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Quando as crianças já tinham idade suficiente para ficarem sozinhas em casa, Mrs. Morel entrou para o Grémio Feminino. Tratava-se de um pequeno clube de mulheres ligado à Cooperativa de Revenda, que reunia às segundas-feiras à noite numa sala muito comprida por cima da mercearia Bestwood Co-op. Aí, as mulheres discutiam os benefícios de uma política de cooperação e outras questões de importância social. Por vezes, Mrs. Morel tinha de apresentar uma comunicação, e as crianças estranhavam ver a mãe, que passara a vida a fazer a lida da casa, sentar-se agora a escrever, com a rapidez que a caracterizava, a pensar, a consultar livros, e a continuar a escrever. Nessas ocasiões, sentiam por ela o mais profundo respeito.
Mas gostavam do Grémio. Era a única concessão que faziam à mãe de boa vontade – por um lado, por ser uma coisa de que ela tanto gostava, e, por outro, pelas guloseimas que depois lhes trazia. Alguns maridos hostis, que achavam que as mulheres estavam a ficar independentes de mais, chamavam ao Grémio o «clube dos traques-tagarelas», ou seja, o clube da má-língua. A verdade é que, graças ao Grémio, as mulheres podiam olhar para as suas casas, para as condições em que viviam e apontarem o que estava mal. E, assim, os mineiros começavam a descobrir que as suas mulheres lutavam por um novo padrão de vida, o que era para eles bastante desconcertante. Além disso, Mrs. Morel voltava sempre às segundas-feiras à noite carregada de novidades, e as outras crianças gostavam que William estivesse em casa quando a mãe chegava, porque ela lhe contava muitas coisas.
Mais tarde, quando o rapaz tinha treze anos, a mãe arranjou-lhe emprego nos escritórios da Cooperativa. Nessa altura, ele era já um rapaz muito inteligente e franco, de feições duras e os olhos azuis penetrantes de um verdadeiro viking.
– Pra que queres fazer dele um mangas-de-alpaca, num me dizes? – disse Morel. – Tudo o qu’ele vai fazer é gastar as calças no rabo e não ganhar um tostão. Quant’é qu’ele vai ganhar de início?
– O que ele vai ganhar não interessa – disse Mrs. Morel.
– Mas devia interessar! Põe-no mas é na mina ao pé de mim, e ele faz sem custo dez xelins por semana, logo no começo. Mas seis xelins para dar cabo do traseiro sentado num banco é melhor que dez na mina ao pé de mim, eu sei.
– Ele não vai para a mina – disse Mrs. Morel – e não se fala mais nisso.
– Pra mim serviu, mas pra ele não.
– Se a tua mãe te mandou para as minas aos doze anos, isso não quer dizer que eu faça o mesmo ao meu filho.
– Doze anos!... Muito antes disso!
– Fosse quando fosse – disse Mrs. Morel.
Ela tinha um grande orgulho no filho. Ele frequentava a escola nocturna, e aprendeu estenografia, e aos dezasseis anos, já era o melhor estenógrafo e o melhor guarda-livros do escritório, a par de um outro colega. Depois, começou a dar aulas nas escolas nocturnas. Mas era tão vivaço que só o seu bom feitio e o seu tamanho o protegiam.
Todas as coisas que os homens fazem – as coisas decentes – William também fazia. Corria tanto como o vento. Aos doze anos, ganhou o primeiro prémio numa corrida: um tinteiro de vidro, em forma de bigorna, que marcava honrosa presença no louceiro, para orgulho de Mrs. Morel. Fora para ela que ele correra. Voou para casa com a bigorna, ofegante, dizendo:
– Olha, mãe!
Esse foi o primeiro tributo que ele lhe prestou, e ela recebeu-o como uma rainha.
– Que bonito! – exclamou.
Quando iam brincar para perto da cerca da encosta, as crianças das Bottoms costumavam gritar quando William se aproximava:
– Salta, William... Salta!
E ele saltava a sebe, com cerca de cinco pés de altura, sem qualquer dificuldade.
– Caramba! – gritavam os mais pequenos.
Também atirava pedras mais longe do que qualquer outro rapaz de Bestwood. Amigos e rivais, todos tinham inveja das suas façanhas e torciam para que as pedras dele não fossem as que chegavam mais longe, passando para lá da cerca. Mas, à cautela, William gravava-lhes displicentemente as iniciais WM.
Aos dezassete anos, ganhou uma corrida de bicicletas em Ilkeston. Morel, num dos seus alardes de fanfarronice, tinha desafiado todos os campeões que estivessem na taberna a correrem contra o filho, e William sentiu que tinha de honrar as gabarolices do pai. Mas Mrs. Morel não aprovou a ideia.
– Vem ver-me limpar-lhes o sarampo a todos, mãe! – gritou ele, batendo na barriga da perna. Mas Mrs. Morel passou o dia ansiosa e infeliz. Ele podia morrer ou magoar-se, e, além disso, ela tinha a certeza de que o seu coração não tinha resistência para corridas de bicicleta. Não obstante, ele voltou para casa nessa noite trazendo uma pequena secretária de carvalho.
– Aqui tem, mãe! – disse ele. – Não lhe disse que lha trazia?
Mas ela obrigou-o a prometer-lhe que não entrava em mais nenhuma corrida.
William tinha alunos a quem dava aulas de estenografia em casa. Mas era tão impulsivo e irascível, que só os alunos mais aplicados e com mais vocação o aturavam. Sentava-se com eles à mesa da cozinha. A cozinha estava aquecida, iluminada e em silêncio absoluto. As almofadas de chintz vermelho do sofá eram fofas, a toalha vermelha sobre a mesa parecia acolhedora. Geralmente, o aluno, de treze ou catorze anos, sentava-se muito nervoso, enquanto William, rápido e enérgico, lhe corrigia os trabalhos de casa. O professor ia soltando desabafos de impaciência e intolerância. Nisto, voltava-se para o aluno e gritava:
– Meu grande cabeça de burro, fizeste bem a última frase, e agora...
O pobre do aluno assoava-se nervosamente ao lenço vermelho e olhava de soslaio para William. Às vezes, Mrs. Morel estava sentada a coser na cadeira de baloiço. Depois, começava a lição propriamente dita. William, evidenciando cada vez menos paciência, não tardava a explodir:
– Seu parvalhão, seu cabeça de burro, seu idiota chapado, o que é que eu te disse mais de mil vezes...?
– William! William! – exclamava a mãe. – Que vergonha! Não sei como ainda te aturam... Não lhe ligues, Robert, o mal está na falta de paciência dele, não em ti. Tu até és muito rápido. – E Robert olhava para Mrs. Morel envergonhado e agradecido, enquanto William continuava:
– Vá lá... e por amor de Deus não te faças de estúpido. Olha...!
Por fim, Mrs. Morel decidiu não ficar mais em casa quando ele dava as lições, para poupar aos garotos o vexame.
William tinha de entrar no escritório às oito da manhã, e a mãe levantava-se por isso às sete, para lhe preparar as coisas. Ele chegava geralmente atrasado, ou mesmo em cima da hora. Mas não havia nada que o fizesse andar mais depressa. Adorava tomar o pequeno-almoço a sós com a mãe. Quando estava bem-disposto, tagarelava e brincava com ela.
Uma manhã, pediu-lhe uma camisa lavada. Ele estava de pé, em frente à lareira, quando ela lha entregou, sentando-se em seguida a tomar o chá. Ele ergueu no ar repetidamente a camisa de flanela remendada por todos os lados.
– Mãe, o que é isto? – perguntou.
– Uma camisa – respondeu ela, desatando a rir.
– Uma rosa não cheiraria melhor...! – citou ele, de memória, com espirituosidade.
– Pois é... tu dás cabo de tudo... e eu já não tinha mais tecido igual... mas também quem vai notar?
– Tem a certeza de que não se vê?... Cá para mim, vê-se tudo à transparência – disse ele, ainda a torcer o nariz para a camisa.
– Veste-a lá... Olha as horas! – disse ela, sem poder conter o riso, da cadeira de baloiço onde estava sentada a beber o chá. E ele, de pé diante dela, um rapagão alto e espadaúdo, com a camisa de remendos na mão, dizia:
– Oh, minha camisinha de pobre! – disse ele, falando com a dita. – Acho que ninguém te vai cobiçar... um, dois, três... qual destes é o tecido original, mãe?
– Vá, veste a camisa! – ordenou a mãe.
– Imagine que eu tenho um acidente, e vou parar ao hospital, e quando volto a mim vejo quatro enfermeiras a olharem-me para a fralda da camisa... – resmungou ele.
– Só podem estar a dizer que andas com a roupa muito bem tratada – disse a mãe a rir.
Ele vestiu a camisa, e disse ainda, tapando a boca com a mão:
– Nem o rei Salomão em toda a sua glória...
– Não – disse a mãe, continuando a rir –, não creio que houvesse ninguém capaz de dar tantos pontos, nem por Salomão...
William deitou um olho à camisa por cima do ombro, e disse, num lamento:
– És a história da minha desgraça!
Mrs. Morel riu às gargalhadas. A custo, recompôs-se o suficiente para dar uma palmada na mesa e exclamar:
– Toca a vestir, menino! Já é um quarto para as oito.
– Não está à espera que eu tenha pressa de me vestir, para andar por aí todo remendado, pois não, mãe?
– És um tagarela sem juízo! – exclamou ela. – Ainda cais da bicicleta, partes a cabeça...
– Tem razão, se eu morresse ia ter vergonha da camisa que levava – atalhou ele.
Ela saltou da cadeira, pegou na escova e deu-lhe com ela ao de leve na cabeça.
– Vê lá se escovas esse cabelo – ordenou. Separaram-se, reconfortados: ele aquecia-lhe a alma a ela, e ela a ele.
Depois, ele começou a tornar-se ambicioso. Dava todo o dinheiro que ganhava à mãe. Quando recebia catorze xelins, ela deixava-o ficar com dois para os seus gastos, mas ele, como não bebia, começou a achar que estava rico, e só se dava com a burguesia de Bestwood. A pessoa mais importante da cidade era o pastor. Seguiam-se-lhe o gerente do banco, os médicos, depois os comerciantes, e, por fim, as hostes de mineiros. William começou a andar com os filhos do farmacêutico, do mestre-escola e de alguns comerciantes. Ia jogar bilhar para o Mechanics’Hall, e frequentava também os bailes, apesar de a mãe ser contra. Desfrutava de tudo o que Bestwood tinha de bom para lhe oferecer – dos bailaricos de Church Street, a seis dinheiros o ingresso, às provas desportivas e ao bilhar.
– A valsa! – exclamou o pai. – É verdade que tu sabes valsar? Quando eu era mais ágil, também sabia dar as minhas voltinhas.
– Será que sabia? – disse William, meio desconfiado.
– Sabia, sim senhor! – protestou Morel, ferido no seu amor-próprio.
– Então, vá lá... mostre-nos do que é capaz.
Mas Morel tinha vergonha de dançar diante dos filhos.
– Não, isso eu num faço! Estares a desafiar-me é uma parvoíce sem pés nem cabeça, e num vejo o qu’é que ganhas com isso.
– Mas vê que sigo as suas pisadas – retorquiu William.
– Atão inda és mais parvo do qu’eu julgava, s’alguma vez fizeres isso – disse o pai.
– Pronto, não faz mal, se está perro de mais para dançar... – disse o filho.
– Há vinte anos qu’eu num danço – gritou Morel, já alterado.
– E aposto que lhe custou a parar.
Mas William não desistiu. E as raparigas não o largavam.
– ’Póstolo – disse ele ao irmão, depois de um baile, quando já estavam os dois deitados. – ’Póstolo... uma rapariga de cetim branco... tás’ouvir, cetim branco até aos sapatos... vive em Sutton... e tá pelo beicinho! Amanhã vou lá, para m’encontrar com ela.
Daí a duas semanas, Paul perguntou-lhe:
– Então a rapariga do vestido de cetim branco?
– Já não m’interessa, ’Póstolo... Não presta! Mas encontrei uma pérola em Ripley... cheira vagamente a flor de cerejeira... branca como um lírio...
Paul era mimoseado com as mais estonteantes descrições florais das várias raparigas, a maior parte das quais perduravam por menos de quinze dias no coração de William, como um botão de rosa posto ao peito.
Uma vez por outra, lá aparecia uma namorada, preocupada em vir atrás do seu amado. Mrs. Morel encontrou um dia à porta uma rapariga de aspecto estranho, e logo lhe cheirou a esturro.
– Mr. Morel está em casa? – perguntou a donzela, toda sorrisos.
– O meu marido? Está, sim – respondeu Mrs. Morel.
– Eu... Eu queria referir-me a Mr. Morel... filho – repetiu a rapariga, penosamente.
– Qual deles? Há vários...
Nesta altura, a menina loira já gaguejava, muito corada:
– Eu... Eu conheci Mr. Morel... em Ripley. – E apressava-se a dar explicações.
– Ah... num baile!
– Sim, sim.
– Pois eu não gosto das raparigas que o meu filho conhece nos bailes. E ele não está em casa.
Mrs. Morel detestava os bailes duvidosos que o filho frequentava.
– Julgas que não sei das desavergonhadas que por lá andam?
– Pois olhe, mãe, eu não sou nenhum leviano, como pode ver.
– Isso é que eu não sei – dizia a mãe a rir.
– Não está a pensar que eu me vou apaixonar, pois não? Descanse que não vou. É só para me divertir com elas.
– Mas elas é que não querem só divertir-se contigo. E isso não está certo.
– Ora essa, porquê? Não faço tenções de me casar. Não se aflija, Mater. Eu não me caso enquanto não encontrar uma mulher como a senhora... e isso só daqui a muito tempo... E... só me hei-de casar aos trinta, quando já estiver de barriguinha cheia.
– Veremos, meu filho – respondeu a mãe.
Depois, voltou para casa zangado com a mãe por ter sido tão dura para com a rapariga. Era um rapaz despreocupado, mas de olhar apaixonado, que caminhava com grandes passadas, às vezes de sobrolho carregado, e quase sempre com o boné atirado para trás com galhardia. Agora, vinha de sobrolho carregado. Atirou o boné para cima do sofá, apoiou o queixo decidido na palma da mão e olhou zangado para a mãe. Ela era pequena, com o cabelo arrepiado para trás. Tinha um ar de serena autoridade, mas, ao mesmo tempo, de rara afabilidade. Ao ver o filho zangado, o coração apertou-se-lhe.
– Esteve cá ontem alguma senhora à minha procura? – perguntou.
– Uma senhora eu não vi... esteve foi uma rapariga.
– E porque não me disse nada?
– Porque me esqueci.
Ele expeliu o ar com ímpeto.
– Uma rapariga bonita... uma senhora?
– Não olhei para ela.
– Olhos castanhos... grandes?
– Isso mesmo.
Voltou a assoprar.
– E o que lhe disse a mãe?
– Que não estavas em casa.
– E que mais?
– Apenas que não gostava de que raparigas que tinhas visto uma vez viessem aqui a casa à tua procura.
– Bem... não precisava de ter dito isso – replicou ele. – O pai dela tem dinheiro... até têm duas criadas...
– Não vinham com ela... por isso, eu não podia adivinhar.
– Mas porque é que a mãe tinha de ser desagradável? Ela não estava a fazer mal nenhum, ou estava?
– Pensei que fosse uma dessas desavergonhadas.
– Mas não era... Não era... O pai dela...
– Tem dinheiro para duas criadas – atalhou Mrs. Morel.
– Não... É o veterinário de Woodlinton... E, além disso, mãe...
– Ela era uma desavergonhada.
– Não era nada... E era bonita, não era?
– Nem olhei para ela.
– Mas devia ter olhado...
– Mas não olhei, pronto. E olha, meu filho, trata de dizeres às tuas namoradas que, quando vierem atrás de ti, não devem vir perguntar por ti à tua mãe... É isso que tens de dizer a essas desavergonhadas que encontras pelos salões de dança.
– Tenho a certeza de que ela é uma rapariga séria...
– E eu tenho a certeza de que não é.
E assim acabou a discussão. A dança era sempre motivo de conflito entre mãe e filho. A afronta atingiu o auge quando William anunciou que ia a um baile de máscaras em Hucknall Torkard, uma terra mal-afamada. Havia uma fantasia que ele podia alugar, que um dos seus amigos já tinha usado, e lhe assentava que nem uma luva. E o fato de escocês lá foi parar a casa. Mrs. Morel recebeu-o com indiferença e recusou-se a desembrulhá-lo.
– O meu fato já chegou? – gritou William.
– Está um embrulho na sala da frente.
Ele precipitou-se para o fato e cortou o cordel.
– Já imaginou o seu filho assim vestido? – disse entusiasmado, mostrando-lhe o fato.
– Sabes bem que não quero imaginar-te com isso vestido.
Na noite do baile, quando ele veio a casa para se mascarar, Mrs. Morel vestiu o casaco e pôs o chapéu.
– Não fica para me ver vestido, mãe? – perguntou ele.
– Não... Não te quero ver – foi a resposta.
Estava muito pálida, com a expressão dura e fechada. Tinha medo de que o filho seguisse as pisadas do pai. Ele hesitou uns instantes, com o coração suspenso de ansiedade. Depois, viu a boina de escocês cheia de fitas, e agarrou-a, já esquecido da mãe. Mrs. Morel saiu.
Ele nunca se apercebeu de como tinha ficado desapontado. A excitação do momento, vivido em antecipação, era o suficiente para o fazer esquecer. Contudo, o seu maior orgulho era que ela o visse mascarado, e, pela vida fora, era sempre com mágoa que recordava este baile.
Na altura, porém, correu escada acima em grande alvoroço. Paul ajudou-o a vestir-se.
– É um fato de máscara, ’Póstolo – disse ele. – Dá-me cá essas coisas. – Primeiro enfiou um par de calções pretos, muito justos e curtos. Depois, foi mirar-se e remirar-se ao espelho da mãe.
– Estás a ver os meus calções pretos? – disse ele, dando uma volta sobre si mesmo, e acrescentando: – Sabes, ’Póstolo, um verdadeiro escocês não usa calções... cobre a nudez com o kilt. Mas acontece que eu dou saltos muito altos... e... com as senhoras a assistir... bem... já não dava!
O mais pequeno também achava que não, embora o caso não lhe parecesse muito grave.
– Belo par de pernas que aqui estão, ’Póstolo! Belas pernas! Já me ajudaram a ganhar quatro prémios nas corridas e dois nas bicicletas. Nada mau! – E dava palmadas nas coxas jovens e vigorosas. – Só músculo, miúdo!... No entanto, têm um defeito: não consigo juntar os joelhos. Tenho as pernas arqueadas, ’Póstolo. Mas assim ainda são mais fortes... Já o Nicholas Nickleby... esse tinha umas belas pernas e conseguia juntar os joelhos, a julgar pela gravura, e acho que Mr. Good também. Não era Mr. Good que tinha uma «belas pernas muito brancas» n’As Minas de Salomão? Aperta-me isto. Este fato não me assenta nada bem, pois não, ’Póstolo?
– Não – disse Paul, reverente.
– Um verdadeiro escocês – continuou William – tem de dobrar o seu kilt. Quem me dera que este fosse desses... gostava de ser eu a prepará-lo. Estás a ver, ’Póstolo, eu posso usar um kilt porque tenho a medida exacta para ele assentar como deve ser. A ti não te ia ficar bem... és espalmado como uma tampa de cartão. Tens de pedir a Deus que te desenvolva mais essa parte do corpo, senão nunca vais poder vestir um kilt.
Paul não percebia porque é que um dia havia de querer usar um kilt. Baixinho e magro como era, não podia aspirar ao físico e à estatura do irmão.
– Então, que tal ficam os meus joelhos?... Ficam bem, não ficam? Uns valentes joelhos, isso é que eles são... uns valentes joelhos... e as pernas também! Outro dia, os tipos lá do escritório apostaram em como eu andava enchumaçado. E então o Vickers veio de gatas enquanto eu estava a escrever e espetou-me um alfinete. Dei um berro que ia deitando a casa abaixo, e depois dei um pinote e ferrei-lhe um murro na cabeça, estás a ver... quem me dera não ter arrancado aquele bocadinho de pele com a bicicleta.
– Podias pôr um bocadinho do pó cor-de-rosa de lavar os dentes – alvitrou Paul.
– Lá isso podia... diz que é anti-séptico, mas será que resulta? Sabes, eu tenho mesmo pinta de escocês – cabelo louro, olhos azuis e valentia, ’Póstolo, valentia... e arcaboiço a condizer... Se alguma vez me alistasse no exército, havia de ser na Guarda Escocesa. Essa do pó dos dentes é uma ideia porreira...
Quando já estava vestido, um monte de crianças, as de casa e as da vizinhança, vieram admirá-lo. Depois, ele partiu. Divertiu-se à grande e, no entanto, era-lhe doloroso recordá-lo. A mãe mostrou-se indiferente com ele durante um ou dois dias. Mas achava-o tão encantador...! E depois... aquele toque de solidão, a instalar-se outra vez entre ele e ela.
Foi mais ou menos por esta altura que ele começou a estudar. Ele e um amigo começaram a aprender francês, latim e outras coisas. Depressa começou a ficar mais abatido. Depois do escritório, ia para casa de Fred Simpson, e ficavam os dois a estudar até à meia-noite e, às vezes, até à uma. Mrs. Morel protestava, ralhava, implorava-lhe que tivesse mais cuidado com a saúde.
– Quando estamos a estudar – dizia ele – nem dou pelas horas passarem... nenhum de nós dá, até a mãe do Fred gritar lá de baixo que já é muito tarde.
Estas noites de estudo intervalavam com farras e bailaricos. À medida que os anos iam passando, William foi ficando mais magro e a despreocupação fugiu-lhe do olhar.
A mãe, sempre atenta, sempre à espera, sentia um frio na alma ao vê-lo assim. Teria ele forças para «sobreviver»? Um pingo de ansiedade manchava o orgulho que sentia. Tinha esperado por ele tanto tempo que não suportaria o seu fracasso. Na verdade, não sabia o que queria dele, afinal. Talvez quisesse apenas que ele fosse fiel a si próprio, que crescesse e frutificasse tudo o que ela tinha semeado. Queria ver nele a sua própria realização, era tudo. E, com toda a força de que era capaz, tentava mantê-lo forte, equilibrado, com ânimo para seguir em frente. Mas ele vacilava, faltava-lhe lucidez. Havia momentos em que descambava e era igualzinho ao pai, o que lhe enchia o coração de apreensão e desalento.
Ele tivera dúzias de namoricos, mas nada a que se pudesse chamar um caso amoroso. Ela não se importava com os namoricos, desde que não lhe afectassem a carreira, mas receava que ele se deixasse prender por alguma dessas raparigas fúteis e desavergonhadas.
Tinha ele dezanove anos, quando um dia, sem mais nem menos, deixou o escritório da Cooperativa e arranjou um emprego em Nottingham. Este novo lugar rendia-lhe trinta xelins por semana, em vez dos dezoito do anterior. Era na verdade um bom aumento e os pais não cabiam em si de orgulhosos. Todos o elogiavam. Parecia que ia subir na vida num instante. E Mrs. Morel esperava poder, com o auxílio dele, ajudar os filhos mais novos. Annie andava a estudar para professora. Paul, também muito inteligente, ia muito bem nas lições de francês e alemão que o padrinho lhe dava – o pastor, velho amigo de Mrs. Morel. Arthur, um menino mimado e muito bonito, andava ainda na escola primária, mas tinha hipóteses de conseguir uma bolsa para ir para o liceu, em Nottingham.
William conservou-se durante um ano no seu novo emprego em Nottingham. Estudava afincadamente e tornava-se cada vez mais circunspecto. Algo parecia preocupá-lo. No entanto, continuava a ir aos bailes e aos festivais no rio. Não bebia. Todos os irmãos eram abstémios convictos. Chegava a casa muito tarde e estudava até altas horas da noite. A mãe implorava-lhe que tomasse cuidado, que fizesse uma coisa ou outra.
– Dança, se te apetece dançar, meu filho, mas não julgues que podes passar o dia no escritório e depois ires para a paródia, e depois ficares ainda a estudar. Não podes, o corpo não aguenta. Faz uma coisa ou a outra... diverte-te ou estuda latim... mas não tentes fazer as duas.
Depois, ele arranjou um emprego em Londres, a ganhar cento e vinte libras por ano, o que parecia uma soma fabulosa. A mãe nem sabia se havia de rir ou de chorar.
– Querem-me em Lime Street de segunda a oito, mãe – gritou ele, de olhos brilhantes, ao ler a carta. Mrs. Morel sentiu que tudo nela era silêncio. Ele continuou a ler: – «... queira confirmar até à próxima quinta-feira se aceita o lugar... Atentamente...» Eles querem-me lá, mãe, por cento e vinte libras por ano, e nem quiseram falar comigo. Eu não lhe disse que conseguia! Imagine-me só em Londres!... E posso dar-lhe vinte libras por ano, Mater... Vamos ficar afogados em dinheiro.
– Pois vamos, meu filho – respondeu ela, tristemente.
A ele nem lhe ocorreu que a mãe pudesse estar mais magoada com a sua partida do que contente com o seu sucesso. Na verdade, à medida que se aproximava o dia da partida, o coração dela começou a fechar-se e a sucumbir ao desespero. Amava-o tanto. Mais ainda: esperava tanto dele. Quase se podia dizer que vivia através dele. Gostava de lhe fazer as coisas: de lhe fazer uma chávena de chá e de lhe passar a ferro os colarinhos, de que ele tanto se orgulhava. Era para ela uma alegria vê-lo tão vaidoso dos seus colarinhos. Como não havia nenhuma lavandaria perto, costumava passá-los e repassá-los com o seu pequeno ferro de carvão, para os polir, até os pôr a brilhar à simples pressão do braço. E, agora, já não lhe podia fazer isso. Agora, ele ia partir, e era quase como se partisse também do seu coração. E ele parecia não querer deixar ficar nada de si dentro dela. Essa a causa da dor e do desgosto. Ele levava consigo quase tudo.
Uns dias antes da partida – tinha ele acabado de fazer vinte anos – queimou todas as cartas de amor, que estavam guardadas numa caixa em cima do armário da cozinha. Tinha lido extractos de algumas delas para a mãe ouvir, mas a maior parte delas eram demasiado banais.
No sábado de manhã, disse:
– Anda, ’Póstolo, vamos dar uma volta às minhas cartas, e tu podes ficar com os passarinhos e as flores.
Mrs. Morel tinha feito de véspera o trabalho destinado para sábado, pois tinham dado folga a William no último dia. Ela estava até a fazer-lhe um bolo de farinha de arroz, para ele levar. Mas ele não tinha consciência da tristeza que a mãe sentia.
Tirou da caixa a primeira carta. Era cor de malva e estava ornamentada com cardos verdes e púrpura. William cheirou a folha de papel:
– Cheira bem... perfumada...!
E meteu a carta debaixo do nariz de Paul.
– Hum! – disse Paul, inspirando fundo. – Que perfume é este?
– Jockey Club – disse William, embora não fizesse a menor ideia.
– Não podia ser cardo – disse Paul – porque os cardos não têm cheiro.
– Ora oiça esta: «Meu Único Amor»... Safa, Mater.
– Não me interessa ouvir essas baboseiras – disse Mrs. Morel.
– Oiça só esta!.. «Meu único Amor, Como não me disseste o teu primeiro nome, só te posso chamar aquilo que és na realidade. Tenho de te escrever, porque, se o não fizer, acho que a minha cabeça vai rebentar...» Veja só, Mater.
– São mesmo parvas! Têm tão pouca cabeça que não dá nem para rebentar... A adularem-te dessa maneira... Mal sabem elas que estão a arranjar lenha para se queimarem.
– Não é para me adularem. Esta ficou mesmo caidinha por mim.
– E, mesmo que tenha ficado, isso é motivo para se orgulhar? Que parvoíce!
– A mãe não devia dizer que andam a «adulá-lo para arranjar lenha para se queimarem» – interveio Paul.
– Claro, se tu o dizes... – disse a mãe a rir.
– «Fiquei a adorar coisas escocesas desde que te vi com aquele kilt. Ficava-te mesmo mal. Acho que nunca vi ninguém que ficasse tão bonito, com aquele kilt e aquelas meias...» São os meus joelhos... Têm de ser os meus joelhos, Mater. Não me escapa uma.
– Só não te escapam se forem das fáceis.
– Cala a boca, ’Póstolo. É bonita, não é?
Paul gostava de ver os desenhos que decoravam as cartas de amor. William queimou a carta. A seguinte era cor-de-rosa, com um raminho de flor de cerejeira ao canto.
– Flor de cerejeira! – disse Paul, aspirando o perfume. – Que bom... ora cheire, mãe.
A mãe aproximou o nariz pequeno e fino do papel.
– Não me apetece cheirar as parvoíces que elas fazem – disse, aspirando o perfume.
– O pai desta rapariga – disse William – é rico como Cresus. Tem terras que nunca mais acabam... Ela chama-me Lafayette, por eu saber falar francês... «Como vês, já te perdoei.» Esta de ela me perdoar é muito boa... «Falei de ti esta manhã à minha mãe, e ela terá muito prazer em que venhas tomar chá connosco no domingo, mas primeiro precisa do consentimento do meu pai. Espero bem que ele concorde. Logo que saiba, mando-te dizer se sim ou sopas. Se tu no entanto...»
– «Se sim ou...» quê? – atalhou Mrs. Morel.
– «... ou sopas»... é isso mesmo!
– «Se sim ou sopas!» – repetiu Mrs. Morel, trocista. – E eu que a julgava tão fina!
William começou a sentir-se algo desconfortável e pôs de lado esta donzela, dando a Paul o canto com a flor de cerejeira. Continuou a ler excertos das cartas, alguns dos quais deixavam a mãe divertida, outros triste e outros ainda apreensiva.
– Meu filho – disse ela –, elas são muito espertas. Já perceberam que só têm de alimentar a tua vaidade, para tu correres logo atrás delas como um cão a quem fizeram festas na cabeça.
– Ora, elas não podem estar sempre a fazer festas – retorquiu William. – E quando deixam de fazer, eu ponho-me a andar.
– Mas um dia descobres que te prenderam com uma corda que não consegues desatar – respondeu a mãe.
– Isso é que era bom! Eu chego bem para elas, Mater, elas que não se deixem enganar.
– Quem se deixa enganar és tu – disse Mrs. Morel, muito serena.
Não tardou que um monte de papéis retorcidos e tisnados se formasse na lareira, tudo o que restava da colecção de cartas perfumadas, à excepção dos trinta ou quarenta desenhos recortados dos cantos – andorinhas, miosótis e raminhos de hera – que agora pertenciam a Paul. Quanto a William, partiu para Londres, para dar início a uma nova colecção.
IV
A JUVENTUDE DE PAUL
PAUL saía à mãe – era baixo e franzino. O cabelo loiro tornou-se progressivamente arruivado e depois castanho-escuro, enquanto os olhos eram acinzentados. Era uma criança pálida e de poucas falas, com uns olhos que pareciam escutar e um lábio inferior carnudo e descaído.
Geralmente davam-lhe mais idade, pela constante preocupação que mostrava pelo que as outras pessoas sentiam, especialmente a mãe. Quando ela sofria, ele apercebia-se e não tinha paz, sempre de alma atenta às suas mais pequenas reacções.
À medida que crescia, ia-se tornando mais forte. William, devido à diferença de idades, não o queria por companheiro, pelo que só Annie estava com ele o dia inteiro. Annie era uma garota endiabrada, uma maria-rapaz, como a mãe lhe chamava, mas adorava o irmão mais novo, que andava sempre atrás dela. Quando ela fazia corridas com as outras garotas da vizinhança, Paul corria ao lado dela, a apoiá-la, uma vez que ainda não podia participar. Muito calado, passava quase despercebido. Mas a irmã adorava-o e ele fazia-lhe as vontades todas.
Annie tinha uma boneca grande de que muito se ufanava, embora não gostasse tanto dela como do irmão. Um dia, deitou-a no sofá, cobriu-a com uma manta, para ela adormecer, e foi-se embora. Entretanto, Paul pôs-se a saltar em cima do sofá e caiu mesmo em cima da cara da boneca, escondida debaixo da coberta. Annie precipitou-se para o sofá soltando um grito lancinante e sentou-se a chorar, inconsolável. Paul nem se mexeu.
– Não se percebia que a boneca estava ali, mãe; não se percebia – não se cansava ele de repetir, deixando-se ficar sentado muito triste enquanto Annie continuava a chorar. Por fim, o desgosto passou e ela perdoou ao irmão, que estava genuinamente contrito. Porém, um ou dois dias depois Annie ficou chocadíssima.
– Vamos oferecer a Arabella em sacrifício – disse ele. – Vamos queimá-la. – A irmã ficou horrorizada, mas ao mesmo tempo fascinada. Sempre queria ver o que o irmão ia fazer. Ele fez um altar de tijolos, tirou bocadinhos do enchimento do corpo de Arabella, enfiou esses bocadinhos na cara esburacada, deitou-lhe em cima um pouco de parafina e incendiou a boneca. Depois, com perversa satisfação, ficou a ver as gotas de cera derretida a escorrerem pela testa de Arabella, como se fossem suor a pingar sobre a chama. Enquanto a estúpida da boneca esteve a arder, ele rejubilou em silêncio. No fim, esgravatou nas brasas com um pauzinho, pescou os braços e as pernas, todos pretos, e esmagou-os com uma pedra.
– Pronto, este foi o sacrifício da Arabella – anunciou. – E ainda bem que não sobejou nada.
Annie, embora nada dissesse, estava perturbada com a cena. Era como se ele odiasse a boneca intensamente pelo facto de a ter partido.
Todos os irmãos, mas Paul em particular, colocavam-se nitidamente ao lado da mãe contra o pai. Morel continuava a fazer desmandos e a embebedar-se. Havia alturas, às vezes meses a fio, em que transformava a vida de toda a família num inferno. Paul nunca se havia de esquecer de ter vindo para casa, depois de uma reunião religiosa uma segunda-feira à tardinha, e ter encontrado a mãe com um olho negro e todo inchado, o pai de pé junto à lareira, de pernas afastadas e cabisbaixo, e William, que acabara de chegar do trabalho, a olhar enfurecido para o pai. Fez-se silêncio quando os irmãos mais novos entraram, mas nenhum dos adultos olhou para eles.
William estava lívido e de punhos cerrados. Esperou que os mais pequenos se calassem, limitando-se a olhar a cena com indizível raiva infantil, e disse:
– Seu grande cobarde, se eu cá estivesse, não se atrevia a fazer uma coisa destas.
Mas Morel estava ao rubro e voltou-se contra o filho. William era mais alto, mas Morel era mais possante e estava cego de raiva.
– Ah, não? – berrou. – Ah, não atrevia? Se abres mais essa boca, meu menino, assento-te a mão em cima, olá se assento!
E, vergando os joelhos, brandiu o punho ameaçadoramente, animalescamente. William estava lívido de raiva.
– Ah, sim? – disse William, sereno e intrépido. – Pois seria a última vez.
Morel aproximou-se gingão, semivergado, de punho no ar em posição de ataque. William armou também o punho. Os seus olhos azuis fixos no pai tinham o brilho de uma gargalhada. Mais uma palavra e os dois homens engalfinhavam-se. Paul desejava que isso acontecesse. Os três mais novos assistiam sentados no sofá, sem pinga de sangue.
– Acabem já com isso – gritou Mrs. Morel, com dureza. – Por esta noite chega... E tu – disse, virando-se para o marido – pensa nos teus filhos.
Morel virou os olhos para o sofá.
– Pensa nos teus filhos, ess’agora, minha grande cabra – disse ele, acintoso – o qu’é qu’eu fiz òs meus filhos, sempre gostava de saber. Mas eles saem a ti... ensinaste-lhes todas as tuas manhas e truques... criaste-os à tua maneira, foi o que foi.
Ela não respondeu. Ninguém abriu a boca. Passado algum tempo, ele atirou as botas para debaixo da mesa e foi deitar-se.
– Porque é que não me deixou fazer-lhe frente? – disse William, quando o pai já tinha ido para cima. – Ele tinha apanhado, e bem.
– Que bonito... bateres no teu pai – respondeu a mãe.
– Pai! – repetiu William. – Aquilo, meu pai!
– Bom, lá que é... é. Por isso...
– Mas porque é que não me deixa dar-lhe uma ensinadela, não custava nada...
– Que disparate! – gritou Mrs. Morel. – Ainda não chegámos a esse ponto.
– Não – disse o filho. – Ainda é pior... olhe para a sua cara. Porque não me deixou bater-lhe?
– Porque não ia suportar assistir a uma coisa dessas. É melhor que nem te passe pela cabeça – gritou ela, peremptória.
As crianças foram deitar-se muito tristes.
Quando William já era grande, a família mudou-se das Bottoms para uma casa no alto da colina, de onde se alcançava todo o vale, que se estendia por baixo, convexo, como concha de amêijoa ou berbigão. Fronteiro à casa, estava postado um velho freixo de grandes dimensões. Quando o vento oeste soprava forte das bandas do Derbyshire, apanhava em cheio as casas e a árvore não parava de ulular. Morel gostava de a ouvir.
– É como a música – dizia ele. – Ajuda-me a adormecer.
Mas Paul, Arthur e Annie detestavam o zumbido do vento. Para Paul, era quase um gemido demoníaco. Durante o primeiro Inverno que passaram na nova casa, o pai portou-se muito mal. As crianças ficavam a brincar na rua, alcandorada sobre o vale extenso e sombrio, e só voltavam para casa às oito horas, indo directas para a cama. A mãe ficava a costurar no andar de baixo. Todo aquele espaço aberto diante da casa incutia nas crianças uma sensação de vastidão nocturna, de terror. Terror esse que provinha da árvore ululante e da discórdia entre os pais. Paul, mesmo depois de adormecer, tinha um sono sobressaltado e acordava amiúde com os barulhos que vinham de baixo. Acordava e ficava atento. Ouvia então os berros desabridos do pai, que chegara a casa a cair de bêbado, seguidos das respostas aceradas da mãe, e depois os murros do pai em cima da mesa e os seus gritos descontrolados, à medida que ia elevando a voz. E, finalmente, tudo isto era abafado pelos gemidos e os uivos penetrantes do grande freixo agitado pela ventania. As crianças mantinham-se caladas e expectantes, a aguardarem que o vento se calasse, para perceberem o que o pai estava a fazer, não fosse ele bater na mãe outra vez. A escuridão instilava neles sentimentos de horror, violenta tensão e sangue, e adormeciam com o coração apertado de angústia. O vento era cada vez mais assustador. Todas as cordas da grande harpa gemiam, silvavam e uivavam. E, depois, o horror do súbito silêncio: o silêncio total, lá fora e lá em baixo. Que silêncio era aquele?... Um silêncio de sangue? Que teria ele feito?
As crianças mantinham-se deitadas a respirar escuridão. Por fim, ouviam o pai atirar com as botas e subir a escada só de meias. Mesmo assim, ficavam à escuta, até que, se o vento deixava, ouviam a água a sair da torneira para a chaleira, que a mãe já deixava preparada para o dia seguinte, e podiam, finalmente, dormir em paz.
De manhã, acordavam felizes, muito felizes, e brincavam e dançavam à volta do candeeiro solitário, ainda na escuridão, mas guardavam um recanto de ansiedade dentro dos seus corações e uma tristeza nos olhos que conservaram para toda a vida.
Paul odiava o pai. Quando era ainda pequeno, tinha uma religião muito sua.
– Faz com que ele deixe de beber – pedia ele todas as noites.
– Senhor, deixa o meu pai morrer – rezava ele muitas vezes.
– Faz com que ele morra na mina – pedia ele quando, depois do chá, o pai tardava a vir do trabalho.
Esse era outro dos momentos em que a família sofria intensamente. As crianças chegavam da escola e tomavam chá. A enorme chaleira preta fervilhava a um lado do fogão e a terrina do guisado estava no forno, à espera de que Morel chegasse. Era esperado às cinco horas. Porém, durante meses a fio, parava sempre na taberna quando voltava do trabalho e por lá ficava a beber.
Nas noites de Inverno, quando o frio era intenso e anoitecia mais cedo, Mrs. Morel levava para a mesa uma palmatória de latão com uma vela acesa, para poupar o gás. As crianças comiam a sua fatia de pão com manteiga ou com banha e iam brincar para a rua. Mas, se Morel ainda não tinha chegado, eles pensavam duas vezes. Mrs. Morel não suportava imaginá-lo sentado na taberna a beber, todo sujo e ainda com as roupas da mina, depois de um dia de trabalho, e, em vez de vir para casa comer e lavar-se, preferir embebedar-se de estômago vazio. E este seu sentimento comunicava--se aos filhos. Agora, ela já não sofria sozinha: os filhos sofriam com ela.
Paul foi brincar com os outros rapazes. No vale semeado no crepúsculo, cintilavam aglomerados de luzes a marcarem a entrada das minas. Alguns mineiros retardatários subiam desgarrados o carreiro da encosta. Por fim, passou o homem que acendia os lampiões da rua. Mais nenhum mineiro se avistava. A escuridão abateu-se sobre o vale, o trabalho terminara, era a noite que chegava.
Paul correu ansioso para a cozinha. A vela solitária ardia ainda sobre a mesa, o clarão vermelho da fogueira inundava a cozinha, e Mrs. Morel estava sentada e só. A chaleira fumegava no fogão, o prato continuava à espera. Um sentimento de espera perpassava toda a casa, um sentimento de espera pelo homem que estava nesse momento sentado na taberna, a pouco mais de uma milha de casa, já noite escura, com a roupa de trabalho, sem comer, e a beber até cair. Paul apareceu à porta.
– O papá já chegou? – perguntou.
– Bem vês que não – disse Mrs. Morel, aborrecida com a redundância da pergunta.
Depois, o garoto pôs-se a andar de um lado para o outro à volta da mãe. Partilhavam a mesma ansiedade. A certa altura, Mrs. Morel foi lá fora escorrer a água das batatas.
– Estão todas negras, uma porcaria – disse ela. – Quero lá saber. – Não se trocavam muitas palavras. Paul quase odiava a mãe por sofrer daquela maneira quando o pai não vinha para casa.
– Para que se aflige tanto? – disse ele. – Se ele quer ficar por lá a embebedar-se, porque não o deixa?
– Deixá-lo! – ripostou Mrs. Morel. – Essa é boa, «deixá-lo». – Ela sabia que todo o homem que se mete na taberna quando devia voltar para casa sem demora se arruina a si mesmo e à família. As crianças eram ainda muito pequenas e ele era o seu único ganha-pão. William viera trazer-lhe algum alívio, pois, com ele empregado, sempre tinha alguém a quem recorrer se Morel descambasse de vez. Porém, isso em nada alterava a tensão que se respirava na cozinha nestas noites de espera.
Os minutos escoavam-se no bater ritmado do relógio. Às seis horas, a mesa ainda estava posta, o jantar à espera, e a mesma atmosfera de ansiedade e expectativa invadia toda a casa. Paul já não aguentava mais. Não lhe apetecia ir lá para fora brincar. Correu por isso para casa de Mrs. Inger, duas portas mais abaixo, para conversar com ela. Mrs. Inger não tinha filhos. O marido era amigo dela, mas era caixeiro numa loja e chegava muito tarde. Quando ela viu o garoto à porta, chamou-o:
– Vem cá, Paul.
