazemos tenção d’ir a Nottingham – respondeu ele.

– Hum!

Os dois homens cumprimentaram-se alegremente; Jerry muito senhor de si e Morel menos afoito, com medo de se mostrar alegre de mais diante da mulher. Mas apertou rapidamente os atacadores das botas, com vigor. Esperava-os um passeio de dez milhas pelos campos, até Nottingham. Tendo subido a encosta a partir das Bottoms, arrostaram alegremente com a passeata matinal. Quando chegaram à taberna Moon and Stars, pararam para beberem o primeiro copo e, depois, pés ao caminho até à taberna Old Spot. Seguiam-se umas penosas cinco milhas de secura, até à Bulwell, onde os esperava uma gloriosa caneca de cerveja amarga. Mas encontraram pelo caminho um grupo de ceifeiros com o garrafão ainda cheio, e quando avistaram a cidade, Morel já ia quase a dormir. A cidade estendia-se pela encosta acima à sua frente, fumegante e difusa na claridade ofuscante do meio-dia, ostentando para sul a crista recortada de pináculos, torres de fábricas e chaminés. Ao atravessarem a última seara antes da cidade, Morel deitou-se à sombra de um carvalho e dormiu a sono solto durante mais de uma hora. Quando se levantou para seguir viagem, sentia-se esquisito.

Almoçaram em Meadows, em casa da irmã de Jerry, e depois partiram em direcção à taberna Punch Bowl, onde se associaram ao entusiasmo que rodeava uma largada de pombos. Morel nunca tinha jogado cartas, achando até que possuíam um certo poder oculto, maléfico; «retratos do diabo», era como ele lhes chamava. Era porém mestre no boliche e no dominó. Aceitou, por isso, o desafio de um homem de Newark para uma partida de boliche. Todos os homens postados ao longo do velho balcão comprido e carcomido fizeram a sua escolha, apostando num ou no outro. Morel despiu o casaco. Jerry segurava o chapéu com o dinheiro das apostas. Os homens sentados às mesas observavam. Alguns levantaram-se e chegaram-se para a frente, de caneca na mão. Morel acariciou a enorme bola de madeira e lançou-a. Derrubou os nove pinos e ganhou meia-coroa, o que o deixou de novo equilibrado.

Às sete da tarde deram-se os dois por satisfeitos e apanharam o comboio das sete e meia, de volta a casa.

Mrs. Morel passou o dia deprimida e descorçoada. Lavou a roupa que pôde, mas não conseguiu fazer mais nada. Foi William quem arrumou a casa.

– Queres que eu faça mais alguma coisa, mãe? – perguntou.

– Não, não há nada que possas fazer... excepto levares a Annie a dar uma voltinha.

– Isso não me apetece.

– Apeteça ou não, tens de ir.

E o garoto lá foi, carregado com a irmã, enquanto a mãe ficava a trabalhar. Estava furioso com ela, por lhe ter empurrado aquele fardo para cima, mas ao mesmo tempo tinha pena da mãe, porque sabia que alguma coisa se passava. E, assim, com a infância dominada pelo amor que tinha à mãe, tentava fazer o melhor que podia.

À tarde não se podia andar nas Bottoms. Toda a gente tinha vindo para a rua. As mulheres, às duas e três, sem chapéu e de avental branco, davam à língua no beco que se abria entre os quarteirões. Os homens, fazendo uma pausa entre duas canecas de cerveja, sentavam-se nos calcanhares, a conversar. O lugar cheirava mal, e os telhados de ardósia luziam no ar morno e seco.

Mrs. Morel levou a filha até ao ribeiro, no meio do prado, a não mais de duzentos metros. A água corria leve sobre pedras e bocados de panelas. Mãe e filha foram para a velha ponte dos rebanhos e debruçaram-se a olhar para a água. Do outro lado do prado, na poça onde mergulhavam as ovelhas, Mrs. Morel avistou as silhuetas nuas de alguns rapazes a saltarem à volta da poça funda e amarelada, ou uma figura cintilante recortar-se de fugida sobre o prado estático e sombrio. Sabia que William estava na poça, e morria de medo que ele se afogasse. Annie estava a brincar à sombra da velha sebe do caminho da encosta, entretida a apanhar bagas de amieiro a que chamava groselhas. A menina necessitava de muita atenção, e as moscas não a deixavam sossegada.

As crianças foram para a cama às sete horas, e ela ainda foi arrumar mais umas coisas.

Quando Walter Morel e Jerry chegaram a Bestwood, sentiram um alívio: livres da viagem de comboio, podiam acabar o dia em beleza. Entraram na taberna do Nelson com a alegria dos viajantes que regressam. Mrs. Morel dizia sempre que o marido não tinha nada a esperar do outro mundo, pois subia do mundo impuro ao purgatório quando voltava da mina, e ascendia directamente ao céu quando entrava na taberna do Palmerston.

Com o arrefecimento nocturno, os jardinzinhos das Bottoms tornavam-se mais perfumados. Mrs. Morel saiu para ver as flores e respirar o ar do entardecer. Mrs. Kirk, a vizinha, não estava em casa, o que era uma pena, pois podiam ter ficado um bocado a conversar. Estava por isso sozinha. As andorinhas negras, a que as crianças chamavam «diabinhos», riscavam o ar para trás e para a frente, como setas, por cima da sua cabeça, voltando para trás na extremidade da casa, metendo-se por baixo dos largos beirais e logo voltando a sair, mergulhando em voo picado entre pios e chilreios que pareciam vir da própria luz e não de ternos passarinhos. Alguém tinha pisado o canteiro dos malmequeres, que estava coberto de brancas pétalas de rosa. Ela baixou-se e limpou-o, endireitando as pequeninas corolas amarelas.

O dia seguinte era dia de trabalho, e os homens ficavam esmorecidos só de pensarem em tal. Alguns já se arrastavam para casa, a pensarem no sono reparador que os ia preparar para a manhã seguinte. Mrs. Morel voltou para dentro ao ouvir os seus cantares dolentes. Deram as nove horas, depois as dez, e o «par» sem aparecer. Algures, na soleira de uma porta, um homem cantava a plenos pulmões, arrastando a voz: «Guia-me, Luz Bendita.» Mrs. Morel indignava-se sempre que ouvia bêbados cantarem este hino quando a pinga lhes dava para a tristeza.

– Como se «Oh, Genoveva» não lhes chegasse... – disse ela. A cozinha estava impregnada de um cheiro a ervas cozidas e a lúpulo. No borralho, fervilhava lentamente uma grande caçarola preta. Mrs. Morel pegou num enorme alguidar de barro vermelho, deitou-lhe no fundo um monte de açúcar branco e, depois, endireitando-se para contrabalançar o peso do seu ventre, começou a despejar a cerveja.

Nesse momento Morel, chegou. Tinha estado muito bem-disposto no Nelson, mas o regresso a casa pusera-o de mau humor – resquícios do mal-estar e da irritação que sentira por ter dormido no chão à hora do calor; além disso, a consciência pesava-lhe à medida que se aproximava de casa. Não se dava conta de estar mal-humorado, mas quando o portão do jardim resistiu à primeira tentativa de o abrir, deu-lhe um pontapé que logo rebentou com o ferrolho. Entrou em casa no preciso momento em que Mrs. Morel estava a vasar a infusão de ervas da caçarola. Cambaleando ligeiramente, deu um encontrão na mesa. O líquido a ferver saltou. Mrs. Morel deu um pulo para trás.

– Meu Deus! – exclamou ela. – Chegares a casa nesse estado de embriaguez!

– Chegar a casa neste estado de quê...? – rosnou ele, de chapéu descaído sobre os olhos.

Num repente, Mrs. Morel ficou a ferver.

– Vá, diz lá que não estás bêbado! – ripostou.

Tinha pousado a caçarola e estava a mexer a cerveja para dissolver o açúcar. Ele apoiou as manápulas com força sobre a mesa e avançou ameaçadoramente para ela.

– «Vá, diz lá que não estás bêbado» – repetiu ele. – Só uma cabra estuporada como tu era capaz de pensar uma coisa dessas.

– Como passaste o dia inteiro a beber, se não estás bêbado às onze da noite... – retorquiu ela, continuando a mexer.

– Num passei o dia a beber... Num passei o dia a beber... aí é que tu t’inganas – disse ele, fora de si.

– Então, parece que me enganei – volveu ela.

– Ah, parece... Ah, parece... Não me digas...

– Sai de casa às nove da manhã, volta à meia-noite. E, além disso, ambos sabemos bem o que tu fazes quando sais com o teu querido amigo Jerry.

– O teu querido amigo Jerry... o quê?... Que história é essa?... Hem?

E avançou para ela, de queixo espetado.

– Para a bebida há sempre dinheiro, mesmo que não chegue para mais nada – disse ela.

– Hoje num gastei nem dois xelins – contrapôs ele.

– Não há-de ser de graça que te embebedas – ripostou ela. – E mais – gritou, tomada de súbita fúria –, se andaste a cravar o teu querido amigo Jerry, é melhor deixá-lo cuidar dos filhos que tem em casa, que bem precisam.

– «É melhor deixá-lo cuidar dos filhos»... Essa agora... Ond’é que vês crianças mais bem tratadas qu’as dele, sempre gostava de saber.

– As minhas, por exemplo... não as tuas, se fosses tu a tratar delas... Um homem capaz de se embebedar de manhã à noite.

– Isso é mentira, isso é mentira – gritou ele, num acesso de raiva, batendo com a mesa.

– ... Que não garante o sustento dos filhos – continuou ela.

– E que tens tu cum isso? – berrou ele.

– Que tenho eu com isso?... Ora essa, tenho e muito... Um homem que me dá uns míseros vinte e cinco xelins por semana para manter a casa... e que se põe ao fresco todo o dia... e só volta à meia-noite...

– Isso é mentira, mulher, isso é mentira!

– ... E que julga que eu vou continuar a poupar e a arranjar maneira de sobreviver, enquanto ele se embebeda e se enfrasca, de passeio até Nottingham...

– Isso é mentira, isso é mentira... cala essa boca, mulher.

A batalha atingira o auge. Cada um deles esquecia tudo o mais, menos o ódio que sentia pelo outro e a luta em que se empenhava. Ela estava tão desvairada e furiosa quanto ele. E a discussão continuou até ele lhe chamar mentirosa.

– Não – gritou ela, tomando o fôlego a custo, mal podendo respirar. – Não admito que me chames isso... tu, o mais desprezível mentiroso que este mundo já viu. – As últimas palavras saíram já arrancadas a um peito sem ar.

– És mentirosa, sim senhora! – gritou ele, desabrido, dando um murro na mesa. – Mentirosa, mentirosa!

Ela empertigou-se, de punhos cerrados.

– Se eu pudesse dava cabo de ti, meu grande bruto, meu cobarde – disse ela, com voz cava, soluçante.

E, na vaga de fúria seguinte, verteu todo o ódio exacerbado que sentia pelo marido. Ele, ripostando, bateu com a mesa no chão, fazendo-a ressoar por toda a casa, enquanto ela, por sua vez, despejava sobre ele todo o seu desprezo e o seu ódio.

– Tu conspurcas esta casa – gritou ela.

– Nesse caso vai-te embora... A casa é minha. Vai-te embora – berrou ele. – Sou eu que trago o dinheiro aqui pra casa, não és tu. A casa é minha, não é tua. Vá, desaparece... Vai-te embora!

– E ia mesmo – gritou ela, lavada em lágrimas, impotente. – Ah, isso é que eu ia, já tinha ido há muito tempo, se não fosse pelas crianças. Quantas vezes já me arrependi de não ter ido há muitos anos, quando só o tinha a ele... – disse, já sem lágrimas para verter, mas com raiva redobrada. – Julgas que foi por ti que fiquei? Julgas que se fosse por ti, hesitava por um minuto?

– Então vai-te! – berrou ele. – Vai-te!

– Não! – disse ela, encarando-o. – Não – disse ela aos gritos. – Não vai ser tudo como tu queres... Não penses que fazes tudo aquilo que queres. Tenho de pensar nas crianças. Meu Deus... – e deu uma gargalhada. – Ia ser bonito se as deixasse ficar contigo.

– Vai-te – gritou ele, sufocado, erguendo o punho. Estava com medo dela. – Vai-te!

– Quem me dera... Como eu ficava contente, como eu ria, meu Deus, se pudesse livrar-me de ti – ripostou ela.

Ele avançou afogueado, com os olhos raiados de sangue, atirou-se a ela e agarrou-lhe os braços. Ela gritou, cheia de medo, lutando para se soltar. Ele, ofegante, caindo um pouco em si, deu-lhe um encontrão, atirando-a contra a porta, e, empurrando-a lá para fora, fechou a porta de seguida com um estrondo. Depois, voltou para a cozinha, atirou-se para cima do cadeirão, enterrou a cabeça entre os joelhos, a estalar de emoção, e deixou-se afundar lentamente no torpor, cedendo à exaustão e à embriaguez.

A lua erguia-se alta e magnífica naquela noite de Agosto. Mrs. Morel, ardendo em fúria, tremia ao ver-se ali fora, sob o luar todo branco que a iluminava e lhe macerava a alma incendiada. Desalentada, ficou por breves instantes a olhar para as grandes folhas cintilantes do ruibarbo, junto à porta. Depois, respirou fundo e desceu o carreiro do jardim, toda a tremer, enquanto a criança se agitava dentro dela. Não conseguia controlar os pensamentos, e assim permaneceu por largo tempo; mecanicamente, recapitulava a última cena uma e outra vez, surgindo certas frases, certos momentos, como ferro em brasa a queimar-lhe a alma: e, de cada vez que repisava esta última hora da sua vida, cada vez o ferro em brasa a torturava, sempre nos mesmos pontos, até a ferida se acender e a dor se apagar e ela, finalmente, voltar a si. Deve ter passado uma boa meia hora neste delírio. Mas logo a noite lhe impôs a sua presença. Receosa, olhou em redor. Tinha ido até ao jardim lateral, passeando-se para cima e para baixo ao longo do muro, rente às groselheiras. O jardim era uma estreita faixa de terra, separado da estrada que cortava transversalmente entre os blocos por uma densa sebe de espinheiros.

Passou rapidamente do jardim de topo para o da frente, onde se sentiu como num golfo imenso de luz branca, com a lua a brilhar do alto, mesmo à sua frente, e o luar a elevar-se das colinas fronteiras, inundando o vale onde as Bottoms se erguiam atarracadas, quase cegando de tanto brilho. Aí, entre soluços e lágrimas, numa reacção de anticlímax, murmurava ininterruptamente:

– Monstro!... Monstro!

Nisto, sentiu qualquer coisa perto dela. Fez um esforço para se controlar e tentar perceber o que tanto lhe perturbava os sentidos. Os lírios brancos, altaneiros, estremeciam ao luar e o seu perfume pesava no ar como uma presença. Mrs. Morel deixou escapar um suspiro de medo, sufocado. Tocou nas pétalas das flores pálidas e enormes, e um arrepio sacudiu-a. Parecia que se abriam ao luar. Meteu a mão na corola branca: o ouro mal se via na ponta dos seus dedos, iluminados pelo luar. Curvou-se para contemplar a corola carregada de pólen dourado, mas só viu uma sombra indistinta. Aspirou o perfume até à alma, quase até entontecer.

Olhou em redor. A sebe cintilava debilmente na escuridão. Dela saíam flores brancas. Em frente, a colina desenhava-se difusa, apertada entre sebes altas e sombrias e irrequieta com os movimentos do gado à luz da lua. Aqui e além, o luar parecia tremer e ondear.

Mrs. Morel encostou-se ao portão do jardim, a olhar lá para fora, esquecida de tudo. Não sabia em que pensava. Tirando uma leve náusea e a consciência da criança que carregava no ventre, todo o seu ser se diluía como perfume no ar pálido e brilhante. Por fim, a criança diluiu-se também com ela no cadinho do luar e, irmanada com as colinas, os lírios e as casas, flutuaram todos em conjunto, como num êxtase.

Quando voltou a si, estava cansada, sonolenta. Languidamente, olhou em volta; os tufos de violetas brancas lembravam arbustos salpicados de roupa a secar; uma borboleta ricocheteou neles e cruzou o jardim. Seguir-lhe os movimentos fê-la despertar. Aspirou o aroma acre das violetas e o ânimo ressurgiu. Subiu o carreiro, parando hesitante junto à roseira branca. O seu perfume era doce, era singelo. Tocou as corolas brancas das rosas, abertas em folhos. O aroma fresco e as folhas frias e aveludadas lembraram-lhe a frescura da manhã ensolarada, de que ela tanto gostava. Mas agora estava cansada e precisava de dormir. Ali fora, no mistério da noite, sentia-se perdida.

Não se ouvia o mais pequeno ruído. Era evidente que as crianças não tinham acordado, ou então já tinham voltado a adormecer. Um comboio apitou no vale, a umas três milhas de distância. A noite era imensa e estranha, estendendo-se até ao infinito na sua vastidão de cinza. E da névoa prateada da penumbra chegavam-lhe aos ouvidos sons roucos e indistintos: um codornizão, ali bem perto; o suspiro rouco de um comboio; homens a gritar ao longe.

O coração amansado voltou a bater rapidamente e ela desceu à pressa o jardim lateral, em direcção às traseiras da casa. Levantou a lingueta suavemente: a porta continuava trancada, barrada à sua passagem. Bateu ao de leve, esperou e bateu de novo. Não queria acordar as crianças nem os vizinhos. Ele devia ter adormecido e não acordava com facilidade. O coração ardia-lhe com vontade de se ver dentro de casa. Agarrou-se ao puxador. Agora já estava frio e podia apanhar um resfriado; e logo agora, no seu estado!

Pôs o avental por cima dos ombros e da cabeça e correu de novo até ao jardim lateral, até à janela da cozinha. Encostando-se ao peitoril, conseguiu vislumbrar por baixo da persiana os braços do marido deitados sobre a mesa, e a cabeça negra apoiada no tampo. Estava a dormir com a cara em cima da mesa. Algo na sua atitude a fazia sentir-se cansada da existência. A candeia ardia, fumarenta – via-se pelo tom acobreado da luz que deitava. Tamborilou os dedos na janela, cada vez com mais força. Parecia que queria partir a vidraça. E ele sem acordar.

Todos os seus esforços eram vãos. Começou a tremer, em parte do contacto com a pedra, em parte de exaustão. Receando pela criança que estava para nascer, pensava no que poderia fazer para se aquecer. Foi até à carvoeira, onde estava um velho tapete da chaminé, que ela para ali tinha trazido na véspera para o trapeiro levar. Colocou-o sobre os ombros. Apesar de muito sujo, sempre a aquecia. Começou depois a subir e a descer o carreiro do jardim, espreitando de vez em quando por baixo da persiana, batendo na janela e dizendo para consigo que a posição forçada em que ele se encontrava acabaria por fazê-lo acordar.

Por fim, passada quase uma hora, bateu devagar, mas persistentemente, na janela. O som, gradualmente, penetrou-o. Quando, desesperada, já tinha parado de bater, viu-o mexer-se e, a seguir, levantar a cabeça, estremunhado. O bater do coração acordava-o dolorosamente para a realidade. Ela batia imperativa na janela. Ele acordou sobressaltado, e ela viu cerrarem-se-lhe os punhos e os olhos faiscarem, sem um pingo de medo. Vinte ladrões que ali estivessem, ele ter-se-ia atirado a eles sem pestanejar. Olhava em volta, estonteado, mas pronto para a luta.

– Abre a porta, Walter – disse ela, friamente.

As mãos dele relaxaram e então lembrou-se do que tinha feito. A cabeça tombou-lhe, contrita, arrependida. Ela viu-o correr para a porta, abrir o ferrolho. Experimentou levantar a lingueta. A porta abriu-se: diante dele estendia-se a noite prateada que ele temia enfrentar depois da luz amarela da candeia. À pressa, voltou para dentro.

Quando Mrs. Morel entrou, viu-o correr para a porta interior, em direcção às escadas. Com a pressa de se escapar dali para fora antes de ela entrar, até tinha arrancado o colarinho, que jazia no chão, com as casas rasgadas. Isto sim, irritou-a. Aqueceu-se e acalmou-se. Esquecida de tudo pelo cansaço, entregou-se às pequenas tarefas que havia para fazer, preparou-lhe o pequeno-almoço, lavou-lhe o cantil, pôs-lhe o fato da mina a aquecer junto à lareira com as botas ao lado, foi buscar um lenço lavado, um saco para o farnel e duas maçãs, espevitou o lume e foi deitar-se. Ele dormia já profundamente. As suas sobrancelhas finas e negras estavam arqueadas numa espécie de rictus de sofrimento e arrogância, entrando pela testa dentro, ao mesmo tempo que as faces descaídas e a boca desdenhosa pareciam dizer: «Não me interessa quem tu és nem o que és, quem manda aqui sou eu».

Mrs. Morel já o conhecia bem de mais para olhar para ele. Enquanto tirava o broche em frente ao espelho, sorriu ligeiramente ao ver o seu rosto todo sujo do pó amarelo dos lírios. Sacudiu-o e foi para a cama. Por algum tempo ainda, a sua mente continuou a faiscar, mas adormeceu antes de o marido acordar do primeiro sono da bebedeira.


II

O NASCIMENTO DE PAUL
E UMA NOVA BATALHA

DEPOIS de uma cena como a última, Walter Morel andou largos dias abatido e envergonhado, mas depressa recuperou a indiferença e brutalidade costumeiras. Notava-se contudo um ligeiro abrandamento, um leve esmorecer da sua autoconfiança. Até fisicamente ele mirrara, sendo visível um certo alquebrar da sua bela figura. Não sendo do tipo atlético, ao perder o porte altivo e imponente, o físico parecia definhar com o quebrar do orgulho e da força de ânimo.

Percebia agora como era dura para a mulher a lida da casa e, com uma solidariedade ditada pelo remorso, apressou-se a ajudá-la. Depois de sair da mina vinha direito para casa e à noite não saía – mas só até chegar a sexta-feira; nessa altura não aguentava mais, mas estava sempre de volta às dez horas, e quase completamente sóbrio.

Também preparava o seu pequeno-almoço. Sendo um homem que se levantava cedíssimo e tinha muito tempo pela frente, não fazia como outros mineiros que obrigavam as mulheres a sair da cama às seis da manhã. Acordava às cinco, às vezes mais cedo, levantava-se de imediato e descia para a cozinha. Quando não conseguia dormir mais, a mulher deixava-se ficar deitada à espera deste momento, como de um tempo de paz. Mas descanso, propriamente dito, só quando ele não estava em casa.

Descia a escada em mangas de camisa e enfiava à pressa as calças da mina, deixadas durante a noite ao borralho para aquecerem. O lume nunca se apagava, porque Mrs. Morel o abafava antes de ir para a cama. E o primeiro som que se ouvia pela manhã era o roçar do atiçador contra a grelha, enquanto Morel remexia as brasas que restavam para pôr a chaleira a ferver, que já ficava cheia de véspera em cima da grelha. A chávena, a faca e o garfo, tudo o que ele precisava, excepto a comida, estavam a postos em cima da mesa, sobre um jornal. Preparava então o pequeno-almoço, fazia o chá, entalava os tapetes debaixo das portas para evitar a corrente de ar, acendia uma bela fogueira e usufruía de uma hora de bem-estar. Assava o presunto na ponta do garfo, deixando pingar a gordura sobre o pão. Em seguida, punha o naco de presunto em cima da grossa fatia de pão e ia cortando lascas com o canivete; depois, deitava o chá no pires e era aquilo a felicidade. Com a família à volta, as refeições nunca eram tão agradáveis. Detestava comer com o garfo, essa invenção moderna que ainda não chegou às classes populares. Do que ele realmente gostava era do seu canivete. E, assim, comia na solidão, sentando-se muitas vezes num banquinho, quando estava frio, com as costas contra a pedra aquecida da chaminé, a comida no guarda-fogo e a chávena no chão quente. Lia a edição da tarde do jornal da véspera, tanto quanto lho permitiam as suas capacidades, soletrando as palavras laboriosamente. Preferia manter as persianas corridas e a vela acesa, mesmo quando já era dia claro. Era o hábito da mina.

Quando faltava um quarto para as seis, levantava-se, cortava duas grossas fatias de pão, barrava-as com manteiga e metia-as no saco branco do farnel. Enchia de chá o cantil de lata. Chá frio, sem leite nem açúcar, era o que lhe sabia bem na mina. Depois, despia a camisa e enfiava a vestimenta da mina, um casabeque grosso de flanela, de decote redondo e mangas curtas.

Em seguida, levava uma chávena de chá à mulher, porque ela estava doente e porque lhe dava na gana.

– Trouxe-te uma pinga de chá, cachopa – dizia ele.

– Não sei para quê, sabes bem que não gosto – respondia ela.

– Vá, bebe, isto põe-te a dormir outra vez num instante.

Ela aceitava o chá. Ele gostava de a ver pegar na chávena e começar a bebericar.

– Aposto que não lhe deitaste açúcar – dizia ela.

– Isso é que deitei, e um bom bocado – respondia ele, ofendido.

– É para admirar – dizia ela, bebendo mais um gole.

Ficava linda com o cabelo desmanchado. E ele adorava ouvi-la resmungar assim. Olhava para ela outra vez e saía sem se despedir. Nunca levava mais de duas fatias de pão com manteiga para a mina, pelo que uma maçã ou uma laranja era para ele um luxo. Ficava todo contente de cada vez que ela lhe deixava uma cá fora. Atava um lenço ao pescoço, calçava as botas, enormes e pesadonas, vestia o casacão de grandes bolsos, onde metia o saco do farnel e o cantil com o chá, e saía para o fresco da madrugada, fechando a porta atrás de si sem a trancar. Adorava as alvoradas. Saía sempre de casa pelas seis horas, embora os trabalhadores não pegassem senão por volta das sete e a caminhada até à mina não levasse mais de meia hora. Metia geralmente pelos campos e muitas vezes, no Verão, parava na tapada à cata de cogumelos, afastando a erva densa e molhada com as pesadas botas de mineiro, à procura dos tortulhos brancos e carnudos que nela se acoitavam. Se calhava encontrar alguns, metia-os cuidadosamente no bolso. Não se pode dizer que lhe custasse deixar o ar frio e límpido da manhã e descer às profundezas. Estava tão habituado que encarava essa rotina como um gesto simples e natural. Por isso, era frequente vê-lo chegar à entrada da mina com um raminho arrancado da sebe entre os dentes, que ia mordiscando pelo dia fora lá em baixo, para manter a boca humedecida, sentindo-se tão feliz como ao ar livre.

Passado algum tempo, quando a chegada do bebé estava mais próxima, costumava dar um arranjo à cozinha, no seu estilo negligente, atiçando as brasas, limpando o fogão e varrendo a casa antes de sair para o trabalho. Nessa altura, com a consciência do dever cumprido, ia lá acima e dizia à mulher:

– Pronto, já limpei a casa. Num tás em condições d’andares praí a traquinar o dia todo. Deixa-te ficar sentada a ler os teus livros. – O que lhe dava imensa vontade de rir, apesar da indignação que nela despertava.

– E então o jantar, faz-se sozinho? – repontava Mrs. Morel.

– Eh lá, do jantar não percebo eu.

– Mas percebias, se ele não te aparecesse na mesa.

– Se calhar... – respondia ele, e abalava.

Quando ela vinha para baixo, encontrava a casa arrumada, mas toda suja, e não descansava enquanto não lhe dava uma boa limpeza. E quando se dirigia ao depósito das cinzas com a pá do lixo carregada, logo Mrs. Kirk, sempre de atalaia, arranjava uma desculpa para aparecer logo a seguir no seu depósito e meter conversa através do tapume de madeira.

– Sempre a cirandar, não é verdade?

– Que remédio – respondia Mrs. Morel, resignada. – É preciso, que se há-de fazer.

Mrs. Kirk era uma mulher magra e nervosa, a atirar para o histérico. Mrs. Morel gostava dela. Juntavam-se as duas, cada uma do seu lado do tapume, de pá na mão, e ali ficavam um bocado a conversar. Era mais ou menos assim:

– Ainda se mata de trabalho – dizia Mrs. Kirk. – O seu homem não lhe dá uma ajudinha? O meu Tom não me dá razão de queixa nesse aspecto.

– Então não dá? – respondia a vizinha. – Ainda esta manhã foi ao meu quarto para me dizer que já tinha feito a limpeza e que eu não precisava de fazer mais nada todo o dia, era só sentar-me e pôr-me a ler.

– Pois é, os homens são mesmo uns paspalhões! – exclamava Mrs. Kirk.

– E eu fui dar com a chaminé cheia de terra e o lixo todo metido debaixo do tapete.

Mrs. Kirk ria-se, enchendo de dentes a cara afilada.

– São todos iguais – acrescentava. – Passam a vassoura e o espanador à pressa por cima das coisas e acham que já fizeram muito.

– E não se ralam com a porcaria que fazem – dizia Mrs. Morel.

– Não se ralam mesmo. O meu Tom é igualzinho.

– Todos iguais – dizia Mrs. Morel.

– Já soube da Mrs. Allsop?

– Não.

– Não? O menino dela já chegou.

– A sério? Quando?

– Anteontem à noite... Depois da trovoada...

– O quê...!

E as duas mulheres riam com gosto.


– Viram o Hose? – gritou uma mulher baixinha do outro lado da rua. Era Mrs. Anthony, um corpo franzino e estranho de cabelos negros, que andava sempre com um vestido de veludo castanho muito justo.

– Não vi, não – disse Mrs. Morel.

– Quem dera que ele apareça. Tenho ali um monte de roupa e pareceu-me ouvi-lo tocar a campainha.

– Falai no mal... Lá vem ele.

As duas mulheres olharam para o fundo do beco. Na extremidade da ruela vinha um homem numa espécie de carripana de outros tempos, debruçado sobre trouxas de tecido de tom esbranquiçado, enquanto o mulherio estendia para ele os braços carregados de roupa. A própria Mrs. Anthony trazia um monte de meias brancas, ainda por tingir, penduradas no braço.

– Fiz dez dúzias esta semana – disse ela a Mrs. Morel, toda orgulhosa.

– Ena... – disse a outra. – Não sei como consegue arranjar tempo.

– Essa agora! – disse Mrs. Anthony. – Quando se quer, arranja-se sempre tempo.

– Pois olhe, eu não sou capaz – disse Mrs. Morel. – E quanto lhe rendem todos esses pares?

– São a dois dinheiros e meio a dúzia – respondeu a outra.

– Safa! – disse Mrs. Morel. – Antes queria morrer de fome a ficar sentada a fazer duas dúzias de meias por dois dinheiros e meio.

– Olhe que se engana – disse Mrs. Anthony. – Fazem-se num instante.


O tal «Hose» aproximava-se, tocando a campainha. As mulheres esperavam por ele à porta dos pátios, com as meias penduradas no braço. O homem, de aspecto grosseiro, brincava com elas, tentava aldrabá-las e chegava a injuriá-las. Mrs. Morel afastou-se, desdenhosa.

Era sinal combinado que, se alguma mulher precisasse de chamar a vizinha, bastava-lhe bater com o atiçador na parede da chaminé. Como as lareiras estavam costas com costas, o barulho era logo ouvido na casa ao lado. Uma manhã, estava Mrs. Kirk a fazer um pudim, e quase desmaiou de susto com o barulho que vinha da chaminé. Com as mãos enfarinhadas, correu para o muro do quintal.

– Chamou, Mrs. Morel?

– Se fizesse o favor, Mrs. Kirk.

Mrs. Kirk pôs-se em cima da sua caldeira, passou para o outro lado da vedação, para cima da caldeira de Mrs. Morel, e correu para junto da vizinha.

– Então, minha querida, como se sente? – gritou preocupada.

– Pode-me ir buscar a Mrs. Bower, por favor? – respondeu Mrs. Morel.

Mrs. Kirk voltou ao quintal, desatou a voz possante e estridente e chamou:

– Ag...gie! Ag...gie!

O apelo ouviu-se de uma ponta à outra das Bottoms. Finalmente, Aggie lá apareceu a correr e foi incumbida de ir chamar Mrs. Bower, enquanto Mrs. Kirk ficava ao pé da vizinha, deixando o pudim a meio.

Mrs. Morel foi deitar-se na cama. Mrs. Kirk levou Annie e William para sua casa e deu-lhes o almoço. Mrs. Bower, gorda e gingona, assenhoreou-se do comando das operações.

– Pique um bocado de carne para o jantar do patrão e faça-lhe um pudim de maçã – disse Mrs. Morel.

– Hoje, ele pode bem passar sem o pudim – disse Mrs. Bower. Morel não era geralmente dos primeiros a parecer no fundo da mina, pronto para sair. Alguns iam para lá antes das quatro, quando soava o apito de despegar. Mas Morel, cuja galeria, além de pobre, ficava nesta altura a cerca de milha e meia do fundo, costumava continuar a trabalhar até o primeiro colega parar, e só então parava também. Nesse dia, porém, estava morto por chegar ao fim. Às duas horas olhou para o relógio, à luz da vela verde – a galeria onde se encontrava era segura – e às duas e meia voltou a olhar. Estava ocupado a cortar um bocado de rocha que iria interferir com o trabalho do dia seguinte. Sentado nos calcanhares ou de joelhos, ia desferindo violentos golpes na rocha com a picareta e dizendo «Zás!...Zás!»

– Já acabaste, pá? – gritou Barker, o outro mineiro.

– Acabar... Só quando o mundo acabar! – resmungou Morel.

E continuou a bater. Estava cansado.

– Este trabalho dá cabo da gente – disse Barker.

Mas Morel estava demasiado irritado, sem paciência para responder. Só batia e cortava com quanta força tinha.

– O melhor é deixares isso, Walter – disse Barker. – Amanhã também é dia. Não precisas de ficar a deitar os bofes pela boca.

– Amanhã não faço tenções de pôr as mãos nesta m... – gritou Morel.

– Pronto, se tu não puseres, alguém há-de pôr – disse Israel. Mas Morel continuou a bater.

– Eh, vocês aí, toca’andar – gritaram os homens que vinham da galeria mais próxima.

E Morel sempre a bater.

– Tu depois apanhas-me – disse Barker, indo-se embora.

Depois de o outro partir e de ficar sozinho, Morel foi acometido de um acesso de raiva. Tinha-se esfalfado e não tinha conseguido acabar a empreitada. Levantou-se, alagado em suor, atirou a ferramenta para o chão, enfiou o casaco, apagou a vela, pegou na lanterna e foi-se embora. Ao longo da galeria principal, as luzes dos outros homens dançavam de um lado para o outro e ressoavam ecos de muitas vozes. Ainda era uma longa e penosa caminhada debaixo do chão.

Sentou-se ao fundo do poço da mina, onde a água não parava de pingar em grossas gotas. Os mineiros, em grande algazarra, concentravam-se à espera da sua vez de subirem. Morel respondia de mau humor ao que lhe diziam.

– Tá a chover, pá – disse o velho Giles, que tinha recebido a informação de lá de cima. A Morel restava-lhe um consolo: tinha o seu velho chapéu-de-chuva, de que tanto gostava, à espera dele na arrecadação das lanternas. Chegou finalmente a sua vez, sentou-se na cadeirinha e num instante chegou à superfície. Entregou a lanterna e recebeu o chapéu-de-chuva, que tinha comprado um dia num leilão por um xelim e seis dinheiros. Ficou parado à beira do poço da mina, por um momento, a olhar. A chuva caía cinzenta sobre os campos. Os vagões estavam carregados de carvão molhado, brilhante. A água escorria pelos vagões por cima das letras a branco C. W. & Co. Os mineiros, indiferentes à chuva, caminhavam pelo trilho e pela encosta acima, como uma hoste tristonha e pardacenta. Morel abriu o chapéu-de-chuva e meteu pés ao caminho, entretido com o tamborilar das gotas sobre o pano.

Os mineiros seguiam pela estrada em direcção a Bestwood, molhados, cinzentos e enfarruscados, mas as suas bocas vermelhas não paravam de falar com animação. Morel ia também com um grupo, mas de boca fechada. Limitava-se a franzir a testa, mal-humorado. Muitos foram os que entraram na taberna Prince of Wales ou na da Ellen, mas a má disposição de Morel ajudou-o a resistir à tentação, e seguiu o seu caminho debaixo das ramadas gotejantes que caíam por cima do muro do parque, descendo por fim a encosta lamacenta em Greenhill Lane.

Mrs. Morel estava deitada, a ouvir a chuva a cair, o ruído cadenciado dos pés dos mineiros que vinham de Minton, as suas vozes e o bater da cancela do caminho da encosta de cada vez que passavam.

– Há cerveja aromatizada atrás da porta da despensa – disse ela. – Mr. Morel há-de querer um copo quando chegar, se não parar pelo caminho.

Mas, como ele se atrasasse, julgou que tivesse parado na taberna para fugir à chuva. Ele queria lá saber dela ou da criança. Ela passava sempre muito mal quando as crianças nasciam.

– O que é? – perguntou ela, sentindo-se quase a morrer.

– É um rapaz.

Isso, de certa maneira, confortou-a. A ideia de dar à luz filhos homens aconchegava-lhe o coração. Olhou para o menino. Tinha olhos azuis, o cabelo louro e farto e era magrinho. Apesar de tudo, amava-o com todas as suas forças. Tinha-o na cama ao seu lado.

Morel, sem suspeitar de nada, subiu o carreiro do jardim, cansado e irritado. Fechou o chapéu-de-chuva e pô-lo a escorrer no lava-loiças. Em seguida, sacudiu as botas na cozinha. Mrs. Bower assomou-se à porta do corredor.

– Sim, senhor – disse ela –, ela lá está, e pior não podia estar... É um rapaz.

O mineiro resmungou qualquer coisa, pousou o saco do farnel vazio e o cantil de lata em cima do armário da cozinha, regressou à copa para pendurar o casacão, voltou para a cozinha e deixou-se cair pesadamente na cadeira.

– Não há nada que se beba? – perguntou.

A mulher foi à despensa. Ouviu-se uma rolha saltar. A mulher, com ar de poucos amigos, colocou a caneca em cima da mesa diante de Morel. Ele bebeu, deu um soluço de satisfação, limpou os longos bigodes à ponta do lenço do pescoço, bebeu mais, deu novo soluço e deitou-se para trás na cadeira. A mulher não lhe disse mais nada. Pôs-lhe o jantar na mesa e voltou para cima.

– Era Mr. Morel? – perguntou Mrs. Morel.

– Já lhe pus o jantar – respondeu Mrs. Bower.

Ele sentou-se, com os cotovelos em cima da mesa, e começou a comer, não sem antes se queixar por Mrs. Bower não ter posto uma toalha na mesa e lhe ter dado um prato dos pequenos, em vez de um prato raso grande. Ter a mulher de cama e ter-lhe nascido mais um filho era o que menos lhe importava. Estava cansado, queria comer, queria estar sentado com os cotovelos apoiados em cima da mesa, e não lhe agradava ver Mrs. Bower a andar por ali a cirandar. Ainda por cima, a fogueira estava pequena de mais para o seu gosto.

Quando acabou de jantar, deixou-se ficar sentado por uns bons vinte minutos. A seguir, foi fazer uma grande fogueira. Só então subiu a escada, só com as meias nos pés, e, sem vontade nenhuma, foi ver a mulher. Bem lhe custava encará-la naquele momento, exausto como estava, com a cara toda suja e preta do suor. A camisola já tinha secado, e ensopado a transpiração. Enrolado ao pescoço, um lenço de lã imundo. Deixou-se ficar, por isso, aos pés da cama.

– Bem, então com’é que te sentes? – perguntou.

– Isto passa – respondeu ela.

– Hum.

Estava sem saber o que dizer. Sentia-se cansado e toda esta confusão era um estorvo para ele. Era como se não soubesse onde estava.

– Um rapaz, dizes tu – disse ele, titubeante.

Ela puxou o lençol para baixo e mostrou-lhe o menino.

– Deus o abençoe! – murmurou ele. Ela riu-se, ao vê-lo dar assim a bênção, sem convicção, por mera rotina, fingindo uma emoção paternal que ainda não sentia.

– E, agora, vai-te embora – disse ela.

– Vou sim, cachopa – respondeu ele, dando meia volta.

Ao ver-se dispensado, apeteceu-lhe beijá-la antes de sair, mas não se atreveu. A ela não lhe teria desagradado que ele a beijasse, mas não lho queria dar a entender. Só respirou de alívio quando o viu sair do quarto, deixando atrás de si um vago cheiro a lama da mina.

Mrs. Morel recebia diariamente a visita do pároco da Congregação. Mr. Heaton era jovem e muito pobre. A mulher tinha morrido ao dar à luz o primeiro filho, deixando-o sozinho no presbitério. Muito tímido, era formado por Cambridge e um fraco pregador. Mrs. Morel gostava dele e ele tinha por ela um grande apreço, conversando com ela durante largas horas quando ela andava bem. Foi até escolhido para padrinho do menino.

A mãe, na cama, tinha o pensamento nos outros filhos. Como não tinha vida própria, passando o dia ocupada de manhã à noite a limpar, cozinhar, tratar das crianças e costurar, tinha de pôr de lado a sua própria existência, investir nos filhos, que eram, por assim dizer, o seu banco. Era neles que pensava, era por eles que esperava, sonhando com o que seriam um dia mais tarde, com ela como motor, a empurrá-los para a vida. William já era para ela como um amante. Se ela tinha nevralgias, que frequentemente a atacavam, e ia fazendo a lida da casa pálida e em silêncio, logo ele lhe perguntava:

– Está com dores de dentes, mãe?

– Estou.

– E é muito mau?

E ela ria-se, apesar da dor. Às vezes, porém, quando estava a amamentar o bebé, a dor era tão intensa que mal se podia mexer. Nessas alturas, era ver o filho mais velho deitado no chão da sala da frente, a chorar sozinho, sentido, e quando o pai perguntava:

– Que tens tu, catraio? – logo ele respondia:

– A minha mãe está com dores de dentes.

– Ora esta – dizia Mrs. Morel ao ouvi-lo. – Não é a ti que te dói, meu pateta, porque choras?

William não gostava do bebé.

– É tão feio, mãe – dizia ele.

– Porquê? – perguntava a mãe.

– Está sempre a fazer caretas – respondia William.

Então, Mrs. Morel dava um beijo no bebé. Tinha uma ruga bem peculiar na testa, como se alguma coisa tivesse chocado a sua minúscula consciência ainda antes de nascer. Quando Mrs. Morel olhava para o menino, algo lhe apertava o coração, embora o bebé fosse perfeitamente saudável, e eram muitas as vezes em que se sentava a cantar-lhe canções de embalar.

– Ele não percebe nada, porque lhe está a cantar? – dizia William.

– Mas ele gosta do barulho, tenho a certeza – dizia a mãe, rindo para o bebé com aquele calor especial que lhe brilhava nos olhos azuis, mordiscando-lhe os dedinhos ao de leve, enquanto William assistia, furioso.

De vez em quando, o pároco ficava para o chá. Nessas ocasiões, ela servia o chá mais cedo, ia buscar as suas melhores chávenas, as que tinham um vivo verde na borda, e pedia a Deus que Mr. Morel não chegasse cedo de mais. Na verdade, nem se importava que ele parasse na taberna a tomar uma cerveja. Tinha sempre dois almoços para fazer, pois achava que as crianças tinham de comer a refeição principal ao meio-dia, ao passo que Mr. Morel comia a dele às cinco horas. Por isso, Mr. Heaton pegava no bebé enquanto Mrs. Morel fazia uns pastéis ou descascava batatas, e, sem tirar os olhos dela, ia conversando sobre o seu próximo sermão. As suas ideias eram fantásticas, irreais, e ela, com toda a perícia de que era capaz, fazia-o descer à terra. Desta feita, o sermão era sobre as Bodas de Canaã.

– Quando Ele transforma a água em vinho, em Canaã – disse o pastor – isso é um símbolo de que a vida quotidiana dos noivos, e até mesmo o seu sangue, até aí desinspirado como a água, possuía agora espírito, como o vinho, porque quando o amor chega, toda a parte espiritual do homem se transforma, fica impregnada do Espírito Santo, e quase a própria forma se altera.

Mrs. Morel pensou para consigo:

«Pois é, coitado, a mulher morreu e ele agora reduz o seu amor ao Espírito Santo.»

– Não – disse ela em voz alta. – Não reduza as coisas a símbolos. Diga antes: «Era uma boda e o vinho acabou-se. O pai da noiva estava aflito porque não tinha mais nada para dar de beber aos convidados, a não ser água; naquele tempo não havia chá nem café, apenas vinho. E com que cara ia ele ficar, vendo toda aquela gente sentada à volta da mesa com copos de água à sua frente... O dono da casa e a mulher estavam envergonhadíssimos, a noiva inconsolável e o noivo zangadíssimo. Jesus viu-os a conferenciar com ar preocupado, e sabia que eram pobres, simples trabalhadores rurais, provavelmente. E, então, pensou: Que pena! Um casamento estragado. E tratou de fazer aparecer o vinho o mais depressa que pôde.» E pode ainda acrescentar: «O vinho não é como a cerveja, não embebeda tanto. E no Oriente as pessoas nunca se embebedam. É por embebedar que a cerveja é uma coisa tão má.»

O pobre homem não tirava os olhos dela. Queria tanto dizer que o amor dos homens é a presença do Espírito Santo, que é Ele que torna os amantes divinos e imortais. Mas Mrs. Morel insistia em que era preciso tornar a Bíblia real aos olhos do povo, e que só de vez em quando devia introduzir bocados do seu discurso. Estavam os dois animadíssimos e felizes. Nisto, chegou William.

– Valha-me Deus! – exclamou Mrs. Morel. – Já é assim tão tarde?

Colocou a chaleira ao lume, e pôs a mesa à pressa com a única toalha limpa que tinha, a desejar que o marido não chegasse cedo a casa. William e Annie, cada um com a sua fatia de pão com manteiga, foram brincar para a rua. Para o chá, havia rabanetes, compota e doce de laranja. Tudo esmerado e irrepreensível. Mrs. Morel estava nas suas sete quintas, por poder aconselhar o seu pároco sobre o sermão que ia proferir e por tomar chá com um cavalheiro que lhe servia o pão com manteiga e esperava que ela começasse.

Iam a meio da primeira chávena quando ouviram o arrastar das botas do mineiro.

– Valha-me Deus! – exclamou Mrs. Morel involuntariamente.

O pastor ficou para morrer. Morel entrou. Não estava para brincadeiras. Com um ligeiro inclinar da cabeça, disse «B’tarde» ao padre, que se levantou para lhe apertar a mão.

– Não – disse Morel, mostrando-lhe a sua. – Olhe pra isto! Num vai querer apertar uma mão como esta, ou vai? Suja como está, da pá e da picareta.

O pastor corou, sem saber o que fazer, e sentou-se outra vez. Mrs. Morel levantou-se e levou para a cozinha a caçarola fumegante. Morel despiu o casaco, puxou a sua cadeira de braços para a mesa e sentou-se pesadamente.

– Está cansado? – perguntou o padre.

– Cansado?... Bem pode dizê-lo – replicou Morel. – O senhor num sabe o qu’é estar cansado c’mo eu tou.

– Pois não – respondeu o padre.

– Olhe pra isto – disse o mineiro, mostrando-lhe os ombros da camisola. – Agora já tá quase seca, mas memo assim vê-se bem como tá ensopada de suor. Or’apalpe.

– Por amor de Deus! – exclamou Mrs. Morel. – Mr. Heaton não há-de querer mexer nessa camisola imunda.

O padre estendeu a mão devagar.

– Não, se calhar não quer – disse Morel. – Mas, queira ou num queira, é todo suor qu’eu suei. E todos os dias a minha camisola fica assim a pingar. Então, ’nhã senhora, num se dá de beber a um homem quando ele chega a casa derreado da mina?

– Sabes bem que já bebeste a cerveja toda – disse Mrs. Morel, servindo-lhe o chá.

– E num havia mais à venda? – E, depois, voltando-se para o padre: – Um homem fica tão carregado de pó, percebe, tão enfarruscado numa mina de carvão, que precisa duma bebida quando chega a casa.

– Sem dúvida – concordou o padre.

– Mas é certo e sabido que fica a ver navios – disse Morel.

– Há água... e há chá – disse Mrs. Morel.

– Água... Não é a água que lhe vai desentupir a goela.

Encheu o pires de chá, soprou, sorveu-o por baixo do bigodão preto e suspirou. A seguir, encheu o pires novamente e pousou a chávena em cima da mesa.

– Ai a minha toalha! – disse Mrs. Morel, colocando a chávena em cima de um prato.

– Um homem que chega a casa cansado com’eu tou quer lá saber das toalhas – disse Morel.

– É uma pena! – exclamou Mrs. Morel, sarcástica.

A sala estava impregnada de um forte cheiro a carne cozida com legumes e às roupas do mineiro.

Morel inclinou-se para o pastor, de bigode espetado para a frente e a boca vermelha sobressaindo na cara toda preta.

– Mr. Heaton – disse ele – um homem que passou o dia c’m’eu passei naquele buraco negro, a bater numa parede de carvão... sim senhor... inda mais dura qu’aquela parede...

– Não precisa de se queixar tanto – completou Mrs. Morel.

– Num precisa... Ah, num precisa? Sabemos bem que tu é que num queres ouvir as verdades. – E, depois, virando-se para o padre: – ... chega a casa tão cansado que nem sabe com’ há-de estar. – Olhou para a comida, no prato à sua frente. – Sim senhor, cansado de mais até pra comer a janta, é isso mesmo. – E pousou os braços negros, do carvão, em cima da toalha branca.

– Por Deus, homem, olha que a toalha é limpa! – exclamou Mrs. Morel sem se conter. Era a única toalha limpa que tinha.

– Será que tenho de ir comer o jantar prò pátio, como um cão? – berrou ele.

– Ninguém falou em ires para o pátio – repontou a mulher friamente.

Ele conservou os braços em cima da toalha.

Quando um homem passa um dia inteiro a bater na rocha dura com uma picareta, Mister Heaton, fica cos braços tão cansados que nem sabe o que lhes há-de fazer.

– Eu sei – disse o padre.

Para ele, o mineiro era uma espécie de bicho raro.

– A tua cadeira tem braços – disse Mrs. Morel.

– Tinhas de vir meter a colherada, num tinhas? – disse o marido.

Ela bem gostaria de dizer também como ela tinha de trabalhar que nem uma escrava. O mineiro comia com a faca, enfiando a comida na boca e mastigando ruidosamente. Até fazia aflição. Aquele homem não tinha consideração por ninguém. Daí a pouco, pousou a faca.

– Mr. Heaton – disse ele – o qu’é que m’aconselha pràs dores de cabeça?

– Penso que a cáscara-sagrada... – titubeou o pastor.

– Diga-lhe que beba menos cerveja e tenha mais cuidado com o fígado – alvitrou Mrs. Morel.

– «Que beba menos cerveja!» – repetiu Morel. – Esta é boa! A culpa é sempre da cerveja! Um homem bebe um copito, Mr. Heaton, e ela nunca mais se cala.

– Quem me dera que fosse só um copito – disse Mrs. Morel.

Odiava o marido porque, sempre que havia espectadores, gostava de dar espectáculo. William, sentado com o bebé ao colo, odiava-o com o ódio que uma criança sente pelo fingimento e pela maneira brutal como ele tratava a mãe. Annie nunca gostara do pai, e limitava-se a evitá-lo.

Quando o pastor se foi embora, Mrs. Morel olhou para a toalha.

– Que bela porcaria! – disse ela.

– Julgas que me vou sentar cos braços caídos, só porque convidaste um padre para tomar chá contigo? – bradou ele.

Estavam ambos furiosos, mas ela não respondeu. O bebé começou a chorar, e Mrs. Morel, ao retirar do lume a caçarola, bateu sem querer na cabeça de Annie, que se pôs a choramingar, e Morel desatou aos berros, a ralhar com ela. No meio de todo este pandemónio, William olhou para o grande painel de azulejo colocado sobre a chaminé e leu, de forma bem audível:

– «Deus Abençoe Esta Casa.»

Ao ouvir isto, Mrs. Morel, que tentava acalmar o bebé, deu um salto, precipitou-se para o filho e disse, puxando-lhe as orelhas:

– Não te metas!

Depois, sentou-se e começou a rir, até as lágrimas lhe rolarem pelas faces, enquanto William dava um pontapé no banco onde tinha estado sentado, e Morel vociferava:

– Num vejo o qu’é que te dá tanta vontade de rir.

Foi mais ou menos por esta altura que Mrs. Morel destruiu a autoridade do marido. Até àquele momento, tinha-se sentido muito sozinha para se afastar dele. Mas William estava a crescer e todo o seu afecto ia para a mãe. Annie também estava contra o pai. E agora, finalmente, o novo bebé. Mrs. Morel ficara a odiar o marido no ano que antecedera o seu nascimento. Eram pobres e Morel era perverso. Tinha-se envolvido com um grupo de amigos, um dos quais o tal Jerry, que achavam que um homem que trabalhava devia guardar o dinheiro que ganhava para se divertir como muito bem lhe apetecesse. Costumavam até comparar os vários graus de submissão das suas mulheres, e Morel achava que a dele não estava suficientemente domesticada. Depois de uma noite de conversa em que Jerry o tinha aconselhado a não aturar imposições de cabra nenhuma, sim, afinal que raio de homem era ele? – gritou-lhe ao chegar a casa:

– Hei-de fazer-te tremer só de ouvires o som dos meus passos.

Frase que ficara na história para ela. Tinha-se sentado, a rir, até achar graça à ideia, enquanto ele continuara de pé, a estoirar de raiva e ignomínia. Então ele, para lhe pagar na mesma moeda, passara a dar-lhe o menos que podia para o sustento, a beber o mais que podia e a dar-se com homens que o embruteciam a ele e à imagem que fazia das mulheres. Depois, ela pensou que a única alegria dele eram as crianças, e pôs-se ao lado delas contra ele.

Uma noite, logo após a visita do pároco, sem coragem para suportar outra cena do marido, pegou em Annie e no bebé e foi sair. Morel tinha dado um pontapé em William e a mãe jamais lhe perdoaria.

Atravessou a ponte por onde passava o rebanho e um canto do prado, até ao campo de críquete. Os prados pareciam uma ampla extensão luminosa e amadurecida de crepúsculo, perpassada pelo sussurro dos moinhos distantes. Chegada ao campo de críquete, sentou-se num banco debaixo dos amieiros e deixou-se ficar a contemplar o cair da noite. Diante dela, firme e plano, estendia-se o grande campo verde de críquete, como o leito de um mar de luz. Havia crianças a brincar à sombra já densa do pavilhão. Lá no alto, as gralhas, em bando, crocitavam de regresso aos ninhos num céu suavemente entretecido. Curvando largo, mergulharam rumo ao clarão dourado, crocitantes e rodopiantes como flocos negros num lento vórtice, em direcção a uma moita que se erguia como bossa negra na pastagem.

Estavam alguns homens a jogar, e Mrs. Morel ouvia o bater da bola e vozes másculas que subitamente se elevavam; discernia brancas silhuetas masculinas que mudavam silenciosamente de lugar sobre o relvado, já coberto das sombras incandescentes do sol-pôr. Ao longe, na granja, as medas de feno tinham uma face iluminada e as restantes negro-cinza. Uma carroça carregada de molhos de feno balançava mansamente à luz que a pouco e pouco se extinguia.

O sol punha-se. Nas tardes límpidas, os montes do Desbyshire incendiavam-se do vermelho-rubro do poente. Mrs. Morel ficou a ver o sol escorregar no céu radioso, deixando atrás de si uma suave rosácea arroxeada, enquanto o ocaso se cobria de vermelho, como se todas as labaredas para lá tivessem convergido, abandonando a campânula azul imaculada. Por um instante, as bagas dos freixos cintilaram incandescentes entre a folhagem escura. Alguns molhos de espigas, encostados a um canto do alqueive, ganharam vida, e ela imaginou-os curvando-se numa vénia; talvez o seu filho viesse a ser um José. A oriente flutuava um poente espelhado de tons róseos, em contraste com o céu rubro a ocidente. As imponentes medas de feno espalhadas pela encosta incendiada arrefeceram.

Este era para Mrs. Morel um daqueles momentos de quietude em que as pequenas mágoas se esfumam e a beleza das coisas se impõe, momentos que lhe davam paz e força de ânimo para olhar dentro de si. De quando em vez, uma andorinha passava perto. De quando em vez, Annie chegava com uma mão-cheia de bagas de freixo. E o bebé, inquieto ao colo da mãe, estendia as mãozinhas para agarrar a luz.

Mrs. Morel contemplava-o. Temera a vinda deste filho como uma catástrofe, dado o que sentia pelo marido, e agora era estranho o que sentia pelo menino. O coração apertava-se-lhe pela criança, quase como se ele fosse doente ou malformado, e, no entanto, parecia bem saudável. Mas ela não podia deixar de reparar no modo peculiar como o bebé franzia a testa, nem no seu olhar peculiarmente carregado, como se tentasse decifrar uma sensação de dor. Quando olhava para as pupilas negras e circunspectas do menino, sentia um peso esmagar-lhe o coração.

– Até parece que está a pensar nalguma coisa... e coisa triste – disse Mrs. Kirk.

De súbito, ao olhar para ele, o peso que a mãe sentia no coração desfez-se em dor sentida. Inclinou-se sobre o filho e as lágrimas escorreram-lhe breves do coração. O menino esticou os dedos.

– Meu cordeirinho! – disse ela, chorando baixinho.

E então, nesse preciso momento, sentiu bem fundo na alma que ela e o marido eram culpados.

O menino erguia os olhos para ela. Olhos azuis como os dela, mas com um olhar pesado e fixo, como se tivesse compreendido qualquer coisa que lhe atingira a alma duramente.

Embalava nos braços o menino. Os seus profundos olhos azuis, sempre pregados nela, sem pestanejar, pareciam apelar aos seus mais íntimos pensamentos. Já não amava o marido; não tinha desejado esta criança, e o menino ali estava, nos seus braços, entrando-lhe no coração. Era como se o cordão umbilical que tinha ligado o seu corpinho frágil ao dela nunca tivesse sido cortado, transportando de si para o bebé uma corrente do mais intenso amor. Apertou-o contra o peito e contra o rosto. Havia de recompensá-lo com todas as suas forças, com toda a sua alma, por tê-lo trazido ao mundo indesejado. Mas agora, que viera, amá-lo-ia ainda mais, transportá-lo-ia no seu amor. Aqueles olhos perspicazes atemorizavam-na, isso era evidente. Saberia ele tudo acerca dela? Teria ele escutado enquanto repousava junto ao seu coração? Seria aquele olhar reprovação? O medo e a dor deixavam-na sem pinga de sangue.

Reparou de novo no sol, repousando rubro na crista da colina, à sua frente. Subitamente, pegou no menino e elevou-o no ar.

– Olha! – disse ela. – Olha bem, meu amor!

E, num gesto quase de alívio, esticou os braços, com o menino suspenso, na direcção do sol carmim e palpitante. Viu-o erguer o punho pequenino e aconchegou-o de novo ao peito, envergonhada da vontade que sentira de o devolver ao sítio de onde viera.

– Se sobreviver – pensou – que será dele... o que virá a ser?

O seu coração pulsava ansioso.

– Vou chamar-lhe Paul – disse ela, sem mais nem menos, sem saber porquê.

Pouco depois voltou para casa. Uma sombra sedosa estendia-se sobre o verde profundo dos prados, tudo cobrindo.

Tal como suspeitava, veio encontrar a casa vazia. Mas, às dez horas, Morel voltou, e aquele dia pelo menos acabou em paz.

Walter Morel andava sobremaneira irascível por esta época. O trabalho parecia esgotá-lo, e quando chegava a casa tratava mal toda a gente. Era o lume que estava fraco de mais, ou o jantar que não prestava, tudo pretextos para ralhos; se os filhos se punham a tagarelar, gritava com eles de uma maneira que punha a mãe a ferver e os fazia odiá-lo.

– Não precisas de gritar com eles dessa maneira – dizia Mrs. Morel. – Aqui ninguém é surdo.

– ‘Tão aqui ‘tão a levar um pontapé – berrava ele.

Se, por acaso, enquanto se estava a lavar na cozinha, alguém entrava ou saía, logo gritava: – Fechem-m’essa po-o-rta-a-a! – e fazia-o tão alto que se ouvia em todo o bairro.

– É uma pena ser tão bruto! – disse Mrs. Morel em voz baixa.

– Num quero apanhar nenhuma pontada e ficar a contas coas costelas por causa de ninguém! – berrou ele. Sempre que se zangava, ninguém o calava.

– Santo Deus, homem – disse Mrs. Morel. – Não há um minuto de sossego quando estás em casa.

– Poi não, isso sei eu. E também sei que só tás bem quando me vês pelas costas.

– Tal e qual – retorquiu ela calmamente, entredentes.

– Ah, eu sei... sei muito bem o que tás pr’aí a resmungar. Só tás satisfeita quando me vês no fundo da mina, longe de ti. O que tu querias era que me prendessem lá dentro como fazem aos patrões.

– Tal e qual – disse novamente Mrs. Morel, em surdina, voltando-lhe as costas, de boca fechada.

Ele disparou porta fora que nem uma seta, espetando a cabeça para a frente, com raiva e determinação.

– A c... vai-mas pagar! – disse ele, referindo-se à mulher.

Às onze horas, ainda não tinha voltado. O bebé estava maldisposto e agitado, desatando a chorar sempre que a mãe o deitava no berço. Mrs. Morel, morta de cansaço e ainda muito fraca, estava de cabeça perdida.

– Quem dera que o monstro viesse para casa – disse ela, sem forças, de si para si.

Por fim, a criança adormeceu-lhe nos braços, mas ela estava cansada de mais para ir deitá-la no berço.

– Desta vez não digo nada, venha ele a que horas vier – disse ela. – Só me vou arreliar ainda mais. Não vou dizer nada. – Porém, sabia que não podia confiar em si própria. Vezes sem conta dissera o mesmo, decidida a dominar-se, e a ira acabara por explodir. Com todo o ódio de que o cansaço era capaz, desejava pelo menos não o ver quando ele chegasse a casa. A razão por que não ia para a cama, sem querer saber da hora a que ele chegava, era só uma – não ser outra mulher a contar-lhe.

– Se sei que ele faz alguma coisa, fico capaz de explodir – disse ela, acabrunhada, para si própria.

– Soltou um suspiro ao ouvi-lo chegar, como se isso lhe fosse penoso de suportar. Ele, para se vingar, vinha quase a cair de bêbado. Ela conservou a cabeça inclinada sobre o bebé quando ele entrou, e nem para ele olhou. Mas, quando ele, ao passar, foi de encontro ao louceiro, pondo os cobres a tinir, e se agarrou aos puxadores brancos para não cair, foi como se uma chama a tivesse incendiado. E ele, depois de pendurar o chapéu e o casaco, voltou para trás e parou a curta distância, fuzilando-a com o olhar, enquanto ela continuava debruçada sobre a criança.

– Não há nesta casa nada que se coma? – perguntou, insolente, como se falasse com uma criada. Em certos momentos da bebedeira falava com o sotaque sincopado e pretensioso da cidade. Era nessas alturas que Mrs. Morel mais o odiava.

– Sabes bem o que temos em casa – disse ela, com a mais impessoal frieza.

Ele continuou de pé, de olhar flamejante, sem mover um músculo.

– Fiz-te uma pergunta delicada e espero uma resposta delicada – disse ele, afectadamente.

– E foi o que tiveste – disse ela, continuando a ignorá-lo.

O olhar de Morel flamejou de novo. Depois, deu uns passos em frente, vacilante, apoiou-se na mesa com uma mão e com a outra puxou a gaveta desajeitadamente para tirar uma faca de pão. A gaveta, puxada às três pancadas, emperrou. Num acesso de fúria, ele puxou-a com tanta força que a gaveta saltou inteira, com colheres, garfos, facas e mil outros utensílios metálicos a estatelarem-se no chão de tijoleira entre estrépitos e tinidos. O bebé estrebuchou assustado.

– Que estás tu a fazer, meu grande parvalhão, meu bêbado desajeitado? – gritou a mãe.

– Então viesses tu abrir o raio da gaveta. Devias ter-te levantado daí, com’as outras mulheres, para servires o teu homem.

– Eu, servir-te... eu, servir-te a ti? – gritou ela. – Isso é que era bom!

– Sim senhora, e vou ensinar-te como se faz. Servires-me, sim senhora, tu vais servir-me...

– Nunca, majestade. Antes servir um cão rafeiro aí à porta.

– O quê... o quê?

Ele, entretanto, tentava repor a gaveta no lugar. Ao ouvir estas últimas palavras, virou-se para trás, com as faces congestionadas e os olhos raiados de sangue, fitando-a em silêncio, ameaçador, por um segundo.

– Pfff! – fez ela de imediato, com desprezo.

Capaz de explodir, ele deu um safanão na gaveta, que caiu, fazendo-lhe um golpe na canela. Então, num gesto reflexo, atirou-a contra a mulher.

Uma das esquinas apanhou-a no sobrolho de raspão e a gaveta foi despenhar-se na lareira. Ela cambaleou, quase caindo da cadeira sem sentidos. A dor penetrou-a até ao fundo da alma, e ela apertou a criança com força contra o peito. Decorreram breves segundos. Com esforço, recompôs-se. O bebé chorava que metia dó. O sobrolho esquerdo, o atingido, sangrava abundantemente. Quando ela olhou para a criança, com a cabeça a estoirar de dor, algumas gotas de sangue pingaram no xaile branco. Mas o bebé, pelo menos, não fora atingido. Balançou a cabeça, para manter o equilíbrio, e o sangue escorreu-lhe para o olho.

Walter Morel mantinha-se na posição em que ficara, apoiado à mesa com uma mão e de olhar vazio. Quando viu que se conseguia equilibrar, aproximou-se dela, trôpego, e agarrou-se ao espaldar da cadeira de baloiço onde ela estava sentada, quase a fazendo cair. Depois, debruçando-se sobre a mulher, sempre a balançar enquanto falava, disse, num tom perplexo e preocupado:

– A gaveta apanhou-te?

E cambaleou outra vez, como se fosse cair para cima do bebé. A catástrofe fizera-o perder o pouco equilíbrio que ainda tinha.

– Sai daqui! – disse ela, lutando para manter a presença de espírito.

Ele, entretanto, foi acometido de soluços.

– Deixa... deixa cá ver o golpe – disse ele, entre mais soluços.

– Sai daqui para fora! – gritou ela.

– Deixa... deixa lá ver isso, cachopa.

Ela sentia o cheiro a álcool e os puxões desencontrados que ele dava à cadeira de baloiço para se equilibrar.

– Sai daqui – disse ela, empurrando-o com suavidade. Ele, em desequilíbrio, olhava-a estupefacto.

Chamando a si todas as forças, ela levantou-se, com o bebé apertado só num braço. A custo de penosa força de vontade, avançando como uma sonâmbula, dirigiu-se para a copa, onde lavou o olho com água fria. Sentia-se, porém, demasiado tonta, e, antes de desmaiar, voltou para a cadeira de baloiço, tremendo dos pés à cabeça, com o bebé sempre bem seguro, por instinto.

Morel, vexado, tinha conseguido colocar a gaveta de novo no lugar e andava de gatas, com mãos meio dormentes, a apanhar os talheres espalhados pelo chão.

O sobrolho dela ainda sangrava. Morel levantou-se e aproximou-se de pescoço esticado.

– O que foi que a gaveta te fez, cachopa? – perguntou, num tom dorido e contrito.

– Tu sabes bem o que fez – respondeu ela.

Ele inclinou-se para a frente, meio dobrado, fincando as mãos nas coxas, logo acima do joelho, e examinou o golpe. Ela desviou--se da cara dele, e dos seus fartos bigodes, afastando a dela o mais que podia. Ao olhar para ela, fria e impassível como pedra, sem abrir a boca, ele sentiu-se sucumbir de fraqueza de espírito e desespero. Já ia a recuar, acabrunhado, quando uma gota de sangue pingou do ferimento para cima do cabelo finíssimo e brilhante do bebé. Fascinado, ficou a ver a grossa gota quedar-se suspensa na nuvem cintilante, e escorrer depois pela teia capilar. Caiu outra gota. Esta ia chegar à cabeça do bebé. Ele olhava-a, fascinado, vendo-a aproximar-se. Até que, finalmente, a sua virilidade se quebrou.

– Que vai ser desta criança? – foi tudo o que a mulher lhe disse. Mas o seu tom de voz, cavo e intenso, fê-lo baixar a cabeça ainda mais. Ela disse então, para desanuviar:

– Traz-me um bocado de algodão da gaveta do meio.

Ele, obediente, afastou-se aos tropeções e voltou com um bom bocado de algodão, que chamuscou levemente chegando-o perto do lume, e lhe colocou na testa, enquanto ela continuava sentada com o bebé ao colo.

– Agora... aquele lenço lavado de levares para a mina.

De novo ele mexeu e remexeu na gaveta, para aparecer em seguida com um lenço estreito, todo vermelho. Ela pegou no lenço e, com dedos titubeantes, dobrou-o e colocou-o como uma fita à volta da cabeça.

– Deixa-me ajudar-te a amarrá-lo – disse ele humildemente.

– Eu ponho-o bem sozinha – respondeu ela.

Quando acabou, foi para cima, para o quarto, dizendo-lhe que abafasse o borralho e fechasse a porta à chave. Na manhã seguinte, Mrs. Morel disse:

– Bati com a cabeça no fecho da carvoeira quando lá entrei às escuras, à procura do ancinho, porque a vela se apagou.

Os filhos ficaram a olhar para ela com os olhitos muito abertos, muito tristes. Não disseram nada, mas os seus lábios entreabertos pareciam expressar, calados, a tragédia que pressentiam.

No dia seguinte, Walter Morel deixou-se ficar na cama até perto da hora de almoço. Não queria pensar nas cenas da véspera; se pensava em alguma coisa, o que não era provável, nisso não era com certeza. Limitava-se a ficar na cama, vexado, a sofrer como um cão. Fora a si próprio que a cena mais atingira, e doía-lhe a alma ainda mais porque nunca seria capaz de dizer à mulher uma palavra que fosse, de expressar o seu arrependimento. Tentava, por isso, furtar-se à responsabilidade.

A culpa foi dela, disse para consigo. Nada, porém, podia evitar que a consciência o punisse, corroendo-lhe o espírito como ferrugem, remorso esse a que só a bebida podia dar alívio.

Era como se lhe faltassem as forças para se levantar ou para falar, ou sequer para se mover; só conseguia ficar ali deitado, como um cão. Ainda por cima, tinha uma violenta dor de cabeça. Era sábado. Levantou-se por volta do meio-dia, foi buscar comida à despensa, comeu cabisbaixo, calçou as botas e saiu. Voltou às três da tarde, ligeiramente tocado, mas mais aliviado, e enfiou-se outra vez na cama. Saiu da cama por volta das seis horas, fez uma chávena de chá e saiu logo em seguida.

No domingo, a cena repetiu-se: na cama até ao meio-dia, no Palmerston Arms até às duas e meia, almoço e cama; quase sem dizer uma palavra. Quando Mrs. Morel subiu ao quarto, por volta das quatro horas, para vestir a roupa de domingo, ele dormia profundamente. Ela teria tido pena dele, se ele ao menos lhe dissesse: – Desculpa, mulher. – Mas não, tentava convencer-se de que a culpa tinha sido toda dela, e isso aniquilava-o. Como tal, não lhe ligou nenhuma. Nós cegos da paixão atribulada que os unia, e em que ela era a mais forte.

A família sentou-se para o chá. O domingo era o único dia da semana em que todos se reuniam à volta da mesa à hora das refeições.