Ficaram os dois a conversar durante um bocado, mas logo Paul se levantou, dizendo:
– Bem, vou andando, para ver se a minha mãe precisa que eu lhe vá fazer algum recado.
Fingia estar muito alegre e não contou à amiga o que o preocupava. Depois, voltou a correr para casa.
Em alturas como esta, Morel chegava sempre mal-humorado, insuportável.
– Lindas horas de voltares para casa – dizia Mrs. Morel.
– Que tens tu co’isso, cas horas a qu’eu venho pra casa? – berrava ele.
E ninguém abria a boca, porque ele era perigoso. Comia o que lhe punham à frente com inultrapassável grosseria e, quando terminava, empurrava tudo o que tinha diante de si para longe, para poder estender os braços por cima da mesa, e, em seguida, adormecia.
Paul odiava por demais o pai. A cabeça do mineiro, pequena e mesquinha, com o cabelo preto empastado de fuligem, repousava sobre os braços nus, e a cara, suja e mal-humorada, de nariz grosso e sobrancelhas finas e insolentes, estava virada para o lado, adormecida – da cerveja, do cansaço e da má índole. Se alguém entrasse de repente ou fizesse o mais pequeno ruído, o homem abria os olhos e berrava:
– Tás aqui, tás a levar um murro, se não paras com essa chinfrineira. Tás’ouvir?
Estas palavras, gritadas selvaticamente e quase sempre dirigidas contra Annie, deixavam toda a família transida de medo.
Ele era mantido fora de todos os assuntos. Ninguém lhe contava nada. Enquanto estavam sozinhos com a mãe, o filhos relatavam-lhe as peripécias do dia, contavam-lhe tudo. Era como se nada realmente acontecesse até contarem à mãe. Mas, mal o pai entrava, fazia-se silêncio. A sua presença era como um travão na engrenagem fluente e feliz da vida doméstica. Ele apercebia-se deste muro de silêncio, do isolamento a que o votavam, de que não era bem-vindo; mas era já demasiado tarde para mudar.
Bem gostaria de que os filhos conversassem com ele, mas eles não conseguiam. Às vezes Mrs. Morel dizia:
– Devias contar ao teu pai.
Paul ganhou um prémio num concurso de jornal e todos ficaram radiantes.
– O melhor é contares ao teu pai quando ele chegar – disse Mrs. Morel. – Sabes bem que ele passa a vida a dizer que nunca lhe contam nada.
– Está bem – concordou Paul. No entanto, quase preferia ter perdido o prémio a ter de contar ao pai.
– Ganhei um prémio num concurso, pai – disse ele.
Morel voltou-se e disse:
– Ah, ganhaste, meu rapaz?... E que concurso era esse?
– Nada de especial... era sobre mulheres famosas.
– E de quanto é esse tal prémio que ganhaste?
– É um livro.
– Ah, é?
– Sobre aves.
– Hum!
E era assim. Não havia conversa possível entre o pai e qualquer dos restantes membros da família. Era como se ele fosse um estranho, tivesse negado o Deus que nele habitava.
Os únicos momentos em que voltava a entrar na vida da família era quando fazia consertos em casa e o trabalho lhe corria de feição. Às vezes, ao fim da tarde, depois de jantar, punha-se a remendar as botas ou a soldar a chaleira ou o cantil. Nessa altura precisava de ajudantes e as crianças rejubilavam. Partilhavam com ele o trabalho, no verdadeiro sentido de construírem realmente qualquer coisa, e aquele sim, era ele outra vez.
Mostrava-se competente e habilidoso, e quando estava de bom humor não parava de cantarolar. Mas atravessava longos períodos, às vezes meses, quase anos até, de contundência e irascibilidade. Depois, de repente, ficava bem-disposto outra vez e era bom vê-lo entrar pela copa dentro com um bocado de ferro incandescente, a gritar:
– Saiam da frente, saiam da frente!
Batia o ferro rubro e maleável na bigorna e moldava-o a gosto. Outras vezes sentava-se a soldar, e as crianças viam cheias de alegria o metal derreter instantaneamente e ser espalhado pelo ferro de soldar, impregnando a casa de um odor a lata quente e a resina queimada, enquanto Morel em silêncio se concentrava no trabalho. Cantava sempre que estava a remendar as botas, ao som das batidas do martelo. E via-se que estava feliz quando punha grandes remendos nas calças de fustão que usava na mina, o que acontecia bastas vezes, pois achava-as muito sujas e muito rijas para ser a mulher a fazê-lo.
Mas o que as crianças mais gostavam era de o verem fazer detonadores. Morel ia buscar ao sótão um molho de palhas de trigo compridas e resistentes. Limpava-as e polia-as à mão até cada uma luzir como uma hastezinha de ouro. Depois, cortava-as em bocados com cerca de seis polegadas, fazendo-lhes, se possível, um talho na ponta. Tinha sempre ao seu lado um canivete primorosamente afiado que cortava uma palha ao meio sem a danificar. Seguidamente, deitava em cima da mesa um montinho de pólvora – uma pilha de grãos pretos sobre o tampo de madeira bem lavada, e ia preparando e aparando as palhas, enquanto Paul e Annie as enchiam e vedavam com um bujão. O que Paul mais gostava era de ver os grãozinhos pretos escorregarem pela calha que ele fazia com a palma da mão e entrarem pela abertura da palhinha, até ela ficar cheia. Nessa altura, vedava a abertura com uma raspa de sabão que arrancava com a unha do polegar do bocado de sabão que tinha a seu lado num pires, e a palha estava pronta.
– Olhe, pai! – dizia ele.
– Isso mesmo, meu amor – respondia Morel, que era particularmente pródigo em elogios para com o seu segundo filho. Paul atirava os detonadores para dentro da lata da pólvora, já pronta para o dia seguinte, quando Morel a levasse para a mina, para com eles provocar uma explosão capaz de fracturar a parede de carvão.
Entretanto, Arthur, ainda muito agarrado ao pai, vinha apoiar-se no braço do cadeirão de Morel e dizia:
– Conte-nos como é lá em baixo na mina, papá.
Era o que Morel mais gostava de fazer.
– Ora bem, lá na mina há um cavalo, a gente chama-lhe Taffy – começava ele – e ele é um gra-a-nde manhoso!
Morel tinha uma maneira pitoresca de contar histórias. Parecia até que a manha do Taffy ganhava vida.
– É um baio – continuava ele – e dos pequenos. Bem, a cert’altura ele entra na galaria com ganda estardalhaço e a gente ouve-o espirrar.
– «Olá, Taff», diz a gente, «pra que tás tu a espirrar? Andaste a cheirar rapé?» E ele vá de espirrar outra vez. Depois vem ter co’a gente e dá-nos co’a cabeça no ombro, o malandreco.
– «Qu’é que tu queres, Taff?», diz a gente.
– E o qu’é qu’ele quer? – perguntava Arthur invariavelmente.
– Quer um bocado de tabaco, meu tontinho.
E a história do Taffy nunca mais acabava, para gáudio da pequenada.
Outras vezes a história mudava.
– Ora ouve esta, meu amor. De quando vou a vestir o casaco, na hora de vir dar ao dente, e dou c’um rato a correr-me pela manga acima. «Eh, lá!», grito eu, mesmo a tempo de lh’agarrar a ponta do rabo.
– E matou-o?
– Matei, pois. São uma praga. Aquilo tá cheio deles.
– E o que é que eles comem?
– Os grãos qu’os cavalos deixam cair... e até nos vêm ao bolso comer o farnel, s’os deixarmos... seja onde for que a gente pendure o casaco... Danados de comilões, isso é qu’eles são...
Estas noites bem passadas só aconteciam quando Morel tinha trabalho para fazer. Depois, ia deitar-se muito cedo, geralmente com as crianças. Não havia nada que o fizesse ficar a pé depois de terminar os consertos e ler por alto os títulos do jornal.
Os filhos sentiam-se seguros quando o pai estava na cama. Por vezes ficavam a conversar em voz baixa depois de se deitarem, e assustavam-se quando luzes de repente se projectavam no tecto, vindas das lanternas dos mineiros que passavam para o turno das nove horas. Ouviam as vozes dos homens e imaginavam-nos a penetrar no vale de breu. Às vezes iam à janela e ficavam a ver as três ou quatro lanternas cada vez mais pequeninas desaparecerem na distância, balançando na escuridão dos prados. E, depois, era tão bom voltarem para a cama e enroscarem-se uns nos outros, no quentinho.
De todos, só Paul era muito frágil, atreito a ataques de bronquite. Os outros eram todos fortes e essa era talvez a outra razão para a diferença que a mãe fazia entre ele e os irmãos. Um dia, Paul chegou adoentado à hora do almoço. A família, porém, não era dada a pieguices.
– O que se passa contigo? – perguntou a mãe, incisiva.
– Nada – respondeu ele.
Mas não quis comer.
– Se não comeres, não voltas para a escola.
– Porquê? – perguntou ele.
– Porque não.
Depois do almoço, ele foi deitar-se no sofá, entre as fofas almofadas de ramagens de que as crianças tanto gostavam, e pareceu adormecer. Nessa tarde, estava Mrs. Morel a passar a ferro quando ouviu os ruídos roucos e entrecortados que o filho fazia ao respirar. De novo a assaltou o antigo sentimento exacerbado de quando ele era bebé e julgava que não ia sobreviver. No entanto, o corpinho dele tinha grande vitalidade. Talvez para ela tivesse sido um alívio se ele tivesse morrido. Sentia sempre a angústia misturar-se ao amor que lhe tinha.
Ele, no seu estado de semiconsciência, apercebia-se vagamente do tinir do ferro no descanso e do seu assentar cavo sobre a tábua de engomar. Uma das vezes, acordando, abriu os olhos e viu a mãe junto à lareira com o ferro quente perto da cara, a escutar por assim dizer o ruído do calor. Ao ver o seu rosto imóvel, a boca crispada de tanto sofrimento, desilusão e abnegação, o nariz ligeiramente à banda e os seus olhos azuis, tão jovens, vivos e ternos, o coração de Paul apertou-se-lhe de amor. Quando ela ficava assim parada, como agora, parecia cheia de vida e de coragem, mas completamente privada dos seus direitos. Ao filho, magoava-o profundamente este pressentimento de ela nunca ter sido feliz, e a sua própria falta de capacidade para a compensar atingia-o como uma espécie de impotência, ao mesmo tempo que determinavam nele uma atitude de paciente tenacidade, em conformidade com as suas ambições pueris.
Ela cuspiu no ferro, e uma bolinha de cuspo enovelou-se e correu pela superfície negra e luzidia. Depois, pondo-se de joelhos, esfregou o ferro vigorosamente no forro de serapilheira do tapete. As chamas da fogueira envolviam-na num clarão cálido e avermelhado. Paul gostava da maneira como ela se baixava e inclinava a cabeça para o lado com movimentos leves e ligeiros. Era sempre com enlevo que a olhava. Nada que fizesse, nenhuma atitude ou movimento, podiam ter defeito para os filhos. A casa estava aquecida e cheirava a roupa quente. Mais tarde, o pároco veio conversar tranquilamente com Mrs. Morel.
Paul caiu à cama com um ataque de bronquite. Não que isso o contrariasse muito: o que tinha de ser tinha muita força e de nada servia revoltar-se. Gostava das noites, depois das oito horas, quando apagavam a luz e ele podia ver as chamas projectarem-se na escuridão das paredes e do tecto e seguir com o olhar as sombras alongadas que o percorriam, até a sala parecer invadida por guerreiros silenciosos, combatendo no silêncio.
Quando se ia deitar, o pai passava primeiro pelo quarto do enfermo. Se alguém estava doente em casa, mostrava-se sempre muito terno, mas a sua entrada não deixava de perturbar a paz que reinava no quarto de Paul.
– Tá a dormir, meu amor? – perguntava Morel, devagarinho.
– Não... A mãe não vem para cima?
– Tá só a acabar de dobrar a roupa. Quer alguma coisa? – Morel só raramente tratava o filho por «você».
– Não, não quero nada... Mas quanto tempo é que demora?
– Já falta pouco, meu tontinho.
O pai hesitava uns segundos frente à lareira. Sentia que o filho não queria a sua presença. Assomava-se então ao cimo das escadas e dizia à mulher:
– Aquela criança tá ansiosa por te ter ó pé... Inda vais ficar aí muito tempo?
– Até acabar o que estou a fazer, santo Deus! Diz-lhe que durma.
– Ela diz qu’o melhor é o meu menino adormecer – disse ele a Paul, de mansinho.
– Mas eu quero que ela venha para cima – insistiu o garoto.
– Ele diz que não dorme enquanto não vieres pra cima – gritou Morel lá para baixo.
– Calma, querido! Já vou. E vê se não gritas dessa maneira. Olha as outras crianças...
Depois, Morel voltou para o quarto de Paul e acocorou-se em frente da lareira. Que bem lhe sabia aquecer-se ao lume.
– Ela diz que já vem.
Parecia querer ficar ali indefinidamente. O garoto já estava febril de irritação. A presença do pai parecia aumentar ainda mais a sua impaciência. Por fim, depois de ficar a olhar para o filho por algum tempo, em silêncio, Morel disse mansamente:
– Boa noite, meu amor.
– Boa noite – respondeu Paul, voltando-se para o outro lado, satisfeito por ficar sozinho.
Paul adorava dormir com a mãe. O sono é ainda mais reparador, apesar de tudo o que dizem os defensores da higiene, quando partilhado com um ente querido. O aconchego, a segurança, a paz de espírito e o conforto que a presença do outro traz, conferem ao sono propriedades curativas. Paul adormecia encostado a ela e melhorava depressa, e ela, sempre atormentada por insónias, mergulhava num sono profundo que parecia renovar-lhe a esperança.
Durante a convalescença, Paul ficava sentado na cama, a ver os cavalos a pastar nos campos circundantes, espalhando o feno pela neve amarelada das pegadas, e a ver os mineiros voltarem para casa, figurinhas negras trilhando lentamente em grupos a alvura dos campos. Depois, vinda da neve, a noite avançava em vapores azulados, quase negros.
Durante a convalescença tudo era maravilhoso. Os flocos de neve caindo de repente na janela detinham-se por um momento, como andorinhas, mas logo desapareciam, e uma gota de água escorria pela vidraça. Os flocos de neve rodopiavam em torno da esquina da casa como pombas esvoaçantes. Do outro lado do vale, o pequeno comboio negro rolava hesitante através da planície toda branca.
Vendo-se tão pobres, as crianças ficavam radiantes quando podiam fazer qualquer coisa que pudesse ajudar os pais economicamente. Annie, Paul e Arthur saíam no Verão logo pela manhã e metiam-se pelo meio da erva molhada, de onde esvoaçavam cotovias, assustadas, à cata de cogumelos, esses corpos nus e de pele tão branca que se escondem dos olhares por entre o verde. Se conseguiam apanhar meia libra, já se davam por muito felizes: era a alegria de encontrarem qualquer coisa, a alegria de receberem qualquer coisa directamente das mãos da natureza e a alegria de poderem contribuir para a economia doméstica.
Mas a colheita mais importante, depois de andarem à procura de ervas aromáticas para as papas, era a das amoras. Mrs. Morel tinha de comprar fruta todos os sábados para os pudins; além disso, gostava muito de amoras. Assim, Paul e Arthur, enquanto houvesse uma amora à vista, esquadrinhavam os silvados, as moitas e as pedreiras abandonadas todos os fins-de-semana. Naquela região de cidades mineiras, as amoras eram relativamente raras. Mas Paul era persistente. Gostava de andar pelos campos entre os silvados, mas não suportava voltar de mãos a abanar. Isso seria desapontá-la, pensava ele, e antes queria morrer.
– Santo Deus! – exclamou a mãe ao vê-los entrar, já tarde, mortos de cansaço e cheios de fome. – Por onde é que vocês andaram?
– Bem – começou Paul –, como aqui não encontrámos nenhuma, fomos até Misk Hills... E veja só, mãe.
Ela espreitou para a cesta.
– E que lindas que são! – exclamou.
– E passa de duas libras... passa de duas libras, não passa, mãe?
A mãe tomou o peso à cesta.
– Passa, sim – respondeu, pouco convicta.
Paul estendeu-lhe um raminho. Trazia-lhe sempre um raminho, o mais bonito que encontrasse.
– Que bonito! – disse ela, com a entoação especial da mulher que recebe um testemunho de amor.
O filho preferia correr os campos o dia inteiro, calcorrear milhas e milhas, a dar-se por vencido e voltar de mãos vazias. Ela nunca o entendeu enquanto ele foi pequeno. Era uma mulher que esperava que os filhos crescessem depressa e se preocupava sobretudo com William.
Mas quando William foi trabalhar para Nottingham, e já não passava tanto tempo em casa, a mãe fez de Paul seu companheiro. Este sentia involuntariamente ciúmes do irmão, e William tinha ciúmes de Paul, mas eram ao mesmo tempo bons amigos.
A relação de Mrs. Morel com o seu segundo filho era mais subtil e tranquila, menos exacerbada talvez do que com o filho mais velho. Estava estabelecido que era Paul quem ia levantar o salário às sextas-feiras à tarde. Os mineiros das cinco minas da zona recebiam à sexta-feira, mas não individualmente. Os salários referentes a cada galeria eram pagos por junto ao capataz, chefe e contratador dos mineiros, e era ele quem fazia a distribuição, na taberna ou na sua própria casa. Para as crianças poderem ir buscar o dinheiro, a escola acabava mais cedo às sextas-feiras. Todos os filhos de Morel, primeiro William, depois Annie e agora Paul, já tinham ido buscar o dinheiro às sextas-feiras à tarde, até chegar a altura de eles próprios começarem a trabalhar. Paul costumava sair de casa às três e meia, com um saquinho de pano no bolso. Por todos os caminhos se viam mulheres, raparigas, crianças e homens a caminho dos escritórios.
Os escritórios eram muito bonitos: num edifício novo de tijolo vermelho, que mais parecia uma mansão, no meio de um jardim muito bem tratado, ao fundo de Greenhill Lane. A sala de espera era no vestíbulo, uma sala comprida e nua com chão de tijoleira azul e um banco a toda a volta, encostado à parede. Era aqui que se sentavam os mineiros, carregados de fuligem. Tinham saído mais cedo da mina. As mulheres e as crianças ficavam geralmente à espera nos arruamentos de gravilha avermelhada. Paul observava sempre com atenção a orla de relva e o grande canteiro onde cresciam amores-perfeitos e miosótis. Aos ouvidos chegava-lhe o som de muitas vozes misturadas. As mulheres exibiam os seus chapéus domingueiros. As raparigas tagarelavam animadas. Os cães corriam para um lado e para o outro. E, em redor, os arbustos erguiam-se verdes e silenciosos.
Nisto, alguém gritava de lá de dentro: «Spinney Park... Spinney Park», e todos os da mina de Spinney Park entravam de tropel. Quando chegava a vez da mina de Bretty, Paul entrava com a multidão. A sala de pagamentos era muito pequena. Um balcão a toda a largura dividia-a ao meio. Atrás do balcão estavam dois homens, Mr. Braithwaite e um empregado, Mr. Winterbottom. Mr. Braithwaite era um homem corpulento, com ar de patriarca austero e uma barbicha branca e rala. Tinha geralmente a boca tapada com um grande lenço de pescoço, em seda, e, mesmo no Verão, havia sempre uma fogueira acesa. Não se via uma janela aberta. Por vezes, no Inverno, o calor até chegava a queimar as gargantas de quem vinha do ar gélido do exterior. Mr. Winterbottom era baixinho, gordo e calvo. Tecia comentários sem o mínimo resquício de imaginação, enquanto o seu chefe não se cansava de proferir patriarcais invectivas contra os mineiros.
A sala estava apinhada de mineiros todos enfarruscados, homens que já tinham ido a casa mudar de roupa, mulheres e uma ou duas crianças, e, geralmente, um cão. Paul era bastante baixo e era por isso sina sua ver-se entalado entre as pernas dos homens, perto do calor sufocante da lareira. Sabia a ordem por que os nomes eram chamados: de acordo com o número da galeria.
– Holliday – chamou a voz metálica de Mr. Braithwaite. Mrs. Holliday avançou em silêncio, recebeu o salário e passou para o outro lado.
– Bower... John Bower.
Um rapaz chegou-se ao balcão. Mr. Braithwaite, uma bisarma irascível, fuzilou-o com o olhar por detrás das lentes.
– John Bower! – voltou ele a chamar.
– Sou eu – disse o rapaz.
– Esta agora..., dantes as ventas eram outras – disse o luzidio Mr. Winterbottom, espreitando por cima do balcão. Os presentes riram-se à socapa, a pensarem no John Bower pai.
– Porque é que o teu pai não veio? – perguntou Mr. Braithwaite, num tom magistral e grandiloquente.
– Não anda bem – respondeu o rapaz, na sua voz aflautada.
– Devias dizer-lhe para largar a bebida – aconselhou o corpulento tesoureiro.
– E depois não te queixes, se ele te ferrar um pontapé – disse uma voz trocista lá de trás.
Todos se riram. O tesoureiro, avantajado e com ares importantes, olhou para a folha que se seguia.
– Fred Pilkington! – chamou, em tom neutro.
Mr. Braithwaite era um importante accionista da firma.
Paul sabia que só faltava um e depois era a vez dele. O coração começou a bater mais depressa. Foi empurrado de encontro à chaminé. Tinha a barriga das pernas a arder, mas não podia furar a barreira humana à sua volta.
– Walter Morel! – soou a voz metálica.
– Aqui – esganiçou-se Paul, da sua pequenez desajeitada.
– Morel... Walter Morel! – repetiu o tesoureiro, de folha de pagamentos na mão, pronto a passar à frente.
Paul foi acometido de convulsões nervosas e não conseguia, ou não queria, gritar. As costas dos homens apagavam-no por completo. Então, Mr. Winterbottom veio em seu auxílio.
– Ele tava aqui... onde tá ele? O miúdo do Morel?
O homem gordo, vermelhusco e calvo perscrutou a sala, assestando os olhos. Nisto, apontou para a chaminé. Os mineiros olharam também e, afastando-se, libertaram o rapaz.
– Aqui tá ele! – disse Mr. Winterbottom. Paul aproximou-se do balcão.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros... Atão, não respondes quando te chamam? – disse Mr. Braithwaite. Pousou um saco com cinco libras em prata com toda a força em cima da folha de pagamentos e, depois, num gesto rápido e delicado, pegou numa pequena pilha de dez libras em ouro e colocou-a ao lado da prata. As moedas de ouro escorregaram sobre o papel como um rio de brilho. O tesoureiro acabou de contar o dinheiro e o rapaz levou tudo a Mr. Winterbottom, no outro extremo do balcão, a quem deviam ser pagas a renda da casa e o aluguer das ferramentas. Aí chegado, novo percalço.
– Dezasseis xelins e seis dinheiros – disse Mr. Winterbottom.
O rapaz estava nervoso de mais para contar o dinheiro, pelo que empurrou algumas moedas de prata e meio soberano na direcção do funcionário.
– Quanto julgas tu que me destes? – perguntou Mr. Winterbottom.
O rapaz fitou-o, sem responder. Não fazia a menor ideia.
– Perdestes a língua?
Paul mordeu o lábio e empurrou mais algumas moedas de prata por cima do balcão.
– Na escola num t’insinaram a contar? – perguntou o homem.
– Só álgibra e franciú – disse um mineiro.
– E a ser sabido – acrescentou outro.
Paul sabia que por sua causa havia gente à espera. Com mãos trémulas, guardou o dinheiro no saco e saiu. Estas ocasiões eram para ele como as penas do Inferno.
Quando se apanhou cá fora, na estrada de Mansfield, sentiu-se infinitamente aliviado. O muro do parque estava coberto de musgo muito verde. Galinhas brancas e douradas debicavam à volta das macieiras de um pomar. Os mineiros serpenteavam rumo a casa. O rapaz seguia rente ao muro, envergonhado. Conhecia muitos dos homens, mas assim, todos sujos, não conseguia identificá-los, o que para ele era uma nova tortura.
Quando chegou à taberna New Inn, em Bretty, o pai ainda não tinha chegado. Mrs. Wharmby, a taberneira, conhecia-o. A avó dele, a mãe de Morel, fora amiga de Mrs. Wharmby.
– O teu pai ainda não chegou – disse ela, naquele tom meio atrevido, meio maternal, de mulher habituada a falar sobretudo com homens feitos. – Senta-te.
Paul sentou-se ao balcão, na beira de um banco alto. Alguns mineiros estavam a um canto a «dividir o bolo» – a distribuir o dinheiro – e outros vinham a entrar. Todos miravam o rapaz, sem dizer palavra. Finalmente, Morel chegou, todo desempenado e com um certo toque de galhardia, apesar da pretidão.
– Olá – disse ele, ternamente, para o filho. – Atão, inda conseguiste chegar primeiro do qu’eu? Queres beber alguma coisa?
Paul, tal como os irmãos, tinha crescido um anti-alcoólico convicto, e para ele era pior beber uma limonada à frente de todos aqueles homens do que tirar um dente.
A taberneira mirou-o dos pés à cabeça, penalizada, mas ao mesmo tempo ofendida com a rigidez moral de que dava mostras. Paul voltou para casa rubro de vergonha. Entrou em silêncio. Sexta-feira era dia de cozer o pão e havia geralmente uma carcaça quentinha à sua espera. A mãe veio dar-lha.
De repente, ele virou-se a ela furioso, de olhos a faiscar.
– Nunca mais entro naquele escritório.
– Porquê, o que é que aconteceu? – perguntou a mãe, surpreendida. Divertia-se imenso com os súbitos ataques de fúria deste filho.
– Nunca mais lá volto – afirmou ele.
– Pronto, está bem. Então, vai dizer isso ao teu pai.
Paul mastigava o pão como se tivesse alguma coisa contra ele.
– Não vou... Não vou mais buscar o dinheiro.
– Então talvez um dos miúdos do Carlin possa ir. Eles haviam de gostar de ficar com os seis dinheiros – disse Mrs. Morel.
Os seis dinheiros era tudo o que Paul recebia. Gastava-os quase todos a comprar presentes de aniversário, é certo, mas eram a sua semanada e prezava-os muito. Porém, disse:
– Pois que fique com eles! Eu não os quero.
– Muito bem – respondeu a mãe. – Mas não precisas de me tratar mal por causa disso.
– Eles são horríveis e ordinários... são horríveis, pronto, e eu não vou lá mais. Mr. Braithwaite pronuncia mal as palavras e Mr. Winterbottom diz «a gente semos».
– E é por isso que não queres lá voltar? – disse a mãe a sorrir.
O rapaz ficou calado. Estava muito pálido, com os olhos pretos e furiosos. A mãe voltou aos seus afazeres sem lhe dar mais importância.
– Eles metem-se todos à minha frente e eu não consigo sair donde estou – disse ele.
– Bem, meu filho, só tens de pedir licença – respondeu ela.
– E depois o Alfred Winterbottom diz, «O qu’é que t’insinam na escola?»
– A ele nunca ensinaram grande coisa – disse Mrs. Morel. – Lá isso é verdade... nem boas maneiras, nem inteligência... a única coisa que tem é manha.
– E vão eles e dizem, «Só álgibra e franciú.» Na escola, não ensinam francês.
– Mas, se ensinassem – disse a mãe, sorrindo – não era preciso ficares tão zangado... Portas-te duma maneira tão infantil, meu filho, quando alguém brinca contigo.
– E depois? – Paul olhou para a mãe quase a chorar, e ainda com mais raiva e ódio do que propriamente ofendido.
– És tão pateta – continuou ela. – Não consegues dizer simplesmente «agora é a minha vez», deixas-te ultrapassar e depois ficas furioso. A culpa é tua.
E, assim, lá o acalmou, embora à sua maneira. A ridícula hiper-sensibilidade dele confrangia-lhe o coração. Outras vezes, a fúria que via nos olhos do filho alertava-a, fazia a sua alma adormecida levantar a cabeça momentaneamente, surpreendida.
– Quanto foi desta vez? – perguntou.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros, e dezasseis xelins e seis dinheiros de retenção – replicou o rapaz. Foi uma boa semana... e só cinco xelins de retenções para o meu pai.
Assim, ela podia calcular quanto o marido tinha ganho, e chamá-lo à pedra se ele lhe desse pouco dinheiro. Morel guardava sempre para si o segredo do montante da semana.
Sexta-feira era a noite de cozer pão e de ir ao mercado. Regra geral, Paul ficava em casa a vigiar o pão. Gostava de ficar a desenhar ou a ler – adorava desenhar. Annie punha-se sempre ao fresco à sexta-feira à noite, e Arthur entretinha-se a brincar na rua, como de costume. Por isso, Paul ficava sozinho.
Mrs. Morel gostava muito de ir à compras. No exíguo terreiro no cimo da colina onde se juntavam as quatro estradas vindas de Nottingham e Derby, Ilkeston e Mansfield, eram montadas muitas barracas. Chegavam breques das aldeias em redor. O mercado enchia-se de mulheres, as ruas ficavam apinhadas de homens. Mrs. Morel costumava discutir com a vendedeira de rendas, simpatizava com o homem da fruta, que era muito falador – mas a mulher, essa era uma desavergonhada, sempre a dar conversa ao peixeiro, que era um patife, mas muito espirituoso – metia na ordem o vendedor de linóleo, mostrava-se distante com o homem do bricabraque, e só entrava na barraca das loiças quando se sentia atraída – ou arrastada – pelas florinhas que decoravam algum prato ou alguma travessa. Mas, sempre que isso acontecia, mostrava-se delicadamente reservada.
– Estava aqui a pensar quanto poderia custar isto – dizia ela.
– Sete dinheiros, por ser para si.
– Obrigada.
Pousava de novo a travessa e ia-se embora. Mas não era capaz de deixar o mercado sem a levar. E lá ia ela outra vez ao sítio onde as loiças estavam expostas pelo chão, e olhava de soslaio para a travessa, furtivamente, fingindo que não estava a olhar.
Era uma mulher franzina, de chapéu e fato preto. O chapéu já tinha quase três anos, para vergonha e desespero de Annie.
– Mãe! – implorava ela. – Não ponhas mais esse chapéu horroroso.
– E queres que eu ponha o quê? – retorquia a mãe, com aspereza. – Acho que está até muito bom.
Começara por ser enfeitado com uma pala, depois seguiram-se flores, e agora estava reduzido a uma rendinha preta e um pouco de azeviche.
– Tem tão mau aspecto – dizia Paul. – Não lhe pode dar um ar um pouco mais moderno?
– Posso é dar-te umas boas palmadas, para não seres atrevido – disse Mrs. Morel, e atava as fitas do chapéu preto debaixo do queixo, com determinação.
Contemplou a travessa uma vez mais. Tanto ela como o oleiro se sentiam pouco à vontade, como se entre eles existisse qualquer desentendimento. De repente, o oleiro exclamou:
– Quer levá-la por cinco dinheiros?
Ela estremeceu. O coração apertou-se-lhe. Mas, depois, baixou-se e pegou na travessa.
– Fico com ela – disse ela.
– Faz-me esse favor, não é? – disse o homem. – O melhor é cuspir-lhe em cima, como se faz quando nos dão uma prenda.
Mrs. Morel deu-lhe os cinco dinheiros com frieza.
– Não acho que ma esteja a dar, percebe – disse ela. – Se não quisesse, não ma deixava levar por cinco dinheiros.
– Neste país de miséria, já nos podemos dar por muito felizes se pudermos dar as nossas coisas – resmungou o homem.
– Pois é, há tempos bons e maus – disse Mrs. Morel.
Mas já tinha perdoado ao oleiro. Agora, eram amigos. Já se atrevia a mexer nas loiças expostas e sentia-se feliz.
Paul estava à espera da mãe. Adorava vê-la entrar em casa. Chegava sempre radiante, triunfante, cansada, carregada de embrulhos, mas rica de espírito. Ele ouvia os seus passinhos leves na entrada e levantava os olhos das pinturas.
– Oh! – suspirava ela, sorrindo-lhe da soleira da porta.
– Ena pá, como vem carregada! – exclamava Paul, pousando o pincel.
– Se venho! – dizia ela, ofegante. – A marota da Annie disse que ia ter comigo. Olha para o peso que eu trago!
Pousou o saco e os pacotes em cima da mesa.
– O pão já está cozido? – perguntou, dirigindo-se para o forno.
– O último está a crescer – respondeu ele. – Não precisa de ir ver, eu não me esqueci dele.
– Ai, aquele oleiro! – disse ela, fechando a porta do forno. – Lembras-te de eu te dizer como ele era antipático. Bom, agora já não acho que seja assim tão mau.
– Ah, não?
O filho não tirava os olhos dela. Mrs. Morel tirou o chapelinho preto.
– Não... Acho que ele acaba por não ganhar nada... bem, passa-se o mesmo com toda a gente, nos tempos que correm... e é isso que o deixa mal-encarado.
– A mim deixava com certeza – disse Paul.
– Bom, e não seria para admirar... E ele deixou-me ficar esta... Por quanto é que achas que ele me deixou ficar isto?
Tirou a travessa do papel que a embrulhava e contemplou-a, satisfeita.
– Mostre lá! – pediu Paul.
E ficaram os dois lado a lado a admirar a travessa.
– Adoro ver estas florinhas a enfeitar as coisas – disse Paul.
– Eu também. E lembrei-me do bule que me compraste...
– Um xelim e três dinheiros – disse Paul.
– Cinco dinheiros!
– Foi muito barata, mãe.
– Pois foi. Pode dizer-se que foi quase roubada. Mas já tinha feito muitas extravagâncias e não tinha dinheiro para mais. E, se ele não quisesse, não precisava de ma vender.
– Lá isso, não, não precisava – disse Paul, e ficaram os dois a consolar-se mutuamente do receio de terem roubado o oleiro.
– Podemos usá-la para pôr fruta cozida – alvitrou Paul.
– Ou leite-creme... ou doce de fruta – acrescentou a mãe.
– Ou rabanetes e alface – continuou ele.
– Não te distraias com o pão – disse a mãe, numa voz transbordante de alegria.
Paul foi espreitar o pão e bateu-lhe ao de leve na parte de baixo.
– Já está cozido – disse, mostrando-o à mãe. Ela bateu-lhe também.
– Pois está – respondeu ela, começando a tirar as compras do saco. – Oh, sou uma gastadora, uma perdulária... Sei que um dia me vai fazer falta.
Paul foi a saltitar para junto da mãe, para ver as últimas extravagâncias. Ela abriu um outro embrulho em papel de jornal e pôs à mostra algumas raízes de amores-perfeitos e boninas carmesim.
– Quatro dinheiros! – lamentou-se.
– Que barato! – exclamou ele.
– Pois é, e logo esta semana que eu estava sem um tostão.
– Mas são lindas! – exclamou ele.
– Então não são! – exclamou ela, dando lugar ao mais genuíno contentamento. – Paul... olha para esta florinha amarela... que bonita, não é... e uma cara que parece de velho!
– E parece mesmo! – exclamou Paul, baixando-se para cheirar. – E que bem que cheira! Mas está um bocado suja.
Correu para a copa, voltou com um pano molhado, e lavou o amor-perfeito com todo o cuidado.
– Agora, olhe para ele, está todo molhado! – disse Paul.
– Pois está! – exclamou ela, a transbordar de felicidade.
As crianças de Scargill Street consideravam-se muito selectas. Ao fundo da rua, onde viviam os Morels, não havia muita gente nova, e, por isso, os que havia eram mais unidos. Rapazes e raparigas brincavam uns com os outros: as raparigas participavam nas lutas e jogos violentos dos rapazes, e os rapazes tomavam parte nas danças de roda e nos jogos de faz-de-conta das raparigas.
Annie, Paul e Arthur gostavam das noites de Inverno, quando não chovia. Deixavam-se ficar dentro de casa até os mineiros terem regressado todos, até ser noite fechada e a rua ficar deserta. Nessa altura, enrolavam um cachecol ao pescoço, pois prescindiam do casacão, tal como os outros filhos dos mineiros, e saíam de casa. A entrada da rua estava completamente às escuras daquele lado e a noite estendia-se vazia, com um pequeno emaranhado de luzinhas lá em baixo, na mina de Minton, e um outro bem mais longe, na direcção oposta, na de Selby. As luzes mais distantes pareciam prolongar as trevas para sempre. As crianças olhavam ansiosas para o lampião solitário postado ao fundo da rua, na extremidade da ladeira da encosta. Se o escasso espaço de luz estava deserto, os dois rapazes ficavam desolados. Encostavam-se ao candeeiro, de mãos nos bolsos e costas viradas à noite, aborrecidíssimos, a olharem para as casas às escuras. Nisto, avistaram um bibe por baixo de um casaquinho curto, e uma rapariga de pernas altas a correr para eles.
– Onde tão o Billy Pillins e a vossa Annie e o Eddie Dakin?
– Não sei.
Mas isso não tinha importância – agora já eram três, e punham-se a correr à volta do poste até os outros aparecerem a gritar. Daí em diante, era brincadeira a valer.
Existia apenas este candeeiro. Para trás dele, só a imensa concha de trevas que parecia conter a noite inteira. À sua frente, um caminho largo e escuro percorria a cumeada. De vez em quando, saía alguém desse caminho e dirigia-se para o vale, pelo carreiro, sendo tragado pela noite a uns escassos dez metros de distância. As crianças continuaram a brincar.
Eram excessivamente unidas devido ao isolamento em que viviam. Mas, se se zangavam, a brincadeira ficava completamente estragada. Arthur era muito susceptível, e Billy Pillins, ou melhor, Philips, era-o ainda mais. Paul tinha de tomar o partido de Arthur, e a Paul juntava-se Alice, enquanto Billy Pillins contava sempre com o apoio de Emmie Limb e Eddie Dakin. Depois, envolviam-se os seis à bulha, odiando-se com toda a fúria do mais genuíno ódio, e corriam para casa apavorados. Paul nunca se havia de esquecer de ter visto uma noite, depois de uma destas assanhadas lutas fratricidas, uma grande lua vermelha elevar-se lentamente no céu por cima da estrada deserta da cumeada, sem vacilar, como pássaro gigantesco; e a imagem bíblica que o assaltou, da lua a transformar-se em sangue. No dia seguinte, apressou-se a ir fazer as pazes com Billy Pillins, e as desenfreadas brincadeiras retomaram o seu curso à luz do candeeiro solitário, rodeadas da mais negra escuridão. Mrs. Morel, ao entrar na sala, ouvia as crianças a cantar ao longe:
«Uso sapatos de couro espanhol,
Meias de seda, para meu deleite;
Anéis nos dedos, que brilham ao sol,
E só tomo banho em tinas de leite.»
Pareciam tão absorvidas no jogo, pelo som das suas vozes que penetrava as trevas, que dir-se-ia o canto de criaturas selvagens. A mãe estremecia e entendia-os quando voltavam às oito horas, afogueados, de olhos brilhantes e língua solta e vibrante.
Todos eles gostavam desta casa de Scargill Street pela sua largueza de horizontes, pela sua abertura sobre a concha de mundo que dominava. Nas noites de Verão, as mulheres vinham arrimar-se à cerca da encosta, a conversar, viradas para poente, vendo o sol apagar-se num lampejo e espraiando o olhar até aos montes do Derbyshire, recortados ao longe num céu de carmim, como a crista negra de uma salamandra.
Neste Verão, as minas não estavam a trabalhar em pleno, especialmente as de carvão mole. Mrs. Dakin, que morava ao lado de Mrs. Morel, costumava ficar a ver os homens subirem a encosta lentamente sempre que se assomava à cerca para sacudir o tapete. Viu logo que eram mineiros e ficou à espera lá em cima, alcandorada na colina, alta, magra, olhar astuto e penetrante, uma quase ameaça para os pobres mineiros que a custo trepavam a ladeira. Eram apenas onze horas. A neblina que, como fino crepe negro, cobre o horizonte das manhãs estivais não se tinha ainda dissipado sobre as colinas frondosas desenhadas à distância. O primeiro homem alcançou a cancela, que chiou à sua passagem.
– O quê, mandaram-no embora? – gritou Mrs. Dakin.
– Mandaram, sim senhora.
– É uma pena deixarem-nos vir embora – disse ela, sarcástica.
– Lá isso é – respondeu o homem.
– E não apetece nada voltar para casa agora – disse ela.
O homem seguiu o seu caminho. Quando Mrs. Dakin atravessava o quintal, de volta a casa, avistou Mrs. Morel, que ia despejar as cinzas da lareira.
– Acho que Minton fechou, Mrs. Morel – gritou ela.
– É uma vergonha! – exclamou Mrs. Morel indignada.
– Pois é... Vi mesmo agora o Jont Hutchly.
– Bem podiam ter poupado as solas dos sapatos – disse Mrs. Morel, e voltaram as duas para casa indignadas.
Os mineiros, de caras quase limpas, voltavam para casa. Morel detestava ter de se vir embora. Adorava as manhãs soalheiras, mas ir para a mina e mandarem-no embora logo a seguir estragava-lhe a boa disposição.
– Santo Deus... já? – exclamou a mulher, vendo-o entrar.
– Qu’hei-d’eu fazer, mulher! – berrou ele.
– E eu não tenho comida que chegue.
– Num faz mal, como o farnel que levei – vociferou ele, pateticamente. Sentia-se envergonhado e irritado.
Os filhos, quando chegaram da escola, estranharam ver o pai a comer as duas grossas fatias de pão com manteiga que tinha levado para a mina, já muito secas e sujas.
– Porque é que o meu pai tem de comer o farnel aqui em casa? – perguntou Arthur.
– Porqu’ela ficava toda zangada s’eu num o comesse – respondeu Morel.
– Lá estás tu com histórias! – exclamou a mulher.
– E achas qu’é pra deitar fora? – disse Morel. – Eu num sou esquisito como vocês, que desperdiçam tudo. Se me cai um bocado de pão na mina, no meio daquela porcaria toda, apanho-o e como-o.
– Os ratos comiam-no – disse Paul – e já não era um desperdício.
– Pão cum manteiga pròs ratos? Nem pensar nisso – disse Morel. – Sujo ou limpo, antes comê-lo eu que deitá-lo fora.
– Podias dá-lo aos ratos e comprares mais com o dinheiro que gastas na cerveja – disse Mrs. Morel.
– Ah, podia...? – exclamou o marido.
O Outono que se seguiu foi de míngua. William tinha acabado de partir para Londres e a mãe sentia a falta do dinheiro que ele lhe costumava entregar. Ainda lhe mandou dez xelins por uma ou duas vezes, mas no início tinha muitas compras a fazer. As suas cartas chegavam com regularidade, uma vez por semana. Escrevia longas cartas à mãe em que lhe contava o que fazia, os amigos que tinha, as lições que trocava com um francês, como gostava de viver em Londres. Para a mãe era como se ele estivesse com ela, como no tempo em que morava em casa. E ele todas as semanas lhe escrevia cartas francas e cheias de espírito. Era nele que ela pensava o dia inteiro, enquanto fazia a limpeza da casa. Ele estava em Londres, ia ter sorte. Era quase como se fosse o seu cavaleiro andante, ostentando as cores dela na batalha.
Vinha agora a casa passar cinco dias pelo Natal. Não havia memória de tantos preparativos. Paul e Arthur correram os campos à procura de azevinho e sempre-viva. Annie fez enfeites de papel recortado à moda antiga, e a despensa estava farta como nunca. Mrs. Morel fez um bolo de natal enorme, magnífico, e sentindo-se uma rainha, mostrou a Paul como se pelavam amêndoas. Ele pelou as oleaginosas com reverência, contando-as, uma a uma, não fosse alguma perder-se. Dizia-se que as claras subiam mais num lugar frio e, por isso, Paul foi para a copa, onde o frio era quase insuportável, batendo-as sem parar e correndo excitadíssimo a mostrar a mãe como as claras cresciam, cada vez mais firmes e nevadas.
– Olhe, mãe... estão óptimas, não estão?
Depois, pôs um bocadinho na ponta do nariz e soprou-o para o ar.
– Então, isso não é para estragar – disse a mãe.
Toda a gente andava excitadíssima. William ia chegar na véspera de Natal. Mrs. Morel passou revista à despensa. Havia um grande bolo de passas e um bolo de farinha de arroz; tartes de geleia e de limão, e duas grandes travessas cheias de empadas de carne. E ainda faltavam umas tartes de amêndoa e de queijo que ela preparava a toda a pressa. A casa estava toda enfeitada. A coroa de azevinho, salpicada de bagas bem vermelhas e pendurada entre grinaldas cintilantes, rodopiava por cima da cabeça de Mrs. Morel enquanto ela recortava a massa das tartes na cozinha. A fogueira, imensa, crepitava. A casa rescendia a bolos e massa folhada. William devia chegar às sete horas, mas o mais provável era atrasar-se. Os irmãos tinham ido ao seu encontro. A mãe ficara sozinha. Mas, por volta de um quarto para as sete, Morel voltou para casa. Marido e mulher nada disseram. Ele sentou-se no cadeirão, ansioso, sem saber o que fazer, e ela continuou com os seus cozinhados. A sua comoção só era traída pelo modo meticuloso como ia fazendo as coisas. E o relógio continuou a bater.
– A que horas disseste qu’ele chegava? – perguntou Morel, pela quinta vez.
– O comboio chega às seis e meia – respondeu ela, enfaticamente.
– Então vai chegar por volta das sete e dez.
– Deus te oiça, mas o comboio vai atrasar-se algumas horas no Midlands – disse ela, aparentando indiferença. Fazia-o, no entanto, com a esperança de acontecer o contrário e ele chegar mais cedo. Morel foi até à porta, para ver se o via. Depois voltou para dentro.
– Credo, homem! – disse ela. – Parece que tens bicho-carpinteiro.
– Em vez de estares pr’aí a falar, num era melhor arranjares-lhe alguma coisa para comer? – disse o marido.
– Tenho muito tempo para isso – respondeu ela.
– Num é o que me parece – contrapôs ele, virando-se amuado na cadeira. Ela começou a limpar a mesa da cozinha. A chaleira já apitava. E eles à espera.
Entretanto, os outros três filhos estavam em Lethley Bridge, uma estação da linha do Midlands, a duas milhas de casa. Esperaram uma hora. Chegou um comboio, e nada. Ao fundo da linha, as luzes verdes e vermelhas acendiam e apagavam. Estava muito escuro e fazia muito frio.
– Vai perguntar-lhe se o comboio de Londres já passou – disse Paul a Annie quando avistaram um homem de boné de pala.
– Não vou nada – disse Annie. – Fica mas é calado, senão ele inda nos manda embora.
Mas Paul estava morto por que o homem soubesse que eles esperavam alguém que vinha de Londres, o que lhes dava uma certa importância. Porém, tinha medo, muito medo, de abordar um desconhecido, e ainda por cima de boné de pala. As crianças nem se atreviam a entrar na sala de espera, com medo de que os mandassem embora, e que alguma coisa acontecesse enquanto não estavam na plataforma. E lá continuaram à espera, no frio e na escuridão.
– Já está hora e meia atrasado – disse Arthur, já a desesperar.
– Bem – disse Annie –, é véspera de Natal.
O silêncio crescia entre eles. O irmão não vinha. Perscrutaram a escuridão ao longo da linha férrea. Lá ao fundo, ficava Londres! Uma lonjura infinita, pensaram. Tudo podia acontecer quando se vinha de Londres. Estavam demasiado preocupados para falarem. Enregelados, tristes e mudos, continuavam encostados uns aos outros na plataforma.
Finalmente, passadas mais de duas horas, avistaram os faróis de uma locomotiva a descrever uma curva na distância. Um bagageiro aproximou-se a correr. As crianças chegaram-se para trás com os corações a galope. Um enorme comboio com destino a Manchester parou. Abriram-se duas portas e, de uma delas, saiu William. Os irmãos atiraram-se a ele. Ele, todo contente, entregou-lhes muitos embrulhos e logo explicou que aquele grande comboio só tinha parado numa estação insignificante como Lethley Bridge por causa dele, já que a paragem não estava programada.
Entretanto, os pais iam ficando cada vez mais preocupados. A mesa estava posta, a costeleta grelhada, tudo estava a postos. Mrs. Morel pôs o seu avental preto. Por baixo, tinha o seu melhor vestido. Depois sentou-se e fingiu concentrar-se na leitura. Os minutos arrastavam-se como uma tortura.
– Hum! – disse Morel. – Já passa hora e meia.
– E aquelas crianças à espera! – disse ela.
– O comboio inda num pode ter chegado – disse ele.
– É o que eu digo. Na véspera de Natal vêm com horas de atraso.
Estavam os dois implicativos de tanta ansiedade. O freixo gemia lá fora fustigado por um vento gélido, implacável. E tanta noite a separar Londres do lar! Mrs. Morel sofria. O tiquetaque do relógio irritava-a sobremaneira. Estava a fazer-se tarde. A espera estava a tornar-se insuportável.
Por fim, o ruído de vozes e de passos na entrada.
– Já chegou! – gritou Morel, saltando da cadeira.
Depois, deu um passo à retaguarda. A mãe correu em direcção à porta e ficou à espera. Seguiu-se um tropel de passos, a porta escancarou-se e William apareceu. Largou no chão o saco de viagem e abraçou-se à mãe.
– Mater! – disse ele.
– Meu filho! – gritou ela.
E, durante não mais de dois segundos, ela abraçou-o e beijou-o. Depois, afastou-se e disse, com a naturalidade possível:
– Mas que grande atraso!
– Foi, não foi? – exclamou ele, voltando-se para o pai.
– Então, pai!
E os dois homens trocaram um aperto de mão.
– Então, meu rapaz!
Os olhos de Morel estavam rasos de lágrimas.
– Távamos a ver que nunca mais chegavas – disse ele.
– Então não havia de chegar! – exclamou William, voltando-se para mãe.
– Estás com óptimo aspecto – disse Mrs. Morel, a rir, toda orgulhosa.
– Claro... – respondeu o filho. – Basta ter voltado para casa.
Era um jovem desempenado, alto, garboso e de olhar intrépido. Olhou em volta, para a sempre-viva e o azevinho, e para as empadas que estavam dentro das forminhas em cima do fogão.
– Graças a Deus que nada mudou, mãe – disse ele, satisfeito. Todos ficaram calados por um momento. De repente, ele deu um salto em frente, tirou uma empadinha do fogão e meteu-a na boca de uma só vez.
– Safa, já alguma vez viram um saco roto como este? – exclamou o pai.
William trazia um nunca mais acabar de presentes para todos. Gastara quanto tinha para os comprar. A casa foi invadida por uma certa atmosfera de luxo e prosperidade. Para a mãe, uma sombrinha com o cabo beige com enfeites dourados. Ela guardou-a para quando morresse, e antes queria perder tudo o que tinha a ficar sem ela. Todos receberam coisas bonitas e, além disso, ele trouxe também montes de guloseimas desconhecidas naquelas paragens: geleias de frutos, ananás cristalizado, coisas que as crianças pensavam que só o esplendor de Londres tornava possíveis. E Paul não se calava de gabar tais guloseimas diante dos amigos.
– Ananás autêntico, às fatias, e transformado em cristal... bem bom!
Todos estavam loucos de felicidade. Não há nada que chegue ao próprio lar, e eles amavam-no com paixão, apesar dos maus bocados lá passados. Chegavam visitas, todos vinham dar-lhe os parabéns. Os vizinhos vinham ver o que Londres tinha feito de William e todos achavam que ele estava «um verdadeiro cavalheiro, e um belo rapaz, isso é que estava!».
Quando ele se foi embora outra vez, os irmãos foram chorar às escondidas para sítios diferentes, Morel foi meter-se na cama abatidíssimo e Mrs. Morel sentia-se como se estivesse drogada, como se os seus sentimentos tivessem paralisado. Amava o filho com verdadeira paixão.
William trabalhava no escritório de um advogado ligado a uma grande companhia de navegação e, em Junho, o chefe proporcionou-lhe uma viagem ao Mediterrâneo num dos barcos da companhia, por um preço irrisório. Mrs. Morel mandou-lhe dizer: «Vai, sim, meu filho. Podes não voltar a ter uma oportunidade como essa, e, para mim, ver-te a navegar no Mediterrâneo é talvez ainda melhor do que ter-te aqui em casa.» Mas William veio passar as duas semanas de férias a casa. Nem o Mediterrâneo, apelando embora a toda a sua ânsia de viajar e ao seu deslumbramento de homem pobre diante da opulência do Sul, podiam mantê-lo longe de casa. E isso era para a mãe compensação bastante para todos os sacrifícios.
V
PAUL ENFRENTA A VIDA
MOREL era um homem negligente, indiferente ao perigo, sofrendo por isso inúmeros acidentes. De tal forma que, quando Mrs. Morel ouvia chiar as rodas de uma carroça de transporte de carvão, estacando à sua porta, corria logo para a janela da sala à espera de ver o marido lá sentado, com o rosto macilento por baixo da camada de fuligem, e o corpo inerte, vítima de qualquer contusão ou outro percalço. Se era ele, saía de casa a correr para o ajudar.
Cerca de um ano após William ter ido para Londres, e logo depois de Paul ter saído da escola, mas quando ainda não tinha arranjado trabalho, estava Mrs. Morel no andar de cima e o filho na cozinha, entretido a pintar – fazia maravilhas com os pincéis – quando bateram à porta. Enfadado, Paul pousou o pincel para ir abrir. Simultaneamente, a mãe abriu a janela e espreitou para a rua.
Era um mineiro, um rapazito, que batia à porta.
– É aqui que mora o Walter Morel? – perguntou.
– É, sim! – respondeu Mrs. Morel. – Aconteceu alguma coisa?
Mas ela já tinha adivinhado.
– O seu marido aleijou-se – disse o rapaz.
– Oh, meu Deus! – exclamou ela. – Quando não acontece nada é que é para admirar. O que foi desta vez?
– Num sei bem, mas foi na perna... Levaram-no prò hospital.
– Valha-me Deus! – exclamou ela. – Ah, este homem... este homem...! Não me dá cinco minutos de descanso, eu morra aqui se não é verdade! O polegar já estava quase bom e agora... Tu viste-o?
– Vi-o lá ’baixo. E vi-os trazerem-no pra cima num elevador... tava branco cum’á cal. E o qu’ele berrou quando o Dr. Fraser o examinou na casa das lanternas... sempre aos berros e a praguejar... e a dizer que queria qu’o trouxessem pra casa... que num ia prò hospital...! E o rapaz calou-se.
– Isso é bem dele... quer vir para casa, para me dar trabalho... Obrigada, meu filho... Que cansada que eu estou de tudo isto... cansada e farta... isso é que eu estou!
Desceu as escadas. Paul tinha recomeçado a pintar, mecanicamente.
– Deve ser grave... para o levarem para o hospital... – continuou ela. – Mas que criatura mais descuidada! Os outros homens não podem ter assim tantos acidentes... É isso, ele queria deitar o trabalho todo para cima das minhas costas... E logo agora, que as coisas estavam finalmente a correr um bocadinho melhor... Vá, deixa isso, agora não há tempo para pinturas... A que horas tenho comboio? Agora vou ter de ir até Kreston... o quarto tem de esperar.
– Eu acabo de o arrumar – disse Paul.
– Não precisas... às sete horas estou de volta, acho eu... E o barulho que ele vai fazer... nem quero pensar... E aqueles calhaus de granito de Tinder Hill... ele bem pode chamar-lhes pedrinhas... os solavancos vão dar cabo dele. Não sei porque não consertam a estrada... naquele estado... e com tanta gente a passar por lá na ambulância... Devia haver aqui um hospital... Já compraram o terreno... e não iam faltar acidentes para o manter a funcionar. Mas não, têm de os levar não sei quantas milhas naquela ambulância ronceira até Nottingham. É uma vergonha! E o estardalhaço que ele vai fazer, já sei como é! Quem terá ido com ele?... O Barker, provavelmente. Coitado, vai desejar estar em qualquer lado menos ali. Mas vai cuidar bem dele, eu sei. E agora sei lá quanto tempo ele vai ficar naquele hospital... e ele que detesta! Enfim, se for só a perna, já não é mau.
Ia falando enquanto se preparava para sair. Despindo o corpete à pressa, baixou-se para a caldeira, enquanto a água corria lentamente para o jarro.
– Era bem melhor se esta caldeira não existisse! – exclamou ela, apertando a asa do jarro com impaciência. Tinha uns braços fortes e bem torneados, surpreendentes numa mulher da sua estatura.
Paul arrumou as suas tralhas, pôs a chaleira ao lume e pôs a mesa.
– Só há um comboio às quatro e vinte – disse ele. – Tem tempo de sobra.
– Não tenho, não! – gritou ela, piscando os olhos e fitando-o por cima da toalha, enquanto limpava a cara.
– Tem, sim... Tem pelo menos de beber uma chávena de chá. Quer que vá consigo até Keston?
– Vires comigo para quê, pode saber-se?... Ora deixa cá ver o que é que eu tenho de lhe levar... Valha-me Deus!... A camisa lavada... e é uma sorte estar lavada... mas ficava melhor se a tivesse posto ao ar... as meias... isso ele não vai querer... e uma toalha, acho eu... e lenços... e que mais?
– Um pente, uma faca, um garfo e uma colher – disse Paul. Já não era a primeira vez que o pai ficava internado no hospital.
– Sabe Deus em que estado ele tinha os pés – continuou Mrs. Morel, penteando o cabelo castanho e muito comprido, fino como seda e já salpicado de fios prateados. – Ele nunca se esquece de se lavar da cintura para cima, mas para baixo acha que já não é preciso. Mas devem apanhar lá muitos como ele.
Paul tinha posto a mesa e preparou duas fatias finas de pão com manteiga para a mãe.
– Aqui tem – disse, pondo uma chávena de chá em frente ao lugar dela.
– Agora não tenho tempo – disse ela, secamente.
– Mas tem de ter... Olhe, já está tudo pronto – insistiu o filho.
Ela acabou por se sentar, bebeu uns golinhos de chá e comeu um pouco de pão em silêncio. Estava a pensar.
Daí a nada, tinha de se ir embora, para percorrer a pé as duas milhas e meia até à estação de Keston. Já tinha metido no saco de rede tudo o que ele precisava. Paul ficou a vê-la subir a estrada, entre as sebes de arbustos, pequenina e franzina, e o seu coração sofria por ela, por vê-la sujeita a mais esta provação. E ela, correndo ligeira de tanta ansiedade, sentia atrás de si o coração do filho a acompanhá-la, a tomar para si a parte possível deste fardo, a dar-lhe forças. E, quando chegou ao hospital, pensou: «Ele vai ficar preocupadíssimo quando eu lhe disser que é assim tão grave... o melhor é ter cuidado.» E, de regresso a casa, sentia que tinha com quem partilhar o fardo.
– É grave? – perguntou Paul, mal a viu entrar.
– Mais ou menos – respondeu ela.
– O quê?
Ela suspirou, sentou-se e desapertou as fitas do chapéu. O filho viu-a levantar o queixo e desatar a laçada com os dedos pequeninos, mas endurecidos pelo trabalho.
– Bem – respondeu ela – não se pode dizer que seja perigoso... mas a enfermeira diz que foi uma pancada horrível. Estás a ver... foi um grande bocado de rocha que lhe caiu em cima da perna... aqui, salvo seja... uma fractura múltipla... e tem bocados de osso a sair para fora...
– Ui, que horror! – exclamaram os filhos.
– E claro que ele diz que vai morrer – continuou Mrs. Morel. – É mesmo dele dizer isso... «Estou arrumado, cachopa!», disse ele, olhando para mim. «Não digas disparates», disse eu. «Não vais morrer de uma perna partida, por pior que esteja»... «Só saio daqui num caixão», queixava-se ele. «Bem!», disse eu, «Se queres que eles te levem a passear ao jardim dentro dum caixão, quando estiveres melhor, é só pedires e eles fazem-te a vontade»... «Se acharmos que lhe vai fazer bem», acrescentou a Irmã. Ela é bem simpática, a Irmã, mas muito rigorosa.
Mrs. Morel tirou o chapéu. Os filhos mantiveram-se em silêncio, expectantes.
– Claro que ele está mal – prosseguiu ela. – E vai levar muito tempo a recompor-se. Foi um acidente muito grave e ele perdeu muito sangue... e, já se vê, a lesão é muito perigosa. Ninguém sabe o tempo que vai levar a sarar. E depois há a febre e a gangrena... se correr mal, ele até pode morrer... Mas lá no hospital... e depois ele tem bom sangue... e boa carnadura... Por isso não vejo razão para que tenha de correr mal... Claro que a ferida é muito grande...
Ela estava lívida, da angústia e da emoção. Os três filhos perceberam que o estado do pai era muito grave e a casa ficou silenciosa, perpassada de ansiedade.
– Mas ele melhora sempre – disse Paul, passado um bocado.
– Foi exactamente o que eu lhe disse – exclamou a mãe.
Todos se moviam de um lado para o outro sem fazerem o menor ruído.
– Ele de facto parecia que estava a morrer – disse Mrs. Morel. – Mas a Irmã diz que é das dores.
Annie foi arrumar o casaco e o chapéu da mãe.
– Ficou a olhar para mim quando eu me vim embora...! Eu disse: «Agora tenho de ir, Walter, por causa do comboio... e das crianças...» E ele ficou a olhar para mim... Custou-me tanto...
Paul pegou outra vez no pincel e continuou a pintar. Arthur foi lá fora buscar mais carvão. Annie ficou sentada, muito triste. E Mrs. Morel continuou imóvel, pensativa, na cadeira de baloiço que o marido lhe fizera, quando esperavam o primeiro filho. Estava triste e com muita pena de ver um homem sofrer tanto. Mas, mesmo assim, no fundo do coração, onde a chama do amor devia arder, tinha um vazio. No momento em que toda a sua compaixão de mulher estava exacerbada ao máximo, em que cuidaria dele dia e noite até cair para o lado, em que, se pudesse, de bom grado tomaria as suas dores, algures, num recôndito da alma, era indiferença que encontrava, por ele e pelo seu sofrimento. A dor que sentia vinha sobretudo desta incapacidade de o amar, mesmo quando ele despertava nela as mais fortes emoções. E assim se deixou ficar, pensativa, por um tempo.
– E nisto – disse ela de repente –, quando já ia a meio do caminho, vi que tinha saído com as botas de andar por casa... olhem para isto... – Era um par de botas velhas de Paul, castanhas e com as biqueiras muito gastas. – Nem sabia onde me havia de meter com a vergonha – acrescentou.
Na manhã seguinte, quando Annie e Arthur estavam na escola, Mrs. Morel conversou mais com Paul enquanto ele andava a ajudá-la a arrumar a casa.
– Encontrei o Barker no hospital. Não parecia muito atrapalhado, coitado. «Então», disse eu, «como correu a viagem?» «Num me pregunte, ’nha senhora!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «Eu sei como ele é.» «Mas foi muito custoso pra ele, Mrs. Morel, iss’é que foi!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «A cada safanão, eu inté pensava qu’o coração m’ia saltar pela boca», disse ele. «E os gritos qu’ele dav’às vezes, ’nha senhora... nem que me paguem uma fortuna, me quero ver noutra igual.» «Entendo perfeitamente», disse eu. «A coisa tá feia a valer», disse ele, «e vai levar muito tempo pra ficar bom.» «Também acho que sim», disse eu. Eu gosto de Mr. Barker... gosto mesmo. É um homem e tanto.
Paul continuava a pintar em silêncio.
– E já se sabe – continuou Mrs. Morel –, para um homem como o teu pai é muito duro estar no hospital. Para ele não há normas nem obrigações. E não deixa que ninguém lhe toque, a não ser que não tenha outro remédio. Quando esmagou os músculos da coxa, e tinha de mudar o penso quatro vezes por dia, ele deixava mais alguém mudar-lho a não ser eu ou a mãe dele?... Nem pensar nisso. Claro que agora vai sofrer no hospital, com todas aquelas enfermeiras... Não me agradou nada ter de o deixar lá ficar. Foi um dó de alma quando tive de lhe dar um beijo e vir-me embora...
Mrs. Morel falava com o filho quase como se estivesse a pensar em voz alta para ele ouvir, e ele colaborava o melhor que podia, partilhando com ela o sofrimento, para a aliviar. Afinal, mesmo sem saber, ela partilhava quase tudo com ele.
Morel passou muito mal. Durante uma semana o seu estado foi crítico. Depois, começou a melhorar e, quando souberam que o mau tempo tinha passado, toda a família respirou de alívio e a vida seguiu feliz.
Não passaram grandes dificuldades enquanto Morel esteve internado. Recebiam catorze xelins por semana da mina, dez da assistência aos enfermos, e cinco do Fundo de Invalidez. Além disso, os capatazes traziam todas as semanas qualquer coisa a Mrs. Morel, cinco ou sete xelins, pelo que ela vivia com bastante desafogo. E enquanto Morel ia melhorando no hospital, em casa a família vivia em paz e alegria. Aos sábados e quartas-feiras, Mrs. Morel ia visitar o marido a Nottingham. No regresso trazia sempre qualquer lembrança para os filhos: um tubo de guache para Paul, outras vezes papel cavalinho; postais para Annie, de que toda a família usufruía durante dois ou três dias antes de a deixarem enviá-los a alguém; ou então uma serra para Arthur, ou um belo bocado de madeira. E depois contava animadamente as suas aventuras nos grandes armazéns. Não tardou que os empregados da loja de gravuras a ficassem a conhecer e soubessem tudo sobre Paul. A rapariga da livraria simpatizava até muito com ela. Mrs. Morel tinha histórias sem fim para contar quando voltava de Nottingham. Ficavam os três sentados até à hora de irem para a cama a ouvirem-na contar histórias, a meterem a sua colherada, a conversarem. Depois, era geralmente Paul quem abafava o borralho.
– Agora, sou o homem da casa – dizia ele à mãe, todo ufano. Descobriram como o lar podia ser um lugar de perfeita tranquilidade e, embora nenhum deles ousasse admitir tal desumanidade, quase lamentaram quando souberam que o pai não tardaria a voltar para casa.
Paul tinha agora catorze anos e andava à procura de um emprego. Era um rapaz baixo e franzino, de cabelo castanho-escuro e olhos azul-claros. O seu rosto já tinha perdido os traços arredondados da infância e parecia-se agora com o de William, mais duro, quase austero, e com extraordinária mobilidade. Em geral, parecia estar sempre atento, cheio de vida e de ternura; umas vezes, o seu sorriso, igualzinho ao da mãe, abria-se pronto e encantador; outras, quando algum obstáculo lhe travava o passo ao espírito, a expressão do seu rosto adquiria fealdade e estupidez. Era um daqueles rapazes que se portam como palhaços desajeitados quando não são compreendidos ou sentem que não lhes dão o justo valor, mas que, com igual rapidez se transformam em criaturas adoráveis à primeira prova de ternura.
O primeiro contacto com as coisas era sempre penoso para ele. Aos sete anos tivera de se sujeitar à tortura de entrar para a escola. Mas depois até gostava. E agora, sentindo que era chegada a hora de enfrentar a vida, atravessava crises de avassaladora timidez. Pintava com bastante talento e inteligência para a sua idade, e sabia um pouco de francês, alemão e matemática, coisas que Mr. Heaton lhe havia ensinado. Como a mãe dizia, não era suficientemente forte para o trabalho manual, e também não se interessava por fazer coisas com as suas próprias mãos, preferindo correr, passear pelos campos, ler ou pintar.
– Que queres ser na vida? – perguntava-lhe a mãe.
Não fazia a menor ideia. Teria gostado de continuar a pintar, mas isso nem lhe passou pela cabeça, pois era impossível. Não havia nada que lhe interessasse muito fazer. Mas agora era urgente que começasse a ganhar dinheiro. E, uma vez que não achava que o seu trabalho valesse muito em termos monetários, e sabia que um homem ganhava em qualquer emprego trinta ou trinta e cinco xelins por semana, respondia invariavelmente:
– Qualquer coisa.
– Isso não é resposta – dizia Mrs. Morel.
Mas era a única resposta verdadeira que ele podia dar. As suas ambições, em termos materiais, eram ganhar tranquilamente os seus trinta ou trinta e cinco xelins por semana algures perto de casa, e depois, quando o pai morresse, ter uma casinha no campo, onde viveria com a mãe feliz para sempre, a pintar e a passear o quanto lhe apetecesse. Por agora, era este o seu programa. Tinha-se porém em grande conta, julgando as outras pessoas em relação a si próprio e classificando-as impiedosamente. Às vezes, pensava que talvez pudesse vir a ser um pintor a sério, mas por enquanto não queria alimentar tal sonho.
– Então tens de procurar nos anúncios do jornal – disse a mãe.
Paul ficou a olhar para ela. Parecia-lhe nova humilhação e mais uma tortura a suportar. Mas não disse nada. Desde manhãzinha só tinha um pensamento a martelar-lhe na cabeça: «Tenho de ir ver os anúncios de empregos.»
Este pensamento ensombrava-lhe a manhã e matava-lhe a alegria de viver. Sentia o coração apertar-se-lhe num nó.
Por fim, às dez horas, lá foi ele. As pessoas consideravam-no um rapaz envergonhado, reservado. Ao subir a rua ensolarada, tinha a sensação de que todos os que encontrava iam pensar: «Lá vai ele para a sala de leitura da Cooperativa, para procurar um emprego no jornal. Não consegue arranjar nada. Acho que está a viver à custa da mãe.» Lá chegado, subiu furtivamente a escadaria de pedra por detrás da loja de tecidos e espreitou para a sala de leitura. Geralmente havia por lá uma ou duas pessoas: velhos desocupados, já sem préstimo, ou mineiros «de baixa». Entrou muito retraído, e ficou deveras aflito quando eles levantaram a cabeça; sentou-se à mesa e fingiu estar a passar os olhos pelas notícias. Sabia no que eles estavam a pensar: «O que fará um miúdo de treze anos numa sala de leitura, agarrado a um jornal?» E isso magoava-o.
Depois, pôs-se a olhar lá para fora, pensativo. E sentia-se já presa do industrialismo. Por cima do velho muro fronteiriço de tijolo vermelho grandes girassóis miravam divertidos as mulheres que passavam apressadas, levando qualquer coisa para o almoço. O vale estava coberto de searas radiantes batidas pelo sol. Lá no meio, duas minas agitavam os seus finos penachos de vapor. Nas encostas distantes avistavam-se as florestas de Aldersley, tão cerradas e fascinantes. E logo o coração lhe esmoreceu. Sentia-se aprisionado. Chegara ao fim a vida em liberdade naquele vale que tanto amava.
A carroça da cerveja vinha de Keston estrada acima, carregada de barris – quatro de cada lado – apertados que nem feijões numa vagem. O carroceiro, encarrapitado no seu trono e oscilando pesadamente no assento, não passou a grande distância dos olhos de Paul. O cabelo do homem, de cabeça pequena e fusiforme, estava quase todo branco, descorado pelo sol, e nos braços grossos e avermelhados, balouçando lassamente sobre o avental de estopa, cintilavam pêlos também brancos. A face afogueada reluzia, quase adormecida de tanto sol. Os cavalos, castanhos e elegantes, seguiam a seu bel-prazer, mostrando serem eles os senhores da situação.
Paul queria ser estúpido. «Quem me dera», pensou de si para si, «ser gordo como ele e passar a vida estirado ao sol como um cão. Quem me dera ser um porco e condutor duma carroça de cerveja.»
Depois, vendo a sala finalmente vazia, copiou rapidamente um anúncio para um bocado de papel, e depois outro, e saiu à socapa, sentindo-se imensamente aliviado. A mãe examinou os anúncios.
– Sim – disse ela. – Podes tentar.
William tinha mandado uma carta admiravelmente redigida em linguagem comercial e Paul copiou-a com algumas alterações. A caligrafia do rapaz era execrável, pelo que William, que fazia tudo bem feito, fervia de impaciência.
O irmão mais velho estava a ficar muito pretensioso, ao descobrir que em Londres se podia dar com homens de uma classe muito superior à dos seus amigos de Bestwood. Alguns dos seus colegas do escritório tinham estudado leis e estavam a fazer uma espécie de estágio. William, dado o seu feitio extrovertido, fazia sempre amigos por onde passava e não tardou que começasse a frequentar a casa de pessoas que, em Bestwood, teriam olhado com desdém para o inacessível gerente do banco local e tratado com indiferença o próprio pastor. Começou, por isso, a achar-se um homem importante e até se admirava da facilidade com que se tinha tornado um cavalheiro.
As cartas que escrevia à mãe ilustravam bem a satisfação que sentia.
«The Myrmidons
Limpsfield
Mater querida,
É uma da manhã. Imagine o seu filho a escrever-lhe sentado numa velha cadeira de carvalho, com um candeeiro eléctrico dos mais modernos à frente dele, em cima da mesa. Vestido a rigor, com os botões de punho que lhe ofereceu quando fez 21 anos e achando-se o melhor do mundo. Só queria que a mãe o pudesse ver. Em comparação, Salomão, em toda a sua glória, deve ter-se sentido mal vestido.
Estou a passar o fim-de-semana com o Loosemore, e aproveitei a oportunidade para lhe escrever. ...»
A mãe ficou contente de o ver tão satisfeito. O seu quarto em Walthamstow era tão deprimente. Mas agora as cartas do filho deixavam transparecer uma súbita febre de viver. Afectado por tantas e tão súbitas mudanças, não tinha os pés assentes na terra, e parecia deixar-se arrastar vertiginosamente pelo turbilhão da sua nova vida. A mãe temia por ele. Sentia que ele se estava a perder. Tinha ido a um baile, ido ao teatro, andado de barco no rio, saído com os amigos; mas ela sabia que, depois, tinha ficado até altas horas acordado no quarto gélido a estudar latim, pois queria subir no escritório e estudar leis o mais depressa possível. Agora, nunca mandava dinheiro à mãe. A sua nova vida levava-lhe o pouco que ganhava. Ela também não queria que ele lho mandasse, excepto às vezes, quando as dificuldades eram maiores e dez xelins teriam sido o suficiente para a tirar de apuros. Mas continuava a sonhar com o que o filho faria com ela a apoiá-lo. Nem por um segundo seria capaz de admitir toda a angústia que passava por causa dele.
Entretanto, William começara a falar muito numa rapariga que tinha conhecido num baile, uma morena muito bonita e muito nova, uma verdadeira senhora, por quem todos os homens andavam perdidos de amor.
«Duvido que te perdesses por ela, meu filho, se não visses todos os outros perdidos também. As multidões fazem-nos sentir seguros e vaidosos. Mas tem cuidado, e pensa como te sentirás quando te vires sozinho e triunfante...»
William ficou ofendido com os reparos da mãe e não desistiu dos seus intentos. Tinha levado a rapariga a dar um passeio no rio: «Se a mãe a visse, ia entender o que eu sinto. Alta, elegante, com uma pele transparente, a mais transparente de todas as peles de azeitona, cabelo negro de azeviche e uns olhos esverdeados tão brilhantes e trocistas como luzes reflectidas à noite sobre as águas. Admito que seja um pouco mordaz enquanto não a conhecer. E, além disso, veste-se como as mulheres mais elegantes de Londres. Devo dizer-lhe que, quando ela passeia em Piccadilly com o seu filho, ele, por mais que se esforce, não aparenta nem metade do orgulho que sente.»
Mrs. Morel lia e perguntava-se no seu íntimo, se o filho não andaria a passear em Piccadilly com uma mulher apenas elegante e bem vestida, em vez de uma mulher de quem se sentisse próximo. Mas felicitou-o, no seu modo reticente. E enquanto estava encostada ao tanque, a mãe, preocupada, pensava no filho. Via-o casado com uma mulher cara e elegante e um pequeno ordenado, levando a vida conforme podia, numa casa feia e acanhada dos subúrbios. «E daí...», pensava ela, «é por certo tolice minha... vontade de arranjar complicações.» No entanto, o seu coração raramente sossegava, não fosse William fazer alguma asneira.
Entretanto, Paul foi chamado para se apresentar numa firma de acessórios ortopédicos, a Thomas Jordan, em Nottingham, Spaniel Row, número 21. Mrs. Morel estava radiante.
– Estás a ver! – exclamou, de olhos brilhantes. – Só escreveste quatro cartas e recebes resposta logo à terceira. Tens sorte, meu filho, como eu sempre disse.
Paul olhou para a perna de pau adornada com meias elásticas e outros acessórios que constituía o logotipo do papel timbrado de Mr. Jordan, e ficou alarmado. Até aí nem sabia que existiam meias elásticas. Parecia-lhe sentir o mundo dos negócios com o seu sistema de regras e valores e a sua impessoalidade, e isso atemorizava-o. Parecia-lhe também monstruoso que se pudesse fazer negócio com pernas de pau.
Numa bela terça-feira, manhã cedo, mãe e filho saíram juntos de casa. Era Agosto e o calor abrasava. Paul caminhava com o coração aperreado. Mil vezes a dor física, por maior que fosse, a este sofrimento irracional de se ver exposto perante estranhos, sujeito a ser aceite ou rejeitado. No entanto, conversava animadamente com a mãe. Jamais lhe confessaria o sofrimento que estas situações lhe causavam e de que ela só em parte suspeitava. Ia alegre como um passarinho. Postou-se diante da bilheteira, em Bestwood, e ficou a ver a mãe tirar o dinheiro para os bilhetes. Ao reparar nas luvas pretas que trazia, quase de criança e já muito velhas, com que retirou algumas moedas da carteira também coçada, o seu coração contraiu-se de dor e amor por ela. Ela estava muito excitada e bem-disposta, e ele sofria antecipadamente, pois sabia que ela se iria pôr a falar em voz alta diante dos outros passageiros.
– Olha para aquela vaca. Parece tola! A andar às voltas como se estivesse no circo.
– Deve ser algum moscardo – disse Paul, quase a bichanar.
– Algum quê? – perguntou ela, desabrida, sem complexos.
Depois, ficaram calados, pensativos. Paul não conseguia deixar de sentir a presença dela à sua frente. Nisto, os olhos de ambos encontraram-se e ela sorriu-lhe – um sorriso único, íntimo, belo e cintilante, cheio de amor. Em seguida, puseram-se a olhar pela vidraça. Mas ela voltou-se para ele de repente e disse, de forma bem audível:
– Sinceramente, acho que vais conseguir. E, se não conseguires, enfim, não te podes queixar só por não teres conseguido o terceiro emprego a que concorreste, pois não? Mas eu acho que consegues. És um rapaz de sorte, embora não a mereças – Assim falava ela, para todos ouvirem!
O comboio transpôs com lentidão as dezasseis milhas que os separavam do destino, e a viagem terminou. Mãe e filho meteram por Station Street com o entusiasmo de amantes a viver uma aventura. Em Carrington Street, pararam para contemplarem do parapeito as barcaças que passavam no canal.
– Parece mesmo Veneza – disse ele, vendo o sol reflectido na água entre os muros altos das fábricas.
– Talvez – respondeu ela, sorrindo. Ficaram deslumbrados com as lojas.
– Estás a ver aquela blusa? – disse ela. – Ficava mesmo bem à nossa Annie. E só custa uma libra, onze xelins e três dinheiros. Não é barato?
– E é toda bordada – disse o filho.
– É verdade.
Tinham ainda muito tempo, e por isso não precisavam de se apressar. Aos seus olhos, a cidade era estranha e fascinante. Mas o rapaz, apreensivo, era como se tivesse um nó no estômago. Apavorava-o a entrevista com Thomas Jordan.
Eram quase onze horas pelo relógio da igreja de São Pedro. Viraram para uma rua estreita que ia dar ao castelo. Era uma rua sombria, de casas velhas, com lojas baixas e soturnas e as portas dos prédios pintadas de verde-escuro, com grandes argolas de latão e degraus amarelo-ocre avançando sobre o passeio; ao lado, uma outra loja, de outros tempos, cuja montra diminuta parecia um olho astuto e semicerrado. Mãe e filho caminhavam devagar, olhando para as portas, à procura do letreiro Thomas Jordan & Filho. Era como caçar em plena coutada. A excitação atingia o auge.
De súbito, avistaram uma entrada ampla e escura, com os nomes de várias firmas afixados na parede e, entre eles, o da Thomas Jordan.
– É aqui – disse Mrs. Morel. – Mas... onde é que será?
Olharam em volta. De um lado, uma fábrica de papel, lúgubre e bizarra; do outro, o Commercial Hotel.
– É ali ao fundo – informou Paul.
Aventuraram-se pela arcada, como se penetrassem na bocarra de um dragão, indo desembocar num pátio amplo, semelhante a um poço, completamente rodeado de edifícios. O chão estava pejado de palha, caixas e cartões. O sol batia em cheio num caixote de onde saíam palhas que se espalhavam pelo chão como fios de ouro. Mas, fora isso, o lugar era escuro como uma mina. Havia várias portas e dois lanços de escadas. Mesmo em frente, numa porta suja e envidraçada, ao cimo da escada, ressaltavam as palavras fatídicas Thomas Jordan & Filho – Acessórios Ortopédicos. Mrs. Morel foi à frente, seguida pelo filho. Ao subir ao patíbulo, Carlos I tê-lo-á feito certamente com o coração mais leve do que Paul Morel ao subir atrás da mãe os degraus imundos que conduziam à tal porta também imunda.
Mrs. Morel empurrou a porta e ficou agradavelmente surpreendida. Diante dela estendia-se um imenso armazém com embalagens de papel pardo espalhadas por todo o lado, e os empregados, de mangas arregaçadas, movimentavam-se de um lado para o outro com um ar perfeitamente descontraído. A luz não feria a vista, as embalagens em papel brilhante tornavam-se luminosas, os balcões eram de madeira escura. A atmosfera era silenciosa e acolhedora. Mrs. Morel deu dois passos em frente e aguardou. Paul colocou-se atrás da mãe. Ela trazia o seu chapéu de domingo, com o véu preto descido sobre a cara, e ele a gola branca larga, que todos os rapazes usavam, e um fato de corte à caçador.
Um dos empregados olhou para eles. Era alto e magro, de rosto miúdo e olhar vivo e atento. Depois, os seus olhos percorreram a sala até à outra extremidade, onde se via um gabinete envidraçado; só então se aproximou. Não disse uma palavra, inclinou-se apenas perante Mrs. Morel, numa atitude prestável e interrogativa.
– Poderei falar com Mr. Jordan? – pediu ela.
– Vou já chamá-lo – respondeu o jovem.
Dirigiu-se ao gabinete envidraçado. Um homem idoso, de suíças brancas e faces coradas levantou os olhos da secretária. Paul achou-o parecido com um lulu da Pomerânia. Depois, o homenzinho atravessou o armazém para vir ao encontro deles. Tinha pernas curtas, era atarracado e envergava um casaco de alpaca. E lá vinha ele, de orelha arrebitada, por assim dizer, com ar resoluto e olho inquiridor.
– Bom dia! – disse, hesitante, dirigindo-se a Mrs. Morel, sem saber se se tratava ou não de uma cliente.
– Bom dia... Vim com o meu filho... Paul Morel... O senhor pediu-lhe que se apresentasse esta manhã.
– Acompanhem-me – disse Mr. Jordan, com uma frieza e desenvoltura que ele acreditava serem apropriadamente empresariais.
Mãe e filho acompanharam o industrial e entraram numa salinha desarrumada, com cadeirões de couro negro e já muito lustroso de tanto ser usado pelos clientes. Em cima da mesa estava uma pilha de fundas para hérnias – umas bandas de couro amarelo, pré-lavado, atadas em molho. Pareciam novinhas em folha. Paul sentiu o cheiro a couro lavado e perguntou-se o que seriam aquelas coisas. Estava tão atordoado que só reparava no aspecto exterior do que o rodeava.
– Sente-se! – disse Mr. Jordan, ríspido, convidando Mrs. Morel a sentar-se numa cadeira de crina. Ela sentou-se à beirinha, numa posição instável. O homenzinho vasculhou então em cima da secretária e pegou numa folha de papel.
– Foste tu que escreveste esta carta? – desferiu ele, intempestivo, colocando diante dos olhos de Paul um papel que ele logo reconheceu como sendo a carta que mandara.
– Fui, sim – respondeu Paul.
De momento, o rapaz era dominado por dois sentimentos: em primeiro lugar, sentia-se culpado por estar a mentir, uma vez que a carta tinha sido escrita por William; e, em segundo, estranhava como a sua carta podia parecer tão diferente na mão avermelhada e sapuda daquele homem de quando estava em cima da mesa da cozinha. Era como se uma parte dele mesmo se tivesse transviado, e desagradava-lhe a maneira como o homem pegava na carta.
– Onde aprendeste a escrever? – disse o velho, com brusquidão.
Paul limitou-se a olhar para ele envergonhado, sem responder.
– Ele escreve muito mal – interrompeu Mrs. Morel, apologética, levantando o véu em seguida. Paul ficou furioso por a mãe não mostrar mais orgulho perante este homem tão comesinho, mas, ao mesmo tempo, adorou ver o seu rosto sem véu.
– E dizes que também sabes francês? – inquiriu o homenzinho, ríspido, como sempre.
– Sim – respondeu Paul.
– Em que escola andaste?
– Na primária.
– E foi lá que aprendeste?
– Não... eu... – o rapaz ruborizou, e não adiantou mais nada.
– Foi o padrinho que lhe deu umas lições – disse Mrs. Morel, quase numa súplica, e com ar distante.
Mr. Jordan hesitou. E, então, mantendo o seu ar agressivo – parecia ter as mãos sempre prontas a agir – tirou do bolso uma outra folha de papel, desdobrou-a ruidosamente e entregou-a a Paul.
– Ora lê lá isto – disse.
Era uma carta em francês, escrita à mão, numa caligrafia estrangeira, esguia e incerta, que o rapaz não conseguia decifrar. Paul ficou parado a olhar para o papel, como se hipnotizado.
– «Monsieur» – começou ele, olhando em seguida muito aflito para Mr. Jordan.
– É a... é a...