– O meu pai não se levanta? – perguntou William.

– Deixa-o estar – disse a mãe.

Havia um clima de tristeza em toda a casa. As crianças, ao respirarem aquele ar envenenado, sentiam-se mal também. Desconsoladas, não sabiam o que fazer, como brincar.

Morel saía da cama assim que acordava. Sempre fora assim. Todo ele era actividade. A prostração e a inactividade dois dias seguidos paralisavam-no.

Eram quase seis horas quando desceu. Desta feita, entrou sem hesitações, com a sensibilidade, já de si periclitante, de novo embotada. Já não lhe interessava outra vez o que a família pudesse sentir ou pensar.

As chávenas de chá estavam em cima da mesa. William lia uma publicação infantil em voz alta, Annie ouvia-o com atenção e não se cansava de perguntar «Porquê?». Mas as duas crianças calaram-se mal ouviram os passos abafados do pai, só de meias calçadas, e encolheram-se quando ele entrou, apesar de geralmente os tratar bem.

Morel comeu sozinho e sem maneiras. Não precisava de ter feito tanto barulho a mastigar e a beber. Ninguém lhe dirigiu a palavra. Mal ele entrou, a reunião familiar esmoreceu, retraiu-se e remeteu-se ao silêncio. Mas ele já não ligava ao isolamento a que o votavam.

Mal acabou de tomar chá, levantou-se apressado e preparou-se para sair. Era esta predisposição, esta pressa em sair de casa, que tanto contundia Mrs. Morel. Ao ouvi-lo a lavar-se copiosamente na água fria, ao ouvir o roçar ansioso do pente de aço na borda da bacia enquanto ele molhava o cabelo, ela fechou os olhos de repulsa. Era visível em todos os seus gestos, desde o simples apertar dos atacadores, uma grosseria nos movimentos que o afastava radicalmente da contenção reservada e comedida do resto da família. Ele fugia sempre às lutas que se travavam no seu íntimo. Até mesmo no mais fundo do seu coração, ele se desculpava dizendo: Se ela não tivesse dito aquilo, nada disto acontecia. Ela estava a pedi-las, teve o que merecia.

As crianças assistiram retraídas aos preparos do pai, e foi com um suspiro de alívio que o viram sair.

E foi com prazer que ele fechou a porta atrás de si. A noite estava chuvosa. Tanto melhor, mais aconchegado lhe ia parecer o Palmerston. Pensar nisso fê-lo até acelerar o passo. Os telhados de ardósia das Bottoms luziam molhados. As estradas, já de si negras do pó de carvão, cobriam-se de lama preta. Estugou o passo. As vidraças do Palmerston estavam embaciadas. A entrada estava toda patinhada, mas lá dentro a atmosfera era quente, se bem que pestilenta, carregada do som da vozearia e do cheiro a cerveja e a tabaco.

– O que vai ser, Walter? – gritou uma voz, mal Morel entrou a porta.

– Ora, Jim, o qu’é que tá a sair, rapaz?

Os outros homens arranjaram-lhe um lugar e acolheram-no efusivamente. Morel sentia-se feliz. Passado um ou dois minutos, já o tinham conseguido alhear de toda a responsabilidade, toda a vergonha, todos os problemas, e ele estava são como um pêro, pronto para outra noite de farra.

Porém, na noite seguinte, quando estava acocorado junto ao portão do jardim, a fumar e a chamar pelos mineiros que passavam do outro lado da rua, e a ver os mineiros mais novos a jogarem futebol no regresso da mina, ainda sem se terem ido lavar, Mrs. Kirk apareceu no quintal dela.

– B’noite, ’nha senhora! – disse Morel, com a cortesia e o calor habituais.

– Está contente, não está? – disse Mrs. Kirk.

– Porquê, aconteceu alguma coisa? – exclamou Morel.

– Deixar a sua senhora bater com a cabeça daquela maneira... – disse Mrs. Kirk.

– Pois é, foi uma grande pancada – disse Morel, satisfeito por a mulher não ter contado a verdade às vizinhas.

– Não consigo perceber como é que ela fez aquilo... – continuou Mrs. Kirk.

– Pois é, eu também não – respondeu Morel.

– Fosse como fosse, vai ficar marcada prò resto da vida.

– Lá isso vai, foi uma g’anda cabeçada – disse Morel. – É... Coitada! Eu bem lhe digo pra ir mostrar a ferida ao médico, mas ela não quer.

– O seu marido está a dizer que quer que vá mostrar o olho ao médico – disse Mrs. Kirk para Mrs. Morel.

– Ah, quer? – respondeu Mrs. Morel.

Na quarta-feira seguinte, Morel estava sem um tostão e cheio de medo da mulher. Tinha-a agredido e agora detestava-a. Não sabia o que fazer naquela noite, sem um tostão para ir até ao Palmerston, onde já devia muito dinheiro para poder beber fiado. Por isso, enquanto a mulher estava no jardim com o bebé, foi à gaveta de cima do louceiro, onde ela guardava a carteira, encontrou-a e abriu-a. Lá dentro tinha meia coroa, dois meios dinheiros, e uma moeda de seis dinheiros. Tirou os seis dinheiros, voltou a pôr a carteira no lugar e saiu.

No dia seguinte, quando ela se preparava para pagar ao merceeiro e foi buscar os seis dinheiros, caiu-lhe o coração aos pés. Sentou-se e pensou: Tinha ou não tinha aqui uma moeda de seis dinheiros?... Não os gastei, pois não?... Nem os pus noutro lado?

Estava aflita. Procurou-os por toda a parte. E, à medida que procurava, cada vez mais o coração lhe dizia que o marido lhos tinha tirado. O dinheiro que tinha na carteira era todo o dinheiro que possuía, e era intolerável que ele lhos surripiasse assim. Já por duas vezes tinha feito o mesmo. Da primeira, ela não o tinha acusado, e no fim-de-semana seguinte ele tinha reposto o xelim que tirara. Tinha sido assim que ela soubera que ele lho tinha tirado. Mas da segunda vez nunca repôs o dinheiro.

Agora, porém, era de mais, pensava ela. Quando ele já tinha acabado de jantar – nesse dia viera cedo para casa – ela disse-lhe com frieza:

– Tiraste dinheiro da minha carteira ontem à noite?

– Eu?! – disse ele, olhando para ela ofendido. – Na, num fui eu! Nem sequer vi a tua carteira.

Mas ela percebeu que era mentira.

– Para que estás com isso? Sabes bem que foste tu – disse ela com toda a serenidade.

– Já disse que num fui eu – berrou ele. – Lá tás tu a embirrar comigo outra vez! Já chega, tou farto!

– Com que então surripias-me seis dinheiros da carteira enquanto eu ando a apanhar a roupa.

– Vais pagar por isto – disse ele, empurrando a cadeira para trás, desesperado. Lavou-se com grande estardalhaço e subiu as escadas resoluto. Daí a pouco, voltou para baixo já vestido e com uma grande trouxa amarrada num enorme lenço azul.

– E agora – disse ele – hás-de voltar a ver-me quando calhar.

– O que há-de ser antes de eu o desejar – retorquiu ela, e ele abalou de casa de trouxa na mão. Mrs. Morel sentou-se. Tremia ligeiramente, mas o seu coração transbordava de desprezo. Que iria ela fazer, se ele arranjasse trabalho numa outra mina e fosse viver com outra mulher? Mas ela conhecia-o bem de mais... ele não seria capaz disso. Tinha a certeza. Todavia, sentia o coração apertado.

– Onde está o meu papá? – perguntou William, ao chegar da escola.

– Ele disse que se ia embora – respondeu a mãe.

– Para onde?

– Sei lá. Fez uma trouxa de roupa com o lenço azul e diz que não volta.

– E que vamos nós fazer? – gritou o garoto.

– Não te preocupes. Ele não vai longe.

– E se ele não voltar? – choramingou Annie.

Ela e William foram chorar para o sofá. Mrs. Morel sentou-se a rir.

– Sempre fazem um belo par de choramingas! – exclamou ela. – Vão voltar a vê-lo antes da noite acabar.

Mas as crianças estavam inconsoláveis. Caiu a noite. A fadiga aumentou ainda mais a ansiedade de Mrs. Morel. Uma parte dela dizia: seria um alívio, se não o voltasse a ver; uma outra receava pelo sustento das crianças; e o seu íntimo dizia-lhe que não estava ainda preparada para o deixar partir. Lá no fundo, sabia bem que ele não podia ir-se embora.

Quando se dirigia para a carvoeira, ao fundo do quintal, sentiu qualquer coisa atrás da porta e foi ver o que seria. E lá estava ela, na escuridão, a enorme trouxa azul. Sentou-se num monte de carvão, diante da trouxa, e desatou a rir. Não continha o riso sempre que olhava para a trouxa, gorda e insultuosa, escondida naquele recanto escuro, com as pontas dos nós a adejarem como orelhas descomunais e enjeitadas.

Voltou para casa com o carvão. Annie e William tinham recomeçado a chorar por ela ter saído.

– Mas que bebés chorões – disse ela. – Vão à carvoeira e olhem para trás da porta, e então logo verão se ele foi para muito longe.

– O quê? – exclamou William, pateticamente.

– Vai lá ver – disse a mãe.

Ele esgueirou-se de imediato, seguido por Annie, que corria ligeira, fungando para conter as lágrimas. Não tardou, estava de volta, abraçado à trouxa.

– Ele agora já não se vai embora, pois não, mãe? – disse, a chorar.

– Não... Eu sabia que não ia... O meu medo era só que ele empenhasse alguma coisa. Mas vai lá pô-la outra vez... onde a encontraste.

– Mas...! – hesitou William. – O que é que tem dentro?

– Vai lá pô-la, já disse! – insistiu a mãe. – E não faças perguntas.

O garoto levou a enorme trouxa de novo para o quintal, e largou-a atrás da porta da carvoeira. Depois, já mais calmas, mas não completamente, as crianças foram deitar-se.

Mrs. Morel ficou à espera. O marido não tinha dinheiro, sabia-o bem, e, por isso, se quisesse dormir fora, tinha de ficar a dever. Estava muito cansada dele, cansada até mais não. E ele nem coragem tinha tido para levar a trouxa para mais longe que o fundo do quintal. Estava ela assim a meditar, por volta das nove horas, quando ele abriu a porta e entrou de mansinho, mas mal-encarado, sem lhe dirigir a palavra. Tirou o casaco e deslizou para o cadeirão de braços, onde começou a descalçar as botas.

– É melhor ires buscar a trouxa antes de tirares as botas – disse ela, calmamente.

– Podes dar graças por eu ter voltado para casa esta noite – disse ele, erguendo os olhos lá de baixo, de onde tinha a cabeça, carrancudo e melodramático.

– Essa agora, então para onde é que tu ias? Pois se nem a trouxa levaste lá para fora – disse ela.

A figura dele era tão triste que ela nem se conseguia zangar. Ele continuou a descalçar as botas e a preparar-se para se ir deitar.

– Não sei o que meteste no teu lenço azul – disse ela. – Mas se o deixares lá, as crianças amanhã de manhã vão buscá-lo.

Ouvindo isto, ele levantou-se e saiu, voltando de imediato. Atravessou a cozinha de cara fechada, e foi a correr para cima. Mrs. Morel não pôde deixar de rir interiormente, quando o viu esgueirar-se pela porta do corredor e pela escada acima, de trouxa debaixo do braço. Tinha, porém, o coração amargurado, pois já o tinha amado muito.


III

A REJEIÇÃO DE MOREL E A SUA SUBSTITUIÇÃO POR WILLIAM

DURANTE toda a semana seguinte, Morel andou insuportável. Como todos os mineiros, tinha a mania das mezinhas, que, por estranho que pareça, era ele próprio que pagava do seu bolso.

– Tens de m’ir comprar o elixir – disse ele. – É espantoso como nunca há nem uma gota cá em casa.

Mrs. Morel lá foi comprar o elixir de vitríolo, o seu remédio favorito, e ele apressou-se a fazer uma cafeteira de chá de absíntio. Tinha pendurados no sótão, a secar, grandes molhos de ervas aromáticas: absíntio, arruda, marroio, flores de sabugueiro, apiol, alteia, hissopo, dente-de-leão e piteira. Havia sempre uma cafeteira com uma infusão qualquer em cima do fogão, que ele bebia em grandes quantidades.

– Excelente! – disse ele, dando estalos com a língua, a saborear o absíntio. – Excelente! – E exortou as crianças a provarem.

– É bem melhor que esses chás que vocês bebem ou essas mistelas de cacau – exclamou. Mas as crianças não se mostraram tentadas a experimentar.

Desta vez, porém, nem as pílulas nem o vitríolo nem as ervas conseguiam acabar com as «xaquecas da cabeça». Era uma inflamação no cérebro. Nunca mais se tinha sentido bem desde aquele dia em que fora com Jerry a Nottingham e adormecera no chão. Desde aí, não fazia mais nada senão beber e ralhar com tudo e todos. Mas agora sentia-se seriamente doente, e Mrs. Morel tinha mais um para cuidar. Ainda por cima, era dos piores doentes que se possa imaginar. Mas, apesar de tudo, e independentemente do facto de ser ele o ganha-pão da família, ela nunca desejou que ele morresse. Uma parte dela ainda o queria para si.

As vizinhas eram muito boas para ela. De vez em quando, umas davam de almoçar às crianças; outras limpavam-lhe a casa, outra ficava-lhe com o bebé por um dia. Mas, mesmo assim, era extenuante. Não era todos os dias que as vizinhas vinham dar uma ajuda, e ela tinha de tratar do marido e do bebé, tratar da casa e cozinhar, e atender a tudo o mais. Andava estafada, mas fazia o que tinha de ser feito.

O dinheiro chegava à justa. Recebia dezassete xelins por semana de instituições de caridade, e, todas as sextas-feiras, Barker e os outros mineiros punham de lado uma parte dos proventos para a mulher de Morel. As vizinhas levavam-lhe canja, ovos e outros paparicos, dos que se dão aos doentes. Se não a tivessem ajudado com tanta generosidade nessa altura, Mrs. Morel nunca teria conseguido fazer frente à situação sem contrair dívidas que lhe seriam fatais.

As semanas foram passando, e Morel, contrariamente ao que seria de esperar, ia melhorando. Era de constituição forte e, com o tratamento, depressa entrou em convalescença. Não tardou muito, já andava a traquinar no andar de baixo. A mulher tinha-o estragado com mimos durante a doença e era frequente vê-lo levar as mãos à cabeça, assumir um rictus de dor, quase fazendo beicinho, e fingir dores que não sentia. Mas ela não se deixava enganar. A princípio, limitava-se a sorrir interiormente. Mas depois começou a metê-lo na ordem.

– Credo, homem, não te ponhas para aí a choramingar.

Isto magoava-o ligeiramente, mas não o impedia de continuar a fingir-se doente.

– Não te ponhas com fingimentos – dizia a mulher sem rodeios.

Ele indignava-se e praguejava entredentes, como um rapazola. Mas não tinha outro remédio senão voltar à normalidade e parar com as lamúrias.

Apesar de tudo, a paz reinou em casa por algum tempo. Mrs. Morel mostrava-se mais tolerante com ele, e ele, dependendo dela quase como uma criança, sentia-se feliz. O que nenhum deles sabia é que ela estava mais tolerante porque o amava menos. Até àquela altura, e apesar dos pesares, ele tinha sido o seu marido e o seu homem. Ela sempre sentira mais ou menos que o mal que ele fazia a si mesmo, fazia-o também a ela. Dependia dele para viver. Houve muitos, muitos estádios de arrefecimento do seu amor por ele, mas sempre de arrefecimento.

Agora, com o nascimento do terceiro filho, o seu ser já não se sentia empurrado para ele sem remédio, era antes como uma maré que quase não subia e que ficava longe dele. Agora, quase nunca o desejava. Vendo-se mais liberta dele, sentindo cada vez mais que ele não era parte dela, mas tão-só das circunstâncias que a rodeavam, já não lhe interessava o que quer que ele fizesse, podia deixá-lo em paz.

O ano que se seguiu trouxe a Morel a pausa e a ansiedade que marcam o Outono na vida de um homem. A mulher rejeitava-o, contrariada, mas inexoravelmente; rejeitava-o e substituía-o pelos filhos na vida e no amor. Daí em diante ele não era mais que um peso morto. E, como tantos homens fazem, sujeitava-se, cedendo o seu lugar aos filhos.

Durante a convalescença, quando já nada havia entre eles, ainda fizeram um esforço para reatar a relação dos primeiros meses de casados. Ele passava as noites em casa e, quando as crianças já estavam deitadas e ela se sentava a costurar – costurava tudo à mão, as camisas dele e os fatos das crianças – ele punha-se a ler o jornal em voz alta, soletrando as palavras devagar, como um jogador a atirar a malha. Ela até o apressava, acabando muitas vezes as frases primeiro, o que ele aceitava com humildade.

Os silêncios que se instalavam entre eles eram curiosos. Era o clic-clic leve e rápido da agulha, o pa-af-f cavo dos lábios dele expelindo baforadas de fumo, o crepitar da lareira e o fervilhar sibilante da grelha quando ele cuspia para o lume. Os pensamentos dela voltavam-se então para William, que estava já um rapagão. Era o primeiro da classe, e o mestre dizia que era o mais inteligente da escola. E ela via-o já homem, cheio de vigor e juventude, e olhava de novo o mundo em todo o seu esplendor.

E Morel, ali sentado sozinho, sem nada em que pensar, sentia-se vagamente desconfortável. A sua alma procurava ir ao encontro dela, às cegas como de costume, e descobria que ela já lá não estava. Sentia então uma espécie de vazio, um vácuo dentro da alma. Ficava perturbado e inquieto. Depressa o ambiente se lhe tornou insuportável, e à mulher também. Era como se o peito se lhes oprimisse com falta de ar quando ficavam sozinhos por muito tempo. Então, ele não tardava a ir deitar-se e ela deixava-se ficar, a saborear a solidão, enquanto ia trabalhando, sonhando, vivendo.

Assim, tendo de procurar uma atmosfera onde pudesse respirar, incapaz de pactuar com a sua própria aniquilação, Morel voltou-se de novo para a taberna e para o seu amigo Jerry, e a mulher, lá bem no fundo, sentiu até um certo alívio.

A partida estava definitivamente perdida para ele. Embora, naturalmente, tentasse voltar ao que era antes, e ainda tivesse assomos de prepotência, autoridade e orgulho, tais momentos eram apenas um eco do passado. Paul, o bebé, ao qual se sentia estranhamente ligado, não deixava que ele lhe tocasse. Aos oito meses, o menino teve uma infecção num ouvido e era um dó vê-lo. Morel bem queria pegar-lhe ao colo, para o consolar. E que bem lhe teria feito ser capaz de tratar do filho. Mas a criança não deixava. Retesava os braços e, ele que era quase sempre um bebé mansinho, desatava a gritar e a esquivar-se às mãos do pai. E Morel, ao vê-lo crispar os punhos pequeninos, virar a carita para o lado e levantar para a mãe uns olhos azuis apavorados, dizia com impaciente desespero:

– Anda, vem pegar nele!

– É o teu bigode que o assusta – dizia ela, pegando no menino e apertando-o contra o peito. Mas sentia o coração amargurado, e Morel tinha medo da criança.

Entretanto, um outro bebé vinha a caminho, fruto destas tréguas de ternura entre o casal desavindo. Paul tinha dezassete meses quando o irmão nasceu. Era na altura uma criança pálida e gorducha, sossegada, de olhos azuis carregados e o seu já tão característico franzir de testa. Este bebé também era um rapaz, loiro e magrinho. Mrs. Morel ficou aborrecida quando soube que estava grávida – por razões económicas e por já não amar o marido; não pela criança.

Chamaram-lhe Arthur. Era muito bonito, com fartos caracóis doirados, e gostou do pai desde o início. Mrs. Morel estava satisfeita por este filho gostar tanto do pai. Mal ouvia os passos do mineiro, o bebé estendia os braços e punha-se a pairar. E, se Morel vinha bem-disposto, respondia-lhe de imediato, na sua voz cálida e melodiosa:

– Então, meu amor... já vou, já vou.

E assim que tirava o casacão, Mrs. Morel punha um avental à volta do menino e entregava-o ao pai.

– Mas que lindo que ele ficou! – exclamava ela às vezes, voltando a pegar nele, todo enfarruscado dos beijos e das carícias do pai. E Morel ria com gosto.

– Temos aqui um mineirinho, que Deus o proteja! – exclamava ele. E eram estes os momentos de felicidade da vida dela, os momentos em que os filhos metiam o pai no coração.

Entretanto, William estava cada vez mais crescido, mais forte e activo, enquanto Paul, sempre sensível e calado, se tornava cada vez mais magro e andava sempre atrás da mãe como se fosse a sua sombra. Geralmente activo e interessado, era acometido por vezes de acessos de depressão, e a mãe ia dar com ele, com três ou quatro anos, a chorar num canto do sofá.

– O que tens? – perguntava ela, mas não obtinha resposta. – O que tens? – insistia, já zangada.

– Não sei – respondia ele entre soluços.

Ela tentava conversar com ele, distraí-lo, mas em vão, o que a deixava desesperada. Então, o pai, sempre impaciente, saltava da cadeira e berrava:

– Se ele não se cala, vai apanhar até se calar.

– Não senhor, era o que faltava – dizia a mãe, friamente. Depois, levava o menino para o jardim, sentava-o na cadeirinha dele e dizia:

– Agora chora pr’aí, infeliz!

E então, talvez uma borboleta pousada nas folhas do ruibarbo lhe atraísse a atenção; se não, acabava por chorar até adormecer. Estes ataques não lhe davam muitas vezes, mas Mrs. Morel andava preocupada, e o tratamento que dava a Paul era diferente do que dava aos outros filhos.

Uma manhã, ao ouvir a cantilena de Ó-Le-v’dura, Mrs. Morel saiu a correr de caneca na mão. O Ó-Le-v’dura ainda não tinha chegado ao portão, e ela teve de esperar, ouvindo os excertos de hinos que o homem cantava enquanto mergulhava a lata nos barris e enchia os recipientes que as mulheres lhe estendiam. Era um homem alegre, com uma cara opada e muito cómica, orlada de suíças brancas. Na carroça decrépita, viajavam dois barris de levedura de cerveja cobertos com uma serapilheira molhada. À medida que avançava, ia cantarolando excertos de hinos, pois tinha-se convertido há três meses. O seu pregão, possante, semi-herético, invadia o beco:


«Estaremos juntos para além do rio,

Onde a corrente já não é dura... Ó-Le-v’dura!»


Tinha também o hábito de chalacear com as mulheres enquanto lhes aviava a levedura. De repente, Mrs. Morel ouviu uma voz a chamá-la. Era a magricela da Mrs. Anthony, com o seu vestido de veludo vermelho.

– Venha cá, Mrs. Morel, quero falar-lhe por causa do seu Willie.

– Ah, sim? – respondeu Mrs. Morel.

Mrs. Anthony, sem se aproximar, gritou-lhe do outro lado do beco:

– Acha que ele tinha o direito de rasgar a gola do nosso Alfie atrás das costas?

– O quê, ele fez isso? – gritou Mrs. Morel do lado de cá. Nenhuma das mulheres queria dar o braço a torcer e aproximar-se da outra.

– Fez, sim senhora... e, se não me acredita, vou buscá-la para lha mostrar.

– Não, isso não é preciso – disse Mrs. Morel. – Mas como é que sabe que foi o nosso Willie?

– O quê? Julga que o nosso Alfie não disse a verdade? Olhe que nas Bottoms não há menino mais verdadeiro. Mas, se quiser, pergunte à Annie Bowers e a mais umas quantas. Ele agarrou na gola do meu miúdo e arrancou-lha inteirinha. E eu num tenho dinheiro pr’andar a gastar em golas novas, quando os outros lhas rasgam...

– Eu sei que não tem – disse Mrs. Morel.

– E o qu’eu acho – disse Mrs. Anthony, afogueada – é qu’ele devia levar uma boa sova, isso é qu’eu acho.

– «Junto ao cruzeiro, junto ao cruzeiro, onde encontrei...» Ó-Le-v’dura!... Ó-Le-v’dura!... Quanto quer, patroa?

– Meia medida chega – disse Mrs. Morel, estendendo-lhe a caneca.

– Meia medida nesta caneca, ora aqui tem, fresquinha a pingar, com a bênção do Senhor – respondeu o «Ó-Le-ved’ura». Ele e a carroça interpunham-se entre as duas mulheres.

– «Olhai os lírios a crescer...» Sim, Mrs. Anthony... meia medida. Todas meia medida! Não faz mal. «Eles não labutam, nem em casa, nem ao fuso. Mas Salimão também não...». Obrigadinho...

E lá seguiu, sem produzir o mínimo efeito nas mulheres. Mrs. Anthony estava indignadíssima.

– Um rapaz que s’agarra a outro e lhe rasga a roupa pelas costas... – não se cansava de repetir.

– O seu Alfred é da idade do nosso William – disse Mrs. Morel.

– Lá isso é, mas isso num dá o direito ao seu filho de deitar a mão à gola do meu e lha rasgar toda.

– Bem, sabe – disse Mrs. Morel –, eu não bato nos meus filhos, e mesmo que batesse, tinha de ouvir primeiro a versão deles.

– Portavam-se bem melhor, se apanhassem um bom correctivo quando rasgam a gola de um colega... de propósito... – opinou Mrs. Anthony.

– Tenho a certeza de que não foi de propósito – disse Mrs. Morel.

– Está a chamar-me mentirosa? – indignou-se Mrs. Anthony.

Mrs. Morel voltou para o quintal e fechou o portão. A mão que segurava a caneca com a levedura não parava de tremer.

– Olhe qu’eu vou queixar-me ao seu marido – gritou Mrs. Anthony, quando ela se afastava.

Ao almoço, quando William já tinha terminado de comer e estava morto por sair outra vez – tinha então onze anos – a mãe disse-lhe:

– Porque é que rasgaste a gola do Alfred Anthony?

– E quando é que eu lha rasguei?

– Isso não sei, mas a mãe dele diz que rasgaste.

– Ah... isso foi ontem... mas já estava rasgada.

– Mas tu ainda a rasgaste mais.

– Bom, eu tinha uma castanha que já tinha caçado dezassete... e vai o Alfy Ant’ny e diz:


«O Adão, a Eva e o Belisca-me

Foram tomar banho ao rio.

Adão e Eva afogaram-se.

Qual dos três é que fugiu...?»


E vou eu e digo «Ora, o Belisco-te», e zás, dei-lh’um beliscão e ele ficou furioso e palmou-m’a castanha e fugiu. E eu larguei a correr ’trás dele e quando lhe deitei a mão, ele tentou escapar-se e a gola rasgou-se. Mas eu tirei-lh’a minha castanha...

E, dizendo isto, tirou do bolso uma castanha-da-índia, muito preta, pendurada de um cordel. Ora, esta velha castanha já tinha «acastanhado» – atingido e esmagado – outras dezassete castanhas semelhantes penduradas como ela de cordéis, pelo que o rapaz tinha grande orgulho na sua veterana.

– Bem – disse Mrs. Morel –, tu sabes que não tens o direito de lhe rasgares a gola.

– Ora, mãe! – respondeu ele. – Não foi de propósito... e, além disso, era uma gola velha de borracha, já meio rasgada.

– Da próxima vez – disse a mãe – tens de ter mais cuidado. Eu também não ia gostar que me aparecesses em casa com a gola rasgada.

– Não m’interessa, mãe, eu não fiz de propósito. O rapaz estava muito sentido com a reprimenda.

– Pois não... mas tens de ter mais cuidado.

William tratou de se escapulir, todo contente por se ver liberto, e Mrs. Morel, que detestava conflitos com as vizinhas, pensou que, se fosse dar uma explicação a Mrs. Anthony, o problema ficaria resolvido.

Nessa noite, porém, Morel chegou da mina muito mal-humorado. Pôs-se no meio da cozinha a olhar em volta, ameaçador, durante uns minutos, mas sem dizer nada. Depois começou.

– Onde está esse Willie dum raio?

– Para que queres falar com ele? – inquiriu Mrs. Morel, já a adivinhar.

– Quando eu o encontrar, ele logo saberá – disse Morel, batendo violentamente com o cantil em cima do louceiro.

– Já estou a ver que a Mrs. Anthony te apanhou e te encheu os ouvidos por causa do que aconteceu à gola do filho – disse Mrs. Morel, com acentuada sobranceria.

– Não interessa quem m’apanhou – disse Morel. – Mas quand’eu o apanhar, os ossos dele vão estalar.

– É uma pena que estejas tão pronto a tomar o partido da primeira megera que te vem envenenar com contos e ditos sobre os teus próprios filhos.

– Ele vai ver como elas mordem! – disse Morel. – Num m’interessa de quem ele é filho, num pode é andar por aí a arrancar e a rasgar golas conforme lhe dá na gana.

– A arrancar e a rasgar! – repetiu Mrs. Morel – Ele ia a correr atrás do Alfy para lhe tirar a castanha que ele lhe tinha roubado, e agarrou-lhe a gola por acaso... porque o outro se tentou esquivar... como é bem dos Anthonys.

– Eu sei... – berrou Morel, ameaçador.

– E devias saber, antes de to dizerem – retorquiu Mrs. Morel, mordaz.

– Num te preocupes – vociferou Morel. – Sei muito bem o que hei-de fazer.

– Pois não parece – disse Mrs. Morel. – Já que foi uma intriguista qualquer que te foi industriar para bateres no teu filho.

– Eu sei – repetiu Morel.

E mais não disse, tendo-se sentado a curtir o mau génio. Nisto, William entrou a correr pela cozinha dentro, e disse:

– Mãe, pode dar-me o meu chá?

– Vou dar-te ’inda mais do qu’isso – berrou Morel.

– Fala baixo, homem – disse Mrs. Morel. – Não faças tristes figuras.

– Ele é que vai fazer triste figura quando eu acabar com ele! – berrou Morel, saltando da cadeira e olhando irado para o filho. William, que era desenvolvido para a idade, mas muito sensível, ficou lívido e fitou o pai, aterrorizado.

– Foge daqui! – ordenou Mrs. Morel.

Mas William estava incapaz de se mexer. De repente, Morel cerrou o punho e baixou-se.

– Eu digo-lhe quem é que foge! – berrou, tresloucado.

– O quê! – gritou Mrs. Morel, ofegante de raiva. – Tu não lhe vais pôr um dedo em cima a mando dela, isso é que não vais.

– Não vou? – berrou Morel – Ai não vou?

E, soltando faíscas do olhar, avançou para o rapaz. Mrs. Morel, num salto, meteu-se entre ambos brandindo o punho.

– Não te atrevas! – gritou ela.

– O quê! – berrou ele, momentaneamente desnorteado. – O quê!

Ela rodopiou e agarrou-se ao filho.

– Foge lá para fora! – ordenou ela, desvairada. O rapaz, como se hipnotizado, voltou-se subitamente e fugiu. Morel correu para a porta, mas era tarde de mais. Voltou para dentro, lívido de raiva por baixo do pó preto da mina. Mas agora era a mulher que estava furiosa.

– Experimenta só! – disse ela, alto e bem timbrado. – Experimenta tocares com um dedo nessa criança, meu menino, e vais arrepender-te para o resto da tua vida.

Ele, com medo dela, sentou-se a vociferar, dando largas à sua fúria.

– Não, já o fizeste noutras alturas, mas agora acabou-se! – recomeçou ela, de repente, após uma pausa. – Não me esqueço daquela vez em que lhe deste um pontapé e o encheste de nódoas negras, só por causa da raiva que aquela velha, a Tia Sharp, tinha dele... mas nunca mais vais fazer isso – disse ela, ofegante, quase sem fôlego, de tanta cólera.

– Não vou? Ai não vou? – repetiu Morel.

– Seu brutamontes... és um bruto e um cobarde! – gritou ela. – Não tens vergonha de te deixares dominar por uma vadia qualquer, como essa Anthony, quando ela te vem dizer para bateres nos teus filhos? É ela que decide por ti quando hás-de vir para casa bater nas crianças?... E tu obedeces, meu cobarde, meu grande bruto!... Não, enquanto eu aqui estiver, isso não vai acontecer!

– Vais ver o que acontece enquanto aqui estás – disse Morel ameaçadoramente.

– Nunca mais, meu menino, nunca mais toques com um dedo nos meus filhos.

– Ah-Ah-Ah! – E ele riu-se, trocista.

Depois saiu e embebedou-se, e, quando chegou o fim-de-semana, não deu a William a moeda do costume.

– Também não te faz falta – disse Mrs. Morel para o filho.


CONTINUAR

AS BOTTOMS vieram substituir as Hell Row. As Hell Row era uma correnteza de casas rústicas, abauladas, de telhado de colmo, construídas nas margens da ribeira, em Greenhill Lane. Aí viviam os mineiros que exploravam as pequenas minas à nora, duas searas mais abaixo. A ribeira corria entre os amieiros, quase nada poluída pelas pequenas minas, cujo carvão era trazido para a superfície por burros que andavam pachorrentamente em torno de uma nora. Por toda a região havia minas destas, datando algumas delas do tempo de Carlos II; os poucos mineiros e burros existentes enfiavam-se pela terra dentro como formigas, salpicando de curiosos montículos e negras manchas prados e searas. Eram as casas destes mineiros, espalhadas pela paróquia em pequenos aglomerados ou aos pares, à mistura com as quintas dispersas e as casas dos tecelões, que constituíam no seu conjunto a cidadezinha de Bestwood.
Até que, há cerca de sessenta anos, se deu uma transformação radical. As pequenas minas à nora foram preteridas pelas minas dos grandes financeiros, e descobertos os campos mineiros do Nottinghamshire e do Derbyshire. Surgiu então a Carston, Waite & Co., e, no meio do maior entusiasmo, Lord Palmerstone inaugurou oficialmente a primeira mina da companhia, em Spinney Park, na orla da floresta de Sherwood.
Pela mesma altura, as tão faladas Hell Row, que com o passar dos anos foram ganhando má fama, foram totalmente queimadas e, com elas, eliminada muita imundície.

 

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A Carston, Waite & Co. não tardou a aperceber-se do êxito da iniciativa, e novas minas foram sendo abertas nos vales do Selby e do Nuttall, até que, em pouco tempo, já eram seis as minas a laborar. Partindo de Nuttall, e encarrapitada nos montes de arenito, por entre o arvoredo, a via férrea passava pelo priorado em ruínas de Carthusians e o Poço de Robin Hood, descendo depois para Spinney Park e Minton, a enorme mina no meio das searas, atravessando em seguida as quintas do vale até Bunker Hill, onde entroncava com um ramal, seguindo então para o norte, para Beggarlee e Selby, de onde se avistam Crich e os montes do Derbyshire; seis minas, quais garanhões pretos na paisagem, ligadas por uma corrente serpenteante – a via férrea.

Para alojar os mineiros, a Carston, Waite & Co. construiu as Squares, grandes urbanizações quadrangulares na encosta de Bestwood, e, no vale, erigiram as Bottoms no local antes ocupado pelas Hell Row.

As Bottoms eram seis quarteirões de casas de mineiros, com duas fiadas de três casas cada um, à laia das pintas do seis no dominó, ou seja, doze casas por quarteirão. Esta dupla fiada de habitações situava-se no sopé da encosta íngreme de Bestwood e, pelo menos das janelas dos sótãos, avistava-se a ladeira suave que subia do vale em direcção a Selby.

As casas propriamente ditas eram sólidas e bastante apresentáveis. Quem por ali andasse a passear, deparava-se com jardinzinhos floridos, de prímulas e saxífragas, nas casas de baixo, mais sombrias, e de cravos e cravinas nas casas de cima, mais soalheiras; janelas airosas, alpendres, pequenas sebes de alfena, mansardas nos sótãos. Mas tudo isto era por fora, a vista exterior da sala, onde as mulheres dos mineiros nunca entravam. A divisão onde passavam o dia, a cozinha, ficava nas traseiras, virada para a outra fiada de casas, e dava para um jardinzeco mal tratado e, mais adiante, para os aterros de cinza. E entre as duas fiadas, entre as longas filas de poços de cinza, corria o beco onde as crianças brincavam, as mulheres davam à língua e os homens se entretinham a fumar. Assim, as condições reais de vida nas Bottoms, casas aparentemente bem construídas e com tão bom aspecto, eram bastante deficientes, porque os moradores passavam a maior parte do tempo na cozinha, e as cozinhas davam para o tal beco miserável dos poços de cinza.

Quando desceu das alturas de Bestwood, Mrs. Morel não tinha grande vontade de se mudar para as Bottoms, construídas há doze anos e apresentando já alguns sinais de degradação. Mas era o que podia arranjar. Vindo morar para uma das casas da ponta, num dos blocos superiores, tinha apenas um vizinho, e, do outro lado, um jardim suplementar. Além disso, o facto de possuir uma casa de topo conferia-lhe um estatuto aristocrático entre as restantes mulheres das casas intermédias, pois a renda era cinco xelins e seis dinheiros por semana, em vez dos habituais cinco xelins. Todavia, esta superioridade social não trazia grande consolação a Mrs. Morel.

Tinha trinta e um anos e estava casada há oito. Pequena, frágil, mas resoluta, furtava-se ao contacto com as outras mulheres das Bottoms. Mudara-se em Julho e esperava o terceiro filho para Setembro.

O marido era mineiro. Só viviam na casa nova há três semanas, quando chegou o dia da feira anual. Sabia bem que Morel não ia perder a oportunidade de se divertir. Na segunda-feira, dia da inauguração da feira, saiu de casa logo pela manhã. As duas crianças estavam excitadíssimas. William, um rapazinho de sete anos, escapuliu-se mal tomou o pequeno-almoço, para ir passear pela feira, deixando Annie, a irmã de cinco anos, toda a manhã a chorar porque também queria ir. Mas Mrs. Morel tinha a lida da casa para fazer, e ainda mal conhecia os vizinhos, não tendo por isso ninguém de confiança para tomar conta da filha. Prometeu-lhe por isso que a levava à feira depois do almoço.

William voltou ao meio-dia e meia hora. Era um garoto muito activo, de cabelo louro, sardento, de aspecto nórdico.

– Posso almoçar já, mãe? – gritou, entrando de rompante com o boné na cabeça. – É que a feira abre à uma e meia. Foi o que o homem disse.

– Podes comer assim que estiver pronto – respondeu a mãe.

– O quê, ainda não está? – gritou ele, indignado, fulminando-a com os olhos muito azuis. – Então não almoço.

– Isso é que era bom... – respondeu a mãe.

– Mas está quase a começar – gritou o garoto, quase aos berros.

– Não morres se quando chegares já tiverem começado – disse a mãe. – Além disso, ainda é só meio-dia e meia hora e ainda tens uma hora à tua frente.

O garoto começou a pôr a mesa a toda a pressa e sentaram-se os três. Estavam ainda a comer as panquecas com geleia quando ele saltou da cadeira e, bruscamente, parou, completamente estático. Ao longe, ouviu-se o carrocel arrancar para a primeira volta e o som vibrante de uma corneta. O rosto contraiu-se-lhe e olhou para a mãe.

– Eu bem dizia! – exclamou, correndo para a cómoda e pegando no boné.

– Leva a panqueca... ainda é só uma e cinco, por isso estavas enganado... Olha que não levas os dois dinheiros – gritou a mãe de um só fôlego.

O garoto voltou para trás, pelos dois dinheiros, visivelmente contrariado, e saiu de imediato sem dizer palavra.

– Também quero ir, também quero ir – dizia Annie, já a chorar.

– Pronto... pronto... também vai, sua rabina – disse a mãe. E, mais tarde, lá foi Mrs. Morel encosta acima com a filha ao colo, penosamente, à sombra da sebe alta que ladeava o caminho. O feno já tinha sido apanhado e as vacas andavam à solta. O dia estava quente e bonançoso.

Mrs. Morel não gostava de arraiais. Neste, havia dois carrocéis de cavalinhos – um a vapor e outro puxado por um pónei. Os acordes de três órgãos arranhavam a tarde, e ouviam-se estampidos desencontrados de pistolas, a chiadeira infernal da caranguejola do vendedor de cocos, os gritos do homem da barraca da Tia Sally e o pregão estridente da mulher do Olho Mágico. A mãe avistou o filho parado em frente da barraca do Leão Wallace, a olhar embasbacado para as fotografias desse leão que já tinha matado um negro e mutilado dois brancos, mas não se aproximou e foi comprar algodão doce para Annie. O garoto, porém, veio ter com ela, excitadíssimo.

– Não disse que vinha... Há tantas coisas, não há?... Aquele leão ali já matou três homens... e eu já gastei os meus dois dinheiros... olhe...

Do bolso tirou dois suportes para ovos, decorados com florinhas cor-de-rosa.

– Comprei-os naquela barraca onde a gente mete os berlindes nos buracos... e ganhei estes dois de seguida... um dinheiro cada jogada... têm rosinhas pintadas, olha. Era mesmo o que eu queria.

Ela sabia que era para lhos dar que ele os queria.

– Hum! – disse ela, satisfeita. – São muito bonitos!

– Leve-os a mãe, qu’eu tenho medo d’os partir.

Não cabia em si de contente por ela ter vindo, e foi mostrar-lhe a feira toda. Quando chegaram ao Olho Mágico, pôs-se a explicar-lhe as imagens, encadeadas numa espécie de história que ele escutava como se estivesse enfeitiçado. Mas não a largava. Mantinha-se perto dela, exibindo o seu orgulho de menino pela sua mãe. É que nenhuma outra mulher se lhe comparava em elegância, com o seu chapelinho preto e a capa sobre as costas, trocando sorrisos com as mulheres conhecidas que encontrava.

Quando se cansou, Mrs. Morel disse ao filho:

– Então, vens comigo agora, ou voltas mais tarde?

– Já se vai embora? – exclamou ele, amuado.

– Já?... São só quatro e meia, eu sei.

– Porque vai já? – disse ele, lamuriento.

– Mas tu não precisas de vir comigo, se não quiseres. – E afastou-se com a filha, enquanto o filho ficava parado a olhar para ela, cheio de pena de a deixar voltar sozinha, mas incapaz de virar as costas à feira. Ia a atravessar o largo da feira quando ouviu uns homens a berrar e sentiu o cheiro da cerveja. Então, estugou o passo, pensando que o marido estaria provavelmente na taberna.

Por volta das seis e meia, o filho chegou a casa, cansado, muito pálido e abatido.

– Sim senhor! – disse ela, fingindo-se zangada. – Se te atrasasses mais cinco minutos, já tinha levantado a mesa. É sempre a mesma coisa, já deves estar com fome há muito tempo...

Deu-lhe a merenda. Embora ele não se apercebesse, estava triste por tê-la deixado voltar sozinha. A feira perdera toda a graça desde que ela se tinha vindo embora.

– O pai já veio? – perguntou ele.

– Não – respondeu a mãe.

– Está na taberna a dar uma ajuda ao balcão. Vi-o de mangas arregaçadas através daquela chapa preta aos buraquinhos que eles têm a tapar a janela.

– Ah! – exclamou a mãe. – Está sem dinheiro. Se lhe derem que chegue para a bebida, já fica satisfeito; tanto se lhe dá que lhe paguem mais ou não.

Com ordem da mãe, os garotos foram pôr-se à janela do quarto dela a verem as pessoas regressar da feira com brinquedos do bazar, a ouvirem a cegarrega da música a tocar, o alarido das vozes, o estampido das pistolas, o «pim» das balas no fino alvo de ferro. Por fim, o cansaço venceu-os e foram para a cama.

Quando a luz esmoreceu e Mrs. Morel já não via para coser, levantou-se e foi para a porta da rua. Por todo o lado se ouvia a algazarra própria dos feriados, e ela acabou por ser contagiada. Saiu e foi até ao jardim de topo. As mulheres voltavam do arraial, com as crianças abraçadas a um cordeirinho branco de pernas verdes ou a um cavalo de madeira. De vez em quando, passava um homem aos tombos, cheio de cerveja até mais não poder. Outras vezes era um marido às direitas, com a família atrás, tranquilamente. Mas geralmente as mulheres e as crianças vinham sozinhas. As mães mais caseiras entretinham-se na má-língua pelas esquinas da ruela, à luz do entardecer, com os braços cruzados por baixo do avental.

Mrs. Morel estava sozinha, mas já estava habituada. Com o filho e a filhinha a dormirem lá em cima, a casa, atrás de si, parecia-lhe um lar sólido e estável. Atormentava-a, porém, a ideia de ser mãe mais uma vez. O mundo parecia-lhe um lugar desolado que nada tinha já para lhe dar – pelo menos até o William crescer. E tantos filhos! Não podia ter este terceiro. Não o queria. O pai vendia cerveja na taberna e bebia até cair. Ela desprezava-o e, ao mesmo tempo, sentia-se presa a ele. Este novo filho era de mais para ela. Se não fosse pelo William e a Annie... Estava farta de tudo aquilo, de lutar contra a miséria, a fealdade e a maldade humanas.

Passou para o jardim da frente; já estava muito pesada para sair, mas também não conseguia ficar em casa. O calor era sufocante, e, ao olhar o futuro, a vida que a esperava era semelhante a ver-se enterrada viva.

O jardim da frente era um quadradinho de terra cercado por uma sebe de alfena. Por aí se quedou, tentando amenizar os pensamentos com o perfume das flores e a beleza da tarde que findava. Frente ao pequeno portão ficavam os degraus que permitiam transpor a cerca que vedava o caminho da encosta, debaixo da sebe alta, entre o fulgor ardente dos prados divididos. Lá no alto, o céu palpitava e pulsava de luz. O esplendor depressa se apagou dos campos e o crepúsculo subiu como fumo da terra e dos arbustos. Quando começou a escurecer, um clarão avermelhado surgiu por detrás da colina, dele parecendo emanar a agitação distante da feira.

De vez em quando, homens aos tombos, de regresso a casa, passavam pelo túnel de breu formado pelo trilho aberto sob os arbustos. Um rapaz galgou em desenfreada correria o último troço da encosta, muito íngreme, e estatelou-se com força de encontro à cerca. Mrs. Morel estremeceu. O rapaz levantou-se a praguejar, conforme pôde, numa atitude patética, como se achasse que a cerca o tinha magoado de propósito.

Ela voltou para dentro, a pensar se as coisas não iriam mudar nunca. Começava agora a perceber que não. Sentia tão longe os seus tempos de menina, que duvidava até se aquela pessoa que subia pesadamente o jardim das traseiras, naquela casa das Bottoms, era mesma que há dez anos corria ligeira pelo molhe de Sheerness.

– Que tenho eu a ver com isto! – disse ela para consigo. – Que tenho eu a ver com tudo isto. Ou com a criança que está para nascer! Até parece que ninguém me pediu a opinião.

A vida às vezes toma conta de uma pessoa, apodera-se-lhe do corpo, escreve-lhe a história e, no entanto, nada é real e a pessoa sente-se como se tivesse sido ignorada.

– Vou esperando – disse Mrs. Morel para consigo. – Vou esperando, e aquilo por que espero nunca vem.

Depois, arrumou a cozinha, acendeu o candeeiro, pôs mais carvão na lareira, separou a roupa que havia de lavar no dia seguinte, pô-la de molho e, em seguida, sentou-se a costurar. Durante horas a fio, a agulha brilhou a intervalos regulares, atravessando o pano. De vez em quando, suspirava e mudava de posição, para aliviar as costas. Durante todo esse tempo só pensava numa coisa: como tirar o melhor partido daquilo que tinha, para bem dos filhos.

O marido chegou às onze e meia. Vinha de faces vermelhas e luzidias por cima do bigode preto. Meneava a cabeça afirmativamente. Via-se que estava contente consigo mesmo.

– Oh!... Oh!... estavas à minha espera, cachopa? ’Tive ’àjudar o Anthony, e qu’achas tu qu’ele me deu? Uma triste meia-coroa e mai’ nada, nem mais um tostão...

– Ele deve achar que o resto é para a cerveja que tu bebeste – disse ela, secamente.

– Mas não bebi... não bebi, não... palavra. Hoje inté bebi muito pouco. – A voz adocicou-se. – Toma, trouxe-te um bocado de pão de gengibre e um coco para as crianças. – E colocou em cima da mesa o pão de gengibre e o coco, aquela coisa peluda. – Nã, nunca foste capaz d’agradecer nada na vida, poi não?

Como se cumprisse um ritual, ela pegou no coco e chocalhou-o, para ver se tinha leite.

– Esse é dos bons, podes apostar o que quiseres. Deu-mo o Bill Hodgkisson. Bill, disse eu, tu num vais precisar de três cocos só pra ti, poi não? Num me queres dar um pròs meus miúdos? Tá bem, Walter, disse ele, escolhe o que t’agradar mais. E eu peguei num e agradeci-lhe. Num o queria abanar à frente dele, mas vai ele e diz: É melhor veres s’é memo bom, Walt... Por isso, vi logo que era, tás a perceber? É um tipo porreiro, o Bill Hodgkisson, é um tipo memo porreiro!

– Um homem dá seja o que for, se estiver bêbado, e vocês estavam os dois bêbados – disse Mrs. Morel.

– Vá, diz lá, minha desavergonhada, quem é que estava bêbado? Sempre gostava de saber – disse Morel. Estava todo inchado por ter dado uma ajuda na taberna, e nunca mais se calava.

Mrs. Morel, já muito farta da lengalenga, foi para a cama o mais depressa que pôde, deixando-o a tratar do lume.

Mrs. Morel descendia de uma família tradicional da burguesia, de famosos independentes que tinham lutado ao lado do Coronel Hutchinson, e se mantinham arreigados Congregacionistas. O avô vira falir o seu negócio de rendas numa altura em que muitos fabricantes de Nottingham haviam ficado arruinados. O pai, George Coppard, era mecânico. De constituição forte, bem-parecido e imponente, tinha grande orgulho na brancura da sua pele e nos seus olhos azuis, mas mais orgulho ainda na sua integridade de carácter. Gertrude parecia-se com a mãe na fragilidade da estatura, mas herdara dos Coppards o temperamento orgulhoso e inflexível.

George Coppard ressentia-se amargamente da pobreza em que vivia. Chegou a capataz dos mecânicos dos estaleiros de Sheerness. Mrs. Morel – Gertrude – era a sua segunda filha. Ela só tinha olhos para a mãe, que amava acima de tudo: mas tinha os olhos claros e provocantes dos Coppards e a sua testa alta. Lembrava-se de detestar a forma prepotente como o pai tratava a mãe, mulher gentil, bem-disposta e afável. Lembrava-se de ir a correr pelo molhe até ao barco. Lembrava-se de ser mimada e elogiada por todos os trabalhadores quando entrava nos estaleiros, pois era uma criança delicada e muito segura de si. Lembrava-se da velha professora, mulher caricata, de quem se tornara assistente e com quem sempre gostara de trabalhar. E ainda conservava a bíblia que John Field lhe dera. Costumava voltar com ele da missa quando tinha dezanove anos. Filho de um comerciante abastado, tinha ido estudar para Londres e viria a dedicar-se aos negócios.

Lembrava-se sempre em pormenor de uma certa tarde, num domingo de Setembro, em que se tinham ido os dois sentar debaixo da parreira nas traseiras da casa do pai dela. O sol rompia por entre os recortes das folhas da videira, cobrindo as suas cabeças de arabescos de luz, de belo efeito, como mantilha de renda. Algumas das folhas, de um amarelo muito puro, pareciam flores abertas, amarelas e planas.

– Agora não te mexas – exclamara ele. – Os teus cabelos nem sei o que parecem! Brilham como o cobre ou como o ouro, estão vermelhos como cobre incandescente, raios de fios de ouro onde o sol os ilumina. Não sei porque dizem que são castanhos. A tua mãe chama-lhe pêlo de rato.

Os olhos dela encontraram os dele, cintilantes, mas o seu rosto cristalino não deixava transparecer a exaltação que sentia crescer dentro de si.

– Dizes então que não tens queda para o negócio – continuou ela.

– E não tenho... Detesto negócios – gritou ele, empolgado.

– E que gostavas de seguir a vida religiosa – disse ela, quase implorando.

– Gostava... Gostava mesmo muito, se achasse que podia vir a ser um pregador fora de série.

– Então, porque não segues... Porque não segues? – A voz dela era um desafio. – Se eu fosse homem, nada me conseguia deter.

A pose era altiva, a cabeça erguida – ele quedava-se tímido diante dela.

– Mas o meu pai é tão casmurro. Jurou que me há-de meter nos negócios e sei que assim será.

– Mas tu já és um homem! – gritara ela.

– Ser um homem não é tudo – respondera ele, com um gesto de confuso desalento.

Agora, enquanto tratava da lida da casa nas Bottoms, e sabendo já o que significava ser um homem, ela percebia que isso não era tudo de facto.

Aos vinte anos, saíra de Sheerness por razões de saúde. O pai tinha-se reformado e voltado para Nottingham. O pai de John Field ficara arruinado e o filho era professor em Norwood. Ao fim de dois anos sem notícias, resolveu investigar: ele tinha casado com a senhoria, uma mulher de quarenta anos, viúva abastada.

Mesmo assim, Mrs. Morel conservava a bíblia que John Field lhe dera. Não acreditava que ele fosse aquilo que ela tinha pensado – enfim, compreendia agora muito bem o que ele podia ou não podia ter sido. Guardava por isso aquela bíblia e a sua lembrança no fundo do coração, para seu próprio conforto. Em trinta e cinco anos, até ao dia em que ele morreu, nunca pronunciou o seu nome.

Aos vinte e três anos, encontrou um rapaz de Erewash Valley numa festa de Natal. Morel tinha então vinte e sete anos. Boa figura, garboso e elegante. O cabelo era preto e ondulado, luzidio, e ostentava uma barba negra, vigorosa, que se via nunca ter sido rapada. As faces eram coradas, e a boca vermelha e húmida chamava a atenção porque se ria muito e com vontade. Tinha essa qualidade rara que é um riso cheio e musical. Gertrude Coppard contemplara-o fascinada: era atraente e divertido, a sua voz adquiria facilmente requebros cómicos e grotescos, e mostrava-se sempre disponível e amável com toda a gente. O pai dela também tinha um acentuado sentido de humor, mas a atirar para o sarcástico. O deste homem era diferente: doce, sem pretensões intelectuais, caloroso, dir-se-ia uma constante cabriola verbal.

Ela era o oposto. Tinha um espírito receptivo e curioso, que se deleitava e divertia a ouvir os outros, e era hábil a fazê-los falar. Adorava discutir ideias, pelo que a consideravam muito intelectual. Nada lhe dava mais prazer que falar de religião, filosofia ou política com um homem sabedor. Porém, raramente se podia dar a esse luxo. Contentava-se por isso em ouvir as pessoas falarem-lhe dos seus problemas.

Fisicamente, era pequena e de constituição frágil, testa muito alta orlada de cachos de caracóis castanhos. Os olhos eram azuis, francos, honestos e inquiridores. As mãos eram as belas mãos dos Coppards. Sóbria no trajar, envergava nesse dia um vestido de seda azul-escura e, como únicos enfeites, um original cordão de prata com berloques e um alfinete de ouro entrançado. Ainda intacta e sem mácula, era profundamente religiosa e impregnada de genuína candura.

Walter Morel sentia-se literalmente derretido perante ela. Para este mineiro, ela era algo de misterioso e fascinante: uma senhora. Quando lhe dirigiu a palavra, fê-lo com o sotaque do Sul e num inglês tão puro que o deixou emocionado. Ela observava-o. Ele era bom dançarino, como se, para ele, dançar fosse algo de natural, puro prazer. O avô dele era um refugiado francês que se casara com uma criada de bar inglesa – se é que tinham chegado a casar. Gertrude Coppard contemplava o jovem mineiro, vendo-o dançar com subtil exultação em cada requebro, em cada movimento, e o seu rosto dir-se-ia a flor do seu corpo, rosado e envolto em negras madeixas, de riso qualquer que fosse o par que tivesse ido buscar para dançar. Achava-o maravilhoso, diferente de todos os outros homens que já tinha visto. O pai era para ela o homem-modelo. Mas George Coppard, o orgulho em pessoa, homem bem-parecido e um tanto amargo, que elegia como leitura a teologia e nutria simpatia apenas por um homem – o apóstolo São Paulo –, George Coppard, homem de pulso inflexível e ironia à flor da pele, para quem o prazer sensual não existia, era radicalmente diferente do mineiro. A própria Gertrude desprezava a dança: era arte para a qual não sentia a menor inclinação, e nem a quadrilha ela aprendera a dançar. Era puritana, como o pai, um espírito elevado e determinado. Não admira pois que a dourada e nocturna suavidade do fogo sensual que jorrava do corpo daquele homem, incandescente como a chama de uma vela, sem submissão nem repressão da mente, tão diferente da vida que ela se impunha, fosse aos olhos dela algo de maravilhoso, de transcendente.

Ele aproximou-se e curvou-se diante dela. Uma onda irradiante de calor invadiu-a, como se tivesse bebido vinho.

– Agora, vossemecê vem dançar esta comigo – disse ele, acariciando-a com a voz. – É fácil, vai ver. Estou morto por vê-la dançar.

Ela, que já lhe tinha dito que não sabia dançar, ergueu os olhos perante tanta simplicidade, e sorriu. O seu sorriso, belíssimo, deixou o jovem sem discernimento.

– Não, não danço – disse, docemente. As suas palavras soaram cristalinas, musicais.

Sem saber porque o fazia – geralmente adoptava a atitude correcta por instinto –, ele sentou-se ao lado dela, inclinando-se com reverência.

– Mas não quero que fique sem dançar – protestou ela.

– Não, não me apetece dançar esta... não é das que eu mais gosto.

– O que não o impediu de me vir buscar.

Morel deu uma sonora gargalhada.

– Nem tinha pensado nisso. Vejo que não perde tempo a cortar-me o topete.

Foi a vez de ela dar uma risadinha breve.

– Olhando para si, ninguém há-de dizer – disse ela.

– Sou como o galarote: quando arrebito o topete, não há nada a fazer – rematou ele, com forte gargalhada. – Não quer beber nada? – perguntou a seguir.

– Não, obrigada... não tenho sede.

Ele hesitou, percebeu que ela era completamente abstémia, e sentiu o peso da recusa.

Enveredou então por uma série de perguntas delicadas, sobre questões interessantes, a que ela respondeu com brilho. Ele parecia-lhe fascinante.

– E pensar que você é mineiro! – exclamou ela, surpreendida.

– É verdade. Desde os dez anos.

Ela olhou-o com enlevada tristeza.

– Desde os dez anos!... E não era duro de mais?

– Depressa nos habituamos. Vivemos como ratos, e vimos cá acima à noite para ver como vão as coisas.

– Fico cega só de pensar – disse ela, fazendo uma careta.

– Como as toupeiras! – disse ele com uma risada. – É isso mesmo, e há tipos que andam às voltas como as toupeiras. – Depois, espetou a cara, como as toupeiras fazem ao focinho para farejarem o caminho, semicerrando os olhos para se orientarem. – Custa, mas conseguem! – disse ele, ingenuamente. – Vossemecê nunca há-de ter visto os buracos por onde elas entram. Qualquer dia, tem de me deixar mostrar-lhe um, e então já fica a saber como é.

Ela olhou para ele estupefacta. A vida abria de súbito um caminho novo à sua frente. Ela sabia como era a vida dos mineiros, a trabalharem às centenas debaixo da terra, só à noite vindo à superfície. Havia nele muita nobreza. Arriscava a vida diariamente e fazia-o com alegria. O olhar dela era um apelo, em toda a sua pureza e humildade.

– Vossemecê gostava de ir ver, não gostava? – perguntou ele, ternamente. – Se calhar não; era capaz de se sujar.

Nunca ninguém a tinha tratado por vossemecê.

Casaram no Natal seguinte. Durante três meses ela foi perfeitamente feliz, e muito feliz por mais seis meses.

Ele tinha assinado o juramento e ostentava a fita azul dos abstémios: gostava de dar nas vistas. A casa onde moravam era dele, pensava ela. Era pequena, mas razoável, e estava bem mobilada, com peças sólidas e dignas, a condizer com a sua alma austera. Mrs. Morel dava-se pouco com as vizinhas, e a mãe e as irmãs do marido desdenhavam dos seus modos senhoris; mas vivia bem sem elas, desde que tivesse a companhia do marido.

Às vezes, quando se cansava das juras de amor e tentava abrir-lhe o coração e falar de assuntos sérios, percebia que ele a escutava com deferência, mas sem compreender. Esta atitude cerceava o seu esforço para aprofundarem o conhecimento íntimo um do outro, e chegava a sentir medo. Havia noites em que ele se mostrava visivelmente inquieto, ansioso para sair: era óbvio que a companhia dela não lhe chegava. Viu, por isso, com bons olhos ele começar a fazer pequenos biscates.

Morel era um homem extremamente habilidoso, capaz de fazer ou consertar fosse o que fosse. Mal ela dizia, por exemplo:

– Gosto tanto do esborralhador da tua mãe... é pequenino e tão jeitoso.

Logo ele respondia:

– Gostas, minha linda? Pois bem, se eu fiz aquele, também posso fazer um para ti.

– O quê... mas é de aço!

– E depois? Vais ter um igual ou muito parecido.

Não se importava com a porcaria que ele fazia, nem com o barulho das marteladas. Via-o entretido e feliz, era quanto lhe bastava.

Mas um dia, no sétimo mês de casada, estava ela a escovar-lhe o casaco domingueiro quando sentiu uns papéis no bolso interior. Num acesso de curiosidade, tirou-os do bolso para ver de que se tratava. Ele raramente usava a sobrecasaca do dia do casamento, e ela nunca sentira curiosidade pelos seus papéis. Ao lê-los, viu tratar-se das contas da mobília, ainda por pagar.

– Ouve lá – disse-lhe ela à noite, depois de ele se ter lavado e acabado de jantar. – Encontrei isto no teu fato de casamento. Então ainda não pagaste as contas?

– Não... ainda não tive tempo.

– Mas disseste que já estava tudo pago. O melhor é eu ir a Nottingham no sábado e pagar tudo. Não me agrada nada estar sentada numa cadeira que não é minha, nem comer numa mesa que ainda não está paga.

Ele não respondeu.

– Posso levar o teu livro de cheques, não posso?

– Podes, mas não te vai servir de nada.

– Mas eu julgava... – começou ela. Ele tinha-lhe dito que tinha algum dinheiro de lado. Percebeu, porém, que não adiantava fazer mais perguntas, e ficou sentada muito hirta, ofendida e indignada.

No dia seguinte foi falar com a mãe dele.

– Não foi a senhora que comprou a mobília para o Walter? – perguntou-lhe.

– Fui, sim. – respondeu a outra, sacudida.

– E quanto é que ele lhe deu?

A mulher mostrou-se indignada:

– Oitenta libras, se é isso que quer saber.

– Oitenta libras! Mas ainda falta pagar quarenta e duas!

– E que tenho eu com isso?

– Mas, então, para onde foi o dinheiro?

– Se procurar, há-de encontrar os recibos... acho eu... tirando dez libras que ele me devia, e seis libras que é quanto custa aqui um casamento.

– Seis libras! – repetiu Gertrude Morel, sem querer acreditar. Parecia-lhe uma aberração que, depois de o seu pai gastar tanto dinheiro com o casamento, os pais de Walter fossem capazes de tirar mais seis libras ao filho para a comida e bebida que tinham oferecido.

– E quanto é que ele enterrou nas casas dele? – perguntou Gertrude.

– As casas dele?... Que casas?

Gertrude Morel ficou sem pinga de sangue. O marido tinha-lhe dito que a casa onde vivia e a outra ao lado eram suas.

– Estava convencida de que a casa onde moramos... – começou ela.

– Essas casas são minhas, as duas – disse a sogra. – E não estão livres de encargos. Tenho de arranjar maneira de pagar as hipotecas.

Gertrude estava lívida e sem fala. Neste momento era a réplica do pai.

– Então nós devíamos pagar renda – disse friamente.

– O Walter paga-me renda – replicou a mãe.

– E quanto é? – quis saber Gertrude.

– Seis xelins e seis dinheiros por semana – retorquiu a mãe.

Era mais do que a casa valia. Gertrude continuou a olhar em frente de cabeça bem levantada.

– Sorte a sua – disse a mulher, em tom mordaz. – Ter um marido que lhe poupa as preocupações com o dinheiro, e a deixa fazer o que quer.

A jovem manteve-se em silêncio.

Ao chegar a casa, pouco contou ao marido, mas a sua atitude para com ele mudou. Algo na sua alma honrada e orgulhosa ficara cristalizado, duro como rocha.

Quando Outubro chegou, ela só pensava no Natal. Dois anos antes, pelo Natal, tinha-o conhecido. No Natal anterior tinha-se casado com ele. No próximo Natal ia dar-lhe um filho.

Graças à sua natureza afável, depressa travou conhecimento com as vizinhas, com quem passava bons bocados a conversar, e só tinha receio de que a diferença na maneira de falar as levasse a pensar, como a família dele, que ela se estava a dar ares. Deixavam-na sempre tomar a iniciativa de meter conversa, mas gostavam dela.

– A senhora não dança, pois não? – perguntou-lhe a vizinha do lado em Outubro, quando todos falavam na escola de dança que ia abrir por cima da estalagem Brick and Tile, em Bestwood.

– Não... nunca senti a menor inclinação – respondeu Mrs. Morel.

– Veja como são as coisas! E logo foi casar com o seu homem. Sabe que ele é um dançarino famoso?

– Não sabia que era famoso – disse Mrs. Morel a rir.

– Pois fique sabendo que é! Pois se ele até deu aquelas aulas de dança durante mais de cinco anos no Clube dos Mineiros.

– Ah, deu?

– Deu, pois. – A mulher assumiu um ar de desafio. – E a casa estava à cunha todas as terças, quintas e sábados... e muita coisa por lá se passava... pelo menos era o que se dizia...

Nada era mais penoso para Mrs. Morel do que este tipo de conversas com que se via assediada. Nos primeiros tempos, as mulheres não a poupavam, pois, mesmo sem querer, ela estava muito acima de todas elas.

Entretanto, o marido começou a chegar a casa muito tarde.

– Eles agora trabalham até mais tarde, não é? – perguntou ela à lavadeira.

– Não mais tarde qu’o costume, não me parece. Mas param na taberna da Ellen p’ra beberem uma caneca de cerveja e depois ficam à conversa, ora aí tem!... Depois comem o jantar frio... e é bem feita.

– Mas Mr. Morel não bebe.

A mulher deixou cair a roupa que tinha na mão, olhou para Mrs. Morel e continuou no seu trabalho sem dizer uma palavra.

Gertrude Morel passou muito mal quando o filho nasceu. Morel tratou-a bem, o melhor possível. Mas ela sentia-se muito sozinha, longe da família. Agora, sentia-se só na companhia dele, e ainda mais só quando ele estava presente.

O menino nasceu muito pequenino e débil, mas depressa recuperou. Era uma bela criança, de cabelo louro escuro todo aos caracóis e uns olhos azuis, muito escuros, que se foram tornando a pouco e pouco cinzento-claro. A mãe tinha por ele um amor desmedido. Chegara precisamente no momento em que o peso da desilusão lhe era mais difícil de suportar – quando a sua vida começava a ficar tremida e a sua alma desolada e solitária. Ela só tinha olhos para o filho, e o pai sentia ciúmes.

Com o tempo, Mrs. Morel acabou por sentir desprezo pelo marido. Entregou-se ao filho e afastou-se do pai. Ele passara a dar-lhe menos atenção e a novidade de viver em casa dele já passara. Não tinha cabeça, dizia ela amargamente para si própria. Só se preocupava com o presente. Não tinha força de vontade e os seus actos eram só fogo de vista.

Começou então uma batalha entre marido e mulher, uma batalha terrível e sangrenta que só terminou com a morte de um deles. Ela lutava para o fazer assumir as suas responsabilidades, cumprir as suas obrigações. Mas ele era muito diferente dela: a sua natureza era puramente sensual, e ela esforçava-se por torná-la moral, religiosa. Tentava a todo o custo fazê-lo enfrentar a realidade, mas ele, não conseguindo suportar a pressão, perdeu a cabeça por completo.

Quando o bebé era ainda pequenino, o temperamento do pai tornou-se de tal maneira irascível que chegava a ser perigoso. Bastava a criança fazer a mais pequena coisa, para ele começar logo a ralhar. Mais qualquer coisa, e logo as suas mãos rudes de mineiro agrediam o bebé. Nessa altura, Mrs. Morel ficava zangada com o marido dias a fio, e ele deixava-se ficar a beber até tarde pelas tabernas, e ela já não se importava. Porém, quando ele chegava a casa, zurzia-o com sarcasmo.

O fosso que se cavava entre eles levava-o, consciente ou inconscientemente, a ofendê-la com grosserias de que anteriormente não seria capaz. William tinha apenas um ano e começava a andar e a dizer gracinhas. Era uma criança encantadora, conservando ainda os seus caracóis louros de bebé, que começavam agora a escurecer. Gostava muito do pai, que se mostrava carinhoso, indulgente e cheio de paciência com ele e jeito para o entreter, quando estava de maré. Quando se punham os dois a brincar, Mrs. Morel chegava por vezes a pensar qual deles seria o mais infantil.

Morel levantava-se sempre muito cedo, entre as cinco e as seis horas da manhã, fosse ou não dia de trabalho. Aos domingos, levantava-se e fazia o pequeno-almoço. O fogo ficava aceso toda a noite, pois era ateado antes de se irem deitar. Isto é, punham na lareira um grande bocado de carvão, que ia ardendo lentamente até de manhã. Aos domingos de manhã, o menino levantava-se com o pai, e a mãe ficava na cama mais uma hora. Esses eram para ela os momentos mais tranquilos: quando pai e filho brincavam e tagarelavam no andar de baixo.

William tinha só um aninho, e a mãe tinha muito orgulho nele – que bonito que ele era. Ela não tinha grandes possibilidades, mas as irmãs traziam o menino bem vestido. Ao vê-lo com o chapelinho branco de aba revirada enfeitado com uma pena de avestruz, casaquinho branco, e a cabeça emoldurada de fartos caracóis, sentia-se a mãe mais orgulhosa do mundo. Um domingo de manhã, Mrs. Morel deixou-se ficar a ouvir os dois a tagarelar, e acabou por adormecer. Quando desceu, brilhava uma grande fogueira na lareira, a sala estava aquecida, o pequeno-almoço atabalhoadamente colocado em cima da mesa, e Morel sentado no seu cadeirão, encostado à chaminé, com ar tímido. De pé, entre as suas pernas, estava o filho – com a cabeça muito redonda e bizarra, tosquiada que nem uma ovelha – a olhar para ela, espantado; e, numa folha de jornal aberta sobre o tapete, uma miríade de caracóis em forma de meia-lua, luzindo à luz rubra da fogueira como pétalas de malmequer.

Mrs. Morel estacou. Era o seu primeiro filho. Ficou lívida, muda com o choque.

– Então, que tal? – disse Morel, rindo contrafeito.

Ela cerrou os punhos, ergueu-os e avançou para ele. Morel encolheu-se.

– Estou capaz de te matar! Isso é que eu estou! – disse, sufocada de raiva, brandindo os punhos.

– Num queres qu’ele fique uma menina, poi não? – disse Morel, com o medo na voz, baixando a cabeça para não olhar para ela. A vontade de rir desaparecera como por encanto.

A mãe contemplou a cabeça do filho, rapada, coberta de mechas escortanhadas. Pousou-lhe as mãos no cabelo e acariciou-lhe a cabeça.

– Oh... meu menino! – balbuciou. Os lábios tremiam-lhe, o rosto contraiu-se-lhe, e, pegando na criança, agarrou-se a ela a chorar sentidamente. Ela era uma dessas mulheres que não conseguem chorar: a quem chorar dói tanto como dói aos homens. Era como se cada soluço lhe arrancasse um pedaço de si mesma. Morel continuava sentado com os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos entrelaçadas e tão crispadas que os nós dos dedos estavam brancos. Tinha o olhar pregado no fogo, atordoado, mal conseguindo respirar.

A cena finalmente terminou, ela acalmou a criança e levantou a mesa do pequeno-almoço; mas deixou ficar o jornal pejado de caracóis aberto sobre o tapete. Até que o marido se resolveu a apanhá-lo e a deitá-lo para a lareira. Ela entregou-se às suas ocupações de boca fechada e sem fazer barulho. Morel, de orelha murcha, arrastou-se pela casa o dia todo, com um ar muito infeliz, e nesse dia as refeições foram para ele um suplício. Ela falava com ele delicadamente, sem aludir ao sucedido, mas ele sentia que algo chegara ao fim.

Mrs. Morel disse mais tarde que tinha sido um disparate reagir como reagira, pois o cabelo do menino teria de ser cortado mais tarde ou mais cedo, e acabou mesmo por reconhecer que até tinha sido bom ele fazer de barbeiro naquele dia. Porém, ela sabia, tal como Morel, que aquele acto lhe tinha provocado na alma uma transformação radical. A cena perdurou na sua memória para sempre, como o momento mais penoso de toda a sua vida.

Este exemplo de flagrante boçalidade masculina foi a lança que matou o seu amor por Morel. Anteriormente, embora lutasse amargamente contra ele, logo corria atrás dele preocupada, como se tivesse medo de que ele lhe fugisse. Mas agora deixara de recear pelo seu amor: olhava-o como um estranho e a vida parecia-lhe muito mais suportável.

Não obstante, as zangas continuavam. Os seus elevados padrões morais continuavam intactos, herdados de gerações e gerações de Puritanos. Sentia-os agora como um instinto religioso, e comportava-se com ele de um modo quase fanático, porque o amava, ou, pelo menos, o tinha amado. Se ele pecava, ela torturava-o. Se ele bebia e mentia, umas vezes chamava-lhe poltrão, outras valdevinos, mas as chicotadas sucediam-se, impiedosas.

O mal era ela ser demasiado o seu oposto. Não se contentava com o pouco que ele tinha para lhe dar, exigia que ele fosse tudo aquilo que deveria ser. E, assim, ao tentar torná-lo mais nobre do que era possível, destruiu-o. Feriu-se, magoou-se, cobriu-se de cicatrizes, mas sem perder nada da sua dignidade. Além disso, tinha também as crianças.

Ele bebia demasiado, se bem que não mais do que muitos mineiros, e só bebia cerveja, pelo que a sua saúde, embora afectada, nunca o foi com gravidade. Os fins-de-semana eram os seus dias de maiores desmandos. Ia todas as sextas, sábados e domingos para o Clube dos Mineiros, e por lá ficava até à hora de fechar. Às segundas e terças só muito a custo se levantava para sair de casa por volta das dez horas. Às vezes ficava em casa às quartas e quintas à noite, ou saía só por uma hora. E, geralmente, nunca deixava de ir trabalhar por causa da bebedeira.

Mas, embora fosse um operário cumpridor, o salário baixava cada vez mais. Era um fala-barato, um língua de trapos; detestava qualquer forma de autoridade e passava a vida a desrespeitar os capatazes. Era ouvi-lo dizer na taberna do Palmerston:

– O gajo veio à nossa galeria esta manhã e disse: «Sabes, Walter, ist’assim num tá bem. Quando é qu’arranjas estas vigas?» E vou eu e digo: «De qu’é que tás a falar? Qu’é qu’as vigas têm?» «Num tão bem, isto aqui tá mal», diz ele. «Um destes dias, o tecto ’inda vem por aí abaixo.» E vou eu e digo: «Atão o melhor é pores-te em cima duma rocha e segurares o tecto coa cabeça». Ele então perdeu a cabeça e pôs-se a berrar e a praguejar, e os outros gajos todos a rir. – Morel era um bom imitador. Arremedava a voz encorpada e roufenha do capataz, a dar-se ares de bem falante.

– «Num admito faltas de respeito, Walter. Quem sabe mais, tu ou eu?» E vou eu e digo: «Nunca tive oportunidade de ver o qu’é que tu sabes, Alfred. Mas vê lá, não te saia o tiro pela culatra».

E Morel continuava a contar histórias, para gáudio dos companheiros de farra. Algumas eram verdadeiras. O capataz não era um homem culto. Ele e Morel conheciam-se desde miúdos, pelo que, embora não gostassem um do outro, ambos sabiam mais ou menos com o que podiam contar e aceitavam-se mutuamente. Porém, Alfred Charlesworth não perdoava ao seu tarefeiro estas graçolas de taberna. Por conseguinte, e embora Morel fosse um mineiro competente, tendo chegado até a ganhar cinco libras por semana na altura em que casou, começou a apanhar galerias cada vez piores, onde o carvão era fino e difícil de extrair, logo, de baixo rendimento.

Um tarefeiro era um subempreiteiro. A dois ou três tarefeiros era dada uma certa extensão de um filão, que eles tinham de explorar até determinado comprimento, recebendo cerca de três quartas partes por cada tonelada de carvão que extraírem. Daí, tinham de tirar dinheiro para pagar aos trabalhadores, os mineiros propriamente ditos e os carregadores, que eram contratados ao dia, e ainda comprar as ferramentas, o pó, e tudo o que fosse necessário. Se a galeria fosse das boas, e a mina trabalhasse em contínuo, podiam chegar às cem ou duzentas toneladas de carvão e ganhar um bom dinheiro. Se a galeria fosse das más, podiam trabalhar o mesmo, mas ganhar muito pouco. E, em trinta anos, Morel nunca tinha apanhado uma boa galeria. Mas, a fazer fé na mulher, a culpa era toda dele.

Por outro lado, no Verão há pouco trabalho nas minas. Nas manhãs soalheiras, é frequente ver os homens voltarem para casa em grupos por volta das onze ou do meio-dia. Não se vêem os vagões vazios junto às minas. Na encosta, as mulheres olham para o vale enquanto batem os tapetes contra a cerca, e põem-se a contar os vagões que a locomotiva leva pelo vale fora até às minas.

– Sete – dizem umas para as outras – vão pra Minton ou pra Spinney Park. Num dá pra manter uma mina.

E as crianças, quando voltam da escola à hora de almoço, olham para os campos e, ao verem as roldanas paradas nas torres, dizem:

– Minton já parou. O pai vai voltar pra casa.

E há em toda a gente, homens, mulheres e crianças, uma espécie de tristeza que os ensombra, porque o dinheiro vai ser pouco no fim da semana.

Morel devia dar à mulher trinta xelins por semana para as despesas da casa – renda, comida, vestuário, cotas das associações, seguro, médico. Às vezes, quando a semana era farta, dava-lhe trinta e cinco; mas essas ocasiões não chegavam para compensar as vezes em que só lhe dava vinte e cinco. No Inverno, com uma galeria razoável, Morel podia fazer cinquenta ou cinquenta e cinco xelins por semana. Com isso já se dava por contente. Às sextas à noite, sábados e domingos, gastava principescamente, esbanjando até ao último tostão, ou quase. E, de tanto dinheiro, raramente guardava algum para dar aos filhos, ou para lhes comprar duas libras de maçãs. Gastava tudo na bebida. Nos tempos difíceis, a situação tornava-se preocupante, mas ele também não se embebedava tantas vezes, e Mrs. Morel costumava dizer:

– Acho que prefiro quando andamos sem dinheiro, porque quando ele ganha muito não há um minuto de sossego nesta casa.

Se ele ganhasse quarenta xelins, guardava dez; de trinta e cinco, guardava cinco; de trinta e dois, guardava quatro; de vinte e oito, guardava três; de vinte e quatro, guardava dois; de vinte, guardava um xelim e seis dinheiros; de dezoito, guardava um; de dezasseis, guardava seis dinheiros. Não poupava um tostão, nem dava à mulher a oportunidade de poupar. Pelo contrário, era ela muitas vezes que tinha de pagar as dívidas que contraía; não as da taberna, que essas nunca eram cobradas às mulheres, mas quando, por exemplo, comprou um canário, ou uma bengala da moda.

Por alturas da feira anual, o trabalho estava a correr mal e Mrs. Morel esforçava-se por poupar para as despesas do parto. Sentia-se, por isso, indignada quando pensava que o marido andava lá por fora a gastar dinheiro e a divertir-se, enquanto ela ficava em casa, mortificada. Havia dois dias feriados. Na terça de manhã, Morel levantou-se cedo, muito bem-disposto. Mal o dia rompeu, ainda antes das seis horas, ouviu-o descer a escada a assobiar. Assobiava muito bem, com alegria e musicalidade – quase sempre hinos religiosos. Ele tinha sido menino de coro, com uma linda voz, e solista na catedral de Southwell. Bastava ouvi-lo assobiar para se perceber.

A mulher ficou a ouvi-lo traquinar no jardim, enquanto serrava e martelava, sempre a assobiar. Sentia-se protegida e tranquila quando ficava assim a ouvi-lo de manhã cedo, ela na cama e as crianças ainda a dormir, e ele enchendo a manhã ensolarada, feliz, à sua maneira masculina.

Às nove horas, enquanto as crianças, descalças, brincavam em cima do sofá e a mãe lavava a loiça, ele parou de carpinteirar e voltou para casa, de mangas arregaçadas e colete todo aberto. Ainda era um belo homem, com os seus cabelos pretos ondulados e um farto bigode preto. As faces estavam talvez coradas em demasia e havia nele um certo ar enfadado. Mas desta vez estava bem-disposto e foi direito à copa, onde a mulher estava a lavar.

– O quê, tás aí? – disse ele, fanfarrão. – Gira mas é daí pra fora qu’eu quero lavar-me.

– Já agora podes esperar que eu acabe – respondeu ela.

– Ah, posso? E s’eu num quiser?

Esta ameaça brincalhona animou Mrs. Morel.

– Tens bom remédio: vais lavar-te na selha.

– Ah! Ah! Estás hoje muito sirigaita.

E, dizendo isto, ficou parado a olhá-la por uns segundos, afastando-se em seguida, à espera de que ela terminasse.

Quando queria, ainda sabia pôr-se todo galante. Caprichava geralmente no lenço que punha ao pescoço. Desta vez, porém, aperaltou-se todo. Foi tanto o entusiasmo com que se lavou com grande estardalhaço, tal a alacridade com que correu para o espelho da cozinha e, curvando-se, porque o espelho era muito baixo, penteou o cabelo molhado, abrindo um irrepreensível risco ao lado, que Mrs. Morel acabou por se irritar. Escolheu para a camisa um colarinho virado para baixo, pôs a gravata preta e vestiu o fato domingueiro. Estava todo janota e o que o fato não conseguia dar-lhe, dava-lhe o instinto que tinha para tirar partido da sua boa figura.

Às nove e meia, Jerry Purdy veio chamar o amigo. Jerry era o melhor amigo de Morel, mas Mrs. Morel não gostava dele. Era um homem alto e magro, com uma daquelas caras afiladas que parecem não ter pestanas. Caminhava muito hirto, com rígida dignidade, como se tivesse engolido um pau de vassoura, e tinha uma personalidade fria e astuta. Generoso, quando e com quem queria, parecia gostar muito de Morel, a quem mais ou menos servia de mentor.

Mrs. Morel detestava-o. Tinha conhecido a mulher dele, que morrera tuberculosa e fora acometida, perto do fim, de um ódio tão violento pelo marido, que mal ele entrava no quarto, tinha logo uma hemorragia. Nada disto, no entanto, parecia ter abalado Jerry. Agora, era a filha mais velha, uma rapariga de quinze anos, quem tratava da casa pobre onde moravam e cuidava dos irmãos mais novos.

– É um pau de virar tripas, ruim e unhas de fome! – disse Mrs. Morel.

– Nunca em toda a minha vida dei por que o Jerry fosse ruim – protestou Morel. – Cá pra mim, num s’encontra em lado nenhum tipo mais mãos-largas e mais liberal do qu’ele.

– Mãos-largas para ti – retorquiu Mrs. Morel. – Porque para os filhos dele, coitadinhos, a mão está sempre fechada.

– Coitadinhos, uma ova!... Coitadinhos porquê? Sempre gostava de saber.

Mas Mrs. Morel não alargou os comentários sobre Jerry.

O pomo da discórdia chegou e, esticando o pescoço escanzelado, espreitou por cima das meias cortinas da janela da cozinha, dando de caras com Mrs. Morel.

– Bom dia, minha senhora!... O seu marido está?

– Está sim.

Jerry entrou sem ser convidado e ficou parado à porta da cozinha. Não o mandaram sentar, mas ele ficou de pé, fazendo jus aos direitos dos homens e dos maridos.

– Está um belo dia! – disse, virando-se para Mrs. Morel.

– É verdade.

– Esta manhã está-se muito bem lá fora... uma rica manhã para passear.

– O senhor vai então dar um passeio? – perguntou ela.

– É verdade. Fazemos tenção d’ir a Nottingham – respondeu ele.

– Hum!

Os dois homens cumprimentaram-se alegremente; Jerry muito senhor de si e Morel menos afoito, com medo de se mostrar alegre de mais diante da mulher. Mas apertou rapidamente os atacadores das botas, com vigor. Esperava-os um passeio de dez milhas pelos campos, até Nottingham. Tendo subido a encosta a partir das Bottoms, arrostaram alegremente com a passeata matinal. Quando chegaram à taberna Moon and Stars, pararam para beberem o primeiro copo e, depois, pés ao caminho até à taberna Old Spot. Seguiam-se umas penosas cinco milhas de secura, até à Bulwell, onde os esperava uma gloriosa caneca de cerveja amarga. Mas encontraram pelo caminho um grupo de ceifeiros com o garrafão ainda cheio, e quando avistaram a cidade, Morel já ia quase a dormir. A cidade estendia-se pela encosta acima à sua frente, fumegante e difusa na claridade ofuscante do meio-dia, ostentando para sul a crista recortada de pináculos, torres de fábricas e chaminés. Ao atravessarem a última seara antes da cidade, Morel deitou-se à sombra de um carvalho e dormiu a sono solto durante mais de uma hora. Quando se levantou para seguir viagem, sentia-se esquisito.

Almoçaram em Meadows, em casa da irmã de Jerry, e depois partiram em direcção à taberna Punch Bowl, onde se associaram ao entusiasmo que rodeava uma largada de pombos. Morel nunca tinha jogado cartas, achando até que possuíam um certo poder oculto, maléfico; «retratos do diabo», era como ele lhes chamava. Era porém mestre no boliche e no dominó. Aceitou, por isso, o desafio de um homem de Newark para uma partida de boliche. Todos os homens postados ao longo do velho balcão comprido e carcomido fizeram a sua escolha, apostando num ou no outro. Morel despiu o casaco. Jerry segurava o chapéu com o dinheiro das apostas. Os homens sentados às mesas observavam. Alguns levantaram-se e chegaram-se para a frente, de caneca na mão. Morel acariciou a enorme bola de madeira e lançou-a. Derrubou os nove pinos e ganhou meia-coroa, o que o deixou de novo equilibrado.

Às sete da tarde deram-se os dois por satisfeitos e apanharam o comboio das sete e meia, de volta a casa.

Mrs. Morel passou o dia deprimida e descorçoada. Lavou a roupa que pôde, mas não conseguiu fazer mais nada. Foi William quem arrumou a casa.

– Queres que eu faça mais alguma coisa, mãe? – perguntou.

– Não, não há nada que possas fazer... excepto levares a Annie a dar uma voltinha.

– Isso não me apetece.

– Apeteça ou não, tens de ir.

E o garoto lá foi, carregado com a irmã, enquanto a mãe ficava a trabalhar. Estava furioso com ela, por lhe ter empurrado aquele fardo para cima, mas ao mesmo tempo tinha pena da mãe, porque sabia que alguma coisa se passava. E, assim, com a infância dominada pelo amor que tinha à mãe, tentava fazer o melhor que podia.

À tarde não se podia andar nas Bottoms. Toda a gente tinha vindo para a rua. As mulheres, às duas e três, sem chapéu e de avental branco, davam à língua no beco que se abria entre os quarteirões. Os homens, fazendo uma pausa entre duas canecas de cerveja, sentavam-se nos calcanhares, a conversar. O lugar cheirava mal, e os telhados de ardósia luziam no ar morno e seco.

Mrs. Morel levou a filha até ao ribeiro, no meio do prado, a não mais de duzentos metros. A água corria leve sobre pedras e bocados de panelas. Mãe e filha foram para a velha ponte dos rebanhos e debruçaram-se a olhar para a água. Do outro lado do prado, na poça onde mergulhavam as ovelhas, Mrs. Morel avistou as silhuetas nuas de alguns rapazes a saltarem à volta da poça funda e amarelada, ou uma figura cintilante recortar-se de fugida sobre o prado estático e sombrio. Sabia que William estava na poça, e morria de medo que ele se afogasse. Annie estava a brincar à sombra da velha sebe do caminho da encosta, entretida a apanhar bagas de amieiro a que chamava groselhas. A menina necessitava de muita atenção, e as moscas não a deixavam sossegada.

As crianças foram para a cama às sete horas, e ela ainda foi arrumar mais umas coisas.

Quando Walter Morel e Jerry chegaram a Bestwood, sentiram um alívio: livres da viagem de comboio, podiam acabar o dia em beleza. Entraram na taberna do Nelson com a alegria dos viajantes que regressam. Mrs. Morel dizia sempre que o marido não tinha nada a esperar do outro mundo, pois subia do mundo impuro ao purgatório quando voltava da mina, e ascendia directamente ao céu quando entrava na taberna do Palmerston.

Com o arrefecimento nocturno, os jardinzinhos das Bottoms tornavam-se mais perfumados. Mrs. Morel saiu para ver as flores e respirar o ar do entardecer. Mrs. Kirk, a vizinha, não estava em casa, o que era uma pena, pois podiam ter ficado um bocado a conversar. Estava por isso sozinha. As andorinhas negras, a que as crianças chamavam «diabinhos», riscavam o ar para trás e para a frente, como setas, por cima da sua cabeça, voltando para trás na extremidade da casa, metendo-se por baixo dos largos beirais e logo voltando a sair, mergulhando em voo picado entre pios e chilreios que pareciam vir da própria luz e não de ternos passarinhos. Alguém tinha pisado o canteiro dos malmequeres, que estava coberto de brancas pétalas de rosa. Ela baixou-se e limpou-o, endireitando as pequeninas corolas amarelas.

O dia seguinte era dia de trabalho, e os homens ficavam esmorecidos só de pensarem em tal. Alguns já se arrastavam para casa, a pensarem no sono reparador que os ia preparar para a manhã seguinte. Mrs. Morel voltou para dentro ao ouvir os seus cantares dolentes. Deram as nove horas, depois as dez, e o «par» sem aparecer. Algures, na soleira de uma porta, um homem cantava a plenos pulmões, arrastando a voz: «Guia-me, Luz Bendita.» Mrs. Morel indignava-se sempre que ouvia bêbados cantarem este hino quando a pinga lhes dava para a tristeza.

– Como se «Oh, Genoveva» não lhes chegasse... – disse ela. A cozinha estava impregnada de um cheiro a ervas cozidas e a lúpulo. No borralho, fervilhava lentamente uma grande caçarola preta. Mrs. Morel pegou num enorme alguidar de barro vermelho, deitou-lhe no fundo um monte de açúcar branco e, depois, endireitando-se para contrabalançar o peso do seu ventre, começou a despejar a cerveja.

Nesse momento Morel, chegou. Tinha estado muito bem-disposto no Nelson, mas o regresso a casa pusera-o de mau humor – resquícios do mal-estar e da irritação que sentira por ter dormido no chão à hora do calor; além disso, a consciência pesava-lhe à medida que se aproximava de casa. Não se dava conta de estar mal-humorado, mas quando o portão do jardim resistiu à primeira tentativa de o abrir, deu-lhe um pontapé que logo rebentou com o ferrolho. Entrou em casa no preciso momento em que Mrs. Morel estava a vasar a infusão de ervas da caçarola. Cambaleando ligeiramente, deu um encontrão na mesa. O líquido a ferver saltou. Mrs. Morel deu um pulo para trás.

– Meu Deus! – exclamou ela. – Chegares a casa nesse estado de embriaguez!

– Chegar a casa neste estado de quê...? – rosnou ele, de chapéu descaído sobre os olhos.

Num repente, Mrs. Morel ficou a ferver.

– Vá, diz lá que não estás bêbado! – ripostou.

Tinha pousado a caçarola e estava a mexer a cerveja para dissolver o açúcar. Ele apoiou as manápulas com força sobre a mesa e avançou ameaçadoramente para ela.

– «Vá, diz lá que não estás bêbado» – repetiu ele. – Só uma cabra estuporada como tu era capaz de pensar uma coisa dessas.

– Como passaste o dia inteiro a beber, se não estás bêbado às onze da noite... – retorquiu ela, continuando a mexer.

– Num passei o dia a beber... Num passei o dia a beber... aí é que tu t’inganas – disse ele, fora de si.

– Então, parece que me enganei – volveu ela.

– Ah, parece... Ah, parece... Não me digas...

– Sai de casa às nove da manhã, volta à meia-noite. E, além disso, ambos sabemos bem o que tu fazes quando sais com o teu querido amigo Jerry.

– O teu querido amigo Jerry... o quê?... Que história é essa?... Hem?

E avançou para ela, de queixo espetado.

– Para a bebida há sempre dinheiro, mesmo que não chegue para mais nada – disse ela.

– Hoje num gastei nem dois xelins – contrapôs ele.

– Não há-de ser de graça que te embebedas – ripostou ela. – E mais – gritou, tomada de súbita fúria –, se andaste a cravar o teu querido amigo Jerry, é melhor deixá-lo cuidar dos filhos que tem em casa, que bem precisam.

– «É melhor deixá-lo cuidar dos filhos»... Essa agora... Ond’é que vês crianças mais bem tratadas qu’as dele, sempre gostava de saber.

– As minhas, por exemplo... não as tuas, se fosses tu a tratar delas... Um homem capaz de se embebedar de manhã à noite.

– Isso é mentira, isso é mentira – gritou ele, num acesso de raiva, batendo com a mesa.

– ... Que não garante o sustento dos filhos – continuou ela.

– E que tens tu cum isso? – berrou ele.

– Que tenho eu com isso?... Ora essa, tenho e muito... Um homem que me dá uns míseros vinte e cinco xelins por semana para manter a casa... e que se põe ao fresco todo o dia... e só volta à meia-noite...

– Isso é mentira, mulher, isso é mentira!

– ... E que julga que eu vou continuar a poupar e a arranjar maneira de sobreviver, enquanto ele se embebeda e se enfrasca, de passeio até Nottingham...

– Isso é mentira, isso é mentira... cala essa boca, mulher.

A batalha atingira o auge. Cada um deles esquecia tudo o mais, menos o ódio que sentia pelo outro e a luta em que se empenhava. Ela estava tão desvairada e furiosa quanto ele. E a discussão continuou até ele lhe chamar mentirosa.

– Não – gritou ela, tomando o fôlego a custo, mal podendo respirar. – Não admito que me chames isso... tu, o mais desprezível mentiroso que este mundo já viu. – As últimas palavras saíram já arrancadas a um peito sem ar.

– És mentirosa, sim senhora! – gritou ele, desabrido, dando um murro na mesa. – Mentirosa, mentirosa!

Ela empertigou-se, de punhos cerrados.

– Se eu pudesse dava cabo de ti, meu grande bruto, meu cobarde – disse ela, com voz cava, soluçante.

E, na vaga de fúria seguinte, verteu todo o ódio exacerbado que sentia pelo marido. Ele, ripostando, bateu com a mesa no chão, fazendo-a ressoar por toda a casa, enquanto ela, por sua vez, despejava sobre ele todo o seu desprezo e o seu ódio.

– Tu conspurcas esta casa – gritou ela.

– Nesse caso vai-te embora... A casa é minha. Vai-te embora – berrou ele. – Sou eu que trago o dinheiro aqui pra casa, não és tu. A casa é minha, não é tua. Vá, desaparece... Vai-te embora!

– E ia mesmo – gritou ela, lavada em lágrimas, impotente. – Ah, isso é que eu ia, já tinha ido há muito tempo, se não fosse pelas crianças. Quantas vezes já me arrependi de não ter ido há muitos anos, quando só o tinha a ele... – disse, já sem lágrimas para verter, mas com raiva redobrada. – Julgas que foi por ti que fiquei? Julgas que se fosse por ti, hesitava por um minuto?

– Então vai-te! – berrou ele. – Vai-te!

– Não! – disse ela, encarando-o. – Não – disse ela aos gritos. – Não vai ser tudo como tu queres... Não penses que fazes tudo aquilo que queres. Tenho de pensar nas crianças. Meu Deus... – e deu uma gargalhada. – Ia ser bonito se as deixasse ficar contigo.

– Vai-te – gritou ele, sufocado, erguendo o punho. Estava com medo dela. – Vai-te!

– Quem me dera... Como eu ficava contente, como eu ria, meu Deus, se pudesse livrar-me de ti – ripostou ela.

Ele avançou afogueado, com os olhos raiados de sangue, atirou-se a ela e agarrou-lhe os braços. Ela gritou, cheia de medo, lutando para se soltar. Ele, ofegante, caindo um pouco em si, deu-lhe um encontrão, atirando-a contra a porta, e, empurrando-a lá para fora, fechou a porta de seguida com um estrondo. Depois, voltou para a cozinha, atirou-se para cima do cadeirão, enterrou a cabeça entre os joelhos, a estalar de emoção, e deixou-se afundar lentamente no torpor, cedendo à exaustão e à embriaguez.

A lua erguia-se alta e magnífica naquela noite de Agosto. Mrs. Morel, ardendo em fúria, tremia ao ver-se ali fora, sob o luar todo branco que a iluminava e lhe macerava a alma incendiada. Desalentada, ficou por breves instantes a olhar para as grandes folhas cintilantes do ruibarbo, junto à porta. Depois, respirou fundo e desceu o carreiro do jardim, toda a tremer, enquanto a criança se agitava dentro dela. Não conseguia controlar os pensamentos, e assim permaneceu por largo tempo; mecanicamente, recapitulava a última cena uma e outra vez, surgindo certas frases, certos momentos, como ferro em brasa a queimar-lhe a alma: e, de cada vez que repisava esta última hora da sua vida, cada vez o ferro em brasa a torturava, sempre nos mesmos pontos, até a ferida se acender e a dor se apagar e ela, finalmente, voltar a si. Deve ter passado uma boa meia hora neste delírio. Mas logo a noite lhe impôs a sua presença. Receosa, olhou em redor. Tinha ido até ao jardim lateral, passeando-se para cima e para baixo ao longo do muro, rente às groselheiras. O jardim era uma estreita faixa de terra, separado da estrada que cortava transversalmente entre os blocos por uma densa sebe de espinheiros.

Passou rapidamente do jardim de topo para o da frente, onde se sentiu como num golfo imenso de luz branca, com a lua a brilhar do alto, mesmo à sua frente, e o luar a elevar-se das colinas fronteiras, inundando o vale onde as Bottoms se erguiam atarracadas, quase cegando de tanto brilho. Aí, entre soluços e lágrimas, numa reacção de anticlímax, murmurava ininterruptamente:

– Monstro!... Monstro!

Nisto, sentiu qualquer coisa perto dela. Fez um esforço para se controlar e tentar perceber o que tanto lhe perturbava os sentidos. Os lírios brancos, altaneiros, estremeciam ao luar e o seu perfume pesava no ar como uma presença. Mrs. Morel deixou escapar um suspiro de medo, sufocado. Tocou nas pétalas das flores pálidas e enormes, e um arrepio sacudiu-a. Parecia que se abriam ao luar. Meteu a mão na corola branca: o ouro mal se via na ponta dos seus dedos, iluminados pelo luar. Curvou-se para contemplar a corola carregada de pólen dourado, mas só viu uma sombra indistinta. Aspirou o perfume até à alma, quase até entontecer.

Olhou em redor. A sebe cintilava debilmente na escuridão. Dela saíam flores brancas. Em frente, a colina desenhava-se difusa, apertada entre sebes altas e sombrias e irrequieta com os movimentos do gado à luz da lua. Aqui e além, o luar parecia tremer e ondear.

Mrs. Morel encostou-se ao portão do jardim, a olhar lá para fora, esquecida de tudo. Não sabia em que pensava. Tirando uma leve náusea e a consciência da criança que carregava no ventre, todo o seu ser se diluía como perfume no ar pálido e brilhante. Por fim, a criança diluiu-se também com ela no cadinho do luar e, irmanada com as colinas, os lírios e as casas, flutuaram todos em conjunto, como num êxtase.

Quando voltou a si, estava cansada, sonolenta. Languidamente, olhou em volta; os tufos de violetas brancas lembravam arbustos salpicados de roupa a secar; uma borboleta ricocheteou neles e cruzou o jardim. Seguir-lhe os movimentos fê-la despertar. Aspirou o aroma acre das violetas e o ânimo ressurgiu. Subiu o carreiro, parando hesitante junto à roseira branca. O seu perfume era doce, era singelo. Tocou as corolas brancas das rosas, abertas em folhos. O aroma fresco e as folhas frias e aveludadas lembraram-lhe a frescura da manhã ensolarada, de que ela tanto gostava. Mas agora estava cansada e precisava de dormir. Ali fora, no mistério da noite, sentia-se perdida.

Não se ouvia o mais pequeno ruído. Era evidente que as crianças não tinham acordado, ou então já tinham voltado a adormecer. Um comboio apitou no vale, a umas três milhas de distância. A noite era imensa e estranha, estendendo-se até ao infinito na sua vastidão de cinza. E da névoa prateada da penumbra chegavam-lhe aos ouvidos sons roucos e indistintos: um codornizão, ali bem perto; o suspiro rouco de um comboio; homens a gritar ao longe.

O coração amansado voltou a bater rapidamente e ela desceu à pressa o jardim lateral, em direcção às traseiras da casa. Levantou a lingueta suavemente: a porta continuava trancada, barrada à sua passagem. Bateu ao de leve, esperou e bateu de novo. Não queria acordar as crianças nem os vizinhos. Ele devia ter adormecido e não acordava com facilidade. O coração ardia-lhe com vontade de se ver dentro de casa. Agarrou-se ao puxador. Agora já estava frio e podia apanhar um resfriado; e logo agora, no seu estado!

Pôs o avental por cima dos ombros e da cabeça e correu de novo até ao jardim lateral, até à janela da cozinha. Encostando-se ao peitoril, conseguiu vislumbrar por baixo da persiana os braços do marido deitados sobre a mesa, e a cabeça negra apoiada no tampo. Estava a dormir com a cara em cima da mesa. Algo na sua atitude a fazia sentir-se cansada da existência. A candeia ardia, fumarenta – via-se pelo tom acobreado da luz que deitava. Tamborilou os dedos na janela, cada vez com mais força. Parecia que queria partir a vidraça. E ele sem acordar.

Todos os seus esforços eram vãos. Começou a tremer, em parte do contacto com a pedra, em parte de exaustão. Receando pela criança que estava para nascer, pensava no que poderia fazer para se aquecer. Foi até à carvoeira, onde estava um velho tapete da chaminé, que ela para ali tinha trazido na véspera para o trapeiro levar. Colocou-o sobre os ombros. Apesar de muito sujo, sempre a aquecia. Começou depois a subir e a descer o carreiro do jardim, espreitando de vez em quando por baixo da persiana, batendo na janela e dizendo para consigo que a posição forçada em que ele se encontrava acabaria por fazê-lo acordar.

Por fim, passada quase uma hora, bateu devagar, mas persistentemente, na janela. O som, gradualmente, penetrou-o. Quando, desesperada, já tinha parado de bater, viu-o mexer-se e, a seguir, levantar a cabeça, estremunhado. O bater do coração acordava-o dolorosamente para a realidade. Ela batia imperativa na janela. Ele acordou sobressaltado, e ela viu cerrarem-se-lhe os punhos e os olhos faiscarem, sem um pingo de medo. Vinte ladrões que ali estivessem, ele ter-se-ia atirado a eles sem pestanejar. Olhava em volta, estonteado, mas pronto para a luta.

– Abre a porta, Walter – disse ela, friamente.

As mãos dele relaxaram e então lembrou-se do que tinha feito. A cabeça tombou-lhe, contrita, arrependida. Ela viu-o correr para a porta, abrir o ferrolho. Experimentou levantar a lingueta. A porta abriu-se: diante dele estendia-se a noite prateada que ele temia enfrentar depois da luz amarela da candeia. À pressa, voltou para dentro.

Quando Mrs. Morel entrou, viu-o correr para a porta interior, em direcção às escadas. Com a pressa de se escapar dali para fora antes de ela entrar, até tinha arrancado o colarinho, que jazia no chão, com as casas rasgadas. Isto sim, irritou-a. Aqueceu-se e acalmou-se. Esquecida de tudo pelo cansaço, entregou-se às pequenas tarefas que havia para fazer, preparou-lhe o pequeno-almoço, lavou-lhe o cantil, pôs-lhe o fato da mina a aquecer junto à lareira com as botas ao lado, foi buscar um lenço lavado, um saco para o farnel e duas maçãs, espevitou o lume e foi deitar-se. Ele dormia já profundamente. As suas sobrancelhas finas e negras estavam arqueadas numa espécie de rictus de sofrimento e arrogância, entrando pela testa dentro, ao mesmo tempo que as faces descaídas e a boca desdenhosa pareciam dizer: «Não me interessa quem tu és nem o que és, quem manda aqui sou eu».

Mrs. Morel já o conhecia bem de mais para olhar para ele. Enquanto tirava o broche em frente ao espelho, sorriu ligeiramente ao ver o seu rosto todo sujo do pó amarelo dos lírios. Sacudiu-o e foi para a cama. Por algum tempo ainda, a sua mente continuou a faiscar, mas adormeceu antes de o marido acordar do primeiro sono da bebedeira.


II

O NASCIMENTO DE PAUL
E UMA NOVA BATALHA

DEPOIS de uma cena como a última, Walter Morel andou largos dias abatido e envergonhado, mas depressa recuperou a indiferença e brutalidade costumeiras. Notava-se contudo um ligeiro abrandamento, um leve esmorecer da sua autoconfiança. Até fisicamente ele mirrara, sendo visível um certo alquebrar da sua bela figura. Não sendo do tipo atlético, ao perder o porte altivo e imponente, o físico parecia definhar com o quebrar do orgulho e da força de ânimo.

Percebia agora como era dura para a mulher a lida da casa e, com uma solidariedade ditada pelo remorso, apressou-se a ajudá-la. Depois de sair da mina vinha direito para casa e à noite não saía – mas só até chegar a sexta-feira; nessa altura não aguentava mais, mas estava sempre de volta às dez horas, e quase completamente sóbrio.

Também preparava o seu pequeno-almoço. Sendo um homem que se levantava cedíssimo e tinha muito tempo pela frente, não fazia como outros mineiros que obrigavam as mulheres a sair da cama às seis da manhã. Acordava às cinco, às vezes mais cedo, levantava-se de imediato e descia para a cozinha. Quando não conseguia dormir mais, a mulher deixava-se ficar deitada à espera deste momento, como de um tempo de paz. Mas descanso, propriamente dito, só quando ele não estava em casa.

Descia a escada em mangas de camisa e enfiava à pressa as calças da mina, deixadas durante a noite ao borralho para aquecerem. O lume nunca se apagava, porque Mrs. Morel o abafava antes de ir para a cama. E o primeiro som que se ouvia pela manhã era o roçar do atiçador contra a grelha, enquanto Morel remexia as brasas que restavam para pôr a chaleira a ferver, que já ficava cheia de véspera em cima da grelha. A chávena, a faca e o garfo, tudo o que ele precisava, excepto a comida, estavam a postos em cima da mesa, sobre um jornal. Preparava então o pequeno-almoço, fazia o chá, entalava os tapetes debaixo das portas para evitar a corrente de ar, acendia uma bela fogueira e usufruía de uma hora de bem-estar. Assava o presunto na ponta do garfo, deixando pingar a gordura sobre o pão. Em seguida, punha o naco de presunto em cima da grossa fatia de pão e ia cortando lascas com o canivete; depois, deitava o chá no pires e era aquilo a felicidade. Com a família à volta, as refeições nunca eram tão agradáveis. Detestava comer com o garfo, essa invenção moderna que ainda não chegou às classes populares. Do que ele realmente gostava era do seu canivete. E, assim, comia na solidão, sentando-se muitas vezes num banquinho, quando estava frio, com as costas contra a pedra aquecida da chaminé, a comida no guarda-fogo e a chávena no chão quente. Lia a edição da tarde do jornal da véspera, tanto quanto lho permitiam as suas capacidades, soletrando as palavras laboriosamente. Preferia manter as persianas corridas e a vela acesa, mesmo quando já era dia claro. Era o hábito da mina.

Quando faltava um quarto para as seis, levantava-se, cortava duas grossas fatias de pão, barrava-as com manteiga e metia-as no saco branco do farnel. Enchia de chá o cantil de lata. Chá frio, sem leite nem açúcar, era o que lhe sabia bem na mina. Depois, despia a camisa e enfiava a vestimenta da mina, um casabeque grosso de flanela, de decote redondo e mangas curtas.

Em seguida, levava uma chávena de chá à mulher, porque ela estava doente e porque lhe dava na gana.

– Trouxe-te uma pinga de chá, cachopa – dizia ele.

– Não sei para quê, sabes bem que não gosto – respondia ela.

– Vá, bebe, isto põe-te a dormir outra vez num instante.

Ela aceitava o chá. Ele gostava de a ver pegar na chávena e começar a bebericar.

– Aposto que não lhe deitaste açúcar – dizia ela.

– Isso é que deitei, e um bom bocado – respondia ele, ofendido.

– É para admirar – dizia ela, bebendo mais um gole.

Ficava linda com o cabelo desmanchado. E ele adorava ouvi-la resmungar assim. Olhava para ela outra vez e saía sem se despedir. Nunca levava mais de duas fatias de pão com manteiga para a mina, pelo que uma maçã ou uma laranja era para ele um luxo. Ficava todo contente de cada vez que ela lhe deixava uma cá fora. Atava um lenço ao pescoço, calçava as botas, enormes e pesadonas, vestia o casacão de grandes bolsos, onde metia o saco do farnel e o cantil com o chá, e saía para o fresco da madrugada, fechando a porta atrás de si sem a trancar. Adorava as alvoradas. Saía sempre de casa pelas seis horas, embora os trabalhadores não pegassem senão por volta das sete e a caminhada até à mina não levasse mais de meia hora. Metia geralmente pelos campos e muitas vezes, no Verão, parava na tapada à cata de cogumelos, afastando a erva densa e molhada com as pesadas botas de mineiro, à procura dos tortulhos brancos e carnudos que nela se acoitavam. Se calhava encontrar alguns, metia-os cuidadosamente no bolso. Não se pode dizer que lhe custasse deixar o ar frio e límpido da manhã e descer às profundezas. Estava tão habituado que encarava essa rotina como um gesto simples e natural. Por isso, era frequente vê-lo chegar à entrada da mina com um raminho arrancado da sebe entre os dentes, que ia mordiscando pelo dia fora lá em baixo, para manter a boca humedecida, sentindo-se tão feliz como ao ar livre.

Passado algum tempo, quando a chegada do bebé estava mais próxima, costumava dar um arranjo à cozinha, no seu estilo negligente, atiçando as brasas, limpando o fogão e varrendo a casa antes de sair para o trabalho. Nessa altura, com a consciência do dever cumprido, ia lá acima e dizia à mulher:

– Pronto, já limpei a casa. Num tás em condições d’andares praí a traquinar o dia todo. Deixa-te ficar sentada a ler os teus livros. – O que lhe dava imensa vontade de rir, apesar da indignação que nela despertava.

– E então o jantar, faz-se sozinho? – repontava Mrs. Morel.

– Eh lá, do jantar não percebo eu.

– Mas percebias, se ele não te aparecesse na mesa.

– Se calhar... – respondia ele, e abalava.

Quando ela vinha para baixo, encontrava a casa arrumada, mas toda suja, e não descansava enquanto não lhe dava uma boa limpeza. E quando se dirigia ao depósito das cinzas com a pá do lixo carregada, logo Mrs. Kirk, sempre de atalaia, arranjava uma desculpa para aparecer logo a seguir no seu depósito e meter conversa através do tapume de madeira.

– Sempre a cirandar, não é verdade?

– Que remédio – respondia Mrs. Morel, resignada. – É preciso, que se há-de fazer.

Mrs. Kirk era uma mulher magra e nervosa, a atirar para o histérico. Mrs. Morel gostava dela. Juntavam-se as duas, cada uma do seu lado do tapume, de pá na mão, e ali ficavam um bocado a conversar. Era mais ou menos assim:

– Ainda se mata de trabalho – dizia Mrs. Kirk. – O seu homem não lhe dá uma ajudinha? O meu Tom não me dá razão de queixa nesse aspecto.

– Então não dá? – respondia a vizinha. – Ainda esta manhã foi ao meu quarto para me dizer que já tinha feito a limpeza e que eu não precisava de fazer mais nada todo o dia, era só sentar-me e pôr-me a ler.

– Pois é, os homens são mesmo uns paspalhões! – exclamava Mrs. Kirk.

– E eu fui dar com a chaminé cheia de terra e o lixo todo metido debaixo do tapete.

Mrs. Kirk ria-se, enchendo de dentes a cara afilada.

– São todos iguais – acrescentava. – Passam a vassoura e o espanador à pressa por cima das coisas e acham que já fizeram muito.

– E não se ralam com a porcaria que fazem – dizia Mrs. Morel.

– Não se ralam mesmo. O meu Tom é igualzinho.

– Todos iguais – dizia Mrs. Morel.

– Já soube da Mrs. Allsop?

– Não.

– Não? O menino dela já chegou.

– A sério? Quando?

– Anteontem à noite... Depois da trovoada...

– O quê...!

E as duas mulheres riam com gosto.


– Viram o Hose? – gritou uma mulher baixinha do outro lado da rua. Era Mrs. Anthony, um corpo franzino e estranho de cabelos negros, que andava sempre com um vestido de veludo castanho muito justo.

– Não vi, não – disse Mrs. Morel.

– Quem dera que ele apareça. Tenho ali um monte de roupa e pareceu-me ouvi-lo tocar a campainha.

– Falai no mal... Lá vem ele.

As duas mulheres olharam para o fundo do beco. Na extremidade da ruela vinha um homem numa espécie de carripana de outros tempos, debruçado sobre trouxas de tecido de tom esbranquiçado, enquanto o mulherio estendia para ele os braços carregados de roupa. A própria Mrs. Anthony trazia um monte de meias brancas, ainda por tingir, penduradas no braço.

– Fiz dez dúzias esta semana – disse ela a Mrs. Morel, toda orgulhosa.

– Ena... – disse a outra. – Não sei como consegue arranjar tempo.

– Essa agora! – disse Mrs. Anthony. – Quando se quer, arranja-se sempre tempo.

– Pois olhe, eu não sou capaz – disse Mrs. Morel. – E quanto lhe rendem todos esses pares?

– São a dois dinheiros e meio a dúzia – respondeu a outra.

– Safa! – disse Mrs. Morel. – Antes queria morrer de fome a ficar sentada a fazer duas dúzias de meias por dois dinheiros e meio.

– Olhe que se engana – disse Mrs. Anthony. – Fazem-se num instante.


O tal «Hose» aproximava-se, tocando a campainha. As mulheres esperavam por ele à porta dos pátios, com as meias penduradas no braço. O homem, de aspecto grosseiro, brincava com elas, tentava aldrabá-las e chegava a injuriá-las. Mrs. Morel afastou-se, desdenhosa.

Era sinal combinado que, se alguma mulher precisasse de chamar a vizinha, bastava-lhe bater com o atiçador na parede da chaminé. Como as lareiras estavam costas com costas, o barulho era logo ouvido na casa ao lado. Uma manhã, estava Mrs. Kirk a fazer um pudim, e quase desmaiou de susto com o barulho que vinha da chaminé. Com as mãos enfarinhadas, correu para o muro do quintal.

– Chamou, Mrs. Morel?

– Se fizesse o favor, Mrs. Kirk.

Mrs. Kirk pôs-se em cima da sua caldeira, passou para o outro lado da vedação, para cima da caldeira de Mrs. Morel, e correu para junto da vizinha.

– Então, minha querida, como se sente? – gritou preocupada.

– Pode-me ir buscar a Mrs. Bower, por favor? – respondeu Mrs. Morel.

Mrs. Kirk voltou ao quintal, desatou a voz possante e estridente e chamou:

– Ag...gie! Ag...gie!

O apelo ouviu-se de uma ponta à outra das Bottoms. Finalmente, Aggie lá apareceu a correr e foi incumbida de ir chamar Mrs. Bower, enquanto Mrs. Kirk ficava ao pé da vizinha, deixando o pudim a meio.

Mrs. Morel foi deitar-se na cama. Mrs. Kirk levou Annie e William para sua casa e deu-lhes o almoço. Mrs. Bower, gorda e gingona, assenhoreou-se do comando das operações.

– Pique um bocado de carne para o jantar do patrão e faça-lhe um pudim de maçã – disse Mrs. Morel.

– Hoje, ele pode bem passar sem o pudim – disse Mrs. Bower. Morel não era geralmente dos primeiros a parecer no fundo da mina, pronto para sair. Alguns iam para lá antes das quatro, quando soava o apito de despegar. Mas Morel, cuja galeria, além de pobre, ficava nesta altura a cerca de milha e meia do fundo, costumava continuar a trabalhar até o primeiro colega parar, e só então parava também. Nesse dia, porém, estava morto por chegar ao fim. Às duas horas olhou para o relógio, à luz da vela verde – a galeria onde se encontrava era segura – e às duas e meia voltou a olhar. Estava ocupado a cortar um bocado de rocha que iria interferir com o trabalho do dia seguinte. Sentado nos calcanhares ou de joelhos, ia desferindo violentos golpes na rocha com a picareta e dizendo «Zás!...Zás!»

– Já acabaste, pá? – gritou Barker, o outro mineiro.

– Acabar... Só quando o mundo acabar! – resmungou Morel.

E continuou a bater. Estava cansado.

– Este trabalho dá cabo da gente – disse Barker.

Mas Morel estava demasiado irritado, sem paciência para responder. Só batia e cortava com quanta força tinha.

– O melhor é deixares isso, Walter – disse Barker. – Amanhã também é dia. Não precisas de ficar a deitar os bofes pela boca.

– Amanhã não faço tenções de pôr as mãos nesta m... – gritou Morel.

– Pronto, se tu não puseres, alguém há-de pôr – disse Israel. Mas Morel continuou a bater.

– Eh, vocês aí, toca’andar – gritaram os homens que vinham da galeria mais próxima.

E Morel sempre a bater.

– Tu depois apanhas-me – disse Barker, indo-se embora.

Depois de o outro partir e de ficar sozinho, Morel foi acometido de um acesso de raiva. Tinha-se esfalfado e não tinha conseguido acabar a empreitada. Levantou-se, alagado em suor, atirou a ferramenta para o chão, enfiou o casaco, apagou a vela, pegou na lanterna e foi-se embora. Ao longo da galeria principal, as luzes dos outros homens dançavam de um lado para o outro e ressoavam ecos de muitas vozes. Ainda era uma longa e penosa caminhada debaixo do chão.

Sentou-se ao fundo do poço da mina, onde a água não parava de pingar em grossas gotas. Os mineiros, em grande algazarra, concentravam-se à espera da sua vez de subirem. Morel respondia de mau humor ao que lhe diziam.

– Tá a chover, pá – disse o velho Giles, que tinha recebido a informação de lá de cima. A Morel restava-lhe um consolo: tinha o seu velho chapéu-de-chuva, de que tanto gostava, à espera dele na arrecadação das lanternas. Chegou finalmente a sua vez, sentou-se na cadeirinha e num instante chegou à superfície. Entregou a lanterna e recebeu o chapéu-de-chuva, que tinha comprado um dia num leilão por um xelim e seis dinheiros. Ficou parado à beira do poço da mina, por um momento, a olhar. A chuva caía cinzenta sobre os campos. Os vagões estavam carregados de carvão molhado, brilhante. A água escorria pelos vagões por cima das letras a branco C. W. & Co. Os mineiros, indiferentes à chuva, caminhavam pelo trilho e pela encosta acima, como uma hoste tristonha e pardacenta. Morel abriu o chapéu-de-chuva e meteu pés ao caminho, entretido com o tamborilar das gotas sobre o pano.

Os mineiros seguiam pela estrada em direcção a Bestwood, molhados, cinzentos e enfarruscados, mas as suas bocas vermelhas não paravam de falar com animação. Morel ia também com um grupo, mas de boca fechada. Limitava-se a franzir a testa, mal-humorado. Muitos foram os que entraram na taberna Prince of Wales ou na da Ellen, mas a má disposição de Morel ajudou-o a resistir à tentação, e seguiu o seu caminho debaixo das ramadas gotejantes que caíam por cima do muro do parque, descendo por fim a encosta lamacenta em Greenhill Lane.

Mrs. Morel estava deitada, a ouvir a chuva a cair, o ruído cadenciado dos pés dos mineiros que vinham de Minton, as suas vozes e o bater da cancela do caminho da encosta de cada vez que passavam.

– Há cerveja aromatizada atrás da porta da despensa – disse ela. – Mr. Morel há-de querer um copo quando chegar, se não parar pelo caminho.

Mas, como ele se atrasasse, julgou que tivesse parado na taberna para fugir à chuva. Ele queria lá saber dela ou da criança. Ela passava sempre muito mal quando as crianças nasciam.

– O que é? – perguntou ela, sentindo-se quase a morrer.

– É um rapaz.

Isso, de certa maneira, confortou-a. A ideia de dar à luz filhos homens aconchegava-lhe o coração. Olhou para o menino. Tinha olhos azuis, o cabelo louro e farto e era magrinho. Apesar de tudo, amava-o com todas as suas forças. Tinha-o na cama ao seu lado.

Morel, sem suspeitar de nada, subiu o carreiro do jardim, cansado e irritado. Fechou o chapéu-de-chuva e pô-lo a escorrer no lava-loiças. Em seguida, sacudiu as botas na cozinha. Mrs. Bower assomou-se à porta do corredor.

– Sim, senhor – disse ela –, ela lá está, e pior não podia estar... É um rapaz.

O mineiro resmungou qualquer coisa, pousou o saco do farnel vazio e o cantil de lata em cima do armário da cozinha, regressou à copa para pendurar o casacão, voltou para a cozinha e deixou-se cair pesadamente na cadeira.

– Não há nada que se beba? – perguntou.

A mulher foi à despensa. Ouviu-se uma rolha saltar. A mulher, com ar de poucos amigos, colocou a caneca em cima da mesa diante de Morel. Ele bebeu, deu um soluço de satisfação, limpou os longos bigodes à ponta do lenço do pescoço, bebeu mais, deu novo soluço e deitou-se para trás na cadeira. A mulher não lhe disse mais nada. Pôs-lhe o jantar na mesa e voltou para cima.

– Era Mr. Morel? – perguntou Mrs. Morel.

– Já lhe pus o jantar – respondeu Mrs. Bower.

Ele sentou-se, com os cotovelos em cima da mesa, e começou a comer, não sem antes se queixar por Mrs. Bower não ter posto uma toalha na mesa e lhe ter dado um prato dos pequenos, em vez de um prato raso grande. Ter a mulher de cama e ter-lhe nascido mais um filho era o que menos lhe importava. Estava cansado, queria comer, queria estar sentado com os cotovelos apoiados em cima da mesa, e não lhe agradava ver Mrs. Bower a andar por ali a cirandar. Ainda por cima, a fogueira estava pequena de mais para o seu gosto.

Quando acabou de jantar, deixou-se ficar sentado por uns bons vinte minutos. A seguir, foi fazer uma grande fogueira. Só então subiu a escada, só com as meias nos pés, e, sem vontade nenhuma, foi ver a mulher. Bem lhe custava encará-la naquele momento, exausto como estava, com a cara toda suja e preta do suor. A camisola já tinha secado, e ensopado a transpiração. Enrolado ao pescoço, um lenço de lã imundo. Deixou-se ficar, por isso, aos pés da cama.

– Bem, então com’é que te sentes? – perguntou.

– Isto passa – respondeu ela.

– Hum.

Estava sem saber o que dizer. Sentia-se cansado e toda esta confusão era um estorvo para ele. Era como se não soubesse onde estava.

– Um rapaz, dizes tu – disse ele, titubeante.

Ela puxou o lençol para baixo e mostrou-lhe o menino.

– Deus o abençoe! – murmurou ele. Ela riu-se, ao vê-lo dar assim a bênção, sem convicção, por mera rotina, fingindo uma emoção paternal que ainda não sentia.

– E, agora, vai-te embora – disse ela.

– Vou sim, cachopa – respondeu ele, dando meia volta.

Ao ver-se dispensado, apeteceu-lhe beijá-la antes de sair, mas não se atreveu. A ela não lhe teria desagradado que ele a beijasse, mas não lho queria dar a entender. Só respirou de alívio quando o viu sair do quarto, deixando atrás de si um vago cheiro a lama da mina.

Mrs. Morel recebia diariamente a visita do pároco da Congregação. Mr. Heaton era jovem e muito pobre. A mulher tinha morrido ao dar à luz o primeiro filho, deixando-o sozinho no presbitério. Muito tímido, era formado por Cambridge e um fraco pregador. Mrs. Morel gostava dele e ele tinha por ela um grande apreço, conversando com ela durante largas horas quando ela andava bem. Foi até escolhido para padrinho do menino.

A mãe, na cama, tinha o pensamento nos outros filhos. Como não tinha vida própria, passando o dia ocupada de manhã à noite a limpar, cozinhar, tratar das crianças e costurar, tinha de pôr de lado a sua própria existência, investir nos filhos, que eram, por assim dizer, o seu banco. Era neles que pensava, era por eles que esperava, sonhando com o que seriam um dia mais tarde, com ela como motor, a empurrá-los para a vida. William já era para ela como um amante. Se ela tinha nevralgias, que frequentemente a atacavam, e ia fazendo a lida da casa pálida e em silêncio, logo ele lhe perguntava:

– Está com dores de dentes, mãe?

– Estou.

– E é muito mau?

E ela ria-se, apesar da dor. Às vezes, porém, quando estava a amamentar o bebé, a dor era tão intensa que mal se podia mexer. Nessas alturas, era ver o filho mais velho deitado no chão da sala da frente, a chorar sozinho, sentido, e quando o pai perguntava:

– Que tens tu, catraio? – logo ele respondia:

– A minha mãe está com dores de dentes.

– Ora esta – dizia Mrs. Morel ao ouvi-lo. – Não é a ti que te dói, meu pateta, porque choras?

William não gostava do bebé.

– É tão feio, mãe – dizia ele.

– Porquê? – perguntava a mãe.

– Está sempre a fazer caretas – respondia William.

Então, Mrs. Morel dava um beijo no bebé. Tinha uma ruga bem peculiar na testa, como se alguma coisa tivesse chocado a sua minúscula consciência ainda antes de nascer. Quando Mrs. Morel olhava para o menino, algo lhe apertava o coração, embora o bebé fosse perfeitamente saudável, e eram muitas as vezes em que se sentava a cantar-lhe canções de embalar.

– Ele não percebe nada, porque lhe está a cantar? – dizia William.

– Mas ele gosta do barulho, tenho a certeza – dizia a mãe, rindo para o bebé com aquele calor especial que lhe brilhava nos olhos azuis, mordiscando-lhe os dedinhos ao de leve, enquanto William assistia, furioso.

De vez em quando, o pároco ficava para o chá. Nessas ocasiões, ela servia o chá mais cedo, ia buscar as suas melhores chávenas, as que tinham um vivo verde na borda, e pedia a Deus que Mr. Morel não chegasse cedo de mais. Na verdade, nem se importava que ele parasse na taberna a tomar uma cerveja. Tinha sempre dois almoços para fazer, pois achava que as crianças tinham de comer a refeição principal ao meio-dia, ao passo que Mr. Morel comia a dele às cinco horas. Por isso, Mr. Heaton pegava no bebé enquanto Mrs. Morel fazia uns pastéis ou descascava batatas, e, sem tirar os olhos dela, ia conversando sobre o seu próximo sermão. As suas ideias eram fantásticas, irreais, e ela, com toda a perícia de que era capaz, fazia-o descer à terra. Desta feita, o sermão era sobre as Bodas de Canaã.

– Quando Ele transforma a água em vinho, em Canaã – disse o pastor – isso é um símbolo de que a vida quotidiana dos noivos, e até mesmo o seu sangue, até aí desinspirado como a água, possuía agora espírito, como o vinho, porque quando o amor chega, toda a parte espiritual do homem se transforma, fica impregnada do Espírito Santo, e quase a própria forma se altera.

Mrs. Morel pensou para consigo:

«Pois é, coitado, a mulher morreu e ele agora reduz o seu amor ao Espírito Santo.»

– Não – disse ela em voz alta. – Não reduza as coisas a símbolos. Diga antes: «Era uma boda e o vinho acabou-se. O pai da noiva estava aflito porque não tinha mais nada para dar de beber aos convidados, a não ser água; naquele tempo não havia chá nem café, apenas vinho. E com que cara ia ele ficar, vendo toda aquela gente sentada à volta da mesa com copos de água à sua frente... O dono da casa e a mulher estavam envergonhadíssimos, a noiva inconsolável e o noivo zangadíssimo. Jesus viu-os a conferenciar com ar preocupado, e sabia que eram pobres, simples trabalhadores rurais, provavelmente. E, então, pensou: Que pena! Um casamento estragado. E tratou de fazer aparecer o vinho o mais depressa que pôde.» E pode ainda acrescentar: «O vinho não é como a cerveja, não embebeda tanto. E no Oriente as pessoas nunca se embebedam. É por embebedar que a cerveja é uma coisa tão má.»

O pobre homem não tirava os olhos dela. Queria tanto dizer que o amor dos homens é a presença do Espírito Santo, que é Ele que torna os amantes divinos e imortais. Mas Mrs. Morel insistia em que era preciso tornar a Bíblia real aos olhos do povo, e que só de vez em quando devia introduzir bocados do seu discurso. Estavam os dois animadíssimos e felizes. Nisto, chegou William.

– Valha-me Deus! – exclamou Mrs. Morel. – Já é assim tão tarde?

Colocou a chaleira ao lume, e pôs a mesa à pressa com a única toalha limpa que tinha, a desejar que o marido não chegasse cedo a casa. William e Annie, cada um com a sua fatia de pão com manteiga, foram brincar para a rua. Para o chá, havia rabanetes, compota e doce de laranja. Tudo esmerado e irrepreensível. Mrs. Morel estava nas suas sete quintas, por poder aconselhar o seu pároco sobre o sermão que ia proferir e por tomar chá com um cavalheiro que lhe servia o pão com manteiga e esperava que ela começasse.

Iam a meio da primeira chávena quando ouviram o arrastar das botas do mineiro.

– Valha-me Deus! – exclamou Mrs. Morel involuntariamente.

O pastor ficou para morrer. Morel entrou. Não estava para brincadeiras. Com um ligeiro inclinar da cabeça, disse «B’tarde» ao padre, que se levantou para lhe apertar a mão.

– Não – disse Morel, mostrando-lhe a sua. – Olhe pra isto! Num vai querer apertar uma mão como esta, ou vai? Suja como está, da pá e da picareta.

O pastor corou, sem saber o que fazer, e sentou-se outra vez. Mrs. Morel levantou-se e levou para a cozinha a caçarola fumegante. Morel despiu o casaco, puxou a sua cadeira de braços para a mesa e sentou-se pesadamente.

– Está cansado? – perguntou o padre.

– Cansado?... Bem pode dizê-lo – replicou Morel. – O senhor num sabe o qu’é estar cansado c’mo eu tou.

– Pois não – respondeu o padre.

– Olhe pra isto – disse o mineiro, mostrando-lhe os ombros da camisola. – Agora já tá quase seca, mas memo assim vê-se bem como tá ensopada de suor. Or’apalpe.

– Por amor de Deus! – exclamou Mrs. Morel. – Mr. Heaton não há-de querer mexer nessa camisola imunda.

O padre estendeu a mão devagar.

– Não, se calhar não quer – disse Morel. – Mas, queira ou num queira, é todo suor qu’eu suei. E todos os dias a minha camisola fica assim a pingar. Então, ’nhã senhora, num se dá de beber a um homem quando ele chega a casa derreado da mina?

– Sabes bem que já bebeste a cerveja toda – disse Mrs. Morel, servindo-lhe o chá.

– E num havia mais à venda? – E, depois, voltando-se para o padre: – Um homem fica tão carregado de pó, percebe, tão enfarruscado numa mina de carvão, que precisa duma bebida quando chega a casa.

– Sem dúvida – concordou o padre.

– Mas é certo e sabido que fica a ver navios – disse Morel.

– Há água... e há chá – disse Mrs. Morel.

– Água... Não é a água que lhe vai desentupir a goela.

Encheu o pires de chá, soprou, sorveu-o por baixo do bigodão preto e suspirou. A seguir, encheu o pires novamente e pousou a chávena em cima da mesa.

– Ai a minha toalha! – disse Mrs. Morel, colocando a chávena em cima de um prato.

– Um homem que chega a casa cansado com’eu tou quer lá saber das toalhas – disse Morel.

– É uma pena! – exclamou Mrs. Morel, sarcástica.

A sala estava impregnada de um forte cheiro a carne cozida com legumes e às roupas do mineiro.

Morel inclinou-se para o pastor, de bigode espetado para a frente e a boca vermelha sobressaindo na cara toda preta.

– Mr. Heaton – disse ele – um homem que passou o dia c’m’eu passei naquele buraco negro, a bater numa parede de carvão... sim senhor... inda mais dura qu’aquela parede...

– Não precisa de se queixar tanto – completou Mrs. Morel.

– Num precisa... Ah, num precisa? Sabemos bem que tu é que num queres ouvir as verdades. – E, depois, virando-se para o padre: – ... chega a casa tão cansado que nem sabe com’ há-de estar. – Olhou para a comida, no prato à sua frente. – Sim senhor, cansado de mais até pra comer a janta, é isso mesmo. – E pousou os braços negros, do carvão, em cima da toalha branca.

– Por Deus, homem, olha que a toalha é limpa! – exclamou Mrs. Morel sem se conter. Era a única toalha limpa que tinha.

– Será que tenho de ir comer o jantar prò pátio, como um cão? – berrou ele.

– Ninguém falou em ires para o pátio – repontou a mulher friamente.

Ele conservou os braços em cima da toalha.

Quando um homem passa um dia inteiro a bater na rocha dura com uma picareta, Mister Heaton, fica cos braços tão cansados que nem sabe o que lhes há-de fazer.

– Eu sei – disse o padre.

Para ele, o mineiro era uma espécie de bicho raro.

– A tua cadeira tem braços – disse Mrs. Morel.

– Tinhas de vir meter a colherada, num tinhas? – disse o marido.

Ela bem gostaria de dizer também como ela tinha de trabalhar que nem uma escrava. O mineiro comia com a faca, enfiando a comida na boca e mastigando ruidosamente. Até fazia aflição. Aquele homem não tinha consideração por ninguém. Daí a pouco, pousou a faca.

– Mr. Heaton – disse ele – o qu’é que m’aconselha pràs dores de cabeça?

– Penso que a cáscara-sagrada... – titubeou o pastor.

– Diga-lhe que beba menos cerveja e tenha mais cuidado com o fígado – alvitrou Mrs. Morel.

– «Que beba menos cerveja!» – repetiu Morel. – Esta é boa! A culpa é sempre da cerveja! Um homem bebe um copito, Mr. Heaton, e ela nunca mais se cala.

– Quem me dera que fosse só um copito – disse Mrs. Morel.

Odiava o marido porque, sempre que havia espectadores, gostava de dar espectáculo. William, sentado com o bebé ao colo, odiava-o com o ódio que uma criança sente pelo fingimento e pela maneira brutal como ele tratava a mãe. Annie nunca gostara do pai, e limitava-se a evitá-lo.

Quando o pastor se foi embora, Mrs. Morel olhou para a toalha.

– Que bela porcaria! – disse ela.

– Julgas que me vou sentar cos braços caídos, só porque convidaste um padre para tomar chá contigo? – bradou ele.

Estavam ambos furiosos, mas ela não respondeu. O bebé começou a chorar, e Mrs. Morel, ao retirar do lume a caçarola, bateu sem querer na cabeça de Annie, que se pôs a choramingar, e Morel desatou aos berros, a ralhar com ela. No meio de todo este pandemónio, William olhou para o grande painel de azulejo colocado sobre a chaminé e leu, de forma bem audível:

– «Deus Abençoe Esta Casa.»

Ao ouvir isto, Mrs. Morel, que tentava acalmar o bebé, deu um salto, precipitou-se para o filho e disse, puxando-lhe as orelhas:

– Não te metas!

Depois, sentou-se e começou a rir, até as lágrimas lhe rolarem pelas faces, enquanto William dava um pontapé no banco onde tinha estado sentado, e Morel vociferava:

– Num vejo o qu’é que te dá tanta vontade de rir.

Foi mais ou menos por esta altura que Mrs. Morel destruiu a autoridade do marido. Até àquele momento, tinha-se sentido muito sozinha para se afastar dele. Mas William estava a crescer e todo o seu afecto ia para a mãe. Annie também estava contra o pai. E agora, finalmente, o novo bebé. Mrs. Morel ficara a odiar o marido no ano que antecedera o seu nascimento. Eram pobres e Morel era perverso. Tinha-se envolvido com um grupo de amigos, um dos quais o tal Jerry, que achavam que um homem que trabalhava devia guardar o dinheiro que ganhava para se divertir como muito bem lhe apetecesse. Costumavam até comparar os vários graus de submissão das suas mulheres, e Morel achava que a dele não estava suficientemente domesticada. Depois de uma noite de conversa em que Jerry o tinha aconselhado a não aturar imposições de cabra nenhuma, sim, afinal que raio de homem era ele? – gritou-lhe ao chegar a casa:

– Hei-de fazer-te tremer só de ouvires o som dos meus passos.

Frase que ficara na história para ela. Tinha-se sentado, a rir, até achar graça à ideia, enquanto ele continuara de pé, a estoirar de raiva e ignomínia. Então ele, para lhe pagar na mesma moeda, passara a dar-lhe o menos que podia para o sustento, a beber o mais que podia e a dar-se com homens que o embruteciam a ele e à imagem que fazia das mulheres. Depois, ela pensou que a única alegria dele eram as crianças, e pôs-se ao lado delas contra ele.

Uma noite, logo após a visita do pároco, sem coragem para suportar outra cena do marido, pegou em Annie e no bebé e foi sair. Morel tinha dado um pontapé em William e a mãe jamais lhe perdoaria.

Atravessou a ponte por onde passava o rebanho e um canto do prado, até ao campo de críquete. Os prados pareciam uma ampla extensão luminosa e amadurecida de crepúsculo, perpassada pelo sussurro dos moinhos distantes. Chegada ao campo de críquete, sentou-se num banco debaixo dos amieiros e deixou-se ficar a contemplar o cair da noite. Diante dela, firme e plano, estendia-se o grande campo verde de críquete, como o leito de um mar de luz. Havia crianças a brincar à sombra já densa do pavilhão. Lá no alto, as gralhas, em bando, crocitavam de regresso aos ninhos num céu suavemente entretecido. Curvando largo, mergulharam rumo ao clarão dourado, crocitantes e rodopiantes como flocos negros num lento vórtice, em direcção a uma moita que se erguia como bossa negra na pastagem.

Estavam alguns homens a jogar, e Mrs. Morel ouvia o bater da bola e vozes másculas que subitamente se elevavam; discernia brancas silhuetas masculinas que mudavam silenciosamente de lugar sobre o relvado, já coberto das sombras incandescentes do sol-pôr. Ao longe, na granja, as medas de feno tinham uma face iluminada e as restantes negro-cinza. Uma carroça carregada de molhos de feno balançava mansamente à luz que a pouco e pouco se extinguia.

O sol punha-se. Nas tardes límpidas, os montes do Desbyshire incendiavam-se do vermelho-rubro do poente. Mrs. Morel ficou a ver o sol escorregar no céu radioso, deixando atrás de si uma suave rosácea arroxeada, enquanto o ocaso se cobria de vermelho, como se todas as labaredas para lá tivessem convergido, abandonando a campânula azul imaculada. Por um instante, as bagas dos freixos cintilaram incandescentes entre a folhagem escura. Alguns molhos de espigas, encostados a um canto do alqueive, ganharam vida, e ela imaginou-os curvando-se numa vénia; talvez o seu filho viesse a ser um José. A oriente flutuava um poente espelhado de tons róseos, em contraste com o céu rubro a ocidente. As imponentes medas de feno espalhadas pela encosta incendiada arrefeceram.

Este era para Mrs. Morel um daqueles momentos de quietude em que as pequenas mágoas se esfumam e a beleza das coisas se impõe, momentos que lhe davam paz e força de ânimo para olhar dentro de si. De quando em vez, uma andorinha passava perto. De quando em vez, Annie chegava com uma mão-cheia de bagas de freixo. E o bebé, inquieto ao colo da mãe, estendia as mãozinhas para agarrar a luz.

Mrs. Morel contemplava-o. Temera a vinda deste filho como uma catástrofe, dado o que sentia pelo marido, e agora era estranho o que sentia pelo menino. O coração apertava-se-lhe pela criança, quase como se ele fosse doente ou malformado, e, no entanto, parecia bem saudável. Mas ela não podia deixar de reparar no modo peculiar como o bebé franzia a testa, nem no seu olhar peculiarmente carregado, como se tentasse decifrar uma sensação de dor. Quando olhava para as pupilas negras e circunspectas do menino, sentia um peso esmagar-lhe o coração.

– Até parece que está a pensar nalguma coisa... e coisa triste – disse Mrs. Kirk.

De súbito, ao olhar para ele, o peso que a mãe sentia no coração desfez-se em dor sentida. Inclinou-se sobre o filho e as lágrimas escorreram-lhe breves do coração. O menino esticou os dedos.

– Meu cordeirinho! – disse ela, chorando baixinho.

E então, nesse preciso momento, sentiu bem fundo na alma que ela e o marido eram culpados.

O menino erguia os olhos para ela. Olhos azuis como os dela, mas com um olhar pesado e fixo, como se tivesse compreendido qualquer coisa que lhe atingira a alma duramente.

Embalava nos braços o menino. Os seus profundos olhos azuis, sempre pregados nela, sem pestanejar, pareciam apelar aos seus mais íntimos pensamentos. Já não amava o marido; não tinha desejado esta criança, e o menino ali estava, nos seus braços, entrando-lhe no coração. Era como se o cordão umbilical que tinha ligado o seu corpinho frágil ao dela nunca tivesse sido cortado, transportando de si para o bebé uma corrente do mais intenso amor. Apertou-o contra o peito e contra o rosto. Havia de recompensá-lo com todas as suas forças, com toda a sua alma, por tê-lo trazido ao mundo indesejado. Mas agora, que viera, amá-lo-ia ainda mais, transportá-lo-ia no seu amor. Aqueles olhos perspicazes atemorizavam-na, isso era evidente. Saberia ele tudo acerca dela? Teria ele escutado enquanto repousava junto ao seu coração? Seria aquele olhar reprovação? O medo e a dor deixavam-na sem pinga de sangue.