Queria dizer «letra», mas já nem esta palavra conseguia pronunciar. Sentindo-se um perfeito idiota, e furioso com Mr. Jordan, voltou-se em desespero para o papel.
– «Exmo. Senhor... Queira fazer o favor de me enviar»... hum... hum... não consigo perceber a... hum... «dois pares... gris fil bas... de meias cinzentas de algodão... hum... hum... sans... sem...» hum... não consigo perceber a... hum... «doigts... dedos»... hum... não consigo perceber a...
Queria dizer «letra», mas a palavra teimava em não sair. Vendo-o atrapalhado, Mr. Jordan tirou-lhe o papel da mão e leu:
– «Queira fazer o favor de me enviar na volta do correio dois pares de meias cinzentas de algodão, sem os dedos dos pés...»
– Bem – atalhou Paul prontamente – doigts quer dizer apenas dedos... duma maneira geral...
O homenzinho olhou para ele. Tanto se lhe dava que doigts quisesse ou não dizer simplesmente dedos, o que ele sabia era que, para os fins em vista, queria dizer dedos dos pés.
– Só dedos, podia ser das mãos; com que então, dedos das mãos numas meias?! – ripostou Mr. Jordan.
– Bem, a palavra francesa quer mesmo dizer só dedos – teimava o rapaz.
Paul detestava aquele homenzinho que tentava fazer dele parvo. E Mr. Jordan olhava para aquele rapaz pálido, estúpido e atrevido à sua frente, sentado, muito calado, com aquele ar reservado dos pobres que têm de depender dos favores de outras pessoas.
– Quando é que ele pode começar a trabalhar? – perguntou o industrial.
– Bem... – disse Mrs. Morel –, quando o senhor desejar. Ele já deixou a escola.
– E vai continuar a viver em Bestwood?
– Sim... mas pode estar... chegar à estação... a um quarto para as oito...
– Hum!
Paul acabou por ser contratado como aspirante, a ganhar oito xelins por semana. O rapaz não abriu mais a boca depois de teimar que doigts era mesmo dedos (das mãos). Saiu atrás da mãe e desceu as escadas. Mrs. Morel olhou para ele com os seus olhos azuis iluminados de amor e contentamento.
– Acho que vais gostar do emprego – vaticinou.
– Doigts quer dizer só dedos, mãe... e com aquela letra... Eu não percebia a letra.
– Não te preocupes, meu filho... Verás que ele é boa pessoa, e, além disso, não vais ter de contactar muito com ele... Não achaste simpático aquele empregado mais novo?... Tenho a certeza de que vais gostar dos teus colegas.
– Mas a mãe não achou Mr. Jordan um homem grosseiro? Será ele o dono daquilo tudo?
– Cá para mim, começou por ser operário e depois singrou na vida – disse Mrs. Morel. – Não deves dar tanta importância às pessoas. Elas não te querem ofender... é a maneira de falarem... estás sempre a pensar que as pessoas te querem ofender... mas olha que não querem.
Estava um dia cheio de sol. No grande largo deserto do mercado, o céu azul iluminava-se e as pedras de granito da calçada brilhavam cintilantes. As lojas de Long Row estavam mergulhadas na penumbra e a sombra enchia-se de cor. No sítio onde os trens puxados a cavalos atravessavam o mercado, erguia-se uma fiada de bancas de fruta, com os frutos luzindo ao sol – maçãs e montes de laranjas avermelhadas, rainhas-cláudias e bananas. Quando mãe e filho passaram, sentiram no ar o odor morno da fruta. A pouco e pouco, os sentimentos de raiva e ignomínia de Paul foram soçobrando.
– Onde havemos de ir almoçar? – perguntou a mãe.
– E se comprássemos qualquer coisa e fôssemos comer para o Arboretum?
– Não. Nada disso.
– Então vamos ao Morley.
– O chá que lá servem é requentado. Não... tu conseguiste o emprego... vamos fazer uma refeição como deve ser.
Aquilo era para eles uma verdadeira extravagância. Paul só tinha ido a uma casa de pasto uma ou duas vezes na vida, e, mesmo assim, só para tomar chá e um pãozinho. A maior parte dos habitantes de Bestwood achavam que a única coisa para que tinham dinheiro quando iam a Nottingham era chá e pão com manteiga, ou, quando muito, carne afiambrada. Uma refeição cozinhada era um autêntico luxo, e Paul sentia-se até culpado. Encontraram um lugar que lhes pareceu bastante acessível. Porém, quando Mrs. Morel consultou a lista, caiu-lhe a alma aos pés, tal era o preço dos pratos. Mandou vir, por isso, empadas de rim e batata, que era o mais barato.
– Não devíamos ter vindo aqui, mãe – disse Paul.
– Deixa lá – respondeu ela. – Nunca mais cá voltamos.
Depois insistiu para que o filho, que era guloso, comesse uma pequena torta de mirtilos.
– Não quero, mãe – disse ele.
– Queres, sim – teimou a mãe. – Claro que queres.
E pôs-se a ver se chamava a criada. Mas a criada andava toda atarefada e Mrs. Morel não a quis importunar nesse momento, pelo que ficaram os dois à espera de que a rapariga se dignasse atendê-los, enquanto ela andava por ali a cirandar, fazendo olhinhos aos clientes.
– Que desavergonhada! – disse Mrs. Morel, virando-se para Paul. – Olha para ela, a servir pudim àquele homem, e ele chegou muito depois de nós.
– Não tem importância, mãe – disse Paul.
Mrs. Morel estava irritada, mas era pobre de mais e a refeição demasiado modesta para ter a coragem de reclamar os seus direitos imediatamente. E, assim, fartaram-se de esperar.
– Vamos embora, mãe? – sugeriu Paul. Mrs. Morel levantou-se. A rapariga ia a passar.
– Trazia-nos uma torta de mirtilos, por favor? – disse Mrs. Morel em voz suficientemente audível.
Mas a rapariga virou-se e olhou para ela com insolência.
– É para já – retorquiu.
– É que já esperámos um bom bocado – disse Mrs. Morel. A rapariga não tardou com a torta. Mrs. Morel pediu a conta secamente.
Paul tinha vontade de se enfiar pelo chão dentro. Pasmava perante a dureza da mãe. Sabia que haviam sido anos e anos de luta que a tinham ensinado a reclamar os seus direitos, por mais insignificantes que fossem, pois ela era tão tímida como ele.
– É a última vez que ali vou para comer seja o que for! – exclamou ela, já na rua, satisfeita por se ver livre daquele pesadelo.
– Vamos dar uma vista de olhos ao Keep’s e ao Boot’s, e a mais um ou dois armazéns, está bem?
Teceram comentários sobre as gravuras expostas para venda, e Mrs. Morel queria por força comprar ao filho um pequeno pincel de pêlo de marta, com que ele andava a sonhar, mas Paul recusou liminarmente mais esta generosidade, e foi esperando por ela estoicamente à porta dos fanqueiros e dos retroseiros, morto de tédio, mas feliz por ver a mãe tão entretida. E o passeio continuou.
– Veja só aquelas uvas pretas! – disse Paul. – Até fazem crescer água na boca... Há anos que ando desejoso de prová-las, mas ainda vou ter de esperar algum tempo para as poder comprar.
A mãe parou deliciada à porta da florista, a aspirar os aromas.
– Oh!... Oh!... Não é simplesmente uma maravilha?
Apesar de a loja estar na penumbra, Paul vislumbrou uma jovem elegante, vestida de preto, a espreitar por detrás do balcão, com ar divertido.
– Estão a olhar para si – disse Paul, tentando arrastar a mãe dali para fora.
– Mas... o que é aquilo? – exclamou ela, recusando-se a sair de onde estava.
– Goivos! – respondeu ele, cheirando o ar apressadamente. – Veja, têm um alguidar cheio.
– Pois têm... vermelhos e brancos!... Esta agora... nunca reparei que os goivos pudessem cheirar assim! – E, para grande alívio do rapaz, a mãe saiu da porta, mas só para se ir pôr diante da montra.
– Paul! – exclamou ela, virando-se para o filho, que tentava esquivar-se ao olhar da tal jovem elegante toda de preto, a empregada da loja. – Paul! Anda ver isto!
Ele aproximou-se relutante.
– Olha aqueles brincos-de-princesa! – disse ela, apontando.
– Humm! – fez ele, mostrando-se interessado. – Parece que as flores vão cair a todo o momento; são tão grandes e tão pesadas.
– E tantas! – exclamou a mãe.
– E já viu a maneira como se inclinam, com os filamentos e os nódulos...?
– Pois é! – disse ela. – São lindas!
– Sempre gostava de saber quem será que as vai comprar? – disse ele.
– Não faço ideia! – respondeu ela. – Nós não somos.
– Na nossa sala morriam logo.
– É, aquele buraco horrível, gélido e sem réstia de sol... mata qualquer planta que lá se ponha... e a cozinha atabafa-as.
Fizeram algumas compras e seguiram para a estação. Olhando ao longo do canal, pelos intervalos sombrios dos edifícios, avistaram o castelo, alcandorado no seu promontório negro coberto de vegetação, miraculosamente iluminado por um sol suave e radioso.
Vai ser tão bom vir dar um passeio à hora do almoço! – disse Paul. – Posso andar por aqui e ver tudo isto. Vou adorar.
– Vais, sim, meu filho – concordou a mãe.
Paul tinha passado uma tarde agradabilíssima em companhia da mãe. Chegaram a casa já a tarde esmorecia, feliz, ardente, e também cansada. Na manhã seguinte, o rapaz preencheu a requisição para o passe de comboio e levou-a à estação. Quando voltou, estava a mãe a começar a lavar o chão. Ele sentou-se com as pernas cruzadas em cima do sofá.
– O homem diz que o passe chega no sábado.
– E quanto custa? – perguntou ela.
– Mais ou menos uma libra e onze xelins.
A mãe continuou a lavar o chão em silêncio.
– Acha caro? – perguntou Paul.
– Não mais do que eu pensava – respondeu ela.
– E eu vou ganhar oito xelins por semana... – disse ele.
A mãe não respondeu, continuando com o seu trabalho. Por fim, disse:
– O William prometeu-me, quando foi para Londres, que me mandava uma libra por mês. E só me mandou dez xelins... por duas vezes. E sei que agora não tinha um tostão, se eu lho pedisse. Não que eu queira o dinheiro dele, mas nesta altura ficava-lhe bem dar uma ajuda para o passe, embora eu não esteja a contar com isso.
– Ele ganha muito bem – disse Paul.
– Cento e trinta libras. Mas os filhos são todos iguais. Uns mãos largas nas promessas, mas quando se trata de as cumprirem... é o que se vê.
– O William gasta mais de cinquenta xelins por semana só com ele – disse Paul.
– E eu mantenho esta casa com menos de trinta – retorquiu a mãe. – E ainda tenho de inventar o dinheiro para os extras. Mas eles, depois de saírem de casa, querem lá saber de ajudar a mãe. Mais depressa o gastava com aquela doidivanas toda aperaltada.
– Ela há-de ter dinheiro, se é assim tão fina – disse Paul.
– Pois havia, mas não tem. Eu já lhe perguntei... E eu sei bem que ele não lhe compra uma pulseira de ouro sem razão. A mim nunca ninguém me comprou uma pulseira de ouro.
– Ora, a mãe também nunca quis nenhuma.
– Lá isso é verdade... Mas, se quisesse, era o mesmo.
– O pai nunca lhe comprou nada?
– Comprou... um cartucho de maçãs... e foi tudo... todo o dinheiro que gastou comigo, antes de nos casarmos.
– Porquê?
– Porque eu era uma parva, e quando ele me dizia: «O que queres qu’eu te compre?», eu respondia: «Nada.» Ele lembrava-se lá de me trazer alguma coisa! E o William só ia comprar uma pulseira de ouro para uma espertalhona cheia de nove horas.
– Aposto que ela já tem muitas – disse o rapaz.
– Tem muitas, dizes tu? Mas ele também tinha de lhe dar uma, para parecer importante. Ele quer lá saber! Eu pude sustentá-lo enquanto ele ganhava uma miséria, mas depois, mal ele se apanha com dinheiro que se veja, e a gente pensa que vai ter um pouco de paz e segurança, ele desanda, e lá começa a luta de novo, sem ter a quem recorrer quando é preciso alguma coisa, sem ninguém que nos estenda a mão.
– A mãe devia pedir-lho.
– E depois ele tinha de o ir pedir emprestado. Isso também eu faço, se tivermos de chegar aí. Tenho a certeza, de que não vou ter de lhe ficar a dever favores. E ele não precisa de me escrever a gabar-lhe os encantos e a falar das óperas a que vão assistir. Nem quero saber. Ele importa-se lá comigo... Eles querem lá saber! Têm a vida deles para viver, fazem o que lhes apetece, e eu... sim... o que represento eu para ele?... Um estorvo nunca hei-de ser, nem lhe hei-de pedir nada... E espero que o teu pai viva muito tempo, e que seja eu a ir à frente, pois é muito triste ter de viver à custa dos filhos.
– Oh, mãe... não tarda, eu começo a ganhar dinheiro, e a mãe pode ficar com tudo, porque eu nunca me hei-de casar.
– Essa já é velha, o William também dizia o mesmo. Dá tempo ao tempo e vais ver como a música é outra.
– Não vai ser, não.
– Então está bem.
E continuou a lavar o chão, em silêncio.
– Que vai fazer? – perguntou Paul.
– Acho que vou ter de meter um vale na Cooperativa... e isso vai sair da minha parte e vou receber menos dividendos. Não me apetecia nada ir lá buscar mais dinheiro outra vez.
O rapaz sentia-se muito infeliz, muito aborrecido. Era ele que precisava do dinheiro, e isso deixava-o amargurado.
– Bem – disse Paul –, em breve serei aumentado, e a mãe pode ficar com o dinheiro todo.
– Tudo isso é muito bonito – disse a mãe. – Mas não é assim que arranjo uma libra e trinta xelins até sábado de manhã.
William fazia progressos com a sua Cigana, como ele lhe chamava. Pedira à rapariga – uma tal Louisa Lily Denys Western – uma fotografia para mandar à mãe. A fotografia chegou: era uma morena bonita, de perfil, com um sorriso afectado, e que bem podia estar completamente nua, pois não se vislumbrava qualquer peça de roupa no retrato, só o colo desnudo.
«Sim senhor», escreveu Mrs. Morel ao filho, «a fotografia da Louie é deveras impressionante e vê-se que deve ser muito atraente. Mas achas, meu filho, que foi sensato e elegante da parte dela dar ao namorado aquela foto para ele mandar à mãe, e pela primeira vez? Tem uns ombros lindos, sem dúvida, como mandaste dizer. Mas eu não estava à espera de os ver tão bem logo da primeira vez...»
Morel encontrou a fotografia na sala, em cima da cómoda, e veio até à cozinha com ela presa entre o polegar e o indicador.
– Quem vem a ser esta? – perguntou ele à mulher.
– É a rapariga com quem o nosso William anda de namoro – respondeu Mrs. Morel.
– Hum! Ganda brasa, pelo menos parece... e num lhá-de fazer bem nenhum... Quem é ela?
– Chama-se Louisa Lily Denys Western.
– Muito prazer! – exclamou o mineiro. – É alguma artista?
– Não, não é. Ele diz que é uma senhora da sociedade.
– Não hajam dúvidas – exclamou o pai, sem tirar os olhos da fotografia. – Com qu’intão uma senhora? E há-de ter muito dinheiro, pra manter as aparências.
– Não tem, não... vive com uma tia velha, que ela detesta, e aceita tudo o que lhe dão.
– Hum! – disse Morel, pousando a fotografia. – Atão ele foi um gand’otário em ter-se metido c’uma tipa dessas.
«Querida Mater», respondeu William. «Lamento que não tenha gostado da fotografia. Nunca me passou pela cabeça, quando lha mandei, que pudesse achá-la pouco decente. Mas já disse à Ciganita que o retrato não correspondia exactamente à sua noção de decoro e decência, e ela vai mandar-lhe outro, que eu espero lhe agrade mais. Ela está sempre a ser fotografada. Na verdade, os fotógrafos estão sempre a pedir-lhe insistentemente para ela se deixar fotografar, absolutamente de graça.»
A nova fotografia acabou por chegar, acompanhada de um bilhete idiota da rapariga. Desta vez, a jovem estava com um ves-tido de noite em cetim preto, de decote quadrado, com mangas curtas e tufadas e folhos de renda preta cobrindo-lhe os braços elegantes.
– Será que só usa vestidos de noite? – disse Mrs. Morel, sarcasticamente. – Tenho a certeza de que eu devia estar impressionada.
– Está a ser antipática, mãe – disse Paul. – Eu acho a primeira fotografia, a dos ombros nus, bem bonita.
– Achas? – disse Mrs. Morel. – Pois olha, eu não.
Na segunda-feira de manhã, o rapaz levantou-se às seis horas, para começar a trabalhar. No bolso do colete levava o passe do comboio que tanta amargura representava. Gostava de olhar para ele, todo às riscas amarelas. A mãe metera-lhe o almoço num cestinho de verga com tampa, e ele saiu de casa quando faltava um quarto para as sete, para apanhar o comboio das sete e um quarto. Mrs. Morel veio despedir-se do filho ao portão.
A manhã estava imaculada. Do grande freixo, pendiam os frutos verdes e delgados – as crianças chamavam-lhes «pombinhos» – cintilando alegremente, soprados pela brisa matinal, suspensos sobre os jardins das vivendas. O vale estava coberto de uma névoa escura, mas brilhante, através da qual luziam as searas já maduras, e em contacto com a qual logo se condensava o vapor que se elevava da mina de Minton. De quando em vez, o vento passava em baforadas. Paul espraiou a vista para lá das altas florestas de Aldersley, onde os campos brilhavam imensos, e nunca o apelo do lar fora tão forte.
– Adeus, mãe – disse ele, sorrindo, mas com a alma entristecida.
– Adeus – respondeu ela, com alegria e ternura na voz.
Mrs. Morel ficou parada na estrada, com o seu avental branco, vendo o filho atravessar os campos. Era um rapaz baixo e robusto, cheio de vida. Ao vê-lo caminhar pelos campos fora, sentiu que ele seria capaz de chegar onde quisesse. Pensou no William. Esse teria saltado a cerca em vez de passar pela cancela. Esse estava em Londres a viver à grande. E agora Paul ia trabalhar para Nottingham. Tinha dois filhos lançados no mundo. Podia pensar em dois lugares, dois grandes centros industriais, e sentir que tinha posto um homem em cada um, e que esses homens seriam capazes de conseguir tudo o que ela ambicionava; provinham dela, eram parte dela, e as suas vitórias seriam também as dela. Durante toda a manhã só pensou em Paul.
Às oito horas, Paul subiu as escadas lúgubres da Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan e deteve-se timidamente junto da primeira prateleira que encontrou cheia de embalagens, à espera de que alguém viesse ao seu encontro. O lugar ainda não tinha acordado. Os balcões estavam cobertos de espessas camadas de poeira. Ainda só tinham chegado dois funcionários. Paul ouvia-os conversar a um canto, enquanto tiravam os casacos e arregaçavam as mangas da camisa. Eram oito e dez. A pontualidade não era evidentemente a preocupação dominante no local. Paul continuou a ouvir as vozes dos dois funcionários. Depois, ouviu alguém tossir e viu no gabinete ao fundo do armazém um empregado já velho e caduco, com um bonezinho redondo de veludo preto bordado a verde e vermelho, a abrir cartas. Paul continuou à espera.
Um dos empregados mais novos dirigiu-se ao velhote e cumprimentou-o efusivamente e em voz muito alta. Estava visto que o velho «chefe» era surdo. A seguir, o jovem voltou para o seu balcão com passo arrogante. A certa altura reparou em Paul.
– Olá! – disse ele. – És o novo rapaz?
– Sou – respondeu Paul.
– Hum! Como te chamas?
– Paul Morel.
– Paul Morel?... Está bem. Vem comigo.
CONTINUA
Quando as crianças já tinham idade suficiente para ficarem sozinhas em casa, Mrs. Morel entrou para o Grémio Feminino. Tratava-se de um pequeno clube de mulheres ligado à Cooperativa de Revenda, que reunia às segundas-feiras à noite numa sala muito comprida por cima da mercearia Bestwood Co-op. Aí, as mulheres discutiam os benefícios de uma política de cooperação e outras questões de importância social. Por vezes, Mrs. Morel tinha de apresentar uma comunicação, e as crianças estranhavam ver a mãe, que passara a vida a fazer a lida da casa, sentar-se agora a escrever, com a rapidez que a caracterizava, a pensar, a consultar livros, e a continuar a escrever. Nessas ocasiões, sentiam por ela o mais profundo respeito.
Mas gostavam do Grémio. Era a única concessão que faziam à mãe de boa vontade – por um lado, por ser uma coisa de que ela tanto gostava, e, por outro, pelas guloseimas que depois lhes trazia. Alguns maridos hostis, que achavam que as mulheres estavam a ficar independentes de mais, chamavam ao Grémio o «clube dos traques-tagarelas», ou seja, o clube da má-língua. A verdade é que, graças ao Grémio, as mulheres podiam olhar para as suas casas, para as condições em que viviam e apontarem o que estava mal. E, assim, os mineiros começavam a descobrir que as suas mulheres lutavam por um novo padrão de vida, o que era para eles bastante desconcertante. Além disso, Mrs. Morel voltava sempre às segundas-feiras à noite carregada de novidades, e as outras crianças gostavam que William estivesse em casa quando a mãe chegava, porque ela lhe contava muitas coisas.
Mais tarde, quando o rapaz tinha treze anos, a mãe arranjou-lhe emprego nos escritórios da Cooperativa. Nessa altura, ele era já um rapaz muito inteligente e franco, de feições duras e os olhos azuis penetrantes de um verdadeiro viking.
– Pra que queres fazer dele um mangas-de-alpaca, num me dizes? – disse Morel. – Tudo o qu’ele vai fazer é gastar as calças no rabo e não ganhar um tostão. Quant’é qu’ele vai ganhar de início?
– O que ele vai ganhar não interessa – disse Mrs. Morel.
– Mas devia interessar! Põe-no mas é na mina ao pé de mim, e ele faz sem custo dez xelins por semana, logo no começo. Mas seis xelins para dar cabo do traseiro sentado num banco é melhor que dez na mina ao pé de mim, eu sei.
– Ele não vai para a mina – disse Mrs. Morel – e não se fala mais nisso.
– Pra mim serviu, mas pra ele não.
– Se a tua mãe te mandou para as minas aos doze anos, isso não quer dizer que eu faça o mesmo ao meu filho.
– Doze anos!... Muito antes disso!
– Fosse quando fosse – disse Mrs. Morel.
Ela tinha um grande orgulho no filho. Ele frequentava a escola nocturna, e aprendeu estenografia, e aos dezasseis anos, já era o melhor estenógrafo e o melhor guarda-livros do escritório, a par de um outro colega. Depois, começou a dar aulas nas escolas nocturnas. Mas era tão vivaço que só o seu bom feitio e o seu tamanho o protegiam.
Todas as coisas que os homens fazem – as coisas decentes – William também fazia. Corria tanto como o vento. Aos doze anos, ganhou o primeiro prémio numa corrida: um tinteiro de vidro, em forma de bigorna, que marcava honrosa presença no louceiro, para orgulho de Mrs. Morel. Fora para ela que ele correra. Voou para casa com a bigorna, ofegante, dizendo:
– Olha, mãe!
Esse foi o primeiro tributo que ele lhe prestou, e ela recebeu-o como uma rainha.
– Que bonito! – exclamou.
Quando iam brincar para perto da cerca da encosta, as crianças das Bottoms costumavam gritar quando William se aproximava:
– Salta, William... Salta!
E ele saltava a sebe, com cerca de cinco pés de altura, sem qualquer dificuldade.
– Caramba! – gritavam os mais pequenos.
Também atirava pedras mais longe do que qualquer outro rapaz de Bestwood. Amigos e rivais, todos tinham inveja das suas façanhas e torciam para que as pedras dele não fossem as que chegavam mais longe, passando para lá da cerca. Mas, à cautela, William gravava-lhes displicentemente as iniciais WM.
Aos dezassete anos, ganhou uma corrida de bicicletas em Ilkeston. Morel, num dos seus alardes de fanfarronice, tinha desafiado todos os campeões que estivessem na taberna a correrem contra o filho, e William sentiu que tinha de honrar as gabarolices do pai. Mas Mrs. Morel não aprovou a ideia.
– Vem ver-me limpar-lhes o sarampo a todos, mãe! – gritou ele, batendo na barriga da perna. Mas Mrs. Morel passou o dia ansiosa e infeliz. Ele podia morrer ou magoar-se, e, além disso, ela tinha a certeza de que o seu coração não tinha resistência para corridas de bicicleta. Não obstante, ele voltou para casa nessa noite trazendo uma pequena secretária de carvalho.
– Aqui tem, mãe! – disse ele. – Não lhe disse que lha trazia?
Mas ela obrigou-o a prometer-lhe que não entrava em mais nenhuma corrida.
William tinha alunos a quem dava aulas de estenografia em casa. Mas era tão impulsivo e irascível, que só os alunos mais aplicados e com mais vocação o aturavam. Sentava-se com eles à mesa da cozinha. A cozinha estava aquecida, iluminada e em silêncio absoluto. As almofadas de chintz vermelho do sofá eram fofas, a toalha vermelha sobre a mesa parecia acolhedora. Geralmente, o aluno, de treze ou catorze anos, sentava-se muito nervoso, enquanto William, rápido e enérgico, lhe corrigia os trabalhos de casa. O professor ia soltando desabafos de impaciência e intolerância. Nisto, voltava-se para o aluno e gritava:
– Meu grande cabeça de burro, fizeste bem a última frase, e agora...
O pobre do aluno assoava-se nervosamente ao lenço vermelho e olhava de soslaio para William. Às vezes, Mrs. Morel estava sentada a coser na cadeira de baloiço. Depois, começava a lição propriamente dita. William, evidenciando cada vez menos paciência, não tardava a explodir:
– Seu parvalhão, seu cabeça de burro, seu idiota chapado, o que é que eu te disse mais de mil vezes...?
– William! William! – exclamava a mãe. – Que vergonha! Não sei como ainda te aturam... Não lhe ligues, Robert, o mal está na falta de paciência dele, não em ti. Tu até és muito rápido. – E Robert olhava para Mrs. Morel envergonhado e agradecido, enquanto William continuava:
– Vá lá... e por amor de Deus não te faças de estúpido. Olha...!
Por fim, Mrs. Morel decidiu não ficar mais em casa quando ele dava as lições, para poupar aos garotos o vexame.
William tinha de entrar no escritório às oito da manhã, e a mãe levantava-se por isso às sete, para lhe preparar as coisas. Ele chegava geralmente atrasado, ou mesmo em cima da hora. Mas não havia nada que o fizesse andar mais depressa. Adorava tomar o pequeno-almoço a sós com a mãe. Quando estava bem-disposto, tagarelava e brincava com ela.
Uma manhã, pediu-lhe uma camisa lavada. Ele estava de pé, em frente à lareira, quando ela lha entregou, sentando-se em seguida a tomar o chá. Ele ergueu no ar repetidamente a camisa de flanela remendada por todos os lados.
– Mãe, o que é isto? – perguntou.
– Uma camisa – respondeu ela, desatando a rir.
– Uma rosa não cheiraria melhor...! – citou ele, de memória, com espirituosidade.
– Pois é... tu dás cabo de tudo... e eu já não tinha mais tecido igual... mas também quem vai notar?
– Tem a certeza de que não se vê?... Cá para mim, vê-se tudo à transparência – disse ele, ainda a torcer o nariz para a camisa.
– Veste-a lá... Olha as horas! – disse ela, sem poder conter o riso, da cadeira de baloiço onde estava sentada a beber o chá. E ele, de pé diante dela, um rapagão alto e espadaúdo, com a camisa de remendos na mão, dizia:
– Oh, minha camisinha de pobre! – disse ele, falando com a dita. – Acho que ninguém te vai cobiçar... um, dois, três... qual destes é o tecido original, mãe?
– Vá, veste a camisa! – ordenou a mãe.
– Imagine que eu tenho um acidente, e vou parar ao hospital, e quando volto a mim vejo quatro enfermeiras a olharem-me para a fralda da camisa... – resmungou ele.
– Só podem estar a dizer que andas com a roupa muito bem tratada – disse a mãe a rir.
Ele vestiu a camisa, e disse ainda, tapando a boca com a mão:
– Nem o rei Salomão em toda a sua glória...
– Não – disse a mãe, continuando a rir –, não creio que houvesse ninguém capaz de dar tantos pontos, nem por Salomão...
William deitou um olho à camisa por cima do ombro, e disse, num lamento:
– És a história da minha desgraça!
Mrs. Morel riu às gargalhadas. A custo, recompôs-se o suficiente para dar uma palmada na mesa e exclamar:
– Toca a vestir, menino! Já é um quarto para as oito.
– Não está à espera que eu tenha pressa de me vestir, para andar por aí todo remendado, pois não, mãe?
– És um tagarela sem juízo! – exclamou ela. – Ainda cais da bicicleta, partes a cabeça...
– Tem razão, se eu morresse ia ter vergonha da camisa que levava – atalhou ele.
Ela saltou da cadeira, pegou na escova e deu-lhe com ela ao de leve na cabeça.
– Vê lá se escovas esse cabelo – ordenou. Separaram-se, reconfortados: ele aquecia-lhe a alma a ela, e ela a ele.
Depois, ele começou a tornar-se ambicioso. Dava todo o dinheiro que ganhava à mãe. Quando recebia catorze xelins, ela deixava-o ficar com dois para os seus gastos, mas ele, como não bebia, começou a achar que estava rico, e só se dava com a burguesia de Bestwood. A pessoa mais importante da cidade era o pastor. Seguiam-se-lhe o gerente do banco, os médicos, depois os comerciantes, e, por fim, as hostes de mineiros. William começou a andar com os filhos do farmacêutico, do mestre-escola e de alguns comerciantes. Ia jogar bilhar para o Mechanics’Hall, e frequentava também os bailes, apesar de a mãe ser contra. Desfrutava de tudo o que Bestwood tinha de bom para lhe oferecer – dos bailaricos de Church Street, a seis dinheiros o ingresso, às provas desportivas e ao bilhar.
– A valsa! – exclamou o pai. – É verdade que tu sabes valsar? Quando eu era mais ágil, também sabia dar as minhas voltinhas.
– Será que sabia? – disse William, meio desconfiado.
– Sabia, sim senhor! – protestou Morel, ferido no seu amor-próprio.
– Então, vá lá... mostre-nos do que é capaz.
Mas Morel tinha vergonha de dançar diante dos filhos.
– Não, isso eu num faço! Estares a desafiar-me é uma parvoíce sem pés nem cabeça, e num vejo o qu’é que ganhas com isso.
– Mas vê que sigo as suas pisadas – retorquiu William.
– Atão inda és mais parvo do qu’eu julgava, s’alguma vez fizeres isso – disse o pai.
– Pronto, não faz mal, se está perro de mais para dançar... – disse o filho.
– Há vinte anos qu’eu num danço – gritou Morel, já alterado.
– E aposto que lhe custou a parar.
Mas William não desistiu. E as raparigas não o largavam.
– ’Póstolo – disse ele ao irmão, depois de um baile, quando já estavam os dois deitados. – ’Póstolo... uma rapariga de cetim branco... tás’ouvir, cetim branco até aos sapatos... vive em Sutton... e tá pelo beicinho! Amanhã vou lá, para m’encontrar com ela.
Daí a duas semanas, Paul perguntou-lhe:
– Então a rapariga do vestido de cetim branco?
– Já não m’interessa, ’Póstolo... Não presta! Mas encontrei uma pérola em Ripley... cheira vagamente a flor de cerejeira... branca como um lírio...
Paul era mimoseado com as mais estonteantes descrições florais das várias raparigas, a maior parte das quais perduravam por menos de quinze dias no coração de William, como um botão de rosa posto ao peito.
Uma vez por outra, lá aparecia uma namorada, preocupada em vir atrás do seu amado. Mrs. Morel encontrou um dia à porta uma rapariga de aspecto estranho, e logo lhe cheirou a esturro.
– Mr. Morel está em casa? – perguntou a donzela, toda sorrisos.
– O meu marido? Está, sim – respondeu Mrs. Morel.
– Eu... Eu queria referir-me a Mr. Morel... filho – repetiu a rapariga, penosamente.
– Qual deles? Há vários...
Nesta altura, a menina loira já gaguejava, muito corada:
– Eu... Eu conheci Mr. Morel... em Ripley. – E apressava-se a dar explicações.
– Ah... num baile!
– Sim, sim.
– Pois eu não gosto das raparigas que o meu filho conhece nos bailes. E ele não está em casa.
Mrs. Morel detestava os bailes duvidosos que o filho frequentava.
– Julgas que não sei das desavergonhadas que por lá andam?
– Pois olhe, mãe, eu não sou nenhum leviano, como pode ver.
– Isso é que eu não sei – dizia a mãe a rir.
– Não está a pensar que eu me vou apaixonar, pois não? Descanse que não vou. É só para me divertir com elas.
– Mas elas é que não querem só divertir-se contigo. E isso não está certo.
– Ora essa, porquê? Não faço tenções de me casar. Não se aflija, Mater. Eu não me caso enquanto não encontrar uma mulher como a senhora... e isso só daqui a muito tempo... E... só me hei-de casar aos trinta, quando já estiver de barriguinha cheia.
– Veremos, meu filho – respondeu a mãe.
Depois, voltou para casa zangado com a mãe por ter sido tão dura para com a rapariga. Era um rapaz despreocupado, mas de olhar apaixonado, que caminhava com grandes passadas, às vezes de sobrolho carregado, e quase sempre com o boné atirado para trás com galhardia. Agora, vinha de sobrolho carregado. Atirou o boné para cima do sofá, apoiou o queixo decidido na palma da mão e olhou zangado para a mãe. Ela era pequena, com o cabelo arrepiado para trás. Tinha um ar de serena autoridade, mas, ao mesmo tempo, de rara afabilidade. Ao ver o filho zangado, o coração apertou-se-lhe.
– Esteve cá ontem alguma senhora à minha procura? – perguntou.
– Uma senhora eu não vi... esteve foi uma rapariga.
– E porque não me disse nada?
– Porque me esqueci.
Ele expeliu o ar com ímpeto.
– Uma rapariga bonita... uma senhora?
– Não olhei para ela.
– Olhos castanhos... grandes?
– Isso mesmo.
Voltou a assoprar.
– E o que lhe disse a mãe?
– Que não estavas em casa.
– E que mais?
– Apenas que não gostava de que raparigas que tinhas visto uma vez viessem aqui a casa à tua procura.
– Bem... não precisava de ter dito isso – replicou ele. – O pai dela tem dinheiro... até têm duas criadas...
– Não vinham com ela... por isso, eu não podia adivinhar.
– Mas porque é que a mãe tinha de ser desagradável? Ela não estava a fazer mal nenhum, ou estava?
– Pensei que fosse uma dessas desavergonhadas.
– Mas não era... Não era... O pai dela...
– Tem dinheiro para duas criadas – atalhou Mrs. Morel.
– Não... É o veterinário de Woodlinton... E, além disso, mãe...
– Ela era uma desavergonhada.
– Não era nada... E era bonita, não era?
– Nem olhei para ela.
– Mas devia ter olhado...
– Mas não olhei, pronto. E olha, meu filho, trata de dizeres às tuas namoradas que, quando vierem atrás de ti, não devem vir perguntar por ti à tua mãe... É isso que tens de dizer a essas desavergonhadas que encontras pelos salões de dança.
– Tenho a certeza de que ela é uma rapariga séria...
– E eu tenho a certeza de que não é.
E assim acabou a discussão. A dança era sempre motivo de conflito entre mãe e filho. A afronta atingiu o auge quando William anunciou que ia a um baile de máscaras em Hucknall Torkard, uma terra mal-afamada. Havia uma fantasia que ele podia alugar, que um dos seus amigos já tinha usado, e lhe assentava que nem uma luva. E o fato de escocês lá foi parar a casa. Mrs. Morel recebeu-o com indiferença e recusou-se a desembrulhá-lo.
– O meu fato já chegou? – gritou William.
– Está um embrulho na sala da frente.
Ele precipitou-se para o fato e cortou o cordel.
– Já imaginou o seu filho assim vestido? – disse entusiasmado, mostrando-lhe o fato.
– Sabes bem que não quero imaginar-te com isso vestido.
Na noite do baile, quando ele veio a casa para se mascarar, Mrs. Morel vestiu o casaco e pôs o chapéu.
– Não fica para me ver vestido, mãe? – perguntou ele.
– Não... Não te quero ver – foi a resposta.
Estava muito pálida, com a expressão dura e fechada. Tinha medo de que o filho seguisse as pisadas do pai. Ele hesitou uns instantes, com o coração suspenso de ansiedade. Depois, viu a boina de escocês cheia de fitas, e agarrou-a, já esquecido da mãe. Mrs. Morel saiu.
Ele nunca se apercebeu de como tinha ficado desapontado. A excitação do momento, vivido em antecipação, era o suficiente para o fazer esquecer. Contudo, o seu maior orgulho era que ela o visse mascarado, e, pela vida fora, era sempre com mágoa que recordava este baile.
Na altura, porém, correu escada acima em grande alvoroço. Paul ajudou-o a vestir-se.
– É um fato de máscara, ’Póstolo – disse ele. – Dá-me cá essas coisas. – Primeiro enfiou um par de calções pretos, muito justos e curtos. Depois, foi mirar-se e remirar-se ao espelho da mãe.
– Estás a ver os meus calções pretos? – disse ele, dando uma volta sobre si mesmo, e acrescentando: – Sabes, ’Póstolo, um verdadeiro escocês não usa calções... cobre a nudez com o kilt. Mas acontece que eu dou saltos muito altos... e... com as senhoras a assistir... bem... já não dava!
O mais pequeno também achava que não, embora o caso não lhe parecesse muito grave.
– Belo par de pernas que aqui estão, ’Póstolo! Belas pernas! Já me ajudaram a ganhar quatro prémios nas corridas e dois nas bicicletas. Nada mau! – E dava palmadas nas coxas jovens e vigorosas. – Só músculo, miúdo!... No entanto, têm um defeito: não consigo juntar os joelhos. Tenho as pernas arqueadas, ’Póstolo. Mas assim ainda são mais fortes... Já o Nicholas Nickleby... esse tinha umas belas pernas e conseguia juntar os joelhos, a julgar pela gravura, e acho que Mr. Good também. Não era Mr. Good que tinha uma «belas pernas muito brancas» n’As Minas de Salomão? Aperta-me isto. Este fato não me assenta nada bem, pois não, ’Póstolo?
– Não – disse Paul, reverente.
– Um verdadeiro escocês – continuou William – tem de dobrar o seu kilt. Quem me dera que este fosse desses... gostava de ser eu a prepará-lo. Estás a ver, ’Póstolo, eu posso usar um kilt porque tenho a medida exacta para ele assentar como deve ser. A ti não te ia ficar bem... és espalmado como uma tampa de cartão. Tens de pedir a Deus que te desenvolva mais essa parte do corpo, senão nunca vais poder vestir um kilt.
Paul não percebia porque é que um dia havia de querer usar um kilt. Baixinho e magro como era, não podia aspirar ao físico e à estatura do irmão.
– Então, que tal ficam os meus joelhos?... Ficam bem, não ficam? Uns valentes joelhos, isso é que eles são... uns valentes joelhos... e as pernas também! Outro dia, os tipos lá do escritório apostaram em como eu andava enchumaçado. E então o Vickers veio de gatas enquanto eu estava a escrever e espetou-me um alfinete. Dei um berro que ia deitando a casa abaixo, e depois dei um pinote e ferrei-lhe um murro na cabeça, estás a ver... quem me dera não ter arrancado aquele bocadinho de pele com a bicicleta.
– Podias pôr um bocadinho do pó cor-de-rosa de lavar os dentes – alvitrou Paul.
– Lá isso podia... diz que é anti-séptico, mas será que resulta? Sabes, eu tenho mesmo pinta de escocês – cabelo louro, olhos azuis e valentia, ’Póstolo, valentia... e arcaboiço a condizer... Se alguma vez me alistasse no exército, havia de ser na Guarda Escocesa. Essa do pó dos dentes é uma ideia porreira...
Quando já estava vestido, um monte de crianças, as de casa e as da vizinhança, vieram admirá-lo. Depois, ele partiu. Divertiu-se à grande e, no entanto, era-lhe doloroso recordá-lo. A mãe mostrou-se indiferente com ele durante um ou dois dias. Mas achava-o tão encantador...! E depois... aquele toque de solidão, a instalar-se outra vez entre ele e ela.
Foi mais ou menos por esta altura que ele começou a estudar. Ele e um amigo começaram a aprender francês, latim e outras coisas. Depressa começou a ficar mais abatido. Depois do escritório, ia para casa de Fred Simpson, e ficavam os dois a estudar até à meia-noite e, às vezes, até à uma. Mrs. Morel protestava, ralhava, implorava-lhe que tivesse mais cuidado com a saúde.
– Quando estamos a estudar – dizia ele – nem dou pelas horas passarem... nenhum de nós dá, até a mãe do Fred gritar lá de baixo que já é muito tarde.
Estas noites de estudo intervalavam com farras e bailaricos. À medida que os anos iam passando, William foi ficando mais magro e a despreocupação fugiu-lhe do olhar.
A mãe, sempre atenta, sempre à espera, sentia um frio na alma ao vê-lo assim. Teria ele forças para «sobreviver»? Um pingo de ansiedade manchava o orgulho que sentia. Tinha esperado por ele tanto tempo que não suportaria o seu fracasso. Na verdade, não sabia o que queria dele, afinal. Talvez quisesse apenas que ele fosse fiel a si próprio, que crescesse e frutificasse tudo o que ela tinha semeado. Queria ver nele a sua própria realização, era tudo. E, com toda a força de que era capaz, tentava mantê-lo forte, equilibrado, com ânimo para seguir em frente. Mas ele vacilava, faltava-lhe lucidez. Havia momentos em que descambava e era igualzinho ao pai, o que lhe enchia o coração de apreensão e desalento.
Ele tivera dúzias de namoricos, mas nada a que se pudesse chamar um caso amoroso. Ela não se importava com os namoricos, desde que não lhe afectassem a carreira, mas receava que ele se deixasse prender por alguma dessas raparigas fúteis e desavergonhadas.
Tinha ele dezanove anos, quando um dia, sem mais nem menos, deixou o escritório da Cooperativa e arranjou um emprego em Nottingham. Este novo lugar rendia-lhe trinta xelins por semana, em vez dos dezoito do anterior. Era na verdade um bom aumento e os pais não cabiam em si de orgulhosos. Todos o elogiavam. Parecia que ia subir na vida num instante. E Mrs. Morel esperava poder, com o auxílio dele, ajudar os filhos mais novos. Annie andava a estudar para professora. Paul, também muito inteligente, ia muito bem nas lições de francês e alemão que o padrinho lhe dava – o pastor, velho amigo de Mrs. Morel. Arthur, um menino mimado e muito bonito, andava ainda na escola primária, mas tinha hipóteses de conseguir uma bolsa para ir para o liceu, em Nottingham.