Reparou de novo no sol, repousando rubro na crista da colina, à sua frente. Subitamente, pegou no menino e elevou-o no ar.

– Olha! – disse ela. – Olha bem, meu amor!

E, num gesto quase de alívio, esticou os braços, com o menino suspenso, na direcção do sol carmim e palpitante. Viu-o erguer o punho pequenino e aconchegou-o de novo ao peito, envergonhada da vontade que sentira de o devolver ao sítio de onde viera.

– Se sobreviver – pensou – que será dele... o que virá a ser?

O seu coração pulsava ansioso.

– Vou chamar-lhe Paul – disse ela, sem mais nem menos, sem saber porquê.

Pouco depois voltou para casa. Uma sombra sedosa estendia-se sobre o verde profundo dos prados, tudo cobrindo.

Tal como suspeitava, veio encontrar a casa vazia. Mas, às dez horas, Morel voltou, e aquele dia pelo menos acabou em paz.

Walter Morel andava sobremaneira irascível por esta época. O trabalho parecia esgotá-lo, e quando chegava a casa tratava mal toda a gente. Era o lume que estava fraco de mais, ou o jantar que não prestava, tudo pretextos para ralhos; se os filhos se punham a tagarelar, gritava com eles de uma maneira que punha a mãe a ferver e os fazia odiá-lo.

– Não precisas de gritar com eles dessa maneira – dizia Mrs. Morel. – Aqui ninguém é surdo.

– ‘Tão aqui ‘tão a levar um pontapé – berrava ele.

Se, por acaso, enquanto se estava a lavar na cozinha, alguém entrava ou saía, logo gritava: – Fechem-m’essa po-o-rta-a-a! – e fazia-o tão alto que se ouvia em todo o bairro.

– É uma pena ser tão bruto! – disse Mrs. Morel em voz baixa.

– Num quero apanhar nenhuma pontada e ficar a contas coas costelas por causa de ninguém! – berrou ele. Sempre que se zangava, ninguém o calava.

– Santo Deus, homem – disse Mrs. Morel. – Não há um minuto de sossego quando estás em casa.

– Poi não, isso sei eu. E também sei que só tás bem quando me vês pelas costas.

– Tal e qual – retorquiu ela calmamente, entredentes.

– Ah, eu sei... sei muito bem o que tás pr’aí a resmungar. Só tás satisfeita quando me vês no fundo da mina, longe de ti. O que tu querias era que me prendessem lá dentro como fazem aos patrões.

– Tal e qual – disse novamente Mrs. Morel, em surdina, voltando-lhe as costas, de boca fechada.

Ele disparou porta fora que nem uma seta, espetando a cabeça para a frente, com raiva e determinação.

– A c... vai-mas pagar! – disse ele, referindo-se à mulher.

Às onze horas, ainda não tinha voltado. O bebé estava maldisposto e agitado, desatando a chorar sempre que a mãe o deitava no berço. Mrs. Morel, morta de cansaço e ainda muito fraca, estava de cabeça perdida.

– Quem dera que o monstro viesse para casa – disse ela, sem forças, de si para si.

Por fim, a criança adormeceu-lhe nos braços, mas ela estava cansada de mais para ir deitá-la no berço.

– Desta vez não digo nada, venha ele a que horas vier – disse ela. – Só me vou arreliar ainda mais. Não vou dizer nada. – Porém, sabia que não podia confiar em si própria. Vezes sem conta dissera o mesmo, decidida a dominar-se, e a ira acabara por explodir. Com todo o ódio de que o cansaço era capaz, desejava pelo menos não o ver quando ele chegasse a casa. A razão por que não ia para a cama, sem querer saber da hora a que ele chegava, era só uma – não ser outra mulher a contar-lhe.

– Se sei que ele faz alguma coisa, fico capaz de explodir – disse ela, acabrunhada, para si própria.

– Soltou um suspiro ao ouvi-lo chegar, como se isso lhe fosse penoso de suportar. Ele, para se vingar, vinha quase a cair de bêbado. Ela conservou a cabeça inclinada sobre o bebé quando ele entrou, e nem para ele olhou. Mas, quando ele, ao passar, foi de encontro ao louceiro, pondo os cobres a tinir, e se agarrou aos puxadores brancos para não cair, foi como se uma chama a tivesse incendiado. E ele, depois de pendurar o chapéu e o casaco, voltou para trás e parou a curta distância, fuzilando-a com o olhar, enquanto ela continuava debruçada sobre a criança.

– Não há nesta casa nada que se coma? – perguntou, insolente, como se falasse com uma criada. Em certos momentos da bebedeira falava com o sotaque sincopado e pretensioso da cidade. Era nessas alturas que Mrs. Morel mais o odiava.

– Sabes bem o que temos em casa – disse ela, com a mais impessoal frieza.

Ele continuou de pé, de olhar flamejante, sem mover um músculo.

– Fiz-te uma pergunta delicada e espero uma resposta delicada – disse ele, afectadamente.

– E foi o que tiveste – disse ela, continuando a ignorá-lo.

O olhar de Morel flamejou de novo. Depois, deu uns passos em frente, vacilante, apoiou-se na mesa com uma mão e com a outra puxou a gaveta desajeitadamente para tirar uma faca de pão. A gaveta, puxada às três pancadas, emperrou. Num acesso de fúria, ele puxou-a com tanta força que a gaveta saltou inteira, com colheres, garfos, facas e mil outros utensílios metálicos a estatelarem-se no chão de tijoleira entre estrépitos e tinidos. O bebé estrebuchou assustado.

– Que estás tu a fazer, meu grande parvalhão, meu bêbado desajeitado? – gritou a mãe.

– Então viesses tu abrir o raio da gaveta. Devias ter-te levantado daí, com’as outras mulheres, para servires o teu homem.

– Eu, servir-te... eu, servir-te a ti? – gritou ela. – Isso é que era bom!

– Sim senhora, e vou ensinar-te como se faz. Servires-me, sim senhora, tu vais servir-me...

– Nunca, majestade. Antes servir um cão rafeiro aí à porta.

– O quê... o quê?

Ele, entretanto, tentava repor a gaveta no lugar. Ao ouvir estas últimas palavras, virou-se para trás, com as faces congestionadas e os olhos raiados de sangue, fitando-a em silêncio, ameaçador, por um segundo.

– Pfff! – fez ela de imediato, com desprezo.

Capaz de explodir, ele deu um safanão na gaveta, que caiu, fazendo-lhe um golpe na canela. Então, num gesto reflexo, atirou-a contra a mulher.

Uma das esquinas apanhou-a no sobrolho de raspão e a gaveta foi despenhar-se na lareira. Ela cambaleou, quase caindo da cadeira sem sentidos. A dor penetrou-a até ao fundo da alma, e ela apertou a criança com força contra o peito. Decorreram breves segundos. Com esforço, recompôs-se. O bebé chorava que metia dó. O sobrolho esquerdo, o atingido, sangrava abundantemente. Quando ela olhou para a criança, com a cabeça a estoirar de dor, algumas gotas de sangue pingaram no xaile branco. Mas o bebé, pelo menos, não fora atingido. Balançou a cabeça, para manter o equilíbrio, e o sangue escorreu-lhe para o olho.

Walter Morel mantinha-se na posição em que ficara, apoiado à mesa com uma mão e de olhar vazio. Quando viu que se conseguia equilibrar, aproximou-se dela, trôpego, e agarrou-se ao espaldar da cadeira de baloiço onde ela estava sentada, quase a fazendo cair. Depois, debruçando-se sobre a mulher, sempre a balançar enquanto falava, disse, num tom perplexo e preocupado:

– A gaveta apanhou-te?

E cambaleou outra vez, como se fosse cair para cima do bebé. A catástrofe fizera-o perder o pouco equilíbrio que ainda tinha.

– Sai daqui! – disse ela, lutando para manter a presença de espírito.

Ele, entretanto, foi acometido de soluços.

– Deixa... deixa cá ver o golpe – disse ele, entre mais soluços.

– Sai daqui para fora! – gritou ela.

– Deixa... deixa lá ver isso, cachopa.

Ela sentia o cheiro a álcool e os puxões desencontrados que ele dava à cadeira de baloiço para se equilibrar.

– Sai daqui – disse ela, empurrando-o com suavidade. Ele, em desequilíbrio, olhava-a estupefacto.

Chamando a si todas as forças, ela levantou-se, com o bebé apertado só num braço. A custo de penosa força de vontade, avançando como uma sonâmbula, dirigiu-se para a copa, onde lavou o olho com água fria. Sentia-se, porém, demasiado tonta, e, antes de desmaiar, voltou para a cadeira de baloiço, tremendo dos pés à cabeça, com o bebé sempre bem seguro, por instinto.

Morel, vexado, tinha conseguido colocar a gaveta de novo no lugar e andava de gatas, com mãos meio dormentes, a apanhar os talheres espalhados pelo chão.

O sobrolho dela ainda sangrava. Morel levantou-se e aproximou-se de pescoço esticado.

– O que foi que a gaveta te fez, cachopa? – perguntou, num tom dorido e contrito.

– Tu sabes bem o que fez – respondeu ela.

Ele inclinou-se para a frente, meio dobrado, fincando as mãos nas coxas, logo acima do joelho, e examinou o golpe. Ela desviou--se da cara dele, e dos seus fartos bigodes, afastando a dela o mais que podia. Ao olhar para ela, fria e impassível como pedra, sem abrir a boca, ele sentiu-se sucumbir de fraqueza de espírito e desespero. Já ia a recuar, acabrunhado, quando uma gota de sangue pingou do ferimento para cima do cabelo finíssimo e brilhante do bebé. Fascinado, ficou a ver a grossa gota quedar-se suspensa na nuvem cintilante, e escorrer depois pela teia capilar. Caiu outra gota. Esta ia chegar à cabeça do bebé. Ele olhava-a, fascinado, vendo-a aproximar-se. Até que, finalmente, a sua virilidade se quebrou.

– Que vai ser desta criança? – foi tudo o que a mulher lhe disse. Mas o seu tom de voz, cavo e intenso, fê-lo baixar a cabeça ainda mais. Ela disse então, para desanuviar:

– Traz-me um bocado de algodão da gaveta do meio.

Ele, obediente, afastou-se aos tropeções e voltou com um bom bocado de algodão, que chamuscou levemente chegando-o perto do lume, e lhe colocou na testa, enquanto ela continuava sentada com o bebé ao colo.

– Agora... aquele lenço lavado de levares para a mina.

De novo ele mexeu e remexeu na gaveta, para aparecer em seguida com um lenço estreito, todo vermelho. Ela pegou no lenço e, com dedos titubeantes, dobrou-o e colocou-o como uma fita à volta da cabeça.

– Deixa-me ajudar-te a amarrá-lo – disse ele humildemente.

– Eu ponho-o bem sozinha – respondeu ela.

Quando acabou, foi para cima, para o quarto, dizendo-lhe que abafasse o borralho e fechasse a porta à chave. Na manhã seguinte, Mrs. Morel disse:

– Bati com a cabeça no fecho da carvoeira quando lá entrei às escuras, à procura do ancinho, porque a vela se apagou.

Os filhos ficaram a olhar para ela com os olhitos muito abertos, muito tristes. Não disseram nada, mas os seus lábios entreabertos pareciam expressar, calados, a tragédia que pressentiam.

No dia seguinte, Walter Morel deixou-se ficar na cama até perto da hora de almoço. Não queria pensar nas cenas da véspera; se pensava em alguma coisa, o que não era provável, nisso não era com certeza. Limitava-se a ficar na cama, vexado, a sofrer como um cão. Fora a si próprio que a cena mais atingira, e doía-lhe a alma ainda mais porque nunca seria capaz de dizer à mulher uma palavra que fosse, de expressar o seu arrependimento. Tentava, por isso, furtar-se à responsabilidade.

A culpa foi dela, disse para consigo. Nada, porém, podia evitar que a consciência o punisse, corroendo-lhe o espírito como ferrugem, remorso esse a que só a bebida podia dar alívio.

Era como se lhe faltassem as forças para se levantar ou para falar, ou sequer para se mover; só conseguia ficar ali deitado, como um cão. Ainda por cima, tinha uma violenta dor de cabeça. Era sábado. Levantou-se por volta do meio-dia, foi buscar comida à despensa, comeu cabisbaixo, calçou as botas e saiu. Voltou às três da tarde, ligeiramente tocado, mas mais aliviado, e enfiou-se outra vez na cama. Saiu da cama por volta das seis horas, fez uma chávena de chá e saiu logo em seguida.

No domingo, a cena repetiu-se: na cama até ao meio-dia, no Palmerston Arms até às duas e meia, almoço e cama; quase sem dizer uma palavra. Quando Mrs. Morel subiu ao quarto, por volta das quatro horas, para vestir a roupa de domingo, ele dormia profundamente. Ela teria tido pena dele, se ele ao menos lhe dissesse: – Desculpa, mulher. – Mas não, tentava convencer-se de que a culpa tinha sido toda dela, e isso aniquilava-o. Como tal, não lhe ligou nenhuma. Nós cegos da paixão atribulada que os unia, e em que ela era a mais forte.

A família sentou-se para o chá. O domingo era o único dia da semana em que todos se reuniam à volta da mesa à hora das refeições.

– O meu pai não se levanta? – perguntou William.

– Deixa-o estar – disse a mãe.

Havia um clima de tristeza em toda a casa. As crianças, ao respirarem aquele ar envenenado, sentiam-se mal também. Desconsoladas, não sabiam o que fazer, como brincar.

Morel saía da cama assim que acordava. Sempre fora assim. Todo ele era actividade. A prostração e a inactividade dois dias seguidos paralisavam-no.

Eram quase seis horas quando desceu. Desta feita, entrou sem hesitações, com a sensibilidade, já de si periclitante, de novo embotada. Já não lhe interessava outra vez o que a família pudesse sentir ou pensar.

As chávenas de chá estavam em cima da mesa. William lia uma publicação infantil em voz alta, Annie ouvia-o com atenção e não se cansava de perguntar «Porquê?». Mas as duas crianças calaram-se mal ouviram os passos abafados do pai, só de meias calçadas, e encolheram-se quando ele entrou, apesar de geralmente os tratar bem.

Morel comeu sozinho e sem maneiras. Não precisava de ter feito tanto barulho a mastigar e a beber. Ninguém lhe dirigiu a palavra. Mal ele entrou, a reunião familiar esmoreceu, retraiu-se e remeteu-se ao silêncio. Mas ele já não ligava ao isolamento a que o votavam.

Mal acabou de tomar chá, levantou-se apressado e preparou-se para sair. Era esta predisposição, esta pressa em sair de casa, que tanto contundia Mrs. Morel. Ao ouvi-lo a lavar-se copiosamente na água fria, ao ouvir o roçar ansioso do pente de aço na borda da bacia enquanto ele molhava o cabelo, ela fechou os olhos de repulsa. Era visível em todos os seus gestos, desde o simples apertar dos atacadores, uma grosseria nos movimentos que o afastava radicalmente da contenção reservada e comedida do resto da família. Ele fugia sempre às lutas que se travavam no seu íntimo. Até mesmo no mais fundo do seu coração, ele se desculpava dizendo: Se ela não tivesse dito aquilo, nada disto acontecia. Ela estava a pedi-las, teve o que merecia.

As crianças assistiram retraídas aos preparos do pai, e foi com um suspiro de alívio que o viram sair.

E foi com prazer que ele fechou a porta atrás de si. A noite estava chuvosa. Tanto melhor, mais aconchegado lhe ia parecer o Palmerston. Pensar nisso fê-lo até acelerar o passo. Os telhados de ardósia das Bottoms luziam molhados. As estradas, já de si negras do pó de carvão, cobriam-se de lama preta. Estugou o passo. As vidraças do Palmerston estavam embaciadas. A entrada estava toda patinhada, mas lá dentro a atmosfera era quente, se bem que pestilenta, carregada do som da vozearia e do cheiro a cerveja e a tabaco.

– O que vai ser, Walter? – gritou uma voz, mal Morel entrou a porta.

– Ora, Jim, o qu’é que tá a sair, rapaz?

Os outros homens arranjaram-lhe um lugar e acolheram-no efusivamente. Morel sentia-se feliz. Passado um ou dois minutos, já o tinham conseguido alhear de toda a responsabilidade, toda a vergonha, todos os problemas, e ele estava são como um pêro, pronto para outra noite de farra.

Porém, na noite seguinte, quando estava acocorado junto ao portão do jardim, a fumar e a chamar pelos mineiros que passavam do outro lado da rua, e a ver os mineiros mais novos a jogarem futebol no regresso da mina, ainda sem se terem ido lavar, Mrs. Kirk apareceu no quintal dela.

– B’noite, ’nha senhora! – disse Morel, com a cortesia e o calor habituais.

– Está contente, não está? – disse Mrs. Kirk.

– Porquê, aconteceu alguma coisa? – exclamou Morel.

– Deixar a sua senhora bater com a cabeça daquela maneira... – disse Mrs. Kirk.

– Pois é, foi uma grande pancada – disse Morel, satisfeito por a mulher não ter contado a verdade às vizinhas.

– Não consigo perceber como é que ela fez aquilo... – continuou Mrs. Kirk.

– Pois é, eu também não – respondeu Morel.

– Fosse como fosse, vai ficar marcada prò resto da vida.

– Lá isso vai, foi uma g’anda cabeçada – disse Morel. – É... Coitada! Eu bem lhe digo pra ir mostrar a ferida ao médico, mas ela não quer.

– O seu marido está a dizer que quer que vá mostrar o olho ao médico – disse Mrs. Kirk para Mrs. Morel.

– Ah, quer? – respondeu Mrs. Morel.

Na quarta-feira seguinte, Morel estava sem um tostão e cheio de medo da mulher. Tinha-a agredido e agora detestava-a. Não sabia o que fazer naquela noite, sem um tostão para ir até ao Palmerston, onde já devia muito dinheiro para poder beber fiado. Por isso, enquanto a mulher estava no jardim com o bebé, foi à gaveta de cima do louceiro, onde ela guardava a carteira, encontrou-a e abriu-a. Lá dentro tinha meia coroa, dois meios dinheiros, e uma moeda de seis dinheiros. Tirou os seis dinheiros, voltou a pôr a carteira no lugar e saiu.

No dia seguinte, quando ela se preparava para pagar ao merceeiro e foi buscar os seis dinheiros, caiu-lhe o coração aos pés. Sentou-se e pensou: Tinha ou não tinha aqui uma moeda de seis dinheiros?... Não os gastei, pois não?... Nem os pus noutro lado?

Estava aflita. Procurou-os por toda a parte. E, à medida que procurava, cada vez mais o coração lhe dizia que o marido lhos tinha tirado. O dinheiro que tinha na carteira era todo o dinheiro que possuía, e era intolerável que ele lhos surripiasse assim. Já por duas vezes tinha feito o mesmo. Da primeira, ela não o tinha acusado, e no fim-de-semana seguinte ele tinha reposto o xelim que tirara. Tinha sido assim que ela soubera que ele lho tinha tirado. Mas da segunda vez nunca repôs o dinheiro.

Agora, porém, era de mais, pensava ela. Quando ele já tinha acabado de jantar – nesse dia viera cedo para casa – ela disse-lhe com frieza:

– Tiraste dinheiro da minha carteira ontem à noite?

– Eu?! – disse ele, olhando para ela ofendido. – Na, num fui eu! Nem sequer vi a tua carteira.

Mas ela percebeu que era mentira.

– Para que estás com isso? Sabes bem que foste tu – disse ela com toda a serenidade.

– Já disse que num fui eu – berrou ele. – Lá tás tu a embirrar comigo outra vez! Já chega, tou farto!

– Com que então surripias-me seis dinheiros da carteira enquanto eu ando a apanhar a roupa.

– Vais pagar por isto – disse ele, empurrando a cadeira para trás, desesperado. Lavou-se com grande estardalhaço e subiu as escadas resoluto. Daí a pouco, voltou para baixo já vestido e com uma grande trouxa amarrada num enorme lenço azul.

– E agora – disse ele – hás-de voltar a ver-me quando calhar.

– O que há-de ser antes de eu o desejar – retorquiu ela, e ele abalou de casa de trouxa na mão. Mrs. Morel sentou-se. Tremia ligeiramente, mas o seu coração transbordava de desprezo. Que iria ela fazer, se ele arranjasse trabalho numa outra mina e fosse viver com outra mulher? Mas ela conhecia-o bem de mais... ele não seria capaz disso. Tinha a certeza. Todavia, sentia o coração apertado.

– Onde está o meu papá? – perguntou William, ao chegar da escola.

– Ele disse que se ia embora – respondeu a mãe.

– Para onde?

– Sei lá. Fez uma trouxa de roupa com o lenço azul e diz que não volta.

– E que vamos nós fazer? – gritou o garoto.

– Não te preocupes. Ele não vai longe.

– E se ele não voltar? – choramingou Annie.

Ela e William foram chorar para o sofá. Mrs. Morel sentou-se a rir.

– Sempre fazem um belo par de choramingas! – exclamou ela. – Vão voltar a vê-lo antes da noite acabar.

Mas as crianças estavam inconsoláveis. Caiu a noite. A fadiga aumentou ainda mais a ansiedade de Mrs. Morel. Uma parte dela dizia: seria um alívio, se não o voltasse a ver; uma outra receava pelo sustento das crianças; e o seu íntimo dizia-lhe que não estava ainda preparada para o deixar partir. Lá no fundo, sabia bem que ele não podia ir-se embora.

Quando se dirigia para a carvoeira, ao fundo do quintal, sentiu qualquer coisa atrás da porta e foi ver o que seria. E lá estava ela, na escuridão, a enorme trouxa azul. Sentou-se num monte de carvão, diante da trouxa, e desatou a rir. Não continha o riso sempre que olhava para a trouxa, gorda e insultuosa, escondida naquele recanto escuro, com as pontas dos nós a adejarem como orelhas descomunais e enjeitadas.

Voltou para casa com o carvão. Annie e William tinham recomeçado a chorar por ela ter saído.

– Mas que bebés chorões – disse ela. – Vão à carvoeira e olhem para trás da porta, e então logo verão se ele foi para muito longe.

– O quê? – exclamou William, pateticamente.

– Vai lá ver – disse a mãe.

Ele esgueirou-se de imediato, seguido por Annie, que corria ligeira, fungando para conter as lágrimas. Não tardou, estava de volta, abraçado à trouxa.

– Ele agora já não se vai embora, pois não, mãe? – disse, a chorar.

– Não... Eu sabia que não ia... O meu medo era só que ele empenhasse alguma coisa. Mas vai lá pô-la outra vez... onde a encontraste.

– Mas...! – hesitou William. – O que é que tem dentro?

– Vai lá pô-la, já disse! – insistiu a mãe. – E não faças perguntas.

O garoto levou a enorme trouxa de novo para o quintal, e largou-a atrás da porta da carvoeira. Depois, já mais calmas, mas não completamente, as crianças foram deitar-se.

Mrs. Morel ficou à espera. O marido não tinha dinheiro, sabia-o bem, e, por isso, se quisesse dormir fora, tinha de ficar a dever. Estava muito cansada dele, cansada até mais não. E ele nem coragem tinha tido para levar a trouxa para mais longe que o fundo do quintal. Estava ela assim a meditar, por volta das nove horas, quando ele abriu a porta e entrou de mansinho, mas mal-encarado, sem lhe dirigir a palavra. Tirou o casaco e deslizou para o cadeirão de braços, onde começou a descalçar as botas.

– É melhor ires buscar a trouxa antes de tirares as botas – disse ela, calmamente.

– Podes dar graças por eu ter voltado para casa esta noite – disse ele, erguendo os olhos lá de baixo, de onde tinha a cabeça, carrancudo e melodramático.

– Essa agora, então para onde é que tu ias? Pois se nem a trouxa levaste lá para fora – disse ela.

A figura dele era tão triste que ela nem se conseguia zangar. Ele continuou a descalçar as botas e a preparar-se para se ir deitar.

– Não sei o que meteste no teu lenço azul – disse ela. – Mas se o deixares lá, as crianças amanhã de manhã vão buscá-lo.

Ouvindo isto, ele levantou-se e saiu, voltando de imediato. Atravessou a cozinha de cara fechada, e foi a correr para cima. Mrs. Morel não pôde deixar de rir interiormente, quando o viu esgueirar-se pela porta do corredor e pela escada acima, de trouxa debaixo do braço. Tinha, porém, o coração amargurado, pois já o tinha amado muito.


III

A REJEIÇÃO DE MOREL E A SUA SUBSTITUIÇÃO POR WILLIAM

DURANTE toda a semana seguinte, Morel andou insuportável. Como todos os mineiros, tinha a mania das mezinhas, que, por estranho que pareça, era ele próprio que pagava do seu bolso.

– Tens de m’ir comprar o elixir – disse ele. – É espantoso como nunca há nem uma gota cá em casa.

Mrs. Morel lá foi comprar o elixir de vitríolo, o seu remédio favorito, e ele apressou-se a fazer uma cafeteira de chá de absíntio. Tinha pendurados no sótão, a secar, grandes molhos de ervas aromáticas: absíntio, arruda, marroio, flores de sabugueiro, apiol, alteia, hissopo, dente-de-leão e piteira. Havia sempre uma cafeteira com uma infusão qualquer em cima do fogão, que ele bebia em grandes quantidades.

– Excelente! – disse ele, dando estalos com a língua, a saborear o absíntio. – Excelente! – E exortou as crianças a provarem.

– É bem melhor que esses chás que vocês bebem ou essas mistelas de cacau – exclamou. Mas as crianças não se mostraram tentadas a experimentar.

Desta vez, porém, nem as pílulas nem o vitríolo nem as ervas conseguiam acabar com as «xaquecas da cabeça». Era uma inflamação no cérebro. Nunca mais se tinha sentido bem desde aquele dia em que fora com Jerry a Nottingham e adormecera no chão. Desde aí, não fazia mais nada senão beber e ralhar com tudo e todos. Mas agora sentia-se seriamente doente, e Mrs. Morel tinha mais um para cuidar. Ainda por cima, era dos piores doentes que se possa imaginar. Mas, apesar de tudo, e independentemente do facto de ser ele o ganha-pão da família, ela nunca desejou que ele morresse. Uma parte dela ainda o queria para si.

As vizinhas eram muito boas para ela. De vez em quando, umas davam de almoçar às crianças; outras limpavam-lhe a casa, outra ficava-lhe com o bebé por um dia. Mas, mesmo assim, era extenuante. Não era todos os dias que as vizinhas vinham dar uma ajuda, e ela tinha de tratar do marido e do bebé, tratar da casa e cozinhar, e atender a tudo o mais. Andava estafada, mas fazia o que tinha de ser feito.

O dinheiro chegava à justa. Recebia dezassete xelins por semana de instituições de caridade, e, todas as sextas-feiras, Barker e os outros mineiros punham de lado uma parte dos proventos para a mulher de Morel. As vizinhas levavam-lhe canja, ovos e outros paparicos, dos que se dão aos doentes. Se não a tivessem ajudado com tanta generosidade nessa altura, Mrs. Morel nunca teria conseguido fazer frente à situação sem contrair dívidas que lhe seriam fatais.

As semanas foram passando, e Morel, contrariamente ao que seria de esperar, ia melhorando. Era de constituição forte e, com o tratamento, depressa entrou em convalescença. Não tardou muito, já andava a traquinar no andar de baixo. A mulher tinha-o estragado com mimos durante a doença e era frequente vê-lo levar as mãos à cabeça, assumir um rictus de dor, quase fazendo beicinho, e fingir dores que não sentia. Mas ela não se deixava enganar. A princípio, limitava-se a sorrir interiormente. Mas depois começou a metê-lo na ordem.

– Credo, homem, não te ponhas para aí a choramingar.

Isto magoava-o ligeiramente, mas não o impedia de continuar a fingir-se doente.

– Não te ponhas com fingimentos – dizia a mulher sem rodeios.

Ele indignava-se e praguejava entredentes, como um rapazola. Mas não tinha outro remédio senão voltar à normalidade e parar com as lamúrias.

Apesar de tudo, a paz reinou em casa por algum tempo. Mrs. Morel mostrava-se mais tolerante com ele, e ele, dependendo dela quase como uma criança, sentia-se feliz. O que nenhum deles sabia é que ela estava mais tolerante porque o amava menos. Até àquela altura, e apesar dos pesares, ele tinha sido o seu marido e o seu homem. Ela sempre sentira mais ou menos que o mal que ele fazia a si mesmo, fazia-o também a ela. Dependia dele para viver. Houve muitos, muitos estádios de arrefecimento do seu amor por ele, mas sempre de arrefecimento.

Agora, com o nascimento do terceiro filho, o seu ser já não se sentia empurrado para ele sem remédio, era antes como uma maré que quase não subia e que ficava longe dele. Agora, quase nunca o desejava. Vendo-se mais liberta dele, sentindo cada vez mais que ele não era parte dela, mas tão-só das circunstâncias que a rodeavam, já não lhe interessava o que quer que ele fizesse, podia deixá-lo em paz.

O ano que se seguiu trouxe a Morel a pausa e a ansiedade que marcam o Outono na vida de um homem. A mulher rejeitava-o, contrariada, mas inexoravelmente; rejeitava-o e substituía-o pelos filhos na vida e no amor. Daí em diante ele não era mais que um peso morto. E, como tantos homens fazem, sujeitava-se, cedendo o seu lugar aos filhos.

Durante a convalescença, quando já nada havia entre eles, ainda fizeram um esforço para reatar a relação dos primeiros meses de casados. Ele passava as noites em casa e, quando as crianças já estavam deitadas e ela se sentava a costurar – costurava tudo à mão, as camisas dele e os fatos das crianças – ele punha-se a ler o jornal em voz alta, soletrando as palavras devagar, como um jogador a atirar a malha. Ela até o apressava, acabando muitas vezes as frases primeiro, o que ele aceitava com humildade.

Os silêncios que se instalavam entre eles eram curiosos. Era o clic-clic leve e rápido da agulha, o pa-af-f cavo dos lábios dele expelindo baforadas de fumo, o crepitar da lareira e o fervilhar sibilante da grelha quando ele cuspia para o lume. Os pensamentos dela voltavam-se então para William, que estava já um rapagão. Era o primeiro da classe, e o mestre dizia que era o mais inteligente da escola. E ela via-o já homem, cheio de vigor e juventude, e olhava de novo o mundo em todo o seu esplendor.

E Morel, ali sentado sozinho, sem nada em que pensar, sentia-se vagamente desconfortável. A sua alma procurava ir ao encontro dela, às cegas como de costume, e descobria que ela já lá não estava. Sentia então uma espécie de vazio, um vácuo dentro da alma. Ficava perturbado e inquieto. Depressa o ambiente se lhe tornou insuportável, e à mulher também. Era como se o peito se lhes oprimisse com falta de ar quando ficavam sozinhos por muito tempo. Então, ele não tardava a ir deitar-se e ela deixava-se ficar, a saborear a solidão, enquanto ia trabalhando, sonhando, vivendo.

Assim, tendo de procurar uma atmosfera onde pudesse respirar, incapaz de pactuar com a sua própria aniquilação, Morel voltou-se de novo para a taberna e para o seu amigo Jerry, e a mulher, lá bem no fundo, sentiu até um certo alívio.

A partida estava definitivamente perdida para ele. Embora, naturalmente, tentasse voltar ao que era antes, e ainda tivesse assomos de prepotência, autoridade e orgulho, tais momentos eram apenas um eco do passado. Paul, o bebé, ao qual se sentia estranhamente ligado, não deixava que ele lhe tocasse. Aos oito meses, o menino teve uma infecção num ouvido e era um dó vê-lo. Morel bem queria pegar-lhe ao colo, para o consolar. E que bem lhe teria feito ser capaz de tratar do filho. Mas a criança não deixava. Retesava os braços e, ele que era quase sempre um bebé mansinho, desatava a gritar e a esquivar-se às mãos do pai. E Morel, ao vê-lo crispar os punhos pequeninos, virar a carita para o lado e levantar para a mãe uns olhos azuis apavorados, dizia com impaciente desespero:

– Anda, vem pegar nele!

– É o teu bigode que o assusta – dizia ela, pegando no menino e apertando-o contra o peito. Mas sentia o coração amargurado, e Morel tinha medo da criança.

Entretanto, um outro bebé vinha a caminho, fruto destas tréguas de ternura entre o casal desavindo. Paul tinha dezassete meses quando o irmão nasceu. Era na altura uma criança pálida e gorducha, sossegada, de olhos azuis carregados e o seu já tão característico franzir de testa. Este bebé também era um rapaz, loiro e magrinho. Mrs. Morel ficou aborrecida quando soube que estava grávida – por razões económicas e por já não amar o marido; não pela criança.

Chamaram-lhe Arthur. Era muito bonito, com fartos caracóis doirados, e gostou do pai desde o início. Mrs. Morel estava satisfeita por este filho gostar tanto do pai. Mal ouvia os passos do mineiro, o bebé estendia os braços e punha-se a pairar. E, se Morel vinha bem-disposto, respondia-lhe de imediato, na sua voz cálida e melodiosa:

– Então, meu amor... já vou, já vou.

E assim que tirava o casacão, Mrs. Morel punha um avental à volta do menino e entregava-o ao pai.

– Mas que lindo que ele ficou! – exclamava ela às vezes, voltando a pegar nele, todo enfarruscado dos beijos e das carícias do pai. E Morel ria com gosto.

– Temos aqui um mineirinho, que Deus o proteja! – exclamava ele. E eram estes os momentos de felicidade da vida dela, os momentos em que os filhos metiam o pai no coração.

Entretanto, William estava cada vez mais crescido, mais forte e activo, enquanto Paul, sempre sensível e calado, se tornava cada vez mais magro e andava sempre atrás da mãe como se fosse a sua sombra. Geralmente activo e interessado, era acometido por vezes de acessos de depressão, e a mãe ia dar com ele, com três ou quatro anos, a chorar num canto do sofá.

– O que tens? – perguntava ela, mas não obtinha resposta. – O que tens? – insistia, já zangada.

– Não sei – respondia ele entre soluços.

Ela tentava conversar com ele, distraí-lo, mas em vão, o que a deixava desesperada. Então, o pai, sempre impaciente, saltava da cadeira e berrava:

– Se ele não se cala, vai apanhar até se calar.

– Não senhor, era o que faltava – dizia a mãe, friamente. Depois, levava o menino para o jardim, sentava-o na cadeirinha dele e dizia:

– Agora chora pr’aí, infeliz!

E então, talvez uma borboleta pousada nas folhas do ruibarbo lhe atraísse a atenção; se não, acabava por chorar até adormecer. Estes ataques não lhe davam muitas vezes, mas Mrs. Morel andava preocupada, e o tratamento que dava a Paul era diferente do que dava aos outros filhos.

Uma manhã, ao ouvir a cantilena de Ó-Le-v’dura, Mrs. Morel saiu a correr de caneca na mão. O Ó-Le-v’dura ainda não tinha chegado ao portão, e ela teve de esperar, ouvindo os excertos de hinos que o homem cantava enquanto mergulhava a lata nos barris e enchia os recipientes que as mulheres lhe estendiam. Era um homem alegre, com uma cara opada e muito cómica, orlada de suíças brancas. Na carroça decrépita, viajavam dois barris de levedura de cerveja cobertos com uma serapilheira molhada. À medida que avançava, ia cantarolando excertos de hinos, pois tinha-se convertido há três meses. O seu pregão, possante, semi-herético, invadia o beco:


«Estaremos juntos para além do rio,

Onde a corrente já não é dura... Ó-Le-v’dura!»


Tinha também o hábito de chalacear com as mulheres enquanto lhes aviava a levedura. De repente, Mrs. Morel ouviu uma voz a chamá-la. Era a magricela da Mrs. Anthony, com o seu vestido de veludo vermelho.

– Venha cá, Mrs. Morel, quero falar-lhe por causa do seu Willie.

– Ah, sim? – respondeu Mrs. Morel.

Mrs. Anthony, sem se aproximar, gritou-lhe do outro lado do beco:

– Acha que ele tinha o direito de rasgar a gola do nosso Alfie atrás das costas?

– O quê, ele fez isso? – gritou Mrs. Morel do lado de cá. Nenhuma das mulheres queria dar o braço a torcer e aproximar-se da outra.

– Fez, sim senhora... e, se não me acredita, vou buscá-la para lha mostrar.

– Não, isso não é preciso – disse Mrs. Morel. – Mas como é que sabe que foi o nosso Willie?

– O quê? Julga que o nosso Alfie não disse a verdade? Olhe que nas Bottoms não há menino mais verdadeiro. Mas, se quiser, pergunte à Annie Bowers e a mais umas quantas. Ele agarrou na gola do meu miúdo e arrancou-lha inteirinha. E eu num tenho dinheiro pr’andar a gastar em golas novas, quando os outros lhas rasgam...

– Eu sei que não tem – disse Mrs. Morel.

– E o qu’eu acho – disse Mrs. Anthony, afogueada – é qu’ele devia levar uma boa sova, isso é qu’eu acho.

– «Junto ao cruzeiro, junto ao cruzeiro, onde encontrei...» Ó-Le-v’dura!... Ó-Le-v’dura!... Quanto quer, patroa?

– Meia medida chega – disse Mrs. Morel, estendendo-lhe a caneca.

– Meia medida nesta caneca, ora aqui tem, fresquinha a pingar, com a bênção do Senhor – respondeu o «Ó-Le-ved’ura». Ele e a carroça interpunham-se entre as duas mulheres.

– «Olhai os lírios a crescer...» Sim, Mrs. Anthony... meia medida. Todas meia medida! Não faz mal. «Eles não labutam, nem em casa, nem ao fuso. Mas Salimão também não...». Obrigadinho...

E lá seguiu, sem produzir o mínimo efeito nas mulheres. Mrs. Anthony estava indignadíssima.

– Um rapaz que s’agarra a outro e lhe rasga a roupa pelas costas... – não se cansava de repetir.

– O seu Alfred é da idade do nosso William – disse Mrs. Morel.

– Lá isso é, mas isso num dá o direito ao seu filho de deitar a mão à gola do meu e lha rasgar toda.

– Bem, sabe – disse Mrs. Morel –, eu não bato nos meus filhos, e mesmo que batesse, tinha de ouvir primeiro a versão deles.

– Portavam-se bem melhor, se apanhassem um bom correctivo quando rasgam a gola de um colega... de propósito... – opinou Mrs. Anthony.

– Tenho a certeza de que não foi de propósito – disse Mrs. Morel.

– Está a chamar-me mentirosa? – indignou-se Mrs. Anthony.

Mrs. Morel voltou para o quintal e fechou o portão. A mão que segurava a caneca com a levedura não parava de tremer.

– Olhe qu’eu vou queixar-me ao seu marido – gritou Mrs. Anthony, quando ela se afastava.

Ao almoço, quando William já tinha terminado de comer e estava morto por sair outra vez – tinha então onze anos – a mãe disse-lhe:

– Porque é que rasgaste a gola do Alfred Anthony?

– E quando é que eu lha rasguei?

– Isso não sei, mas a mãe dele diz que rasgaste.

– Ah... isso foi ontem... mas já estava rasgada.

– Mas tu ainda a rasgaste mais.

– Bom, eu tinha uma castanha que já tinha caçado dezassete... e vai o Alfy Ant’ny e diz:


«O Adão, a Eva e o Belisca-me

Foram tomar banho ao rio.

Adão e Eva afogaram-se.

Qual dos três é que fugiu...?»


E vou eu e digo «Ora, o Belisco-te», e zás, dei-lh’um beliscão e ele ficou furioso e palmou-m’a castanha e fugiu. E eu larguei a correr ’trás dele e quando lhe deitei a mão, ele tentou escapar-se e a gola rasgou-se. Mas eu tirei-lh’a minha castanha...

E, dizendo isto, tirou do bolso uma castanha-da-índia, muito preta, pendurada de um cordel. Ora, esta velha castanha já tinha «acastanhado» – atingido e esmagado – outras dezassete castanhas semelhantes penduradas como ela de cordéis, pelo que o rapaz tinha grande orgulho na sua veterana.

– Bem – disse Mrs. Morel –, tu sabes que não tens o direito de lhe rasgares a gola.

– Ora, mãe! – respondeu ele. – Não foi de propósito... e, além disso, era uma gola velha de borracha, já meio rasgada.

– Da próxima vez – disse a mãe – tens de ter mais cuidado. Eu também não ia gostar que me aparecesses em casa com a gola rasgada.

– Não m’interessa, mãe, eu não fiz de propósito. O rapaz estava muito sentido com a reprimenda.

– Pois não... mas tens de ter mais cuidado.

William tratou de se escapulir, todo contente por se ver liberto, e Mrs. Morel, que detestava conflitos com as vizinhas, pensou que, se fosse dar uma explicação a Mrs. Anthony, o problema ficaria resolvido.

Nessa noite, porém, Morel chegou da mina muito mal-humorado. Pôs-se no meio da cozinha a olhar em volta, ameaçador, durante uns minutos, mas sem dizer nada. Depois começou.

– Onde está esse Willie dum raio?

– Para que queres falar com ele? – inquiriu Mrs. Morel, já a adivinhar.

– Quando eu o encontrar, ele logo saberá – disse Morel, batendo violentamente com o cantil em cima do louceiro.

– Já estou a ver que a Mrs. Anthony te apanhou e te encheu os ouvidos por causa do que aconteceu à gola do filho – disse Mrs. Morel, com acentuada sobranceria.

– Não interessa quem m’apanhou – disse Morel. – Mas quand’eu o apanhar, os ossos dele vão estalar.

– É uma pena que estejas tão pronto a tomar o partido da primeira megera que te vem envenenar com contos e ditos sobre os teus próprios filhos.

– Ele vai ver como elas mordem! – disse Morel. – Num m’interessa de quem ele é filho, num pode é andar por aí a arrancar e a rasgar golas conforme lhe dá na gana.

– A arrancar e a rasgar! – repetiu Mrs. Morel – Ele ia a correr atrás do Alfy para lhe tirar a castanha que ele lhe tinha roubado, e agarrou-lhe a gola por acaso... porque o outro se tentou esquivar... como é bem dos Anthonys.

– Eu sei... – berrou Morel, ameaçador.

– E devias saber, antes de to dizerem – retorquiu Mrs. Morel, mordaz.

– Num te preocupes – vociferou Morel. – Sei muito bem o que hei-de fazer.

– Pois não parece – disse Mrs. Morel. – Já que foi uma intriguista qualquer que te foi industriar para bateres no teu filho.

– Eu sei – repetiu Morel.

E mais não disse, tendo-se sentado a curtir o mau génio. Nisto, William entrou a correr pela cozinha dentro, e disse:

– Mãe, pode dar-me o meu chá?

– Vou dar-te ’inda mais do qu’isso – berrou Morel.

– Fala baixo, homem – disse Mrs. Morel. – Não faças tristes figuras.

– Ele é que vai fazer triste figura quando eu acabar com ele! – berrou Morel, saltando da cadeira e olhando irado para o filho. William, que era desenvolvido para a idade, mas muito sensível, ficou lívido e fitou o pai, aterrorizado.

– Foge daqui! – ordenou Mrs. Morel.

Mas William estava incapaz de se mexer. De repente, Morel cerrou o punho e baixou-se.

– Eu digo-lhe quem é que foge! – berrou, tresloucado.

– O quê! – gritou Mrs. Morel, ofegante de raiva. – Tu não lhe vais pôr um dedo em cima a mando dela, isso é que não vais.

– Não vou? – berrou Morel – Ai não vou?

E, soltando faíscas do olhar, avançou para o rapaz. Mrs. Morel, num salto, meteu-se entre ambos brandindo o punho.

– Não te atrevas! – gritou ela.

– O quê! – berrou ele, momentaneamente desnorteado. – O quê!

Ela rodopiou e agarrou-se ao filho.

– Foge lá para fora! – ordenou ela, desvairada. O rapaz, como se hipnotizado, voltou-se subitamente e fugiu. Morel correu para a porta, mas era tarde de mais. Voltou para dentro, lívido de raiva por baixo do pó preto da mina. Mas agora era a mulher que estava furiosa.

– Experimenta só! – disse ela, alto e bem timbrado. – Experimenta tocares com um dedo nessa criança, meu menino, e vais arrepender-te para o resto da tua vida.

Ele, com medo dela, sentou-se a vociferar, dando largas à sua fúria.

– Não, já o fizeste noutras alturas, mas agora acabou-se! – recomeçou ela, de repente, após uma pausa. – Não me esqueço daquela vez em que lhe deste um pontapé e o encheste de nódoas negras, só por causa da raiva que aquela velha, a Tia Sharp, tinha dele... mas nunca mais vais fazer isso – disse ela, ofegante, quase sem fôlego, de tanta cólera.

– Não vou? Ai não vou? – repetiu Morel.

– Seu brutamontes... és um bruto e um cobarde! – gritou ela. – Não tens vergonha de te deixares dominar por uma vadia qualquer, como essa Anthony, quando ela te vem dizer para bateres nos teus filhos? É ela que decide por ti quando hás-de vir para casa bater nas crianças?... E tu obedeces, meu cobarde, meu grande bruto!... Não, enquanto eu aqui estiver, isso não vai acontecer!

– Vais ver o que acontece enquanto aqui estás – disse Morel ameaçadoramente.

– Nunca mais, meu menino, nunca mais toques com um dedo nos meus filhos.

– Ah-Ah-Ah! – E ele riu-se, trocista.

Depois saiu e embebedou-se, e, quando chegou o fim-de-semana, não deu a William a moeda do costume.

– Também não te faz falta – disse Mrs. Morel para o filho.


CONTINUAR

AS BOTTOMS vieram substituir as Hell Row. As Hell Row era uma correnteza de casas rústicas, abauladas, de telhado de colmo, construídas nas margens da ribeira, em Greenhill Lane. Aí viviam os mineiros que exploravam as pequenas minas à nora, duas searas mais abaixo. A ribeira corria entre os amieiros, quase nada poluída pelas pequenas minas, cujo carvão era trazido para a superfície por burros que andavam pachorrentamente em torno de uma nora. Por toda a região havia minas destas, datando algumas delas do tempo de Carlos II; os poucos mineiros e burros existentes enfiavam-se pela terra dentro como formigas, salpicando de curiosos montículos e negras manchas prados e searas. Eram as casas destes mineiros, espalhadas pela paróquia em pequenos aglomerados ou aos pares, à mistura com as quintas dispersas e as casas dos tecelões, que constituíam no seu conjunto a cidadezinha de Bestwood.
Até que, há cerca de sessenta anos, se deu uma transformação radical. As pequenas minas à nora foram preteridas pelas minas dos grandes financeiros, e descobertos os campos mineiros do Nottinghamshire e do Derbyshire. Surgiu então a Carston, Waite & Co., e, no meio do maior entusiasmo, Lord Palmerstone inaugurou oficialmente a primeira mina da companhia, em Spinney Park, na orla da floresta de Sherwood.
Pela mesma altura, as tão faladas Hell Row, que com o passar dos anos foram ganhando má fama, foram totalmente queimadas e, com elas, eliminada muita imundície.

 

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A Carston, Waite & Co. não tardou a aperceber-se do êxito da iniciativa, e novas minas foram sendo abertas nos vales do Selby e do Nuttall, até que, em pouco tempo, já eram seis as minas a laborar. Partindo de Nuttall, e encarrapitada nos montes de arenito, por entre o arvoredo, a via férrea passava pelo priorado em ruínas de Carthusians e o Poço de Robin Hood, descendo depois para Spinney Park e Minton, a enorme mina no meio das searas, atravessando em seguida as quintas do vale até Bunker Hill, onde entroncava com um ramal, seguindo então para o norte, para Beggarlee e Selby, de onde se avistam Crich e os montes do Derbyshire; seis minas, quais garanhões pretos na paisagem, ligadas por uma corrente serpenteante – a via férrea.

Para alojar os mineiros, a Carston, Waite & Co. construiu as Squares, grandes urbanizações quadrangulares na encosta de Bestwood, e, no vale, erigiram as Bottoms no local antes ocupado pelas Hell Row.

As Bottoms eram seis quarteirões de casas de mineiros, com duas fiadas de três casas cada um, à laia das pintas do seis no dominó, ou seja, doze casas por quarteirão. Esta dupla fiada de habitações situava-se no sopé da encosta íngreme de Bestwood e, pelo menos das janelas dos sótãos, avistava-se a ladeira suave que subia do vale em direcção a Selby.

As casas propriamente ditas eram sólidas e bastante apresentáveis. Quem por ali andasse a passear, deparava-se com jardinzinhos floridos, de prímulas e saxífragas, nas casas de baixo, mais sombrias, e de cravos e cravinas nas casas de cima, mais soalheiras; janelas airosas, alpendres, pequenas sebes de alfena, mansardas nos sótãos. Mas tudo isto era por fora, a vista exterior da sala, onde as mulheres dos mineiros nunca entravam. A divisão onde passavam o dia, a cozinha, ficava nas traseiras, virada para a outra fiada de casas, e dava para um jardinzeco mal tratado e, mais adiante, para os aterros de cinza. E entre as duas fiadas, entre as longas filas de poços de cinza, corria o beco onde as crianças brincavam, as mulheres davam à língua e os homens se entretinham a fumar. Assim, as condições reais de vida nas Bottoms, casas aparentemente bem construídas e com tão bom aspecto, eram bastante deficientes, porque os moradores passavam a maior parte do tempo na cozinha, e as cozinhas davam para o tal beco miserável dos poços de cinza.

Quando desceu das alturas de Bestwood, Mrs. Morel não tinha grande vontade de se mudar para as Bottoms, construídas há doze anos e apresentando já alguns sinais de degradação. Mas era o que podia arranjar. Vindo morar para uma das casas da ponta, num dos blocos superiores, tinha apenas um vizinho, e, do outro lado, um jardim suplementar. Além disso, o facto de possuir uma casa de topo conferia-lhe um estatuto aristocrático entre as restantes mulheres das casas intermédias, pois a renda era cinco xelins e seis dinheiros por semana, em vez dos habituais cinco xelins. Todavia, esta superioridade social não trazia grande consolação a Mrs. Morel.

Tinha trinta e um anos e estava casada há oito. Pequena, frágil, mas resoluta, furtava-se ao contacto com as outras mulheres das Bottoms. Mudara-se em Julho e esperava o terceiro filho para Setembro.

O marido era mineiro. Só viviam na casa nova há três semanas, quando chegou o dia da feira anual. Sabia bem que Morel não ia perder a oportunidade de se divertir. Na segunda-feira, dia da inauguração da feira, saiu de casa logo pela manhã. As duas crianças estavam excitadíssimas. William, um rapazinho de sete anos, escapuliu-se mal tomou o pequeno-almoço, para ir passear pela feira, deixando Annie, a irmã de cinco anos, toda a manhã a chorar porque também queria ir. Mas Mrs. Morel tinha a lida da casa para fazer, e ainda mal conhecia os vizinhos, não tendo por isso ninguém de confiança para tomar conta da filha. Prometeu-lhe por isso que a levava à feira depois do almoço.

William voltou ao meio-dia e meia hora. Era um garoto muito activo, de cabelo louro, sardento, de aspecto nórdico.

– Posso almoçar já, mãe? – gritou, entrando de rompante com o boné na cabeça. – É que a feira abre à uma e meia. Foi o que o homem disse.

– Podes comer assim que estiver pronto – respondeu a mãe.

– O quê, ainda não está? – gritou ele, indignado, fulminando-a com os olhos muito azuis. – Então não almoço.

– Isso é que era bom... – respondeu a mãe.

– Mas está quase a começar – gritou o garoto, quase aos berros.

– Não morres se quando chegares já tiverem começado – disse a mãe. – Além disso, ainda é só meio-dia e meia hora e ainda tens uma hora à tua frente.

O garoto começou a pôr a mesa a toda a pressa e sentaram-se os três. Estavam ainda a comer as panquecas com geleia quando ele saltou da cadeira e, bruscamente, parou, completamente estático. Ao longe, ouviu-se o carrocel arrancar para a primeira volta e o som vibrante de uma corneta. O rosto contraiu-se-lhe e olhou para a mãe.

– Eu bem dizia! – exclamou, correndo para a cómoda e pegando no boné.

– Leva a panqueca... ainda é só uma e cinco, por isso estavas enganado... Olha que não levas os dois dinheiros – gritou a mãe de um só fôlego.

O garoto voltou para trás, pelos dois dinheiros, visivelmente contrariado, e saiu de imediato sem dizer palavra.

– Também quero ir, também quero ir – dizia Annie, já a chorar.

– Pronto... pronto... também vai, sua rabina – disse a mãe. E, mais tarde, lá foi Mrs. Morel encosta acima com a filha ao colo, penosamente, à sombra da sebe alta que ladeava o caminho. O feno já tinha sido apanhado e as vacas andavam à solta. O dia estava quente e bonançoso.

Mrs. Morel não gostava de arraiais. Neste, havia dois carrocéis de cavalinhos – um a vapor e outro puxado por um pónei. Os acordes de três órgãos arranhavam a tarde, e ouviam-se estampidos desencontrados de pistolas, a chiadeira infernal da caranguejola do vendedor de cocos, os gritos do homem da barraca da Tia Sally e o pregão estridente da mulher do Olho Mágico. A mãe avistou o filho parado em frente da barraca do Leão Wallace, a olhar embasbacado para as fotografias desse leão que já tinha matado um negro e mutilado dois brancos, mas não se aproximou e foi comprar algodão doce para Annie. O garoto, porém, veio ter com ela, excitadíssimo.

– Não disse que vinha... Há tantas coisas, não há?... Aquele leão ali já matou três homens... e eu já gastei os meus dois dinheiros... olhe...

Do bolso tirou dois suportes para ovos, decorados com florinhas cor-de-rosa.

– Comprei-os naquela barraca onde a gente mete os berlindes nos buracos... e ganhei estes dois de seguida... um dinheiro cada jogada... têm rosinhas pintadas, olha. Era mesmo o que eu queria.

Ela sabia que era para lhos dar que ele os queria.

– Hum! – disse ela, satisfeita. – São muito bonitos!

– Leve-os a mãe, qu’eu tenho medo d’os partir.

Não cabia em si de contente por ela ter vindo, e foi mostrar-lhe a feira toda. Quando chegaram ao Olho Mágico, pôs-se a explicar-lhe as imagens, encadeadas numa espécie de história que ele escutava como se estivesse enfeitiçado. Mas não a largava. Mantinha-se perto dela, exibindo o seu orgulho de menino pela sua mãe. É que nenhuma outra mulher se lhe comparava em elegância, com o seu chapelinho preto e a capa sobre as costas, trocando sorrisos com as mulheres conhecidas que encontrava.

Quando se cansou, Mrs. Morel disse ao filho:

– Então, vens comigo agora, ou voltas mais tarde?

– Já se vai embora? – exclamou ele, amuado.

– Já?... São só quatro e meia, eu sei.

– Porque vai já? – disse ele, lamuriento.

– Mas tu não precisas de vir comigo, se não quiseres. – E afastou-se com a filha, enquanto o filho ficava parado a olhar para ela, cheio de pena de a deixar voltar sozinha, mas incapaz de virar as costas à feira. Ia a atravessar o largo da feira quando ouviu uns homens a berrar e sentiu o cheiro da cerveja. Então, estugou o passo, pensando que o marido estaria provavelmente na taberna.

Por volta das seis e meia, o filho chegou a casa, cansado, muito pálido e abatido.

– Sim senhor! – disse ela, fingindo-se zangada. – Se te atrasasses mais cinco minutos, já tinha levantado a mesa. É sempre a mesma coisa, já deves estar com fome há muito tempo...

Deu-lhe a merenda. Embora ele não se apercebesse, estava triste por tê-la deixado voltar sozinha. A feira perdera toda a graça desde que ela se tinha vindo embora.

– O pai já veio? – perguntou ele.

– Não – respondeu a mãe.

– Está na taberna a dar uma ajuda ao balcão. Vi-o de mangas arregaçadas através daquela chapa preta aos buraquinhos que eles têm a tapar a janela.

– Ah! – exclamou a mãe. – Está sem dinheiro. Se lhe derem que chegue para a bebida, já fica satisfeito; tanto se lhe dá que lhe paguem mais ou não.

Com ordem da mãe, os garotos foram pôr-se à janela do quarto dela a verem as pessoas regressar da feira com brinquedos do bazar, a ouvirem a cegarrega da música a tocar, o alarido das vozes, o estampido das pistolas, o «pim» das balas no fino alvo de ferro. Por fim, o cansaço venceu-os e foram para a cama.

Quando a luz esmoreceu e Mrs. Morel já não via para coser, levantou-se e foi para a porta da rua. Por todo o lado se ouvia a algazarra própria dos feriados, e ela acabou por ser contagiada. Saiu e foi até ao jardim de topo. As mulheres voltavam do arraial, com as crianças abraçadas a um cordeirinho branco de pernas verdes ou a um cavalo de madeira. De vez em quando, passava um homem aos tombos, cheio de cerveja até mais não poder. Outras vezes era um marido às direitas, com a família atrás, tranquilamente. Mas geralmente as mulheres e as crianças vinham sozinhas. As mães mais caseiras entretinham-se na má-língua pelas esquinas da ruela, à luz do entardecer, com os braços cruzados por baixo do avental.

Mrs. Morel estava sozinha, mas já estava habituada. Com o filho e a filhinha a dormirem lá em cima, a casa, atrás de si, parecia-lhe um lar sólido e estável. Atormentava-a, porém, a ideia de ser mãe mais uma vez. O mundo parecia-lhe um lugar desolado que nada tinha já para lhe dar – pelo menos até o William crescer. E tantos filhos! Não podia ter este terceiro. Não o queria. O pai vendia cerveja na taberna e bebia até cair. Ela desprezava-o e, ao mesmo tempo, sentia-se presa a ele. Este novo filho era de mais para ela. Se não fosse pelo William e a Annie... Estava farta de tudo aquilo, de lutar contra a miséria, a fealdade e a maldade humanas.

Passou para o jardim da frente; já estava muito pesada para sair, mas também não conseguia ficar em casa. O calor era sufocante, e, ao olhar o futuro, a vida que a esperava era semelhante a ver-se enterrada viva.

O jardim da frente era um quadradinho de terra cercado por uma sebe de alfena. Por aí se quedou, tentando amenizar os pensamentos com o perfume das flores e a beleza da tarde que findava. Frente ao pequeno portão ficavam os degraus que permitiam transpor a cerca que vedava o caminho da encosta, debaixo da sebe alta, entre o fulgor ardente dos prados divididos. Lá no alto, o céu palpitava e pulsava de luz. O esplendor depressa se apagou dos campos e o crepúsculo subiu como fumo da terra e dos arbustos. Quando começou a escurecer, um clarão avermelhado surgiu por detrás da colina, dele parecendo emanar a agitação distante da feira.

De vez em quando, homens aos tombos, de regresso a casa, passavam pelo túnel de breu formado pelo trilho aberto sob os arbustos. Um rapaz galgou em desenfreada correria o último troço da encosta, muito íngreme, e estatelou-se com força de encontro à cerca. Mrs. Morel estremeceu. O rapaz levantou-se a praguejar, conforme pôde, numa atitude patética, como se achasse que a cerca o tinha magoado de propósito.

Ela voltou para dentro, a pensar se as coisas não iriam mudar nunca. Começava agora a perceber que não. Sentia tão longe os seus tempos de menina, que duvidava até se aquela pessoa que subia pesadamente o jardim das traseiras, naquela casa das Bottoms, era mesma que há dez anos corria ligeira pelo molhe de Sheerness.

– Que tenho eu a ver com isto! – disse ela para consigo. – Que tenho eu a ver com tudo isto. Ou com a criança que está para nascer! Até parece que ninguém me pediu a opinião.

A vida às vezes toma conta de uma pessoa, apodera-se-lhe do corpo, escreve-lhe a história e, no entanto, nada é real e a pessoa sente-se como se tivesse sido ignorada.

– Vou esperando – disse Mrs. Morel para consigo. – Vou esperando, e aquilo por que espero nunca vem.

Depois, arrumou a cozinha, acendeu o candeeiro, pôs mais carvão na lareira, separou a roupa que havia de lavar no dia seguinte, pô-la de molho e, em seguida, sentou-se a costurar. Durante horas a fio, a agulha brilhou a intervalos regulares, atravessando o pano. De vez em quando, suspirava e mudava de posição, para aliviar as costas. Durante todo esse tempo só pensava numa coisa: como tirar o melhor partido daquilo que tinha, para bem dos filhos.

O marido chegou às onze e meia. Vinha de faces vermelhas e luzidias por cima do bigode preto. Meneava a cabeça afirmativamente. Via-se que estava contente consigo mesmo.

– Oh!... Oh!... estavas à minha espera, cachopa? ’Tive ’àjudar o Anthony, e qu’achas tu qu’ele me deu? Uma triste meia-coroa e mai’ nada, nem mais um tostão...

– Ele deve achar que o resto é para a cerveja que tu bebeste – disse ela, secamente.

– Mas não bebi... não bebi, não... palavra. Hoje inté bebi muito pouco. – A voz adocicou-se. – Toma, trouxe-te um bocado de pão de gengibre e um coco para as crianças. – E colocou em cima da mesa o pão de gengibre e o coco, aquela coisa peluda. – Nã, nunca foste capaz d’agradecer nada na vida, poi não?

Como se cumprisse um ritual, ela pegou no coco e chocalhou-o, para ver se tinha leite.

– Esse é dos bons, podes apostar o que quiseres. Deu-mo o Bill Hodgkisson. Bill, disse eu, tu num vais precisar de três cocos só pra ti, poi não? Num me queres dar um pròs meus miúdos? Tá bem, Walter, disse ele, escolhe o que t’agradar mais. E eu peguei num e agradeci-lhe. Num o queria abanar à frente dele, mas vai ele e diz: É melhor veres s’é memo bom, Walt... Por isso, vi logo que era, tás a perceber? É um tipo porreiro, o Bill Hodgkisson, é um tipo memo porreiro!

– Um homem dá seja o que for, se estiver bêbado, e vocês estavam os dois bêbados – disse Mrs. Morel.

– Vá, diz lá, minha desavergonhada, quem é que estava bêbado? Sempre gostava de saber – disse Morel. Estava todo inchado por ter dado uma ajuda na taberna, e nunca mais se calava.

Mrs. Morel, já muito farta da lengalenga, foi para a cama o mais depressa que pôde, deixando-o a tratar do lume.

Mrs. Morel descendia de uma família tradicional da burguesia, de famosos independentes que tinham lutado ao lado do Coronel Hutchinson, e se mantinham arreigados Congregacionistas. O avô vira falir o seu negócio de rendas numa altura em que muitos fabricantes de Nottingham haviam ficado arruinados. O pai, George Coppard, era mecânico. De constituição forte, bem-parecido e imponente, tinha grande orgulho na brancura da sua pele e nos seus olhos azuis, mas mais orgulho ainda na sua integridade de carácter. Gertrude parecia-se com a mãe na fragilidade da estatura, mas herdara dos Coppards o temperamento orgulhoso e inflexível.

George Coppard ressentia-se amargamente da pobreza em que vivia. Chegou a capataz dos mecânicos dos estaleiros de Sheerness. Mrs. Morel – Gertrude – era a sua segunda filha. Ela só tinha olhos para a mãe, que amava acima de tudo: mas tinha os olhos claros e provocantes dos Coppards e a sua testa alta. Lembrava-se de detestar a forma prepotente como o pai tratava a mãe, mulher gentil, bem-disposta e afável. Lembrava-se de ir a correr pelo molhe até ao barco. Lembrava-se de ser mimada e elogiada por todos os trabalhadores quando entrava nos estaleiros, pois era uma criança delicada e muito segura de si. Lembrava-se da velha professora, mulher caricata, de quem se tornara assistente e com quem sempre gostara de trabalhar. E ainda conservava a bíblia que John Field lhe dera. Costumava voltar com ele da missa quando tinha dezanove anos. Filho de um comerciante abastado, tinha ido estudar para Londres e viria a dedicar-se aos negócios.

Lembrava-se sempre em pormenor de uma certa tarde, num domingo de Setembro, em que se tinham ido os dois sentar debaixo da parreira nas traseiras da casa do pai dela. O sol rompia por entre os recortes das folhas da videira, cobrindo as suas cabeças de arabescos de luz, de belo efeito, como mantilha de renda. Algumas das folhas, de um amarelo muito puro, pareciam flores abertas, amarelas e planas.

– Agora não te mexas – exclamara ele. – Os teus cabelos nem sei o que parecem! Brilham como o cobre ou como o ouro, estão vermelhos como cobre incandescente, raios de fios de ouro onde o sol os ilumina. Não sei porque dizem que são castanhos. A tua mãe chama-lhe pêlo de rato.

Os olhos dela encontraram os dele, cintilantes, mas o seu rosto cristalino não deixava transparecer a exaltação que sentia crescer dentro de si.

– Dizes então que não tens queda para o negócio – continuou ela.

– E não tenho... Detesto negócios – gritou ele, empolgado.

– E que gostavas de seguir a vida religiosa – disse ela, quase implorando.

– Gostava... Gostava mesmo muito, se achasse que podia vir a ser um pregador fora de série.

– Então, porque não segues... Porque não segues? – A voz dela era um desafio. – Se eu fosse homem, nada me conseguia deter.

A pose era altiva, a cabeça erguida – ele quedava-se tímido diante dela.

– Mas o meu pai é tão casmurro. Jurou que me há-de meter nos negócios e sei que assim será.

– Mas tu já és um homem! – gritara ela.

– Ser um homem não é tudo – respondera ele, com um gesto de confuso desalento.

Agora, enquanto tratava da lida da casa nas Bottoms, e sabendo já o que significava ser um homem, ela percebia que isso não era tudo de facto.

Aos vinte anos, saíra de Sheerness por razões de saúde. O pai tinha-se reformado e voltado para Nottingham. O pai de John Field ficara arruinado e o filho era professor em Norwood. Ao fim de dois anos sem notícias, resolveu investigar: ele tinha casado com a senhoria, uma mulher de quarenta anos, viúva abastada.

Mesmo assim, Mrs. Morel conservava a bíblia que John Field lhe dera. Não acreditava que ele fosse aquilo que ela tinha pensado – enfim, compreendia agora muito bem o que ele podia ou não podia ter sido. Guardava por isso aquela bíblia e a sua lembrança no fundo do coração, para seu próprio conforto. Em trinta e cinco anos, até ao dia em que ele morreu, nunca pronunciou o seu nome.

Aos vinte e três anos, encontrou um rapaz de Erewash Valley numa festa de Natal. Morel tinha então vinte e sete anos. Boa figura, garboso e elegante. O cabelo era preto e ondulado, luzidio, e ostentava uma barba negra, vigorosa, que se via nunca ter sido rapada. As faces eram coradas, e a boca vermelha e húmida chamava a atenção porque se ria muito e com vontade. Tinha essa qualidade rara que é um riso cheio e musical. Gertrude Coppard contemplara-o fascinada: era atraente e divertido, a sua voz adquiria facilmente requebros cómicos e grotescos, e mostrava-se sempre disponível e amável com toda a gente. O pai dela também tinha um acentuado sentido de humor, mas a atirar para o sarcástico. O deste homem era diferente: doce, sem pretensões intelectuais, caloroso, dir-se-ia uma constante cabriola verbal.

Ela era o oposto. Tinha um espírito receptivo e curioso, que se deleitava e divertia a ouvir os outros, e era hábil a fazê-los falar. Adorava discutir ideias, pelo que a consideravam muito intelectual. Nada lhe dava mais prazer que falar de religião, filosofia ou política com um homem sabedor. Porém, raramente se podia dar a esse luxo. Contentava-se por isso em ouvir as pessoas falarem-lhe dos seus problemas.

Fisicamente, era pequena e de constituição frágil, testa muito alta orlada de cachos de caracóis castanhos. Os olhos eram azuis, francos, honestos e inquiridores. As mãos eram as belas mãos dos Coppards. Sóbria no trajar, envergava nesse dia um vestido de seda azul-escura e, como únicos enfeites, um original cordão de prata com berloques e um alfinete de ouro entrançado. Ainda intacta e sem mácula, era profundamente religiosa e impregnada de genuína candura.

Walter Morel sentia-se literalmente derretido perante ela. Para este mineiro, ela era algo de misterioso e fascinante: uma senhora. Quando lhe dirigiu a palavra, fê-lo com o sotaque do Sul e num inglês tão puro que o deixou emocionado. Ela observava-o. Ele era bom dançarino, como se, para ele, dançar fosse algo de natural, puro prazer. O avô dele era um refugiado francês que se casara com uma criada de bar inglesa – se é que tinham chegado a casar. Gertrude Coppard contemplava o jovem mineiro, vendo-o dançar com subtil exultação em cada requebro, em cada movimento, e o seu rosto dir-se-ia a flor do seu corpo, rosado e envolto em negras madeixas, de riso qualquer que fosse o par que tivesse ido buscar para dançar. Achava-o maravilhoso, diferente de todos os outros homens que já tinha visto. O pai era para ela o homem-modelo. Mas George Coppard, o orgulho em pessoa, homem bem-parecido e um tanto amargo, que elegia como leitura a teologia e nutria simpatia apenas por um homem – o apóstolo São Paulo –, George Coppard, homem de pulso inflexível e ironia à flor da pele, para quem o prazer sensual não existia, era radicalmente diferente do mineiro. A própria Gertrude desprezava a dança: era arte para a qual não sentia a menor inclinação, e nem a quadrilha ela aprendera a dançar. Era puritana, como o pai, um espírito elevado e determinado. Não admira pois que a dourada e nocturna suavidade do fogo sensual que jorrava do corpo daquele homem, incandescente como a chama de uma vela, sem submissão nem repressão da mente, tão diferente da vida que ela se impunha, fosse aos olhos dela algo de maravilhoso, de transcendente.

Ele aproximou-se e curvou-se diante dela. Uma onda irradiante de calor invadiu-a, como se tivesse bebido vinho.

– Agora, vossemecê vem dançar esta comigo – disse ele, acariciando-a com a voz. – É fácil, vai ver. Estou morto por vê-la dançar.

Ela, que já lhe tinha dito que não sabia dançar, ergueu os olhos perante tanta simplicidade, e sorriu. O seu sorriso, belíssimo, deixou o jovem sem discernimento.

– Não, não danço – disse, docemente. As suas palavras soaram cristalinas, musicais.

Sem saber porque o fazia – geralmente adoptava a atitude correcta por instinto –, ele sentou-se ao lado dela, inclinando-se com reverência.

– Mas não quero que fique sem dançar – protestou ela.

– Não, não me apetece dançar esta... não é das que eu mais gosto.

– O que não o impediu de me vir buscar.

Morel deu uma sonora gargalhada.

– Nem tinha pensado nisso. Vejo que não perde tempo a cortar-me o topete.

Foi a vez de ela dar uma risadinha breve.

– Olhando para si, ninguém há-de dizer – disse ela.

– Sou como o galarote: quando arrebito o topete, não há nada a fazer – rematou ele, com forte gargalhada. – Não quer beber nada? – perguntou a seguir.

– Não, obrigada... não tenho sede.

Ele hesitou, percebeu que ela era completamente abstémia, e sentiu o peso da recusa.

Enveredou então por uma série de perguntas delicadas, sobre questões interessantes, a que ela respondeu com brilho. Ele parecia-lhe fascinante.

– E pensar que você é mineiro! – exclamou ela, surpreendida.

– É verdade. Desde os dez anos.

Ela olhou-o com enlevada tristeza.

– Desde os dez anos!... E não era duro de mais?

– Depressa nos habituamos. Vivemos como ratos, e vimos cá acima à noite para ver como vão as coisas.

– Fico cega só de pensar – disse ela, fazendo uma careta.

– Como as toupeiras! – disse ele com uma risada. – É isso mesmo, e há tipos que andam às voltas como as toupeiras. – Depois, espetou a cara, como as toupeiras fazem ao focinho para farejarem o caminho, semicerrando os olhos para se orientarem. – Custa, mas conseguem! – disse ele, ingenuamente. – Vossemecê nunca há-de ter visto os buracos por onde elas entram. Qualquer dia, tem de me deixar mostrar-lhe um, e então já fica a saber como é.

Ela olhou para ele estupefacta. A vida abria de súbito um caminho novo à sua frente. Ela sabia como era a vida dos mineiros, a trabalharem às centenas debaixo da terra, só à noite vindo à superfície. Havia nele muita nobreza. Arriscava a vida diariamente e fazia-o com alegria. O olhar dela era um apelo, em toda a sua pureza e humildade.

– Vossemecê gostava de ir ver, não gostava? – perguntou ele, ternamente. – Se calhar não; era capaz de se sujar.

Nunca ninguém a tinha tratado por vossemecê.

Casaram no Natal seguinte. Durante três meses ela foi perfeitamente feliz, e muito feliz por mais seis meses.

Ele tinha assinado o juramento e ostentava a fita azul dos abstémios: gostava de dar nas vistas. A casa onde moravam era dele, pensava ela. Era pequena, mas razoável, e estava bem mobilada, com peças sólidas e dignas, a condizer com a sua alma austera. Mrs. Morel dava-se pouco com as vizinhas, e a mãe e as irmãs do marido desdenhavam dos seus modos senhoris; mas vivia bem sem elas, desde que tivesse a companhia do marido.

Às vezes, quando se cansava das juras de amor e tentava abrir-lhe o coração e falar de assuntos sérios, percebia que ele a escutava com deferência, mas sem compreender. Esta atitude cerceava o seu esforço para aprofundarem o conhecimento íntimo um do outro, e chegava a sentir medo. Havia noites em que ele se mostrava visivelmente inquieto, ansioso para sair: era óbvio que a companhia dela não lhe chegava. Viu, por isso, com bons olhos ele começar a fazer pequenos biscates.

Morel era um homem extremamente habilidoso, capaz de fazer ou consertar fosse o que fosse. Mal ela dizia, por exemplo:

– Gosto tanto do esborralhador da tua mãe... é pequenino e tão jeitoso.

Logo ele respondia:

– Gostas, minha linda? Pois bem, se eu fiz aquele, também posso fazer um para ti.

– O quê... mas é de aço!

– E depois? Vais ter um igual ou muito parecido.

Não se importava com a porcaria que ele fazia, nem com o barulho das marteladas. Via-o entretido e feliz, era quanto lhe bastava.

Mas um dia, no sétimo mês de casada, estava ela a escovar-lhe o casaco domingueiro quando sentiu uns papéis no bolso interior. Num acesso de curiosidade, tirou-os do bolso para ver de que se tratava. Ele raramente usava a sobrecasaca do dia do casamento, e ela nunca sentira curiosidade pelos seus papéis. Ao lê-los, viu tratar-se das contas da mobília, ainda por pagar.

– Ouve lá – disse-lhe ela à noite, depois de ele se ter lavado e acabado de jantar. – Encontrei isto no teu fato de casamento. Então ainda não pagaste as contas?

– Não... ainda não tive tempo.

– Mas disseste que já estava tudo pago. O melhor é eu ir a Nottingham no sábado e pagar tudo. Não me agrada nada estar sentada numa cadeira que não é minha, nem comer numa mesa que ainda não está paga.

Ele não respondeu.

– Posso levar o teu livro de cheques, não posso?

– Podes, mas não te vai servir de nada.

– Mas eu julgava... – começou ela. Ele tinha-lhe dito que tinha algum dinheiro de lado. Percebeu, porém, que não adiantava fazer mais perguntas, e ficou sentada muito hirta, ofendida e indignada.

No dia seguinte foi falar com a mãe dele.

– Não foi a senhora que comprou a mobília para o Walter? – perguntou-lhe.

– Fui, sim. – respondeu a outra, sacudida.

– E quanto é que ele lhe deu?

A mulher mostrou-se indignada:

– Oitenta libras, se é isso que quer saber.

– Oitenta libras! Mas ainda falta pagar quarenta e duas!

– E que tenho eu com isso?

– Mas, então, para onde foi o dinheiro?

– Se procurar, há-de encontrar os recibos... acho eu... tirando dez libras que ele me devia, e seis libras que é quanto custa aqui um casamento.

– Seis libras! – repetiu Gertrude Morel, sem querer acreditar. Parecia-lhe uma aberração que, depois de o seu pai gastar tanto dinheiro com o casamento, os pais de Walter fossem capazes de tirar mais seis libras ao filho para a comida e bebida que tinham oferecido.

– E quanto é que ele enterrou nas casas dele? – perguntou Gertrude.

– As casas dele?... Que casas?

Gertrude Morel ficou sem pinga de sangue. O marido tinha-lhe dito que a casa onde vivia e a outra ao lado eram suas.

– Estava convencida de que a casa onde moramos... – começou ela.

– Essas casas são minhas, as duas – disse a sogra. – E não estão livres de encargos. Tenho de arranjar maneira de pagar as hipotecas.

Gertrude estava lívida e sem fala. Neste momento era a réplica do pai.

– Então nós devíamos pagar renda – disse friamente.

– O Walter paga-me renda – replicou a mãe.

– E quanto é? – quis saber Gertrude.

– Seis xelins e seis dinheiros por semana – retorquiu a mãe.

Era mais do que a casa valia. Gertrude continuou a olhar em frente de cabeça bem levantada.

– Sorte a sua – disse a mulher, em tom mordaz. – Ter um marido que lhe poupa as preocupações com o dinheiro, e a deixa fazer o que quer.

A jovem manteve-se em silêncio.

Ao chegar a casa, pouco contou ao marido, mas a sua atitude para com ele mudou. Algo na sua alma honrada e orgulhosa ficara cristalizado, duro como rocha.

Quando Outubro chegou, ela só pensava no Natal. Dois anos antes, pelo Natal, tinha-o conhecido. No Natal anterior tinha-se casado com ele. No próximo Natal ia dar-lhe um filho.

Graças à sua natureza afável, depressa travou conhecimento com as vizinhas, com quem passava bons bocados a conversar, e só tinha receio de que a diferença na maneira de falar as levasse a pensar, como a família dele, que ela se estava a dar ares. Deixavam-na sempre tomar a iniciativa de meter conversa, mas gostavam dela.

– A senhora não dança, pois não? – perguntou-lhe a vizinha do lado em Outubro, quando todos falavam na escola de dança que ia abrir por cima da estalagem Brick and Tile, em Bestwood.

– Não... nunca senti a menor inclinação – respondeu Mrs. Morel.

– Veja como são as coisas! E logo foi casar com o seu homem. Sabe que ele é um dançarino famoso?

– Não sabia que era famoso – disse Mrs. Morel a rir.

– Pois fique sabendo que é! Pois se ele até deu aquelas aulas de dança durante mais de cinco anos no Clube dos Mineiros.

– Ah, deu?

– Deu, pois. – A mulher assumiu um ar de desafio. – E a casa estava à cunha todas as terças, quintas e sábados... e muita coisa por lá se passava... pelo menos era o que se dizia...

Nada era mais penoso para Mrs. Morel do que este tipo de conversas com que se via assediada. Nos primeiros tempos, as mulheres não a poupavam, pois, mesmo sem querer, ela estava muito acima de todas elas.

Entretanto, o marido começou a chegar a casa muito tarde.

– Eles agora trabalham até mais tarde, não é? – perguntou ela à lavadeira.

– Não mais tarde qu’o costume, não me parece. Mas param na taberna da Ellen p’ra beberem uma caneca de cerveja e depois ficam à conversa, ora aí tem!... Depois comem o jantar frio... e é bem feita.

– Mas Mr. Morel não bebe.

A mulher deixou cair a roupa que tinha na mão, olhou para Mrs. Morel e continuou no seu trabalho sem dizer uma palavra.

Gertrude Morel passou muito mal quando o filho nasceu. Morel tratou-a bem, o melhor possível. Mas ela sentia-se muito sozinha, longe da família. Agora, sentia-se só na companhia dele, e ainda mais só quando ele estava presente.

O menino nasceu muito pequenino e débil, mas depressa recuperou. Era uma bela criança, de cabelo louro escuro todo aos caracóis e uns olhos azuis, muito escuros, que se foram tornando a pouco e pouco cinzento-claro. A mãe tinha por ele um amor desmedido. Chegara precisamente no momento em que o peso da desilusão lhe era mais difícil de suportar – quando a sua vida começava a ficar tremida e a sua alma desolada e solitária. Ela só tinha olhos para o filho, e o pai sentia ciúmes.

Com o tempo, Mrs. Morel acabou por sentir desprezo pelo marido. Entregou-se ao filho e afastou-se do pai. Ele passara a dar-lhe menos atenção e a novidade de viver em casa dele já passara. Não tinha cabeça, dizia ela amargamente para si própria. Só se preocupava com o presente. Não tinha força de vontade e os seus actos eram só fogo de vista.

Começou então uma batalha entre marido e mulher, uma batalha terrível e sangrenta que só terminou com a morte de um deles. Ela lutava para o fazer assumir as suas responsabilidades, cumprir as suas obrigações. Mas ele era muito diferente dela: a sua natureza era puramente sensual, e ela esforçava-se por torná-la moral, religiosa. Tentava a todo o custo fazê-lo enfrentar a realidade, mas ele, não conseguindo suportar a pressão, perdeu a cabeça por completo.

Quando o bebé era ainda pequenino, o temperamento do pai tornou-se de tal maneira irascível que chegava a ser perigoso. Bastava a criança fazer a mais pequena coisa, para ele começar logo a ralhar. Mais qualquer coisa, e logo as suas mãos rudes de mineiro agrediam o bebé. Nessa altura, Mrs. Morel ficava zangada com o marido dias a fio, e ele deixava-se ficar a beber até tarde pelas tabernas, e ela já não se importava. Porém, quando ele chegava a casa, zurzia-o com sarcasmo.

O fosso que se cavava entre eles levava-o, consciente ou inconscientemente, a ofendê-la com grosserias de que anteriormente não seria capaz. William tinha apenas um ano e começava a andar e a dizer gracinhas. Era uma criança encantadora, conservando ainda os seus caracóis louros de bebé, que começavam agora a escurecer. Gostava muito do pai, que se mostrava carinhoso, indulgente e cheio de paciência com ele e jeito para o entreter, quando estava de maré. Quando se punham os dois a brincar, Mrs. Morel chegava por vezes a pensar qual deles seria o mais infantil.

Morel levantava-se sempre muito cedo, entre as cinco e as seis horas da manhã, fosse ou não dia de trabalho. Aos domingos, levantava-se e fazia o pequeno-almoço. O fogo ficava aceso toda a noite, pois era ateado antes de se irem deitar. Isto é, punham na lareira um grande bocado de carvão, que ia ardendo lentamente até de manhã. Aos domingos de manhã, o menino levantava-se com o pai, e a mãe ficava na cama mais uma hora. Esses eram para ela os momentos mais tranquilos: quando pai e filho brincavam e tagarelavam no andar de baixo.

William tinha só um aninho, e a mãe tinha muito orgulho nele – que bonito que ele era. Ela não tinha grandes possibilidades, mas as irmãs traziam o menino bem vestido. Ao vê-lo com o chapelinho branco de aba revirada enfeitado com uma pena de avestruz, casaquinho branco, e a cabeça emoldurada de fartos caracóis, sentia-se a mãe mais orgulhosa do mundo. Um domingo de manhã, Mrs. Morel deixou-se ficar a ouvir os dois a tagarelar, e acabou por adormecer. Quando desceu, brilhava uma grande fogueira na lareira, a sala estava aquecida, o pequeno-almoço atabalhoadamente colocado em cima da mesa, e Morel sentado no seu cadeirão, encostado à chaminé, com ar tímido. De pé, entre as suas pernas, estava o filho – com a cabeça muito redonda e bizarra, tosquiada que nem uma ovelha – a olhar para ela, espantado; e, numa folha de jornal aberta sobre o tapete, uma miríade de caracóis em forma de meia-lua, luzindo à luz rubra da fogueira como pétalas de malmequer.

Mrs. Morel estacou. Era o seu primeiro filho. Ficou lívida, muda com o choque.

– Então, que tal? – disse Morel, rindo contrafeito.

Ela cerrou os punhos, ergueu-os e avançou para ele. Morel encolheu-se.

– Estou capaz de te matar! Isso é que eu estou! – disse, sufocada de raiva, brandindo os punhos.

– Num queres qu’ele fique uma menina, poi não? – disse Morel, com o medo na voz, baixando a cabeça para não olhar para ela. A vontade de rir desaparecera como por encanto.

A mãe contemplou a cabeça do filho, rapada, coberta de mechas escortanhadas. Pousou-lhe as mãos no cabelo e acariciou-lhe a cabeça.

– Oh... meu menino! – balbuciou. Os lábios tremiam-lhe, o rosto contraiu-se-lhe, e, pegando na criança, agarrou-se a ela a chorar sentidamente. Ela era uma dessas mulheres que não conseguem chorar: a quem chorar dói tanto como dói aos homens. Era como se cada soluço lhe arrancasse um pedaço de si mesma. Morel continuava sentado com os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos entrelaçadas e tão crispadas que os nós dos dedos estavam brancos. Tinha o olhar pregado no fogo, atordoado, mal conseguindo respirar.

A cena finalmente terminou, ela acalmou a criança e levantou a mesa do pequeno-almoço; mas deixou ficar o jornal pejado de caracóis aberto sobre o tapete. Até que o marido se resolveu a apanhá-lo e a deitá-lo para a lareira. Ela entregou-se às suas ocupações de boca fechada e sem fazer barulho. Morel, de orelha murcha, arrastou-se pela casa o dia todo, com um ar muito infeliz, e nesse dia as refeições foram para ele um suplício. Ela falava com ele delicadamente, sem aludir ao sucedido, mas ele sentia que algo chegara ao fim.

Mrs. Morel disse mais tarde que tinha sido um disparate reagir como reagira, pois o cabelo do menino teria de ser cortado mais tarde ou mais cedo, e acabou mesmo por reconhecer que até tinha sido bom ele fazer de barbeiro naquele dia. Porém, ela sabia, tal como Morel, que aquele acto lhe tinha provocado na alma uma transformação radical. A cena perdurou na sua memória para sempre, como o momento mais penoso de toda a sua vida.

Este exemplo de flagrante boçalidade masculina foi a lança que matou o seu amor por Morel. Anteriormente, embora lutasse amargamente contra ele, logo corria atrás dele preocupada, como se tivesse medo de que ele lhe fugisse. Mas agora deixara de recear pelo seu amor: olhava-o como um estranho e a vida parecia-lhe muito mais suportável.

Não obstante, as zangas continuavam. Os seus elevados padrões morais continuavam intactos, herdados de gerações e gerações de Puritanos. Sentia-os agora como um instinto religioso, e comportava-se com ele de um modo quase fanático, porque o amava, ou, pelo menos, o tinha amado. Se ele pecava, ela torturava-o. Se ele bebia e mentia, umas vezes chamava-lhe poltrão, outras valdevinos, mas as chicotadas sucediam-se, impiedosas.

O mal era ela ser demasiado o seu oposto. Não se contentava com o pouco que ele tinha para lhe dar, exigia que ele fosse tudo aquilo que deveria ser. E, assim, ao tentar torná-lo mais nobre do que era possível, destruiu-o. Feriu-se, magoou-se, cobriu-se de cicatrizes, mas sem perder nada da sua dignidade. Além disso, tinha também as crianças.

Ele bebia demasiado, se bem que não mais do que muitos mineiros, e só bebia cerveja, pelo que a sua saúde, embora afectada, nunca o foi com gravidade. Os fins-de-semana eram os seus dias de maiores desmandos. Ia todas as sextas, sábados e domingos para o Clube dos Mineiros, e por lá ficava até à hora de fechar. Às segundas e terças só muito a custo se levantava para sair de casa por volta das dez horas. Às vezes ficava em casa às quartas e quintas à noite, ou saía só por uma hora. E, geralmente, nunca deixava de ir trabalhar por causa da bebedeira.

Mas, embora fosse um operário cumpridor, o salário baixava cada vez mais. Era um fala-barato, um língua de trapos; detestava qualquer forma de autoridade e passava a vida a desrespeitar os capatazes. Era ouvi-lo dizer na taberna do Palmerston:

– O gajo veio à nossa galeria esta manhã e disse: «Sabes, Walter, ist’assim num tá bem. Quando é qu’arranjas estas vigas?» E vou eu e digo: «De qu’é que tás a falar? Qu’é qu’as vigas têm?» «Num tão bem, isto aqui tá mal», diz ele. «Um destes dias, o tecto ’inda vem por aí abaixo.» E vou eu e digo: «Atão o melhor é pores-te em cima duma rocha e segurares o tecto coa cabeça». Ele então perdeu a cabeça e pôs-se a berrar e a praguejar, e os outros gajos todos a rir. – Morel era um bom imitador. Arremedava a voz encorpada e roufenha do capataz, a dar-se ares de bem falante.

– «Num admito faltas de respeito, Walter. Quem sabe mais, tu ou eu?» E vou eu e digo: «Nunca tive oportunidade de ver o qu’é que tu sabes, Alfred. Mas vê lá, não te saia o tiro pela culatra».

E Morel continuava a contar histórias, para gáudio dos companheiros de farra. Algumas eram verdadeiras. O capataz não era um homem culto. Ele e Morel conheciam-se desde miúdos, pelo que, embora não gostassem um do outro, ambos sabiam mais ou menos com o que podiam contar e aceitavam-se mutuamente. Porém, Alfred Charlesworth não perdoava ao seu tarefeiro estas graçolas de taberna. Por conseguinte, e embora Morel fosse um mineiro competente, tendo chegado até a ganhar cinco libras por semana na altura em que casou, começou a apanhar galerias cada vez piores, onde o carvão era fino e difícil de extrair, logo, de baixo rendimento.

Um tarefeiro era um subempreiteiro. A dois ou três tarefeiros era dada uma certa extensão de um filão, que eles tinham de explorar até determinado comprimento, recebendo cerca de três quartas partes por cada tonelada de carvão que extraírem. Daí, tinham de tirar dinheiro para pagar aos trabalhadores, os mineiros propriamente ditos e os carregadores, que eram contratados ao dia, e ainda comprar as ferramentas, o pó, e tudo o que fosse necessário. Se a galeria fosse das boas, e a mina trabalhasse em contínuo, podiam chegar às cem ou duzentas toneladas de carvão e ganhar um bom dinheiro. Se a galeria fosse das más, podiam trabalhar o mesmo, mas ganhar muito pouco. E, em trinta anos, Morel nunca tinha apanhado uma boa galeria. Mas, a fazer fé na mulher, a culpa era toda dele.

Por outro lado, no Verão há pouco trabalho nas minas. Nas manhãs soalheiras, é frequente ver os homens voltarem para casa em grupos por volta das onze ou do meio-dia. Não se vêem os vagões vazios junto às minas. Na encosta, as mulheres olham para o vale enquanto batem os tapetes contra a cerca, e põem-se a contar os vagões que a locomotiva leva pelo vale fora até às minas.

– Sete – dizem umas para as outras – vão pra Minton ou pra Spinney Park. Num dá pra manter uma mina.

E as crianças, quando voltam da escola à hora de almoço, olham para os campos e, ao verem as roldanas paradas nas torres, dizem:

– Minton já parou. O pai vai voltar pra casa.

E há em toda a gente, homens, mulheres e crianças, uma espécie de tristeza que os ensombra, porque o dinheiro vai ser pouco no fim da semana.

Morel devia dar à mulher trinta xelins por semana para as despesas da casa – renda, comida, vestuário, cotas das associações, seguro, médico. Às vezes, quando a semana era farta, dava-lhe trinta e cinco; mas essas ocasiões não chegavam para compensar as vezes em que só lhe dava vinte e cinco. No Inverno, com uma galeria razoável, Morel podia fazer cinquenta ou cinquenta e cinco xelins por semana. Com isso já se dava por contente. Às sextas à noite, sábados e domingos, gastava principescamente, esbanjando até ao último tostão, ou quase. E, de tanto dinheiro, raramente guardava algum para dar aos filhos, ou para lhes comprar duas libras de maçãs. Gastava tudo na bebida. Nos tempos difíceis, a situação tornava-se preocupante, mas ele também não se embebedava tantas vezes, e Mrs. Morel costumava dizer:

– Acho que prefiro quando andamos sem dinheiro, porque quando ele ganha muito não há um minuto de sossego nesta casa.

Se ele ganhasse quarenta xelins, guardava dez; de trinta e cinco, guardava cinco; de trinta e dois, guardava quatro; de vinte e oito, guardava três; de vinte e quatro, guardava dois; de vinte, guardava um xelim e seis dinheiros; de dezoito, guardava um; de dezasseis, guardava seis dinheiros. Não poupava um tostão, nem dava à mulher a oportunidade de poupar. Pelo contrário, era ela muitas vezes que tinha de pagar as dívidas que contraía; não as da taberna, que essas nunca eram cobradas às mulheres, mas quando, por exemplo, comprou um canário, ou uma bengala da moda.

Por alturas da feira anual, o trabalho estava a correr mal e Mrs. Morel esforçava-se por poupar para as despesas do parto. Sentia-se, por isso, indignada quando pensava que o marido andava lá por fora a gastar dinheiro e a divertir-se, enquanto ela ficava em casa, mortificada. Havia dois dias feriados. Na terça de manhã, Morel levantou-se cedo, muito bem-disposto. Mal o dia rompeu, ainda antes das seis horas, ouviu-o descer a escada a assobiar. Assobiava muito bem, com alegria e musicalidade – quase sempre hinos religiosos. Ele tinha sido menino de coro, com uma linda voz, e solista na catedral de Southwell. Bastava ouvi-lo assobiar para se perceber.

A mulher ficou a ouvi-lo traquinar no jardim, enquanto serrava e martelava, sempre a assobiar. Sentia-se protegida e tranquila quando ficava assim a ouvi-lo de manhã cedo, ela na cama e as crianças ainda a dormir, e ele enchendo a manhã ensolarada, feliz, à sua maneira masculina.

Às nove horas, enquanto as crianças, descalças, brincavam em cima do sofá e a mãe lavava a loiça, ele parou de carpinteirar e voltou para casa, de mangas arregaçadas e colete todo aberto. Ainda era um belo homem, com os seus cabelos pretos ondulados e um farto bigode preto. As faces estavam talvez coradas em demasia e havia nele um certo ar enfadado. Mas desta vez estava bem-disposto e foi direito à copa, onde a mulher estava a lavar.

– O quê, tás aí? – disse ele, fanfarrão. – Gira mas é daí pra fora qu’eu quero lavar-me.

– Já agora podes esperar que eu acabe – respondeu ela.

– Ah, posso? E s’eu num quiser?

Esta ameaça brincalhona animou Mrs. Morel.

– Tens bom remédio: vais lavar-te na selha.

– Ah! Ah! Estás hoje muito sirigaita.

E, dizendo isto, ficou parado a olhá-la por uns segundos, afastando-se em seguida, à espera de que ela terminasse.

Quando queria, ainda sabia pôr-se todo galante. Caprichava geralmente no lenço que punha ao pescoço. Desta vez, porém, aperaltou-se todo. Foi tanto o entusiasmo com que se lavou com grande estardalhaço, tal a alacridade com que correu para o espelho da cozinha e, curvando-se, porque o espelho era muito baixo, penteou o cabelo molhado, abrindo um irrepreensível risco ao lado, que Mrs. Morel acabou por se irritar. Escolheu para a camisa um colarinho virado para baixo, pôs a gravata preta e vestiu o fato domingueiro. Estava todo janota e o que o fato não conseguia dar-lhe, dava-lhe o instinto que tinha para tirar partido da sua boa figura.

Às nove e meia, Jerry Purdy veio chamar o amigo. Jerry era o melhor amigo de Morel, mas Mrs. Morel não gostava dele. Era um homem alto e magro, com uma daquelas caras afiladas que parecem não ter pestanas. Caminhava muito hirto, com rígida dignidade, como se tivesse engolido um pau de vassoura, e tinha uma personalidade fria e astuta. Generoso, quando e com quem queria, parecia gostar muito de Morel, a quem mais ou menos servia de mentor.

Mrs. Morel detestava-o. Tinha conhecido a mulher dele, que morrera tuberculosa e fora acometida, perto do fim, de um ódio tão violento pelo marido, que mal ele entrava no quarto, tinha logo uma hemorragia. Nada disto, no entanto, parecia ter abalado Jerry. Agora, era a filha mais velha, uma rapariga de quinze anos, quem tratava da casa pobre onde moravam e cuidava dos irmãos mais novos.

– É um pau de virar tripas, ruim e unhas de fome! – disse Mrs. Morel.

– Nunca em toda a minha vida dei por que o Jerry fosse ruim – protestou Morel. – Cá pra mim, num s’encontra em lado nenhum tipo mais mãos-largas e mais liberal do qu’ele.

– Mãos-largas para ti – retorquiu Mrs. Morel. – Porque para os filhos dele, coitadinhos, a mão está sempre fechada.

– Coitadinhos, uma ova!... Coitadinhos porquê? Sempre gostava de saber.

Mas Mrs. Morel não alargou os comentários sobre Jerry.

O pomo da discórdia chegou e, esticando o pescoço escanzelado, espreitou por cima das meias cortinas da janela da cozinha, dando de caras com Mrs. Morel.

– Bom dia, minha senhora!... O seu marido está?

– Está sim.

Jerry entrou sem ser convidado e ficou parado à porta da cozinha. Não o mandaram sentar, mas ele ficou de pé, fazendo jus aos direitos dos homens e dos maridos.

– Está um belo dia! – disse, virando-se para Mrs. Morel.

– É verdade.

– Esta manhã está-se muito bem lá fora... uma rica manhã para passear.

– O senhor vai então dar um passeio? – perguntou ela.

– É verdade. Fazemos tenção d’ir a Nottingham – respondeu ele.

– Hum!

Os dois homens cumprimentaram-se alegremente; Jerry muito senhor de si e Morel menos afoito, com medo de se mostrar alegre de mais diante da mulher. Mas apertou rapidamente os atacadores das botas, com vigor. Esperava-os um passeio de dez milhas pelos campos, até Nottingham. Tendo subido a encosta a partir das Bottoms, arrostaram alegremente com a passeata matinal. Quando chegaram à taberna Moon and Stars, pararam para beberem o primeiro copo e, depois, pés ao caminho até à taberna Old Spot. Seguiam-se umas penosas cinco milhas de secura, até à Bulwell, onde os esperava uma gloriosa caneca de cerveja amarga. Mas encontraram pelo caminho um grupo de ceifeiros com o garrafão ainda cheio, e quando avistaram a cidade, Morel já ia quase a dormir. A cidade estendia-se pela encosta acima à sua frente, fumegante e difusa na claridade ofuscante do meio-dia, ostentando para sul a crista recortada de pináculos, torres de fábricas e chaminés. Ao atravessarem a última seara antes da cidade, Morel deitou-se à sombra de um carvalho e dormiu a sono solto durante mais de uma hora. Quando se levantou para seguir viagem, sentia-se esquisito.

Almoçaram em Meadows, em casa da irmã de Jerry, e depois partiram em direcção à taberna Punch Bowl, onde se associaram ao entusiasmo que rodeava uma largada de pombos. Morel nunca tinha jogado cartas, achando até que possuíam um certo poder oculto, maléfico; «retratos do diabo», era como ele lhes chamava. Era porém mestre no boliche e no dominó. Aceitou, por isso, o desafio de um homem de Newark para uma partida de boliche. Todos os homens postados ao longo do velho balcão comprido e carcomido fizeram a sua escolha, apostando num ou no outro. Morel despiu o casaco. Jerry segurava o chapéu com o dinheiro das apostas. Os homens sentados às mesas observavam. Alguns levantaram-se e chegaram-se para a frente, de caneca na mão. Morel acariciou a enorme bola de madeira e lançou-a. Derrubou os nove pinos e ganhou meia-coroa, o que o deixou de novo equilibrado.

Às sete da tarde deram-se os dois por satisfeitos e apanharam o comboio das sete e meia, de volta a casa.

Mrs. Morel passou o dia deprimida e descorçoada. Lavou a roupa que pôde, mas não conseguiu fazer mais nada. Foi William quem arrumou a casa.

– Queres que eu faça mais alguma coisa, mãe? – perguntou.

– Não, não há nada que possas fazer... excepto levares a Annie a dar uma voltinha.

– Isso não me apetece.

– Apeteça ou não, tens de ir.

E o garoto lá foi, carregado com a irmã, enquanto a mãe ficava a trabalhar. Estava furioso com ela, por lhe ter empurrado aquele fardo para cima, mas ao mesmo tempo tinha pena da mãe, porque sabia que alguma coisa se passava. E, assim, com a infância dominada pelo amor que tinha à mãe, tentava fazer o melhor que podia.

À tarde não se podia andar nas Bottoms. Toda a gente tinha vindo para a rua. As mulheres, às duas e três, sem chapéu e de avental branco, davam à língua no beco que se abria entre os quarteirões. Os homens, fazendo uma pausa entre duas canecas de cerveja, sentavam-se nos calcanhares, a conversar. O lugar cheirava mal, e os telhados de ardósia luziam no ar morno e seco.

Mrs. Morel levou a filha até ao ribeiro, no meio do prado, a não mais de duzentos metros. A água corria leve sobre pedras e bocados de panelas. Mãe e filha foram para a velha ponte dos rebanhos e debruçaram-se a olhar para a água. Do outro lado do prado, na poça onde mergulhavam as ovelhas, Mrs. Morel avistou as silhuetas nuas de alguns rapazes a saltarem à volta da poça funda e amarelada, ou uma figura cintilante recortar-se de fugida sobre o prado estático e sombrio. Sabia que William estava na poça, e morria de medo que ele se afogasse. Annie estava a brincar à sombra da velha sebe do caminho da encosta, entretida a apanhar bagas de amieiro a que chamava groselhas. A menina necessitava de muita atenção, e as moscas não a deixavam sossegada.

As crianças foram para a cama às sete horas, e ela ainda foi arrumar mais umas coisas.

Quando Walter Morel e Jerry chegaram a Bestwood, sentiram um alívio: livres da viagem de comboio, podiam acabar o dia em beleza. Entraram na taberna do Nelson com a alegria dos viajantes que regressam. Mrs. Morel dizia sempre que o marido não tinha nada a esperar do outro mundo, pois subia do mundo impuro ao purgatório quando voltava da mina, e ascendia directamente ao céu quando entrava na taberna do Palmerston.

Com o arrefecimento nocturno, os jardinzinhos das Bottoms tornavam-se mais perfumados. Mrs. Morel saiu para ver as flores e respirar o ar do entardecer. Mrs. Kirk, a vizinha, não estava em casa, o que era uma pena, pois podiam ter ficado um bocado a conversar. Estava por isso sozinha. As andorinhas negras, a que as crianças chamavam «diabinhos», riscavam o ar para trás e para a frente, como setas, por cima da sua cabeça, voltando para trás na extremidade da casa, metendo-se por baixo dos largos beirais e logo voltando a sair, mergulhando em voo picado entre pios e chilreios que pareciam vir da própria luz e não de ternos passarinhos. Alguém tinha pisado o canteiro dos malmequeres, que estava coberto de brancas pétalas de rosa. Ela baixou-se e limpou-o, endireitando as pequeninas corolas amarelas.

O dia seguinte era dia de trabalho, e os homens ficavam esmorecidos só de pensarem em tal. Alguns já se arrastavam para casa, a pensarem no sono reparador que os ia preparar para a manhã seguinte. Mrs. Morel voltou para dentro ao ouvir os seus cantares dolentes. Deram as nove horas, depois as dez, e o «par» sem aparecer. Algures, na soleira de uma porta, um homem cantava a plenos pulmões, arrastando a voz: «Guia-me, Luz Bendita.» Mrs. Morel indignava-se sempre que ouvia bêbados cantarem este hino quando a pinga lhes dava para a tristeza.

– Como se «Oh, Genoveva» não lhes chegasse... – disse ela. A cozinha estava impregnada de um cheiro a ervas cozidas e a lúpulo. No borralho, fervilhava lentamente uma grande caçarola preta. Mrs. Morel pegou num enorme alguidar de barro vermelho, deitou-lhe no fundo um monte de açúcar branco e, depois, endireitando-se para contrabalançar o peso do seu ventre, começou a despejar a cerveja.

Nesse momento Morel, chegou. Tinha estado muito bem-disposto no Nelson, mas o regresso a casa pusera-o de mau humor – resquícios do mal-estar e da irritação que sentira por ter dormido no chão à hora do calor; além disso, a consciência pesava-lhe à medida que se aproximava de casa. Não se dava conta de estar mal-humorado, mas quando o portão do jardim resistiu à primeira tentativa de o abrir, deu-lhe um pontapé que logo rebentou com o ferrolho. Entrou em casa no preciso momento em que Mrs. Morel estava a vasar a infusão de ervas da caçarola. Cambaleando ligeiramente, deu um encontrão na mesa. O líquido a ferver saltou. Mrs. Morel deu um pulo para trás.

– Meu Deus! – exclamou ela. – Chegares a casa nesse estado de embriaguez!

– Chegar a casa neste estado de quê...? – rosnou ele, de chapéu descaído sobre os olhos.

Num repente, Mrs. Morel ficou a ferver.

– Vá, diz lá que não estás bêbado! – ripostou.

Tinha pousado a caçarola e estava a mexer a cerveja para dissolver o açúcar. Ele apoiou as manápulas com força sobre a mesa e avançou ameaçadoramente para ela.

– «Vá, diz lá que não estás bêbado» – repetiu ele. – Só uma cabra estuporada como tu era capaz de pensar uma coisa dessas.

– Como passaste o dia inteiro a beber, se não estás bêbado às onze da noite... – retorquiu ela, continuando a mexer.

– Num passei o dia a beber... Num passei o dia a beber... aí é que tu t’inganas – disse ele, fora de si.

– Então, parece que me enganei – volveu ela.

– Ah, parece... Ah, parece... Não me digas...

– Sai de casa às nove da manhã, volta à meia-noite. E, além disso, ambos sabemos bem o que tu fazes quando sais com o teu querido amigo Jerry.

– O teu querido amigo Jerry... o quê?... Que história é essa?... Hem?

E avançou para ela, de queixo espetado.

– Para a bebida há sempre dinheiro, mesmo que não chegue para mais nada – disse ela.

– Hoje num gastei nem dois xelins – contrapôs ele.

– Não há-de ser de graça que te embebedas – ripostou ela. – E mais – gritou, tomada de súbita fúria –, se andaste a cravar o teu querido amigo Jerry, é melhor deixá-lo cuidar dos filhos que tem em casa, que bem precisam.

– «É melhor deixá-lo cuidar dos filhos»... Essa agora... Ond’é que vês crianças mais bem tratadas qu’as dele, sempre gostava de saber.

– As minhas, por exemplo... não as tuas, se fosses tu a tratar delas... Um homem capaz de se embebedar de manhã à noite.

– Isso é mentira, isso é mentira – gritou ele, num acesso de raiva, batendo com a mesa.

– ... Que não garante o sustento dos filhos – continuou ela.

– E que tens tu cum isso? – berrou ele.

– Que tenho eu com isso?... Ora essa, tenho e muito... Um homem que me dá uns míseros vinte e cinco xelins por semana para manter a casa... e que se põe ao fresco todo o dia... e só volta à meia-noite...

– Isso é mentira, mulher, isso é mentira!

– ... E que julga que eu vou continuar a poupar e a arranjar maneira de sobreviver, enquanto ele se embebeda e se enfrasca, de passeio até Nottingham...

– Isso é mentira, isso é mentira... cala essa boca, mulher.

A batalha atingira o auge. Cada um deles esquecia tudo o mais, menos o ódio que sentia pelo outro e a luta em que se empenhava. Ela estava tão desvairada e furiosa quanto ele. E a discussão continuou até ele lhe chamar mentirosa.

– Não – gritou ela, tomando o fôlego a custo, mal podendo respirar. – Não admito que me chames isso... tu, o mais desprezível mentiroso que este mundo já viu. – As últimas palavras saíram já arrancadas a um peito sem ar.

– És mentirosa, sim senhora! – gritou ele, desabrido, dando um murro na mesa. – Mentirosa, mentirosa!

Ela empertigou-se, de punhos cerrados.

– Se eu pudesse dava cabo de ti, meu grande bruto, meu cobarde – disse ela, com voz cava, soluçante.

E, na vaga de fúria seguinte, verteu todo o ódio exacerbado que sentia pelo marido. Ele, ripostando, bateu com a mesa no chão, fazendo-a ressoar por toda a casa, enquanto ela, por sua vez, despejava sobre ele todo o seu desprezo e o seu ódio.

– Tu conspurcas esta casa – gritou ela.

– Nesse caso vai-te embora... A casa é minha. Vai-te embora – berrou ele. – Sou eu que trago o dinheiro aqui pra casa, não és tu. A casa é minha, não é tua. Vá, desaparece... Vai-te embora!

– E ia mesmo – gritou ela, lavada em lágrimas, impotente. – Ah, isso é que eu ia, já tinha ido há muito tempo, se não fosse pelas crianças. Quantas vezes já me arrependi de não ter ido há muitos anos, quando só o tinha a ele... – disse, já sem lágrimas para verter, mas com raiva redobrada. – Julgas que foi por ti que fiquei? Julgas que se fosse por ti, hesitava por um minuto?

– Então vai-te! – berrou ele. – Vai-te!

– Não! – disse ela, encarando-o. – Não – disse ela aos gritos. – Não vai ser tudo como tu queres... Não penses que fazes tudo aquilo que queres. Tenho de pensar nas crianças. Meu Deus... – e deu uma gargalhada. – Ia ser bonito se as deixasse ficar contigo.

– Vai-te – gritou ele, sufocado, erguendo o punho. Estava com medo dela. – Vai-te!

– Quem me dera... Como eu ficava contente, como eu ria, meu Deus, se pudesse livrar-me de ti – ripostou ela.

Ele avançou afogueado, com os olhos raiados de sangue, atirou-se a ela e agarrou-lhe os braços. Ela gritou, cheia de medo, lutando para se soltar. Ele, ofegante, caindo um pouco em si, deu-lhe um encontrão, atirando-a contra a porta, e, empurrando-a lá para fora, fechou a porta de seguida com um estrondo. Depois, voltou para a cozinha, atirou-se para cima do cadeirão, enterrou a cabeça entre os joelhos, a estalar de emoção, e deixou-se afundar lentamente no torpor, cedendo à exaustão e à embriaguez.

A lua erguia-se alta e magnífica naquela noite de Agosto. Mrs. Morel, ardendo em fúria, tremia ao ver-se ali fora, sob o luar todo branco que a iluminava e lhe macerava a alma incendiada. Desalentada, ficou por breves instantes a olhar para as grandes folhas cintilantes do ruibarbo, junto à porta. Depois, respirou fundo e desceu o carreiro do jardim, toda a tremer, enquanto a criança se agitava dentro dela. Não conseguia controlar os pensamentos, e assim permaneceu por largo tempo; mecanicamente, recapitulava a última cena uma e outra vez, surgindo certas frases, certos momentos, como ferro em brasa a queimar-lhe a alma: e, de cada vez que repisava esta última hora da sua vida, cada vez o ferro em brasa a torturava, sempre nos mesmos pontos, até a ferida se acender e a dor se apagar e ela, finalmente, voltar a si. Deve ter passado uma boa meia hora neste delírio. Mas logo a noite lhe impôs a sua presença. Receosa, olhou em redor. Tinha ido até ao jardim lateral, passeando-se para cima e para baixo ao longo do muro, rente às groselheiras. O jardim era uma estreita faixa de terra, separado da estrada que cortava transversalmente entre os blocos por uma densa sebe de espinheiros.

Passou rapidamente do jardim de topo para o da frente, onde se sentiu como num golfo imenso de luz branca, com a lua a brilhar do alto, mesmo à sua frente, e o luar a elevar-se das colinas fronteiras, inundando o vale onde as Bottoms se erguiam atarracadas, quase cegando de tanto brilho. Aí, entre soluços e lágrimas, numa reacção de anticlímax, murmurava ininterruptamente:

– Monstro!... Monstro!

Nisto, sentiu qualquer coisa perto dela. Fez um esforço para se controlar e tentar perceber o que tanto lhe perturbava os sentidos. Os lírios brancos, altaneiros, estremeciam ao luar e o seu perfume pesava no ar como uma presença. Mrs. Morel deixou escapar um suspiro de medo, sufocado. Tocou nas pétalas das flores pálidas e enormes, e um arrepio sacudiu-a. Parecia que se abriam ao luar. Meteu a mão na corola branca: o ouro mal se via na ponta dos seus dedos, iluminados pelo luar. Curvou-se para contemplar a corola carregada de pólen dourado, mas só viu uma sombra indistinta. Aspirou o perfume até à alma, quase até entontecer.

Olhou em redor. A sebe cintilava debilmente na escuridão. Dela saíam flores brancas. Em frente, a colina desenhava-se difusa, apertada entre sebes altas e sombrias e irrequieta com os movimentos do gado à luz da lua. Aqui e além, o luar parecia tremer e ondear.

Mrs. Morel encostou-se ao portão do jardim, a olhar lá para fora, esquecida de tudo. Não sabia em que pensava. Tirando uma leve náusea e a consciência da criança que carregava no ventre, todo o seu ser se diluía como perfume no ar pálido e brilhante. Por fim, a criança diluiu-se também com ela no cadinho do luar e, irmanada com as colinas, os lírios e as casas, flutuaram todos em conjunto, como num êxtase.

Quando voltou a si, estava cansada, sonolenta. Languidamente, olhou em volta; os tufos de violetas brancas lembravam arbustos salpicados de roupa a secar; uma borboleta ricocheteou neles e cruzou o jardim. Seguir-lhe os movimentos fê-la despertar. Aspirou o aroma acre das violetas e o ânimo ressurgiu. Subiu o carreiro, parando hesitante junto à roseira branca. O seu perfume era doce, era singelo. Tocou as corolas brancas das rosas, abertas em folhos. O aroma fresco e as folhas frias e aveludadas lembraram-lhe a frescura da manhã ensolarada, de que ela tanto gostava. Mas agora estava cansada e precisava de dormir. Ali fora, no mistério da noite, sentia-se perdida.

Não se ouvia o mais pequeno ruído. Era evidente que as crianças não tinham acordado, ou então já tinham voltado a adormecer. Um comboio apitou no vale, a umas três milhas de distância. A noite era imensa e estranha, estendendo-se até ao infinito na sua vastidão de cinza. E da névoa prateada da penumbra chegavam-lhe aos ouvidos sons roucos e indistintos: um codornizão, ali bem perto; o suspiro rouco de um comboio; homens a gritar ao longe.

O coração amansado voltou a bater rapidamente e ela desceu à pressa o jardim lateral, em direcção às traseiras da casa. Levantou a lingueta suavemente: a porta continuava trancada, barrada à sua passagem. Bateu ao de leve, esperou e bateu de novo. Não queria acordar as crianças nem os vizinhos. Ele devia ter adormecido e não acordava com facilidade. O coração ardia-lhe com vontade de se ver dentro de casa. Agarrou-se ao puxador. Agora já estava frio e podia apanhar um resfriado; e logo agora, no seu estado!

Pôs o avental por cima dos ombros e da cabeça e correu de novo até ao jardim lateral, até à janela da cozinha. Encostando-se ao peitoril, conseguiu vislumbrar por baixo da persiana os braços do marido deitados sobre a mesa, e a cabeça negra apoiada no tampo. Estava a dormir com a cara em cima da mesa. Algo na sua atitude a fazia sentir-se cansada da existência. A candeia ardia, fumarenta – via-se pelo tom acobreado da luz que deitava. Tamborilou os dedos na janela, cada vez com mais força. Parecia que queria partir a vidraça. E ele sem acordar.

Todos os seus esforços eram vãos. Começou a tremer, em parte do contacto com a pedra, em parte de exaustão. Receando pela criança que estava para nascer, pensava no que poderia fazer para se aquecer. Foi até à carvoeira, onde estava um velho tapete da chaminé, que ela para ali tinha trazido na véspera para o trapeiro levar. Colocou-o sobre os ombros. Apesar de muito sujo, sempre a aquecia. Começou depois a subir e a descer o carreiro do jardim, espreitando de vez em quando por baixo da persiana, batendo na janela e dizendo para consigo que a posição forçada em que ele se encontrava acabaria por fazê-lo acordar.

Por fim, passada quase uma hora, bateu devagar, mas persistentemente, na janela. O som, gradualmente, penetrou-o. Quando, desesperada, já tinha parado de bater, viu-o mexer-se e, a seguir, levantar a cabeça, estremunhado. O bater do coração acordava-o dolorosamente para a realidade. Ela batia imperativa na janela. Ele acordou sobressaltado, e ela viu cerrarem-se-lhe os punhos e os olhos faiscarem, sem um pingo de medo. Vinte ladrões que ali estivessem, ele ter-se-ia atirado a eles sem pestanejar. Olhava em volta, estonteado, mas pronto para a luta.

– Abre a porta, Walter – disse ela, friamente.

As mãos dele relaxaram e então lembrou-se do que tinha feito. A cabeça tombou-lhe, contrita, arrependida. Ela viu-o correr para a porta, abrir o ferrolho. Experimentou levantar a lingueta. A porta abriu-se: diante dele estendia-se a noite prateada que ele temia enfrentar depois da luz amarela da candeia. À pressa, voltou para dentro.

Quando Mrs. Morel entrou, viu-o correr para a porta interior, em direcção às escadas. Com a pressa de se escapar dali para fora antes de ela entrar, até tinha arrancado o colarinho, que jazia no chão, com as casas rasgadas. Isto sim, irritou-a. Aqueceu-se e acalmou-se. Esquecida de tudo pelo cansaço, entregou-se às pequenas tarefas que havia para fazer, preparou-lhe o pequeno-almoço, lavou-lhe o cantil, pôs-lhe o fato da mina a aquecer junto à lareira com as botas ao lado, foi buscar um lenço lavado, um saco para o farnel e duas maçãs, espevitou o lume e foi deitar-se. Ele dormia já profundamente. As suas sobrancelhas finas e negras estavam arqueadas numa espécie de rictus de sofrimento e arrogância, entrando pela testa dentro, ao mesmo tempo que as faces descaídas e a boca desdenhosa pareciam dizer: «Não me interessa quem tu és nem o que és, quem manda aqui sou eu».

Mrs. Morel já o conhecia bem de mais para olhar para ele. Enquanto tirava o broche em frente ao espelho, sorriu ligeiramente ao ver o seu rosto todo sujo do pó amarelo dos lírios. Sacudiu-o e foi para a cama. Por algum tempo ainda, a sua mente continuou a faiscar, mas adormeceu antes de o marido acordar do primeiro sono da bebedeira.


II

O NASCIMENTO DE PAUL
E UMA NOVA BATALHA

DEPOIS de uma cena como a última, Walter Morel andou largos dias abatido e envergonhado, mas depressa recuperou a indiferença e brutalidade costumeiras. Notava-se contudo um ligeiro abrandamento, um leve esmorecer da sua autoconfiança. Até fisicamente ele mirrara, sendo visível um certo alquebrar da sua bela figura. Não sendo do tipo atlético, ao perder o porte altivo e imponente, o físico parecia definhar com o quebrar do orgulho e da força de ânimo.

Percebia agora como era dura para a mulher a lida da casa e, com uma solidariedade ditada pelo remorso, apressou-se a ajudá-la. Depois de sair da mina vinha direito para casa e à noite não saía – mas só até chegar a sexta-feira; nessa altura não aguentava mais, mas estava sempre de volta às dez horas, e quase completamente sóbrio.

Também preparava o seu pequeno-almoço. Sendo um homem que se levantava cedíssimo e tinha muito tempo pela frente, não fazia como outros mineiros que obrigavam as mulheres a sair da cama às seis da manhã. Acordava às cinco, às vezes mais cedo, levantava-se de imediato e descia para a cozinha. Quando não conseguia dormir mais, a mulher deixava-se ficar deitada à espera deste momento, como de um tempo de paz. Mas descanso, propriamente dito, só quando ele não estava em casa.

Descia a escada em mangas de camisa e enfiava à pressa as calças da mina, deixadas durante a noite ao borralho para aquecerem. O lume nunca se apagava, porque Mrs. Morel o abafava antes de ir para a cama. E o primeiro som que se ouvia pela manhã era o roçar do atiçador contra a grelha, enquanto Morel remexia as brasas que restavam para pôr a chaleira a ferver, que já ficava cheia de véspera em cima da grelha. A chávena, a faca e o garfo, tudo o que ele precisava, excepto a comida, estavam a postos em cima da mesa, sobre um jornal. Preparava então o pequeno-almoço, fazia o chá, entalava os tapetes debaixo das portas para evitar a corrente de ar, acendia uma bela fogueira e usufruía de uma hora de bem-estar. Assava o presunto na ponta do garfo, deixando pingar a gordura sobre o pão. Em seguida, punha o naco de presunto em cima da grossa fatia de pão e ia cortando lascas com o canivete; depois, deitava o chá no pires e era aquilo a felicidade. Com a família à volta, as refeições nunca eram tão agradáveis. Detestava comer com o garfo, essa invenção moderna que ainda não chegou às classes populares. Do que ele realmente gostava era do seu canivete. E, assim, comia na solidão, sentando-se muitas vezes num banquinho, quando estava frio, com as costas contra a pedra aquecida da chaminé, a comida no guarda-fogo e a chávena no chão quente. Lia a edição da tarde do jornal da véspera, tanto quanto lho permitiam as suas capacidades, soletrando as palavras laboriosamente. Preferia manter as persianas corridas e a vela acesa, mesmo quando já era dia claro. Era o hábito da mina.

Quando faltava um quarto para as seis, levantava-se, cortava duas grossas fatias de pão, barrava-as com manteiga e metia-as no saco branco do farnel. Enchia de chá o cantil de lata. Chá frio, sem leite nem açúcar, era o que lhe sabia bem na mina. Depois, despia a camisa e enfiava a vestimenta da mina, um casabeque grosso de flanela, de decote redondo e mangas curtas.

Em seguida, levava uma chávena de chá à mulher, porque ela estava doente e porque lhe dava na gana.

– Trouxe-te uma pinga de chá, cachopa – dizia ele.

– Não sei para quê, sabes bem que não gosto – respondia ela.

– Vá, bebe, isto põe-te a dormir outra vez num instante.

Ela aceitava o chá. Ele gostava de a ver pegar na chávena e começar a bebericar.

– Aposto que não lhe deitaste açúcar – dizia ela.

– Isso é que deitei, e um bom bocado – respondia ele, ofendido.

– É para admirar – dizia ela, bebendo mais um gole.

Ficava linda com o cabelo desmanchado. E ele adorava ouvi-la resmungar assim. Olhava para ela outra vez e saía sem se despedir. Nunca levava mais de duas fatias de pão com manteiga para a mina, pelo que uma maçã ou uma laranja era para ele um luxo. Ficava todo contente de cada vez que ela lhe deixava uma cá fora. Atava um lenço ao pescoço, calçava as botas, enormes e pesadonas, vestia o casacão de grandes bolsos, onde metia o saco do farnel e o cantil com o chá, e saía para o fresco da madrugada, fechando a porta atrás de si sem a trancar. Adorava as alvoradas. Saía sempre de casa pelas seis horas, embora os trabalhadores não pegassem senão por volta das sete e a caminhada até à mina não levasse mais de meia hora. Metia geralmente pelos campos e muitas vezes, no Verão, parava na tapada à cata de cogumelos, afastando a erva densa e molhada com as pesadas botas de mineiro, à procura dos tortulhos brancos e carnudos que nela se acoitavam. Se calhava encontrar alguns, metia-os cuidadosamente no bolso. Não se pode dizer que lhe custasse deixar o ar frio e límpido da manhã e descer às profundezas. Estava tão habituado que encarava essa rotina como um gesto simples e natural. Por isso, era frequente vê-lo chegar à entrada da mina com um raminho arrancado da sebe entre os dentes, que ia mordiscando pelo dia fora lá em baixo, para manter a boca humedecida, sentindo-se tão feliz como ao ar livre.

Passado algum tempo, quando a chegada do bebé estava mais próxima, costumava dar um arranjo à cozinha, no seu estilo negligente, atiçando as brasas, limpando o fogão e varrendo a casa antes de sair para o trabalho. Nessa altura, com a consciência do dever cumprido, ia lá acima e dizia à mulher:

– Pronto, já limpei a casa. Num tás em condições d’andares praí a traquinar o dia todo. Deixa-te ficar sentada a ler os teus livros. – O que lhe dava imensa vontade de rir, apesar da indignação que nela despertava.

– E então o jantar, faz-se sozinho? – repontava Mrs. Morel.

– Eh lá, do jantar não percebo eu.

– Mas percebias, se ele não te aparecesse na mesa.

– Se calhar... – respondia ele, e abalava.

Quando ela vinha para baixo, encontrava a casa arrumada, mas toda suja, e não descansava enquanto não lhe dava uma boa limpeza. E quando se dirigia ao depósito das cinzas com a pá do lixo carregada, logo Mrs. Kirk, sempre de atalaia, arranjava uma desculpa para aparecer logo a seguir no seu depósito e meter conversa através do tapume de madeira.

– Sempre a cirandar, não é verdade?

– Que remédio – respondia Mrs. Morel, resignada. – É preciso, que se há-de fazer.

Mrs. Kirk era uma mulher magra e nervosa, a atirar para o histérico. Mrs. Morel gostava dela. Juntavam-se as duas, cada uma do seu lado do tapume, de pá na mão, e ali ficavam um bocado a conversar. Era mais ou menos assim:

– Ainda se mata de trabalho – dizia Mrs. Kirk. – O seu homem não lhe dá uma ajudinha? O meu Tom não me dá razão de queixa nesse aspecto.

– Então não dá? – respondia a vizinha. – Ainda esta manhã foi ao meu quarto para me dizer que já tinha feito a limpeza e que eu não precisava de fazer mais nada todo o dia, era só sentar-me e pôr-me a ler.

– Pois é, os homens são mesmo uns paspalhões! – exclamava Mrs. Kirk.

– E eu fui dar com a chaminé cheia de terra e o lixo todo metido debaixo do tapete.

Mrs. Kirk ria-se, enchendo de dentes a cara afilada.

– São todos iguais – acrescentava. – Passam a vassoura e o espanador à pressa por cima das coisas e acham que já fizeram muito.

– E não se ralam com a porcaria que fazem – dizia Mrs. Morel.

– Não se ralam mesmo. O meu Tom é igualzinho.

– Todos iguais – dizia Mrs. Morel.

– Já soube da Mrs. Allsop?

– Não.

– Não? O menino dela já chegou.

– A sério? Quando?

– Anteontem à noite... Depois da trovoada...

– O quê...!

E as duas mulheres riam com gosto.


– Viram o Hose? – gritou uma mulher baixinha do outro lado da rua. Era Mrs. Anthony, um corpo franzino e estranho de cabelos negros, que andava sempre com um vestido de veludo castanho muito justo.

– Não vi, não – disse Mrs. Morel.

– Quem dera que ele apareça. Tenho ali um monte de roupa e pareceu-me ouvi-lo tocar a campainha.

– Falai no mal... Lá vem ele.

As duas mulheres olharam para o fundo do beco. Na extremidade da ruela vinha um homem numa espécie de carripana de outros tempos, debruçado sobre trouxas de tecido de tom esbranquiçado, enquanto o mulherio estendia para ele os braços carregados de roupa. A própria Mrs. Anthony trazia um monte de meias brancas, ainda por tingir, penduradas no braço.

– Fiz dez dúzias esta semana – disse ela a Mrs. Morel, toda orgulhosa.

– Ena... – disse a outra. – Não sei como consegue arranjar tempo.

– Essa agora! – disse Mrs. Anthony. – Quando se quer, arranja-se sempre tempo.

– Pois olhe, eu não sou capaz – disse Mrs. Morel. – E quanto lhe rendem todos esses pares?

– São a dois dinheiros e meio a dúzia – respondeu a outra.

– Safa! – disse Mrs. Morel. – Antes queria morrer de fome a ficar sentada a fazer duas dúzias de meias por dois dinheiros e meio.

– Olhe que se engana – disse Mrs. Anthony. – Fazem-se num instante.


O tal «Hose» aproximava-se, tocando a campainha. As mulheres esperavam por ele à porta dos pátios, com as meias penduradas no braço. O homem, de aspecto grosseiro, brincava com elas, tentava aldrabá-las e chegava a injuriá-las. Mrs. Morel afastou-se, desdenhosa.

Era sinal combinado que, se alguma mulher precisasse de chamar a vizinha, bastava-lhe bater com o atiçador na parede da chaminé. Como as lareiras estavam costas com costas, o barulho era logo ouvido na casa ao lado. Uma manhã, estava Mrs. Kirk a fazer um pudim, e quase desmaiou de susto com o barulho que vinha da chaminé. Com as mãos enfarinhadas, correu para o muro do quintal.

– Chamou, Mrs. Morel?

– Se fizesse o favor, Mrs. Kirk.

Mrs. Kirk pôs-se em cima da sua caldeira, passou para o outro lado da vedação, para cima da caldeira de Mrs. Morel, e correu para junto da vizinha.

– Então, minha querida, como se sente? – gritou preocupada.

– Pode-me ir buscar a Mrs. Bower, por favor? – respondeu Mrs. Morel.

Mrs. Kirk voltou ao quintal, desatou a voz possante e estridente e chamou:

– Ag...gie! Ag...gie!

O apelo ouviu-se de uma ponta à outra das Bottoms. Finalmente, Aggie lá apareceu a correr e foi incumbida de ir chamar Mrs. Bower, enquanto Mrs. Kirk ficava ao pé da vizinha, deixando o pudim a meio.

Mrs. Morel foi deitar-se na cama. Mrs. Kirk levou Annie e William para sua casa e deu-lhes o almoço. Mrs. Bower, gorda e gingona, assenhoreou-se do comando das operações.

– Pique um bocado de carne para o jantar do patrão e faça-lhe um pudim de maçã – disse Mrs. Morel.

– Hoje, ele pode bem passar sem o pudim – disse Mrs. Bower. Morel não era geralmente dos primeiros a parecer no fundo da mina, pronto para sair. Alguns iam para lá antes das quatro, quando soava o apito de despegar. Mas Morel, cuja galeria, além de pobre, ficava nesta altura a cerca de milha e meia do fundo, costumava continuar a trabalhar até o primeiro colega parar, e só então parava também. Nesse dia, porém, estava morto por chegar ao fim. Às duas horas olhou para o relógio, à luz da vela verde – a galeria onde se encontrava era segura – e às duas e meia voltou a olhar. Estava ocupado a cortar um bocado de rocha que iria interferir com o trabalho do dia seguinte. Sentado nos calcanhares ou de joelhos, ia desferindo violentos golpes na rocha com a picareta e dizendo «Zás!...Zás!»

– Já acabaste, pá? – gritou Barker, o outro mineiro.

– Acabar... Só quando o mundo acabar! – resmungou Morel.

E continuou a bater. Estava cansado.

– Este trabalho dá cabo da gente – disse Barker.

Mas Morel estava demasiado irritado, sem paciência para responder. Só batia e cortava com quanta força tinha.

– O melhor é deixares isso, Walter – disse Barker. – Amanhã também é dia. Não precisas de ficar a deitar os bofes pela boca.

– Amanhã não faço tenções de pôr as mãos nesta m... – gritou Morel.

– Pronto, se tu não puseres, alguém há-de pôr – disse Israel. Mas Morel continuou a bater.

– Eh, vocês aí, toca’andar – gritaram os homens que vinham da galeria mais próxima.

E Morel sempre a bater.

– Tu depois apanhas-me – disse Barker, indo-se embora.

Depois de o outro partir e de ficar sozinho, Morel foi acometido de um acesso de raiva. Tinha-se esfalfado e não tinha conseguido acabar a empreitada. Levantou-se, alagado em suor, atirou a ferramenta para o chão, enfiou o casaco, apagou a vela, pegou na lanterna e foi-se embora. Ao longo da galeria principal, as luzes dos outros homens dançavam de um lado para o outro e ressoavam ecos de muitas vozes. Ainda era uma longa e penosa caminhada debaixo do chão.

Sentou-se ao fundo do poço da mina, onde a água não parava de pingar em grossas gotas. Os mineiros, em grande algazarra, concentravam-se à espera da sua vez de subirem. Morel respondia de mau humor ao que lhe diziam.

– Tá a chover, pá – disse o velho Giles, que tinha recebido a informação de lá de cima. A Morel restava-lhe um consolo: tinha o seu velho chapéu-de-chuva, de que tanto gostava, à espera dele na arrecadação das lanternas. Chegou finalmente a sua vez, sentou-se na cadeirinha e num instante chegou à superfície. Entregou a lanterna e recebeu o chapéu-de-chuva, que tinha comprado um dia num leilão por um xelim e seis dinheiros. Ficou parado à beira do poço da mina, por um momento, a olhar. A chuva caía cinzenta sobre os campos. Os vagões estavam carregados de carvão molhado, brilhante. A água escorria pelos vagões por cima das letras a branco C. W. & Co. Os mineiros, indiferentes à chuva, caminhavam pelo trilho e pela encosta acima, como uma hoste tristonha e pardacenta. Morel abriu o chapéu-de-chuva e meteu pés ao caminho, entretido com o tamborilar das gotas sobre o pano.

Os mineiros seguiam pela estrada em direcção a Bestwood, molhados, cinzentos e enfarruscados, mas as suas bocas vermelhas não paravam de falar com animação. Morel ia também com um grupo, mas de boca fechada. Limitava-se a franzir a testa, mal-humorado. Muitos foram os que entraram na taberna Prince of Wales ou na da Ellen, mas a má disposição de Morel ajudou-o a resistir à tentação, e seguiu o seu caminho debaixo das ramadas gotejantes que caíam por cima do muro do parque, descendo por fim a encosta lamacenta em Greenhill Lane.

Mrs. Morel estava deitada, a ouvir a chuva a cair, o ruído cadenciado dos pés dos mineiros que vinham de Minton, as suas vozes e o bater da cancela do caminho da encosta de cada vez que passavam.

– Há cerveja aromatizada atrás da porta da despensa – disse ela. – Mr. Morel há-de querer um copo quando chegar, se não parar pelo caminho.

Mas, como ele se atrasasse, julgou que tivesse parado na taberna para fugir à chuva. Ele queria lá saber dela ou da criança. Ela passava sempre muito mal quando as crianças nasciam.

– O que é? – perguntou ela, sentindo-se quase a morrer.

– É um rapaz.

Isso, de certa maneira, confortou-a. A ideia de dar à luz filhos homens aconchegava-lhe o coração. Olhou para o menino. Tinha olhos azuis, o cabelo louro e farto e era magrinho. Apesar de tudo, amava-o com todas as suas forças. Tinha-o na cama ao seu lado.

Morel, sem suspeitar de nada, subiu o carreiro do jardim, cansado e irritado. Fechou o chapéu-de-chuva e pô-lo a escorrer no lava-loiças. Em seguida, sacudiu as botas na cozinha. Mrs. Bower assomou-se à porta do corredor.

– Sim, senhor – disse ela –, ela lá está, e pior não podia estar... É um rapaz.

O mineiro resmungou qualquer coisa, pousou o saco do farnel vazio e o cantil de lata em cima do armário da cozinha, regressou à copa para pendurar o casacão, voltou para a cozinha e deixou-se cair pesadamente na cadeira.

– Não há nada que se beba? – perguntou.

A mulher foi à despensa. Ouviu-se uma rolha saltar. A mulher, com ar de poucos amigos, colocou a caneca em cima da mesa diante de Morel. Ele bebeu, deu um soluço de satisfação, limpou os longos bigodes à ponta do lenço do pescoço, bebeu mais, deu novo soluço e deitou-se para trás na cadeira. A mulher não lhe disse mais nada. Pôs-lhe o jantar na mesa e voltou para cima.

– Era Mr. Morel? – perguntou Mrs. Morel.

– Já lhe pus o jantar – respondeu Mrs. Bower.

Ele sentou-se, com os cotovelos em cima da mesa, e começou a comer, não sem antes se queixar por Mrs. Bower não ter posto uma toalha na mesa e lhe ter dado um prato dos pequenos, em vez de um prato raso grande. Ter a mulher de cama e ter-lhe nascido mais um filho era o que menos lhe importava. Estava cansado, queria comer, queria estar sentado com os cotovelos apoiados em cima da mesa, e não lhe agradava ver Mrs. Bower a andar por ali a cirandar. Ainda por cima, a fogueira estava pequena de mais para o seu gosto.

Quando acabou de jantar, deixou-se ficar sentado por uns bons vinte minutos. A seguir, foi fazer uma grande fogueira. Só então subiu a escada, só com as meias nos pés, e, sem vontade nenhuma, foi ver a mulher. Bem lhe custava encará-la naquele momento, exausto como estava, com a cara toda suja e preta do suor. A camisola já tinha secado, e ensopado a transpiração. Enrolado ao pescoço, um lenço de lã imundo. Deixou-se ficar, por isso, aos pés da cama.

– Bem, então com’é que te sentes? – perguntou.

– Isto passa – respondeu ela.

– Hum.

Estava sem saber o que dizer. Sentia-se cansado e toda esta confusão era um estorvo para ele. Era como se não soubesse onde estava.

– Um rapaz, dizes tu – disse ele, titubeante.

Ela puxou o lençol para baixo e mostrou-lhe o menino.

– Deus o abençoe! – murmurou ele. Ela riu-se, ao vê-lo dar assim a bênção, sem convicção, por mera rotina, fingindo uma emoção paternal que ainda não sentia.

– E, agora, vai-te embora – disse ela.

– Vou sim, cachopa – respondeu ele, dando meia volta.

Ao ver-se dispensado, apeteceu-lhe beijá-la antes de sair, mas não se atreveu. A ela não lhe teria desagradado que ele a beijasse, mas não lho queria dar a entender. Só respirou de alívio quando o viu sair do quarto, deixando atrás de si um vago cheiro a lama da mina.

Mrs. Morel recebia diariamente a visita do pároco da Congregação. Mr. Heaton era jovem e muito pobre. A mulher tinha morrido ao dar à luz o primeiro filho, deixando-o sozinho no presbitério. Muito tímido, era formado por Cambridge e um fraco pregador. Mrs. Morel gostava dele e ele tinha por ela um grande apreço, conversando com ela durante largas horas quando ela andava bem. Foi até escolhido para padrinho do menino.

A mãe, na cama, tinha o pensamento nos outros filhos. Como não tinha vida própria, passando o dia ocupada de manhã à noite a limpar, cozinhar, tratar das crianças e costurar, tinha de pôr de lado a sua própria existência, investir nos filhos, que eram, por assim dizer, o seu banco. Era neles que pensava, era por eles que esperava, sonhando com o que seriam um dia mais tarde, com ela como motor, a empurrá-los para a vida. William já era para ela como um amante. Se ela tinha nevralgias, que frequentemente a atacavam, e ia fazendo a lida da casa pálida e em silêncio, logo ele lhe perguntava:

– Está com dores de dentes, mãe?

– Estou.

– E é muito mau?

E ela ria-se, apesar da dor. Às vezes, porém, quando estava a amamentar o bebé, a dor era tão intensa que mal se podia mexer. Nessas alturas, era ver o filho mais velho deitado no chão da sala da frente, a chorar sozinho, sentido, e quando o pai perguntava:

– Que tens tu, catraio? – logo ele respondia:

– A minha mãe está com dores de dentes.

– Ora esta – dizia Mrs. Morel ao ouvi-lo. – Não é a ti que te dói, meu pateta, porque choras?

William não gostava do bebé.

– É tão feio, mãe – dizia ele.

– Porquê? – perguntava a mãe.

– Está sempre a fazer caretas – respondia William.

Então, Mrs. Morel dava um beijo no bebé. Tinha uma ruga bem peculiar na testa, como se alguma coisa tivesse chocado a sua minúscula consciência ainda antes de nascer. Quando Mrs. Morel olhava para o menino, algo lhe apertava o coração, embora o bebé fosse perfeitamente saudável, e eram muitas as vezes em que se sentava a cantar-lhe canções de embalar.

– Ele não percebe nada, porque lhe está a cantar? – dizia William.

– Mas ele gosta do barulho, tenho a certeza – dizia a mãe, rindo para o bebé com aquele calor especial que lhe brilhava nos olhos azuis, mordiscando-lhe os dedinhos ao de leve, enquanto William assistia, furioso.

De vez em quando, o pároco ficava para o chá. Nessas ocasiões, ela servia o chá mais cedo, ia buscar as suas melhores chávenas, as que tinham um vivo verde na borda, e pedia a Deus que Mr. Morel não chegasse cedo de mais. Na verdade, nem se importava que ele parasse na taberna a tomar uma cerveja. Tinha sempre dois almoços para fazer, pois achava que as crianças tinham de comer a refeição principal ao meio-dia, ao passo que Mr. Morel comia a dele às cinco horas. Por isso, Mr. Heaton pegava no bebé enquanto Mrs. Morel fazia uns pastéis ou descascava batatas, e, sem tirar os olhos dela, ia conversando sobre o seu próximo sermão. As suas ideias eram fantásticas, irreais, e ela, com toda a perícia de que era capaz, fazia-o descer à terra. Desta feita, o sermão era sobre as Bodas de Canaã.

– Quando Ele transforma a água em vinho, em Canaã – disse o pastor – isso é um símbolo de que a vida quotidiana dos noivos, e até mesmo o seu sangue, até aí desinspirado como a água, possuía agora espírito, como o vinho, porque quando o amor chega, toda a parte espiritual do homem se transforma, fica impregnada do Espírito Santo, e quase a própria forma se altera.

Mrs. Morel pensou para consigo:

«Pois é, coitado, a mulher morreu e ele agora reduz o seu amor ao Espírito Santo.»

– Não – disse ela em voz alta. – Não reduza as coisas a símbolos. Diga antes: «Era uma boda e o vinho acabou-se. O pai da noiva estava aflito porque não tinha mais nada para dar de beber aos convidados, a não ser água; naquele tempo não havia chá nem café, apenas vinho. E com que cara ia ele ficar, vendo toda aquela gente sentada à volta da mesa com copos de água à sua frente... O dono da casa e a mulher estavam envergonhadíssimos, a noiva inconsolável e o noivo zangadíssimo. Jesus viu-os a conferenciar com ar preocupado, e sabia que eram pobres, simples trabalhadores rurais, provavelmente. E, então, pensou: Que pena! Um casamento estragado. E tratou de fazer aparecer o vinho o mais depressa que pôde.» E pode ainda acrescentar: «O vinho não é como a cerveja, não embebeda tanto. E no Oriente as pessoas nunca se embebedam. É por embebedar que a cerveja é uma coisa tão má.»

O pobre homem não tirava os olhos dela. Queria tanto dizer que o amor dos homens é a presença do Espírito Santo, que é Ele que torna os amantes divinos e imortais. Mas Mrs. Morel insistia em que era preciso tornar a Bíblia real aos olhos do povo, e que só de vez em quando devia introduzir bocados do seu discurso. Estavam os dois animadíssimos e felizes. Nisto, chegou William.

– Valha-me Deus! – exclamou Mrs. Morel. – Já é assim tão tarde?