William conservou-se durante um ano no seu novo emprego em Nottingham. Estudava afincadamente e tornava-se cada vez mais circunspecto. Algo parecia preocupá-lo. No entanto, continuava a ir aos bailes e aos festivais no rio. Não bebia. Todos os irmãos eram abstémios convictos. Chegava a casa muito tarde e estudava até altas horas da noite. A mãe implorava-lhe que tomasse cuidado, que fizesse uma coisa ou outra.
– Dança, se te apetece dançar, meu filho, mas não julgues que podes passar o dia no escritório e depois ires para a paródia, e depois ficares ainda a estudar. Não podes, o corpo não aguenta. Faz uma coisa ou a outra... diverte-te ou estuda latim... mas não tentes fazer as duas.
Depois, ele arranjou um emprego em Londres, a ganhar cento e vinte libras por ano, o que parecia uma soma fabulosa. A mãe nem sabia se havia de rir ou de chorar.
– Querem-me em Lime Street de segunda a oito, mãe – gritou ele, de olhos brilhantes, ao ler a carta. Mrs. Morel sentiu que tudo nela era silêncio. Ele continuou a ler: – «... queira confirmar até à próxima quinta-feira se aceita o lugar... Atentamente...» Eles querem-me lá, mãe, por cento e vinte libras por ano, e nem quiseram falar comigo. Eu não lhe disse que conseguia! Imagine-me só em Londres!... E posso dar-lhe vinte libras por ano, Mater... Vamos ficar afogados em dinheiro.
– Pois vamos, meu filho – respondeu ela, tristemente.
A ele nem lhe ocorreu que a mãe pudesse estar mais magoada com a sua partida do que contente com o seu sucesso. Na verdade, à medida que se aproximava o dia da partida, o coração dela começou a fechar-se e a sucumbir ao desespero. Amava-o tanto. Mais ainda: esperava tanto dele. Quase se podia dizer que vivia através dele. Gostava de lhe fazer as coisas: de lhe fazer uma chávena de chá e de lhe passar a ferro os colarinhos, de que ele tanto se orgulhava. Era para ela uma alegria vê-lo tão vaidoso dos seus colarinhos. Como não havia nenhuma lavandaria perto, costumava passá-los e repassá-los com o seu pequeno ferro de carvão, para os polir, até os pôr a brilhar à simples pressão do braço. E, agora, já não lhe podia fazer isso. Agora, ele ia partir, e era quase como se partisse também do seu coração. E ele parecia não querer deixar ficar nada de si dentro dela. Essa a causa da dor e do desgosto. Ele levava consigo quase tudo.
Uns dias antes da partida – tinha ele acabado de fazer vinte anos – queimou todas as cartas de amor, que estavam guardadas numa caixa em cima do armário da cozinha. Tinha lido extractos de algumas delas para a mãe ouvir, mas a maior parte delas eram demasiado banais.
No sábado de manhã, disse:
– Anda, ’Póstolo, vamos dar uma volta às minhas cartas, e tu podes ficar com os passarinhos e as flores.
Mrs. Morel tinha feito de véspera o trabalho destinado para sábado, pois tinham dado folga a William no último dia. Ela estava até a fazer-lhe um bolo de farinha de arroz, para ele levar. Mas ele não tinha consciência da tristeza que a mãe sentia.
Tirou da caixa a primeira carta. Era cor de malva e estava ornamentada com cardos verdes e púrpura. William cheirou a folha de papel:
– Cheira bem... perfumada...!
E meteu a carta debaixo do nariz de Paul.
– Hum! – disse Paul, inspirando fundo. – Que perfume é este?
– Jockey Club – disse William, embora não fizesse a menor ideia.
– Não podia ser cardo – disse Paul – porque os cardos não têm cheiro.
– Ora oiça esta: «Meu Único Amor»... Safa, Mater.
– Não me interessa ouvir essas baboseiras – disse Mrs. Morel.
– Oiça só esta!.. «Meu único Amor, Como não me disseste o teu primeiro nome, só te posso chamar aquilo que és na realidade. Tenho de te escrever, porque, se o não fizer, acho que a minha cabeça vai rebentar...» Veja só, Mater.
– São mesmo parvas! Têm tão pouca cabeça que não dá nem para rebentar... A adularem-te dessa maneira... Mal sabem elas que estão a arranjar lenha para se queimarem.
– Não é para me adularem. Esta ficou mesmo caidinha por mim.
– E, mesmo que tenha ficado, isso é motivo para se orgulhar? Que parvoíce!
– A mãe não devia dizer que andam a «adulá-lo para arranjar lenha para se queimarem» – interveio Paul.
– Claro, se tu o dizes... – disse a mãe a rir.
– «Fiquei a adorar coisas escocesas desde que te vi com aquele kilt. Ficava-te mesmo mal. Acho que nunca vi ninguém que ficasse tão bonito, com aquele kilt e aquelas meias...» São os meus joelhos... Têm de ser os meus joelhos, Mater. Não me escapa uma.
– Só não te escapam se forem das fáceis.
– Cala a boca, ’Póstolo. É bonita, não é?
Paul gostava de ver os desenhos que decoravam as cartas de amor. William queimou a carta. A seguinte era cor-de-rosa, com um raminho de flor de cerejeira ao canto.
– Flor de cerejeira! – disse Paul, aspirando o perfume. – Que bom... ora cheire, mãe.
A mãe aproximou o nariz pequeno e fino do papel.
– Não me apetece cheirar as parvoíces que elas fazem – disse, aspirando o perfume.
– O pai desta rapariga – disse William – é rico como Cresus. Tem terras que nunca mais acabam... Ela chama-me Lafayette, por eu saber falar francês... «Como vês, já te perdoei.» Esta de ela me perdoar é muito boa... «Falei de ti esta manhã à minha mãe, e ela terá muito prazer em que venhas tomar chá connosco no domingo, mas primeiro precisa do consentimento do meu pai. Espero bem que ele concorde. Logo que saiba, mando-te dizer se sim ou sopas. Se tu no entanto...»
– «Se sim ou...» quê? – atalhou Mrs. Morel.
– «... ou sopas»... é isso mesmo!
– «Se sim ou sopas!» – repetiu Mrs. Morel, trocista. – E eu que a julgava tão fina!
William começou a sentir-se algo desconfortável e pôs de lado esta donzela, dando a Paul o canto com a flor de cerejeira. Continuou a ler excertos das cartas, alguns dos quais deixavam a mãe divertida, outros triste e outros ainda apreensiva.
– Meu filho – disse ela –, elas são muito espertas. Já perceberam que só têm de alimentar a tua vaidade, para tu correres logo atrás delas como um cão a quem fizeram festas na cabeça.
– Ora, elas não podem estar sempre a fazer festas – retorquiu William. – E quando deixam de fazer, eu ponho-me a andar.
– Mas um dia descobres que te prenderam com uma corda que não consegues desatar – respondeu a mãe.
– Isso é que era bom! Eu chego bem para elas, Mater, elas que não se deixem enganar.
– Quem se deixa enganar és tu – disse Mrs. Morel, muito serena.
Não tardou que um monte de papéis retorcidos e tisnados se formasse na lareira, tudo o que restava da colecção de cartas perfumadas, à excepção dos trinta ou quarenta desenhos recortados dos cantos – andorinhas, miosótis e raminhos de hera – que agora pertenciam a Paul. Quanto a William, partiu para Londres, para dar início a uma nova colecção.
IV
A JUVENTUDE DE PAUL
PAUL saía à mãe – era baixo e franzino. O cabelo loiro tornou-se progressivamente arruivado e depois castanho-escuro, enquanto os olhos eram acinzentados. Era uma criança pálida e de poucas falas, com uns olhos que pareciam escutar e um lábio inferior carnudo e descaído.
Geralmente davam-lhe mais idade, pela constante preocupação que mostrava pelo que as outras pessoas sentiam, especialmente a mãe. Quando ela sofria, ele apercebia-se e não tinha paz, sempre de alma atenta às suas mais pequenas reacções.
À medida que crescia, ia-se tornando mais forte. William, devido à diferença de idades, não o queria por companheiro, pelo que só Annie estava com ele o dia inteiro. Annie era uma garota endiabrada, uma maria-rapaz, como a mãe lhe chamava, mas adorava o irmão mais novo, que andava sempre atrás dela. Quando ela fazia corridas com as outras garotas da vizinhança, Paul corria ao lado dela, a apoiá-la, uma vez que ainda não podia participar. Muito calado, passava quase despercebido. Mas a irmã adorava-o e ele fazia-lhe as vontades todas.
Annie tinha uma boneca grande de que muito se ufanava, embora não gostasse tanto dela como do irmão. Um dia, deitou-a no sofá, cobriu-a com uma manta, para ela adormecer, e foi-se embora. Entretanto, Paul pôs-se a saltar em cima do sofá e caiu mesmo em cima da cara da boneca, escondida debaixo da coberta. Annie precipitou-se para o sofá soltando um grito lancinante e sentou-se a chorar, inconsolável. Paul nem se mexeu.
– Não se percebia que a boneca estava ali, mãe; não se percebia – não se cansava ele de repetir, deixando-se ficar sentado muito triste enquanto Annie continuava a chorar. Por fim, o desgosto passou e ela perdoou ao irmão, que estava genuinamente contrito. Porém, um ou dois dias depois Annie ficou chocadíssima.
– Vamos oferecer a Arabella em sacrifício – disse ele. – Vamos queimá-la. – A irmã ficou horrorizada, mas ao mesmo tempo fascinada. Sempre queria ver o que o irmão ia fazer. Ele fez um altar de tijolos, tirou bocadinhos do enchimento do corpo de Arabella, enfiou esses bocadinhos na cara esburacada, deitou-lhe em cima um pouco de parafina e incendiou a boneca. Depois, com perversa satisfação, ficou a ver as gotas de cera derretida a escorrerem pela testa de Arabella, como se fossem suor a pingar sobre a chama. Enquanto a estúpida da boneca esteve a arder, ele rejubilou em silêncio. No fim, esgravatou nas brasas com um pauzinho, pescou os braços e as pernas, todos pretos, e esmagou-os com uma pedra.
– Pronto, este foi o sacrifício da Arabella – anunciou. – E ainda bem que não sobejou nada.
Annie, embora nada dissesse, estava perturbada com a cena. Era como se ele odiasse a boneca intensamente pelo facto de a ter partido.
Todos os irmãos, mas Paul em particular, colocavam-se nitidamente ao lado da mãe contra o pai. Morel continuava a fazer desmandos e a embebedar-se. Havia alturas, às vezes meses a fio, em que transformava a vida de toda a família num inferno. Paul nunca se havia de esquecer de ter vindo para casa, depois de uma reunião religiosa uma segunda-feira à tardinha, e ter encontrado a mãe com um olho negro e todo inchado, o pai de pé junto à lareira, de pernas afastadas e cabisbaixo, e William, que acabara de chegar do trabalho, a olhar enfurecido para o pai. Fez-se silêncio quando os irmãos mais novos entraram, mas nenhum dos adultos olhou para eles.
William estava lívido e de punhos cerrados. Esperou que os mais pequenos se calassem, limitando-se a olhar a cena com indizível raiva infantil, e disse:
– Seu grande cobarde, se eu cá estivesse, não se atrevia a fazer uma coisa destas.
Mas Morel estava ao rubro e voltou-se contra o filho. William era mais alto, mas Morel era mais possante e estava cego de raiva.
– Ah, não? – berrou. – Ah, não atrevia? Se abres mais essa boca, meu menino, assento-te a mão em cima, olá se assento!
E, vergando os joelhos, brandiu o punho ameaçadoramente, animalescamente. William estava lívido de raiva.
– Ah, sim? – disse William, sereno e intrépido. – Pois seria a última vez.
Morel aproximou-se gingão, semivergado, de punho no ar em posição de ataque. William armou também o punho. Os seus olhos azuis fixos no pai tinham o brilho de uma gargalhada. Mais uma palavra e os dois homens engalfinhavam-se. Paul desejava que isso acontecesse. Os três mais novos assistiam sentados no sofá, sem pinga de sangue.
– Acabem já com isso – gritou Mrs. Morel, com dureza. – Por esta noite chega... E tu – disse, virando-se para o marido – pensa nos teus filhos.
Morel virou os olhos para o sofá.
– Pensa nos teus filhos, ess’agora, minha grande cabra – disse ele, acintoso – o qu’é qu’eu fiz òs meus filhos, sempre gostava de saber. Mas eles saem a ti... ensinaste-lhes todas as tuas manhas e truques... criaste-os à tua maneira, foi o que foi.
Ela não respondeu. Ninguém abriu a boca. Passado algum tempo, ele atirou as botas para debaixo da mesa e foi deitar-se.
– Porque é que não me deixou fazer-lhe frente? – disse William, quando o pai já tinha ido para cima. – Ele tinha apanhado, e bem.
– Que bonito... bateres no teu pai – respondeu a mãe.
– Pai! – repetiu William. – Aquilo, meu pai!
– Bom, lá que é... é. Por isso...
– Mas porque é que não me deixa dar-lhe uma ensinadela, não custava nada...
– Que disparate! – gritou Mrs. Morel. – Ainda não chegámos a esse ponto.
– Não – disse o filho. – Ainda é pior... olhe para a sua cara. Porque não me deixou bater-lhe?
– Porque não ia suportar assistir a uma coisa dessas. É melhor que nem te passe pela cabeça – gritou ela, peremptória.
As crianças foram deitar-se muito tristes.
Quando William já era grande, a família mudou-se das Bottoms para uma casa no alto da colina, de onde se alcançava todo o vale, que se estendia por baixo, convexo, como concha de amêijoa ou berbigão. Fronteiro à casa, estava postado um velho freixo de grandes dimensões. Quando o vento oeste soprava forte das bandas do Derbyshire, apanhava em cheio as casas e a árvore não parava de ulular. Morel gostava de a ouvir.
– É como a música – dizia ele. – Ajuda-me a adormecer.
Mas Paul, Arthur e Annie detestavam o zumbido do vento. Para Paul, era quase um gemido demoníaco. Durante o primeiro Inverno que passaram na nova casa, o pai portou-se muito mal. As crianças ficavam a brincar na rua, alcandorada sobre o vale extenso e sombrio, e só voltavam para casa às oito horas, indo directas para a cama. A mãe ficava a costurar no andar de baixo. Todo aquele espaço aberto diante da casa incutia nas crianças uma sensação de vastidão nocturna, de terror. Terror esse que provinha da árvore ululante e da discórdia entre os pais. Paul, mesmo depois de adormecer, tinha um sono sobressaltado e acordava amiúde com os barulhos que vinham de baixo. Acordava e ficava atento. Ouvia então os berros desabridos do pai, que chegara a casa a cair de bêbado, seguidos das respostas aceradas da mãe, e depois os murros do pai em cima da mesa e os seus gritos descontrolados, à medida que ia elevando a voz. E, finalmente, tudo isto era abafado pelos gemidos e os uivos penetrantes do grande freixo agitado pela ventania. As crianças mantinham-se caladas e expectantes, a aguardarem que o vento se calasse, para perceberem o que o pai estava a fazer, não fosse ele bater na mãe outra vez. A escuridão instilava neles sentimentos de horror, violenta tensão e sangue, e adormeciam com o coração apertado de angústia. O vento era cada vez mais assustador. Todas as cordas da grande harpa gemiam, silvavam e uivavam. E, depois, o horror do súbito silêncio: o silêncio total, lá fora e lá em baixo. Que silêncio era aquele?... Um silêncio de sangue? Que teria ele feito?
As crianças mantinham-se deitadas a respirar escuridão. Por fim, ouviam o pai atirar com as botas e subir a escada só de meias. Mesmo assim, ficavam à escuta, até que, se o vento deixava, ouviam a água a sair da torneira para a chaleira, que a mãe já deixava preparada para o dia seguinte, e podiam, finalmente, dormir em paz.
De manhã, acordavam felizes, muito felizes, e brincavam e dançavam à volta do candeeiro solitário, ainda na escuridão, mas guardavam um recanto de ansiedade dentro dos seus corações e uma tristeza nos olhos que conservaram para toda a vida.
Paul odiava o pai. Quando era ainda pequeno, tinha uma religião muito sua.
– Faz com que ele deixe de beber – pedia ele todas as noites.
– Senhor, deixa o meu pai morrer – rezava ele muitas vezes.
– Faz com que ele morra na mina – pedia ele quando, depois do chá, o pai tardava a vir do trabalho.
Esse era outro dos momentos em que a família sofria intensamente. As crianças chegavam da escola e tomavam chá. A enorme chaleira preta fervilhava a um lado do fogão e a terrina do guisado estava no forno, à espera de que Morel chegasse. Era esperado às cinco horas. Porém, durante meses a fio, parava sempre na taberna quando voltava do trabalho e por lá ficava a beber.
Nas noites de Inverno, quando o frio era intenso e anoitecia mais cedo, Mrs. Morel levava para a mesa uma palmatória de latão com uma vela acesa, para poupar o gás. As crianças comiam a sua fatia de pão com manteiga ou com banha e iam brincar para a rua. Mas, se Morel ainda não tinha chegado, eles pensavam duas vezes. Mrs. Morel não suportava imaginá-lo sentado na taberna a beber, todo sujo e ainda com as roupas da mina, depois de um dia de trabalho, e, em vez de vir para casa comer e lavar-se, preferir embebedar-se de estômago vazio. E este seu sentimento comunicava--se aos filhos. Agora, ela já não sofria sozinha: os filhos sofriam com ela.
Paul foi brincar com os outros rapazes. No vale semeado no crepúsculo, cintilavam aglomerados de luzes a marcarem a entrada das minas. Alguns mineiros retardatários subiam desgarrados o carreiro da encosta. Por fim, passou o homem que acendia os lampiões da rua. Mais nenhum mineiro se avistava. A escuridão abateu-se sobre o vale, o trabalho terminara, era a noite que chegava.
Paul correu ansioso para a cozinha. A vela solitária ardia ainda sobre a mesa, o clarão vermelho da fogueira inundava a cozinha, e Mrs. Morel estava sentada e só. A chaleira fumegava no fogão, o prato continuava à espera. Um sentimento de espera perpassava toda a casa, um sentimento de espera pelo homem que estava nesse momento sentado na taberna, a pouco mais de uma milha de casa, já noite escura, com a roupa de trabalho, sem comer, e a beber até cair. Paul apareceu à porta.
– O papá já chegou? – perguntou.
– Bem vês que não – disse Mrs. Morel, aborrecida com a redundância da pergunta.
Depois, o garoto pôs-se a andar de um lado para o outro à volta da mãe. Partilhavam a mesma ansiedade. A certa altura, Mrs. Morel foi lá fora escorrer a água das batatas.
– Estão todas negras, uma porcaria – disse ela. – Quero lá saber. – Não se trocavam muitas palavras. Paul quase odiava a mãe por sofrer daquela maneira quando o pai não vinha para casa.
– Para que se aflige tanto? – disse ele. – Se ele quer ficar por lá a embebedar-se, porque não o deixa?
– Deixá-lo! – ripostou Mrs. Morel. – Essa é boa, «deixá-lo». – Ela sabia que todo o homem que se mete na taberna quando devia voltar para casa sem demora se arruina a si mesmo e à família. As crianças eram ainda muito pequenas e ele era o seu único ganha-pão. William viera trazer-lhe algum alívio, pois, com ele empregado, sempre tinha alguém a quem recorrer se Morel descambasse de vez. Porém, isso em nada alterava a tensão que se respirava na cozinha nestas noites de espera.
Os minutos escoavam-se no bater ritmado do relógio. Às seis horas, a mesa ainda estava posta, o jantar à espera, e a mesma atmosfera de ansiedade e expectativa invadia toda a casa. Paul já não aguentava mais. Não lhe apetecia ir lá para fora brincar. Correu por isso para casa de Mrs. Inger, duas portas mais abaixo, para conversar com ela. Mrs. Inger não tinha filhos. O marido era amigo dela, mas era caixeiro numa loja e chegava muito tarde. Quando ela viu o garoto à porta, chamou-o:
– Vem cá, Paul.
Ficaram os dois a conversar durante um bocado, mas logo Paul se levantou, dizendo:
– Bem, vou andando, para ver se a minha mãe precisa que eu lhe vá fazer algum recado.
Fingia estar muito alegre e não contou à amiga o que o preocupava. Depois, voltou a correr para casa.
Em alturas como esta, Morel chegava sempre mal-humorado, insuportável.
– Lindas horas de voltares para casa – dizia Mrs. Morel.
– Que tens tu co’isso, cas horas a qu’eu venho pra casa? – berrava ele.
E ninguém abria a boca, porque ele era perigoso. Comia o que lhe punham à frente com inultrapassável grosseria e, quando terminava, empurrava tudo o que tinha diante de si para longe, para poder estender os braços por cima da mesa, e, em seguida, adormecia.
Paul odiava por demais o pai. A cabeça do mineiro, pequena e mesquinha, com o cabelo preto empastado de fuligem, repousava sobre os braços nus, e a cara, suja e mal-humorada, de nariz grosso e sobrancelhas finas e insolentes, estava virada para o lado, adormecida – da cerveja, do cansaço e da má índole. Se alguém entrasse de repente ou fizesse o mais pequeno ruído, o homem abria os olhos e berrava:
– Tás aqui, tás a levar um murro, se não paras com essa chinfrineira. Tás’ouvir?
Estas palavras, gritadas selvaticamente e quase sempre dirigidas contra Annie, deixavam toda a família transida de medo.
Ele era mantido fora de todos os assuntos. Ninguém lhe contava nada. Enquanto estavam sozinhos com a mãe, o filhos relatavam-lhe as peripécias do dia, contavam-lhe tudo. Era como se nada realmente acontecesse até contarem à mãe. Mas, mal o pai entrava, fazia-se silêncio. A sua presença era como um travão na engrenagem fluente e feliz da vida doméstica. Ele apercebia-se deste muro de silêncio, do isolamento a que o votavam, de que não era bem-vindo; mas era já demasiado tarde para mudar.
Bem gostaria de que os filhos conversassem com ele, mas eles não conseguiam. Às vezes Mrs. Morel dizia:
– Devias contar ao teu pai.
Paul ganhou um prémio num concurso de jornal e todos ficaram radiantes.
– O melhor é contares ao teu pai quando ele chegar – disse Mrs. Morel. – Sabes bem que ele passa a vida a dizer que nunca lhe contam nada.
– Está bem – concordou Paul. No entanto, quase preferia ter perdido o prémio a ter de contar ao pai.
– Ganhei um prémio num concurso, pai – disse ele.
Morel voltou-se e disse:
– Ah, ganhaste, meu rapaz?... E que concurso era esse?
– Nada de especial... era sobre mulheres famosas.
– E de quanto é esse tal prémio que ganhaste?
– É um livro.
– Ah, é?
– Sobre aves.
– Hum!
E era assim. Não havia conversa possível entre o pai e qualquer dos restantes membros da família. Era como se ele fosse um estranho, tivesse negado o Deus que nele habitava.
Os únicos momentos em que voltava a entrar na vida da família era quando fazia consertos em casa e o trabalho lhe corria de feição. Às vezes, ao fim da tarde, depois de jantar, punha-se a remendar as botas ou a soldar a chaleira ou o cantil. Nessa altura precisava de ajudantes e as crianças rejubilavam. Partilhavam com ele o trabalho, no verdadeiro sentido de construírem realmente qualquer coisa, e aquele sim, era ele outra vez.
Mostrava-se competente e habilidoso, e quando estava de bom humor não parava de cantarolar. Mas atravessava longos períodos, às vezes meses, quase anos até, de contundência e irascibilidade. Depois, de repente, ficava bem-disposto outra vez e era bom vê-lo entrar pela copa dentro com um bocado de ferro incandescente, a gritar:
– Saiam da frente, saiam da frente!
Batia o ferro rubro e maleável na bigorna e moldava-o a gosto. Outras vezes sentava-se a soldar, e as crianças viam cheias de alegria o metal derreter instantaneamente e ser espalhado pelo ferro de soldar, impregnando a casa de um odor a lata quente e a resina queimada, enquanto Morel em silêncio se concentrava no trabalho. Cantava sempre que estava a remendar as botas, ao som das batidas do martelo. E via-se que estava feliz quando punha grandes remendos nas calças de fustão que usava na mina, o que acontecia bastas vezes, pois achava-as muito sujas e muito rijas para ser a mulher a fazê-lo.
Mas o que as crianças mais gostavam era de o verem fazer detonadores. Morel ia buscar ao sótão um molho de palhas de trigo compridas e resistentes. Limpava-as e polia-as à mão até cada uma luzir como uma hastezinha de ouro. Depois, cortava-as em bocados com cerca de seis polegadas, fazendo-lhes, se possível, um talho na ponta. Tinha sempre ao seu lado um canivete primorosamente afiado que cortava uma palha ao meio sem a danificar. Seguidamente, deitava em cima da mesa um montinho de pólvora – uma pilha de grãos pretos sobre o tampo de madeira bem lavada, e ia preparando e aparando as palhas, enquanto Paul e Annie as enchiam e vedavam com um bujão. O que Paul mais gostava era de ver os grãozinhos pretos escorregarem pela calha que ele fazia com a palma da mão e entrarem pela abertura da palhinha, até ela ficar cheia. Nessa altura, vedava a abertura com uma raspa de sabão que arrancava com a unha do polegar do bocado de sabão que tinha a seu lado num pires, e a palha estava pronta.
– Olhe, pai! – dizia ele.
– Isso mesmo, meu amor – respondia Morel, que era particularmente pródigo em elogios para com o seu segundo filho. Paul atirava os detonadores para dentro da lata da pólvora, já pronta para o dia seguinte, quando Morel a levasse para a mina, para com eles provocar uma explosão capaz de fracturar a parede de carvão.
Entretanto, Arthur, ainda muito agarrado ao pai, vinha apoiar-se no braço do cadeirão de Morel e dizia:
– Conte-nos como é lá em baixo na mina, papá.
Era o que Morel mais gostava de fazer.
– Ora bem, lá na mina há um cavalo, a gente chama-lhe Taffy – começava ele – e ele é um gra-a-nde manhoso!
Morel tinha uma maneira pitoresca de contar histórias. Parecia até que a manha do Taffy ganhava vida.
– É um baio – continuava ele – e dos pequenos. Bem, a cert’altura ele entra na galaria com ganda estardalhaço e a gente ouve-o espirrar.
– «Olá, Taff», diz a gente, «pra que tás tu a espirrar? Andaste a cheirar rapé?» E ele vá de espirrar outra vez. Depois vem ter co’a gente e dá-nos co’a cabeça no ombro, o malandreco.
– «Qu’é que tu queres, Taff?», diz a gente.
– E o qu’é qu’ele quer? – perguntava Arthur invariavelmente.
– Quer um bocado de tabaco, meu tontinho.
E a história do Taffy nunca mais acabava, para gáudio da pequenada.
Outras vezes a história mudava.
– Ora ouve esta, meu amor. De quando vou a vestir o casaco, na hora de vir dar ao dente, e dou c’um rato a correr-me pela manga acima. «Eh, lá!», grito eu, mesmo a tempo de lh’agarrar a ponta do rabo.
– E matou-o?
– Matei, pois. São uma praga. Aquilo tá cheio deles.
– E o que é que eles comem?
– Os grãos qu’os cavalos deixam cair... e até nos vêm ao bolso comer o farnel, s’os deixarmos... seja onde for que a gente pendure o casaco... Danados de comilões, isso é qu’eles são...
Estas noites bem passadas só aconteciam quando Morel tinha trabalho para fazer. Depois, ia deitar-se muito cedo, geralmente com as crianças. Não havia nada que o fizesse ficar a pé depois de terminar os consertos e ler por alto os títulos do jornal.
Os filhos sentiam-se seguros quando o pai estava na cama. Por vezes ficavam a conversar em voz baixa depois de se deitarem, e assustavam-se quando luzes de repente se projectavam no tecto, vindas das lanternas dos mineiros que passavam para o turno das nove horas. Ouviam as vozes dos homens e imaginavam-nos a penetrar no vale de breu. Às vezes iam à janela e ficavam a ver as três ou quatro lanternas cada vez mais pequeninas desaparecerem na distância, balançando na escuridão dos prados. E, depois, era tão bom voltarem para a cama e enroscarem-se uns nos outros, no quentinho.
De todos, só Paul era muito frágil, atreito a ataques de bronquite. Os outros eram todos fortes e essa era talvez a outra razão para a diferença que a mãe fazia entre ele e os irmãos. Um dia, Paul chegou adoentado à hora do almoço. A família, porém, não era dada a pieguices.
– O que se passa contigo? – perguntou a mãe, incisiva.
– Nada – respondeu ele.
Mas não quis comer.
– Se não comeres, não voltas para a escola.
– Porquê? – perguntou ele.
– Porque não.
Depois do almoço, ele foi deitar-se no sofá, entre as fofas almofadas de ramagens de que as crianças tanto gostavam, e pareceu adormecer. Nessa tarde, estava Mrs. Morel a passar a ferro quando ouviu os ruídos roucos e entrecortados que o filho fazia ao respirar. De novo a assaltou o antigo sentimento exacerbado de quando ele era bebé e julgava que não ia sobreviver. No entanto, o corpinho dele tinha grande vitalidade. Talvez para ela tivesse sido um alívio se ele tivesse morrido. Sentia sempre a angústia misturar-se ao amor que lhe tinha.
Ele, no seu estado de semiconsciência, apercebia-se vagamente do tinir do ferro no descanso e do seu assentar cavo sobre a tábua de engomar. Uma das vezes, acordando, abriu os olhos e viu a mãe junto à lareira com o ferro quente perto da cara, a escutar por assim dizer o ruído do calor. Ao ver o seu rosto imóvel, a boca crispada de tanto sofrimento, desilusão e abnegação, o nariz ligeiramente à banda e os seus olhos azuis, tão jovens, vivos e ternos, o coração de Paul apertou-se-lhe de amor. Quando ela ficava assim parada, como agora, parecia cheia de vida e de coragem, mas completamente privada dos seus direitos. Ao filho, magoava-o profundamente este pressentimento de ela nunca ter sido feliz, e a sua própria falta de capacidade para a compensar atingia-o como uma espécie de impotência, ao mesmo tempo que determinavam nele uma atitude de paciente tenacidade, em conformidade com as suas ambições pueris.
Ela cuspiu no ferro, e uma bolinha de cuspo enovelou-se e correu pela superfície negra e luzidia. Depois, pondo-se de joelhos, esfregou o ferro vigorosamente no forro de serapilheira do tapete. As chamas da fogueira envolviam-na num clarão cálido e avermelhado. Paul gostava da maneira como ela se baixava e inclinava a cabeça para o lado com movimentos leves e ligeiros. Era sempre com enlevo que a olhava. Nada que fizesse, nenhuma atitude ou movimento, podiam ter defeito para os filhos. A casa estava aquecida e cheirava a roupa quente. Mais tarde, o pároco veio conversar tranquilamente com Mrs. Morel.
Paul caiu à cama com um ataque de bronquite. Não que isso o contrariasse muito: o que tinha de ser tinha muita força e de nada servia revoltar-se. Gostava das noites, depois das oito horas, quando apagavam a luz e ele podia ver as chamas projectarem-se na escuridão das paredes e do tecto e seguir com o olhar as sombras alongadas que o percorriam, até a sala parecer invadida por guerreiros silenciosos, combatendo no silêncio.
Quando se ia deitar, o pai passava primeiro pelo quarto do enfermo. Se alguém estava doente em casa, mostrava-se sempre muito terno, mas a sua entrada não deixava de perturbar a paz que reinava no quarto de Paul.
– Tá a dormir, meu amor? – perguntava Morel, devagarinho.
– Não... A mãe não vem para cima?
– Tá só a acabar de dobrar a roupa. Quer alguma coisa? – Morel só raramente tratava o filho por «você».
– Não, não quero nada... Mas quanto tempo é que demora?
– Já falta pouco, meu tontinho.
O pai hesitava uns segundos frente à lareira. Sentia que o filho não queria a sua presença. Assomava-se então ao cimo das escadas e dizia à mulher:
– Aquela criança tá ansiosa por te ter ó pé... Inda vais ficar aí muito tempo?
– Até acabar o que estou a fazer, santo Deus! Diz-lhe que durma.
– Ela diz qu’o melhor é o meu menino adormecer – disse ele a Paul, de mansinho.
– Mas eu quero que ela venha para cima – insistiu o garoto.
– Ele diz que não dorme enquanto não vieres pra cima – gritou Morel lá para baixo.
– Calma, querido! Já vou. E vê se não gritas dessa maneira. Olha as outras crianças...
Depois, Morel voltou para o quarto de Paul e acocorou-se em frente da lareira. Que bem lhe sabia aquecer-se ao lume.
– Ela diz que já vem.
Parecia querer ficar ali indefinidamente. O garoto já estava febril de irritação. A presença do pai parecia aumentar ainda mais a sua impaciência. Por fim, depois de ficar a olhar para o filho por algum tempo, em silêncio, Morel disse mansamente:
– Boa noite, meu amor.
– Boa noite – respondeu Paul, voltando-se para o outro lado, satisfeito por ficar sozinho.
Paul adorava dormir com a mãe. O sono é ainda mais reparador, apesar de tudo o que dizem os defensores da higiene, quando partilhado com um ente querido. O aconchego, a segurança, a paz de espírito e o conforto que a presença do outro traz, conferem ao sono propriedades curativas. Paul adormecia encostado a ela e melhorava depressa, e ela, sempre atormentada por insónias, mergulhava num sono profundo que parecia renovar-lhe a esperança.
Durante a convalescença, Paul ficava sentado na cama, a ver os cavalos a pastar nos campos circundantes, espalhando o feno pela neve amarelada das pegadas, e a ver os mineiros voltarem para casa, figurinhas negras trilhando lentamente em grupos a alvura dos campos. Depois, vinda da neve, a noite avançava em vapores azulados, quase negros.
Durante a convalescença tudo era maravilhoso. Os flocos de neve caindo de repente na janela detinham-se por um momento, como andorinhas, mas logo desapareciam, e uma gota de água escorria pela vidraça. Os flocos de neve rodopiavam em torno da esquina da casa como pombas esvoaçantes. Do outro lado do vale, o pequeno comboio negro rolava hesitante através da planície toda branca.
Vendo-se tão pobres, as crianças ficavam radiantes quando podiam fazer qualquer coisa que pudesse ajudar os pais economicamente. Annie, Paul e Arthur saíam no Verão logo pela manhã e metiam-se pelo meio da erva molhada, de onde esvoaçavam cotovias, assustadas, à cata de cogumelos, esses corpos nus e de pele tão branca que se escondem dos olhares por entre o verde. Se conseguiam apanhar meia libra, já se davam por muito felizes: era a alegria de encontrarem qualquer coisa, a alegria de receberem qualquer coisa directamente das mãos da natureza e a alegria de poderem contribuir para a economia doméstica.
Mas a colheita mais importante, depois de andarem à procura de ervas aromáticas para as papas, era a das amoras. Mrs. Morel tinha de comprar fruta todos os sábados para os pudins; além disso, gostava muito de amoras. Assim, Paul e Arthur, enquanto houvesse uma amora à vista, esquadrinhavam os silvados, as moitas e as pedreiras abandonadas todos os fins-de-semana. Naquela região de cidades mineiras, as amoras eram relativamente raras. Mas Paul era persistente. Gostava de andar pelos campos entre os silvados, mas não suportava voltar de mãos a abanar. Isso seria desapontá-la, pensava ele, e antes queria morrer.
– Santo Deus! – exclamou a mãe ao vê-los entrar, já tarde, mortos de cansaço e cheios de fome. – Por onde é que vocês andaram?
– Bem – começou Paul –, como aqui não encontrámos nenhuma, fomos até Misk Hills... E veja só, mãe.
Ela espreitou para a cesta.
– E que lindas que são! – exclamou.
– E passa de duas libras... passa de duas libras, não passa, mãe?
A mãe tomou o peso à cesta.
– Passa, sim – respondeu, pouco convicta.
Paul estendeu-lhe um raminho. Trazia-lhe sempre um raminho, o mais bonito que encontrasse.
– Que bonito! – disse ela, com a entoação especial da mulher que recebe um testemunho de amor.
O filho preferia correr os campos o dia inteiro, calcorrear milhas e milhas, a dar-se por vencido e voltar de mãos vazias. Ela nunca o entendeu enquanto ele foi pequeno. Era uma mulher que esperava que os filhos crescessem depressa e se preocupava sobretudo com William.
Mas quando William foi trabalhar para Nottingham, e já não passava tanto tempo em casa, a mãe fez de Paul seu companheiro. Este sentia involuntariamente ciúmes do irmão, e William tinha ciúmes de Paul, mas eram ao mesmo tempo bons amigos.
A relação de Mrs. Morel com o seu segundo filho era mais subtil e tranquila, menos exacerbada talvez do que com o filho mais velho. Estava estabelecido que era Paul quem ia levantar o salário às sextas-feiras à tarde. Os mineiros das cinco minas da zona recebiam à sexta-feira, mas não individualmente. Os salários referentes a cada galeria eram pagos por junto ao capataz, chefe e contratador dos mineiros, e era ele quem fazia a distribuição, na taberna ou na sua própria casa. Para as crianças poderem ir buscar o dinheiro, a escola acabava mais cedo às sextas-feiras. Todos os filhos de Morel, primeiro William, depois Annie e agora Paul, já tinham ido buscar o dinheiro às sextas-feiras à tarde, até chegar a altura de eles próprios começarem a trabalhar. Paul costumava sair de casa às três e meia, com um saquinho de pano no bolso. Por todos os caminhos se viam mulheres, raparigas, crianças e homens a caminho dos escritórios.
Os escritórios eram muito bonitos: num edifício novo de tijolo vermelho, que mais parecia uma mansão, no meio de um jardim muito bem tratado, ao fundo de Greenhill Lane. A sala de espera era no vestíbulo, uma sala comprida e nua com chão de tijoleira azul e um banco a toda a volta, encostado à parede. Era aqui que se sentavam os mineiros, carregados de fuligem. Tinham saído mais cedo da mina. As mulheres e as crianças ficavam geralmente à espera nos arruamentos de gravilha avermelhada. Paul observava sempre com atenção a orla de relva e o grande canteiro onde cresciam amores-perfeitos e miosótis. Aos ouvidos chegava-lhe o som de muitas vozes misturadas. As mulheres exibiam os seus chapéus domingueiros. As raparigas tagarelavam animadas. Os cães corriam para um lado e para o outro. E, em redor, os arbustos erguiam-se verdes e silenciosos.
Nisto, alguém gritava de lá de dentro: «Spinney Park... Spinney Park», e todos os da mina de Spinney Park entravam de tropel. Quando chegava a vez da mina de Bretty, Paul entrava com a multidão. A sala de pagamentos era muito pequena. Um balcão a toda a largura dividia-a ao meio. Atrás do balcão estavam dois homens, Mr. Braithwaite e um empregado, Mr. Winterbottom. Mr. Braithwaite era um homem corpulento, com ar de patriarca austero e uma barbicha branca e rala. Tinha geralmente a boca tapada com um grande lenço de pescoço, em seda, e, mesmo no Verão, havia sempre uma fogueira acesa. Não se via uma janela aberta. Por vezes, no Inverno, o calor até chegava a queimar as gargantas de quem vinha do ar gélido do exterior. Mr. Winterbottom era baixinho, gordo e calvo. Tecia comentários sem o mínimo resquício de imaginação, enquanto o seu chefe não se cansava de proferir patriarcais invectivas contra os mineiros.
A sala estava apinhada de mineiros todos enfarruscados, homens que já tinham ido a casa mudar de roupa, mulheres e uma ou duas crianças, e, geralmente, um cão. Paul era bastante baixo e era por isso sina sua ver-se entalado entre as pernas dos homens, perto do calor sufocante da lareira. Sabia a ordem por que os nomes eram chamados: de acordo com o número da galeria.
– Holliday – chamou a voz metálica de Mr. Braithwaite. Mrs. Holliday avançou em silêncio, recebeu o salário e passou para o outro lado.
– Bower... John Bower.
Um rapaz chegou-se ao balcão. Mr. Braithwaite, uma bisarma irascível, fuzilou-o com o olhar por detrás das lentes.
– John Bower! – voltou ele a chamar.
– Sou eu – disse o rapaz.
– Esta agora..., dantes as ventas eram outras – disse o luzidio Mr. Winterbottom, espreitando por cima do balcão. Os presentes riram-se à socapa, a pensarem no John Bower pai.
– Porque é que o teu pai não veio? – perguntou Mr. Braithwaite, num tom magistral e grandiloquente.
– Não anda bem – respondeu o rapaz, na sua voz aflautada.
– Devias dizer-lhe para largar a bebida – aconselhou o corpulento tesoureiro.
– E depois não te queixes, se ele te ferrar um pontapé – disse uma voz trocista lá de trás.
Todos se riram. O tesoureiro, avantajado e com ares importantes, olhou para a folha que se seguia.
– Fred Pilkington! – chamou, em tom neutro.
Mr. Braithwaite era um importante accionista da firma.
Paul sabia que só faltava um e depois era a vez dele. O coração começou a bater mais depressa. Foi empurrado de encontro à chaminé. Tinha a barriga das pernas a arder, mas não podia furar a barreira humana à sua volta.
– Walter Morel! – soou a voz metálica.
– Aqui – esganiçou-se Paul, da sua pequenez desajeitada.
– Morel... Walter Morel! – repetiu o tesoureiro, de folha de pagamentos na mão, pronto a passar à frente.
Paul foi acometido de convulsões nervosas e não conseguia, ou não queria, gritar. As costas dos homens apagavam-no por completo. Então, Mr. Winterbottom veio em seu auxílio.
– Ele tava aqui... onde tá ele? O miúdo do Morel?
O homem gordo, vermelhusco e calvo perscrutou a sala, assestando os olhos. Nisto, apontou para a chaminé. Os mineiros olharam também e, afastando-se, libertaram o rapaz.
– Aqui tá ele! – disse Mr. Winterbottom. Paul aproximou-se do balcão.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros... Atão, não respondes quando te chamam? – disse Mr. Braithwaite. Pousou um saco com cinco libras em prata com toda a força em cima da folha de pagamentos e, depois, num gesto rápido e delicado, pegou numa pequena pilha de dez libras em ouro e colocou-a ao lado da prata. As moedas de ouro escorregaram sobre o papel como um rio de brilho. O tesoureiro acabou de contar o dinheiro e o rapaz levou tudo a Mr. Winterbottom, no outro extremo do balcão, a quem deviam ser pagas a renda da casa e o aluguer das ferramentas. Aí chegado, novo percalço.
– Dezasseis xelins e seis dinheiros – disse Mr. Winterbottom.
O rapaz estava nervoso de mais para contar o dinheiro, pelo que empurrou algumas moedas de prata e meio soberano na direcção do funcionário.
– Quanto julgas tu que me destes? – perguntou Mr. Winterbottom.
O rapaz fitou-o, sem responder. Não fazia a menor ideia.
– Perdestes a língua?