Colocou a chaleira ao lume, e pôs a mesa à pressa com a única toalha limpa que tinha, a desejar que o marido não chegasse cedo a casa. William e Annie, cada um com a sua fatia de pão com manteiga, foram brincar para a rua. Para o chá, havia rabanetes, compota e doce de laranja. Tudo esmerado e irrepreensível. Mrs. Morel estava nas suas sete quintas, por poder aconselhar o seu pároco sobre o sermão que ia proferir e por tomar chá com um cavalheiro que lhe servia o pão com manteiga e esperava que ela começasse.

Iam a meio da primeira chávena quando ouviram o arrastar das botas do mineiro.

– Valha-me Deus! – exclamou Mrs. Morel involuntariamente.

O pastor ficou para morrer. Morel entrou. Não estava para brincadeiras. Com um ligeiro inclinar da cabeça, disse «B’tarde» ao padre, que se levantou para lhe apertar a mão.

– Não – disse Morel, mostrando-lhe a sua. – Olhe pra isto! Num vai querer apertar uma mão como esta, ou vai? Suja como está, da pá e da picareta.

O pastor corou, sem saber o que fazer, e sentou-se outra vez. Mrs. Morel levantou-se e levou para a cozinha a caçarola fumegante. Morel despiu o casaco, puxou a sua cadeira de braços para a mesa e sentou-se pesadamente.

– Está cansado? – perguntou o padre.

– Cansado?... Bem pode dizê-lo – replicou Morel. – O senhor num sabe o qu’é estar cansado c’mo eu tou.

– Pois não – respondeu o padre.

– Olhe pra isto – disse o mineiro, mostrando-lhe os ombros da camisola. – Agora já tá quase seca, mas memo assim vê-se bem como tá ensopada de suor. Or’apalpe.

– Por amor de Deus! – exclamou Mrs. Morel. – Mr. Heaton não há-de querer mexer nessa camisola imunda.

O padre estendeu a mão devagar.

– Não, se calhar não quer – disse Morel. – Mas, queira ou num queira, é todo suor qu’eu suei. E todos os dias a minha camisola fica assim a pingar. Então, ’nhã senhora, num se dá de beber a um homem quando ele chega a casa derreado da mina?

– Sabes bem que já bebeste a cerveja toda – disse Mrs. Morel, servindo-lhe o chá.

– E num havia mais à venda? – E, depois, voltando-se para o padre: – Um homem fica tão carregado de pó, percebe, tão enfarruscado numa mina de carvão, que precisa duma bebida quando chega a casa.

– Sem dúvida – concordou o padre.

– Mas é certo e sabido que fica a ver navios – disse Morel.

– Há água... e há chá – disse Mrs. Morel.

– Água... Não é a água que lhe vai desentupir a goela.

Encheu o pires de chá, soprou, sorveu-o por baixo do bigodão preto e suspirou. A seguir, encheu o pires novamente e pousou a chávena em cima da mesa.

– Ai a minha toalha! – disse Mrs. Morel, colocando a chávena em cima de um prato.

– Um homem que chega a casa cansado com’eu tou quer lá saber das toalhas – disse Morel.

– É uma pena! – exclamou Mrs. Morel, sarcástica.

A sala estava impregnada de um forte cheiro a carne cozida com legumes e às roupas do mineiro.

Morel inclinou-se para o pastor, de bigode espetado para a frente e a boca vermelha sobressaindo na cara toda preta.

– Mr. Heaton – disse ele – um homem que passou o dia c’m’eu passei naquele buraco negro, a bater numa parede de carvão... sim senhor... inda mais dura qu’aquela parede...

– Não precisa de se queixar tanto – completou Mrs. Morel.

– Num precisa... Ah, num precisa? Sabemos bem que tu é que num queres ouvir as verdades. – E, depois, virando-se para o padre: – ... chega a casa tão cansado que nem sabe com’ há-de estar. – Olhou para a comida, no prato à sua frente. – Sim senhor, cansado de mais até pra comer a janta, é isso mesmo. – E pousou os braços negros, do carvão, em cima da toalha branca.

– Por Deus, homem, olha que a toalha é limpa! – exclamou Mrs. Morel sem se conter. Era a única toalha limpa que tinha.

– Será que tenho de ir comer o jantar prò pátio, como um cão? – berrou ele.

– Ninguém falou em ires para o pátio – repontou a mulher friamente.

Ele conservou os braços em cima da toalha.

Quando um homem passa um dia inteiro a bater na rocha dura com uma picareta, Mister Heaton, fica cos braços tão cansados que nem sabe o que lhes há-de fazer.

– Eu sei – disse o padre.

Para ele, o mineiro era uma espécie de bicho raro.

– A tua cadeira tem braços – disse Mrs. Morel.

– Tinhas de vir meter a colherada, num tinhas? – disse o marido.

Ela bem gostaria de dizer também como ela tinha de trabalhar que nem uma escrava. O mineiro comia com a faca, enfiando a comida na boca e mastigando ruidosamente. Até fazia aflição. Aquele homem não tinha consideração por ninguém. Daí a pouco, pousou a faca.

– Mr. Heaton – disse ele – o qu’é que m’aconselha pràs dores de cabeça?

– Penso que a cáscara-sagrada... – titubeou o pastor.

– Diga-lhe que beba menos cerveja e tenha mais cuidado com o fígado – alvitrou Mrs. Morel.

– «Que beba menos cerveja!» – repetiu Morel. – Esta é boa! A culpa é sempre da cerveja! Um homem bebe um copito, Mr. Heaton, e ela nunca mais se cala.

– Quem me dera que fosse só um copito – disse Mrs. Morel.

Odiava o marido porque, sempre que havia espectadores, gostava de dar espectáculo. William, sentado com o bebé ao colo, odiava-o com o ódio que uma criança sente pelo fingimento e pela maneira brutal como ele tratava a mãe. Annie nunca gostara do pai, e limitava-se a evitá-lo.

Quando o pastor se foi embora, Mrs. Morel olhou para a toalha.

– Que bela porcaria! – disse ela.

– Julgas que me vou sentar cos braços caídos, só porque convidaste um padre para tomar chá contigo? – bradou ele.

Estavam ambos furiosos, mas ela não respondeu. O bebé começou a chorar, e Mrs. Morel, ao retirar do lume a caçarola, bateu sem querer na cabeça de Annie, que se pôs a choramingar, e Morel desatou aos berros, a ralhar com ela. No meio de todo este pandemónio, William olhou para o grande painel de azulejo colocado sobre a chaminé e leu, de forma bem audível:

– «Deus Abençoe Esta Casa.»

Ao ouvir isto, Mrs. Morel, que tentava acalmar o bebé, deu um salto, precipitou-se para o filho e disse, puxando-lhe as orelhas:

– Não te metas!

Depois, sentou-se e começou a rir, até as lágrimas lhe rolarem pelas faces, enquanto William dava um pontapé no banco onde tinha estado sentado, e Morel vociferava:

– Num vejo o qu’é que te dá tanta vontade de rir.

Foi mais ou menos por esta altura que Mrs. Morel destruiu a autoridade do marido. Até àquele momento, tinha-se sentido muito sozinha para se afastar dele. Mas William estava a crescer e todo o seu afecto ia para a mãe. Annie também estava contra o pai. E agora, finalmente, o novo bebé. Mrs. Morel ficara a odiar o marido no ano que antecedera o seu nascimento. Eram pobres e Morel era perverso. Tinha-se envolvido com um grupo de amigos, um dos quais o tal Jerry, que achavam que um homem que trabalhava devia guardar o dinheiro que ganhava para se divertir como muito bem lhe apetecesse. Costumavam até comparar os vários graus de submissão das suas mulheres, e Morel achava que a dele não estava suficientemente domesticada. Depois de uma noite de conversa em que Jerry o tinha aconselhado a não aturar imposições de cabra nenhuma, sim, afinal que raio de homem era ele? – gritou-lhe ao chegar a casa:

– Hei-de fazer-te tremer só de ouvires o som dos meus passos.

Frase que ficara na história para ela. Tinha-se sentado, a rir, até achar graça à ideia, enquanto ele continuara de pé, a estoirar de raiva e ignomínia. Então ele, para lhe pagar na mesma moeda, passara a dar-lhe o menos que podia para o sustento, a beber o mais que podia e a dar-se com homens que o embruteciam a ele e à imagem que fazia das mulheres. Depois, ela pensou que a única alegria dele eram as crianças, e pôs-se ao lado delas contra ele.

Uma noite, logo após a visita do pároco, sem coragem para suportar outra cena do marido, pegou em Annie e no bebé e foi sair. Morel tinha dado um pontapé em William e a mãe jamais lhe perdoaria.

Atravessou a ponte por onde passava o rebanho e um canto do prado, até ao campo de críquete. Os prados pareciam uma ampla extensão luminosa e amadurecida de crepúsculo, perpassada pelo sussurro dos moinhos distantes. Chegada ao campo de críquete, sentou-se num banco debaixo dos amieiros e deixou-se ficar a contemplar o cair da noite. Diante dela, firme e plano, estendia-se o grande campo verde de críquete, como o leito de um mar de luz. Havia crianças a brincar à sombra já densa do pavilhão. Lá no alto, as gralhas, em bando, crocitavam de regresso aos ninhos num céu suavemente entretecido. Curvando largo, mergulharam rumo ao clarão dourado, crocitantes e rodopiantes como flocos negros num lento vórtice, em direcção a uma moita que se erguia como bossa negra na pastagem.

Estavam alguns homens a jogar, e Mrs. Morel ouvia o bater da bola e vozes másculas que subitamente se elevavam; discernia brancas silhuetas masculinas que mudavam silenciosamente de lugar sobre o relvado, já coberto das sombras incandescentes do sol-pôr. Ao longe, na granja, as medas de feno tinham uma face iluminada e as restantes negro-cinza. Uma carroça carregada de molhos de feno balançava mansamente à luz que a pouco e pouco se extinguia.

O sol punha-se. Nas tardes límpidas, os montes do Desbyshire incendiavam-se do vermelho-rubro do poente. Mrs. Morel ficou a ver o sol escorregar no céu radioso, deixando atrás de si uma suave rosácea arroxeada, enquanto o ocaso se cobria de vermelho, como se todas as labaredas para lá tivessem convergido, abandonando a campânula azul imaculada. Por um instante, as bagas dos freixos cintilaram incandescentes entre a folhagem escura. Alguns molhos de espigas, encostados a um canto do alqueive, ganharam vida, e ela imaginou-os curvando-se numa vénia; talvez o seu filho viesse a ser um José. A oriente flutuava um poente espelhado de tons róseos, em contraste com o céu rubro a ocidente. As imponentes medas de feno espalhadas pela encosta incendiada arrefeceram.

Este era para Mrs. Morel um daqueles momentos de quietude em que as pequenas mágoas se esfumam e a beleza das coisas se impõe, momentos que lhe davam paz e força de ânimo para olhar dentro de si. De quando em vez, uma andorinha passava perto. De quando em vez, Annie chegava com uma mão-cheia de bagas de freixo. E o bebé, inquieto ao colo da mãe, estendia as mãozinhas para agarrar a luz.

Mrs. Morel contemplava-o. Temera a vinda deste filho como uma catástrofe, dado o que sentia pelo marido, e agora era estranho o que sentia pelo menino. O coração apertava-se-lhe pela criança, quase como se ele fosse doente ou malformado, e, no entanto, parecia bem saudável. Mas ela não podia deixar de reparar no modo peculiar como o bebé franzia a testa, nem no seu olhar peculiarmente carregado, como se tentasse decifrar uma sensação de dor. Quando olhava para as pupilas negras e circunspectas do menino, sentia um peso esmagar-lhe o coração.

– Até parece que está a pensar nalguma coisa... e coisa triste – disse Mrs. Kirk.

De súbito, ao olhar para ele, o peso que a mãe sentia no coração desfez-se em dor sentida. Inclinou-se sobre o filho e as lágrimas escorreram-lhe breves do coração. O menino esticou os dedos.

– Meu cordeirinho! – disse ela, chorando baixinho.

E então, nesse preciso momento, sentiu bem fundo na alma que ela e o marido eram culpados.

O menino erguia os olhos para ela. Olhos azuis como os dela, mas com um olhar pesado e fixo, como se tivesse compreendido qualquer coisa que lhe atingira a alma duramente.

Embalava nos braços o menino. Os seus profundos olhos azuis, sempre pregados nela, sem pestanejar, pareciam apelar aos seus mais íntimos pensamentos. Já não amava o marido; não tinha desejado esta criança, e o menino ali estava, nos seus braços, entrando-lhe no coração. Era como se o cordão umbilical que tinha ligado o seu corpinho frágil ao dela nunca tivesse sido cortado, transportando de si para o bebé uma corrente do mais intenso amor. Apertou-o contra o peito e contra o rosto. Havia de recompensá-lo com todas as suas forças, com toda a sua alma, por tê-lo trazido ao mundo indesejado. Mas agora, que viera, amá-lo-ia ainda mais, transportá-lo-ia no seu amor. Aqueles olhos perspicazes atemorizavam-na, isso era evidente. Saberia ele tudo acerca dela? Teria ele escutado enquanto repousava junto ao seu coração? Seria aquele olhar reprovação? O medo e a dor deixavam-na sem pinga de sangue.

Reparou de novo no sol, repousando rubro na crista da colina, à sua frente. Subitamente, pegou no menino e elevou-o no ar.

– Olha! – disse ela. – Olha bem, meu amor!

E, num gesto quase de alívio, esticou os braços, com o menino suspenso, na direcção do sol carmim e palpitante. Viu-o erguer o punho pequenino e aconchegou-o de novo ao peito, envergonhada da vontade que sentira de o devolver ao sítio de onde viera.

– Se sobreviver – pensou – que será dele... o que virá a ser?

O seu coração pulsava ansioso.

– Vou chamar-lhe Paul – disse ela, sem mais nem menos, sem saber porquê.

Pouco depois voltou para casa. Uma sombra sedosa estendia-se sobre o verde profundo dos prados, tudo cobrindo.

Tal como suspeitava, veio encontrar a casa vazia. Mas, às dez horas, Morel voltou, e aquele dia pelo menos acabou em paz.

Walter Morel andava sobremaneira irascível por esta época. O trabalho parecia esgotá-lo, e quando chegava a casa tratava mal toda a gente. Era o lume que estava fraco de mais, ou o jantar que não prestava, tudo pretextos para ralhos; se os filhos se punham a tagarelar, gritava com eles de uma maneira que punha a mãe a ferver e os fazia odiá-lo.

– Não precisas de gritar com eles dessa maneira – dizia Mrs. Morel. – Aqui ninguém é surdo.

– ‘Tão aqui ‘tão a levar um pontapé – berrava ele.

Se, por acaso, enquanto se estava a lavar na cozinha, alguém entrava ou saía, logo gritava: – Fechem-m’essa po-o-rta-a-a! – e fazia-o tão alto que se ouvia em todo o bairro.

– É uma pena ser tão bruto! – disse Mrs. Morel em voz baixa.

– Num quero apanhar nenhuma pontada e ficar a contas coas costelas por causa de ninguém! – berrou ele. Sempre que se zangava, ninguém o calava.

– Santo Deus, homem – disse Mrs. Morel. – Não há um minuto de sossego quando estás em casa.

– Poi não, isso sei eu. E também sei que só tás bem quando me vês pelas costas.

– Tal e qual – retorquiu ela calmamente, entredentes.

– Ah, eu sei... sei muito bem o que tás pr’aí a resmungar. Só tás satisfeita quando me vês no fundo da mina, longe de ti. O que tu querias era que me prendessem lá dentro como fazem aos patrões.

– Tal e qual – disse novamente Mrs. Morel, em surdina, voltando-lhe as costas, de boca fechada.

Ele disparou porta fora que nem uma seta, espetando a cabeça para a frente, com raiva e determinação.

– A c... vai-mas pagar! – disse ele, referindo-se à mulher.

Às onze horas, ainda não tinha voltado. O bebé estava maldisposto e agitado, desatando a chorar sempre que a mãe o deitava no berço. Mrs. Morel, morta de cansaço e ainda muito fraca, estava de cabeça perdida.

– Quem dera que o monstro viesse para casa – disse ela, sem forças, de si para si.

Por fim, a criança adormeceu-lhe nos braços, mas ela estava cansada de mais para ir deitá-la no berço.

– Desta vez não digo nada, venha ele a que horas vier – disse ela. – Só me vou arreliar ainda mais. Não vou dizer nada. – Porém, sabia que não podia confiar em si própria. Vezes sem conta dissera o mesmo, decidida a dominar-se, e a ira acabara por explodir. Com todo o ódio de que o cansaço era capaz, desejava pelo menos não o ver quando ele chegasse a casa. A razão por que não ia para a cama, sem querer saber da hora a que ele chegava, era só uma – não ser outra mulher a contar-lhe.

– Se sei que ele faz alguma coisa, fico capaz de explodir – disse ela, acabrunhada, para si própria.

– Soltou um suspiro ao ouvi-lo chegar, como se isso lhe fosse penoso de suportar. Ele, para se vingar, vinha quase a cair de bêbado. Ela conservou a cabeça inclinada sobre o bebé quando ele entrou, e nem para ele olhou. Mas, quando ele, ao passar, foi de encontro ao louceiro, pondo os cobres a tinir, e se agarrou aos puxadores brancos para não cair, foi como se uma chama a tivesse incendiado. E ele, depois de pendurar o chapéu e o casaco, voltou para trás e parou a curta distância, fuzilando-a com o olhar, enquanto ela continuava debruçada sobre a criança.

– Não há nesta casa nada que se coma? – perguntou, insolente, como se falasse com uma criada. Em certos momentos da bebedeira falava com o sotaque sincopado e pretensioso da cidade. Era nessas alturas que Mrs. Morel mais o odiava.

– Sabes bem o que temos em casa – disse ela, com a mais impessoal frieza.

Ele continuou de pé, de olhar flamejante, sem mover um músculo.

– Fiz-te uma pergunta delicada e espero uma resposta delicada – disse ele, afectadamente.

– E foi o que tiveste – disse ela, continuando a ignorá-lo.

O olhar de Morel flamejou de novo. Depois, deu uns passos em frente, vacilante, apoiou-se na mesa com uma mão e com a outra puxou a gaveta desajeitadamente para tirar uma faca de pão. A gaveta, puxada às três pancadas, emperrou. Num acesso de fúria, ele puxou-a com tanta força que a gaveta saltou inteira, com colheres, garfos, facas e mil outros utensílios metálicos a estatelarem-se no chão de tijoleira entre estrépitos e tinidos. O bebé estrebuchou assustado.

– Que estás tu a fazer, meu grande parvalhão, meu bêbado desajeitado? – gritou a mãe.

– Então viesses tu abrir o raio da gaveta. Devias ter-te levantado daí, com’as outras mulheres, para servires o teu homem.

– Eu, servir-te... eu, servir-te a ti? – gritou ela. – Isso é que era bom!

– Sim senhora, e vou ensinar-te como se faz. Servires-me, sim senhora, tu vais servir-me...

– Nunca, majestade. Antes servir um cão rafeiro aí à porta.

– O quê... o quê?

Ele, entretanto, tentava repor a gaveta no lugar. Ao ouvir estas últimas palavras, virou-se para trás, com as faces congestionadas e os olhos raiados de sangue, fitando-a em silêncio, ameaçador, por um segundo.

– Pfff! – fez ela de imediato, com desprezo.

Capaz de explodir, ele deu um safanão na gaveta, que caiu, fazendo-lhe um golpe na canela. Então, num gesto reflexo, atirou-a contra a mulher.

Uma das esquinas apanhou-a no sobrolho de raspão e a gaveta foi despenhar-se na lareira. Ela cambaleou, quase caindo da cadeira sem sentidos. A dor penetrou-a até ao fundo da alma, e ela apertou a criança com força contra o peito. Decorreram breves segundos. Com esforço, recompôs-se. O bebé chorava que metia dó. O sobrolho esquerdo, o atingido, sangrava abundantemente. Quando ela olhou para a criança, com a cabeça a estoirar de dor, algumas gotas de sangue pingaram no xaile branco. Mas o bebé, pelo menos, não fora atingido. Balançou a cabeça, para manter o equilíbrio, e o sangue escorreu-lhe para o olho.

Walter Morel mantinha-se na posição em que ficara, apoiado à mesa com uma mão e de olhar vazio. Quando viu que se conseguia equilibrar, aproximou-se dela, trôpego, e agarrou-se ao espaldar da cadeira de baloiço onde ela estava sentada, quase a fazendo cair. Depois, debruçando-se sobre a mulher, sempre a balançar enquanto falava, disse, num tom perplexo e preocupado:

– A gaveta apanhou-te?

E cambaleou outra vez, como se fosse cair para cima do bebé. A catástrofe fizera-o perder o pouco equilíbrio que ainda tinha.

– Sai daqui! – disse ela, lutando para manter a presença de espírito.

Ele, entretanto, foi acometido de soluços.

– Deixa... deixa cá ver o golpe – disse ele, entre mais soluços.

– Sai daqui para fora! – gritou ela.

– Deixa... deixa lá ver isso, cachopa.

Ela sentia o cheiro a álcool e os puxões desencontrados que ele dava à cadeira de baloiço para se equilibrar.

– Sai daqui – disse ela, empurrando-o com suavidade. Ele, em desequilíbrio, olhava-a estupefacto.

Chamando a si todas as forças, ela levantou-se, com o bebé apertado só num braço. A custo de penosa força de vontade, avançando como uma sonâmbula, dirigiu-se para a copa, onde lavou o olho com água fria. Sentia-se, porém, demasiado tonta, e, antes de desmaiar, voltou para a cadeira de baloiço, tremendo dos pés à cabeça, com o bebé sempre bem seguro, por instinto.

Morel, vexado, tinha conseguido colocar a gaveta de novo no lugar e andava de gatas, com mãos meio dormentes, a apanhar os talheres espalhados pelo chão.

O sobrolho dela ainda sangrava. Morel levantou-se e aproximou-se de pescoço esticado.

– O que foi que a gaveta te fez, cachopa? – perguntou, num tom dorido e contrito.

– Tu sabes bem o que fez – respondeu ela.

Ele inclinou-se para a frente, meio dobrado, fincando as mãos nas coxas, logo acima do joelho, e examinou o golpe. Ela desviou--se da cara dele, e dos seus fartos bigodes, afastando a dela o mais que podia. Ao olhar para ela, fria e impassível como pedra, sem abrir a boca, ele sentiu-se sucumbir de fraqueza de espírito e desespero. Já ia a recuar, acabrunhado, quando uma gota de sangue pingou do ferimento para cima do cabelo finíssimo e brilhante do bebé. Fascinado, ficou a ver a grossa gota quedar-se suspensa na nuvem cintilante, e escorrer depois pela teia capilar. Caiu outra gota. Esta ia chegar à cabeça do bebé. Ele olhava-a, fascinado, vendo-a aproximar-se. Até que, finalmente, a sua virilidade se quebrou.

– Que vai ser desta criança? – foi tudo o que a mulher lhe disse. Mas o seu tom de voz, cavo e intenso, fê-lo baixar a cabeça ainda mais. Ela disse então, para desanuviar:

– Traz-me um bocado de algodão da gaveta do meio.

Ele, obediente, afastou-se aos tropeções e voltou com um bom bocado de algodão, que chamuscou levemente chegando-o perto do lume, e lhe colocou na testa, enquanto ela continuava sentada com o bebé ao colo.

– Agora... aquele lenço lavado de levares para a mina.

De novo ele mexeu e remexeu na gaveta, para aparecer em seguida com um lenço estreito, todo vermelho. Ela pegou no lenço e, com dedos titubeantes, dobrou-o e colocou-o como uma fita à volta da cabeça.

– Deixa-me ajudar-te a amarrá-lo – disse ele humildemente.

– Eu ponho-o bem sozinha – respondeu ela.

Quando acabou, foi para cima, para o quarto, dizendo-lhe que abafasse o borralho e fechasse a porta à chave. Na manhã seguinte, Mrs. Morel disse:

– Bati com a cabeça no fecho da carvoeira quando lá entrei às escuras, à procura do ancinho, porque a vela se apagou.

Os filhos ficaram a olhar para ela com os olhitos muito abertos, muito tristes. Não disseram nada, mas os seus lábios entreabertos pareciam expressar, calados, a tragédia que pressentiam.

No dia seguinte, Walter Morel deixou-se ficar na cama até perto da hora de almoço. Não queria pensar nas cenas da véspera; se pensava em alguma coisa, o que não era provável, nisso não era com certeza. Limitava-se a ficar na cama, vexado, a sofrer como um cão. Fora a si próprio que a cena mais atingira, e doía-lhe a alma ainda mais porque nunca seria capaz de dizer à mulher uma palavra que fosse, de expressar o seu arrependimento. Tentava, por isso, furtar-se à responsabilidade.

A culpa foi dela, disse para consigo. Nada, porém, podia evitar que a consciência o punisse, corroendo-lhe o espírito como ferrugem, remorso esse a que só a bebida podia dar alívio.

Era como se lhe faltassem as forças para se levantar ou para falar, ou sequer para se mover; só conseguia ficar ali deitado, como um cão. Ainda por cima, tinha uma violenta dor de cabeça. Era sábado. Levantou-se por volta do meio-dia, foi buscar comida à despensa, comeu cabisbaixo, calçou as botas e saiu. Voltou às três da tarde, ligeiramente tocado, mas mais aliviado, e enfiou-se outra vez na cama. Saiu da cama por volta das seis horas, fez uma chávena de chá e saiu logo em seguida.

No domingo, a cena repetiu-se: na cama até ao meio-dia, no Palmerston Arms até às duas e meia, almoço e cama; quase sem dizer uma palavra. Quando Mrs. Morel subiu ao quarto, por volta das quatro horas, para vestir a roupa de domingo, ele dormia profundamente. Ela teria tido pena dele, se ele ao menos lhe dissesse: – Desculpa, mulher. – Mas não, tentava convencer-se de que a culpa tinha sido toda dela, e isso aniquilava-o. Como tal, não lhe ligou nenhuma. Nós cegos da paixão atribulada que os unia, e em que ela era a mais forte.

A família sentou-se para o chá. O domingo era o único dia da semana em que todos se reuniam à volta da mesa à hora das refeições.

– O meu pai não se levanta? – perguntou William.

– Deixa-o estar – disse a mãe.

Havia um clima de tristeza em toda a casa. As crianças, ao respirarem aquele ar envenenado, sentiam-se mal também. Desconsoladas, não sabiam o que fazer, como brincar.

Morel saía da cama assim que acordava. Sempre fora assim. Todo ele era actividade. A prostração e a inactividade dois dias seguidos paralisavam-no.

Eram quase seis horas quando desceu. Desta feita, entrou sem hesitações, com a sensibilidade, já de si periclitante, de novo embotada. Já não lhe interessava outra vez o que a família pudesse sentir ou pensar.

As chávenas de chá estavam em cima da mesa. William lia uma publicação infantil em voz alta, Annie ouvia-o com atenção e não se cansava de perguntar «Porquê?». Mas as duas crianças calaram-se mal ouviram os passos abafados do pai, só de meias calçadas, e encolheram-se quando ele entrou, apesar de geralmente os tratar bem.

Morel comeu sozinho e sem maneiras. Não precisava de ter feito tanto barulho a mastigar e a beber. Ninguém lhe dirigiu a palavra. Mal ele entrou, a reunião familiar esmoreceu, retraiu-se e remeteu-se ao silêncio. Mas ele já não ligava ao isolamento a que o votavam.

Mal acabou de tomar chá, levantou-se apressado e preparou-se para sair. Era esta predisposição, esta pressa em sair de casa, que tanto contundia Mrs. Morel. Ao ouvi-lo a lavar-se copiosamente na água fria, ao ouvir o roçar ansioso do pente de aço na borda da bacia enquanto ele molhava o cabelo, ela fechou os olhos de repulsa. Era visível em todos os seus gestos, desde o simples apertar dos atacadores, uma grosseria nos movimentos que o afastava radicalmente da contenção reservada e comedida do resto da família. Ele fugia sempre às lutas que se travavam no seu íntimo. Até mesmo no mais fundo do seu coração, ele se desculpava dizendo: Se ela não tivesse dito aquilo, nada disto acontecia. Ela estava a pedi-las, teve o que merecia.

As crianças assistiram retraídas aos preparos do pai, e foi com um suspiro de alívio que o viram sair.

E foi com prazer que ele fechou a porta atrás de si. A noite estava chuvosa. Tanto melhor, mais aconchegado lhe ia parecer o Palmerston. Pensar nisso fê-lo até acelerar o passo. Os telhados de ardósia das Bottoms luziam molhados. As estradas, já de si negras do pó de carvão, cobriam-se de lama preta. Estugou o passo. As vidraças do Palmerston estavam embaciadas. A entrada estava toda patinhada, mas lá dentro a atmosfera era quente, se bem que pestilenta, carregada do som da vozearia e do cheiro a cerveja e a tabaco.

– O que vai ser, Walter? – gritou uma voz, mal Morel entrou a porta.

– Ora, Jim, o qu’é que tá a sair, rapaz?

Os outros homens arranjaram-lhe um lugar e acolheram-no efusivamente. Morel sentia-se feliz. Passado um ou dois minutos, já o tinham conseguido alhear de toda a responsabilidade, toda a vergonha, todos os problemas, e ele estava são como um pêro, pronto para outra noite de farra.

Porém, na noite seguinte, quando estava acocorado junto ao portão do jardim, a fumar e a chamar pelos mineiros que passavam do outro lado da rua, e a ver os mineiros mais novos a jogarem futebol no regresso da mina, ainda sem se terem ido lavar, Mrs. Kirk apareceu no quintal dela.

– B’noite, ’nha senhora! – disse Morel, com a cortesia e o calor habituais.

– Está contente, não está? – disse Mrs. Kirk.

– Porquê, aconteceu alguma coisa? – exclamou Morel.

– Deixar a sua senhora bater com a cabeça daquela maneira... – disse Mrs. Kirk.

– Pois é, foi uma grande pancada – disse Morel, satisfeito por a mulher não ter contado a verdade às vizinhas.

– Não consigo perceber como é que ela fez aquilo... – continuou Mrs. Kirk.

– Pois é, eu também não – respondeu Morel.

– Fosse como fosse, vai ficar marcada prò resto da vida.

– Lá isso vai, foi uma g’anda cabeçada – disse Morel. – É... Coitada! Eu bem lhe digo pra ir mostrar a ferida ao médico, mas ela não quer.

– O seu marido está a dizer que quer que vá mostrar o olho ao médico – disse Mrs. Kirk para Mrs. Morel.

– Ah, quer? – respondeu Mrs. Morel.

Na quarta-feira seguinte, Morel estava sem um tostão e cheio de medo da mulher. Tinha-a agredido e agora detestava-a. Não sabia o que fazer naquela noite, sem um tostão para ir até ao Palmerston, onde já devia muito dinheiro para poder beber fiado. Por isso, enquanto a mulher estava no jardim com o bebé, foi à gaveta de cima do louceiro, onde ela guardava a carteira, encontrou-a e abriu-a. Lá dentro tinha meia coroa, dois meios dinheiros, e uma moeda de seis dinheiros. Tirou os seis dinheiros, voltou a pôr a carteira no lugar e saiu.

No dia seguinte, quando ela se preparava para pagar ao merceeiro e foi buscar os seis dinheiros, caiu-lhe o coração aos pés. Sentou-se e pensou: Tinha ou não tinha aqui uma moeda de seis dinheiros?... Não os gastei, pois não?... Nem os pus noutro lado?

Estava aflita. Procurou-os por toda a parte. E, à medida que procurava, cada vez mais o coração lhe dizia que o marido lhos tinha tirado. O dinheiro que tinha na carteira era todo o dinheiro que possuía, e era intolerável que ele lhos surripiasse assim. Já por duas vezes tinha feito o mesmo. Da primeira, ela não o tinha acusado, e no fim-de-semana seguinte ele tinha reposto o xelim que tirara. Tinha sido assim que ela soubera que ele lho tinha tirado. Mas da segunda vez nunca repôs o dinheiro.

Agora, porém, era de mais, pensava ela. Quando ele já tinha acabado de jantar – nesse dia viera cedo para casa – ela disse-lhe com frieza:

– Tiraste dinheiro da minha carteira ontem à noite?

– Eu?! – disse ele, olhando para ela ofendido. – Na, num fui eu! Nem sequer vi a tua carteira.

Mas ela percebeu que era mentira.

– Para que estás com isso? Sabes bem que foste tu – disse ela com toda a serenidade.

– Já disse que num fui eu – berrou ele. – Lá tás tu a embirrar comigo outra vez! Já chega, tou farto!

– Com que então surripias-me seis dinheiros da carteira enquanto eu ando a apanhar a roupa.

– Vais pagar por isto – disse ele, empurrando a cadeira para trás, desesperado. Lavou-se com grande estardalhaço e subiu as escadas resoluto. Daí a pouco, voltou para baixo já vestido e com uma grande trouxa amarrada num enorme lenço azul.

– E agora – disse ele – hás-de voltar a ver-me quando calhar.

– O que há-de ser antes de eu o desejar – retorquiu ela, e ele abalou de casa de trouxa na mão. Mrs. Morel sentou-se. Tremia ligeiramente, mas o seu coração transbordava de desprezo. Que iria ela fazer, se ele arranjasse trabalho numa outra mina e fosse viver com outra mulher? Mas ela conhecia-o bem de mais... ele não seria capaz disso. Tinha a certeza. Todavia, sentia o coração apertado.

– Onde está o meu papá? – perguntou William, ao chegar da escola.

– Ele disse que se ia embora – respondeu a mãe.

– Para onde?

– Sei lá. Fez uma trouxa de roupa com o lenço azul e diz que não volta.

– E que vamos nós fazer? – gritou o garoto.

– Não te preocupes. Ele não vai longe.

– E se ele não voltar? – choramingou Annie.

Ela e William foram chorar para o sofá. Mrs. Morel sentou-se a rir.

– Sempre fazem um belo par de choramingas! – exclamou ela. – Vão voltar a vê-lo antes da noite acabar.

Mas as crianças estavam inconsoláveis. Caiu a noite. A fadiga aumentou ainda mais a ansiedade de Mrs. Morel. Uma parte dela dizia: seria um alívio, se não o voltasse a ver; uma outra receava pelo sustento das crianças; e o seu íntimo dizia-lhe que não estava ainda preparada para o deixar partir. Lá no fundo, sabia bem que ele não podia ir-se embora.

Quando se dirigia para a carvoeira, ao fundo do quintal, sentiu qualquer coisa atrás da porta e foi ver o que seria. E lá estava ela, na escuridão, a enorme trouxa azul. Sentou-se num monte de carvão, diante da trouxa, e desatou a rir. Não continha o riso sempre que olhava para a trouxa, gorda e insultuosa, escondida naquele recanto escuro, com as pontas dos nós a adejarem como orelhas descomunais e enjeitadas.

Voltou para casa com o carvão. Annie e William tinham recomeçado a chorar por ela ter saído.

– Mas que bebés chorões – disse ela. – Vão à carvoeira e olhem para trás da porta, e então logo verão se ele foi para muito longe.

– O quê? – exclamou William, pateticamente.

– Vai lá ver – disse a mãe.

Ele esgueirou-se de imediato, seguido por Annie, que corria ligeira, fungando para conter as lágrimas. Não tardou, estava de volta, abraçado à trouxa.

– Ele agora já não se vai embora, pois não, mãe? – disse, a chorar.

– Não... Eu sabia que não ia... O meu medo era só que ele empenhasse alguma coisa. Mas vai lá pô-la outra vez... onde a encontraste.

– Mas...! – hesitou William. – O que é que tem dentro?

– Vai lá pô-la, já disse! – insistiu a mãe. – E não faças perguntas.

O garoto levou a enorme trouxa de novo para o quintal, e largou-a atrás da porta da carvoeira. Depois, já mais calmas, mas não completamente, as crianças foram deitar-se.

Mrs. Morel ficou à espera. O marido não tinha dinheiro, sabia-o bem, e, por isso, se quisesse dormir fora, tinha de ficar a dever. Estava muito cansada dele, cansada até mais não. E ele nem coragem tinha tido para levar a trouxa para mais longe que o fundo do quintal. Estava ela assim a meditar, por volta das nove horas, quando ele abriu a porta e entrou de mansinho, mas mal-encarado, sem lhe dirigir a palavra. Tirou o casaco e deslizou para o cadeirão de braços, onde começou a descalçar as botas.

– É melhor ires buscar a trouxa antes de tirares as botas – disse ela, calmamente.

– Podes dar graças por eu ter voltado para casa esta noite – disse ele, erguendo os olhos lá de baixo, de onde tinha a cabeça, carrancudo e melodramático.

– Essa agora, então para onde é que tu ias? Pois se nem a trouxa levaste lá para fora – disse ela.

A figura dele era tão triste que ela nem se conseguia zangar. Ele continuou a descalçar as botas e a preparar-se para se ir deitar.

– Não sei o que meteste no teu lenço azul – disse ela. – Mas se o deixares lá, as crianças amanhã de manhã vão buscá-lo.

Ouvindo isto, ele levantou-se e saiu, voltando de imediato. Atravessou a cozinha de cara fechada, e foi a correr para cima. Mrs. Morel não pôde deixar de rir interiormente, quando o viu esgueirar-se pela porta do corredor e pela escada acima, de trouxa debaixo do braço. Tinha, porém, o coração amargurado, pois já o tinha amado muito.


III

A REJEIÇÃO DE MOREL E A SUA SUBSTITUIÇÃO POR WILLIAM

DURANTE toda a semana seguinte, Morel andou insuportável. Como todos os mineiros, tinha a mania das mezinhas, que, por estranho que pareça, era ele próprio que pagava do seu bolso.

– Tens de m’ir comprar o elixir – disse ele. – É espantoso como nunca há nem uma gota cá em casa.

Mrs. Morel lá foi comprar o elixir de vitríolo, o seu remédio favorito, e ele apressou-se a fazer uma cafeteira de chá de absíntio. Tinha pendurados no sótão, a secar, grandes molhos de ervas aromáticas: absíntio, arruda, marroio, flores de sabugueiro, apiol, alteia, hissopo, dente-de-leão e piteira. Havia sempre uma cafeteira com uma infusão qualquer em cima do fogão, que ele bebia em grandes quantidades.

– Excelente! – disse ele, dando estalos com a língua, a saborear o absíntio. – Excelente! – E exortou as crianças a provarem.

– É bem melhor que esses chás que vocês bebem ou essas mistelas de cacau – exclamou. Mas as crianças não se mostraram tentadas a experimentar.

Desta vez, porém, nem as pílulas nem o vitríolo nem as ervas conseguiam acabar com as «xaquecas da cabeça». Era uma inflamação no cérebro. Nunca mais se tinha sentido bem desde aquele dia em que fora com Jerry a Nottingham e adormecera no chão. Desde aí, não fazia mais nada senão beber e ralhar com tudo e todos. Mas agora sentia-se seriamente doente, e Mrs. Morel tinha mais um para cuidar. Ainda por cima, era dos piores doentes que se possa imaginar. Mas, apesar de tudo, e independentemente do facto de ser ele o ganha-pão da família, ela nunca desejou que ele morresse. Uma parte dela ainda o queria para si.

As vizinhas eram muito boas para ela. De vez em quando, umas davam de almoçar às crianças; outras limpavam-lhe a casa, outra ficava-lhe com o bebé por um dia. Mas, mesmo assim, era extenuante. Não era todos os dias que as vizinhas vinham dar uma ajuda, e ela tinha de tratar do marido e do bebé, tratar da casa e cozinhar, e atender a tudo o mais. Andava estafada, mas fazia o que tinha de ser feito.

O dinheiro chegava à justa. Recebia dezassete xelins por semana de instituições de caridade, e, todas as sextas-feiras, Barker e os outros mineiros punham de lado uma parte dos proventos para a mulher de Morel. As vizinhas levavam-lhe canja, ovos e outros paparicos, dos que se dão aos doentes. Se não a tivessem ajudado com tanta generosidade nessa altura, Mrs. Morel nunca teria conseguido fazer frente à situação sem contrair dívidas que lhe seriam fatais.

As semanas foram passando, e Morel, contrariamente ao que seria de esperar, ia melhorando. Era de constituição forte e, com o tratamento, depressa entrou em convalescença. Não tardou muito, já andava a traquinar no andar de baixo. A mulher tinha-o estragado com mimos durante a doença e era frequente vê-lo levar as mãos à cabeça, assumir um rictus de dor, quase fazendo beicinho, e fingir dores que não sentia. Mas ela não se deixava enganar. A princípio, limitava-se a sorrir interiormente. Mas depois começou a metê-lo na ordem.

– Credo, homem, não te ponhas para aí a choramingar.

Isto magoava-o ligeiramente, mas não o impedia de continuar a fingir-se doente.

– Não te ponhas com fingimentos – dizia a mulher sem rodeios.

Ele indignava-se e praguejava entredentes, como um rapazola. Mas não tinha outro remédio senão voltar à normalidade e parar com as lamúrias.

Apesar de tudo, a paz reinou em casa por algum tempo. Mrs. Morel mostrava-se mais tolerante com ele, e ele, dependendo dela quase como uma criança, sentia-se feliz. O que nenhum deles sabia é que ela estava mais tolerante porque o amava menos. Até àquela altura, e apesar dos pesares, ele tinha sido o seu marido e o seu homem. Ela sempre sentira mais ou menos que o mal que ele fazia a si mesmo, fazia-o também a ela. Dependia dele para viver. Houve muitos, muitos estádios de arrefecimento do seu amor por ele, mas sempre de arrefecimento.

Agora, com o nascimento do terceiro filho, o seu ser já não se sentia empurrado para ele sem remédio, era antes como uma maré que quase não subia e que ficava longe dele. Agora, quase nunca o desejava. Vendo-se mais liberta dele, sentindo cada vez mais que ele não era parte dela, mas tão-só das circunstâncias que a rodeavam, já não lhe interessava o que quer que ele fizesse, podia deixá-lo em paz.

O ano que se seguiu trouxe a Morel a pausa e a ansiedade que marcam o Outono na vida de um homem. A mulher rejeitava-o, contrariada, mas inexoravelmente; rejeitava-o e substituía-o pelos filhos na vida e no amor. Daí em diante ele não era mais que um peso morto. E, como tantos homens fazem, sujeitava-se, cedendo o seu lugar aos filhos.

Durante a convalescença, quando já nada havia entre eles, ainda fizeram um esforço para reatar a relação dos primeiros meses de casados. Ele passava as noites em casa e, quando as crianças já estavam deitadas e ela se sentava a costurar – costurava tudo à mão, as camisas dele e os fatos das crianças – ele punha-se a ler o jornal em voz alta, soletrando as palavras devagar, como um jogador a atirar a malha. Ela até o apressava, acabando muitas vezes as frases primeiro, o que ele aceitava com humildade.

Os silêncios que se instalavam entre eles eram curiosos. Era o clic-clic leve e rápido da agulha, o pa-af-f cavo dos lábios dele expelindo baforadas de fumo, o crepitar da lareira e o fervilhar sibilante da grelha quando ele cuspia para o lume. Os pensamentos dela voltavam-se então para William, que estava já um rapagão. Era o primeiro da classe, e o mestre dizia que era o mais inteligente da escola. E ela via-o já homem, cheio de vigor e juventude, e olhava de novo o mundo em todo o seu esplendor.

E Morel, ali sentado sozinho, sem nada em que pensar, sentia-se vagamente desconfortável. A sua alma procurava ir ao encontro dela, às cegas como de costume, e descobria que ela já lá não estava. Sentia então uma espécie de vazio, um vácuo dentro da alma. Ficava perturbado e inquieto. Depressa o ambiente se lhe tornou insuportável, e à mulher também. Era como se o peito se lhes oprimisse com falta de ar quando ficavam sozinhos por muito tempo. Então, ele não tardava a ir deitar-se e ela deixava-se ficar, a saborear a solidão, enquanto ia trabalhando, sonhando, vivendo.

Assim, tendo de procurar uma atmosfera onde pudesse respirar, incapaz de pactuar com a sua própria aniquilação, Morel voltou-se de novo para a taberna e para o seu amigo Jerry, e a mulher, lá bem no fundo, sentiu até um certo alívio.

A partida estava definitivamente perdida para ele. Embora, naturalmente, tentasse voltar ao que era antes, e ainda tivesse assomos de prepotência, autoridade e orgulho, tais momentos eram apenas um eco do passado. Paul, o bebé, ao qual se sentia estranhamente ligado, não deixava que ele lhe tocasse. Aos oito meses, o menino teve uma infecção num ouvido e era um dó vê-lo. Morel bem queria pegar-lhe ao colo, para o consolar. E que bem lhe teria feito ser capaz de tratar do filho. Mas a criança não deixava. Retesava os braços e, ele que era quase sempre um bebé mansinho, desatava a gritar e a esquivar-se às mãos do pai. E Morel, ao vê-lo crispar os punhos pequeninos, virar a carita para o lado e levantar para a mãe uns olhos azuis apavorados, dizia com impaciente desespero:

– Anda, vem pegar nele!

– É o teu bigode que o assusta – dizia ela, pegando no menino e apertando-o contra o peito. Mas sentia o coração amargurado, e Morel tinha medo da criança.

Entretanto, um outro bebé vinha a caminho, fruto destas tréguas de ternura entre o casal desavindo. Paul tinha dezassete meses quando o irmão nasceu. Era na altura uma criança pálida e gorducha, sossegada, de olhos azuis carregados e o seu já tão característico franzir de testa. Este bebé também era um rapaz, loiro e magrinho. Mrs. Morel ficou aborrecida quando soube que estava grávida – por razões económicas e por já não amar o marido; não pela criança.

Chamaram-lhe Arthur. Era muito bonito, com fartos caracóis doirados, e gostou do pai desde o início. Mrs. Morel estava satisfeita por este filho gostar tanto do pai. Mal ouvia os passos do mineiro, o bebé estendia os braços e punha-se a pairar. E, se Morel vinha bem-disposto, respondia-lhe de imediato, na sua voz cálida e melodiosa:

– Então, meu amor... já vou, já vou.

E assim que tirava o casacão, Mrs. Morel punha um avental à volta do menino e entregava-o ao pai.

– Mas que lindo que ele ficou! – exclamava ela às vezes, voltando a pegar nele, todo enfarruscado dos beijos e das carícias do pai. E Morel ria com gosto.

– Temos aqui um mineirinho, que Deus o proteja! – exclamava ele. E eram estes os momentos de felicidade da vida dela, os momentos em que os filhos metiam o pai no coração.

Entretanto, William estava cada vez mais crescido, mais forte e activo, enquanto Paul, sempre sensível e calado, se tornava cada vez mais magro e andava sempre atrás da mãe como se fosse a sua sombra. Geralmente activo e interessado, era acometido por vezes de acessos de depressão, e a mãe ia dar com ele, com três ou quatro anos, a chorar num canto do sofá.

– O que tens? – perguntava ela, mas não obtinha resposta. – O que tens? – insistia, já zangada.

– Não sei – respondia ele entre soluços.

Ela tentava conversar com ele, distraí-lo, mas em vão, o que a deixava desesperada. Então, o pai, sempre impaciente, saltava da cadeira e berrava:

– Se ele não se cala, vai apanhar até se calar.

– Não senhor, era o que faltava – dizia a mãe, friamente. Depois, levava o menino para o jardim, sentava-o na cadeirinha dele e dizia:

– Agora chora pr’aí, infeliz!

E então, talvez uma borboleta pousada nas folhas do ruibarbo lhe atraísse a atenção; se não, acabava por chorar até adormecer. Estes ataques não lhe davam muitas vezes, mas Mrs. Morel andava preocupada, e o tratamento que dava a Paul era diferente do que dava aos outros filhos.

Uma manhã, ao ouvir a cantilena de Ó-Le-v’dura, Mrs. Morel saiu a correr de caneca na mão. O Ó-Le-v’dura ainda não tinha chegado ao portão, e ela teve de esperar, ouvindo os excertos de hinos que o homem cantava enquanto mergulhava a lata nos barris e enchia os recipientes que as mulheres lhe estendiam. Era um homem alegre, com uma cara opada e muito cómica, orlada de suíças brancas. Na carroça decrépita, viajavam dois barris de levedura de cerveja cobertos com uma serapilheira molhada. À medida que avançava, ia cantarolando excertos de hinos, pois tinha-se convertido há três meses. O seu pregão, possante, semi-herético, invadia o beco:


«Estaremos juntos para além do rio,

Onde a corrente já não é dura... Ó-Le-v’dura!»


Tinha também o hábito de chalacear com as mulheres enquanto lhes aviava a levedura. De repente, Mrs. Morel ouviu uma voz a chamá-la. Era a magricela da Mrs. Anthony, com o seu vestido de veludo vermelho.

– Venha cá, Mrs. Morel, quero falar-lhe por causa do seu Willie.

– Ah, sim? – respondeu Mrs. Morel.

Mrs. Anthony, sem se aproximar, gritou-lhe do outro lado do beco:

– Acha que ele tinha o direito de rasgar a gola do nosso Alfie atrás das costas?

– O quê, ele fez isso? – gritou Mrs. Morel do lado de cá. Nenhuma das mulheres queria dar o braço a torcer e aproximar-se da outra.

– Fez, sim senhora... e, se não me acredita, vou buscá-la para lha mostrar.

– Não, isso não é preciso – disse Mrs. Morel. – Mas como é que sabe que foi o nosso Willie?

– O quê? Julga que o nosso Alfie não disse a verdade? Olhe que nas Bottoms não há menino mais verdadeiro. Mas, se quiser, pergunte à Annie Bowers e a mais umas quantas. Ele agarrou na gola do meu miúdo e arrancou-lha inteirinha. E eu num tenho dinheiro pr’andar a gastar em golas novas, quando os outros lhas rasgam...

– Eu sei que não tem – disse Mrs. Morel.

– E o qu’eu acho – disse Mrs. Anthony, afogueada – é qu’ele devia levar uma boa sova, isso é qu’eu acho.

– «Junto ao cruzeiro, junto ao cruzeiro, onde encontrei...» Ó-Le-v’dura!... Ó-Le-v’dura!... Quanto quer, patroa?

– Meia medida chega – disse Mrs. Morel, estendendo-lhe a caneca.

– Meia medida nesta caneca, ora aqui tem, fresquinha a pingar, com a bênção do Senhor – respondeu o «Ó-Le-ved’ura». Ele e a carroça interpunham-se entre as duas mulheres.

– «Olhai os lírios a crescer...» Sim, Mrs. Anthony... meia medida. Todas meia medida! Não faz mal. «Eles não labutam, nem em casa, nem ao fuso. Mas Salimão também não...». Obrigadinho...

E lá seguiu, sem produzir o mínimo efeito nas mulheres. Mrs. Anthony estava indignadíssima.

– Um rapaz que s’agarra a outro e lhe rasga a roupa pelas costas... – não se cansava de repetir.

– O seu Alfred é da idade do nosso William – disse Mrs. Morel.

– Lá isso é, mas isso num dá o direito ao seu filho de deitar a mão à gola do meu e lha rasgar toda.

– Bem, sabe – disse Mrs. Morel –, eu não bato nos meus filhos, e mesmo que batesse, tinha de ouvir primeiro a versão deles.

– Portavam-se bem melhor, se apanhassem um bom correctivo quando rasgam a gola de um colega... de propósito... – opinou Mrs. Anthony.

– Tenho a certeza de que não foi de propósito – disse Mrs. Morel.

– Está a chamar-me mentirosa? – indignou-se Mrs. Anthony.

Mrs. Morel voltou para o quintal e fechou o portão. A mão que segurava a caneca com a levedura não parava de tremer.

– Olhe qu’eu vou queixar-me ao seu marido – gritou Mrs. Anthony, quando ela se afastava.

Ao almoço, quando William já tinha terminado de comer e estava morto por sair outra vez – tinha então onze anos – a mãe disse-lhe:

– Porque é que rasgaste a gola do Alfred Anthony?

– E quando é que eu lha rasguei?

– Isso não sei, mas a mãe dele diz que rasgaste.

– Ah... isso foi ontem... mas já estava rasgada.

– Mas tu ainda a rasgaste mais.

– Bom, eu tinha uma castanha que já tinha caçado dezassete... e vai o Alfy Ant’ny e diz:


«O Adão, a Eva e o Belisca-me

Foram tomar banho ao rio.

Adão e Eva afogaram-se.

Qual dos três é que fugiu...?»


E vou eu e digo «Ora, o Belisco-te», e zás, dei-lh’um beliscão e ele ficou furioso e palmou-m’a castanha e fugiu. E eu larguei a correr ’trás dele e quando lhe deitei a mão, ele tentou escapar-se e a gola rasgou-se. Mas eu tirei-lh’a minha castanha...

E, dizendo isto, tirou do bolso uma castanha-da-índia, muito preta, pendurada de um cordel. Ora, esta velha castanha já tinha «acastanhado» – atingido e esmagado – outras dezassete castanhas semelhantes penduradas como ela de cordéis, pelo que o rapaz tinha grande orgulho na sua veterana.

– Bem – disse Mrs. Morel –, tu sabes que não tens o direito de lhe rasgares a gola.

– Ora, mãe! – respondeu ele. – Não foi de propósito... e, além disso, era uma gola velha de borracha, já meio rasgada.

– Da próxima vez – disse a mãe – tens de ter mais cuidado. Eu também não ia gostar que me aparecesses em casa com a gola rasgada.

– Não m’interessa, mãe, eu não fiz de propósito. O rapaz estava muito sentido com a reprimenda.

– Pois não... mas tens de ter mais cuidado.

William tratou de se escapulir, todo contente por se ver liberto, e Mrs. Morel, que detestava conflitos com as vizinhas, pensou que, se fosse dar uma explicação a Mrs. Anthony, o problema ficaria resolvido.

Nessa noite, porém, Morel chegou da mina muito mal-humorado. Pôs-se no meio da cozinha a olhar em volta, ameaçador, durante uns minutos, mas sem dizer nada. Depois começou.

– Onde está esse Willie dum raio?

– Para que queres falar com ele? – inquiriu Mrs. Morel, já a adivinhar.

– Quando eu o encontrar, ele logo saberá – disse Morel, batendo violentamente com o cantil em cima do louceiro.

– Já estou a ver que a Mrs. Anthony te apanhou e te encheu os ouvidos por causa do que aconteceu à gola do filho – disse Mrs. Morel, com acentuada sobranceria.

– Não interessa quem m’apanhou – disse Morel. – Mas quand’eu o apanhar, os ossos dele vão estalar.

– É uma pena que estejas tão pronto a tomar o partido da primeira megera que te vem envenenar com contos e ditos sobre os teus próprios filhos.

– Ele vai ver como elas mordem! – disse Morel. – Num m’interessa de quem ele é filho, num pode é andar por aí a arrancar e a rasgar golas conforme lhe dá na gana.

– A arrancar e a rasgar! – repetiu Mrs. Morel – Ele ia a correr atrás do Alfy para lhe tirar a castanha que ele lhe tinha roubado, e agarrou-lhe a gola por acaso... porque o outro se tentou esquivar... como é bem dos Anthonys.

– Eu sei... – berrou Morel, ameaçador.

– E devias saber, antes de to dizerem – retorquiu Mrs. Morel, mordaz.

– Num te preocupes – vociferou Morel. – Sei muito bem o que hei-de fazer.

– Pois não parece – disse Mrs. Morel. – Já que foi uma intriguista qualquer que te foi industriar para bateres no teu filho.

– Eu sei – repetiu Morel.

E mais não disse, tendo-se sentado a curtir o mau génio. Nisto, William entrou a correr pela cozinha dentro, e disse:

– Mãe, pode dar-me o meu chá?

– Vou dar-te ’inda mais do qu’isso – berrou Morel.

– Fala baixo, homem – disse Mrs. Morel. – Não faças tristes figuras.

– Ele é que vai fazer triste figura quando eu acabar com ele! – berrou Morel, saltando da cadeira e olhando irado para o filho. William, que era desenvolvido para a idade, mas muito sensível, ficou lívido e fitou o pai, aterrorizado.

– Foge daqui! – ordenou Mrs. Morel.

Mas William estava incapaz de se mexer. De repente, Morel cerrou o punho e baixou-se.

– Eu digo-lhe quem é que foge! – berrou, tresloucado.

– O quê! – gritou Mrs. Morel, ofegante de raiva. – Tu não lhe vais pôr um dedo em cima a mando dela, isso é que não vais.

– Não vou? – berrou Morel – Ai não vou?

E, soltando faíscas do olhar, avançou para o rapaz. Mrs. Morel, num salto, meteu-se entre ambos brandindo o punho.

– Não te atrevas! – gritou ela.

– O quê! – berrou ele, momentaneamente desnorteado. – O quê!

Ela rodopiou e agarrou-se ao filho.

– Foge lá para fora! – ordenou ela, desvairada. O rapaz, como se hipnotizado, voltou-se subitamente e fugiu. Morel correu para a porta, mas era tarde de mais. Voltou para dentro, lívido de raiva por baixo do pó preto da mina. Mas agora era a mulher que estava furiosa.

– Experimenta só! – disse ela, alto e bem timbrado. – Experimenta tocares com um dedo nessa criança, meu menino, e vais arrepender-te para o resto da tua vida.

Ele, com medo dela, sentou-se a vociferar, dando largas à sua fúria.

– Não, já o fizeste noutras alturas, mas agora acabou-se! – recomeçou ela, de repente, após uma pausa. – Não me esqueço daquela vez em que lhe deste um pontapé e o encheste de nódoas negras, só por causa da raiva que aquela velha, a Tia Sharp, tinha dele... mas nunca mais vais fazer isso – disse ela, ofegante, quase sem fôlego, de tanta cólera.

– Não vou? Ai não vou? – repetiu Morel.

– Seu brutamontes... és um bruto e um cobarde! – gritou ela. – Não tens vergonha de te deixares dominar por uma vadia qualquer, como essa Anthony, quando ela te vem dizer para bateres nos teus filhos? É ela que decide por ti quando hás-de vir para casa bater nas crianças?... E tu obedeces, meu cobarde, meu grande bruto!... Não, enquanto eu aqui estiver, isso não vai acontecer!

– Vais ver o que acontece enquanto aqui estás – disse Morel ameaçadoramente.

– Nunca mais, meu menino, nunca mais toques com um dedo nos meus filhos.

– Ah-Ah-Ah! – E ele riu-se, trocista.

Depois saiu e embebedou-se, e, quando chegou o fim-de-semana, não deu a William a moeda do costume.

– Também não te faz falta – disse Mrs. Morel para o filho.

AS BOTTOMS vieram substituir as Hell Row. As Hell Row era uma correnteza de casas rústicas, abauladas, de telhado de colmo, construídas nas margens da ribeira, em Greenhill Lane. Aí viviam os mineiros que exploravam as pequenas minas à nora, duas searas mais abaixo. A ribeira corria entre os amieiros, quase nada poluída pelas pequenas minas, cujo carvão era trazido para a superfície por burros que andavam pachorrentamente em torno de uma nora. Por toda a região havia minas destas, datando algumas delas do tempo de Carlos II; os poucos mineiros e burros existentes enfiavam-se pela terra dentro como formigas, salpicando de curiosos montículos e negras manchas prados e searas. Eram as casas destes mineiros, espalhadas pela paróquia em pequenos aglomerados ou aos pares, à mistura com as quintas dispersas e as casas dos tecelões, que constituíam no seu conjunto a cidadezinha de Bestwood.
Até que, há cerca de sessenta anos, se deu uma transformação radical. As pequenas minas à nora foram preteridas pelas minas dos grandes financeiros, e descobertos os campos mineiros do Nottinghamshire e do Derbyshire. Surgiu então a Carston, Waite & Co., e, no meio do maior entusiasmo, Lord Palmerstone inaugurou oficialmente a primeira mina da companhia, em Spinney Park, na orla da floresta de Sherwood.
Pela mesma altura, as tão faladas Hell Row, que com o passar dos anos foram ganhando má fama, foram totalmente queimadas e, com elas, eliminada muita imundície.

 

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A Carston, Waite & Co. não tardou a aperceber-se do êxito da iniciativa, e novas minas foram sendo abertas nos vales do Selby e do Nuttall, até que, em pouco tempo, já eram seis as minas a laborar. Partindo de Nuttall, e encarrapitada nos montes de arenito, por entre o arvoredo, a via férrea passava pelo priorado em ruínas de Carthusians e o Poço de Robin Hood, descendo depois para Spinney Park e Minton, a enorme mina no meio das searas, atravessando em seguida as quintas do vale até Bunker Hill, onde entroncava com um ramal, seguindo então para o norte, para Beggarlee e Selby, de onde se avistam Crich e os montes do Derbyshire; seis minas, quais garanhões pretos na paisagem, ligadas por uma corrente serpenteante – a via férrea.

Para alojar os mineiros, a Carston, Waite & Co. construiu as Squares, grandes urbanizações quadrangulares na encosta de Bestwood, e, no vale, erigiram as Bottoms no local antes ocupado pelas Hell Row.

As Bottoms eram seis quarteirões de casas de mineiros, com duas fiadas de três casas cada um, à laia das pintas do seis no dominó, ou seja, doze casas por quarteirão. Esta dupla fiada de habitações situava-se no sopé da encosta íngreme de Bestwood e, pelo menos das janelas dos sótãos, avistava-se a ladeira suave que subia do vale em direcção a Selby.

As casas propriamente ditas eram sólidas e bastante apresentáveis. Quem por ali andasse a passear, deparava-se com jardinzinhos floridos, de prímulas e saxífragas, nas casas de baixo, mais sombrias, e de cravos e cravinas nas casas de cima, mais soalheiras; janelas airosas, alpendres, pequenas sebes de alfena, mansardas nos sótãos. Mas tudo isto era por fora, a vista exterior da sala, onde as mulheres dos mineiros nunca entravam. A divisão onde passavam o dia, a cozinha, ficava nas traseiras, virada para a outra fiada de casas, e dava para um jardinzeco mal tratado e, mais adiante, para os aterros de cinza. E entre as duas fiadas, entre as longas filas de poços de cinza, corria o beco onde as crianças brincavam, as mulheres davam à língua e os homens se entretinham a fumar. Assim, as condições reais de vida nas Bottoms, casas aparentemente bem construídas e com tão bom aspecto, eram bastante deficientes, porque os moradores passavam a maior parte do tempo na cozinha, e as cozinhas davam para o tal beco miserável dos poços de cinza.

Quando desceu das alturas de Bestwood, Mrs. Morel não tinha grande vontade de se mudar para as Bottoms, construídas há doze anos e apresentando já alguns sinais de degradação. Mas era o que podia arranjar. Vindo morar para uma das casas da ponta, num dos blocos superiores, tinha apenas um vizinho, e, do outro lado, um jardim suplementar. Além disso, o facto de possuir uma casa de topo conferia-lhe um estatuto aristocrático entre as restantes mulheres das casas intermédias, pois a renda era cinco xelins e seis dinheiros por semana, em vez dos habituais cinco xelins. Todavia, esta superioridade social não trazia grande consolação a Mrs. Morel.

Tinha trinta e um anos e estava casada há oito. Pequena, frágil, mas resoluta, furtava-se ao contacto com as outras mulheres das Bottoms. Mudara-se em Julho e esperava o terceiro filho para Setembro.

O marido era mineiro. Só viviam na casa nova há três semanas, quando chegou o dia da feira anual. Sabia bem que Morel não ia perder a oportunidade de se divertir. Na segunda-feira, dia da inauguração da feira, saiu de casa logo pela manhã. As duas crianças estavam excitadíssimas. William, um rapazinho de sete anos, escapuliu-se mal tomou o pequeno-almoço, para ir passear pela feira, deixando Annie, a irmã de cinco anos, toda a manhã a chorar porque também queria ir. Mas Mrs. Morel tinha a lida da casa para fazer, e ainda mal conhecia os vizinhos, não tendo por isso ninguém de confiança para tomar conta da filha. Prometeu-lhe por isso que a levava à feira depois do almoço.

William voltou ao meio-dia e meia hora. Era um garoto muito activo, de cabelo louro, sardento, de aspecto nórdico.

– Posso almoçar já, mãe? – gritou, entrando de rompante com o boné na cabeça. – É que a feira abre à uma e meia. Foi o que o homem disse.

– Podes comer assim que estiver pronto – respondeu a mãe.

– O quê, ainda não está? – gritou ele, indignado, fulminando-a com os olhos muito azuis. – Então não almoço.

– Isso é que era bom... – respondeu a mãe.

– Mas está quase a começar – gritou o garoto, quase aos berros.

– Não morres se quando chegares já tiverem começado – disse a mãe. – Além disso, ainda é só meio-dia e meia hora e ainda tens uma hora à tua frente.

O garoto começou a pôr a mesa a toda a pressa e sentaram-se os três. Estavam ainda a comer as panquecas com geleia quando ele saltou da cadeira e, bruscamente, parou, completamente estático. Ao longe, ouviu-se o carrocel arrancar para a primeira volta e o som vibrante de uma corneta. O rosto contraiu-se-lhe e olhou para a mãe.

– Eu bem dizia! – exclamou, correndo para a cómoda e pegando no boné.

– Leva a panqueca... ainda é só uma e cinco, por isso estavas enganado... Olha que não levas os dois dinheiros – gritou a mãe de um só fôlego.

O garoto voltou para trás, pelos dois dinheiros, visivelmente contrariado, e saiu de imediato sem dizer palavra.

– Também quero ir, também quero ir – dizia Annie, já a chorar.

– Pronto... pronto... também vai, sua rabina – disse a mãe. E, mais tarde, lá foi Mrs. Morel encosta acima com a filha ao colo, penosamente, à sombra da sebe alta que ladeava o caminho. O feno já tinha sido apanhado e as vacas andavam à solta. O dia estava quente e bonançoso.

Mrs. Morel não gostava de arraiais. Neste, havia dois carrocéis de cavalinhos – um a vapor e outro puxado por um pónei. Os acordes de três órgãos arranhavam a tarde, e ouviam-se estampidos desencontrados de pistolas, a chiadeira infernal da caranguejola do vendedor de cocos, os gritos do homem da barraca da Tia Sally e o pregão estridente da mulher do Olho Mágico. A mãe avistou o filho parado em frente da barraca do Leão Wallace, a olhar embasbacado para as fotografias desse leão que já tinha matado um negro e mutilado dois brancos, mas não se aproximou e foi comprar algodão doce para Annie. O garoto, porém, veio ter com ela, excitadíssimo.

– Não disse que vinha... Há tantas coisas, não há?... Aquele leão ali já matou três homens... e eu já gastei os meus dois dinheiros... olhe...

Do bolso tirou dois suportes para ovos, decorados com florinhas cor-de-rosa.

– Comprei-os naquela barraca onde a gente mete os berlindes nos buracos... e ganhei estes dois de seguida... um dinheiro cada jogada... têm rosinhas pintadas, olha. Era mesmo o que eu queria.

Ela sabia que era para lhos dar que ele os queria.

– Hum! – disse ela, satisfeita. – São muito bonitos!

– Leve-os a mãe, qu’eu tenho medo d’os partir.

Não cabia em si de contente por ela ter vindo, e foi mostrar-lhe a feira toda. Quando chegaram ao Olho Mágico, pôs-se a explicar-lhe as imagens, encadeadas numa espécie de história que ele escutava como se estivesse enfeitiçado. Mas não a largava. Mantinha-se perto dela, exibindo o seu orgulho de menino pela sua mãe. É que nenhuma outra mulher se lhe comparava em elegância, com o seu chapelinho preto e a capa sobre as costas, trocando sorrisos com as mulheres conhecidas que encontrava.

Quando se cansou, Mrs. Morel disse ao filho:

– Então, vens comigo agora, ou voltas mais tarde?

– Já se vai embora? – exclamou ele, amuado.

– Já?... São só quatro e meia, eu sei.

– Porque vai já? – disse ele, lamuriento.

– Mas tu não precisas de vir comigo, se não quiseres. – E afastou-se com a filha, enquanto o filho ficava parado a olhar para ela, cheio de pena de a deixar voltar sozinha, mas incapaz de virar as costas à feira. Ia a atravessar o largo da feira quando ouviu uns homens a berrar e sentiu o cheiro da cerveja. Então, estugou o passo, pensando que o marido estaria provavelmente na taberna.

Por volta das seis e meia, o filho chegou a casa, cansado, muito pálido e abatido.

– Sim senhor! – disse ela, fingindo-se zangada. – Se te atrasasses mais cinco minutos, já tinha levantado a mesa. É sempre a mesma coisa, já deves estar com fome há muito tempo...

Deu-lhe a merenda. Embora ele não se apercebesse, estava triste por tê-la deixado voltar sozinha. A feira perdera toda a graça desde que ela se tinha vindo embora.

– O pai já veio? – perguntou ele.

– Não – respondeu a mãe.

– Está na taberna a dar uma ajuda ao balcão. Vi-o de mangas arregaçadas através daquela chapa preta aos buraquinhos que eles têm a tapar a janela.

– Ah! – exclamou a mãe. – Está sem dinheiro. Se lhe derem que chegue para a bebida, já fica satisfeito; tanto se lhe dá que lhe paguem mais ou não.

Com ordem da mãe, os garotos foram pôr-se à janela do quarto dela a verem as pessoas regressar da feira com brinquedos do bazar, a ouvirem a cegarrega da música a tocar, o alarido das vozes, o estampido das pistolas, o «pim» das balas no fino alvo de ferro. Por fim, o cansaço venceu-os e foram para a cama.

Quando a luz esmoreceu e Mrs. Morel já não via para coser, levantou-se e foi para a porta da rua. Por todo o lado se ouvia a algazarra própria dos feriados, e ela acabou por ser contagiada. Saiu e foi até ao jardim de topo. As mulheres voltavam do arraial, com as crianças abraçadas a um cordeirinho branco de pernas verdes ou a um cavalo de madeira. De vez em quando, passava um homem aos tombos, cheio de cerveja até mais não poder. Outras vezes era um marido às direitas, com a família atrás, tranquilamente. Mas geralmente as mulheres e as crianças vinham sozinhas. As mães mais caseiras entretinham-se na má-língua pelas esquinas da ruela, à luz do entardecer, com os braços cruzados por baixo do avental.

Mrs. Morel estava sozinha, mas já estava habituada. Com o filho e a filhinha a dormirem lá em cima, a casa, atrás de si, parecia-lhe um lar sólido e estável. Atormentava-a, porém, a ideia de ser mãe mais uma vez. O mundo parecia-lhe um lugar desolado que nada tinha já para lhe dar – pelo menos até o William crescer. E tantos filhos! Não podia ter este terceiro. Não o queria. O pai vendia cerveja na taberna e bebia até cair. Ela desprezava-o e, ao mesmo tempo, sentia-se presa a ele. Este novo filho era de mais para ela. Se não fosse pelo William e a Annie... Estava farta de tudo aquilo, de lutar contra a miséria, a fealdade e a maldade humanas.

Passou para o jardim da frente; já estava muito pesada para sair, mas também não conseguia ficar em casa. O calor era sufocante, e, ao olhar o futuro, a vida que a esperava era semelhante a ver-se enterrada viva.

O jardim da frente era um quadradinho de terra cercado por uma sebe de alfena. Por aí se quedou, tentando amenizar os pensamentos com o perfume das flores e a beleza da tarde que findava. Frente ao pequeno portão ficavam os degraus que permitiam transpor a cerca que vedava o caminho da encosta, debaixo da sebe alta, entre o fulgor ardente dos prados divididos. Lá no alto, o céu palpitava e pulsava de luz. O esplendor depressa se apagou dos campos e o crepúsculo subiu como fumo da terra e dos arbustos. Quando começou a escurecer, um clarão avermelhado surgiu por detrás da colina, dele parecendo emanar a agitação distante da feira.