Paul mordeu o lábio e empurrou mais algumas moedas de prata por cima do balcão.
– Na escola num t’insinaram a contar? – perguntou o homem.
– Só álgibra e franciú – disse um mineiro.
– E a ser sabido – acrescentou outro.
Paul sabia que por sua causa havia gente à espera. Com mãos trémulas, guardou o dinheiro no saco e saiu. Estas ocasiões eram para ele como as penas do Inferno.
Quando se apanhou cá fora, na estrada de Mansfield, sentiu-se infinitamente aliviado. O muro do parque estava coberto de musgo muito verde. Galinhas brancas e douradas debicavam à volta das macieiras de um pomar. Os mineiros serpenteavam rumo a casa. O rapaz seguia rente ao muro, envergonhado. Conhecia muitos dos homens, mas assim, todos sujos, não conseguia identificá-los, o que para ele era uma nova tortura.
Quando chegou à taberna New Inn, em Bretty, o pai ainda não tinha chegado. Mrs. Wharmby, a taberneira, conhecia-o. A avó dele, a mãe de Morel, fora amiga de Mrs. Wharmby.
– O teu pai ainda não chegou – disse ela, naquele tom meio atrevido, meio maternal, de mulher habituada a falar sobretudo com homens feitos. – Senta-te.
Paul sentou-se ao balcão, na beira de um banco alto. Alguns mineiros estavam a um canto a «dividir o bolo» – a distribuir o dinheiro – e outros vinham a entrar. Todos miravam o rapaz, sem dizer palavra. Finalmente, Morel chegou, todo desempenado e com um certo toque de galhardia, apesar da pretidão.
– Olá – disse ele, ternamente, para o filho. – Atão, inda conseguiste chegar primeiro do qu’eu? Queres beber alguma coisa?
Paul, tal como os irmãos, tinha crescido um anti-alcoólico convicto, e para ele era pior beber uma limonada à frente de todos aqueles homens do que tirar um dente.
A taberneira mirou-o dos pés à cabeça, penalizada, mas ao mesmo tempo ofendida com a rigidez moral de que dava mostras. Paul voltou para casa rubro de vergonha. Entrou em silêncio. Sexta-feira era dia de cozer o pão e havia geralmente uma carcaça quentinha à sua espera. A mãe veio dar-lha.
De repente, ele virou-se a ela furioso, de olhos a faiscar.
– Nunca mais entro naquele escritório.
– Porquê, o que é que aconteceu? – perguntou a mãe, surpreendida. Divertia-se imenso com os súbitos ataques de fúria deste filho.
– Nunca mais lá volto – afirmou ele.
– Pronto, está bem. Então, vai dizer isso ao teu pai.
Paul mastigava o pão como se tivesse alguma coisa contra ele.
– Não vou... Não vou mais buscar o dinheiro.
– Então talvez um dos miúdos do Carlin possa ir. Eles haviam de gostar de ficar com os seis dinheiros – disse Mrs. Morel.
Os seis dinheiros era tudo o que Paul recebia. Gastava-os quase todos a comprar presentes de aniversário, é certo, mas eram a sua semanada e prezava-os muito. Porém, disse:
– Pois que fique com eles! Eu não os quero.
– Muito bem – respondeu a mãe. – Mas não precisas de me tratar mal por causa disso.
– Eles são horríveis e ordinários... são horríveis, pronto, e eu não vou lá mais. Mr. Braithwaite pronuncia mal as palavras e Mr. Winterbottom diz «a gente semos».
– E é por isso que não queres lá voltar? – disse a mãe a sorrir.
O rapaz ficou calado. Estava muito pálido, com os olhos pretos e furiosos. A mãe voltou aos seus afazeres sem lhe dar mais importância.
– Eles metem-se todos à minha frente e eu não consigo sair donde estou – disse ele.
– Bem, meu filho, só tens de pedir licença – respondeu ela.
– E depois o Alfred Winterbottom diz, «O qu’é que t’insinam na escola?»
– A ele nunca ensinaram grande coisa – disse Mrs. Morel. – Lá isso é verdade... nem boas maneiras, nem inteligência... a única coisa que tem é manha.
– E vão eles e dizem, «Só álgibra e franciú.» Na escola, não ensinam francês.
– Mas, se ensinassem – disse a mãe, sorrindo – não era preciso ficares tão zangado... Portas-te duma maneira tão infantil, meu filho, quando alguém brinca contigo.
– E depois? – Paul olhou para a mãe quase a chorar, e ainda com mais raiva e ódio do que propriamente ofendido.
– És tão pateta – continuou ela. – Não consegues dizer simplesmente «agora é a minha vez», deixas-te ultrapassar e depois ficas furioso. A culpa é tua.
E, assim, lá o acalmou, embora à sua maneira. A ridícula hiper-sensibilidade dele confrangia-lhe o coração. Outras vezes, a fúria que via nos olhos do filho alertava-a, fazia a sua alma adormecida levantar a cabeça momentaneamente, surpreendida.
– Quanto foi desta vez? – perguntou.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros, e dezasseis xelins e seis dinheiros de retenção – replicou o rapaz. Foi uma boa semana... e só cinco xelins de retenções para o meu pai.
Assim, ela podia calcular quanto o marido tinha ganho, e chamá-lo à pedra se ele lhe desse pouco dinheiro. Morel guardava sempre para si o segredo do montante da semana.
Sexta-feira era a noite de cozer pão e de ir ao mercado. Regra geral, Paul ficava em casa a vigiar o pão. Gostava de ficar a desenhar ou a ler – adorava desenhar. Annie punha-se sempre ao fresco à sexta-feira à noite, e Arthur entretinha-se a brincar na rua, como de costume. Por isso, Paul ficava sozinho.
Mrs. Morel gostava muito de ir à compras. No exíguo terreiro no cimo da colina onde se juntavam as quatro estradas vindas de Nottingham e Derby, Ilkeston e Mansfield, eram montadas muitas barracas. Chegavam breques das aldeias em redor. O mercado enchia-se de mulheres, as ruas ficavam apinhadas de homens. Mrs. Morel costumava discutir com a vendedeira de rendas, simpatizava com o homem da fruta, que era muito falador – mas a mulher, essa era uma desavergonhada, sempre a dar conversa ao peixeiro, que era um patife, mas muito espirituoso – metia na ordem o vendedor de linóleo, mostrava-se distante com o homem do bricabraque, e só entrava na barraca das loiças quando se sentia atraída – ou arrastada – pelas florinhas que decoravam algum prato ou alguma travessa. Mas, sempre que isso acontecia, mostrava-se delicadamente reservada.
– Estava aqui a pensar quanto poderia custar isto – dizia ela.
– Sete dinheiros, por ser para si.
– Obrigada.
Pousava de novo a travessa e ia-se embora. Mas não era capaz de deixar o mercado sem a levar. E lá ia ela outra vez ao sítio onde as loiças estavam expostas pelo chão, e olhava de soslaio para a travessa, furtivamente, fingindo que não estava a olhar.
Era uma mulher franzina, de chapéu e fato preto. O chapéu já tinha quase três anos, para vergonha e desespero de Annie.
– Mãe! – implorava ela. – Não ponhas mais esse chapéu horroroso.
– E queres que eu ponha o quê? – retorquia a mãe, com aspereza. – Acho que está até muito bom.
Começara por ser enfeitado com uma pala, depois seguiram-se flores, e agora estava reduzido a uma rendinha preta e um pouco de azeviche.
– Tem tão mau aspecto – dizia Paul. – Não lhe pode dar um ar um pouco mais moderno?
– Posso é dar-te umas boas palmadas, para não seres atrevido – disse Mrs. Morel, e atava as fitas do chapéu preto debaixo do queixo, com determinação.
Contemplou a travessa uma vez mais. Tanto ela como o oleiro se sentiam pouco à vontade, como se entre eles existisse qualquer desentendimento. De repente, o oleiro exclamou:
– Quer levá-la por cinco dinheiros?
Ela estremeceu. O coração apertou-se-lhe. Mas, depois, baixou-se e pegou na travessa.
– Fico com ela – disse ela.
– Faz-me esse favor, não é? – disse o homem. – O melhor é cuspir-lhe em cima, como se faz quando nos dão uma prenda.
Mrs. Morel deu-lhe os cinco dinheiros com frieza.
– Não acho que ma esteja a dar, percebe – disse ela. – Se não quisesse, não ma deixava levar por cinco dinheiros.
– Neste país de miséria, já nos podemos dar por muito felizes se pudermos dar as nossas coisas – resmungou o homem.
– Pois é, há tempos bons e maus – disse Mrs. Morel.
Mas já tinha perdoado ao oleiro. Agora, eram amigos. Já se atrevia a mexer nas loiças expostas e sentia-se feliz.
Paul estava à espera da mãe. Adorava vê-la entrar em casa. Chegava sempre radiante, triunfante, cansada, carregada de embrulhos, mas rica de espírito. Ele ouvia os seus passinhos leves na entrada e levantava os olhos das pinturas.
– Oh! – suspirava ela, sorrindo-lhe da soleira da porta.
– Ena pá, como vem carregada! – exclamava Paul, pousando o pincel.
– Se venho! – dizia ela, ofegante. – A marota da Annie disse que ia ter comigo. Olha para o peso que eu trago!
Pousou o saco e os pacotes em cima da mesa.
– O pão já está cozido? – perguntou, dirigindo-se para o forno.
– O último está a crescer – respondeu ele. – Não precisa de ir ver, eu não me esqueci dele.
– Ai, aquele oleiro! – disse ela, fechando a porta do forno. – Lembras-te de eu te dizer como ele era antipático. Bom, agora já não acho que seja assim tão mau.
– Ah, não?
O filho não tirava os olhos dela. Mrs. Morel tirou o chapelinho preto.
– Não... Acho que ele acaba por não ganhar nada... bem, passa-se o mesmo com toda a gente, nos tempos que correm... e é isso que o deixa mal-encarado.
– A mim deixava com certeza – disse Paul.
– Bom, e não seria para admirar... E ele deixou-me ficar esta... Por quanto é que achas que ele me deixou ficar isto?
Tirou a travessa do papel que a embrulhava e contemplou-a, satisfeita.
– Mostre lá! – pediu Paul.
E ficaram os dois lado a lado a admirar a travessa.
– Adoro ver estas florinhas a enfeitar as coisas – disse Paul.
– Eu também. E lembrei-me do bule que me compraste...
– Um xelim e três dinheiros – disse Paul.
– Cinco dinheiros!
– Foi muito barata, mãe.
– Pois foi. Pode dizer-se que foi quase roubada. Mas já tinha feito muitas extravagâncias e não tinha dinheiro para mais. E, se ele não quisesse, não precisava de ma vender.
– Lá isso, não, não precisava – disse Paul, e ficaram os dois a consolar-se mutuamente do receio de terem roubado o oleiro.
– Podemos usá-la para pôr fruta cozida – alvitrou Paul.
– Ou leite-creme... ou doce de fruta – acrescentou a mãe.
– Ou rabanetes e alface – continuou ele.
– Não te distraias com o pão – disse a mãe, numa voz transbordante de alegria.
Paul foi espreitar o pão e bateu-lhe ao de leve na parte de baixo.
– Já está cozido – disse, mostrando-o à mãe. Ela bateu-lhe também.
– Pois está – respondeu ela, começando a tirar as compras do saco. – Oh, sou uma gastadora, uma perdulária... Sei que um dia me vai fazer falta.
Paul foi a saltitar para junto da mãe, para ver as últimas extravagâncias. Ela abriu um outro embrulho em papel de jornal e pôs à mostra algumas raízes de amores-perfeitos e boninas carmesim.
– Quatro dinheiros! – lamentou-se.
– Que barato! – exclamou ele.
– Pois é, e logo esta semana que eu estava sem um tostão.
– Mas são lindas! – exclamou ele.
– Então não são! – exclamou ela, dando lugar ao mais genuíno contentamento. – Paul... olha para esta florinha amarela... que bonita, não é... e uma cara que parece de velho!
– E parece mesmo! – exclamou Paul, baixando-se para cheirar. – E que bem que cheira! Mas está um bocado suja.
Correu para a copa, voltou com um pano molhado, e lavou o amor-perfeito com todo o cuidado.
– Agora, olhe para ele, está todo molhado! – disse Paul.
– Pois está! – exclamou ela, a transbordar de felicidade.
As crianças de Scargill Street consideravam-se muito selectas. Ao fundo da rua, onde viviam os Morels, não havia muita gente nova, e, por isso, os que havia eram mais unidos. Rapazes e raparigas brincavam uns com os outros: as raparigas participavam nas lutas e jogos violentos dos rapazes, e os rapazes tomavam parte nas danças de roda e nos jogos de faz-de-conta das raparigas.
Annie, Paul e Arthur gostavam das noites de Inverno, quando não chovia. Deixavam-se ficar dentro de casa até os mineiros terem regressado todos, até ser noite fechada e a rua ficar deserta. Nessa altura, enrolavam um cachecol ao pescoço, pois prescindiam do casacão, tal como os outros filhos dos mineiros, e saíam de casa. A entrada da rua estava completamente às escuras daquele lado e a noite estendia-se vazia, com um pequeno emaranhado de luzinhas lá em baixo, na mina de Minton, e um outro bem mais longe, na direcção oposta, na de Selby. As luzes mais distantes pareciam prolongar as trevas para sempre. As crianças olhavam ansiosas para o lampião solitário postado ao fundo da rua, na extremidade da ladeira da encosta. Se o escasso espaço de luz estava deserto, os dois rapazes ficavam desolados. Encostavam-se ao candeeiro, de mãos nos bolsos e costas viradas à noite, aborrecidíssimos, a olharem para as casas às escuras. Nisto, avistaram um bibe por baixo de um casaquinho curto, e uma rapariga de pernas altas a correr para eles.
– Onde tão o Billy Pillins e a vossa Annie e o Eddie Dakin?
– Não sei.
Mas isso não tinha importância – agora já eram três, e punham-se a correr à volta do poste até os outros aparecerem a gritar. Daí em diante, era brincadeira a valer.
Existia apenas este candeeiro. Para trás dele, só a imensa concha de trevas que parecia conter a noite inteira. À sua frente, um caminho largo e escuro percorria a cumeada. De vez em quando, saía alguém desse caminho e dirigia-se para o vale, pelo carreiro, sendo tragado pela noite a uns escassos dez metros de distância. As crianças continuaram a brincar.
Eram excessivamente unidas devido ao isolamento em que viviam. Mas, se se zangavam, a brincadeira ficava completamente estragada. Arthur era muito susceptível, e Billy Pillins, ou melhor, Philips, era-o ainda mais. Paul tinha de tomar o partido de Arthur, e a Paul juntava-se Alice, enquanto Billy Pillins contava sempre com o apoio de Emmie Limb e Eddie Dakin. Depois, envolviam-se os seis à bulha, odiando-se com toda a fúria do mais genuíno ódio, e corriam para casa apavorados. Paul nunca se havia de esquecer de ter visto uma noite, depois de uma destas assanhadas lutas fratricidas, uma grande lua vermelha elevar-se lentamente no céu por cima da estrada deserta da cumeada, sem vacilar, como pássaro gigantesco; e a imagem bíblica que o assaltou, da lua a transformar-se em sangue. No dia seguinte, apressou-se a ir fazer as pazes com Billy Pillins, e as desenfreadas brincadeiras retomaram o seu curso à luz do candeeiro solitário, rodeadas da mais negra escuridão. Mrs. Morel, ao entrar na sala, ouvia as crianças a cantar ao longe:
«Uso sapatos de couro espanhol,
Meias de seda, para meu deleite;
Anéis nos dedos, que brilham ao sol,
E só tomo banho em tinas de leite.»
Pareciam tão absorvidas no jogo, pelo som das suas vozes que penetrava as trevas, que dir-se-ia o canto de criaturas selvagens. A mãe estremecia e entendia-os quando voltavam às oito horas, afogueados, de olhos brilhantes e língua solta e vibrante.
Todos eles gostavam desta casa de Scargill Street pela sua largueza de horizontes, pela sua abertura sobre a concha de mundo que dominava. Nas noites de Verão, as mulheres vinham arrimar-se à cerca da encosta, a conversar, viradas para poente, vendo o sol apagar-se num lampejo e espraiando o olhar até aos montes do Derbyshire, recortados ao longe num céu de carmim, como a crista negra de uma salamandra.
Neste Verão, as minas não estavam a trabalhar em pleno, especialmente as de carvão mole. Mrs. Dakin, que morava ao lado de Mrs. Morel, costumava ficar a ver os homens subirem a encosta lentamente sempre que se assomava à cerca para sacudir o tapete. Viu logo que eram mineiros e ficou à espera lá em cima, alcandorada na colina, alta, magra, olhar astuto e penetrante, uma quase ameaça para os pobres mineiros que a custo trepavam a ladeira. Eram apenas onze horas. A neblina que, como fino crepe negro, cobre o horizonte das manhãs estivais não se tinha ainda dissipado sobre as colinas frondosas desenhadas à distância. O primeiro homem alcançou a cancela, que chiou à sua passagem.
– O quê, mandaram-no embora? – gritou Mrs. Dakin.
– Mandaram, sim senhora.
– É uma pena deixarem-nos vir embora – disse ela, sarcástica.
– Lá isso é – respondeu o homem.
– E não apetece nada voltar para casa agora – disse ela.
O homem seguiu o seu caminho. Quando Mrs. Dakin atravessava o quintal, de volta a casa, avistou Mrs. Morel, que ia despejar as cinzas da lareira.
– Acho que Minton fechou, Mrs. Morel – gritou ela.
– É uma vergonha! – exclamou Mrs. Morel indignada.
– Pois é... Vi mesmo agora o Jont Hutchly.
– Bem podiam ter poupado as solas dos sapatos – disse Mrs. Morel, e voltaram as duas para casa indignadas.
Os mineiros, de caras quase limpas, voltavam para casa. Morel detestava ter de se vir embora. Adorava as manhãs soalheiras, mas ir para a mina e mandarem-no embora logo a seguir estragava-lhe a boa disposição.
– Santo Deus... já? – exclamou a mulher, vendo-o entrar.
– Qu’hei-d’eu fazer, mulher! – berrou ele.
– E eu não tenho comida que chegue.
– Num faz mal, como o farnel que levei – vociferou ele, pateticamente. Sentia-se envergonhado e irritado.
Os filhos, quando chegaram da escola, estranharam ver o pai a comer as duas grossas fatias de pão com manteiga que tinha levado para a mina, já muito secas e sujas.
– Porque é que o meu pai tem de comer o farnel aqui em casa? – perguntou Arthur.
– Porqu’ela ficava toda zangada s’eu num o comesse – respondeu Morel.
– Lá estás tu com histórias! – exclamou a mulher.
– E achas qu’é pra deitar fora? – disse Morel. – Eu num sou esquisito como vocês, que desperdiçam tudo. Se me cai um bocado de pão na mina, no meio daquela porcaria toda, apanho-o e como-o.
– Os ratos comiam-no – disse Paul – e já não era um desperdício.
– Pão cum manteiga pròs ratos? Nem pensar nisso – disse Morel. – Sujo ou limpo, antes comê-lo eu que deitá-lo fora.
– Podias dá-lo aos ratos e comprares mais com o dinheiro que gastas na cerveja – disse Mrs. Morel.
– Ah, podia...? – exclamou o marido.
O Outono que se seguiu foi de míngua. William tinha acabado de partir para Londres e a mãe sentia a falta do dinheiro que ele lhe costumava entregar. Ainda lhe mandou dez xelins por uma ou duas vezes, mas no início tinha muitas compras a fazer. As suas cartas chegavam com regularidade, uma vez por semana. Escrevia longas cartas à mãe em que lhe contava o que fazia, os amigos que tinha, as lições que trocava com um francês, como gostava de viver em Londres. Para a mãe era como se ele estivesse com ela, como no tempo em que morava em casa. E ele todas as semanas lhe escrevia cartas francas e cheias de espírito. Era nele que ela pensava o dia inteiro, enquanto fazia a limpeza da casa. Ele estava em Londres, ia ter sorte. Era quase como se fosse o seu cavaleiro andante, ostentando as cores dela na batalha.
Vinha agora a casa passar cinco dias pelo Natal. Não havia memória de tantos preparativos. Paul e Arthur correram os campos à procura de azevinho e sempre-viva. Annie fez enfeites de papel recortado à moda antiga, e a despensa estava farta como nunca. Mrs. Morel fez um bolo de natal enorme, magnífico, e sentindo-se uma rainha, mostrou a Paul como se pelavam amêndoas. Ele pelou as oleaginosas com reverência, contando-as, uma a uma, não fosse alguma perder-se. Dizia-se que as claras subiam mais num lugar frio e, por isso, Paul foi para a copa, onde o frio era quase insuportável, batendo-as sem parar e correndo excitadíssimo a mostrar a mãe como as claras cresciam, cada vez mais firmes e nevadas.
– Olhe, mãe... estão óptimas, não estão?
Depois, pôs um bocadinho na ponta do nariz e soprou-o para o ar.
– Então, isso não é para estragar – disse a mãe.
Toda a gente andava excitadíssima. William ia chegar na véspera de Natal. Mrs. Morel passou revista à despensa. Havia um grande bolo de passas e um bolo de farinha de arroz; tartes de geleia e de limão, e duas grandes travessas cheias de empadas de carne. E ainda faltavam umas tartes de amêndoa e de queijo que ela preparava a toda a pressa. A casa estava toda enfeitada. A coroa de azevinho, salpicada de bagas bem vermelhas e pendurada entre grinaldas cintilantes, rodopiava por cima da cabeça de Mrs. Morel enquanto ela recortava a massa das tartes na cozinha. A fogueira, imensa, crepitava. A casa rescendia a bolos e massa folhada. William devia chegar às sete horas, mas o mais provável era atrasar-se. Os irmãos tinham ido ao seu encontro. A mãe ficara sozinha. Mas, por volta de um quarto para as sete, Morel voltou para casa. Marido e mulher nada disseram. Ele sentou-se no cadeirão, ansioso, sem saber o que fazer, e ela continuou com os seus cozinhados. A sua comoção só era traída pelo modo meticuloso como ia fazendo as coisas. E o relógio continuou a bater.
– A que horas disseste qu’ele chegava? – perguntou Morel, pela quinta vez.
– O comboio chega às seis e meia – respondeu ela, enfaticamente.
– Então vai chegar por volta das sete e dez.
– Deus te oiça, mas o comboio vai atrasar-se algumas horas no Midlands – disse ela, aparentando indiferença. Fazia-o, no entanto, com a esperança de acontecer o contrário e ele chegar mais cedo. Morel foi até à porta, para ver se o via. Depois voltou para dentro.
– Credo, homem! – disse ela. – Parece que tens bicho-carpinteiro.
– Em vez de estares pr’aí a falar, num era melhor arranjares-lhe alguma coisa para comer? – disse o marido.
– Tenho muito tempo para isso – respondeu ela.
– Num é o que me parece – contrapôs ele, virando-se amuado na cadeira. Ela começou a limpar a mesa da cozinha. A chaleira já apitava. E eles à espera.
Entretanto, os outros três filhos estavam em Lethley Bridge, uma estação da linha do Midlands, a duas milhas de casa. Esperaram uma hora. Chegou um comboio, e nada. Ao fundo da linha, as luzes verdes e vermelhas acendiam e apagavam. Estava muito escuro e fazia muito frio.
– Vai perguntar-lhe se o comboio de Londres já passou – disse Paul a Annie quando avistaram um homem de boné de pala.
– Não vou nada – disse Annie. – Fica mas é calado, senão ele inda nos manda embora.
Mas Paul estava morto por que o homem soubesse que eles esperavam alguém que vinha de Londres, o que lhes dava uma certa importância. Porém, tinha medo, muito medo, de abordar um desconhecido, e ainda por cima de boné de pala. As crianças nem se atreviam a entrar na sala de espera, com medo de que os mandassem embora, e que alguma coisa acontecesse enquanto não estavam na plataforma. E lá continuaram à espera, no frio e na escuridão.
– Já está hora e meia atrasado – disse Arthur, já a desesperar.
– Bem – disse Annie –, é véspera de Natal.
O silêncio crescia entre eles. O irmão não vinha. Perscrutaram a escuridão ao longo da linha férrea. Lá ao fundo, ficava Londres! Uma lonjura infinita, pensaram. Tudo podia acontecer quando se vinha de Londres. Estavam demasiado preocupados para falarem. Enregelados, tristes e mudos, continuavam encostados uns aos outros na plataforma.
Finalmente, passadas mais de duas horas, avistaram os faróis de uma locomotiva a descrever uma curva na distância. Um bagageiro aproximou-se a correr. As crianças chegaram-se para trás com os corações a galope. Um enorme comboio com destino a Manchester parou. Abriram-se duas portas e, de uma delas, saiu William. Os irmãos atiraram-se a ele. Ele, todo contente, entregou-lhes muitos embrulhos e logo explicou que aquele grande comboio só tinha parado numa estação insignificante como Lethley Bridge por causa dele, já que a paragem não estava programada.
Entretanto, os pais iam ficando cada vez mais preocupados. A mesa estava posta, a costeleta grelhada, tudo estava a postos. Mrs. Morel pôs o seu avental preto. Por baixo, tinha o seu melhor vestido. Depois sentou-se e fingiu concentrar-se na leitura. Os minutos arrastavam-se como uma tortura.
– Hum! – disse Morel. – Já passa hora e meia.
– E aquelas crianças à espera! – disse ela.
– O comboio inda num pode ter chegado – disse ele.
– É o que eu digo. Na véspera de Natal vêm com horas de atraso.
Estavam os dois implicativos de tanta ansiedade. O freixo gemia lá fora fustigado por um vento gélido, implacável. E tanta noite a separar Londres do lar! Mrs. Morel sofria. O tiquetaque do relógio irritava-a sobremaneira. Estava a fazer-se tarde. A espera estava a tornar-se insuportável.
Por fim, o ruído de vozes e de passos na entrada.
– Já chegou! – gritou Morel, saltando da cadeira.
Depois, deu um passo à retaguarda. A mãe correu em direcção à porta e ficou à espera. Seguiu-se um tropel de passos, a porta escancarou-se e William apareceu. Largou no chão o saco de viagem e abraçou-se à mãe.
– Mater! – disse ele.
– Meu filho! – gritou ela.
E, durante não mais de dois segundos, ela abraçou-o e beijou-o. Depois, afastou-se e disse, com a naturalidade possível:
– Mas que grande atraso!
– Foi, não foi? – exclamou ele, voltando-se para o pai.
– Então, pai!
E os dois homens trocaram um aperto de mão.
– Então, meu rapaz!
Os olhos de Morel estavam rasos de lágrimas.
– Távamos a ver que nunca mais chegavas – disse ele.
– Então não havia de chegar! – exclamou William, voltando-se para mãe.
– Estás com óptimo aspecto – disse Mrs. Morel, a rir, toda orgulhosa.
– Claro... – respondeu o filho. – Basta ter voltado para casa.
Era um jovem desempenado, alto, garboso e de olhar intrépido. Olhou em volta, para a sempre-viva e o azevinho, e para as empadas que estavam dentro das forminhas em cima do fogão.
– Graças a Deus que nada mudou, mãe – disse ele, satisfeito. Todos ficaram calados por um momento. De repente, ele deu um salto em frente, tirou uma empadinha do fogão e meteu-a na boca de uma só vez.
– Safa, já alguma vez viram um saco roto como este? – exclamou o pai.
William trazia um nunca mais acabar de presentes para todos. Gastara quanto tinha para os comprar. A casa foi invadida por uma certa atmosfera de luxo e prosperidade. Para a mãe, uma sombrinha com o cabo beige com enfeites dourados. Ela guardou-a para quando morresse, e antes queria perder tudo o que tinha a ficar sem ela. Todos receberam coisas bonitas e, além disso, ele trouxe também montes de guloseimas desconhecidas naquelas paragens: geleias de frutos, ananás cristalizado, coisas que as crianças pensavam que só o esplendor de Londres tornava possíveis. E Paul não se calava de gabar tais guloseimas diante dos amigos.
– Ananás autêntico, às fatias, e transformado em cristal... bem bom!
Todos estavam loucos de felicidade. Não há nada que chegue ao próprio lar, e eles amavam-no com paixão, apesar dos maus bocados lá passados. Chegavam visitas, todos vinham dar-lhe os parabéns. Os vizinhos vinham ver o que Londres tinha feito de William e todos achavam que ele estava «um verdadeiro cavalheiro, e um belo rapaz, isso é que estava!».
Quando ele se foi embora outra vez, os irmãos foram chorar às escondidas para sítios diferentes, Morel foi meter-se na cama abatidíssimo e Mrs. Morel sentia-se como se estivesse drogada, como se os seus sentimentos tivessem paralisado. Amava o filho com verdadeira paixão.
William trabalhava no escritório de um advogado ligado a uma grande companhia de navegação e, em Junho, o chefe proporcionou-lhe uma viagem ao Mediterrâneo num dos barcos da companhia, por um preço irrisório. Mrs. Morel mandou-lhe dizer: «Vai, sim, meu filho. Podes não voltar a ter uma oportunidade como essa, e, para mim, ver-te a navegar no Mediterrâneo é talvez ainda melhor do que ter-te aqui em casa.» Mas William veio passar as duas semanas de férias a casa. Nem o Mediterrâneo, apelando embora a toda a sua ânsia de viajar e ao seu deslumbramento de homem pobre diante da opulência do Sul, podiam mantê-lo longe de casa. E isso era para a mãe compensação bastante para todos os sacrifícios.
V
PAUL ENFRENTA A VIDA
MOREL era um homem negligente, indiferente ao perigo, sofrendo por isso inúmeros acidentes. De tal forma que, quando Mrs. Morel ouvia chiar as rodas de uma carroça de transporte de carvão, estacando à sua porta, corria logo para a janela da sala à espera de ver o marido lá sentado, com o rosto macilento por baixo da camada de fuligem, e o corpo inerte, vítima de qualquer contusão ou outro percalço. Se era ele, saía de casa a correr para o ajudar.
Cerca de um ano após William ter ido para Londres, e logo depois de Paul ter saído da escola, mas quando ainda não tinha arranjado trabalho, estava Mrs. Morel no andar de cima e o filho na cozinha, entretido a pintar – fazia maravilhas com os pincéis – quando bateram à porta. Enfadado, Paul pousou o pincel para ir abrir. Simultaneamente, a mãe abriu a janela e espreitou para a rua.
Era um mineiro, um rapazito, que batia à porta.
– É aqui que mora o Walter Morel? – perguntou.
– É, sim! – respondeu Mrs. Morel. – Aconteceu alguma coisa?
Mas ela já tinha adivinhado.
– O seu marido aleijou-se – disse o rapaz.
– Oh, meu Deus! – exclamou ela. – Quando não acontece nada é que é para admirar. O que foi desta vez?
– Num sei bem, mas foi na perna... Levaram-no prò hospital.
– Valha-me Deus! – exclamou ela. – Ah, este homem... este homem...! Não me dá cinco minutos de descanso, eu morra aqui se não é verdade! O polegar já estava quase bom e agora... Tu viste-o?
– Vi-o lá ’baixo. E vi-os trazerem-no pra cima num elevador... tava branco cum’á cal. E o qu’ele berrou quando o Dr. Fraser o examinou na casa das lanternas... sempre aos berros e a praguejar... e a dizer que queria qu’o trouxessem pra casa... que num ia prò hospital...! E o rapaz calou-se.
– Isso é bem dele... quer vir para casa, para me dar trabalho... Obrigada, meu filho... Que cansada que eu estou de tudo isto... cansada e farta... isso é que eu estou!
Desceu as escadas. Paul tinha recomeçado a pintar, mecanicamente.
– Deve ser grave... para o levarem para o hospital... – continuou ela. – Mas que criatura mais descuidada! Os outros homens não podem ter assim tantos acidentes... É isso, ele queria deitar o trabalho todo para cima das minhas costas... E logo agora, que as coisas estavam finalmente a correr um bocadinho melhor... Vá, deixa isso, agora não há tempo para pinturas... A que horas tenho comboio? Agora vou ter de ir até Kreston... o quarto tem de esperar.
– Eu acabo de o arrumar – disse Paul.
– Não precisas... às sete horas estou de volta, acho eu... E o barulho que ele vai fazer... nem quero pensar... E aqueles calhaus de granito de Tinder Hill... ele bem pode chamar-lhes pedrinhas... os solavancos vão dar cabo dele. Não sei porque não consertam a estrada... naquele estado... e com tanta gente a passar por lá na ambulância... Devia haver aqui um hospital... Já compraram o terreno... e não iam faltar acidentes para o manter a funcionar. Mas não, têm de os levar não sei quantas milhas naquela ambulância ronceira até Nottingham. É uma vergonha! E o estardalhaço que ele vai fazer, já sei como é! Quem terá ido com ele?... O Barker, provavelmente. Coitado, vai desejar estar em qualquer lado menos ali. Mas vai cuidar bem dele, eu sei. E agora sei lá quanto tempo ele vai ficar naquele hospital... e ele que detesta! Enfim, se for só a perna, já não é mau.
Ia falando enquanto se preparava para sair. Despindo o corpete à pressa, baixou-se para a caldeira, enquanto a água corria lentamente para o jarro.
– Era bem melhor se esta caldeira não existisse! – exclamou ela, apertando a asa do jarro com impaciência. Tinha uns braços fortes e bem torneados, surpreendentes numa mulher da sua estatura.
Paul arrumou as suas tralhas, pôs a chaleira ao lume e pôs a mesa.
– Só há um comboio às quatro e vinte – disse ele. – Tem tempo de sobra.
– Não tenho, não! – gritou ela, piscando os olhos e fitando-o por cima da toalha, enquanto limpava a cara.
– Tem, sim... Tem pelo menos de beber uma chávena de chá. Quer que vá consigo até Keston?
– Vires comigo para quê, pode saber-se?... Ora deixa cá ver o que é que eu tenho de lhe levar... Valha-me Deus!... A camisa lavada... e é uma sorte estar lavada... mas ficava melhor se a tivesse posto ao ar... as meias... isso ele não vai querer... e uma toalha, acho eu... e lenços... e que mais?
– Um pente, uma faca, um garfo e uma colher – disse Paul. Já não era a primeira vez que o pai ficava internado no hospital.
– Sabe Deus em que estado ele tinha os pés – continuou Mrs. Morel, penteando o cabelo castanho e muito comprido, fino como seda e já salpicado de fios prateados. – Ele nunca se esquece de se lavar da cintura para cima, mas para baixo acha que já não é preciso. Mas devem apanhar lá muitos como ele.
Paul tinha posto a mesa e preparou duas fatias finas de pão com manteiga para a mãe.
– Aqui tem – disse, pondo uma chávena de chá em frente ao lugar dela.
– Agora não tenho tempo – disse ela, secamente.
– Mas tem de ter... Olhe, já está tudo pronto – insistiu o filho.
Ela acabou por se sentar, bebeu uns golinhos de chá e comeu um pouco de pão em silêncio. Estava a pensar.
Daí a nada, tinha de se ir embora, para percorrer a pé as duas milhas e meia até à estação de Keston. Já tinha metido no saco de rede tudo o que ele precisava. Paul ficou a vê-la subir a estrada, entre as sebes de arbustos, pequenina e franzina, e o seu coração sofria por ela, por vê-la sujeita a mais esta provação. E ela, correndo ligeira de tanta ansiedade, sentia atrás de si o coração do filho a acompanhá-la, a tomar para si a parte possível deste fardo, a dar-lhe forças. E, quando chegou ao hospital, pensou: «Ele vai ficar preocupadíssimo quando eu lhe disser que é assim tão grave... o melhor é ter cuidado.» E, de regresso a casa, sentia que tinha com quem partilhar o fardo.
– É grave? – perguntou Paul, mal a viu entrar.
– Mais ou menos – respondeu ela.
– O quê?
Ela suspirou, sentou-se e desapertou as fitas do chapéu. O filho viu-a levantar o queixo e desatar a laçada com os dedos pequeninos, mas endurecidos pelo trabalho.
– Bem – respondeu ela – não se pode dizer que seja perigoso... mas a enfermeira diz que foi uma pancada horrível. Estás a ver... foi um grande bocado de rocha que lhe caiu em cima da perna... aqui, salvo seja... uma fractura múltipla... e tem bocados de osso a sair para fora...
– Ui, que horror! – exclamaram os filhos.
– E claro que ele diz que vai morrer – continuou Mrs. Morel. – É mesmo dele dizer isso... «Estou arrumado, cachopa!», disse ele, olhando para mim. «Não digas disparates», disse eu. «Não vais morrer de uma perna partida, por pior que esteja»... «Só saio daqui num caixão», queixava-se ele. «Bem!», disse eu, «Se queres que eles te levem a passear ao jardim dentro dum caixão, quando estiveres melhor, é só pedires e eles fazem-te a vontade»... «Se acharmos que lhe vai fazer bem», acrescentou a Irmã. Ela é bem simpática, a Irmã, mas muito rigorosa.
Mrs. Morel tirou o chapéu. Os filhos mantiveram-se em silêncio, expectantes.
– Claro que ele está mal – prosseguiu ela. – E vai levar muito tempo a recompor-se. Foi um acidente muito grave e ele perdeu muito sangue... e, já se vê, a lesão é muito perigosa. Ninguém sabe o tempo que vai levar a sarar. E depois há a febre e a gangrena... se correr mal, ele até pode morrer... Mas lá no hospital... e depois ele tem bom sangue... e boa carnadura... Por isso não vejo razão para que tenha de correr mal... Claro que a ferida é muito grande...
Ela estava lívida, da angústia e da emoção. Os três filhos perceberam que o estado do pai era muito grave e a casa ficou silenciosa, perpassada de ansiedade.
– Mas ele melhora sempre – disse Paul, passado um bocado.
– Foi exactamente o que eu lhe disse – exclamou a mãe.
Todos se moviam de um lado para o outro sem fazerem o menor ruído.
– Ele de facto parecia que estava a morrer – disse Mrs. Morel. – Mas a Irmã diz que é das dores.
Annie foi arrumar o casaco e o chapéu da mãe.
– Ficou a olhar para mim quando eu me vim embora...! Eu disse: «Agora tenho de ir, Walter, por causa do comboio... e das crianças...» E ele ficou a olhar para mim... Custou-me tanto...
Paul pegou outra vez no pincel e continuou a pintar. Arthur foi lá fora buscar mais carvão. Annie ficou sentada, muito triste. E Mrs. Morel continuou imóvel, pensativa, na cadeira de baloiço que o marido lhe fizera, quando esperavam o primeiro filho. Estava triste e com muita pena de ver um homem sofrer tanto. Mas, mesmo assim, no fundo do coração, onde a chama do amor devia arder, tinha um vazio. No momento em que toda a sua compaixão de mulher estava exacerbada ao máximo, em que cuidaria dele dia e noite até cair para o lado, em que, se pudesse, de bom grado tomaria as suas dores, algures, num recôndito da alma, era indiferença que encontrava, por ele e pelo seu sofrimento. A dor que sentia vinha sobretudo desta incapacidade de o amar, mesmo quando ele despertava nela as mais fortes emoções. E assim se deixou ficar, pensativa, por um tempo.
– E nisto – disse ela de repente –, quando já ia a meio do caminho, vi que tinha saído com as botas de andar por casa... olhem para isto... – Era um par de botas velhas de Paul, castanhas e com as biqueiras muito gastas. – Nem sabia onde me havia de meter com a vergonha – acrescentou.
Na manhã seguinte, quando Annie e Arthur estavam na escola, Mrs. Morel conversou mais com Paul enquanto ele andava a ajudá-la a arrumar a casa.
– Encontrei o Barker no hospital. Não parecia muito atrapalhado, coitado. «Então», disse eu, «como correu a viagem?» «Num me pregunte, ’nha senhora!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «Eu sei como ele é.» «Mas foi muito custoso pra ele, Mrs. Morel, iss’é que foi!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «A cada safanão, eu inté pensava qu’o coração m’ia saltar pela boca», disse ele. «E os gritos qu’ele dav’às vezes, ’nha senhora... nem que me paguem uma fortuna, me quero ver noutra igual.» «Entendo perfeitamente», disse eu. «A coisa tá feia a valer», disse ele, «e vai levar muito tempo pra ficar bom.» «Também acho que sim», disse eu. Eu gosto de Mr. Barker... gosto mesmo. É um homem e tanto.
Paul continuava a pintar em silêncio.
– E já se sabe – continuou Mrs. Morel –, para um homem como o teu pai é muito duro estar no hospital. Para ele não há normas nem obrigações. E não deixa que ninguém lhe toque, a não ser que não tenha outro remédio. Quando esmagou os músculos da coxa, e tinha de mudar o penso quatro vezes por dia, ele deixava mais alguém mudar-lho a não ser eu ou a mãe dele?... Nem pensar nisso. Claro que agora vai sofrer no hospital, com todas aquelas enfermeiras... Não me agradou nada ter de o deixar lá ficar. Foi um dó de alma quando tive de lhe dar um beijo e vir-me embora...
Mrs. Morel falava com o filho quase como se estivesse a pensar em voz alta para ele ouvir, e ele colaborava o melhor que podia, partilhando com ela o sofrimento, para a aliviar. Afinal, mesmo sem saber, ela partilhava quase tudo com ele.
Morel passou muito mal. Durante uma semana o seu estado foi crítico. Depois, começou a melhorar e, quando souberam que o mau tempo tinha passado, toda a família respirou de alívio e a vida seguiu feliz.
Não passaram grandes dificuldades enquanto Morel esteve internado. Recebiam catorze xelins por semana da mina, dez da assistência aos enfermos, e cinco do Fundo de Invalidez. Além disso, os capatazes traziam todas as semanas qualquer coisa a Mrs. Morel, cinco ou sete xelins, pelo que ela vivia com bastante desafogo. E enquanto Morel ia melhorando no hospital, em casa a família vivia em paz e alegria. Aos sábados e quartas-feiras, Mrs. Morel ia visitar o marido a Nottingham. No regresso trazia sempre qualquer lembrança para os filhos: um tubo de guache para Paul, outras vezes papel cavalinho; postais para Annie, de que toda a família usufruía durante dois ou três dias antes de a deixarem enviá-los a alguém; ou então uma serra para Arthur, ou um belo bocado de madeira. E depois contava animadamente as suas aventuras nos grandes armazéns. Não tardou que os empregados da loja de gravuras a ficassem a conhecer e soubessem tudo sobre Paul. A rapariga da livraria simpatizava até muito com ela. Mrs. Morel tinha histórias sem fim para contar quando voltava de Nottingham. Ficavam os três sentados até à hora de irem para a cama a ouvirem-na contar histórias, a meterem a sua colherada, a conversarem. Depois, era geralmente Paul quem abafava o borralho.
– Agora, sou o homem da casa – dizia ele à mãe, todo ufano. Descobriram como o lar podia ser um lugar de perfeita tranquilidade e, embora nenhum deles ousasse admitir tal desumanidade, quase lamentaram quando souberam que o pai não tardaria a voltar para casa.