De vez em quando, homens aos tombos, de regresso a casa, passavam pelo túnel de breu formado pelo trilho aberto sob os arbustos. Um rapaz galgou em desenfreada correria o último troço da encosta, muito íngreme, e estatelou-se com força de encontro à cerca. Mrs. Morel estremeceu. O rapaz levantou-se a praguejar, conforme pôde, numa atitude patética, como se achasse que a cerca o tinha magoado de propósito.

Ela voltou para dentro, a pensar se as coisas não iriam mudar nunca. Começava agora a perceber que não. Sentia tão longe os seus tempos de menina, que duvidava até se aquela pessoa que subia pesadamente o jardim das traseiras, naquela casa das Bottoms, era mesma que há dez anos corria ligeira pelo molhe de Sheerness.

– Que tenho eu a ver com isto! – disse ela para consigo. – Que tenho eu a ver com tudo isto. Ou com a criança que está para nascer! Até parece que ninguém me pediu a opinião.

A vida às vezes toma conta de uma pessoa, apodera-se-lhe do corpo, escreve-lhe a história e, no entanto, nada é real e a pessoa sente-se como se tivesse sido ignorada.

– Vou esperando – disse Mrs. Morel para consigo. – Vou esperando, e aquilo por que espero nunca vem.

Depois, arrumou a cozinha, acendeu o candeeiro, pôs mais carvão na lareira, separou a roupa que havia de lavar no dia seguinte, pô-la de molho e, em seguida, sentou-se a costurar. Durante horas a fio, a agulha brilhou a intervalos regulares, atravessando o pano. De vez em quando, suspirava e mudava de posição, para aliviar as costas. Durante todo esse tempo só pensava numa coisa: como tirar o melhor partido daquilo que tinha, para bem dos filhos.

O marido chegou às onze e meia. Vinha de faces vermelhas e luzidias por cima do bigode preto. Meneava a cabeça afirmativamente. Via-se que estava contente consigo mesmo.

– Oh!... Oh!... estavas à minha espera, cachopa? ’Tive ’àjudar o Anthony, e qu’achas tu qu’ele me deu? Uma triste meia-coroa e mai’ nada, nem mais um tostão...

– Ele deve achar que o resto é para a cerveja que tu bebeste – disse ela, secamente.

– Mas não bebi... não bebi, não... palavra. Hoje inté bebi muito pouco. – A voz adocicou-se. – Toma, trouxe-te um bocado de pão de gengibre e um coco para as crianças. – E colocou em cima da mesa o pão de gengibre e o coco, aquela coisa peluda. – Nã, nunca foste capaz d’agradecer nada na vida, poi não?

Como se cumprisse um ritual, ela pegou no coco e chocalhou-o, para ver se tinha leite.

– Esse é dos bons, podes apostar o que quiseres. Deu-mo o Bill Hodgkisson. Bill, disse eu, tu num vais precisar de três cocos só pra ti, poi não? Num me queres dar um pròs meus miúdos? Tá bem, Walter, disse ele, escolhe o que t’agradar mais. E eu peguei num e agradeci-lhe. Num o queria abanar à frente dele, mas vai ele e diz: É melhor veres s’é memo bom, Walt... Por isso, vi logo que era, tás a perceber? É um tipo porreiro, o Bill Hodgkisson, é um tipo memo porreiro!

– Um homem dá seja o que for, se estiver bêbado, e vocês estavam os dois bêbados – disse Mrs. Morel.

– Vá, diz lá, minha desavergonhada, quem é que estava bêbado? Sempre gostava de saber – disse Morel. Estava todo inchado por ter dado uma ajuda na taberna, e nunca mais se calava.

Mrs. Morel, já muito farta da lengalenga, foi para a cama o mais depressa que pôde, deixando-o a tratar do lume.

Mrs. Morel descendia de uma família tradicional da burguesia, de famosos independentes que tinham lutado ao lado do Coronel Hutchinson, e se mantinham arreigados Congregacionistas. O avô vira falir o seu negócio de rendas numa altura em que muitos fabricantes de Nottingham haviam ficado arruinados. O pai, George Coppard, era mecânico. De constituição forte, bem-parecido e imponente, tinha grande orgulho na brancura da sua pele e nos seus olhos azuis, mas mais orgulho ainda na sua integridade de carácter. Gertrude parecia-se com a mãe na fragilidade da estatura, mas herdara dos Coppards o temperamento orgulhoso e inflexível.

George Coppard ressentia-se amargamente da pobreza em que vivia. Chegou a capataz dos mecânicos dos estaleiros de Sheerness. Mrs. Morel – Gertrude – era a sua segunda filha. Ela só tinha olhos para a mãe, que amava acima de tudo: mas tinha os olhos claros e provocantes dos Coppards e a sua testa alta. Lembrava-se de detestar a forma prepotente como o pai tratava a mãe, mulher gentil, bem-disposta e afável. Lembrava-se de ir a correr pelo molhe até ao barco. Lembrava-se de ser mimada e elogiada por todos os trabalhadores quando entrava nos estaleiros, pois era uma criança delicada e muito segura de si. Lembrava-se da velha professora, mulher caricata, de quem se tornara assistente e com quem sempre gostara de trabalhar. E ainda conservava a bíblia que John Field lhe dera. Costumava voltar com ele da missa quando tinha dezanove anos. Filho de um comerciante abastado, tinha ido estudar para Londres e viria a dedicar-se aos negócios.

Lembrava-se sempre em pormenor de uma certa tarde, num domingo de Setembro, em que se tinham ido os dois sentar debaixo da parreira nas traseiras da casa do pai dela. O sol rompia por entre os recortes das folhas da videira, cobrindo as suas cabeças de arabescos de luz, de belo efeito, como mantilha de renda. Algumas das folhas, de um amarelo muito puro, pareciam flores abertas, amarelas e planas.

– Agora não te mexas – exclamara ele. – Os teus cabelos nem sei o que parecem! Brilham como o cobre ou como o ouro, estão vermelhos como cobre incandescente, raios de fios de ouro onde o sol os ilumina. Não sei porque dizem que são castanhos. A tua mãe chama-lhe pêlo de rato.

Os olhos dela encontraram os dele, cintilantes, mas o seu rosto cristalino não deixava transparecer a exaltação que sentia crescer dentro de si.

– Dizes então que não tens queda para o negócio – continuou ela.

– E não tenho... Detesto negócios – gritou ele, empolgado.

– E que gostavas de seguir a vida religiosa – disse ela, quase implorando.

– Gostava... Gostava mesmo muito, se achasse que podia vir a ser um pregador fora de série.

– Então, porque não segues... Porque não segues? – A voz dela era um desafio. – Se eu fosse homem, nada me conseguia deter.

A pose era altiva, a cabeça erguida – ele quedava-se tímido diante dela.

– Mas o meu pai é tão casmurro. Jurou que me há-de meter nos negócios e sei que assim será.

– Mas tu já és um homem! – gritara ela.

– Ser um homem não é tudo – respondera ele, com um gesto de confuso desalento.

Agora, enquanto tratava da lida da casa nas Bottoms, e sabendo já o que significava ser um homem, ela percebia que isso não era tudo de facto.

Aos vinte anos, saíra de Sheerness por razões de saúde. O pai tinha-se reformado e voltado para Nottingham. O pai de John Field ficara arruinado e o filho era professor em Norwood. Ao fim de dois anos sem notícias, resolveu investigar: ele tinha casado com a senhoria, uma mulher de quarenta anos, viúva abastada.

Mesmo assim, Mrs. Morel conservava a bíblia que John Field lhe dera. Não acreditava que ele fosse aquilo que ela tinha pensado – enfim, compreendia agora muito bem o que ele podia ou não podia ter sido. Guardava por isso aquela bíblia e a sua lembrança no fundo do coração, para seu próprio conforto. Em trinta e cinco anos, até ao dia em que ele morreu, nunca pronunciou o seu nome.

Aos vinte e três anos, encontrou um rapaz de Erewash Valley numa festa de Natal. Morel tinha então vinte e sete anos. Boa figura, garboso e elegante. O cabelo era preto e ondulado, luzidio, e ostentava uma barba negra, vigorosa, que se via nunca ter sido rapada. As faces eram coradas, e a boca vermelha e húmida chamava a atenção porque se ria muito e com vontade. Tinha essa qualidade rara que é um riso cheio e musical. Gertrude Coppard contemplara-o fascinada: era atraente e divertido, a sua voz adquiria facilmente requebros cómicos e grotescos, e mostrava-se sempre disponível e amável com toda a gente. O pai dela também tinha um acentuado sentido de humor, mas a atirar para o sarcástico. O deste homem era diferente: doce, sem pretensões intelectuais, caloroso, dir-se-ia uma constante cabriola verbal.

Ela era o oposto. Tinha um espírito receptivo e curioso, que se deleitava e divertia a ouvir os outros, e era hábil a fazê-los falar. Adorava discutir ideias, pelo que a consideravam muito intelectual. Nada lhe dava mais prazer que falar de religião, filosofia ou política com um homem sabedor. Porém, raramente se podia dar a esse luxo. Contentava-se por isso em ouvir as pessoas falarem-lhe dos seus problemas.

Fisicamente, era pequena e de constituição frágil, testa muito alta orlada de cachos de caracóis castanhos. Os olhos eram azuis, francos, honestos e inquiridores. As mãos eram as belas mãos dos Coppards. Sóbria no trajar, envergava nesse dia um vestido de seda azul-escura e, como únicos enfeites, um original cordão de prata com berloques e um alfinete de ouro entrançado. Ainda intacta e sem mácula, era profundamente religiosa e impregnada de genuína candura.

Walter Morel sentia-se literalmente derretido perante ela. Para este mineiro, ela era algo de misterioso e fascinante: uma senhora. Quando lhe dirigiu a palavra, fê-lo com o sotaque do Sul e num inglês tão puro que o deixou emocionado. Ela observava-o. Ele era bom dançarino, como se, para ele, dançar fosse algo de natural, puro prazer. O avô dele era um refugiado francês que se casara com uma criada de bar inglesa – se é que tinham chegado a casar. Gertrude Coppard contemplava o jovem mineiro, vendo-o dançar com subtil exultação em cada requebro, em cada movimento, e o seu rosto dir-se-ia a flor do seu corpo, rosado e envolto em negras madeixas, de riso qualquer que fosse o par que tivesse ido buscar para dançar. Achava-o maravilhoso, diferente de todos os outros homens que já tinha visto. O pai era para ela o homem-modelo. Mas George Coppard, o orgulho em pessoa, homem bem-parecido e um tanto amargo, que elegia como leitura a teologia e nutria simpatia apenas por um homem – o apóstolo São Paulo –, George Coppard, homem de pulso inflexível e ironia à flor da pele, para quem o prazer sensual não existia, era radicalmente diferente do mineiro. A própria Gertrude desprezava a dança: era arte para a qual não sentia a menor inclinação, e nem a quadrilha ela aprendera a dançar. Era puritana, como o pai, um espírito elevado e determinado. Não admira pois que a dourada e nocturna suavidade do fogo sensual que jorrava do corpo daquele homem, incandescente como a chama de uma vela, sem submissão nem repressão da mente, tão diferente da vida que ela se impunha, fosse aos olhos dela algo de maravilhoso, de transcendente.

Ele aproximou-se e curvou-se diante dela. Uma onda irradiante de calor invadiu-a, como se tivesse bebido vinho.

– Agora, vossemecê vem dançar esta comigo – disse ele, acariciando-a com a voz. – É fácil, vai ver. Estou morto por vê-la dançar.

Ela, que já lhe tinha dito que não sabia dançar, ergueu os olhos perante tanta simplicidade, e sorriu. O seu sorriso, belíssimo, deixou o jovem sem discernimento.

– Não, não danço – disse, docemente. As suas palavras soaram cristalinas, musicais.

Sem saber porque o fazia – geralmente adoptava a atitude correcta por instinto –, ele sentou-se ao lado dela, inclinando-se com reverência.

– Mas não quero que fique sem dançar – protestou ela.

– Não, não me apetece dançar esta... não é das que eu mais gosto.

– O que não o impediu de me vir buscar.

Morel deu uma sonora gargalhada.

– Nem tinha pensado nisso. Vejo que não perde tempo a cortar-me o topete.

Foi a vez de ela dar uma risadinha breve.

– Olhando para si, ninguém há-de dizer – disse ela.

– Sou como o galarote: quando arrebito o topete, não há nada a fazer – rematou ele, com forte gargalhada. – Não quer beber nada? – perguntou a seguir.

– Não, obrigada... não tenho sede.

Ele hesitou, percebeu que ela era completamente abstémia, e sentiu o peso da recusa.

Enveredou então por uma série de perguntas delicadas, sobre questões interessantes, a que ela respondeu com brilho. Ele parecia-lhe fascinante.

– E pensar que você é mineiro! – exclamou ela, surpreendida.

– É verdade. Desde os dez anos.

Ela olhou-o com enlevada tristeza.

– Desde os dez anos!... E não era duro de mais?

– Depressa nos habituamos. Vivemos como ratos, e vimos cá acima à noite para ver como vão as coisas.

– Fico cega só de pensar – disse ela, fazendo uma careta.

– Como as toupeiras! – disse ele com uma risada. – É isso mesmo, e há tipos que andam às voltas como as toupeiras. – Depois, espetou a cara, como as toupeiras fazem ao focinho para farejarem o caminho, semicerrando os olhos para se orientarem. – Custa, mas conseguem! – disse ele, ingenuamente. – Vossemecê nunca há-de ter visto os buracos por onde elas entram. Qualquer dia, tem de me deixar mostrar-lhe um, e então já fica a saber como é.

Ela olhou para ele estupefacta. A vida abria de súbito um caminho novo à sua frente. Ela sabia como era a vida dos mineiros, a trabalharem às centenas debaixo da terra, só à noite vindo à superfície. Havia nele muita nobreza. Arriscava a vida diariamente e fazia-o com alegria. O olhar dela era um apelo, em toda a sua pureza e humildade.

– Vossemecê gostava de ir ver, não gostava? – perguntou ele, ternamente. – Se calhar não; era capaz de se sujar.

Nunca ninguém a tinha tratado por vossemecê.

Casaram no Natal seguinte. Durante três meses ela foi perfeitamente feliz, e muito feliz por mais seis meses.

Ele tinha assinado o juramento e ostentava a fita azul dos abstémios: gostava de dar nas vistas. A casa onde moravam era dele, pensava ela. Era pequena, mas razoável, e estava bem mobilada, com peças sólidas e dignas, a condizer com a sua alma austera. Mrs. Morel dava-se pouco com as vizinhas, e a mãe e as irmãs do marido desdenhavam dos seus modos senhoris; mas vivia bem sem elas, desde que tivesse a companhia do marido.

Às vezes, quando se cansava das juras de amor e tentava abrir-lhe o coração e falar de assuntos sérios, percebia que ele a escutava com deferência, mas sem compreender. Esta atitude cerceava o seu esforço para aprofundarem o conhecimento íntimo um do outro, e chegava a sentir medo. Havia noites em que ele se mostrava visivelmente inquieto, ansioso para sair: era óbvio que a companhia dela não lhe chegava. Viu, por isso, com bons olhos ele começar a fazer pequenos biscates.

Morel era um homem extremamente habilidoso, capaz de fazer ou consertar fosse o que fosse. Mal ela dizia, por exemplo:

– Gosto tanto do esborralhador da tua mãe... é pequenino e tão jeitoso.

Logo ele respondia:

– Gostas, minha linda? Pois bem, se eu fiz aquele, também posso fazer um para ti.

– O quê... mas é de aço!

– E depois? Vais ter um igual ou muito parecido.

Não se importava com a porcaria que ele fazia, nem com o barulho das marteladas. Via-o entretido e feliz, era quanto lhe bastava.

Mas um dia, no sétimo mês de casada, estava ela a escovar-lhe o casaco domingueiro quando sentiu uns papéis no bolso interior. Num acesso de curiosidade, tirou-os do bolso para ver de que se tratava. Ele raramente usava a sobrecasaca do dia do casamento, e ela nunca sentira curiosidade pelos seus papéis. Ao lê-los, viu tratar-se das contas da mobília, ainda por pagar.

– Ouve lá – disse-lhe ela à noite, depois de ele se ter lavado e acabado de jantar. – Encontrei isto no teu fato de casamento. Então ainda não pagaste as contas?

– Não... ainda não tive tempo.

– Mas disseste que já estava tudo pago. O melhor é eu ir a Nottingham no sábado e pagar tudo. Não me agrada nada estar sentada numa cadeira que não é minha, nem comer numa mesa que ainda não está paga.

Ele não respondeu.

– Posso levar o teu livro de cheques, não posso?

– Podes, mas não te vai servir de nada.

– Mas eu julgava... – começou ela. Ele tinha-lhe dito que tinha algum dinheiro de lado. Percebeu, porém, que não adiantava fazer mais perguntas, e ficou sentada muito hirta, ofendida e indignada.

No dia seguinte foi falar com a mãe dele.

– Não foi a senhora que comprou a mobília para o Walter? – perguntou-lhe.

– Fui, sim. – respondeu a outra, sacudida.

– E quanto é que ele lhe deu?

A mulher mostrou-se indignada:

– Oitenta libras, se é isso que quer saber.

– Oitenta libras! Mas ainda falta pagar quarenta e duas!

– E que tenho eu com isso?

– Mas, então, para onde foi o dinheiro?

– Se procurar, há-de encontrar os recibos... acho eu... tirando dez libras que ele me devia, e seis libras que é quanto custa aqui um casamento.

– Seis libras! – repetiu Gertrude Morel, sem querer acreditar. Parecia-lhe uma aberração que, depois de o seu pai gastar tanto dinheiro com o casamento, os pais de Walter fossem capazes de tirar mais seis libras ao filho para a comida e bebida que tinham oferecido.

– E quanto é que ele enterrou nas casas dele? – perguntou Gertrude.

– As casas dele?... Que casas?

Gertrude Morel ficou sem pinga de sangue. O marido tinha-lhe dito que a casa onde vivia e a outra ao lado eram suas.

– Estava convencida de que a casa onde moramos... – começou ela.

– Essas casas são minhas, as duas – disse a sogra. – E não estão livres de encargos. Tenho de arranjar maneira de pagar as hipotecas.

Gertrude estava lívida e sem fala. Neste momento era a réplica do pai.

– Então nós devíamos pagar renda – disse friamente.

– O Walter paga-me renda – replicou a mãe.

– E quanto é? – quis saber Gertrude.

– Seis xelins e seis dinheiros por semana – retorquiu a mãe.

Era mais do que a casa valia. Gertrude continuou a olhar em frente de cabeça bem levantada.

– Sorte a sua – disse a mulher, em tom mordaz. – Ter um marido que lhe poupa as preocupações com o dinheiro, e a deixa fazer o que quer.

A jovem manteve-se em silêncio.

Ao chegar a casa, pouco contou ao marido, mas a sua atitude para com ele mudou. Algo na sua alma honrada e orgulhosa ficara cristalizado, duro como rocha.

Quando Outubro chegou, ela só pensava no Natal. Dois anos antes, pelo Natal, tinha-o conhecido. No Natal anterior tinha-se casado com ele. No próximo Natal ia dar-lhe um filho.

Graças à sua natureza afável, depressa travou conhecimento com as vizinhas, com quem passava bons bocados a conversar, e só tinha receio de que a diferença na maneira de falar as levasse a pensar, como a família dele, que ela se estava a dar ares. Deixavam-na sempre tomar a iniciativa de meter conversa, mas gostavam dela.

– A senhora não dança, pois não? – perguntou-lhe a vizinha do lado em Outubro, quando todos falavam na escola de dança que ia abrir por cima da estalagem Brick and Tile, em Bestwood.

– Não... nunca senti a menor inclinação – respondeu Mrs. Morel.

– Veja como são as coisas! E logo foi casar com o seu homem. Sabe que ele é um dançarino famoso?

– Não sabia que era famoso – disse Mrs. Morel a rir.

– Pois fique sabendo que é! Pois se ele até deu aquelas aulas de dança durante mais de cinco anos no Clube dos Mineiros.

– Ah, deu?

– Deu, pois. – A mulher assumiu um ar de desafio. – E a casa estava à cunha todas as terças, quintas e sábados... e muita coisa por lá se passava... pelo menos era o que se dizia...

Nada era mais penoso para Mrs. Morel do que este tipo de conversas com que se via assediada. Nos primeiros tempos, as mulheres não a poupavam, pois, mesmo sem querer, ela estava muito acima de todas elas.

Entretanto, o marido começou a chegar a casa muito tarde.

– Eles agora trabalham até mais tarde, não é? – perguntou ela à lavadeira.

– Não mais tarde qu’o costume, não me parece. Mas param na taberna da Ellen p’ra beberem uma caneca de cerveja e depois ficam à conversa, ora aí tem!... Depois comem o jantar frio... e é bem feita.

– Mas Mr. Morel não bebe.

A mulher deixou cair a roupa que tinha na mão, olhou para Mrs. Morel e continuou no seu trabalho sem dizer uma palavra.

Gertrude Morel passou muito mal quando o filho nasceu. Morel tratou-a bem, o melhor possível. Mas ela sentia-se muito sozinha, longe da família. Agora, sentia-se só na companhia dele, e ainda mais só quando ele estava presente.

O menino nasceu muito pequenino e débil, mas depressa recuperou. Era uma bela criança, de cabelo louro escuro todo aos caracóis e uns olhos azuis, muito escuros, que se foram tornando a pouco e pouco cinzento-claro. A mãe tinha por ele um amor desmedido. Chegara precisamente no momento em que o peso da desilusão lhe era mais difícil de suportar – quando a sua vida começava a ficar tremida e a sua alma desolada e solitária. Ela só tinha olhos para o filho, e o pai sentia ciúmes.

Com o tempo, Mrs. Morel acabou por sentir desprezo pelo marido. Entregou-se ao filho e afastou-se do pai. Ele passara a dar-lhe menos atenção e a novidade de viver em casa dele já passara. Não tinha cabeça, dizia ela amargamente para si própria. Só se preocupava com o presente. Não tinha força de vontade e os seus actos eram só fogo de vista.

Começou então uma batalha entre marido e mulher, uma batalha terrível e sangrenta que só terminou com a morte de um deles. Ela lutava para o fazer assumir as suas responsabilidades, cumprir as suas obrigações. Mas ele era muito diferente dela: a sua natureza era puramente sensual, e ela esforçava-se por torná-la moral, religiosa. Tentava a todo o custo fazê-lo enfrentar a realidade, mas ele, não conseguindo suportar a pressão, perdeu a cabeça por completo.

Quando o bebé era ainda pequenino, o temperamento do pai tornou-se de tal maneira irascível que chegava a ser perigoso. Bastava a criança fazer a mais pequena coisa, para ele começar logo a ralhar. Mais qualquer coisa, e logo as suas mãos rudes de mineiro agrediam o bebé. Nessa altura, Mrs. Morel ficava zangada com o marido dias a fio, e ele deixava-se ficar a beber até tarde pelas tabernas, e ela já não se importava. Porém, quando ele chegava a casa, zurzia-o com sarcasmo.

O fosso que se cavava entre eles levava-o, consciente ou inconscientemente, a ofendê-la com grosserias de que anteriormente não seria capaz. William tinha apenas um ano e começava a andar e a dizer gracinhas. Era uma criança encantadora, conservando ainda os seus caracóis louros de bebé, que começavam agora a escurecer. Gostava muito do pai, que se mostrava carinhoso, indulgente e cheio de paciência com ele e jeito para o entreter, quando estava de maré. Quando se punham os dois a brincar, Mrs. Morel chegava por vezes a pensar qual deles seria o mais infantil.

Morel levantava-se sempre muito cedo, entre as cinco e as seis horas da manhã, fosse ou não dia de trabalho. Aos domingos, levantava-se e fazia o pequeno-almoço. O fogo ficava aceso toda a noite, pois era ateado antes de se irem deitar. Isto é, punham na lareira um grande bocado de carvão, que ia ardendo lentamente até de manhã. Aos domingos de manhã, o menino levantava-se com o pai, e a mãe ficava na cama mais uma hora. Esses eram para ela os momentos mais tranquilos: quando pai e filho brincavam e tagarelavam no andar de baixo.

William tinha só um aninho, e a mãe tinha muito orgulho nele – que bonito que ele era. Ela não tinha grandes possibilidades, mas as irmãs traziam o menino bem vestido. Ao vê-lo com o chapelinho branco de aba revirada enfeitado com uma pena de avestruz, casaquinho branco, e a cabeça emoldurada de fartos caracóis, sentia-se a mãe mais orgulhosa do mundo. Um domingo de manhã, Mrs. Morel deixou-se ficar a ouvir os dois a tagarelar, e acabou por adormecer. Quando desceu, brilhava uma grande fogueira na lareira, a sala estava aquecida, o pequeno-almoço atabalhoadamente colocado em cima da mesa, e Morel sentado no seu cadeirão, encostado à chaminé, com ar tímido. De pé, entre as suas pernas, estava o filho – com a cabeça muito redonda e bizarra, tosquiada que nem uma ovelha – a olhar para ela, espantado; e, numa folha de jornal aberta sobre o tapete, uma miríade de caracóis em forma de meia-lua, luzindo à luz rubra da fogueira como pétalas de malmequer.

Mrs. Morel estacou. Era o seu primeiro filho. Ficou lívida, muda com o choque.

– Então, que tal? – disse Morel, rindo contrafeito.

Ela cerrou os punhos, ergueu-os e avançou para ele. Morel encolheu-se.

– Estou capaz de te matar! Isso é que eu estou! – disse, sufocada de raiva, brandindo os punhos.

– Num queres qu’ele fique uma menina, poi não? – disse Morel, com o medo na voz, baixando a cabeça para não olhar para ela. A vontade de rir desaparecera como por encanto.

A mãe contemplou a cabeça do filho, rapada, coberta de mechas escortanhadas. Pousou-lhe as mãos no cabelo e acariciou-lhe a cabeça.

– Oh... meu menino! – balbuciou. Os lábios tremiam-lhe, o rosto contraiu-se-lhe, e, pegando na criança, agarrou-se a ela a chorar sentidamente. Ela era uma dessas mulheres que não conseguem chorar: a quem chorar dói tanto como dói aos homens. Era como se cada soluço lhe arrancasse um pedaço de si mesma. Morel continuava sentado com os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos entrelaçadas e tão crispadas que os nós dos dedos estavam brancos. Tinha o olhar pregado no fogo, atordoado, mal conseguindo respirar.

A cena finalmente terminou, ela acalmou a criança e levantou a mesa do pequeno-almoço; mas deixou ficar o jornal pejado de caracóis aberto sobre o tapete. Até que o marido se resolveu a apanhá-lo e a deitá-lo para a lareira. Ela entregou-se às suas ocupações de boca fechada e sem fazer barulho. Morel, de orelha murcha, arrastou-se pela casa o dia todo, com um ar muito infeliz, e nesse dia as refeições foram para ele um suplício. Ela falava com ele delicadamente, sem aludir ao sucedido, mas ele sentia que algo chegara ao fim.

Mrs. Morel disse mais tarde que tinha sido um disparate reagir como reagira, pois o cabelo do menino teria de ser cortado mais tarde ou mais cedo, e acabou mesmo por reconhecer que até tinha sido bom ele fazer de barbeiro naquele dia. Porém, ela sabia, tal como Morel, que aquele acto lhe tinha provocado na alma uma transformação radical. A cena perdurou na sua memória para sempre, como o momento mais penoso de toda a sua vida.

Este exemplo de flagrante boçalidade masculina foi a lança que matou o seu amor por Morel. Anteriormente, embora lutasse amargamente contra ele, logo corria atrás dele preocupada, como se tivesse medo de que ele lhe fugisse. Mas agora deixara de recear pelo seu amor: olhava-o como um estranho e a vida parecia-lhe muito mais suportável.

Não obstante, as zangas continuavam. Os seus elevados padrões morais continuavam intactos, herdados de gerações e gerações de Puritanos. Sentia-os agora como um instinto religioso, e comportava-se com ele de um modo quase fanático, porque o amava, ou, pelo menos, o tinha amado. Se ele pecava, ela torturava-o. Se ele bebia e mentia, umas vezes chamava-lhe poltrão, outras valdevinos, mas as chicotadas sucediam-se, impiedosas.

O mal era ela ser demasiado o seu oposto. Não se contentava com o pouco que ele tinha para lhe dar, exigia que ele fosse tudo aquilo que deveria ser. E, assim, ao tentar torná-lo mais nobre do que era possível, destruiu-o. Feriu-se, magoou-se, cobriu-se de cicatrizes, mas sem perder nada da sua dignidade. Além disso, tinha também as crianças.

Ele bebia demasiado, se bem que não mais do que muitos mineiros, e só bebia cerveja, pelo que a sua saúde, embora afectada, nunca o foi com gravidade. Os fins-de-semana eram os seus dias de maiores desmandos. Ia todas as sextas, sábados e domingos para o Clube dos Mineiros, e por lá ficava até à hora de fechar. Às segundas e terças só muito a custo se levantava para sair de casa por volta das dez horas. Às vezes ficava em casa às quartas e quintas à noite, ou saía só por uma hora. E, geralmente, nunca deixava de ir trabalhar por causa da bebedeira.

Mas, embora fosse um operário cumpridor, o salário baixava cada vez mais. Era um fala-barato, um língua de trapos; detestava qualquer forma de autoridade e passava a vida a desrespeitar os capatazes. Era ouvi-lo dizer na taberna do Palmerston:

– O gajo veio à nossa galeria esta manhã e disse: «Sabes, Walter, ist’assim num tá bem. Quando é qu’arranjas estas vigas?» E vou eu e digo: «De qu’é que tás a falar? Qu’é qu’as vigas têm?» «Num tão bem, isto aqui tá mal», diz ele. «Um destes dias, o tecto ’inda vem por aí abaixo.» E vou eu e digo: «Atão o melhor é pores-te em cima duma rocha e segurares o tecto coa cabeça». Ele então perdeu a cabeça e pôs-se a berrar e a praguejar, e os outros gajos todos a rir. – Morel era um bom imitador. Arremedava a voz encorpada e roufenha do capataz, a dar-se ares de bem falante.

– «Num admito faltas de respeito, Walter. Quem sabe mais, tu ou eu?» E vou eu e digo: «Nunca tive oportunidade de ver o qu’é que tu sabes, Alfred. Mas vê lá, não te saia o tiro pela culatra».

E Morel continuava a contar histórias, para gáudio dos companheiros de farra. Algumas eram verdadeiras. O capataz não era um homem culto. Ele e Morel conheciam-se desde miúdos, pelo que, embora não gostassem um do outro, ambos sabiam mais ou menos com o que podiam contar e aceitavam-se mutuamente. Porém, Alfred Charlesworth não perdoava ao seu tarefeiro estas graçolas de taberna. Por conseguinte, e embora Morel fosse um mineiro competente, tendo chegado até a ganhar cinco libras por semana na altura em que casou, começou a apanhar galerias cada vez piores, onde o carvão era fino e difícil de extrair, logo, de baixo rendimento.

Um tarefeiro era um subempreiteiro. A dois ou três tarefeiros era dada uma certa extensão de um filão, que eles tinham de explorar até determinado comprimento, recebendo cerca de três quartas partes por cada tonelada de carvão que extraírem. Daí, tinham de tirar dinheiro para pagar aos trabalhadores, os mineiros propriamente ditos e os carregadores, que eram contratados ao dia, e ainda comprar as ferramentas, o pó, e tudo o que fosse necessário. Se a galeria fosse das boas, e a mina trabalhasse em contínuo, podiam chegar às cem ou duzentas toneladas de carvão e ganhar um bom dinheiro. Se a galeria fosse das más, podiam trabalhar o mesmo, mas ganhar muito pouco. E, em trinta anos, Morel nunca tinha apanhado uma boa galeria. Mas, a fazer fé na mulher, a culpa era toda dele.

Por outro lado, no Verão há pouco trabalho nas minas. Nas manhãs soalheiras, é frequente ver os homens voltarem para casa em grupos por volta das onze ou do meio-dia. Não se vêem os vagões vazios junto às minas. Na encosta, as mulheres olham para o vale enquanto batem os tapetes contra a cerca, e põem-se a contar os vagões que a locomotiva leva pelo vale fora até às minas.

– Sete – dizem umas para as outras – vão pra Minton ou pra Spinney Park. Num dá pra manter uma mina.

E as crianças, quando voltam da escola à hora de almoço, olham para os campos e, ao verem as roldanas paradas nas torres, dizem:

– Minton já parou. O pai vai voltar pra casa.

E há em toda a gente, homens, mulheres e crianças, uma espécie de tristeza que os ensombra, porque o dinheiro vai ser pouco no fim da semana.

Morel devia dar à mulher trinta xelins por semana para as despesas da casa – renda, comida, vestuário, cotas das associações, seguro, médico. Às vezes, quando a semana era farta, dava-lhe trinta e cinco; mas essas ocasiões não chegavam para compensar as vezes em que só lhe dava vinte e cinco. No Inverno, com uma galeria razoável, Morel podia fazer cinquenta ou cinquenta e cinco xelins por semana. Com isso já se dava por contente. Às sextas à noite, sábados e domingos, gastava principescamente, esbanjando até ao último tostão, ou quase. E, de tanto dinheiro, raramente guardava algum para dar aos filhos, ou para lhes comprar duas libras de maçãs. Gastava tudo na bebida. Nos tempos difíceis, a situação tornava-se preocupante, mas ele também não se embebedava tantas vezes, e Mrs. Morel costumava dizer:

– Acho que prefiro quando andamos sem dinheiro, porque quando ele ganha muito não há um minuto de sossego nesta casa.

Se ele ganhasse quarenta xelins, guardava dez; de trinta e cinco, guardava cinco; de trinta e dois, guardava quatro; de vinte e oito, guardava três; de vinte e quatro, guardava dois; de vinte, guardava um xelim e seis dinheiros; de dezoito, guardava um; de dezasseis, guardava seis dinheiros. Não poupava um tostão, nem dava à mulher a oportunidade de poupar. Pelo contrário, era ela muitas vezes que tinha de pagar as dívidas que contraía; não as da taberna, que essas nunca eram cobradas às mulheres, mas quando, por exemplo, comprou um canário, ou uma bengala da moda.

Por alturas da feira anual, o trabalho estava a correr mal e Mrs. Morel esforçava-se por poupar para as despesas do parto. Sentia-se, por isso, indignada quando pensava que o marido andava lá por fora a gastar dinheiro e a divertir-se, enquanto ela ficava em casa, mortificada. Havia dois dias feriados. Na terça de manhã, Morel levantou-se cedo, muito bem-disposto. Mal o dia rompeu, ainda antes das seis horas, ouviu-o descer a escada a assobiar. Assobiava muito bem, com alegria e musicalidade – quase sempre hinos religiosos. Ele tinha sido menino de coro, com uma linda voz, e solista na catedral de Southwell. Bastava ouvi-lo assobiar para se perceber.

A mulher ficou a ouvi-lo traquinar no jardim, enquanto serrava e martelava, sempre a assobiar. Sentia-se protegida e tranquila quando ficava assim a ouvi-lo de manhã cedo, ela na cama e as crianças ainda a dormir, e ele enchendo a manhã ensolarada, feliz, à sua maneira masculina.

Às nove horas, enquanto as crianças, descalças, brincavam em cima do sofá e a mãe lavava a loiça, ele parou de carpinteirar e voltou para casa, de mangas arregaçadas e colete todo aberto. Ainda era um belo homem, com os seus cabelos pretos ondulados e um farto bigode preto. As faces estavam talvez coradas em demasia e havia nele um certo ar enfadado. Mas desta vez estava bem-disposto e foi direito à copa, onde a mulher estava a lavar.

– O quê, tás aí? – disse ele, fanfarrão. – Gira mas é daí pra fora qu’eu quero lavar-me.

– Já agora podes esperar que eu acabe – respondeu ela.

– Ah, posso? E s’eu num quiser?

Esta ameaça brincalhona animou Mrs. Morel.

– Tens bom remédio: vais lavar-te na selha.

– Ah! Ah! Estás hoje muito sirigaita.

E, dizendo isto, ficou parado a olhá-la por uns segundos, afastando-se em seguida, à espera de que ela terminasse.

Quando queria, ainda sabia pôr-se todo galante. Caprichava geralmente no lenço que punha ao pescoço. Desta vez, porém, aperaltou-se todo. Foi tanto o entusiasmo com que se lavou com grande estardalhaço, tal a alacridade com que correu para o espelho da cozinha e, curvando-se, porque o espelho era muito baixo, penteou o cabelo molhado, abrindo um irrepreensível risco ao lado, que Mrs. Morel acabou por se irritar. Escolheu para a camisa um colarinho virado para baixo, pôs a gravata preta e vestiu o fato domingueiro. Estava todo janota e o que o fato não conseguia dar-lhe, dava-lhe o instinto que tinha para tirar partido da sua boa figura.

Às nove e meia, Jerry Purdy veio chamar o amigo. Jerry era o melhor amigo de Morel, mas Mrs. Morel não gostava dele. Era um homem alto e magro, com uma daquelas caras afiladas que parecem não ter pestanas. Caminhava muito hirto, com rígida dignidade, como se tivesse engolido um pau de vassoura, e tinha uma personalidade fria e astuta. Generoso, quando e com quem queria, parecia gostar muito de Morel, a quem mais ou menos servia de mentor.

Mrs. Morel detestava-o. Tinha conhecido a mulher dele, que morrera tuberculosa e fora acometida, perto do fim, de um ódio tão violento pelo marido, que mal ele entrava no quarto, tinha logo uma hemorragia. Nada disto, no entanto, parecia ter abalado Jerry. Agora, era a filha mais velha, uma rapariga de quinze anos, quem tratava da casa pobre onde moravam e cuidava dos irmãos mais novos.

– É um pau de virar tripas, ruim e unhas de fome! – disse Mrs. Morel.

– Nunca em toda a minha vida dei por que o Jerry fosse ruim – protestou Morel. – Cá pra mim, num s’encontra em lado nenhum tipo mais mãos-largas e mais liberal do qu’ele.

– Mãos-largas para ti – retorquiu Mrs. Morel. – Porque para os filhos dele, coitadinhos, a mão está sempre fechada.

– Coitadinhos, uma ova!... Coitadinhos porquê? Sempre gostava de saber.

Mas Mrs. Morel não alargou os comentários sobre Jerry.

O pomo da discórdia chegou e, esticando o pescoço escanzelado, espreitou por cima das meias cortinas da janela da cozinha, dando de caras com Mrs. Morel.

– Bom dia, minha senhora!... O seu marido está?

– Está sim.

Jerry entrou sem ser convidado e ficou parado à porta da cozinha. Não o mandaram sentar, mas ele ficou de pé, fazendo jus aos direitos dos homens e dos maridos.

– Está um belo dia! – disse, virando-se para Mrs. Morel.

– É verdade.

– Esta manhã está-se muito bem lá fora... uma rica manhã para passear.

– O senhor vai então dar um passeio? – perguntou ela.

– É verdade. Fazemos tenção d’ir a Nottingham – respondeu ele.

– Hum!

Os dois homens cumprimentaram-se alegremente; Jerry muito senhor de si e Morel menos afoito, com medo de se mostrar alegre de mais diante da mulher. Mas apertou rapidamente os atacadores das botas, com vigor. Esperava-os um passeio de dez milhas pelos campos, até Nottingham. Tendo subido a encosta a partir das Bottoms, arrostaram alegremente com a passeata matinal. Quando chegaram à taberna Moon and Stars, pararam para beberem o primeiro copo e, depois, pés ao caminho até à taberna Old Spot. Seguiam-se umas penosas cinco milhas de secura, até à Bulwell, onde os esperava uma gloriosa caneca de cerveja amarga. Mas encontraram pelo caminho um grupo de ceifeiros com o garrafão ainda cheio, e quando avistaram a cidade, Morel já ia quase a dormir. A cidade estendia-se pela encosta acima à sua frente, fumegante e difusa na claridade ofuscante do meio-dia, ostentando para sul a crista recortada de pináculos, torres de fábricas e chaminés. Ao atravessarem a última seara antes da cidade, Morel deitou-se à sombra de um carvalho e dormiu a sono solto durante mais de uma hora. Quando se levantou para seguir viagem, sentia-se esquisito.

Almoçaram em Meadows, em casa da irmã de Jerry, e depois partiram em direcção à taberna Punch Bowl, onde se associaram ao entusiasmo que rodeava uma largada de pombos. Morel nunca tinha jogado cartas, achando até que possuíam um certo poder oculto, maléfico; «retratos do diabo», era como ele lhes chamava. Era porém mestre no boliche e no dominó. Aceitou, por isso, o desafio de um homem de Newark para uma partida de boliche. Todos os homens postados ao longo do velho balcão comprido e carcomido fizeram a sua escolha, apostando num ou no outro. Morel despiu o casaco. Jerry segurava o chapéu com o dinheiro das apostas. Os homens sentados às mesas observavam. Alguns levantaram-se e chegaram-se para a frente, de caneca na mão. Morel acariciou a enorme bola de madeira e lançou-a. Derrubou os nove pinos e ganhou meia-coroa, o que o deixou de novo equilibrado.

Às sete da tarde deram-se os dois por satisfeitos e apanharam o comboio das sete e meia, de volta a casa.

Mrs. Morel passou o dia deprimida e descorçoada. Lavou a roupa que pôde, mas não conseguiu fazer mais nada. Foi William quem arrumou a casa.

– Queres que eu faça mais alguma coisa, mãe? – perguntou.

– Não, não há nada que possas fazer... excepto levares a Annie a dar uma voltinha.

– Isso não me apetece.

– Apeteça ou não, tens de ir.

E o garoto lá foi, carregado com a irmã, enquanto a mãe ficava a trabalhar. Estava furioso com ela, por lhe ter empurrado aquele fardo para cima, mas ao mesmo tempo tinha pena da mãe, porque sabia que alguma coisa se passava. E, assim, com a infância dominada pelo amor que tinha à mãe, tentava fazer o melhor que podia.

À tarde não se podia andar nas Bottoms. Toda a gente tinha vindo para a rua. As mulheres, às duas e três, sem chapéu e de avental branco, davam à língua no beco que se abria entre os quarteirões. Os homens, fazendo uma pausa entre duas canecas de cerveja, sentavam-se nos calcanhares, a conversar. O lugar cheirava mal, e os telhados de ardósia luziam no ar morno e seco.

Mrs. Morel levou a filha até ao ribeiro, no meio do prado, a não mais de duzentos metros. A água corria leve sobre pedras e bocados de panelas. Mãe e filha foram para a velha ponte dos rebanhos e debruçaram-se a olhar para a água. Do outro lado do prado, na poça onde mergulhavam as ovelhas, Mrs. Morel avistou as silhuetas nuas de alguns rapazes a saltarem à volta da poça funda e amarelada, ou uma figura cintilante recortar-se de fugida sobre o prado estático e sombrio. Sabia que William estava na poça, e morria de medo que ele se afogasse. Annie estava a brincar à sombra da velha sebe do caminho da encosta, entretida a apanhar bagas de amieiro a que chamava groselhas. A menina necessitava de muita atenção, e as moscas não a deixavam sossegada.

As crianças foram para a cama às sete horas, e ela ainda foi arrumar mais umas coisas.

Quando Walter Morel e Jerry chegaram a Bestwood, sentiram um alívio: livres da viagem de comboio, podiam acabar o dia em beleza. Entraram na taberna do Nelson com a alegria dos viajantes que regressam. Mrs. Morel dizia sempre que o marido não tinha nada a esperar do outro mundo, pois subia do mundo impuro ao purgatório quando voltava da mina, e ascendia directamente ao céu quando entrava na taberna do Palmerston.

Com o arrefecimento nocturno, os jardinzinhos das Bottoms tornavam-se mais perfumados. Mrs. Morel saiu para ver as flores e respirar o ar do entardecer. Mrs. Kirk, a vizinha, não estava em casa, o que era uma pena, pois podiam ter ficado um bocado a conversar. Estava por isso sozinha. As andorinhas negras, a que as crianças chamavam «diabinhos», riscavam o ar para trás e para a frente, como setas, por cima da sua cabeça, voltando para trás na extremidade da casa, metendo-se por baixo dos largos beirais e logo voltando a sair, mergulhando em voo picado entre pios e chilreios que pareciam vir da própria luz e não de ternos passarinhos. Alguém tinha pisado o canteiro dos malmequeres, que estava coberto de brancas pétalas de rosa. Ela baixou-se e limpou-o, endireitando as pequeninas corolas amarelas.

O dia seguinte era dia de trabalho, e os homens ficavam esmorecidos só de pensarem em tal. Alguns já se arrastavam para casa, a pensarem no sono reparador que os ia preparar para a manhã seguinte. Mrs. Morel voltou para dentro ao ouvir os seus cantares dolentes. Deram as nove horas, depois as dez, e o «par» sem aparecer. Algures, na soleira de uma porta, um homem cantava a plenos pulmões, arrastando a voz: «Guia-me, Luz Bendita.» Mrs. Morel indignava-se sempre que ouvia bêbados cantarem este hino quando a pinga lhes dava para a tristeza.

– Como se «Oh, Genoveva» não lhes chegasse... – disse ela. A cozinha estava impregnada de um cheiro a ervas cozidas e a lúpulo. No borralho, fervilhava lentamente uma grande caçarola preta. Mrs. Morel pegou num enorme alguidar de barro vermelho, deitou-lhe no fundo um monte de açúcar branco e, depois, endireitando-se para contrabalançar o peso do seu ventre, começou a despejar a cerveja.

Nesse momento Morel, chegou. Tinha estado muito bem-disposto no Nelson, mas o regresso a casa pusera-o de mau humor – resquícios do mal-estar e da irritação que sentira por ter dormido no chão à hora do calor; além disso, a consciência pesava-lhe à medida que se aproximava de casa. Não se dava conta de estar mal-humorado, mas quando o portão do jardim resistiu à primeira tentativa de o abrir, deu-lhe um pontapé que logo rebentou com o ferrolho. Entrou em casa no preciso momento em que Mrs. Morel estava a vasar a infusão de ervas da caçarola. Cambaleando ligeiramente, deu um encontrão na mesa. O líquido a ferver saltou. Mrs. Morel deu um pulo para trás.

– Meu Deus! – exclamou ela. – Chegares a casa nesse estado de embriaguez!

– Chegar a casa neste estado de quê...? – rosnou ele, de chapéu descaído sobre os olhos.

Num repente, Mrs. Morel ficou a ferver.

– Vá, diz lá que não estás bêbado! – ripostou.

Tinha pousado a caçarola e estava a mexer a cerveja para dissolver o açúcar. Ele apoiou as manápulas com força sobre a mesa e avançou ameaçadoramente para ela.

– «Vá, diz lá que não estás bêbado» – repetiu ele. – Só uma cabra estuporada como tu era capaz de pensar uma coisa dessas.

– Como passaste o dia inteiro a beber, se não estás bêbado às onze da noite... – retorquiu ela, continuando a mexer.

– Num passei o dia a beber... Num passei o dia a beber... aí é que tu t’inganas – disse ele, fora de si.

– Então, parece que me enganei – volveu ela.

– Ah, parece... Ah, parece... Não me digas...

– Sai de casa às nove da manhã, volta à meia-noite. E, além disso, ambos sabemos bem o que tu fazes quando sais com o teu querido amigo Jerry.

– O teu querido amigo Jerry... o quê?... Que história é essa?... Hem?

E avançou para ela, de queixo espetado.

– Para a bebida há sempre dinheiro, mesmo que não chegue para mais nada – disse ela.

– Hoje num gastei nem dois xelins – contrapôs ele.

– Não há-de ser de graça que te embebedas – ripostou ela. – E mais – gritou, tomada de súbita fúria –, se andaste a cravar o teu querido amigo Jerry, é melhor deixá-lo cuidar dos filhos que tem em casa, que bem precisam.

– «É melhor deixá-lo cuidar dos filhos»... Essa agora... Ond’é que vês crianças mais bem tratadas qu’as dele, sempre gostava de saber.

– As minhas, por exemplo... não as tuas, se fosses tu a tratar delas... Um homem capaz de se embebedar de manhã à noite.

– Isso é mentira, isso é mentira – gritou ele, num acesso de raiva, batendo com a mesa.

– ... Que não garante o sustento dos filhos – continuou ela.

– E que tens tu cum isso? – berrou ele.

– Que tenho eu com isso?... Ora essa, tenho e muito... Um homem que me dá uns míseros vinte e cinco xelins por semana para manter a casa... e que se põe ao fresco todo o dia... e só volta à meia-noite...

– Isso é mentira, mulher, isso é mentira!

– ... E que julga que eu vou continuar a poupar e a arranjar maneira de sobreviver, enquanto ele se embebeda e se enfrasca, de passeio até Nottingham...

– Isso é mentira, isso é mentira... cala essa boca, mulher.

A batalha atingira o auge. Cada um deles esquecia tudo o mais, menos o ódio que sentia pelo outro e a luta em que se empenhava. Ela estava tão desvairada e furiosa quanto ele. E a discussão continuou até ele lhe chamar mentirosa.

– Não – gritou ela, tomando o fôlego a custo, mal podendo respirar. – Não admito que me chames isso... tu, o mais desprezível mentiroso que este mundo já viu. – As últimas palavras saíram já arrancadas a um peito sem ar.

– És mentirosa, sim senhora! – gritou ele, desabrido, dando um murro na mesa. – Mentirosa, mentirosa!

Ela empertigou-se, de punhos cerrados.

– Se eu pudesse dava cabo de ti, meu grande bruto, meu cobarde – disse ela, com voz cava, soluçante.

E, na vaga de fúria seguinte, verteu todo o ódio exacerbado que sentia pelo marido. Ele, ripostando, bateu com a mesa no chão, fazendo-a ressoar por toda a casa, enquanto ela, por sua vez, despejava sobre ele todo o seu desprezo e o seu ódio.

– Tu conspurcas esta casa – gritou ela.

– Nesse caso vai-te embora... A casa é minha. Vai-te embora – berrou ele. – Sou eu que trago o dinheiro aqui pra casa, não és tu. A casa é minha, não é tua. Vá, desaparece... Vai-te embora!

– E ia mesmo – gritou ela, lavada em lágrimas, impotente. – Ah, isso é que eu ia, já tinha ido há muito tempo, se não fosse pelas crianças. Quantas vezes já me arrependi de não ter ido há muitos anos, quando só o tinha a ele... – disse, já sem lágrimas para verter, mas com raiva redobrada. – Julgas que foi por ti que fiquei? Julgas que se fosse por ti, hesitava por um minuto?

– Então vai-te! – berrou ele. – Vai-te!

– Não! – disse ela, encarando-o. – Não – disse ela aos gritos. – Não vai ser tudo como tu queres... Não penses que fazes tudo aquilo que queres. Tenho de pensar nas crianças. Meu Deus... – e deu uma gargalhada. – Ia ser bonito se as deixasse ficar contigo.

– Vai-te – gritou ele, sufocado, erguendo o punho. Estava com medo dela. – Vai-te!

– Quem me dera... Como eu ficava contente, como eu ria, meu Deus, se pudesse livrar-me de ti – ripostou ela.

Ele avançou afogueado, com os olhos raiados de sangue, atirou-se a ela e agarrou-lhe os braços. Ela gritou, cheia de medo, lutando para se soltar. Ele, ofegante, caindo um pouco em si, deu-lhe um encontrão, atirando-a contra a porta, e, empurrando-a lá para fora, fechou a porta de seguida com um estrondo. Depois, voltou para a cozinha, atirou-se para cima do cadeirão, enterrou a cabeça entre os joelhos, a estalar de emoção, e deixou-se afundar lentamente no torpor, cedendo à exaustão e à embriaguez.

A lua erguia-se alta e magnífica naquela noite de Agosto. Mrs. Morel, ardendo em fúria, tremia ao ver-se ali fora, sob o luar todo branco que a iluminava e lhe macerava a alma incendiada. Desalentada, ficou por breves instantes a olhar para as grandes folhas cintilantes do ruibarbo, junto à porta. Depois, respirou fundo e desceu o carreiro do jardim, toda a tremer, enquanto a criança se agitava dentro dela. Não conseguia controlar os pensamentos, e assim permaneceu por largo tempo; mecanicamente, recapitulava a última cena uma e outra vez, surgindo certas frases, certos momentos, como ferro em brasa a queimar-lhe a alma: e, de cada vez que repisava esta última hora da sua vida, cada vez o ferro em brasa a torturava, sempre nos mesmos pontos, até a ferida se acender e a dor se apagar e ela, finalmente, voltar a si. Deve ter passado uma boa meia hora neste delírio. Mas logo a noite lhe impôs a sua presença. Receosa, olhou em redor. Tinha ido até ao jardim lateral, passeando-se para cima e para baixo ao longo do muro, rente às groselheiras. O jardim era uma estreita faixa de terra, separado da estrada que cortava transversalmente entre os blocos por uma densa sebe de espinheiros.

Passou rapidamente do jardim de topo para o da frente, onde se sentiu como num golfo imenso de luz branca, com a lua a brilhar do alto, mesmo à sua frente, e o luar a elevar-se das colinas fronteiras, inundando o vale onde as Bottoms se erguiam atarracadas, quase cegando de tanto brilho. Aí, entre soluços e lágrimas, numa reacção de anticlímax, murmurava ininterruptamente:

– Monstro!... Monstro!

Nisto, sentiu qualquer coisa perto dela. Fez um esforço para se controlar e tentar perceber o que tanto lhe perturbava os sentidos. Os lírios brancos, altaneiros, estremeciam ao luar e o seu perfume pesava no ar como uma presença. Mrs. Morel deixou escapar um suspiro de medo, sufocado. Tocou nas pétalas das flores pálidas e enormes, e um arrepio sacudiu-a. Parecia que se abriam ao luar. Meteu a mão na corola branca: o ouro mal se via na ponta dos seus dedos, iluminados pelo luar. Curvou-se para contemplar a corola carregada de pólen dourado, mas só viu uma sombra indistinta. Aspirou o perfume até à alma, quase até entontecer.

Olhou em redor. A sebe cintilava debilmente na escuridão. Dela saíam flores brancas. Em frente, a colina desenhava-se difusa, apertada entre sebes altas e sombrias e irrequieta com os movimentos do gado à luz da lua. Aqui e além, o luar parecia tremer e ondear.

Mrs. Morel encostou-se ao portão do jardim, a olhar lá para fora, esquecida de tudo. Não sabia em que pensava. Tirando uma leve náusea e a consciência da criança que carregava no ventre, todo o seu ser se diluía como perfume no ar pálido e brilhante. Por fim, a criança diluiu-se também com ela no cadinho do luar e, irmanada com as colinas, os lírios e as casas, flutuaram todos em conjunto, como num êxtase.

Quando voltou a si, estava cansada, sonolenta. Languidamente, olhou em volta; os tufos de violetas brancas lembravam arbustos salpicados de roupa a secar; uma borboleta ricocheteou neles e cruzou o jardim. Seguir-lhe os movimentos fê-la despertar. Aspirou o aroma acre das violetas e o ânimo ressurgiu. Subiu o carreiro, parando hesitante junto à roseira branca. O seu perfume era doce, era singelo. Tocou as corolas brancas das rosas, abertas em folhos. O aroma fresco e as folhas frias e aveludadas lembraram-lhe a frescura da manhã ensolarada, de que ela tanto gostava. Mas agora estava cansada e precisava de dormir. Ali fora, no mistério da noite, sentia-se perdida.

Não se ouvia o mais pequeno ruído. Era evidente que as crianças não tinham acordado, ou então já tinham voltado a adormecer. Um comboio apitou no vale, a umas três milhas de distância. A noite era imensa e estranha, estendendo-se até ao infinito na sua vastidão de cinza. E da névoa prateada da penumbra chegavam-lhe aos ouvidos sons roucos e indistintos: um codornizão, ali bem perto; o suspiro rouco de um comboio; homens a gritar ao longe.

O coração amansado voltou a bater rapidamente e ela desceu à pressa o jardim lateral, em direcção às traseiras da casa. Levantou a lingueta suavemente: a porta continuava trancada, barrada à sua passagem. Bateu ao de leve, esperou e bateu de novo. Não queria acordar as crianças nem os vizinhos. Ele devia ter adormecido e não acordava com facilidade. O coração ardia-lhe com vontade de se ver dentro de casa. Agarrou-se ao puxador. Agora já estava frio e podia apanhar um resfriado; e logo agora, no seu estado!

Pôs o avental por cima dos ombros e da cabeça e correu de novo até ao jardim lateral, até à janela da cozinha. Encostando-se ao peitoril, conseguiu vislumbrar por baixo da persiana os braços do marido deitados sobre a mesa, e a cabeça negra apoiada no tampo. Estava a dormir com a cara em cima da mesa. Algo na sua atitude a fazia sentir-se cansada da existência. A candeia ardia, fumarenta – via-se pelo tom acobreado da luz que deitava. Tamborilou os dedos na janela, cada vez com mais força. Parecia que queria partir a vidraça. E ele sem acordar.

Todos os seus esforços eram vãos. Começou a tremer, em parte do contacto com a pedra, em parte de exaustão. Receando pela criança que estava para nascer, pensava no que poderia fazer para se aquecer. Foi até à carvoeira, onde estava um velho tapete da chaminé, que ela para ali tinha trazido na véspera para o trapeiro levar. Colocou-o sobre os ombros. Apesar de muito sujo, sempre a aquecia. Começou depois a subir e a descer o carreiro do jardim, espreitando de vez em quando por baixo da persiana, batendo na janela e dizendo para consigo que a posição forçada em que ele se encontrava acabaria por fazê-lo acordar.

Por fim, passada quase uma hora, bateu devagar, mas persistentemente, na janela. O som, gradualmente, penetrou-o. Quando, desesperada, já tinha parado de bater, viu-o mexer-se e, a seguir, levantar a cabeça, estremunhado. O bater do coração acordava-o dolorosamente para a realidade. Ela batia imperativa na janela. Ele acordou sobressaltado, e ela viu cerrarem-se-lhe os punhos e os olhos faiscarem, sem um pingo de medo. Vinte ladrões que ali estivessem, ele ter-se-ia atirado a eles sem pestanejar. Olhava em volta, estonteado, mas pronto para a luta.

– Abre a porta, Walter – disse ela, friamente.

As mãos dele relaxaram e então lembrou-se do que tinha feito. A cabeça tombou-lhe, contrita, arrependida. Ela viu-o correr para a porta, abrir o ferrolho. Experimentou levantar a lingueta. A porta abriu-se: diante dele estendia-se a noite prateada que ele temia enfrentar depois da luz amarela da candeia. À pressa, voltou para dentro.

Quando Mrs. Morel entrou, viu-o correr para a porta interior, em direcção às escadas. Com a pressa de se escapar dali para fora antes de ela entrar, até tinha arrancado o colarinho, que jazia no chão, com as casas rasgadas. Isto sim, irritou-a. Aqueceu-se e acalmou-se. Esquecida de tudo pelo cansaço, entregou-se às pequenas tarefas que havia para fazer, preparou-lhe o pequeno-almoço, lavou-lhe o cantil, pôs-lhe o fato da mina a aquecer junto à lareira com as botas ao lado, foi buscar um lenço lavado, um saco para o farnel e duas maçãs, espevitou o lume e foi deitar-se. Ele dormia já profundamente. As suas sobrancelhas finas e negras estavam arqueadas numa espécie de rictus de sofrimento e arrogância, entrando pela testa dentro, ao mesmo tempo que as faces descaídas e a boca desdenhosa pareciam dizer: «Não me interessa quem tu és nem o que és, quem manda aqui sou eu».

Mrs. Morel já o conhecia bem de mais para olhar para ele. Enquanto tirava o broche em frente ao espelho, sorriu ligeiramente ao ver o seu rosto todo sujo do pó amarelo dos lírios. Sacudiu-o e foi para a cama. Por algum tempo ainda, a sua mente continuou a faiscar, mas adormeceu antes de o marido acordar do primeiro sono da bebedeira.


II

O NASCIMENTO DE PAUL
E UMA NOVA BATALHA

DEPOIS de uma cena como a última, Walter Morel andou largos dias abatido e envergonhado, mas depressa recuperou a indiferença e brutalidade costumeiras. Notava-se contudo um ligeiro abrandamento, um leve esmorecer da sua autoconfiança. Até fisicamente ele mirrara, sendo visível um certo alquebrar da sua bela figura. Não sendo do tipo atlético, ao perder o porte altivo e imponente, o físico parecia definhar com o quebrar do orgulho e da força de ânimo.

Percebia agora como era dura para a mulher a lida da casa e, com uma solidariedade ditada pelo remorso, apressou-se a ajudá-la. Depois de sair da mina vinha direito para casa e à noite não saía – mas só até chegar a sexta-feira; nessa altura não aguentava mais, mas estava sempre de volta às dez horas, e quase completamente sóbrio.

Também preparava o seu pequeno-almoço. Sendo um homem que se levantava cedíssimo e tinha muito tempo pela frente, não fazia como outros mineiros que obrigavam as mulheres a sair da cama às seis da manhã. Acordava às cinco, às vezes mais cedo, levantava-se de imediato e descia para a cozinha. Quando não conseguia dormir mais, a mulher deixava-se ficar deitada à espera deste momento, como de um tempo de paz. Mas descanso, propriamente dito, só quando ele não estava em casa.

Descia a escada em mangas de camisa e enfiava à pressa as calças da mina, deixadas durante a noite ao borralho para aquecerem. O lume nunca se apagava, porque Mrs. Morel o abafava antes de ir para a cama. E o primeiro som que se ouvia pela manhã era o roçar do atiçador contra a grelha, enquanto Morel remexia as brasas que restavam para pôr a chaleira a ferver, que já ficava cheia de véspera em cima da grelha. A chávena, a faca e o garfo, tudo o que ele precisava, excepto a comida, estavam a postos em cima da mesa, sobre um jornal. Preparava então o pequeno-almoço, fazia o chá, entalava os tapetes debaixo das portas para evitar a corrente de ar, acendia uma bela fogueira e usufruía de uma hora de bem-estar. Assava o presunto na ponta do garfo, deixando pingar a gordura sobre o pão. Em seguida, punha o naco de presunto em cima da grossa fatia de pão e ia cortando lascas com o canivete; depois, deitava o chá no pires e era aquilo a felicidade. Com a família à volta, as refeições nunca eram tão agradáveis. Detestava comer com o garfo, essa invenção moderna que ainda não chegou às classes populares. Do que ele realmente gostava era do seu canivete. E, assim, comia na solidão, sentando-se muitas vezes num banquinho, quando estava frio, com as costas contra a pedra aquecida da chaminé, a comida no guarda-fogo e a chávena no chão quente. Lia a edição da tarde do jornal da véspera, tanto quanto lho permitiam as suas capacidades, soletrando as palavras laboriosamente. Preferia manter as persianas corridas e a vela acesa, mesmo quando já era dia claro. Era o hábito da mina.

Quando faltava um quarto para as seis, levantava-se, cortava duas grossas fatias de pão, barrava-as com manteiga e metia-as no saco branco do farnel. Enchia de chá o cantil de lata. Chá frio, sem leite nem açúcar, era o que lhe sabia bem na mina. Depois, despia a camisa e enfiava a vestimenta da mina, um casabeque grosso de flanela, de decote redondo e mangas curtas.

Em seguida, levava uma chávena de chá à mulher, porque ela estava doente e porque lhe dava na gana.

– Trouxe-te uma pinga de chá, cachopa – dizia ele.

– Não sei para quê, sabes bem que não gosto – respondia ela.

– Vá, bebe, isto põe-te a dormir outra vez num instante.

Ela aceitava o chá. Ele gostava de a ver pegar na chávena e começar a bebericar.

– Aposto que não lhe deitaste açúcar – dizia ela.

– Isso é que deitei, e um bom bocado – respondia ele, ofendido.

– É para admirar – dizia ela, bebendo mais um gole.

Ficava linda com o cabelo desmanchado. E ele adorava ouvi-la resmungar assim. Olhava para ela outra vez e saía sem se despedir. Nunca levava mais de duas fatias de pão com manteiga para a mina, pelo que uma maçã ou uma laranja era para ele um luxo. Ficava todo contente de cada vez que ela lhe deixava uma cá fora. Atava um lenço ao pescoço, calçava as botas, enormes e pesadonas, vestia o casacão de grandes bolsos, onde metia o saco do farnel e o cantil com o chá, e saía para o fresco da madrugada, fechando a porta atrás de si sem a trancar. Adorava as alvoradas. Saía sempre de casa pelas seis horas, embora os trabalhadores não pegassem senão por volta das sete e a caminhada até à mina não levasse mais de meia hora. Metia geralmente pelos campos e muitas vezes, no Verão, parava na tapada à cata de cogumelos, afastando a erva densa e molhada com as pesadas botas de mineiro, à procura dos tortulhos brancos e carnudos que nela se acoitavam. Se calhava encontrar alguns, metia-os cuidadosamente no bolso. Não se pode dizer que lhe custasse deixar o ar frio e límpido da manhã e descer às profundezas. Estava tão habituado que encarava essa rotina como um gesto simples e natural. Por isso, era frequente vê-lo chegar à entrada da mina com um raminho arrancado da sebe entre os dentes, que ia mordiscando pelo dia fora lá em baixo, para manter a boca humedecida, sentindo-se tão feliz como ao ar livre.

Passado algum tempo, quando a chegada do bebé estava mais próxima, costumava dar um arranjo à cozinha, no seu estilo negligente, atiçando as brasas, limpando o fogão e varrendo a casa antes de sair para o trabalho. Nessa altura, com a consciência do dever cumprido, ia lá acima e dizia à mulher:

– Pronto, já limpei a casa. Num tás em condições d’andares praí a traquinar o dia todo. Deixa-te ficar sentada a ler os teus livros. – O que lhe dava imensa vontade de rir, apesar da indignação que nela despertava.

– E então o jantar, faz-se sozinho? – repontava Mrs. Morel.

– Eh lá, do jantar não percebo eu.

– Mas percebias, se ele não te aparecesse na mesa.

– Se calhar... – respondia ele, e abalava.

Quando ela vinha para baixo, encontrava a casa arrumada, mas toda suja, e não descansava enquanto não lhe dava uma boa limpeza. E quando se dirigia ao depósito das cinzas com a pá do lixo carregada, logo Mrs. Kirk, sempre de atalaia, arranjava uma desculpa para aparecer logo a seguir no seu depósito e meter conversa através do tapume de madeira.

– Sempre a cirandar, não é verdade?

– Que remédio – respondia Mrs. Morel, resignada. – É preciso, que se há-de fazer.

Mrs. Kirk era uma mulher magra e nervosa, a atirar para o histérico. Mrs. Morel gostava dela. Juntavam-se as duas, cada uma do seu lado do tapume, de pá na mão, e ali ficavam um bocado a conversar. Era mais ou menos assim:

– Ainda se mata de trabalho – dizia Mrs. Kirk. – O seu homem não lhe dá uma ajudinha? O meu Tom não me dá razão de queixa nesse aspecto.

– Então não dá? – respondia a vizinha. – Ainda esta manhã foi ao meu quarto para me dizer que já tinha feito a limpeza e que eu não precisava de fazer mais nada todo o dia, era só sentar-me e pôr-me a ler.

– Pois é, os homens são mesmo uns paspalhões! – exclamava Mrs. Kirk.

– E eu fui dar com a chaminé cheia de terra e o lixo todo metido debaixo do tapete.

Mrs. Kirk ria-se, enchendo de dentes a cara afilada.

– São todos iguais – acrescentava. – Passam a vassoura e o espanador à pressa por cima das coisas e acham que já fizeram muito.

– E não se ralam com a porcaria que fazem – dizia Mrs. Morel.

– Não se ralam mesmo. O meu Tom é igualzinho.

– Todos iguais – dizia Mrs. Morel.

– Já soube da Mrs. Allsop?

– Não.

– Não? O menino dela já chegou.

– A sério? Quando?

– Anteontem à noite... Depois da trovoada...

– O quê...!

E as duas mulheres riam com gosto.


– Viram o Hose? – gritou uma mulher baixinha do outro lado da rua. Era Mrs. Anthony, um corpo franzino e estranho de cabelos negros, que andava sempre com um vestido de veludo castanho muito justo.

– Não vi, não – disse Mrs. Morel.

– Quem dera que ele apareça. Tenho ali um monte de roupa e pareceu-me ouvi-lo tocar a campainha.

– Falai no mal... Lá vem ele.

As duas mulheres olharam para o fundo do beco. Na extremidade da ruela vinha um homem numa espécie de carripana de outros tempos, debruçado sobre trouxas de tecido de tom esbranquiçado, enquanto o mulherio estendia para ele os braços carregados de roupa. A própria Mrs. Anthony trazia um monte de meias brancas, ainda por tingir, penduradas no braço.

– Fiz dez dúzias esta semana – disse ela a Mrs. Morel, toda orgulhosa.

– Ena... – disse a outra. – Não sei como consegue arranjar tempo.

– Essa agora! – disse Mrs. Anthony. – Quando se quer, arranja-se sempre tempo.

– Pois olhe, eu não sou capaz – disse Mrs. Morel. – E quanto lhe rendem todos esses pares?

– São a dois dinheiros e meio a dúzia – respondeu a outra.

– Safa! – disse Mrs. Morel. – Antes queria morrer de fome a ficar sentada a fazer duas dúzias de meias por dois dinheiros e meio.

– Olhe que se engana – disse Mrs. Anthony. – Fazem-se num instante.


O tal «Hose» aproximava-se, tocando a campainha. As mulheres esperavam por ele à porta dos pátios, com as meias penduradas no braço. O homem, de aspecto grosseiro, brincava com elas, tentava aldrabá-las e chegava a injuriá-las. Mrs. Morel afastou-se, desdenhosa.

Era sinal combinado que, se alguma mulher precisasse de chamar a vizinha, bastava-lhe bater com o atiçador na parede da chaminé. Como as lareiras estavam costas com costas, o barulho era logo ouvido na casa ao lado. Uma manhã, estava Mrs. Kirk a fazer um pudim, e quase desmaiou de susto com o barulho que vinha da chaminé. Com as mãos enfarinhadas, correu para o muro do quintal.

– Chamou, Mrs. Morel?

– Se fizesse o favor, Mrs. Kirk.

Mrs. Kirk pôs-se em cima da sua caldeira, passou para o outro lado da vedação, para cima da caldeira de Mrs. Morel, e correu para junto da vizinha.

– Então, minha querida, como se sente? – gritou preocupada.

– Pode-me ir buscar a Mrs. Bower, por favor? – respondeu Mrs. Morel.

Mrs. Kirk voltou ao quintal, desatou a voz possante e estridente e chamou:

– Ag...gie! Ag...gie!

O apelo ouviu-se de uma ponta à outra das Bottoms. Finalmente, Aggie lá apareceu a correr e foi incumbida de ir chamar Mrs. Bower, enquanto Mrs. Kirk ficava ao pé da vizinha, deixando o pudim a meio.

Mrs. Morel foi deitar-se na cama. Mrs. Kirk levou Annie e William para sua casa e deu-lhes o almoço. Mrs. Bower, gorda e gingona, assenhoreou-se do comando das operações.

– Pique um bocado de carne para o jantar do patrão e faça-lhe um pudim de maçã – disse Mrs. Morel.

– Hoje, ele pode bem passar sem o pudim – disse Mrs. Bower. Morel não era geralmente dos primeiros a parecer no fundo da mina, pronto para sair. Alguns iam para lá antes das quatro, quando soava o apito de despegar. Mas Morel, cuja galeria, além de pobre, ficava nesta altura a cerca de milha e meia do fundo, costumava continuar a trabalhar até o primeiro colega parar, e só então parava também. Nesse dia, porém, estava morto por chegar ao fim. Às duas horas olhou para o relógio, à luz da vela verde – a galeria onde se encontrava era segura – e às duas e meia voltou a olhar. Estava ocupado a cortar um bocado de rocha que iria interferir com o trabalho do dia seguinte. Sentado nos calcanhares ou de joelhos, ia desferindo violentos golpes na rocha com a picareta e dizendo «Zás!...Zás!»

– Já acabaste, pá? – gritou Barker, o outro mineiro.

– Acabar... Só quando o mundo acabar! – resmungou Morel.

E continuou a bater. Estava cansado.

– Este trabalho dá cabo da gente – disse Barker.

Mas Morel estava demasiado irritado, sem paciência para responder. Só batia e cortava com quanta força tinha.

– O melhor é deixares isso, Walter – disse Barker. – Amanhã também é dia. Não precisas de ficar a deitar os bofes pela boca.

– Amanhã não faço tenções de pôr as mãos nesta m... – gritou Morel.

– Pronto, se tu não puseres, alguém há-de pôr – disse Israel. Mas Morel continuou a bater.

– Eh, vocês aí, toca’andar – gritaram os homens que vinham da galeria mais próxima.

E Morel sempre a bater.

– Tu depois apanhas-me – disse Barker, indo-se embora.

Depois de o outro partir e de ficar sozinho, Morel foi acometido de um acesso de raiva. Tinha-se esfalfado e não tinha conseguido acabar a empreitada. Levantou-se, alagado em suor, atirou a ferramenta para o chão, enfiou o casaco, apagou a vela, pegou na lanterna e foi-se embora. Ao longo da galeria principal, as luzes dos outros homens dançavam de um lado para o outro e ressoavam ecos de muitas vozes. Ainda era uma longa e penosa caminhada debaixo do chão.

Sentou-se ao fundo do poço da mina, onde a água não parava de pingar em grossas gotas. Os mineiros, em grande algazarra, concentravam-se à espera da sua vez de subirem. Morel respondia de mau humor ao que lhe diziam.

– Tá a chover, pá – disse o velho Giles, que tinha recebido a informação de lá de cima. A Morel restava-lhe um consolo: tinha o seu velho chapéu-de-chuva, de que tanto gostava, à espera dele na arrecadação das lanternas. Chegou finalmente a sua vez, sentou-se na cadeirinha e num instante chegou à superfície. Entregou a lanterna e recebeu o chapéu-de-chuva, que tinha comprado um dia num leilão por um xelim e seis dinheiros. Ficou parado à beira do poço da mina, por um momento, a olhar. A chuva caía cinzenta sobre os campos. Os vagões estavam carregados de carvão molhado, brilhante. A água escorria pelos vagões por cima das letras a branco C. W. & Co. Os mineiros, indiferentes à chuva, caminhavam pelo trilho e pela encosta acima, como uma hoste tristonha e pardacenta. Morel abriu o chapéu-de-chuva e meteu pés ao caminho, entretido com o tamborilar das gotas sobre o pano.

Os mineiros seguiam pela estrada em direcção a Bestwood, molhados, cinzentos e enfarruscados, mas as suas bocas vermelhas não paravam de falar com animação. Morel ia também com um grupo, mas de boca fechada. Limitava-se a franzir a testa, mal-humorado. Muitos foram os que entraram na taberna Prince of Wales ou na da Ellen, mas a má disposição de Morel ajudou-o a resistir à tentação, e seguiu o seu caminho debaixo das ramadas gotejantes que caíam por cima do muro do parque, descendo por fim a encosta lamacenta em Greenhill Lane.

Mrs. Morel estava deitada, a ouvir a chuva a cair, o ruído cadenciado dos pés dos mineiros que vinham de Minton, as suas vozes e o bater da cancela do caminho da encosta de cada vez que passavam.

– Há cerveja aromatizada atrás da porta da despensa – disse ela. – Mr. Morel há-de querer um copo quando chegar, se não parar pelo caminho.

Mas, como ele se atrasasse, julgou que tivesse parado na taberna para fugir à chuva. Ele queria lá saber dela ou da criança. Ela passava sempre muito mal quando as crianças nasciam.

– O que é? – perguntou ela, sentindo-se quase a morrer.

– É um rapaz.

Isso, de certa maneira, confortou-a. A ideia de dar à luz filhos homens aconchegava-lhe o coração. Olhou para o menino. Tinha olhos azuis, o cabelo louro e farto e era magrinho. Apesar de tudo, amava-o com todas as suas forças. Tinha-o na cama ao seu lado.

Morel, sem suspeitar de nada, subiu o carreiro do jardim, cansado e irritado. Fechou o chapéu-de-chuva e pô-lo a escorrer no lava-loiças. Em seguida, sacudiu as botas na cozinha. Mrs. Bower assomou-se à porta do corredor.

– Sim, senhor – disse ela –, ela lá está, e pior não podia estar... É um rapaz.

O mineiro resmungou qualquer coisa, pousou o saco do farnel vazio e o cantil de lata em cima do armário da cozinha, regressou à copa para pendurar o casacão, voltou para a cozinha e deixou-se cair pesadamente na cadeira.

– Não há nada que se beba? – perguntou.

A mulher foi à despensa. Ouviu-se uma rolha saltar. A mulher, com ar de poucos amigos, colocou a caneca em cima da mesa diante de Morel. Ele bebeu, deu um soluço de satisfação, limpou os longos bigodes à ponta do lenço do pescoço, bebeu mais, deu novo soluço e deitou-se para trás na cadeira. A mulher não lhe disse mais nada. Pôs-lhe o jantar na mesa e voltou para cima.

– Era Mr. Morel? – perguntou Mrs. Morel.

– Já lhe pus o jantar – respondeu Mrs. Bower.

Ele sentou-se, com os cotovelos em cima da mesa, e começou a comer, não sem antes se queixar por Mrs. Bower não ter posto uma toalha na mesa e lhe ter dado um prato dos pequenos, em vez de um prato raso grande. Ter a mulher de cama e ter-lhe nascido mais um filho era o que menos lhe importava. Estava cansado, queria comer, queria estar sentado com os cotovelos apoiados em cima da mesa, e não lhe agradava ver Mrs. Bower a andar por ali a cirandar. Ainda por cima, a fogueira estava pequena de mais para o seu gosto.

Quando acabou de jantar, deixou-se ficar sentado por uns bons vinte minutos. A seguir, foi fazer uma grande fogueira. Só então subiu a escada, só com as meias nos pés, e, sem vontade nenhuma, foi ver a mulher. Bem lhe custava encará-la naquele momento, exausto como estava, com a cara toda suja e preta do suor. A camisola já tinha secado, e ensopado a transpiração. Enrolado ao pescoço, um lenço de lã imundo. Deixou-se ficar, por isso, aos pés da cama.

– Bem, então com’é que te sentes? – perguntou.

– Isto passa – respondeu ela.

– Hum.

Estava sem saber o que dizer. Sentia-se cansado e toda esta confusão era um estorvo para ele. Era como se não soubesse onde estava.

– Um rapaz, dizes tu – disse ele, titubeante.

Ela puxou o lençol para baixo e mostrou-lhe o menino.

– Deus o abençoe! – murmurou ele. Ela riu-se, ao vê-lo dar assim a bênção, sem convicção, por mera rotina, fingindo uma emoção paternal que ainda não sentia.

– E, agora, vai-te embora – disse ela.

– Vou sim, cachopa – respondeu ele, dando meia volta.

Ao ver-se dispensado, apeteceu-lhe beijá-la antes de sair, mas não se atreveu. A ela não lhe teria desagradado que ele a beijasse, mas não lho queria dar a entender. Só respirou de alívio quando o viu sair do quarto, deixando atrás de si um vago cheiro a lama da mina.

Mrs. Morel recebia diariamente a visita do pároco da Congregação. Mr. Heaton era jovem e muito pobre. A mulher tinha morrido ao dar à luz o primeiro filho, deixando-o sozinho no presbitério. Muito tímido, era formado por Cambridge e um fraco pregador. Mrs. Morel gostava dele e ele tinha por ela um grande apreço, conversando com ela durante largas horas quando ela andava bem. Foi até escolhido para padrinho do menino.

A mãe, na cama, tinha o pensamento nos outros filhos. Como não tinha vida própria, passando o dia ocupada de manhã à noite a limpar, cozinhar, tratar das crianças e costurar, tinha de pôr de lado a sua própria existência, investir nos filhos, que eram, por assim dizer, o seu banco. Era neles que pensava, era por eles que esperava, sonhando com o que seriam um dia mais tarde, com ela como motor, a empurrá-los para a vida. William já era para ela como um amante. Se ela tinha nevralgias, que frequentemente a atacavam, e ia fazendo a lida da casa pálida e em silêncio, logo ele lhe perguntava:

– Está com dores de dentes, mãe?

– Estou.

– E é muito mau?

E ela ria-se, apesar da dor. Às vezes, porém, quando estava a amamentar o bebé, a dor era tão intensa que mal se podia mexer. Nessas alturas, era ver o filho mais velho deitado no chão da sala da frente, a chorar sozinho, sentido, e quando o pai perguntava:

– Que tens tu, catraio? – logo ele respondia:

– A minha mãe está com dores de dentes.

– Ora esta – dizia Mrs. Morel ao ouvi-lo. – Não é a ti que te dói, meu pateta, porque choras?

William não gostava do bebé.

– É tão feio, mãe – dizia ele.

– Porquê? – perguntava a mãe.

– Está sempre a fazer caretas – respondia William.

Então, Mrs. Morel dava um beijo no bebé. Tinha uma ruga bem peculiar na testa, como se alguma coisa tivesse chocado a sua minúscula consciência ainda antes de nascer. Quando Mrs. Morel olhava para o menino, algo lhe apertava o coração, embora o bebé fosse perfeitamente saudável, e eram muitas as vezes em que se sentava a cantar-lhe canções de embalar.

– Ele não percebe nada, porque lhe está a cantar? – dizia William.

– Mas ele gosta do barulho, tenho a certeza – dizia a mãe, rindo para o bebé com aquele calor especial que lhe brilhava nos olhos azuis, mordiscando-lhe os dedinhos ao de leve, enquanto William assistia, furioso.

De vez em quando, o pároco ficava para o chá. Nessas ocasiões, ela servia o chá mais cedo, ia buscar as suas melhores chávenas, as que tinham um vivo verde na borda, e pedia a Deus que Mr. Morel não chegasse cedo de mais. Na verdade, nem se importava que ele parasse na taberna a tomar uma cerveja. Tinha sempre dois almoços para fazer, pois achava que as crianças tinham de comer a refeição principal ao meio-dia, ao passo que Mr. Morel comia a dele às cinco horas. Por isso, Mr. Heaton pegava no bebé enquanto Mrs. Morel fazia uns pastéis ou descascava batatas, e, sem tirar os olhos dela, ia conversando sobre o seu próximo sermão. As suas ideias eram fantásticas, irreais, e ela, com toda a perícia de que era capaz, fazia-o descer à terra. Desta feita, o sermão era sobre as Bodas de Canaã.

– Quando Ele transforma a água em vinho, em Canaã – disse o pastor – isso é um símbolo de que a vida quotidiana dos noivos, e até mesmo o seu sangue, até aí desinspirado como a água, possuía agora espírito, como o vinho, porque quando o amor chega, toda a parte espiritual do homem se transforma, fica impregnada do Espírito Santo, e quase a própria forma se altera.

Mrs. Morel pensou para consigo:

«Pois é, coitado, a mulher morreu e ele agora reduz o seu amor ao Espírito Santo.»

– Não – disse ela em voz alta. – Não reduza as coisas a símbolos. Diga antes: «Era uma boda e o vinho acabou-se. O pai da noiva estava aflito porque não tinha mais nada para dar de beber aos convidados, a não ser água; naquele tempo não havia chá nem café, apenas vinho. E com que cara ia ele ficar, vendo toda aquela gente sentada à volta da mesa com copos de água à sua frente... O dono da casa e a mulher estavam envergonhadíssimos, a noiva inconsolável e o noivo zangadíssimo. Jesus viu-os a conferenciar com ar preocupado, e sabia que eram pobres, simples trabalhadores rurais, provavelmente. E, então, pensou: Que pena! Um casamento estragado. E tratou de fazer aparecer o vinho o mais depressa que pôde.» E pode ainda acrescentar: «O vinho não é como a cerveja, não embebeda tanto. E no Oriente as pessoas nunca se embebedam. É por embebedar que a cerveja é uma coisa tão má.»

O pobre homem não tirava os olhos dela. Queria tanto dizer que o amor dos homens é a presença do Espírito Santo, que é Ele que torna os amantes divinos e imortais. Mas Mrs. Morel insistia em que era preciso tornar a Bíblia real aos olhos do povo, e que só de vez em quando devia introduzir bocados do seu discurso. Estavam os dois animadíssimos e felizes. Nisto, chegou William.

– Valha-me Deus! – exclamou Mrs. Morel. – Já é assim tão tarde?

Colocou a chaleira ao lume, e pôs a mesa à pressa com a única toalha limpa que tinha, a desejar que o marido não chegasse cedo a casa. William e Annie, cada um com a sua fatia de pão com manteiga, foram brincar para a rua. Para o chá, havia rabanetes, compota e doce de laranja. Tudo esmerado e irrepreensível. Mrs. Morel estava nas suas sete quintas, por poder aconselhar o seu pároco sobre o sermão que ia proferir e por tomar chá com um cavalheiro que lhe servia o pão com manteiga e esperava que ela começasse.

Iam a meio da primeira chávena quando ouviram o arrastar das botas do mineiro.

– Valha-me Deus! – exclamou Mrs. Morel involuntariamente.

O pastor ficou para morrer. Morel entrou. Não estava para brincadeiras. Com um ligeiro inclinar da cabeça, disse «B’tarde» ao padre, que se levantou para lhe apertar a mão.

– Não – disse Morel, mostrando-lhe a sua. – Olhe pra isto! Num vai querer apertar uma mão como esta, ou vai? Suja como está, da pá e da picareta.

O pastor corou, sem saber o que fazer, e sentou-se outra vez. Mrs. Morel levantou-se e levou para a cozinha a caçarola fumegante. Morel despiu o casaco, puxou a sua cadeira de braços para a mesa e sentou-se pesadamente.

– Está cansado? – perguntou o padre.

– Cansado?... Bem pode dizê-lo – replicou Morel. – O senhor num sabe o qu’é estar cansado c’mo eu tou.

– Pois não – respondeu o padre.

– Olhe pra isto – disse o mineiro, mostrando-lhe os ombros da camisola. – Agora já tá quase seca, mas memo assim vê-se bem como tá ensopada de suor. Or’apalpe.

– Por amor de Deus! – exclamou Mrs. Morel. – Mr. Heaton não há-de querer mexer nessa camisola imunda.

O padre estendeu a mão devagar.

– Não, se calhar não quer – disse Morel. – Mas, queira ou num queira, é todo suor qu’eu suei. E todos os dias a minha camisola fica assim a pingar. Então, ’nhã senhora, num se dá de beber a um homem quando ele chega a casa derreado da mina?

– Sabes bem que já bebeste a cerveja toda – disse Mrs. Morel, servindo-lhe o chá.

– E num havia mais à venda? – E, depois, voltando-se para o padre: – Um homem fica tão carregado de pó, percebe, tão enfarruscado numa mina de carvão, que precisa duma bebida quando chega a casa.

– Sem dúvida – concordou o padre.

– Mas é certo e sabido que fica a ver navios – disse Morel.

– Há água... e há chá – disse Mrs. Morel.

– Água... Não é a água que lhe vai desentupir a goela.

Encheu o pires de chá, soprou, sorveu-o por baixo do bigodão preto e suspirou. A seguir, encheu o pires novamente e pousou a chávena em cima da mesa.

– Ai a minha toalha! – disse Mrs. Morel, colocando a chávena em cima de um prato.

– Um homem que chega a casa cansado com’eu tou quer lá saber das toalhas – disse Morel.

– É uma pena! – exclamou Mrs. Morel, sarcástica.

A sala estava impregnada de um forte cheiro a carne cozida com legumes e às roupas do mineiro.

Morel inclinou-se para o pastor, de bigode espetado para a frente e a boca vermelha sobressaindo na cara toda preta.

– Mr. Heaton – disse ele – um homem que passou o dia c’m’eu passei naquele buraco negro, a bater numa parede de carvão... sim senhor... inda mais dura qu’aquela parede...

– Não precisa de se queixar tanto – completou Mrs. Morel.

– Num precisa... Ah, num precisa? Sabemos bem que tu é que num queres ouvir as verdades. – E, depois, virando-se para o padre: – ... chega a casa tão cansado que nem sabe com’ há-de estar. – Olhou para a comida, no prato à sua frente. – Sim senhor, cansado de mais até pra comer a janta, é isso mesmo. – E pousou os braços negros, do carvão, em cima da toalha branca.

– Por Deus, homem, olha que a toalha é limpa! – exclamou Mrs. Morel sem se conter. Era a única toalha limpa que tinha.

– Será que tenho de ir comer o jantar prò pátio, como um cão? – berrou ele.

– Ninguém falou em ires para o pátio – repontou a mulher friamente.

Ele conservou os braços em cima da toalha.

Quando um homem passa um dia inteiro a bater na rocha dura com uma picareta, Mister Heaton, fica cos braços tão cansados que nem sabe o que lhes há-de fazer.

– Eu sei – disse o padre.

Para ele, o mineiro era uma espécie de bicho raro.

– A tua cadeira tem braços – disse Mrs. Morel.

– Tinhas de vir meter a colherada, num tinhas? – disse o marido.

Ela bem gostaria de dizer também como ela tinha de trabalhar que nem uma escrava. O mineiro comia com a faca, enfiando a comida na boca e mastigando ruidosamente. Até fazia aflição. Aquele homem não tinha consideração por ninguém. Daí a pouco, pousou a faca.

– Mr. Heaton – disse ele – o qu’é que m’aconselha pràs dores de cabeça?

– Penso que a cáscara-sagrada... – titubeou o pastor.

– Diga-lhe que beba menos cerveja e tenha mais cuidado com o fígado – alvitrou Mrs. Morel.

– «Que beba menos cerveja!» – repetiu Morel. – Esta é boa! A culpa é sempre da cerveja! Um homem bebe um copito, Mr. Heaton, e ela nunca mais se cala.

– Quem me dera que fosse só um copito – disse Mrs. Morel.

Odiava o marido porque, sempre que havia espectadores, gostava de dar espectáculo. William, sentado com o bebé ao colo, odiava-o com o ódio que uma criança sente pelo fingimento e pela maneira brutal como ele tratava a mãe. Annie nunca gostara do pai, e limitava-se a evitá-lo.

Quando o pastor se foi embora, Mrs. Morel olhou para a toalha.

– Que bela porcaria! – disse ela.

– Julgas que me vou sentar cos braços caídos, só porque convidaste um padre para tomar chá contigo? – bradou ele.

Estavam ambos furiosos, mas ela não respondeu. O bebé começou a chorar, e Mrs. Morel, ao retirar do lume a caçarola, bateu sem querer na cabeça de Annie, que se pôs a choramingar, e Morel desatou aos berros, a ralhar com ela. No meio de todo este pandemónio, William olhou para o grande painel de azulejo colocado sobre a chaminé e leu, de forma bem audível:

– «Deus Abençoe Esta Casa.»

Ao ouvir isto, Mrs. Morel, que tentava acalmar o bebé, deu um salto, precipitou-se para o filho e disse, puxando-lhe as orelhas:

– Não te metas!

Depois, sentou-se e começou a rir, até as lágrimas lhe rolarem pelas faces, enquanto William dava um pontapé no banco onde tinha estado sentado, e Morel vociferava:

– Num vejo o qu’é que te dá tanta vontade de rir.

Foi mais ou menos por esta altura que Mrs. Morel destruiu a autoridade do marido. Até àquele momento, tinha-se sentido muito sozinha para se afastar dele. Mas William estava a crescer e todo o seu afecto ia para a mãe. Annie também estava contra o pai. E agora, finalmente, o novo bebé. Mrs. Morel ficara a odiar o marido no ano que antecedera o seu nascimento. Eram pobres e Morel era perverso. Tinha-se envolvido com um grupo de amigos, um dos quais o tal Jerry, que achavam que um homem que trabalhava devia guardar o dinheiro que ganhava para se divertir como muito bem lhe apetecesse. Costumavam até comparar os vários graus de submissão das suas mulheres, e Morel achava que a dele não estava suficientemente domesticada. Depois de uma noite de conversa em que Jerry o tinha aconselhado a não aturar imposições de cabra nenhuma, sim, afinal que raio de homem era ele? – gritou-lhe ao chegar a casa:

– Hei-de fazer-te tremer só de ouvires o som dos meus passos.

Frase que ficara na história para ela. Tinha-se sentado, a rir, até achar graça à ideia, enquanto ele continuara de pé, a estoirar de raiva e ignomínia. Então ele, para lhe pagar na mesma moeda, passara a dar-lhe o menos que podia para o sustento, a beber o mais que podia e a dar-se com homens que o embruteciam a ele e à imagem que fazia das mulheres. Depois, ela pensou que a única alegria dele eram as crianças, e pôs-se ao lado delas contra ele.

Uma noite, logo após a visita do pároco, sem coragem para suportar outra cena do marido, pegou em Annie e no bebé e foi sair. Morel tinha dado um pontapé em William e a mãe jamais lhe perdoaria.

Atravessou a ponte por onde passava o rebanho e um canto do prado, até ao campo de críquete. Os prados pareciam uma ampla extensão luminosa e amadurecida de crepúsculo, perpassada pelo sussurro dos moinhos distantes. Chegada ao campo de críquete, sentou-se num banco debaixo dos amieiros e deixou-se ficar a contemplar o cair da noite. Diante dela, firme e plano, estendia-se o grande campo verde de críquete, como o leito de um mar de luz. Havia crianças a brincar à sombra já densa do pavilhão. Lá no alto, as gralhas, em bando, crocitavam de regresso aos ninhos num céu suavemente entretecido. Curvando largo, mergulharam rumo ao clarão dourado, crocitantes e rodopiantes como flocos negros num lento vórtice, em direcção a uma moita que se erguia como bossa negra na pastagem.

Estavam alguns homens a jogar, e Mrs. Morel ouvia o bater da bola e vozes másculas que subitamente se elevavam; discernia brancas silhuetas masculinas que mudavam silenciosamente de lugar sobre o relvado, já coberto das sombras incandescentes do sol-pôr. Ao longe, na granja, as medas de feno tinham uma face iluminada e as restantes negro-cinza. Uma carroça carregada de molhos de feno balançava mansamente à luz que a pouco e pouco se extinguia.

O sol punha-se. Nas tardes límpidas, os montes do Desbyshire incendiavam-se do vermelho-rubro do poente. Mrs. Morel ficou a ver o sol escorregar no céu radioso, deixando atrás de si uma suave rosácea arroxeada, enquanto o ocaso se cobria de vermelho, como se todas as labaredas para lá tivessem convergido, abandonando a campânula azul imaculada. Por um instante, as bagas dos freixos cintilaram incandescentes entre a folhagem escura. Alguns molhos de espigas, encostados a um canto do alqueive, ganharam vida, e ela imaginou-os curvando-se numa vénia; talvez o seu filho viesse a ser um José. A oriente flutuava um poente espelhado de tons róseos, em contraste com o céu rubro a ocidente. As imponentes medas de feno espalhadas pela encosta incendiada arrefeceram.

Este era para Mrs. Morel um daqueles momentos de quietude em que as pequenas mágoas se esfumam e a beleza das coisas se impõe, momentos que lhe davam paz e força de ânimo para olhar dentro de si. De quando em vez, uma andorinha passava perto. De quando em vez, Annie chegava com uma mão-cheia de bagas de freixo. E o bebé, inquieto ao colo da mãe, estendia as mãozinhas para agarrar a luz.

Mrs. Morel contemplava-o. Temera a vinda deste filho como uma catástrofe, dado o que sentia pelo marido, e agora era estranho o que sentia pelo menino. O coração apertava-se-lhe pela criança, quase como se ele fosse doente ou malformado, e, no entanto, parecia bem saudável. Mas ela não podia deixar de reparar no modo peculiar como o bebé franzia a testa, nem no seu olhar peculiarmente carregado, como se tentasse decifrar uma sensação de dor. Quando olhava para as pupilas negras e circunspectas do menino, sentia um peso esmagar-lhe o coração.

– Até parece que está a pensar nalguma coisa... e coisa triste – disse Mrs. Kirk.

De súbito, ao olhar para ele, o peso que a mãe sentia no coração desfez-se em dor sentida. Inclinou-se sobre o filho e as lágrimas escorreram-lhe breves do coração. O menino esticou os dedos.

– Meu cordeirinho! – disse ela, chorando baixinho.

E então, nesse preciso momento, sentiu bem fundo na alma que ela e o marido eram culpados.

O menino erguia os olhos para ela. Olhos azuis como os dela, mas com um olhar pesado e fixo, como se tivesse compreendido qualquer coisa que lhe atingira a alma duramente.

Embalava nos braços o menino. Os seus profundos olhos azuis, sempre pregados nela, sem pestanejar, pareciam apelar aos seus mais íntimos pensamentos. Já não amava o marido; não tinha desejado esta criança, e o menino ali estava, nos seus braços, entrando-lhe no coração. Era como se o cordão umbilical que tinha ligado o seu corpinho frágil ao dela nunca tivesse sido cortado, transportando de si para o bebé uma corrente do mais intenso amor. Apertou-o contra o peito e contra o rosto. Havia de recompensá-lo com todas as suas forças, com toda a sua alma, por tê-lo trazido ao mundo indesejado. Mas agora, que viera, amá-lo-ia ainda mais, transportá-lo-ia no seu amor. Aqueles olhos perspicazes atemorizavam-na, isso era evidente. Saberia ele tudo acerca dela? Teria ele escutado enquanto repousava junto ao seu coração? Seria aquele olhar reprovação? O medo e a dor deixavam-na sem pinga de sangue.

Reparou de novo no sol, repousando rubro na crista da colina, à sua frente. Subitamente, pegou no menino e elevou-o no ar.

– Olha! – disse ela. – Olha bem, meu amor!

E, num gesto quase de alívio, esticou os braços, com o menino suspenso, na direcção do sol carmim e palpitante. Viu-o erguer o punho pequenino e aconchegou-o de novo ao peito, envergonhada da vontade que sentira de o devolver ao sítio de onde viera.

– Se sobreviver – pensou – que será dele... o que virá a ser?

O seu coração pulsava ansioso.

– Vou chamar-lhe Paul – disse ela, sem mais nem menos, sem saber porquê.

Pouco depois voltou para casa. Uma sombra sedosa estendia-se sobre o verde profundo dos prados, tudo cobrindo.

Tal como suspeitava, veio encontrar a casa vazia. Mas, às dez horas, Morel voltou, e aquele dia pelo menos acabou em paz.

Walter Morel andava sobremaneira irascível por esta época. O trabalho parecia esgotá-lo, e quando chegava a casa tratava mal toda a gente. Era o lume que estava fraco de mais, ou o jantar que não prestava, tudo pretextos para ralhos; se os filhos se punham a tagarelar, gritava com eles de uma maneira que punha a mãe a ferver e os fazia odiá-lo.

– Não precisas de gritar com eles dessa maneira – dizia Mrs. Morel. – Aqui ninguém é surdo.

– ‘Tão aqui ‘tão a levar um pontapé – berrava ele.

Se, por acaso, enquanto se estava a lavar na cozinha, alguém entrava ou saía, logo gritava: – Fechem-m’essa po-o-rta-a-a! – e fazia-o tão alto que se ouvia em todo o bairro.

– É uma pena ser tão bruto! – disse Mrs. Morel em voz baixa.

– Num quero apanhar nenhuma pontada e ficar a contas coas costelas por causa de ninguém! – berrou ele. Sempre que se zangava, ninguém o calava.

– Santo Deus, homem – disse Mrs. Morel. – Não há um minuto de sossego quando estás em casa.

– Poi não, isso sei eu. E também sei que só tás bem quando me vês pelas costas.

– Tal e qual – retorquiu ela calmamente, entredentes.

– Ah, eu sei... sei muito bem o que tás pr’aí a resmungar. Só tás satisfeita quando me vês no fundo da mina, longe de ti. O que tu querias era que me prendessem lá dentro como fazem aos patrões.

– Tal e qual – disse novamente Mrs. Morel, em surdina, voltando-lhe as costas, de boca fechada.

Ele disparou porta fora que nem uma seta, espetando a cabeça para a frente, com raiva e determinação.

– A c... vai-mas pagar! – disse ele, referindo-se à mulher.

Às onze horas, ainda não tinha voltado. O bebé estava maldisposto e agitado, desatando a chorar sempre que a mãe o deitava no berço. Mrs. Morel, morta de cansaço e ainda muito fraca, estava de cabeça perdida.

– Quem dera que o monstro viesse para casa – disse ela, sem forças, de si para si.

Por fim, a criança adormeceu-lhe nos braços, mas ela estava cansada de mais para ir deitá-la no berço.

– Desta vez não digo nada, venha ele a que horas vier – disse ela. – Só me vou arreliar ainda mais. Não vou dizer nada. – Porém, sabia que não podia confiar em si própria. Vezes sem conta dissera o mesmo, decidida a dominar-se, e a ira acabara por explodir. Com todo o ódio de que o cansaço era capaz, desejava pelo menos não o ver quando ele chegasse a casa. A razão por que não ia para a cama, sem querer saber da hora a que ele chegava, era só uma – não ser outra mulher a contar-lhe.

– Se sei que ele faz alguma coisa, fico capaz de explodir – disse ela, acabrunhada, para si própria.

– Soltou um suspiro ao ouvi-lo chegar, como se isso lhe fosse penoso de suportar. Ele, para se vingar, vinha quase a cair de bêbado. Ela conservou a cabeça inclinada sobre o bebé quando ele entrou, e nem para ele olhou. Mas, quando ele, ao passar, foi de encontro ao louceiro, pondo os cobres a tinir, e se agarrou aos puxadores brancos para não cair, foi como se uma chama a tivesse incendiado. E ele, depois de pendurar o chapéu e o casaco, voltou para trás e parou a curta distância, fuzilando-a com o olhar, enquanto ela continuava debruçada sobre a criança.

– Não há nesta casa nada que se coma? – perguntou, insolente, como se falasse com uma criada. Em certos momentos da bebedeira falava com o sotaque sincopado e pretensioso da cidade. Era nessas alturas que Mrs. Morel mais o odiava.

– Sabes bem o que temos em casa – disse ela, com a mais impessoal frieza.

Ele continuou de pé, de olhar flamejante, sem mover um músculo.

– Fiz-te uma pergunta delicada e espero uma resposta delicada – disse ele, afectadamente.

– E foi o que tiveste – disse ela, continuando a ignorá-lo.

O olhar de Morel flamejou de novo. Depois, deu uns passos em frente, vacilante, apoiou-se na mesa com uma mão e com a outra puxou a gaveta desajeitadamente para tirar uma faca de pão. A gaveta, puxada às três pancadas, emperrou. Num acesso de fúria, ele puxou-a com tanta força que a gaveta saltou inteira, com colheres, garfos, facas e mil outros utensílios metálicos a estatelarem-se no chão de tijoleira entre estrépitos e tinidos. O bebé estrebuchou assustado.

– Que estás tu a fazer, meu grande parvalhão, meu bêbado desajeitado? – gritou a mãe.

– Então viesses tu abrir o raio da gaveta. Devias ter-te levantado daí, com’as outras mulheres, para servires o teu homem.

– Eu, servir-te... eu, servir-te a ti? – gritou ela. – Isso é que era bom!

– Sim senhora, e vou ensinar-te como se faz. Servires-me, sim senhora, tu vais servir-me...

– Nunca, majestade. Antes servir um cão rafeiro aí à porta.

– O quê... o quê?

Ele, entretanto, tentava repor a gaveta no lugar. Ao ouvir estas últimas palavras, virou-se para trás, com as faces congestionadas e os olhos raiados de sangue, fitando-a em silêncio, ameaçador, por um segundo.

– Pfff! – fez ela de imediato, com desprezo.

Capaz de explodir, ele deu um safanão na gaveta, que caiu, fazendo-lhe um golpe na canela. Então, num gesto reflexo, atirou-a contra a mulher.

Uma das esquinas apanhou-a no sobrolho de raspão e a gaveta foi despenhar-se na lareira. Ela cambaleou, quase caindo da cadeira sem sentidos. A dor penetrou-a até ao fundo da alma, e ela apertou a criança com força contra o peito. Decorreram breves segundos. Com esforço, recompôs-se. O bebé chorava que metia dó. O sobrolho esquerdo, o atingido, sangrava abundantemente. Quando ela olhou para a criança, com a cabeça a estoirar de dor, algumas gotas de sangue pingaram no xaile branco. Mas o bebé, pelo menos, não fora atingido. Balançou a cabeça, para manter o equilíbrio, e o sangue escorreu-lhe para o olho.

Walter Morel mantinha-se na posição em que ficara, apoiado à mesa com uma mão e de olhar vazio. Quando viu que se conseguia equilibrar, aproximou-se dela, trôpego, e agarrou-se ao espaldar da cadeira de baloiço onde ela estava sentada, quase a fazendo cair. Depois, debruçando-se sobre a mulher, sempre a balançar enquanto falava, disse, num tom perplexo e preocupado:

– A gaveta apanhou-te?

E cambaleou outra vez, como se fosse cair para cima do bebé. A catástrofe fizera-o perder o pouco equilíbrio que ainda tinha.

– Sai daqui! – disse ela, lutando para manter a presença de espírito.

Ele, entretanto, foi acometido de soluços.

– Deixa... deixa cá ver o golpe – disse ele, entre mais soluços.

– Sai daqui para fora! – gritou ela.

– Deixa... deixa lá ver isso, cachopa.

Ela sentia o cheiro a álcool e os puxões desencontrados que ele dava à cadeira de baloiço para se equilibrar.

– Sai daqui – disse ela, empurrando-o com suavidade. Ele, em desequilíbrio, olhava-a estupefacto.

Chamando a si todas as forças, ela levantou-se, com o bebé apertado só num braço. A custo de penosa força de vontade, avançando como uma sonâmbula, dirigiu-se para a copa, onde lavou o olho com água fria. Sentia-se, porém, demasiado tonta, e, antes de desmaiar, voltou para a cadeira de baloiço, tremendo dos pés à cabeça, com o bebé sempre bem seguro, por instinto.

Morel, vexado, tinha conseguido colocar a gaveta de novo no lugar e andava de gatas, com mãos meio dormentes, a apanhar os talheres espalhados pelo chão.

O sobrolho dela ainda sangrava. Morel levantou-se e aproximou-se de pescoço esticado.

– O que foi que a gaveta te fez, cachopa? – perguntou, num tom dorido e contrito.

– Tu sabes bem o que fez – respondeu ela.

Ele inclinou-se para a frente, meio dobrado, fincando as mãos nas coxas, logo acima do joelho, e examinou o golpe. Ela desviou--se da cara dele, e dos seus fartos bigodes, afastando a dela o mais que podia. Ao olhar para ela, fria e impassível como pedra, sem abrir a boca, ele sentiu-se sucumbir de fraqueza de espírito e desespero. Já ia a recuar, acabrunhado, quando uma gota de sangue pingou do ferimento para cima do cabelo finíssimo e brilhante do bebé. Fascinado, ficou a ver a grossa gota quedar-se suspensa na nuvem cintilante, e escorrer depois pela teia capilar. Caiu outra gota. Esta ia chegar à cabeça do bebé. Ele olhava-a, fascinado, vendo-a aproximar-se. Até que, finalmente, a sua virilidade se quebrou.

– Que vai ser desta criança? – foi tudo o que a mulher lhe disse. Mas o seu tom de voz, cavo e intenso, fê-lo baixar a cabeça ainda mais. Ela disse então, para desanuviar:

– Traz-me um bocado de algodão da gaveta do meio.

Ele, obediente, afastou-se aos tropeções e voltou com um bom bocado de algodão, que chamuscou levemente chegando-o perto do lume, e lhe colocou na testa, enquanto ela continuava sentada com o bebé ao colo.

– Agora... aquele lenço lavado de levares para a mina.

De novo ele mexeu e remexeu na gaveta, para aparecer em seguida com um lenço estreito, todo vermelho. Ela pegou no lenço e, com dedos titubeantes, dobrou-o e colocou-o como uma fita à volta da cabeça.

– Deixa-me ajudar-te a amarrá-lo – disse ele humildemente.

– Eu ponho-o bem sozinha – respondeu ela.

Quando acabou, foi para cima, para o quarto, dizendo-lhe que abafasse o borralho e fechasse a porta à chave. Na manhã seguinte, Mrs. Morel disse:

– Bati com a cabeça no fecho da carvoeira quando lá entrei às escuras, à procura do ancinho, porque a vela se apagou.

Os filhos ficaram a olhar para ela com os olhitos muito abertos, muito tristes. Não disseram nada, mas os seus lábios entreabertos pareciam expressar, calados, a tragédia que pressentiam.

No dia seguinte, Walter Morel deixou-se ficar na cama até perto da hora de almoço. Não queria pensar nas cenas da véspera; se pensava em alguma coisa, o que não era provável, nisso não era com certeza. Limitava-se a ficar na cama, vexado, a sofrer como um cão. Fora a si próprio que a cena mais atingira, e doía-lhe a alma ainda mais porque nunca seria capaz de dizer à mulher uma palavra que fosse, de expressar o seu arrependimento. Tentava, por isso, furtar-se à responsabilidade.

A culpa foi dela, disse para consigo. Nada, porém, podia evitar que a consciência o punisse, corroendo-lhe o espírito como ferrugem, remorso esse a que só a bebida podia dar alívio.

Era como se lhe faltassem as forças para se levantar ou para falar, ou sequer para se mover; só conseguia ficar ali deitado, como um cão. Ainda por cima, tinha uma violenta dor de cabeça. Era sábado. Levantou-se por volta do meio-dia, foi buscar comida à despensa, comeu cabisbaixo, calçou as botas e saiu. Voltou às três da tarde, ligeiramente tocado, mas mais aliviado, e enfiou-se outra vez na cama. Saiu da cama por volta das seis horas, fez uma chávena de chá e saiu logo em seguida.

No domingo, a cena repetiu-se: na cama até ao meio-dia, no Palmerston Arms até às duas e meia, almoço e cama; quase sem dizer uma palavra. Quando Mrs. Morel subiu ao quarto, por volta das quatro horas, para vestir a roupa de domingo, ele dormia profundamente. Ela teria tido pena dele, se ele ao menos lhe dissesse: – Desculpa, mulher. – Mas não, tentava convencer-se de que a culpa tinha sido toda dela, e isso aniquilava-o. Como tal, não lhe ligou nenhuma. Nós cegos da paixão atribulada que os unia, e em que ela era a mais forte.

A família sentou-se para o chá. O domingo era o único dia da semana em que todos se reuniam à volta da mesa à hora das refeições.

– O meu pai não se levanta? – perguntou William.

– Deixa-o estar – disse a mãe.

Havia um clima de tristeza em toda a casa. As crianças, ao respirarem aquele ar envenenado, sentiam-se mal também. Desconsoladas, não sabiam o que fazer, como brincar.

Morel saía da cama assim que acordava. Sempre fora assim. Todo ele era actividade. A prostração e a inactividade dois dias seguidos paralisavam-no.

Eram quase seis horas quando desceu. Desta feita, entrou sem hesitações, com a sensibilidade, já de si periclitante, de novo embotada. Já não lhe interessava outra vez o que a família pudesse sentir ou pensar.

As chávenas de chá estavam em cima da mesa. William lia uma publicação infantil em voz alta, Annie ouvia-o com atenção e não se cansava de perguntar «Porquê?». Mas as duas crianças calaram-se mal ouviram os passos abafados do pai, só de meias calçadas, e encolheram-se quando ele entrou, apesar de geralmente os tratar bem.

Morel comeu sozinho e sem maneiras. Não precisava de ter feito tanto barulho a mastigar e a beber. Ninguém lhe dirigiu a palavra. Mal ele entrou, a reunião familiar esmoreceu, retraiu-se e remeteu-se ao silêncio. Mas ele já não ligava ao isolamento a que o votavam.

Mal acabou de tomar chá, levantou-se apressado e preparou-se para sair. Era esta predisposição, esta pressa em sair de casa, que tanto contundia Mrs. Morel. Ao ouvi-lo a lavar-se copiosamente na água fria, ao ouvir o roçar ansioso do pente de aço na borda da bacia enquanto ele molhava o cabelo, ela fechou os olhos de repulsa. Era visível em todos os seus gestos, desde o simples apertar dos atacadores, uma grosseria nos movimentos que o afastava radicalmente da contenção reservada e comedida do resto da família. Ele fugia sempre às lutas que se travavam no seu íntimo. Até mesmo no mais fundo do seu coração, ele se desculpava dizendo: Se ela não tivesse dito aquilo, nada disto acontecia. Ela estava a pedi-las, teve o que merecia.

As crianças assistiram retraídas aos preparos do pai, e foi com um suspiro de alívio que o viram sair.

E foi com prazer que ele fechou a porta atrás de si. A noite estava chuvosa. Tanto melhor, mais aconchegado lhe ia parecer o Palmerston. Pensar nisso fê-lo até acelerar o passo. Os telhados de ardósia das Bottoms luziam molhados. As estradas, já de si negras do pó de carvão, cobriam-se de lama preta. Estugou o passo. As vidraças do Palmerston estavam embaciadas. A entrada estava toda patinhada, mas lá dentro a atmosfera era quente, se bem que pestilenta, carregada do som da vozearia e do cheiro a cerveja e a tabaco.

– O que vai ser, Walter? – gritou uma voz, mal Morel entrou a porta.

– Ora, Jim, o qu’é que tá a sair, rapaz?

Os outros homens arranjaram-lhe um lugar e acolheram-no efusivamente. Morel sentia-se feliz. Passado um ou dois minutos, já o tinham conseguido alhear de toda a responsabilidade, toda a vergonha, todos os problemas, e ele estava são como um pêro, pronto para outra noite de farra.

Porém, na noite seguinte, quando estava acocorado junto ao portão do jardim, a fumar e a chamar pelos mineiros que passavam do outro lado da rua, e a ver os mineiros mais novos a jogarem futebol no regresso da mina, ainda sem se terem ido lavar, Mrs. Kirk apareceu no quintal dela.

– B’noite, ’nha senhora! – disse Morel, com a cortesia e o calor habituais.

– Está contente, não está? – disse Mrs. Kirk.

– Porquê, aconteceu alguma coisa? – exclamou Morel.

– Deixar a sua senhora bater com a cabeça daquela maneira... – disse Mrs. Kirk.

– Pois é, foi uma grande pancada – disse Morel, satisfeito por a mulher não ter contado a verdade às vizinhas.

– Não consigo perceber como é que ela fez aquilo... – continuou Mrs. Kirk.

– Pois é, eu também não – respondeu Morel.

– Fosse como fosse, vai ficar marcada prò resto da vida.

– Lá isso vai, foi uma g’anda cabeçada – disse Morel. – É... Coitada! Eu bem lhe digo pra ir mostrar a ferida ao médico, mas ela não quer.

– O seu marido está a dizer que quer que vá mostrar o olho ao médico – disse Mrs. Kirk para Mrs. Morel.

– Ah, quer? – respondeu Mrs. Morel.

Na quarta-feira seguinte, Morel estava sem um tostão e cheio de medo da mulher. Tinha-a agredido e agora detestava-a. Não sabia o que fazer naquela noite, sem um tostão para ir até ao Palmerston, onde já devia muito dinheiro para poder beber fiado. Por isso, enquanto a mulher estava no jardim com o bebé, foi à gaveta de cima do louceiro, onde ela guardava a carteira, encontrou-a e abriu-a. Lá dentro tinha meia coroa, dois meios dinheiros, e uma moeda de seis dinheiros. Tirou os seis dinheiros, voltou a pôr a carteira no lugar e saiu.

No dia seguinte, quando ela se preparava para pagar ao merceeiro e foi buscar os seis dinheiros, caiu-lhe o coração aos pés. Sentou-se e pensou: Tinha ou não tinha aqui uma moeda de seis dinheiros?... Não os gastei, pois não?... Nem os pus noutro lado?

Estava aflita. Procurou-os por toda a parte. E, à medida que procurava, cada vez mais o coração lhe dizia que o marido lhos tinha tirado. O dinheiro que tinha na carteira era todo o dinheiro que possuía, e era intolerável que ele lhos surripiasse assim. Já por duas vezes tinha feito o mesmo. Da primeira, ela não o tinha acusado, e no fim-de-semana seguinte ele tinha reposto o xelim que tirara. Tinha sido assim que ela soubera que ele lho tinha tirado. Mas da segunda vez nunca repôs o dinheiro.

Agora, porém, era de mais, pensava ela. Quando ele já tinha acabado de jantar – nesse dia viera cedo para casa – ela disse-lhe com frieza:

– Tiraste dinheiro da minha carteira ontem à noite?

– Eu?! – disse ele, olhando para ela ofendido. – Na, num fui eu! Nem sequer vi a tua carteira.

Mas ela percebeu que era mentira.

– Para que estás com isso? Sabes bem que foste tu – disse ela com toda a serenidade.

– Já disse que num fui eu – berrou ele. – Lá tás tu a embirrar comigo outra vez! Já chega, tou farto!

– Com que então surripias-me seis dinheiros da carteira enquanto eu ando a apanhar a roupa.

– Vais pagar por isto – disse ele, empurrando a cadeira para trás, desesperado. Lavou-se com grande estardalhaço e subiu as escadas resoluto. Daí a pouco, voltou para baixo já vestido e com uma grande trouxa amarrada num enorme lenço azul.

– E agora – disse ele – hás-de voltar a ver-me quando calhar.

– O que há-de ser antes de eu o desejar – retorquiu ela, e ele abalou de casa de trouxa na mão. Mrs. Morel sentou-se. Tremia ligeiramente, mas o seu coração transbordava de desprezo. Que iria ela fazer, se ele arranjasse trabalho numa outra mina e fosse viver com outra mulher? Mas ela conhecia-o bem de mais... ele não seria capaz disso. Tinha a certeza. Todavia, sentia o coração apertado.

– Onde está o meu papá? – perguntou William, ao chegar da escola.

– Ele disse que se ia embora – respondeu a mãe.

– Para onde?

– Sei lá. Fez uma trouxa de roupa com o lenço azul e diz que não volta.

– E que vamos nós fazer? – gritou o garoto.

– Não te preocupes. Ele não vai longe.

– E se ele não voltar? – choramingou Annie.

Ela e William foram chorar para o sofá. Mrs. Morel sentou-se a rir.

– Sempre fazem um belo par de choramingas! – exclamou ela. – Vão voltar a vê-lo antes da noite acabar.

Mas as crianças estavam inconsoláveis. Caiu a noite. A fadiga aumentou ainda mais a ansiedade de Mrs. Morel. Uma parte dela dizia: seria um alívio, se não o voltasse a ver; uma outra receava pelo sustento das crianças; e o seu íntimo dizia-lhe que não estava ainda preparada para o deixar partir. Lá no fundo, sabia bem que ele não podia ir-se embora.

Quando se dirigia para a carvoeira, ao fundo do quintal, sentiu qualquer coisa atrás da porta e foi ver o que seria. E lá estava ela, na escuridão, a enorme trouxa azul. Sentou-se num monte de carvão, diante da trouxa, e desatou a rir. Não continha o riso sempre que olhava para a trouxa, gorda e insultuosa, escondida naquele recanto escuro, com as pontas dos nós a adejarem como orelhas descomunais e enjeitadas.

Voltou para casa com o carvão. Annie e William tinham recomeçado a chorar por ela ter saído.

– Mas que bebés chorões – disse ela. – Vão à carvoeira e olhem para trás da porta, e então logo verão se ele foi para muito longe.

– O quê? – exclamou William, pateticamente.

– Vai lá ver – disse a mãe.

Ele esgueirou-se de imediato, seguido por Annie, que corria ligeira, fungando para conter as lágrimas. Não tardou, estava de volta, abraçado à trouxa.

– Ele agora já não se vai embora, pois não, mãe? – disse, a chorar.

– Não... Eu sabia que não ia... O meu medo era só que ele empenhasse alguma coisa. Mas vai lá pô-la outra vez... onde a encontraste.

– Mas...! – hesitou William. – O que é que tem dentro?

– Vai lá pô-la, já disse! – insistiu a mãe. – E não faças perguntas.

O garoto levou a enorme trouxa de novo para o quintal, e largou-a atrás da porta da carvoeira. Depois, já mais calmas, mas não completamente, as crianças foram deitar-se.

Mrs. Morel ficou à espera. O marido não tinha dinheiro, sabia-o bem, e, por isso, se quisesse dormir fora, tinha de ficar a dever. Estava muito cansada dele, cansada até mais não. E ele nem coragem tinha tido para levar a trouxa para mais longe que o fundo do quintal. Estava ela assim a meditar, por volta das nove horas, quando ele abriu a porta e entrou de mansinho, mas mal-encarado, sem lhe dirigir a palavra. Tirou o casaco e deslizou para o cadeirão de braços, onde começou a descalçar as botas.

– É melhor ires buscar a trouxa antes de tirares as botas – disse ela, calmamente.

– Podes dar graças por eu ter voltado para casa esta noite – disse ele, erguendo os olhos lá de baixo, de onde tinha a cabeça, carrancudo e melodramático.

– Essa agora, então para onde é que tu ias? Pois se nem a trouxa levaste lá para fora – disse ela.

A figura dele era tão triste que ela nem se conseguia zangar. Ele continuou a descalçar as botas e a preparar-se para se ir deitar.

– Não sei o que meteste no teu lenço azul – disse ela. – Mas se o deixares lá, as crianças amanhã de manhã vão buscá-lo.

Ouvindo isto, ele levantou-se e saiu, voltando de imediato. Atravessou a cozinha de cara fechada, e foi a correr para cima. Mrs. Morel não pôde deixar de rir interiormente, quando o viu esgueirar-se pela porta do corredor e pela escada acima, de trouxa debaixo do braço. Tinha, porém, o coração amargurado, pois já o tinha amado muito.


III

A REJEIÇÃO DE MOREL E A SUA SUBSTITUIÇÃO POR WILLIAM

DURANTE toda a semana seguinte, Morel andou insuportável. Como todos os mineiros, tinha a mania das mezinhas, que, por estranho que pareça, era ele próprio que pagava do seu bolso.

– Tens de m’ir comprar o elixir – disse ele. – É espantoso como nunca há nem uma gota cá em casa.

Mrs. Morel lá foi comprar o elixir de vitríolo, o seu remédio favorito, e ele apressou-se a fazer uma cafeteira de chá de absíntio. Tinha pendurados no sótão, a secar, grandes molhos de ervas aromáticas: absíntio, arruda, marroio, flores de sabugueiro, apiol, alteia, hissopo, dente-de-leão e piteira. Havia sempre uma cafeteira com uma infusão qualquer em cima do fogão, que ele bebia em grandes quantidades.

– Excelente! – disse ele, dando estalos com a língua, a saborear o absíntio. – Excelente! – E exortou as crianças a provarem.

– É bem melhor que esses chás que vocês bebem ou essas mistelas de cacau – exclamou. Mas as crianças não se mostraram tentadas a experimentar.

Desta vez, porém, nem as pílulas nem o vitríolo nem as ervas conseguiam acabar com as «xaquecas da cabeça». Era uma inflamação no cérebro. Nunca mais se tinha sentido bem desde aquele dia em que fora com Jerry a Nottingham e adormecera no chão. Desde aí, não fazia mais nada senão beber e ralhar com tudo e todos. Mas agora sentia-se seriamente doente, e Mrs. Morel tinha mais um para cuidar. Ainda por cima, era dos piores doentes que se possa imaginar. Mas, apesar de tudo, e independentemente do facto de ser ele o ganha-pão da família, ela nunca desejou que ele morresse. Uma parte dela ainda o queria para si.

As vizinhas eram muito boas para ela. De vez em quando, umas davam de almoçar às crianças; outras limpavam-lhe a casa, outra ficava-lhe com o bebé por um dia. Mas, mesmo assim, era extenuante. Não era todos os dias que as vizinhas vinham dar uma ajuda, e ela tinha de tratar do marido e do bebé, tratar da casa e cozinhar, e atender a tudo o mais. Andava estafada, mas fazia o que tinha de ser feito.

O dinheiro chegava à justa. Recebia dezassete xelins por semana de instituições de caridade, e, todas as sextas-feiras, Barker e os outros mineiros punham de lado uma parte dos proventos para a mulher de Morel. As vizinhas levavam-lhe canja, ovos e outros paparicos, dos que se dão aos doentes. Se não a tivessem ajudado com tanta generosidade nessa altura, Mrs. Morel nunca teria conseguido fazer frente à situação sem contrair dívidas que lhe seriam fatais.

As semanas foram passando, e Morel, contrariamente ao que seria de esperar, ia melhorando. Era de constituição forte e, com o tratamento, depressa entrou em convalescença. Não tardou muito, já andava a traquinar no andar de baixo. A mulher tinha-o estragado com mimos durante a doença e era frequente vê-lo levar as mãos à cabeça, assumir um rictus de dor, quase fazendo beicinho, e fingir dores que não sentia. Mas ela não se deixava enganar. A princípio, limitava-se a sorrir interiormente. Mas depois começou a metê-lo na ordem.

– Credo, homem, não te ponhas para aí a choramingar.

Isto magoava-o ligeiramente, mas não o impedia de continuar a fingir-se doente.

– Não te ponhas com fingimentos – dizia a mulher sem rodeios.

Ele indignava-se e praguejava entredentes, como um rapazola. Mas não tinha outro remédio senão voltar à normalidade e parar com as lamúrias.

Apesar de tudo, a paz reinou em casa por algum tempo. Mrs. Morel mostrava-se mais tolerante com ele, e ele, dependendo dela quase como uma criança, sentia-se feliz. O que nenhum deles sabia é que ela estava mais tolerante porque o amava menos. Até àquela altura, e apesar dos pesares, ele tinha sido o seu marido e o seu homem. Ela sempre sentira mais ou menos que o mal que ele fazia a si mesmo, fazia-o também a ela. Dependia dele para viver. Houve muitos, muitos estádios de arrefecimento do seu amor por ele, mas sempre de arrefecimento.

Agora, com o nascimento do terceiro filho, o seu ser já não se sentia empurrado para ele sem remédio, era antes como uma maré que quase não subia e que ficava longe dele. Agora, quase nunca o desejava. Vendo-se mais liberta dele, sentindo cada vez mais que ele não era parte dela, mas tão-só das circunstâncias que a rodeavam, já não lhe interessava o que quer que ele fizesse, podia deixá-lo em paz.

O ano que se seguiu trouxe a Morel a pausa e a ansiedade que marcam o Outono na vida de um homem. A mulher rejeitava-o, contrariada, mas inexoravelmente; rejeitava-o e substituía-o pelos filhos na vida e no amor. Daí em diante ele não era mais que um peso morto. E, como tantos homens fazem, sujeitava-se, cedendo o seu lugar aos filhos.

Durante a convalescença, quando já nada havia entre eles, ainda fizeram um esforço para reatar a relação dos primeiros meses de casados. Ele passava as noites em casa e, quando as crianças já estavam deitadas e ela se sentava a costurar – costurava tudo à mão, as camisas dele e os fatos das crianças – ele punha-se a ler o jornal em voz alta, soletrando as palavras devagar, como um jogador a atirar a malha. Ela até o apressava, acabando muitas vezes as frases primeiro, o que ele aceitava com humildade.

Os silêncios que se instalavam entre eles eram curiosos. Era o clic-clic leve e rápido da agulha, o pa-af-f cavo dos lábios dele expelindo baforadas de fumo, o crepitar da lareira e o fervilhar sibilante da grelha quando ele cuspia para o lume. Os pensamentos dela voltavam-se então para William, que estava já um rapagão. Era o primeiro da classe, e o mestre dizia que era o mais inteligente da escola. E ela via-o já homem, cheio de vigor e juventude, e olhava de novo o mundo em todo o seu esplendor.

E Morel, ali sentado sozinho, sem nada em que pensar, sentia-se vagamente desconfortável. A sua alma procurava ir ao encontro dela, às cegas como de costume, e descobria que ela já lá não estava. Sentia então uma espécie de vazio, um vácuo dentro da alma. Ficava perturbado e inquieto. Depressa o ambiente se lhe tornou insuportável, e à mulher também. Era como se o peito se lhes oprimisse com falta de ar quando ficavam sozinhos por muito tempo. Então, ele não tardava a ir deitar-se e ela deixava-se ficar, a saborear a solidão, enquanto ia trabalhando, sonhando, vivendo.

Assim, tendo de procurar uma atmosfera onde pudesse respirar, incapaz de pactuar com a sua própria aniquilação, Morel voltou-se de novo para a taberna e para o seu amigo Jerry, e a mulher, lá bem no fundo, sentiu até um certo alívio.

A partida estava definitivamente perdida para ele. Embora, naturalmente, tentasse voltar ao que era antes, e ainda tivesse assomos de prepotência, autoridade e orgulho, tais momentos eram apenas um eco do passado. Paul, o bebé, ao qual se sentia estranhamente ligado, não deixava que ele lhe tocasse. Aos oito meses, o menino teve uma infecção num ouvido e era um dó vê-lo. Morel bem queria pegar-lhe ao colo, para o consolar. E que bem lhe teria feito ser capaz de tratar do filho. Mas a criança não deixava. Retesava os braços e, ele que era quase sempre um bebé mansinho, desatava a gritar e a esquivar-se às mãos do pai. E Morel, ao vê-lo crispar os punhos pequeninos, virar a carita para o lado e levantar para a mãe uns olhos azuis apavorados, dizia com impaciente desespero:

– Anda, vem pegar nele!

– É o teu bigode que o assusta – dizia ela, pegando no menino e apertando-o contra o peito. Mas sentia o coração amargurado, e Morel tinha medo da criança.

Entretanto, um outro bebé vinha a caminho, fruto destas tréguas de ternura entre o casal desavindo. Paul tinha dezassete meses quando o irmão nasceu. Era na altura uma criança pálida e gorducha, sossegada, de olhos azuis carregados e o seu já tão característico franzir de testa. Este bebé também era um rapaz, loiro e magrinho. Mrs. Morel ficou aborrecida quando soube que estava grávida – por razões económicas e por já não amar o marido; não pela criança.

Chamaram-lhe Arthur. Era muito bonito, com fartos caracóis doirados, e gostou do pai desde o início. Mrs. Morel estava satisfeita por este filho gostar tanto do pai. Mal ouvia os passos do mineiro, o bebé estendia os braços e punha-se a pairar. E, se Morel vinha bem-disposto, respondia-lhe de imediato, na sua voz cálida e melodiosa:

– Então, meu amor... já vou, já vou.

E assim que tirava o casacão, Mrs. Morel punha um avental à volta do menino e entregava-o ao pai.

– Mas que lindo que ele ficou! – exclamava ela às vezes, voltando a pegar nele, todo enfarruscado dos beijos e das carícias do pai. E Morel ria com gosto.

– Temos aqui um mineirinho, que Deus o proteja! – exclamava ele. E eram estes os momentos de felicidade da vida dela, os momentos em que os filhos metiam o pai no coração.

Entretanto, William estava cada vez mais crescido, mais forte e activo, enquanto Paul, sempre sensível e calado, se tornava cada vez mais magro e andava sempre atrás da mãe como se fosse a sua sombra. Geralmente activo e interessado, era acometido por vezes de acessos de depressão, e a mãe ia dar com ele, com três ou quatro anos, a chorar num canto do sofá.

– O que tens? – perguntava ela, mas não obtinha resposta. – O que tens? – insistia, já zangada.

– Não sei – respondia ele entre soluços.

Ela tentava conversar com ele, distraí-lo, mas em vão, o que a deixava desesperada. Então, o pai, sempre impaciente, saltava da cadeira e berrava:

– Se ele não se cala, vai apanhar até se calar.

– Não senhor, era o que faltava – dizia a mãe, friamente. Depois, levava o menino para o jardim, sentava-o na cadeirinha dele e dizia:

– Agora chora pr’aí, infeliz!

E então, talvez uma borboleta pousada nas folhas do ruibarbo lhe atraísse a atenção; se não, acabava por chorar até adormecer. Estes ataques não lhe davam muitas vezes, mas Mrs. Morel andava preocupada, e o tratamento que dava a Paul era diferente do que dava aos outros filhos.

Uma manhã, ao ouvir a cantilena de Ó-Le-v’dura, Mrs. Morel saiu a correr de caneca na mão. O Ó-Le-v’dura ainda não tinha chegado ao portão, e ela teve de esperar, ouvindo os excertos de hinos que o homem cantava enquanto mergulhava a lata nos barris e enchia os recipientes que as mulheres lhe estendiam. Era um homem alegre, com uma cara opada e muito cómica, orlada de suíças brancas. Na carroça decrépita, viajavam dois barris de levedura de cerveja cobertos com uma serapilheira molhada. À medida que avançava, ia cantarolando excertos de hinos, pois tinha-se convertido há três meses. O seu pregão, possante, semi-herético, invadia o beco:


«Estaremos juntos para além do rio,

Onde a corrente já não é dura... Ó-Le-v’dura!»


Tinha também o hábito de chalacear com as mulheres enquanto lhes aviava a levedura. De repente, Mrs. Morel ouviu uma voz a chamá-la. Era a magricela da Mrs. Anthony, com o seu vestido de veludo vermelho.

– Venha cá, Mrs. Morel, quero falar-lhe por causa do seu Willie.

– Ah, sim? – respondeu Mrs. Morel.

Mrs. Anthony, sem se aproximar, gritou-lhe do outro lado do beco:

– Acha que ele tinha o direito de rasgar a gola do nosso Alfie atrás das costas?

– O quê, ele fez isso? – gritou Mrs. Morel do lado de cá. Nenhuma das mulheres queria dar o braço a torcer e aproximar-se da outra.

– Fez, sim senhora... e, se não me acredita, vou buscá-la para lha mostrar.

– Não, isso não é preciso – disse Mrs. Morel. – Mas como é que sabe que foi o nosso Willie?

– O quê? Julga que o nosso Alfie não disse a verdade? Olhe que nas Bottoms não há menino mais verdadeiro. Mas, se quiser, pergunte à Annie Bowers e a mais umas quantas. Ele agarrou na gola do meu miúdo e arrancou-lha inteirinha. E eu num tenho dinheiro pr’andar a gastar em golas novas, quando os outros lhas rasgam...

– Eu sei que não tem – disse Mrs. Morel.

– E o qu’eu acho – disse Mrs. Anthony, afogueada – é qu’ele devia levar uma boa sova, isso é qu’eu acho.

– «Junto ao cruzeiro, junto ao cruzeiro, onde encontrei...» Ó-Le-v’dura!... Ó-Le-v’dura!... Quanto quer, patroa?

– Meia medida chega – disse Mrs. Morel, estendendo-lhe a caneca.

– Meia medida nesta caneca, ora aqui tem, fresquinha a pingar, com a bênção do Senhor – respondeu o «Ó-Le-ved’ura». Ele e a carroça interpunham-se entre as duas mulheres.

– «Olhai os lírios a crescer...» Sim, Mrs. Anthony... meia medida. Todas meia medida! Não faz mal. «Eles não labutam, nem em casa, nem ao fuso. Mas Salimão também não...». Obrigadinho...

E lá seguiu, sem produzir o mínimo efeito nas mulheres. Mrs. Anthony estava indignadíssima.

– Um rapaz que s’agarra a outro e lhe rasga a roupa pelas costas... – não se cansava de repetir.

– O seu Alfred é da idade do nosso William – disse Mrs. Morel.

– Lá isso é, mas isso num dá o direito ao seu filho de deitar a mão à gola do meu e lha rasgar toda.

– Bem, sabe – disse Mrs. Morel –, eu não bato nos meus filhos, e mesmo que batesse, tinha de ouvir primeiro a versão deles.

– Portavam-se bem melhor, se apanhassem um bom correctivo quando rasgam a gola de um colega... de propósito... – opinou Mrs. Anthony.

– Tenho a certeza de que não foi de propósito – disse Mrs. Morel.

– Está a chamar-me mentirosa? – indignou-se Mrs. Anthony.

Mrs. Morel voltou para o quintal e fechou o portão. A mão que segurava a caneca com a levedura não parava de tremer.

– Olhe qu’eu vou queixar-me ao seu marido – gritou Mrs. Anthony, quando ela se afastava.

Ao almoço, quando William já tinha terminado de comer e estava morto por sair outra vez – tinha então onze anos – a mãe disse-lhe:

– Porque é que rasgaste a gola do Alfred Anthony?

– E quando é que eu lha rasguei?

– Isso não sei, mas a mãe dele diz que rasgaste.

– Ah... isso foi ontem... mas já estava rasgada.

– Mas tu ainda a rasgaste mais.

– Bom, eu tinha uma castanha que já tinha caçado dezassete... e vai o Alfy Ant’ny e diz:


«O Adão, a Eva e o Belisca-me

Foram tomar banho ao rio.

Adão e Eva afogaram-se.

Qual dos três é que fugiu...?»


E vou eu e digo «Ora, o Belisco-te», e zás, dei-lh’um beliscão e ele ficou furioso e palmou-m’a castanha e fugiu. E eu larguei a correr ’trás dele e quando lhe deitei a mão, ele tentou escapar-se e a gola rasgou-se. Mas eu tirei-lh’a minha castanha...

E, dizendo isto, tirou do bolso uma castanha-da-índia, muito preta, pendurada de um cordel. Ora, esta velha castanha já tinha «acastanhado» – atingido e esmagado – outras dezassete castanhas semelhantes penduradas como ela de cordéis, pelo que o rapaz tinha grande orgulho na sua veterana.

– Bem – disse Mrs. Morel –, tu sabes que não tens o direito de lhe rasgares a gola.

– Ora, mãe! – respondeu ele. – Não foi de propósito... e, além disso, era uma gola velha de borracha, já meio rasgada.

– Da próxima vez – disse a mãe – tens de ter mais cuidado. Eu também não ia gostar que me aparecesses em casa com a gola rasgada.

– Não m’interessa, mãe, eu não fiz de propósito. O rapaz estava muito sentido com a reprimenda.

– Pois não... mas tens de ter mais cuidado.

William tratou de se escapulir, todo contente por se ver liberto, e Mrs. Morel, que detestava conflitos com as vizinhas, pensou que, se fosse dar uma explicação a Mrs. Anthony, o problema ficaria resolvido.

Nessa noite, porém, Morel chegou da mina muito mal-humorado. Pôs-se no meio da cozinha a olhar em volta, ameaçador, durante uns minutos, mas sem dizer nada. Depois começou.

– Onde está esse Willie dum raio?

– Para que queres falar com ele? – inquiriu Mrs. Morel, já a adivinhar.

– Quando eu o encontrar, ele logo saberá – disse Morel, batendo violentamente com o cantil em cima do louceiro.

– Já estou a ver que a Mrs. Anthony te apanhou e te encheu os ouvidos por causa do que aconteceu à gola do filho – disse Mrs. Morel, com acentuada sobranceria.

– Não interessa quem m’apanhou – disse Morel. – Mas quand’eu o apanhar, os ossos dele vão estalar.

– É uma pena que estejas tão pronto a tomar o partido da primeira megera que te vem envenenar com contos e ditos sobre os teus próprios filhos.

– Ele vai ver como elas mordem! – disse Morel. – Num m’interessa de quem ele é filho, num pode é andar por aí a arrancar e a rasgar golas conforme lhe dá na gana.

– A arrancar e a rasgar! – repetiu Mrs. Morel – Ele ia a correr atrás do Alfy para lhe tirar a castanha que ele lhe tinha roubado, e agarrou-lhe a gola por acaso... porque o outro se tentou esquivar... como é bem dos Anthonys.

– Eu sei... – berrou Morel, ameaçador.

– E devias saber, antes de to dizerem – retorquiu Mrs. Morel, mordaz.

– Num te preocupes – vociferou Morel. – Sei muito bem o que hei-de fazer.

– Pois não parece – disse Mrs. Morel. – Já que foi uma intriguista qualquer que te foi industriar para bateres no teu filho.

– Eu sei – repetiu Morel.

E mais não disse, tendo-se sentado a curtir o mau génio. Nisto, William entrou a correr pela cozinha dentro, e disse:

– Mãe, pode dar-me o meu chá?

– Vou dar-te ’inda mais do qu’isso – berrou Morel.

– Fala baixo, homem – disse Mrs. Morel. – Não faças tristes figuras.

– Ele é que vai fazer triste figura quando eu acabar com ele! – berrou Morel, saltando da cadeira e olhando irado para o filho. William, que era desenvolvido para a idade, mas muito sensível, ficou lívido e fitou o pai, aterrorizado.

– Foge daqui! – ordenou Mrs. Morel.

Mas William estava incapaz de se mexer. De repente, Morel cerrou o punho e baixou-se.

– Eu digo-lhe quem é que foge! – berrou, tresloucado.

– O quê! – gritou Mrs. Morel, ofegante de raiva. – Tu não lhe vais pôr um dedo em cima a mando dela, isso é que não vais.

– Não vou? – berrou Morel – Ai não vou?

E, soltando faíscas do olhar, avançou para o rapaz. Mrs. Morel, num salto, meteu-se entre ambos brandindo o punho.

– Não te atrevas! – gritou ela.

– O quê! – berrou ele, momentaneamente desnorteado. – O quê!

Ela rodopiou e agarrou-se ao filho.

– Foge lá para fora! – ordenou ela, desvairada. O rapaz, como se hipnotizado, voltou-se subitamente e fugiu. Morel correu para a porta, mas era tarde de mais. Voltou para dentro, lívido de raiva por baixo do pó preto da mina. Mas agora era a mulher que estava furiosa.

– Experimenta só! – disse ela, alto e bem timbrado. – Experimenta tocares com um dedo nessa criança, meu menino, e vais arrepender-te para o resto da tua vida.

Ele, com medo dela, sentou-se a vociferar, dando largas à sua fúria.

– Não, já o fizeste noutras alturas, mas agora acabou-se! – recomeçou ela, de repente, após uma pausa. – Não me esqueço daquela vez em que lhe deste um pontapé e o encheste de nódoas negras, só por causa da raiva que aquela velha, a Tia Sharp, tinha dele... mas nunca mais vais fazer isso – disse ela, ofegante, quase sem fôlego, de tanta cólera.

– Não vou? Ai não vou? – repetiu Morel.

– Seu brutamontes... és um bruto e um cobarde! – gritou ela. – Não tens vergonha de te deixares dominar por uma vadia qualquer, como essa Anthony, quando ela te vem dizer para bateres nos teus filhos? É ela que decide por ti quando hás-de vir para casa bater nas crianças?... E tu obedeces, meu cobarde, meu grande bruto!... Não, enquanto eu aqui estiver, isso não vai acontecer!

– Vais ver o que acontece enquanto aqui estás – disse Morel ameaçadoramente.

– Nunca mais, meu menino, nunca mais toques com um dedo nos meus filhos.

– Ah-Ah-Ah! – E ele riu-se, trocista.

Depois saiu e embebedou-se, e, quando chegou o fim-de-semana, não deu a William a moeda do costume.

– Também não te faz falta – disse Mrs. Morel para o filho.

 

 


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