Paul tinha agora catorze anos e andava à procura de um emprego. Era um rapaz baixo e franzino, de cabelo castanho-escuro e olhos azul-claros. O seu rosto já tinha perdido os traços arredondados da infância e parecia-se agora com o de William, mais duro, quase austero, e com extraordinária mobilidade. Em geral, parecia estar sempre atento, cheio de vida e de ternura; umas vezes, o seu sorriso, igualzinho ao da mãe, abria-se pronto e encantador; outras, quando algum obstáculo lhe travava o passo ao espírito, a expressão do seu rosto adquiria fealdade e estupidez. Era um daqueles rapazes que se portam como palhaços desajeitados quando não são compreendidos ou sentem que não lhes dão o justo valor, mas que, com igual rapidez se transformam em criaturas adoráveis à primeira prova de ternura.
O primeiro contacto com as coisas era sempre penoso para ele. Aos sete anos tivera de se sujeitar à tortura de entrar para a escola. Mas depois até gostava. E agora, sentindo que era chegada a hora de enfrentar a vida, atravessava crises de avassaladora timidez. Pintava com bastante talento e inteligência para a sua idade, e sabia um pouco de francês, alemão e matemática, coisas que Mr. Heaton lhe havia ensinado. Como a mãe dizia, não era suficientemente forte para o trabalho manual, e também não se interessava por fazer coisas com as suas próprias mãos, preferindo correr, passear pelos campos, ler ou pintar.
– Que queres ser na vida? – perguntava-lhe a mãe.
Não fazia a menor ideia. Teria gostado de continuar a pintar, mas isso nem lhe passou pela cabeça, pois era impossível. Não havia nada que lhe interessasse muito fazer. Mas agora era urgente que começasse a ganhar dinheiro. E, uma vez que não achava que o seu trabalho valesse muito em termos monetários, e sabia que um homem ganhava em qualquer emprego trinta ou trinta e cinco xelins por semana, respondia invariavelmente:
– Qualquer coisa.
– Isso não é resposta – dizia Mrs. Morel.
Mas era a única resposta verdadeira que ele podia dar. As suas ambições, em termos materiais, eram ganhar tranquilamente os seus trinta ou trinta e cinco xelins por semana algures perto de casa, e depois, quando o pai morresse, ter uma casinha no campo, onde viveria com a mãe feliz para sempre, a pintar e a passear o quanto lhe apetecesse. Por agora, era este o seu programa. Tinha-se porém em grande conta, julgando as outras pessoas em relação a si próprio e classificando-as impiedosamente. Às vezes, pensava que talvez pudesse vir a ser um pintor a sério, mas por enquanto não queria alimentar tal sonho.
– Então tens de procurar nos anúncios do jornal – disse a mãe.
Paul ficou a olhar para ela. Parecia-lhe nova humilhação e mais uma tortura a suportar. Mas não disse nada. Desde manhãzinha só tinha um pensamento a martelar-lhe na cabeça: «Tenho de ir ver os anúncios de empregos.»
Este pensamento ensombrava-lhe a manhã e matava-lhe a alegria de viver. Sentia o coração apertar-se-lhe num nó.
Por fim, às dez horas, lá foi ele. As pessoas consideravam-no um rapaz envergonhado, reservado. Ao subir a rua ensolarada, tinha a sensação de que todos os que encontrava iam pensar: «Lá vai ele para a sala de leitura da Cooperativa, para procurar um emprego no jornal. Não consegue arranjar nada. Acho que está a viver à custa da mãe.» Lá chegado, subiu furtivamente a escadaria de pedra por detrás da loja de tecidos e espreitou para a sala de leitura. Geralmente havia por lá uma ou duas pessoas: velhos desocupados, já sem préstimo, ou mineiros «de baixa». Entrou muito retraído, e ficou deveras aflito quando eles levantaram a cabeça; sentou-se à mesa e fingiu estar a passar os olhos pelas notícias. Sabia no que eles estavam a pensar: «O que fará um miúdo de treze anos numa sala de leitura, agarrado a um jornal?» E isso magoava-o.
Depois, pôs-se a olhar lá para fora, pensativo. E sentia-se já presa do industrialismo. Por cima do velho muro fronteiriço de tijolo vermelho grandes girassóis miravam divertidos as mulheres que passavam apressadas, levando qualquer coisa para o almoço. O vale estava coberto de searas radiantes batidas pelo sol. Lá no meio, duas minas agitavam os seus finos penachos de vapor. Nas encostas distantes avistavam-se as florestas de Aldersley, tão cerradas e fascinantes. E logo o coração lhe esmoreceu. Sentia-se aprisionado. Chegara ao fim a vida em liberdade naquele vale que tanto amava.
A carroça da cerveja vinha de Keston estrada acima, carregada de barris – quatro de cada lado – apertados que nem feijões numa vagem. O carroceiro, encarrapitado no seu trono e oscilando pesadamente no assento, não passou a grande distância dos olhos de Paul. O cabelo do homem, de cabeça pequena e fusiforme, estava quase todo branco, descorado pelo sol, e nos braços grossos e avermelhados, balouçando lassamente sobre o avental de estopa, cintilavam pêlos também brancos. A face afogueada reluzia, quase adormecida de tanto sol. Os cavalos, castanhos e elegantes, seguiam a seu bel-prazer, mostrando serem eles os senhores da situação.
Paul queria ser estúpido. «Quem me dera», pensou de si para si, «ser gordo como ele e passar a vida estirado ao sol como um cão. Quem me dera ser um porco e condutor duma carroça de cerveja.»
Depois, vendo a sala finalmente vazia, copiou rapidamente um anúncio para um bocado de papel, e depois outro, e saiu à socapa, sentindo-se imensamente aliviado. A mãe examinou os anúncios.
– Sim – disse ela. – Podes tentar.
William tinha mandado uma carta admiravelmente redigida em linguagem comercial e Paul copiou-a com algumas alterações. A caligrafia do rapaz era execrável, pelo que William, que fazia tudo bem feito, fervia de impaciência.
O irmão mais velho estava a ficar muito pretensioso, ao descobrir que em Londres se podia dar com homens de uma classe muito superior à dos seus amigos de Bestwood. Alguns dos seus colegas do escritório tinham estudado leis e estavam a fazer uma espécie de estágio. William, dado o seu feitio extrovertido, fazia sempre amigos por onde passava e não tardou que começasse a frequentar a casa de pessoas que, em Bestwood, teriam olhado com desdém para o inacessível gerente do banco local e tratado com indiferença o próprio pastor. Começou, por isso, a achar-se um homem importante e até se admirava da facilidade com que se tinha tornado um cavalheiro.
As cartas que escrevia à mãe ilustravam bem a satisfação que sentia.
«The Myrmidons
Limpsfield
Mater querida,
É uma da manhã. Imagine o seu filho a escrever-lhe sentado numa velha cadeira de carvalho, com um candeeiro eléctrico dos mais modernos à frente dele, em cima da mesa. Vestido a rigor, com os botões de punho que lhe ofereceu quando fez 21 anos e achando-se o melhor do mundo. Só queria que a mãe o pudesse ver. Em comparação, Salomão, em toda a sua glória, deve ter-se sentido mal vestido.
Estou a passar o fim-de-semana com o Loosemore, e aproveitei a oportunidade para lhe escrever. ...»
A mãe ficou contente de o ver tão satisfeito. O seu quarto em Walthamstow era tão deprimente. Mas agora as cartas do filho deixavam transparecer uma súbita febre de viver. Afectado por tantas e tão súbitas mudanças, não tinha os pés assentes na terra, e parecia deixar-se arrastar vertiginosamente pelo turbilhão da sua nova vida. A mãe temia por ele. Sentia que ele se estava a perder. Tinha ido a um baile, ido ao teatro, andado de barco no rio, saído com os amigos; mas ela sabia que, depois, tinha ficado até altas horas acordado no quarto gélido a estudar latim, pois queria subir no escritório e estudar leis o mais depressa possível. Agora, nunca mandava dinheiro à mãe. A sua nova vida levava-lhe o pouco que ganhava. Ela também não queria que ele lho mandasse, excepto às vezes, quando as dificuldades eram maiores e dez xelins teriam sido o suficiente para a tirar de apuros. Mas continuava a sonhar com o que o filho faria com ela a apoiá-lo. Nem por um segundo seria capaz de admitir toda a angústia que passava por causa dele.
Entretanto, William começara a falar muito numa rapariga que tinha conhecido num baile, uma morena muito bonita e muito nova, uma verdadeira senhora, por quem todos os homens andavam perdidos de amor.
«Duvido que te perdesses por ela, meu filho, se não visses todos os outros perdidos também. As multidões fazem-nos sentir seguros e vaidosos. Mas tem cuidado, e pensa como te sentirás quando te vires sozinho e triunfante...»
William ficou ofendido com os reparos da mãe e não desistiu dos seus intentos. Tinha levado a rapariga a dar um passeio no rio: «Se a mãe a visse, ia entender o que eu sinto. Alta, elegante, com uma pele transparente, a mais transparente de todas as peles de azeitona, cabelo negro de azeviche e uns olhos esverdeados tão brilhantes e trocistas como luzes reflectidas à noite sobre as águas. Admito que seja um pouco mordaz enquanto não a conhecer. E, além disso, veste-se como as mulheres mais elegantes de Londres. Devo dizer-lhe que, quando ela passeia em Piccadilly com o seu filho, ele, por mais que se esforce, não aparenta nem metade do orgulho que sente.»
Mrs. Morel lia e perguntava-se no seu íntimo, se o filho não andaria a passear em Piccadilly com uma mulher apenas elegante e bem vestida, em vez de uma mulher de quem se sentisse próximo. Mas felicitou-o, no seu modo reticente. E enquanto estava encostada ao tanque, a mãe, preocupada, pensava no filho. Via-o casado com uma mulher cara e elegante e um pequeno ordenado, levando a vida conforme podia, numa casa feia e acanhada dos subúrbios. «E daí...», pensava ela, «é por certo tolice minha... vontade de arranjar complicações.» No entanto, o seu coração raramente sossegava, não fosse William fazer alguma asneira.
Entretanto, Paul foi chamado para se apresentar numa firma de acessórios ortopédicos, a Thomas Jordan, em Nottingham, Spaniel Row, número 21. Mrs. Morel estava radiante.
– Estás a ver! – exclamou, de olhos brilhantes. – Só escreveste quatro cartas e recebes resposta logo à terceira. Tens sorte, meu filho, como eu sempre disse.
Paul olhou para a perna de pau adornada com meias elásticas e outros acessórios que constituía o logotipo do papel timbrado de Mr. Jordan, e ficou alarmado. Até aí nem sabia que existiam meias elásticas. Parecia-lhe sentir o mundo dos negócios com o seu sistema de regras e valores e a sua impessoalidade, e isso atemorizava-o. Parecia-lhe também monstruoso que se pudesse fazer negócio com pernas de pau.
Numa bela terça-feira, manhã cedo, mãe e filho saíram juntos de casa. Era Agosto e o calor abrasava. Paul caminhava com o coração aperreado. Mil vezes a dor física, por maior que fosse, a este sofrimento irracional de se ver exposto perante estranhos, sujeito a ser aceite ou rejeitado. No entanto, conversava animadamente com a mãe. Jamais lhe confessaria o sofrimento que estas situações lhe causavam e de que ela só em parte suspeitava. Ia alegre como um passarinho. Postou-se diante da bilheteira, em Bestwood, e ficou a ver a mãe tirar o dinheiro para os bilhetes. Ao reparar nas luvas pretas que trazia, quase de criança e já muito velhas, com que retirou algumas moedas da carteira também coçada, o seu coração contraiu-se de dor e amor por ela. Ela estava muito excitada e bem-disposta, e ele sofria antecipadamente, pois sabia que ela se iria pôr a falar em voz alta diante dos outros passageiros.
– Olha para aquela vaca. Parece tola! A andar às voltas como se estivesse no circo.
– Deve ser algum moscardo – disse Paul, quase a bichanar.
– Algum quê? – perguntou ela, desabrida, sem complexos.
Depois, ficaram calados, pensativos. Paul não conseguia deixar de sentir a presença dela à sua frente. Nisto, os olhos de ambos encontraram-se e ela sorriu-lhe – um sorriso único, íntimo, belo e cintilante, cheio de amor. Em seguida, puseram-se a olhar pela vidraça. Mas ela voltou-se para ele de repente e disse, de forma bem audível:
– Sinceramente, acho que vais conseguir. E, se não conseguires, enfim, não te podes queixar só por não teres conseguido o terceiro emprego a que concorreste, pois não? Mas eu acho que consegues. És um rapaz de sorte, embora não a mereças – Assim falava ela, para todos ouvirem!
O comboio transpôs com lentidão as dezasseis milhas que os separavam do destino, e a viagem terminou. Mãe e filho meteram por Station Street com o entusiasmo de amantes a viver uma aventura. Em Carrington Street, pararam para contemplarem do parapeito as barcaças que passavam no canal.
– Parece mesmo Veneza – disse ele, vendo o sol reflectido na água entre os muros altos das fábricas.
– Talvez – respondeu ela, sorrindo. Ficaram deslumbrados com as lojas.
– Estás a ver aquela blusa? – disse ela. – Ficava mesmo bem à nossa Annie. E só custa uma libra, onze xelins e três dinheiros. Não é barato?
– E é toda bordada – disse o filho.
– É verdade.
Tinham ainda muito tempo, e por isso não precisavam de se apressar. Aos seus olhos, a cidade era estranha e fascinante. Mas o rapaz, apreensivo, era como se tivesse um nó no estômago. Apavorava-o a entrevista com Thomas Jordan.
Eram quase onze horas pelo relógio da igreja de São Pedro. Viraram para uma rua estreita que ia dar ao castelo. Era uma rua sombria, de casas velhas, com lojas baixas e soturnas e as portas dos prédios pintadas de verde-escuro, com grandes argolas de latão e degraus amarelo-ocre avançando sobre o passeio; ao lado, uma outra loja, de outros tempos, cuja montra diminuta parecia um olho astuto e semicerrado. Mãe e filho caminhavam devagar, olhando para as portas, à procura do letreiro Thomas Jordan & Filho. Era como caçar em plena coutada. A excitação atingia o auge.
De súbito, avistaram uma entrada ampla e escura, com os nomes de várias firmas afixados na parede e, entre eles, o da Thomas Jordan.
– É aqui – disse Mrs. Morel. – Mas... onde é que será?
Olharam em volta. De um lado, uma fábrica de papel, lúgubre e bizarra; do outro, o Commercial Hotel.
– É ali ao fundo – informou Paul.
Aventuraram-se pela arcada, como se penetrassem na bocarra de um dragão, indo desembocar num pátio amplo, semelhante a um poço, completamente rodeado de edifícios. O chão estava pejado de palha, caixas e cartões. O sol batia em cheio num caixote de onde saíam palhas que se espalhavam pelo chão como fios de ouro. Mas, fora isso, o lugar era escuro como uma mina. Havia várias portas e dois lanços de escadas. Mesmo em frente, numa porta suja e envidraçada, ao cimo da escada, ressaltavam as palavras fatídicas Thomas Jordan & Filho – Acessórios Ortopédicos. Mrs. Morel foi à frente, seguida pelo filho. Ao subir ao patíbulo, Carlos I tê-lo-á feito certamente com o coração mais leve do que Paul Morel ao subir atrás da mãe os degraus imundos que conduziam à tal porta também imunda.
Mrs. Morel empurrou a porta e ficou agradavelmente surpreendida. Diante dela estendia-se um imenso armazém com embalagens de papel pardo espalhadas por todo o lado, e os empregados, de mangas arregaçadas, movimentavam-se de um lado para o outro com um ar perfeitamente descontraído. A luz não feria a vista, as embalagens em papel brilhante tornavam-se luminosas, os balcões eram de madeira escura. A atmosfera era silenciosa e acolhedora. Mrs. Morel deu dois passos em frente e aguardou. Paul colocou-se atrás da mãe. Ela trazia o seu chapéu de domingo, com o véu preto descido sobre a cara, e ele a gola branca larga, que todos os rapazes usavam, e um fato de corte à caçador.
Um dos empregados olhou para eles. Era alto e magro, de rosto miúdo e olhar vivo e atento. Depois, os seus olhos percorreram a sala até à outra extremidade, onde se via um gabinete envidraçado; só então se aproximou. Não disse uma palavra, inclinou-se apenas perante Mrs. Morel, numa atitude prestável e interrogativa.
– Poderei falar com Mr. Jordan? – pediu ela.
– Vou já chamá-lo – respondeu o jovem.
Dirigiu-se ao gabinete envidraçado. Um homem idoso, de suíças brancas e faces coradas levantou os olhos da secretária. Paul achou-o parecido com um lulu da Pomerânia. Depois, o homenzinho atravessou o armazém para vir ao encontro deles. Tinha pernas curtas, era atarracado e envergava um casaco de alpaca. E lá vinha ele, de orelha arrebitada, por assim dizer, com ar resoluto e olho inquiridor.
– Bom dia! – disse, hesitante, dirigindo-se a Mrs. Morel, sem saber se se tratava ou não de uma cliente.
– Bom dia... Vim com o meu filho... Paul Morel... O senhor pediu-lhe que se apresentasse esta manhã.
– Acompanhem-me – disse Mr. Jordan, com uma frieza e desenvoltura que ele acreditava serem apropriadamente empresariais.
Mãe e filho acompanharam o industrial e entraram numa salinha desarrumada, com cadeirões de couro negro e já muito lustroso de tanto ser usado pelos clientes. Em cima da mesa estava uma pilha de fundas para hérnias – umas bandas de couro amarelo, pré-lavado, atadas em molho. Pareciam novinhas em folha. Paul sentiu o cheiro a couro lavado e perguntou-se o que seriam aquelas coisas. Estava tão atordoado que só reparava no aspecto exterior do que o rodeava.
– Sente-se! – disse Mr. Jordan, ríspido, convidando Mrs. Morel a sentar-se numa cadeira de crina. Ela sentou-se à beirinha, numa posição instável. O homenzinho vasculhou então em cima da secretária e pegou numa folha de papel.
– Foste tu que escreveste esta carta? – desferiu ele, intempestivo, colocando diante dos olhos de Paul um papel que ele logo reconheceu como sendo a carta que mandara.
– Fui, sim – respondeu Paul.
De momento, o rapaz era dominado por dois sentimentos: em primeiro lugar, sentia-se culpado por estar a mentir, uma vez que a carta tinha sido escrita por William; e, em segundo, estranhava como a sua carta podia parecer tão diferente na mão avermelhada e sapuda daquele homem de quando estava em cima da mesa da cozinha. Era como se uma parte dele mesmo se tivesse transviado, e desagradava-lhe a maneira como o homem pegava na carta.
– Onde aprendeste a escrever? – disse o velho, com brusquidão.
Paul limitou-se a olhar para ele envergonhado, sem responder.
– Ele escreve muito mal – interrompeu Mrs. Morel, apologética, levantando o véu em seguida. Paul ficou furioso por a mãe não mostrar mais orgulho perante este homem tão comesinho, mas, ao mesmo tempo, adorou ver o seu rosto sem véu.
– E dizes que também sabes francês? – inquiriu o homenzinho, ríspido, como sempre.
– Sim – respondeu Paul.
– Em que escola andaste?
– Na primária.
– E foi lá que aprendeste?
– Não... eu... – o rapaz ruborizou, e não adiantou mais nada.
– Foi o padrinho que lhe deu umas lições – disse Mrs. Morel, quase numa súplica, e com ar distante.
Mr. Jordan hesitou. E, então, mantendo o seu ar agressivo – parecia ter as mãos sempre prontas a agir – tirou do bolso uma outra folha de papel, desdobrou-a ruidosamente e entregou-a a Paul.
– Ora lê lá isto – disse.
Era uma carta em francês, escrita à mão, numa caligrafia estrangeira, esguia e incerta, que o rapaz não conseguia decifrar. Paul ficou parado a olhar para o papel, como se hipnotizado.
– «Monsieur» – começou ele, olhando em seguida muito aflito para Mr. Jordan.
– É a... é a...
Queria dizer «letra», mas já nem esta palavra conseguia pronunciar. Sentindo-se um perfeito idiota, e furioso com Mr. Jordan, voltou-se em desespero para o papel.
– «Exmo. Senhor... Queira fazer o favor de me enviar»... hum... hum... não consigo perceber a... hum... «dois pares... gris fil bas... de meias cinzentas de algodão... hum... hum... sans... sem...» hum... não consigo perceber a... hum... «doigts... dedos»... hum... não consigo perceber a...
Queria dizer «letra», mas a palavra teimava em não sair. Vendo-o atrapalhado, Mr. Jordan tirou-lhe o papel da mão e leu:
– «Queira fazer o favor de me enviar na volta do correio dois pares de meias cinzentas de algodão, sem os dedos dos pés...»
– Bem – atalhou Paul prontamente – doigts quer dizer apenas dedos... duma maneira geral...
O homenzinho olhou para ele. Tanto se lhe dava que doigts quisesse ou não dizer simplesmente dedos, o que ele sabia era que, para os fins em vista, queria dizer dedos dos pés.
– Só dedos, podia ser das mãos; com que então, dedos das mãos numas meias?! – ripostou Mr. Jordan.
– Bem, a palavra francesa quer mesmo dizer só dedos – teimava o rapaz.
Paul detestava aquele homenzinho que tentava fazer dele parvo. E Mr. Jordan olhava para aquele rapaz pálido, estúpido e atrevido à sua frente, sentado, muito calado, com aquele ar reservado dos pobres que têm de depender dos favores de outras pessoas.
– Quando é que ele pode começar a trabalhar? – perguntou o industrial.
– Bem... – disse Mrs. Morel –, quando o senhor desejar. Ele já deixou a escola.
– E vai continuar a viver em Bestwood?
– Sim... mas pode estar... chegar à estação... a um quarto para as oito...
– Hum!
Paul acabou por ser contratado como aspirante, a ganhar oito xelins por semana. O rapaz não abriu mais a boca depois de teimar que doigts era mesmo dedos (das mãos). Saiu atrás da mãe e desceu as escadas. Mrs. Morel olhou para ele com os seus olhos azuis iluminados de amor e contentamento.
– Acho que vais gostar do emprego – vaticinou.
– Doigts quer dizer só dedos, mãe... e com aquela letra... Eu não percebia a letra.
– Não te preocupes, meu filho... Verás que ele é boa pessoa, e, além disso, não vais ter de contactar muito com ele... Não achaste simpático aquele empregado mais novo?... Tenho a certeza de que vais gostar dos teus colegas.
– Mas a mãe não achou Mr. Jordan um homem grosseiro? Será ele o dono daquilo tudo?
– Cá para mim, começou por ser operário e depois singrou na vida – disse Mrs. Morel. – Não deves dar tanta importância às pessoas. Elas não te querem ofender... é a maneira de falarem... estás sempre a pensar que as pessoas te querem ofender... mas olha que não querem.
Estava um dia cheio de sol. No grande largo deserto do mercado, o céu azul iluminava-se e as pedras de granito da calçada brilhavam cintilantes. As lojas de Long Row estavam mergulhadas na penumbra e a sombra enchia-se de cor. No sítio onde os trens puxados a cavalos atravessavam o mercado, erguia-se uma fiada de bancas de fruta, com os frutos luzindo ao sol – maçãs e montes de laranjas avermelhadas, rainhas-cláudias e bananas. Quando mãe e filho passaram, sentiram no ar o odor morno da fruta. A pouco e pouco, os sentimentos de raiva e ignomínia de Paul foram soçobrando.
– Onde havemos de ir almoçar? – perguntou a mãe.
– E se comprássemos qualquer coisa e fôssemos comer para o Arboretum?
– Não. Nada disso.
– Então vamos ao Morley.
– O chá que lá servem é requentado. Não... tu conseguiste o emprego... vamos fazer uma refeição como deve ser.
Aquilo era para eles uma verdadeira extravagância. Paul só tinha ido a uma casa de pasto uma ou duas vezes na vida, e, mesmo assim, só para tomar chá e um pãozinho. A maior parte dos habitantes de Bestwood achavam que a única coisa para que tinham dinheiro quando iam a Nottingham era chá e pão com manteiga, ou, quando muito, carne afiambrada. Uma refeição cozinhada era um autêntico luxo, e Paul sentia-se até culpado. Encontraram um lugar que lhes pareceu bastante acessível. Porém, quando Mrs. Morel consultou a lista, caiu-lhe a alma aos pés, tal era o preço dos pratos. Mandou vir, por isso, empadas de rim e batata, que era o mais barato.
– Não devíamos ter vindo aqui, mãe – disse Paul.
– Deixa lá – respondeu ela. – Nunca mais cá voltamos.
Depois insistiu para que o filho, que era guloso, comesse uma pequena torta de mirtilos.
– Não quero, mãe – disse ele.
– Queres, sim – teimou a mãe. – Claro que queres.
E pôs-se a ver se chamava a criada. Mas a criada andava toda atarefada e Mrs. Morel não a quis importunar nesse momento, pelo que ficaram os dois à espera de que a rapariga se dignasse atendê-los, enquanto ela andava por ali a cirandar, fazendo olhinhos aos clientes.
– Que desavergonhada! – disse Mrs. Morel, virando-se para Paul. – Olha para ela, a servir pudim àquele homem, e ele chegou muito depois de nós.
– Não tem importância, mãe – disse Paul.
Mrs. Morel estava irritada, mas era pobre de mais e a refeição demasiado modesta para ter a coragem de reclamar os seus direitos imediatamente. E, assim, fartaram-se de esperar.
– Vamos embora, mãe? – sugeriu Paul. Mrs. Morel levantou-se. A rapariga ia a passar.
– Trazia-nos uma torta de mirtilos, por favor? – disse Mrs. Morel em voz suficientemente audível.
Mas a rapariga virou-se e olhou para ela com insolência.
– É para já – retorquiu.
– É que já esperámos um bom bocado – disse Mrs. Morel. A rapariga não tardou com a torta. Mrs. Morel pediu a conta secamente.
Paul tinha vontade de se enfiar pelo chão dentro. Pasmava perante a dureza da mãe. Sabia que haviam sido anos e anos de luta que a tinham ensinado a reclamar os seus direitos, por mais insignificantes que fossem, pois ela era tão tímida como ele.
– É a última vez que ali vou para comer seja o que for! – exclamou ela, já na rua, satisfeita por se ver livre daquele pesadelo.
– Vamos dar uma vista de olhos ao Keep’s e ao Boot’s, e a mais um ou dois armazéns, está bem?
Teceram comentários sobre as gravuras expostas para venda, e Mrs. Morel queria por força comprar ao filho um pequeno pincel de pêlo de marta, com que ele andava a sonhar, mas Paul recusou liminarmente mais esta generosidade, e foi esperando por ela estoicamente à porta dos fanqueiros e dos retroseiros, morto de tédio, mas feliz por ver a mãe tão entretida. E o passeio continuou.
– Veja só aquelas uvas pretas! – disse Paul. – Até fazem crescer água na boca... Há anos que ando desejoso de prová-las, mas ainda vou ter de esperar algum tempo para as poder comprar.
A mãe parou deliciada à porta da florista, a aspirar os aromas.
– Oh!... Oh!... Não é simplesmente uma maravilha?
Apesar de a loja estar na penumbra, Paul vislumbrou uma jovem elegante, vestida de preto, a espreitar por detrás do balcão, com ar divertido.
– Estão a olhar para si – disse Paul, tentando arrastar a mãe dali para fora.
– Mas... o que é aquilo? – exclamou ela, recusando-se a sair de onde estava.
– Goivos! – respondeu ele, cheirando o ar apressadamente. – Veja, têm um alguidar cheio.
– Pois têm... vermelhos e brancos!... Esta agora... nunca reparei que os goivos pudessem cheirar assim! – E, para grande alívio do rapaz, a mãe saiu da porta, mas só para se ir pôr diante da montra.
– Paul! – exclamou ela, virando-se para o filho, que tentava esquivar-se ao olhar da tal jovem elegante toda de preto, a empregada da loja. – Paul! Anda ver isto!
Ele aproximou-se relutante.
– Olha aqueles brincos-de-princesa! – disse ela, apontando.
– Humm! – fez ele, mostrando-se interessado. – Parece que as flores vão cair a todo o momento; são tão grandes e tão pesadas.
– E tantas! – exclamou a mãe.
– E já viu a maneira como se inclinam, com os filamentos e os nódulos...?
– Pois é! – disse ela. – São lindas!
– Sempre gostava de saber quem será que as vai comprar? – disse ele.
– Não faço ideia! – respondeu ela. – Nós não somos.
– Na nossa sala morriam logo.
– É, aquele buraco horrível, gélido e sem réstia de sol... mata qualquer planta que lá se ponha... e a cozinha atabafa-as.
Fizeram algumas compras e seguiram para a estação. Olhando ao longo do canal, pelos intervalos sombrios dos edifícios, avistaram o castelo, alcandorado no seu promontório negro coberto de vegetação, miraculosamente iluminado por um sol suave e radioso.
Vai ser tão bom vir dar um passeio à hora do almoço! – disse Paul. – Posso andar por aqui e ver tudo isto. Vou adorar.
– Vais, sim, meu filho – concordou a mãe.
Paul tinha passado uma tarde agradabilíssima em companhia da mãe. Chegaram a casa já a tarde esmorecia, feliz, ardente, e também cansada. Na manhã seguinte, o rapaz preencheu a requisição para o passe de comboio e levou-a à estação. Quando voltou, estava a mãe a começar a lavar o chão. Ele sentou-se com as pernas cruzadas em cima do sofá.
– O homem diz que o passe chega no sábado.
– E quanto custa? – perguntou ela.
– Mais ou menos uma libra e onze xelins.
A mãe continuou a lavar o chão em silêncio.
– Acha caro? – perguntou Paul.
– Não mais do que eu pensava – respondeu ela.
– E eu vou ganhar oito xelins por semana... – disse ele.
A mãe não respondeu, continuando com o seu trabalho. Por fim, disse:
– O William prometeu-me, quando foi para Londres, que me mandava uma libra por mês. E só me mandou dez xelins... por duas vezes. E sei que agora não tinha um tostão, se eu lho pedisse. Não que eu queira o dinheiro dele, mas nesta altura ficava-lhe bem dar uma ajuda para o passe, embora eu não esteja a contar com isso.
– Ele ganha muito bem – disse Paul.
– Cento e trinta libras. Mas os filhos são todos iguais. Uns mãos largas nas promessas, mas quando se trata de as cumprirem... é o que se vê.
– O William gasta mais de cinquenta xelins por semana só com ele – disse Paul.
– E eu mantenho esta casa com menos de trinta – retorquiu a mãe. – E ainda tenho de inventar o dinheiro para os extras. Mas eles, depois de saírem de casa, querem lá saber de ajudar a mãe. Mais depressa o gastava com aquela doidivanas toda aperaltada.
– Ela há-de ter dinheiro, se é assim tão fina – disse Paul.
– Pois havia, mas não tem. Eu já lhe perguntei... E eu sei bem que ele não lhe compra uma pulseira de ouro sem razão. A mim nunca ninguém me comprou uma pulseira de ouro.
– Ora, a mãe também nunca quis nenhuma.
– Lá isso é verdade... Mas, se quisesse, era o mesmo.
– O pai nunca lhe comprou nada?
– Comprou... um cartucho de maçãs... e foi tudo... todo o dinheiro que gastou comigo, antes de nos casarmos.
– Porquê?
– Porque eu era uma parva, e quando ele me dizia: «O que queres qu’eu te compre?», eu respondia: «Nada.» Ele lembrava-se lá de me trazer alguma coisa! E o William só ia comprar uma pulseira de ouro para uma espertalhona cheia de nove horas.
– Aposto que ela já tem muitas – disse o rapaz.
– Tem muitas, dizes tu? Mas ele também tinha de lhe dar uma, para parecer importante. Ele quer lá saber! Eu pude sustentá-lo enquanto ele ganhava uma miséria, mas depois, mal ele se apanha com dinheiro que se veja, e a gente pensa que vai ter um pouco de paz e segurança, ele desanda, e lá começa a luta de novo, sem ter a quem recorrer quando é preciso alguma coisa, sem ninguém que nos estenda a mão.
– A mãe devia pedir-lho.
– E depois ele tinha de o ir pedir emprestado. Isso também eu faço, se tivermos de chegar aí. Tenho a certeza, de que não vou ter de lhe ficar a dever favores. E ele não precisa de me escrever a gabar-lhe os encantos e a falar das óperas a que vão assistir. Nem quero saber. Ele importa-se lá comigo... Eles querem lá saber! Têm a vida deles para viver, fazem o que lhes apetece, e eu... sim... o que represento eu para ele?... Um estorvo nunca hei-de ser, nem lhe hei-de pedir nada... E espero que o teu pai viva muito tempo, e que seja eu a ir à frente, pois é muito triste ter de viver à custa dos filhos.
– Oh, mãe... não tarda, eu começo a ganhar dinheiro, e a mãe pode ficar com tudo, porque eu nunca me hei-de casar.
– Essa já é velha, o William também dizia o mesmo. Dá tempo ao tempo e vais ver como a música é outra.
– Não vai ser, não.
– Então está bem.
E continuou a lavar o chão, em silêncio.
– Que vai fazer? – perguntou Paul.
– Acho que vou ter de meter um vale na Cooperativa... e isso vai sair da minha parte e vou receber menos dividendos. Não me apetecia nada ir lá buscar mais dinheiro outra vez.
O rapaz sentia-se muito infeliz, muito aborrecido. Era ele que precisava do dinheiro, e isso deixava-o amargurado.
– Bem – disse Paul –, em breve serei aumentado, e a mãe pode ficar com o dinheiro todo.
– Tudo isso é muito bonito – disse a mãe. – Mas não é assim que arranjo uma libra e trinta xelins até sábado de manhã.
William fazia progressos com a sua Cigana, como ele lhe chamava. Pedira à rapariga – uma tal Louisa Lily Denys Western – uma fotografia para mandar à mãe. A fotografia chegou: era uma morena bonita, de perfil, com um sorriso afectado, e que bem podia estar completamente nua, pois não se vislumbrava qualquer peça de roupa no retrato, só o colo desnudo.
«Sim senhor», escreveu Mrs. Morel ao filho, «a fotografia da Louie é deveras impressionante e vê-se que deve ser muito atraente. Mas achas, meu filho, que foi sensato e elegante da parte dela dar ao namorado aquela foto para ele mandar à mãe, e pela primeira vez? Tem uns ombros lindos, sem dúvida, como mandaste dizer. Mas eu não estava à espera de os ver tão bem logo da primeira vez...»
Morel encontrou a fotografia na sala, em cima da cómoda, e veio até à cozinha com ela presa entre o polegar e o indicador.
– Quem vem a ser esta? – perguntou ele à mulher.
– É a rapariga com quem o nosso William anda de namoro – respondeu Mrs. Morel.
– Hum! Ganda brasa, pelo menos parece... e num lhá-de fazer bem nenhum... Quem é ela?
– Chama-se Louisa Lily Denys Western.
– Muito prazer! – exclamou o mineiro. – É alguma artista?
– Não, não é. Ele diz que é uma senhora da sociedade.
– Não hajam dúvidas – exclamou o pai, sem tirar os olhos da fotografia. – Com qu’intão uma senhora? E há-de ter muito dinheiro, pra manter as aparências.
– Não tem, não... vive com uma tia velha, que ela detesta, e aceita tudo o que lhe dão.
– Hum! – disse Morel, pousando a fotografia. – Atão ele foi um gand’otário em ter-se metido c’uma tipa dessas.
«Querida Mater», respondeu William. «Lamento que não tenha gostado da fotografia. Nunca me passou pela cabeça, quando lha mandei, que pudesse achá-la pouco decente. Mas já disse à Ciganita que o retrato não correspondia exactamente à sua noção de decoro e decência, e ela vai mandar-lhe outro, que eu espero lhe agrade mais. Ela está sempre a ser fotografada. Na verdade, os fotógrafos estão sempre a pedir-lhe insistentemente para ela se deixar fotografar, absolutamente de graça.»
A nova fotografia acabou por chegar, acompanhada de um bilhete idiota da rapariga. Desta vez, a jovem estava com um ves-tido de noite em cetim preto, de decote quadrado, com mangas curtas e tufadas e folhos de renda preta cobrindo-lhe os braços elegantes.
– Será que só usa vestidos de noite? – disse Mrs. Morel, sarcasticamente. – Tenho a certeza de que eu devia estar impressionada.
– Está a ser antipática, mãe – disse Paul. – Eu acho a primeira fotografia, a dos ombros nus, bem bonita.
– Achas? – disse Mrs. Morel. – Pois olha, eu não.
Na segunda-feira de manhã, o rapaz levantou-se às seis horas, para começar a trabalhar. No bolso do colete levava o passe do comboio que tanta amargura representava. Gostava de olhar para ele, todo às riscas amarelas. A mãe metera-lhe o almoço num cestinho de verga com tampa, e ele saiu de casa quando faltava um quarto para as sete, para apanhar o comboio das sete e um quarto. Mrs. Morel veio despedir-se do filho ao portão.
A manhã estava imaculada. Do grande freixo, pendiam os frutos verdes e delgados – as crianças chamavam-lhes «pombinhos» – cintilando alegremente, soprados pela brisa matinal, suspensos sobre os jardins das vivendas. O vale estava coberto de uma névoa escura, mas brilhante, através da qual luziam as searas já maduras, e em contacto com a qual logo se condensava o vapor que se elevava da mina de Minton. De quando em vez, o vento passava em baforadas. Paul espraiou a vista para lá das altas florestas de Aldersley, onde os campos brilhavam imensos, e nunca o apelo do lar fora tão forte.
– Adeus, mãe – disse ele, sorrindo, mas com a alma entristecida.
– Adeus – respondeu ela, com alegria e ternura na voz.
Mrs. Morel ficou parada na estrada, com o seu avental branco, vendo o filho atravessar os campos. Era um rapaz baixo e robusto, cheio de vida. Ao vê-lo caminhar pelos campos fora, sentiu que ele seria capaz de chegar onde quisesse. Pensou no William. Esse teria saltado a cerca em vez de passar pela cancela. Esse estava em Londres a viver à grande. E agora Paul ia trabalhar para Nottingham. Tinha dois filhos lançados no mundo. Podia pensar em dois lugares, dois grandes centros industriais, e sentir que tinha posto um homem em cada um, e que esses homens seriam capazes de conseguir tudo o que ela ambicionava; provinham dela, eram parte dela, e as suas vitórias seriam também as dela. Durante toda a manhã só pensou em Paul.
Às oito horas, Paul subiu as escadas lúgubres da Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan e deteve-se timidamente junto da primeira prateleira que encontrou cheia de embalagens, à espera de que alguém viesse ao seu encontro. O lugar ainda não tinha acordado. Os balcões estavam cobertos de espessas camadas de poeira. Ainda só tinham chegado dois funcionários. Paul ouvia-os conversar a um canto, enquanto tiravam os casacos e arregaçavam as mangas da camisa. Eram oito e dez. A pontualidade não era evidentemente a preocupação dominante no local. Paul continuou a ouvir as vozes dos dois funcionários. Depois, ouviu alguém tossir e viu no gabinete ao fundo do armazém um empregado já velho e caduco, com um bonezinho redondo de veludo preto bordado a verde e vermelho, a abrir cartas. Paul continuou à espera.
Um dos empregados mais novos dirigiu-se ao velhote e cumprimentou-o efusivamente e em voz muito alta. Estava visto que o velho «chefe» era surdo. A seguir, o jovem voltou para o seu balcão com passo arrogante. A certa altura reparou em Paul.
– Olá! – disse ele. – És o novo rapaz?
– Sou – respondeu Paul.
– Hum! Como te chamas?
– Paul Morel.
– Paul Morel?... Está bem. Vem comigo.
CONTINUA
Quando as crianças já tinham idade suficiente para ficarem sozinhas em casa, Mrs. Morel entrou para o Grémio Feminino. Tratava-se de um pequeno clube de mulheres ligado à Cooperativa de Revenda, que reunia às segundas-feiras à noite numa sala muito comprida por cima da mercearia Bestwood Co-op. Aí, as mulheres discutiam os benefícios de uma política de cooperação e outras questões de importância social. Por vezes, Mrs. Morel tinha de apresentar uma comunicação, e as crianças estranhavam ver a mãe, que passara a vida a fazer a lida da casa, sentar-se agora a escrever, com a rapidez que a caracterizava, a pensar, a consultar livros, e a continuar a escrever. Nessas ocasiões, sentiam por ela o mais profundo respeito.
Mas gostavam do Grémio. Era a única concessão que faziam à mãe de boa vontade – por um lado, por ser uma coisa de que ela tanto gostava, e, por outro, pelas guloseimas que depois lhes trazia. Alguns maridos hostis, que achavam que as mulheres estavam a ficar independentes de mais, chamavam ao Grémio o «clube dos traques-tagarelas», ou seja, o clube da má-língua. A verdade é que, graças ao Grémio, as mulheres podiam olhar para as suas casas, para as condições em que viviam e apontarem o que estava mal. E, assim, os mineiros começavam a descobrir que as suas mulheres lutavam por um novo padrão de vida, o que era para eles bastante desconcertante. Além disso, Mrs. Morel voltava sempre às segundas-feiras à noite carregada de novidades, e as outras crianças gostavam que William estivesse em casa quando a mãe chegava, porque ela lhe contava muitas coisas.
Mais tarde, quando o rapaz tinha treze anos, a mãe arranjou-lhe emprego nos escritórios da Cooperativa. Nessa altura, ele era já um rapaz muito inteligente e franco, de feições duras e os olhos azuis penetrantes de um verdadeiro viking.
– Pra que queres fazer dele um mangas-de-alpaca, num me dizes? – disse Morel. – Tudo o qu’ele vai fazer é gastar as calças no rabo e não ganhar um tostão. Quant’é qu’ele vai ganhar de início?
– O que ele vai ganhar não interessa – disse Mrs. Morel.
– Mas devia interessar! Põe-no mas é na mina ao pé de mim, e ele faz sem custo dez xelins por semana, logo no começo. Mas seis xelins para dar cabo do traseiro sentado num banco é melhor que dez na mina ao pé de mim, eu sei.
– Ele não vai para a mina – disse Mrs. Morel – e não se fala mais nisso.
– Pra mim serviu, mas pra ele não.
– Se a tua mãe te mandou para as minas aos doze anos, isso não quer dizer que eu faça o mesmo ao meu filho.
– Doze anos!... Muito antes disso!
– Fosse quando fosse – disse Mrs. Morel.
Ela tinha um grande orgulho no filho. Ele frequentava a escola nocturna, e aprendeu estenografia, e aos dezasseis anos, já era o melhor estenógrafo e o melhor guarda-livros do escritório, a par de um outro colega. Depois, começou a dar aulas nas escolas nocturnas. Mas era tão vivaço que só o seu bom feitio e o seu tamanho o protegiam.
Todas as coisas que os homens fazem – as coisas decentes – William também fazia. Corria tanto como o vento. Aos doze anos, ganhou o primeiro prémio numa corrida: um tinteiro de vidro, em forma de bigorna, que marcava honrosa presença no louceiro, para orgulho de Mrs. Morel. Fora para ela que ele correra. Voou para casa com a bigorna, ofegante, dizendo:
– Olha, mãe!
Esse foi o primeiro tributo que ele lhe prestou, e ela recebeu-o como uma rainha.
– Que bonito! – exclamou.
Quando iam brincar para perto da cerca da encosta, as crianças das Bottoms costumavam gritar quando William se aproximava:
– Salta, William... Salta!
E ele saltava a sebe, com cerca de cinco pés de altura, sem qualquer dificuldade.
– Caramba! – gritavam os mais pequenos.
Também atirava pedras mais longe do que qualquer outro rapaz de Bestwood. Amigos e rivais, todos tinham inveja das suas façanhas e torciam para que as pedras dele não fossem as que chegavam mais longe, passando para lá da cerca. Mas, à cautela, William gravava-lhes displicentemente as iniciais WM.
Aos dezassete anos, ganhou uma corrida de bicicletas em Ilkeston. Morel, num dos seus alardes de fanfarronice, tinha desafiado todos os campeões que estivessem na taberna a correrem contra o filho, e William sentiu que tinha de honrar as gabarolices do pai. Mas Mrs. Morel não aprovou a ideia.
– Vem ver-me limpar-lhes o sarampo a todos, mãe! – gritou ele, batendo na barriga da perna. Mas Mrs. Morel passou o dia ansiosa e infeliz. Ele podia morrer ou magoar-se, e, além disso, ela tinha a certeza de que o seu coração não tinha resistência para corridas de bicicleta. Não obstante, ele voltou para casa nessa noite trazendo uma pequena secretária de carvalho.
– Aqui tem, mãe! – disse ele. – Não lhe disse que lha trazia?
Mas ela obrigou-o a prometer-lhe que não entrava em mais nenhuma corrida.
William tinha alunos a quem dava aulas de estenografia em casa. Mas era tão impulsivo e irascível, que só os alunos mais aplicados e com mais vocação o aturavam. Sentava-se com eles à mesa da cozinha. A cozinha estava aquecida, iluminada e em silêncio absoluto. As almofadas de chintz vermelho do sofá eram fofas, a toalha vermelha sobre a mesa parecia acolhedora. Geralmente, o aluno, de treze ou catorze anos, sentava-se muito nervoso, enquanto William, rápido e enérgico, lhe corrigia os trabalhos de casa. O professor ia soltando desabafos de impaciência e intolerância. Nisto, voltava-se para o aluno e gritava:
– Meu grande cabeça de burro, fizeste bem a última frase, e agora...
O pobre do aluno assoava-se nervosamente ao lenço vermelho e olhava de soslaio para William. Às vezes, Mrs. Morel estava sentada a coser na cadeira de baloiço. Depois, começava a lição propriamente dita. William, evidenciando cada vez menos paciência, não tardava a explodir:
– Seu parvalhão, seu cabeça de burro, seu idiota chapado, o que é que eu te disse mais de mil vezes...?
– William! William! – exclamava a mãe. – Que vergonha! Não sei como ainda te aturam... Não lhe ligues, Robert, o mal está na falta de paciência dele, não em ti. Tu até és muito rápido. – E Robert olhava para Mrs. Morel envergonhado e agradecido, enquanto William continuava:
– Vá lá... e por amor de Deus não te faças de estúpido. Olha...!
Por fim, Mrs. Morel decidiu não ficar mais em casa quando ele dava as lições, para poupar aos garotos o vexame.
William tinha de entrar no escritório às oito da manhã, e a mãe levantava-se por isso às sete, para lhe preparar as coisas. Ele chegava geralmente atrasado, ou mesmo em cima da hora. Mas não havia nada que o fizesse andar mais depressa. Adorava tomar o pequeno-almoço a sós com a mãe. Quando estava bem-disposto, tagarelava e brincava com ela.
Uma manhã, pediu-lhe uma camisa lavada. Ele estava de pé, em frente à lareira, quando ela lha entregou, sentando-se em seguida a tomar o chá. Ele ergueu no ar repetidamente a camisa de flanela remendada por todos os lados.
– Mãe, o que é isto? – perguntou.
– Uma camisa – respondeu ela, desatando a rir.
– Uma rosa não cheiraria melhor...! – citou ele, de memória, com espirituosidade.
– Pois é... tu dás cabo de tudo... e eu já não tinha mais tecido igual... mas também quem vai notar?
– Tem a certeza de que não se vê?... Cá para mim, vê-se tudo à transparência – disse ele, ainda a torcer o nariz para a camisa.
– Veste-a lá... Olha as horas! – disse ela, sem poder conter o riso, da cadeira de baloiço onde estava sentada a beber o chá. E ele, de pé diante dela, um rapagão alto e espadaúdo, com a camisa de remendos na mão, dizia:
– Oh, minha camisinha de pobre! – disse ele, falando com a dita. – Acho que ninguém te vai cobiçar... um, dois, três... qual destes é o tecido original, mãe?
– Vá, veste a camisa! – ordenou a mãe.
– Imagine que eu tenho um acidente, e vou parar ao hospital, e quando volto a mim vejo quatro enfermeiras a olharem-me para a fralda da camisa... – resmungou ele.
– Só podem estar a dizer que andas com a roupa muito bem tratada – disse a mãe a rir.
Ele vestiu a camisa, e disse ainda, tapando a boca com a mão:
– Nem o rei Salomão em toda a sua glória...
– Não – disse a mãe, continuando a rir –, não creio que houvesse ninguém capaz de dar tantos pontos, nem por Salomão...
William deitou um olho à camisa por cima do ombro, e disse, num lamento:
– És a história da minha desgraça!
Mrs. Morel riu às gargalhadas. A custo, recompôs-se o suficiente para dar uma palmada na mesa e exclamar:
– Toca a vestir, menino! Já é um quarto para as oito.
– Não está à espera que eu tenha pressa de me vestir, para andar por aí todo remendado, pois não, mãe?
– És um tagarela sem juízo! – exclamou ela. – Ainda cais da bicicleta, partes a cabeça...
– Tem razão, se eu morresse ia ter vergonha da camisa que levava – atalhou ele.
Ela saltou da cadeira, pegou na escova e deu-lhe com ela ao de leve na cabeça.
– Vê lá se escovas esse cabelo – ordenou. Separaram-se, reconfortados: ele aquecia-lhe a alma a ela, e ela a ele.
Depois, ele começou a tornar-se ambicioso. Dava todo o dinheiro que ganhava à mãe. Quando recebia catorze xelins, ela deixava-o ficar com dois para os seus gastos, mas ele, como não bebia, começou a achar que estava rico, e só se dava com a burguesia de Bestwood. A pessoa mais importante da cidade era o pastor. Seguiam-se-lhe o gerente do banco, os médicos, depois os comerciantes, e, por fim, as hostes de mineiros. William começou a andar com os filhos do farmacêutico, do mestre-escola e de alguns comerciantes. Ia jogar bilhar para o Mechanics’Hall, e frequentava também os bailes, apesar de a mãe ser contra. Desfrutava de tudo o que Bestwood tinha de bom para lhe oferecer – dos bailaricos de Church Street, a seis dinheiros o ingresso, às provas desportivas e ao bilhar.
– A valsa! – exclamou o pai. – É verdade que tu sabes valsar? Quando eu era mais ágil, também sabia dar as minhas voltinhas.
– Será que sabia? – disse William, meio desconfiado.
– Sabia, sim senhor! – protestou Morel, ferido no seu amor-próprio.
– Então, vá lá... mostre-nos do que é capaz.
Mas Morel tinha vergonha de dançar diante dos filhos.
– Não, isso eu num faço! Estares a desafiar-me é uma parvoíce sem pés nem cabeça, e num vejo o qu’é que ganhas com isso.
– Mas vê que sigo as suas pisadas – retorquiu William.
– Atão inda és mais parvo do qu’eu julgava, s’alguma vez fizeres isso – disse o pai.
– Pronto, não faz mal, se está perro de mais para dançar... – disse o filho.
– Há vinte anos qu’eu num danço – gritou Morel, já alterado.
– E aposto que lhe custou a parar.
Mas William não desistiu. E as raparigas não o largavam.
– ’Póstolo – disse ele ao irmão, depois de um baile, quando já estavam os dois deitados. – ’Póstolo... uma rapariga de cetim branco... tás’ouvir, cetim branco até aos sapatos... vive em Sutton... e tá pelo beicinho! Amanhã vou lá, para m’encontrar com ela.
Daí a duas semanas, Paul perguntou-lhe:
– Então a rapariga do vestido de cetim branco?
– Já não m’interessa, ’Póstolo... Não presta! Mas encontrei uma pérola em Ripley... cheira vagamente a flor de cerejeira... branca como um lírio...
Paul era mimoseado com as mais estonteantes descrições florais das várias raparigas, a maior parte das quais perduravam por menos de quinze dias no coração de William, como um botão de rosa posto ao peito.
Uma vez por outra, lá aparecia uma namorada, preocupada em vir atrás do seu amado. Mrs. Morel encontrou um dia à porta uma rapariga de aspecto estranho, e logo lhe cheirou a esturro.
– Mr. Morel está em casa? – perguntou a donzela, toda sorrisos.
– O meu marido? Está, sim – respondeu Mrs. Morel.
– Eu... Eu queria referir-me a Mr. Morel... filho – repetiu a rapariga, penosamente.
– Qual deles? Há vários...
Nesta altura, a menina loira já gaguejava, muito corada:
– Eu... Eu conheci Mr. Morel... em Ripley. – E apressava-se a dar explicações.
– Ah... num baile!
– Sim, sim.
– Pois eu não gosto das raparigas que o meu filho conhece nos bailes. E ele não está em casa.
Mrs. Morel detestava os bailes duvidosos que o filho frequentava.
– Julgas que não sei das desavergonhadas que por lá andam?
– Pois olhe, mãe, eu não sou nenhum leviano, como pode ver.
– Isso é que eu não sei – dizia a mãe a rir.
– Não está a pensar que eu me vou apaixonar, pois não? Descanse que não vou. É só para me divertir com elas.
– Mas elas é que não querem só divertir-se contigo. E isso não está certo.
– Ora essa, porquê? Não faço tenções de me casar. Não se aflija, Mater. Eu não me caso enquanto não encontrar uma mulher como a senhora... e isso só daqui a muito tempo... E... só me hei-de casar aos trinta, quando já estiver de barriguinha cheia.
– Veremos, meu filho – respondeu a mãe.
Depois, voltou para casa zangado com a mãe por ter sido tão dura para com a rapariga. Era um rapaz despreocupado, mas de olhar apaixonado, que caminhava com grandes passadas, às vezes de sobrolho carregado, e quase sempre com o boné atirado para trás com galhardia. Agora, vinha de sobrolho carregado. Atirou o boné para cima do sofá, apoiou o queixo decidido na palma da mão e olhou zangado para a mãe. Ela era pequena, com o cabelo arrepiado para trás. Tinha um ar de serena autoridade, mas, ao mesmo tempo, de rara afabilidade. Ao ver o filho zangado, o coração apertou-se-lhe.
– Esteve cá ontem alguma senhora à minha procura? – perguntou.
– Uma senhora eu não vi... esteve foi uma rapariga.
– E porque não me disse nada?
– Porque me esqueci.
Ele expeliu o ar com ímpeto.
– Uma rapariga bonita... uma senhora?
– Não olhei para ela.
– Olhos castanhos... grandes?
– Isso mesmo.
Voltou a assoprar.
– E o que lhe disse a mãe?
– Que não estavas em casa.
– E que mais?
– Apenas que não gostava de que raparigas que tinhas visto uma vez viessem aqui a casa à tua procura.
– Bem... não precisava de ter dito isso – replicou ele. – O pai dela tem dinheiro... até têm duas criadas...
– Não vinham com ela... por isso, eu não podia adivinhar.
– Mas porque é que a mãe tinha de ser desagradável? Ela não estava a fazer mal nenhum, ou estava?
– Pensei que fosse uma dessas desavergonhadas.
– Mas não era... Não era... O pai dela...
– Tem dinheiro para duas criadas – atalhou Mrs. Morel.
– Não... É o veterinário de Woodlinton... E, além disso, mãe...
– Ela era uma desavergonhada.
– Não era nada... E era bonita, não era?
– Nem olhei para ela.
– Mas devia ter olhado...
– Mas não olhei, pronto. E olha, meu filho, trata de dizeres às tuas namoradas que, quando vierem atrás de ti, não devem vir perguntar por ti à tua mãe... É isso que tens de dizer a essas desavergonhadas que encontras pelos salões de dança.
– Tenho a certeza de que ela é uma rapariga séria...
– E eu tenho a certeza de que não é.
E assim acabou a discussão. A dança era sempre motivo de conflito entre mãe e filho. A afronta atingiu o auge quando William anunciou que ia a um baile de máscaras em Hucknall Torkard, uma terra mal-afamada. Havia uma fantasia que ele podia alugar, que um dos seus amigos já tinha usado, e lhe assentava que nem uma luva. E o fato de escocês lá foi parar a casa. Mrs. Morel recebeu-o com indiferença e recusou-se a desembrulhá-lo.
– O meu fato já chegou? – gritou William.
– Está um embrulho na sala da frente.
Ele precipitou-se para o fato e cortou o cordel.
– Já imaginou o seu filho assim vestido? – disse entusiasmado, mostrando-lhe o fato.
– Sabes bem que não quero imaginar-te com isso vestido.
Na noite do baile, quando ele veio a casa para se mascarar, Mrs. Morel vestiu o casaco e pôs o chapéu.
– Não fica para me ver vestido, mãe? – perguntou ele.
– Não... Não te quero ver – foi a resposta.
Estava muito pálida, com a expressão dura e fechada. Tinha medo de que o filho seguisse as pisadas do pai. Ele hesitou uns instantes, com o coração suspenso de ansiedade. Depois, viu a boina de escocês cheia de fitas, e agarrou-a, já esquecido da mãe. Mrs. Morel saiu.
Ele nunca se apercebeu de como tinha ficado desapontado. A excitação do momento, vivido em antecipação, era o suficiente para o fazer esquecer. Contudo, o seu maior orgulho era que ela o visse mascarado, e, pela vida fora, era sempre com mágoa que recordava este baile.
Na altura, porém, correu escada acima em grande alvoroço. Paul ajudou-o a vestir-se.
– É um fato de máscara, ’Póstolo – disse ele. – Dá-me cá essas coisas. – Primeiro enfiou um par de calções pretos, muito justos e curtos. Depois, foi mirar-se e remirar-se ao espelho da mãe.
– Estás a ver os meus calções pretos? – disse ele, dando uma volta sobre si mesmo, e acrescentando: – Sabes, ’Póstolo, um verdadeiro escocês não usa calções... cobre a nudez com o kilt. Mas acontece que eu dou saltos muito altos... e... com as senhoras a assistir... bem... já não dava!
O mais pequeno também achava que não, embora o caso não lhe parecesse muito grave.
– Belo par de pernas que aqui estão, ’Póstolo! Belas pernas! Já me ajudaram a ganhar quatro prémios nas corridas e dois nas bicicletas. Nada mau! – E dava palmadas nas coxas jovens e vigorosas. – Só músculo, miúdo!... No entanto, têm um defeito: não consigo juntar os joelhos. Tenho as pernas arqueadas, ’Póstolo. Mas assim ainda são mais fortes... Já o Nicholas Nickleby... esse tinha umas belas pernas e conseguia juntar os joelhos, a julgar pela gravura, e acho que Mr. Good também. Não era Mr. Good que tinha uma «belas pernas muito brancas» n’As Minas de Salomão? Aperta-me isto. Este fato não me assenta nada bem, pois não, ’Póstolo?
– Não – disse Paul, reverente.
– Um verdadeiro escocês – continuou William – tem de dobrar o seu kilt. Quem me dera que este fosse desses... gostava de ser eu a prepará-lo. Estás a ver, ’Póstolo, eu posso usar um kilt porque tenho a medida exacta para ele assentar como deve ser. A ti não te ia ficar bem... és espalmado como uma tampa de cartão. Tens de pedir a Deus que te desenvolva mais essa parte do corpo, senão nunca vais poder vestir um kilt.
Paul não percebia porque é que um dia havia de querer usar um kilt. Baixinho e magro como era, não podia aspirar ao físico e à estatura do irmão.
– Então, que tal ficam os meus joelhos?... Ficam bem, não ficam? Uns valentes joelhos, isso é que eles são... uns valentes joelhos... e as pernas também! Outro dia, os tipos lá do escritório apostaram em como eu andava enchumaçado. E então o Vickers veio de gatas enquanto eu estava a escrever e espetou-me um alfinete. Dei um berro que ia deitando a casa abaixo, e depois dei um pinote e ferrei-lhe um murro na cabeça, estás a ver... quem me dera não ter arrancado aquele bocadinho de pele com a bicicleta.
– Podias pôr um bocadinho do pó cor-de-rosa de lavar os dentes – alvitrou Paul.
– Lá isso podia... diz que é anti-séptico, mas será que resulta? Sabes, eu tenho mesmo pinta de escocês – cabelo louro, olhos azuis e valentia, ’Póstolo, valentia... e arcaboiço a condizer... Se alguma vez me alistasse no exército, havia de ser na Guarda Escocesa. Essa do pó dos dentes é uma ideia porreira...
Quando já estava vestido, um monte de crianças, as de casa e as da vizinhança, vieram admirá-lo. Depois, ele partiu. Divertiu-se à grande e, no entanto, era-lhe doloroso recordá-lo. A mãe mostrou-se indiferente com ele durante um ou dois dias. Mas achava-o tão encantador...! E depois... aquele toque de solidão, a instalar-se outra vez entre ele e ela.
Foi mais ou menos por esta altura que ele começou a estudar. Ele e um amigo começaram a aprender francês, latim e outras coisas. Depressa começou a ficar mais abatido. Depois do escritório, ia para casa de Fred Simpson, e ficavam os dois a estudar até à meia-noite e, às vezes, até à uma. Mrs. Morel protestava, ralhava, implorava-lhe que tivesse mais cuidado com a saúde.
– Quando estamos a estudar – dizia ele – nem dou pelas horas passarem... nenhum de nós dá, até a mãe do Fred gritar lá de baixo que já é muito tarde.
Estas noites de estudo intervalavam com farras e bailaricos. À medida que os anos iam passando, William foi ficando mais magro e a despreocupação fugiu-lhe do olhar.
A mãe, sempre atenta, sempre à espera, sentia um frio na alma ao vê-lo assim. Teria ele forças para «sobreviver»? Um pingo de ansiedade manchava o orgulho que sentia. Tinha esperado por ele tanto tempo que não suportaria o seu fracasso. Na verdade, não sabia o que queria dele, afinal. Talvez quisesse apenas que ele fosse fiel a si próprio, que crescesse e frutificasse tudo o que ela tinha semeado. Queria ver nele a sua própria realização, era tudo. E, com toda a força de que era capaz, tentava mantê-lo forte, equilibrado, com ânimo para seguir em frente. Mas ele vacilava, faltava-lhe lucidez. Havia momentos em que descambava e era igualzinho ao pai, o que lhe enchia o coração de apreensão e desalento.
Ele tivera dúzias de namoricos, mas nada a que se pudesse chamar um caso amoroso. Ela não se importava com os namoricos, desde que não lhe afectassem a carreira, mas receava que ele se deixasse prender por alguma dessas raparigas fúteis e desavergonhadas.
Tinha ele dezanove anos, quando um dia, sem mais nem menos, deixou o escritório da Cooperativa e arranjou um emprego em Nottingham. Este novo lugar rendia-lhe trinta xelins por semana, em vez dos dezoito do anterior. Era na verdade um bom aumento e os pais não cabiam em si de orgulhosos. Todos o elogiavam. Parecia que ia subir na vida num instante. E Mrs. Morel esperava poder, com o auxílio dele, ajudar os filhos mais novos. Annie andava a estudar para professora. Paul, também muito inteligente, ia muito bem nas lições de francês e alemão que o padrinho lhe dava – o pastor, velho amigo de Mrs. Morel. Arthur, um menino mimado e muito bonito, andava ainda na escola primária, mas tinha hipóteses de conseguir uma bolsa para ir para o liceu, em Nottingham.
William conservou-se durante um ano no seu novo emprego em Nottingham. Estudava afincadamente e tornava-se cada vez mais circunspecto. Algo parecia preocupá-lo. No entanto, continuava a ir aos bailes e aos festivais no rio. Não bebia. Todos os irmãos eram abstémios convictos. Chegava a casa muito tarde e estudava até altas horas da noite. A mãe implorava-lhe que tomasse cuidado, que fizesse uma coisa ou outra.
– Dança, se te apetece dançar, meu filho, mas não julgues que podes passar o dia no escritório e depois ires para a paródia, e depois ficares ainda a estudar. Não podes, o corpo não aguenta. Faz uma coisa ou a outra... diverte-te ou estuda latim... mas não tentes fazer as duas.
Depois, ele arranjou um emprego em Londres, a ganhar cento e vinte libras por ano, o que parecia uma soma fabulosa. A mãe nem sabia se havia de rir ou de chorar.
– Querem-me em Lime Street de segunda a oito, mãe – gritou ele, de olhos brilhantes, ao ler a carta. Mrs. Morel sentiu que tudo nela era silêncio. Ele continuou a ler: – «... queira confirmar até à próxima quinta-feira se aceita o lugar... Atentamente...» Eles querem-me lá, mãe, por cento e vinte libras por ano, e nem quiseram falar comigo. Eu não lhe disse que conseguia! Imagine-me só em Londres!... E posso dar-lhe vinte libras por ano, Mater... Vamos ficar afogados em dinheiro.
– Pois vamos, meu filho – respondeu ela, tristemente.
A ele nem lhe ocorreu que a mãe pudesse estar mais magoada com a sua partida do que contente com o seu sucesso. Na verdade, à medida que se aproximava o dia da partida, o coração dela começou a fechar-se e a sucumbir ao desespero. Amava-o tanto. Mais ainda: esperava tanto dele. Quase se podia dizer que vivia através dele. Gostava de lhe fazer as coisas: de lhe fazer uma chávena de chá e de lhe passar a ferro os colarinhos, de que ele tanto se orgulhava. Era para ela uma alegria vê-lo tão vaidoso dos seus colarinhos. Como não havia nenhuma lavandaria perto, costumava passá-los e repassá-los com o seu pequeno ferro de carvão, para os polir, até os pôr a brilhar à simples pressão do braço. E, agora, já não lhe podia fazer isso. Agora, ele ia partir, e era quase como se partisse também do seu coração. E ele parecia não querer deixar ficar nada de si dentro dela. Essa a causa da dor e do desgosto. Ele levava consigo quase tudo.
Uns dias antes da partida – tinha ele acabado de fazer vinte anos – queimou todas as cartas de amor, que estavam guardadas numa caixa em cima do armário da cozinha. Tinha lido extractos de algumas delas para a mãe ouvir, mas a maior parte delas eram demasiado banais.
No sábado de manhã, disse:
– Anda, ’Póstolo, vamos dar uma volta às minhas cartas, e tu podes ficar com os passarinhos e as flores.
Mrs. Morel tinha feito de véspera o trabalho destinado para sábado, pois tinham dado folga a William no último dia. Ela estava até a fazer-lhe um bolo de farinha de arroz, para ele levar. Mas ele não tinha consciência da tristeza que a mãe sentia.
Tirou da caixa a primeira carta. Era cor de malva e estava ornamentada com cardos verdes e púrpura. William cheirou a folha de papel:
– Cheira bem... perfumada...!
E meteu a carta debaixo do nariz de Paul.
– Hum! – disse Paul, inspirando fundo. – Que perfume é este?
– Jockey Club – disse William, embora não fizesse a menor ideia.
– Não podia ser cardo – disse Paul – porque os cardos não têm cheiro.
– Ora oiça esta: «Meu Único Amor»... Safa, Mater.
– Não me interessa ouvir essas baboseiras – disse Mrs. Morel.
– Oiça só esta!.. «Meu único Amor, Como não me disseste o teu primeiro nome, só te posso chamar aquilo que és na realidade. Tenho de te escrever, porque, se o não fizer, acho que a minha cabeça vai rebentar...» Veja só, Mater.
– São mesmo parvas! Têm tão pouca cabeça que não dá nem para rebentar... A adularem-te dessa maneira... Mal sabem elas que estão a arranjar lenha para se queimarem.
– Não é para me adularem. Esta ficou mesmo caidinha por mim.
– E, mesmo que tenha ficado, isso é motivo para se orgulhar? Que parvoíce!
– A mãe não devia dizer que andam a «adulá-lo para arranjar lenha para se queimarem» – interveio Paul.
– Claro, se tu o dizes... – disse a mãe a rir.
– «Fiquei a adorar coisas escocesas desde que te vi com aquele kilt. Ficava-te mesmo mal. Acho que nunca vi ninguém que ficasse tão bonito, com aquele kilt e aquelas meias...» São os meus joelhos... Têm de ser os meus joelhos, Mater. Não me escapa uma.
– Só não te escapam se forem das fáceis.
– Cala a boca, ’Póstolo. É bonita, não é?
Paul gostava de ver os desenhos que decoravam as cartas de amor. William queimou a carta. A seguinte era cor-de-rosa, com um raminho de flor de cerejeira ao canto.
– Flor de cerejeira! – disse Paul, aspirando o perfume. – Que bom... ora cheire, mãe.
A mãe aproximou o nariz pequeno e fino do papel.
– Não me apetece cheirar as parvoíces que elas fazem – disse, aspirando o perfume.
– O pai desta rapariga – disse William – é rico como Cresus. Tem terras que nunca mais acabam... Ela chama-me Lafayette, por eu saber falar francês... «Como vês, já te perdoei.» Esta de ela me perdoar é muito boa... «Falei de ti esta manhã à minha mãe, e ela terá muito prazer em que venhas tomar chá connosco no domingo, mas primeiro precisa do consentimento do meu pai. Espero bem que ele concorde. Logo que saiba, mando-te dizer se sim ou sopas. Se tu no entanto...»
– «Se sim ou...» quê? – atalhou Mrs. Morel.
– «... ou sopas»... é isso mesmo!
– «Se sim ou sopas!» – repetiu Mrs. Morel, trocista. – E eu que a julgava tão fina!
William começou a sentir-se algo desconfortável e pôs de lado esta donzela, dando a Paul o canto com a flor de cerejeira. Continuou a ler excertos das cartas, alguns dos quais deixavam a mãe divertida, outros triste e outros ainda apreensiva.
– Meu filho – disse ela –, elas são muito espertas. Já perceberam que só têm de alimentar a tua vaidade, para tu correres logo atrás delas como um cão a quem fizeram festas na cabeça.
– Ora, elas não podem estar sempre a fazer festas – retorquiu William. – E quando deixam de fazer, eu ponho-me a andar.
– Mas um dia descobres que te prenderam com uma corda que não consegues desatar – respondeu a mãe.
– Isso é que era bom! Eu chego bem para elas, Mater, elas que não se deixem enganar.
– Quem se deixa enganar és tu – disse Mrs. Morel, muito serena.
Não tardou que um monte de papéis retorcidos e tisnados se formasse na lareira, tudo o que restava da colecção de cartas perfumadas, à excepção dos trinta ou quarenta desenhos recortados dos cantos – andorinhas, miosótis e raminhos de hera – que agora pertenciam a Paul. Quanto a William, partiu para Londres, para dar início a uma nova colecção.
IV
A JUVENTUDE DE PAUL
PAUL saía à mãe – era baixo e franzino. O cabelo loiro tornou-se progressivamente arruivado e depois castanho-escuro, enquanto os olhos eram acinzentados. Era uma criança pálida e de poucas falas, com uns olhos que pareciam escutar e um lábio inferior carnudo e descaído.
Geralmente davam-lhe mais idade, pela constante preocupação que mostrava pelo que as outras pessoas sentiam, especialmente a mãe. Quando ela sofria, ele apercebia-se e não tinha paz, sempre de alma atenta às suas mais pequenas reacções.
À medida que crescia, ia-se tornando mais forte. William, devido à diferença de idades, não o queria por companheiro, pelo que só Annie estava com ele o dia inteiro. Annie era uma garota endiabrada, uma maria-rapaz, como a mãe lhe chamava, mas adorava o irmão mais novo, que andava sempre atrás dela. Quando ela fazia corridas com as outras garotas da vizinhança, Paul corria ao lado dela, a apoiá-la, uma vez que ainda não podia participar. Muito calado, passava quase despercebido. Mas a irmã adorava-o e ele fazia-lhe as vontades todas.
Annie tinha uma boneca grande de que muito se ufanava, embora não gostasse tanto dela como do irmão. Um dia, deitou-a no sofá, cobriu-a com uma manta, para ela adormecer, e foi-se embora. Entretanto, Paul pôs-se a saltar em cima do sofá e caiu mesmo em cima da cara da boneca, escondida debaixo da coberta. Annie precipitou-se para o sofá soltando um grito lancinante e sentou-se a chorar, inconsolável. Paul nem se mexeu.
– Não se percebia que a boneca estava ali, mãe; não se percebia – não se cansava ele de repetir, deixando-se ficar sentado muito triste enquanto Annie continuava a chorar. Por fim, o desgosto passou e ela perdoou ao irmão, que estava genuinamente contrito. Porém, um ou dois dias depois Annie ficou chocadíssima.
– Vamos oferecer a Arabella em sacrifício – disse ele. – Vamos queimá-la. – A irmã ficou horrorizada, mas ao mesmo tempo fascinada. Sempre queria ver o que o irmão ia fazer. Ele fez um altar de tijolos, tirou bocadinhos do enchimento do corpo de Arabella, enfiou esses bocadinhos na cara esburacada, deitou-lhe em cima um pouco de parafina e incendiou a boneca. Depois, com perversa satisfação, ficou a ver as gotas de cera derretida a escorrerem pela testa de Arabella, como se fossem suor a pingar sobre a chama. Enquanto a estúpida da boneca esteve a arder, ele rejubilou em silêncio. No fim, esgravatou nas brasas com um pauzinho, pescou os braços e as pernas, todos pretos, e esmagou-os com uma pedra.
– Pronto, este foi o sacrifício da Arabella – anunciou. – E ainda bem que não sobejou nada.
Annie, embora nada dissesse, estava perturbada com a cena. Era como se ele odiasse a boneca intensamente pelo facto de a ter partido.
Todos os irmãos, mas Paul em particular, colocavam-se nitidamente ao lado da mãe contra o pai. Morel continuava a fazer desmandos e a embebedar-se. Havia alturas, às vezes meses a fio, em que transformava a vida de toda a família num inferno. Paul nunca se havia de esquecer de ter vindo para casa, depois de uma reunião religiosa uma segunda-feira à tardinha, e ter encontrado a mãe com um olho negro e todo inchado, o pai de pé junto à lareira, de pernas afastadas e cabisbaixo, e William, que acabara de chegar do trabalho, a olhar enfurecido para o pai. Fez-se silêncio quando os irmãos mais novos entraram, mas nenhum dos adultos olhou para eles.
William estava lívido e de punhos cerrados. Esperou que os mais pequenos se calassem, limitando-se a olhar a cena com indizível raiva infantil, e disse:
– Seu grande cobarde, se eu cá estivesse, não se atrevia a fazer uma coisa destas.
Mas Morel estava ao rubro e voltou-se contra o filho. William era mais alto, mas Morel era mais possante e estava cego de raiva.
– Ah, não? – berrou. – Ah, não atrevia? Se abres mais essa boca, meu menino, assento-te a mão em cima, olá se assento!
E, vergando os joelhos, brandiu o punho ameaçadoramente, animalescamente. William estava lívido de raiva.
– Ah, sim? – disse William, sereno e intrépido. – Pois seria a última vez.
Morel aproximou-se gingão, semivergado, de punho no ar em posição de ataque. William armou também o punho. Os seus olhos azuis fixos no pai tinham o brilho de uma gargalhada. Mais uma palavra e os dois homens engalfinhavam-se. Paul desejava que isso acontecesse. Os três mais novos assistiam sentados no sofá, sem pinga de sangue.
– Acabem já com isso – gritou Mrs. Morel, com dureza. – Por esta noite chega... E tu – disse, virando-se para o marido – pensa nos teus filhos.
Morel virou os olhos para o sofá.
– Pensa nos teus filhos, ess’agora, minha grande cabra – disse ele, acintoso – o qu’é qu’eu fiz òs meus filhos, sempre gostava de saber. Mas eles saem a ti... ensinaste-lhes todas as tuas manhas e truques... criaste-os à tua maneira, foi o que foi.
Ela não respondeu. Ninguém abriu a boca. Passado algum tempo, ele atirou as botas para debaixo da mesa e foi deitar-se.
– Porque é que não me deixou fazer-lhe frente? – disse William, quando o pai já tinha ido para cima. – Ele tinha apanhado, e bem.
– Que bonito... bateres no teu pai – respondeu a mãe.
– Pai! – repetiu William. – Aquilo, meu pai!
– Bom, lá que é... é. Por isso...
– Mas porque é que não me deixa dar-lhe uma ensinadela, não custava nada...
– Que disparate! – gritou Mrs. Morel. – Ainda não chegámos a esse ponto.
– Não – disse o filho. – Ainda é pior... olhe para a sua cara. Porque não me deixou bater-lhe?
– Porque não ia suportar assistir a uma coisa dessas. É melhor que nem te passe pela cabeça – gritou ela, peremptória.
As crianças foram deitar-se muito tristes.
Quando William já era grande, a família mudou-se das Bottoms para uma casa no alto da colina, de onde se alcançava todo o vale, que se estendia por baixo, convexo, como concha de amêijoa ou berbigão. Fronteiro à casa, estava postado um velho freixo de grandes dimensões. Quando o vento oeste soprava forte das bandas do Derbyshire, apanhava em cheio as casas e a árvore não parava de ulular. Morel gostava de a ouvir.
– É como a música – dizia ele. – Ajuda-me a adormecer.
Mas Paul, Arthur e Annie detestavam o zumbido do vento. Para Paul, era quase um gemido demoníaco. Durante o primeiro Inverno que passaram na nova casa, o pai portou-se muito mal. As crianças ficavam a brincar na rua, alcandorada sobre o vale extenso e sombrio, e só voltavam para casa às oito horas, indo directas para a cama. A mãe ficava a costurar no andar de baixo. Todo aquele espaço aberto diante da casa incutia nas crianças uma sensação de vastidão nocturna, de terror. Terror esse que provinha da árvore ululante e da discórdia entre os pais. Paul, mesmo depois de adormecer, tinha um sono sobressaltado e acordava amiúde com os barulhos que vinham de baixo. Acordava e ficava atento. Ouvia então os berros desabridos do pai, que chegara a casa a cair de bêbado, seguidos das respostas aceradas da mãe, e depois os murros do pai em cima da mesa e os seus gritos descontrolados, à medida que ia elevando a voz. E, finalmente, tudo isto era abafado pelos gemidos e os uivos penetrantes do grande freixo agitado pela ventania. As crianças mantinham-se caladas e expectantes, a aguardarem que o vento se calasse, para perceberem o que o pai estava a fazer, não fosse ele bater na mãe outra vez. A escuridão instilava neles sentimentos de horror, violenta tensão e sangue, e adormeciam com o coração apertado de angústia. O vento era cada vez mais assustador. Todas as cordas da grande harpa gemiam, silvavam e uivavam. E, depois, o horror do súbito silêncio: o silêncio total, lá fora e lá em baixo. Que silêncio era aquele?... Um silêncio de sangue? Que teria ele feito?
As crianças mantinham-se deitadas a respirar escuridão. Por fim, ouviam o pai atirar com as botas e subir a escada só de meias. Mesmo assim, ficavam à escuta, até que, se o vento deixava, ouviam a água a sair da torneira para a chaleira, que a mãe já deixava preparada para o dia seguinte, e podiam, finalmente, dormir em paz.
De manhã, acordavam felizes, muito felizes, e brincavam e dançavam à volta do candeeiro solitário, ainda na escuridão, mas guardavam um recanto de ansiedade dentro dos seus corações e uma tristeza nos olhos que conservaram para toda a vida.
Paul odiava o pai. Quando era ainda pequeno, tinha uma religião muito sua.
– Faz com que ele deixe de beber – pedia ele todas as noites.
– Senhor, deixa o meu pai morrer – rezava ele muitas vezes.
– Faz com que ele morra na mina – pedia ele quando, depois do chá, o pai tardava a vir do trabalho.
Esse era outro dos momentos em que a família sofria intensamente. As crianças chegavam da escola e tomavam chá. A enorme chaleira preta fervilhava a um lado do fogão e a terrina do guisado estava no forno, à espera de que Morel chegasse. Era esperado às cinco horas. Porém, durante meses a fio, parava sempre na taberna quando voltava do trabalho e por lá ficava a beber.
Nas noites de Inverno, quando o frio era intenso e anoitecia mais cedo, Mrs. Morel levava para a mesa uma palmatória de latão com uma vela acesa, para poupar o gás. As crianças comiam a sua fatia de pão com manteiga ou com banha e iam brincar para a rua. Mas, se Morel ainda não tinha chegado, eles pensavam duas vezes. Mrs. Morel não suportava imaginá-lo sentado na taberna a beber, todo sujo e ainda com as roupas da mina, depois de um dia de trabalho, e, em vez de vir para casa comer e lavar-se, preferir embebedar-se de estômago vazio. E este seu sentimento comunicava--se aos filhos. Agora, ela já não sofria sozinha: os filhos sofriam com ela.
Paul foi brincar com os outros rapazes. No vale semeado no crepúsculo, cintilavam aglomerados de luzes a marcarem a entrada das minas. Alguns mineiros retardatários subiam desgarrados o carreiro da encosta. Por fim, passou o homem que acendia os lampiões da rua. Mais nenhum mineiro se avistava. A escuridão abateu-se sobre o vale, o trabalho terminara, era a noite que chegava.
Paul correu ansioso para a cozinha. A vela solitária ardia ainda sobre a mesa, o clarão vermelho da fogueira inundava a cozinha, e Mrs. Morel estava sentada e só. A chaleira fumegava no fogão, o prato continuava à espera. Um sentimento de espera perpassava toda a casa, um sentimento de espera pelo homem que estava nesse momento sentado na taberna, a pouco mais de uma milha de casa, já noite escura, com a roupa de trabalho, sem comer, e a beber até cair. Paul apareceu à porta.
– O papá já chegou? – perguntou.
– Bem vês que não – disse Mrs. Morel, aborrecida com a redundância da pergunta.
Depois, o garoto pôs-se a andar de um lado para o outro à volta da mãe. Partilhavam a mesma ansiedade. A certa altura, Mrs. Morel foi lá fora escorrer a água das batatas.
– Estão todas negras, uma porcaria – disse ela. – Quero lá saber. – Não se trocavam muitas palavras. Paul quase odiava a mãe por sofrer daquela maneira quando o pai não vinha para casa.
– Para que se aflige tanto? – disse ele. – Se ele quer ficar por lá a embebedar-se, porque não o deixa?
– Deixá-lo! – ripostou Mrs. Morel. – Essa é boa, «deixá-lo». – Ela sabia que todo o homem que se mete na taberna quando devia voltar para casa sem demora se arruina a si mesmo e à família. As crianças eram ainda muito pequenas e ele era o seu único ganha-pão. William viera trazer-lhe algum alívio, pois, com ele empregado, sempre tinha alguém a quem recorrer se Morel descambasse de vez. Porém, isso em nada alterava a tensão que se respirava na cozinha nestas noites de espera.
Os minutos escoavam-se no bater ritmado do relógio. Às seis horas, a mesa ainda estava posta, o jantar à espera, e a mesma atmosfera de ansiedade e expectativa invadia toda a casa. Paul já não aguentava mais. Não lhe apetecia ir lá para fora brincar. Correu por isso para casa de Mrs. Inger, duas portas mais abaixo, para conversar com ela. Mrs. Inger não tinha filhos. O marido era amigo dela, mas era caixeiro numa loja e chegava muito tarde. Quando ela viu o garoto à porta, chamou-o:
– Vem cá, Paul.
Ficaram os dois a conversar durante um bocado, mas logo Paul se levantou, dizendo:
– Bem, vou andando, para ver se a minha mãe precisa que eu lhe vá fazer algum recado.
Fingia estar muito alegre e não contou à amiga o que o preocupava. Depois, voltou a correr para casa.
Em alturas como esta, Morel chegava sempre mal-humorado, insuportável.
– Lindas horas de voltares para casa – dizia Mrs. Morel.
– Que tens tu co’isso, cas horas a qu’eu venho pra casa? – berrava ele.
E ninguém abria a boca, porque ele era perigoso. Comia o que lhe punham à frente com inultrapassável grosseria e, quando terminava, empurrava tudo o que tinha diante de si para longe, para poder estender os braços por cima da mesa, e, em seguida, adormecia.
Paul odiava por demais o pai. A cabeça do mineiro, pequena e mesquinha, com o cabelo preto empastado de fuligem, repousava sobre os braços nus, e a cara, suja e mal-humorada, de nariz grosso e sobrancelhas finas e insolentes, estava virada para o lado, adormecida – da cerveja, do cansaço e da má índole. Se alguém entrasse de repente ou fizesse o mais pequeno ruído, o homem abria os olhos e berrava:
– Tás aqui, tás a levar um murro, se não paras com essa chinfrineira. Tás’ouvir?
Estas palavras, gritadas selvaticamente e quase sempre dirigidas contra Annie, deixavam toda a família transida de medo.
Ele era mantido fora de todos os assuntos. Ninguém lhe contava nada. Enquanto estavam sozinhos com a mãe, o filhos relatavam-lhe as peripécias do dia, contavam-lhe tudo. Era como se nada realmente acontecesse até contarem à mãe. Mas, mal o pai entrava, fazia-se silêncio. A sua presença era como um travão na engrenagem fluente e feliz da vida doméstica. Ele apercebia-se deste muro de silêncio, do isolamento a que o votavam, de que não era bem-vindo; mas era já demasiado tarde para mudar.
Bem gostaria de que os filhos conversassem com ele, mas eles não conseguiam. Às vezes Mrs. Morel dizia:
– Devias contar ao teu pai.
Paul ganhou um prémio num concurso de jornal e todos ficaram radiantes.
– O melhor é contares ao teu pai quando ele chegar – disse Mrs. Morel. – Sabes bem que ele passa a vida a dizer que nunca lhe contam nada.
– Está bem – concordou Paul. No entanto, quase preferia ter perdido o prémio a ter de contar ao pai.
– Ganhei um prémio num concurso, pai – disse ele.
Morel voltou-se e disse:
– Ah, ganhaste, meu rapaz?... E que concurso era esse?
– Nada de especial... era sobre mulheres famosas.
– E de quanto é esse tal prémio que ganhaste?
– É um livro.
– Ah, é?
– Sobre aves.
– Hum!
E era assim. Não havia conversa possível entre o pai e qualquer dos restantes membros da família. Era como se ele fosse um estranho, tivesse negado o Deus que nele habitava.
Os únicos momentos em que voltava a entrar na vida da família era quando fazia consertos em casa e o trabalho lhe corria de feição. Às vezes, ao fim da tarde, depois de jantar, punha-se a remendar as botas ou a soldar a chaleira ou o cantil. Nessa altura precisava de ajudantes e as crianças rejubilavam. Partilhavam com ele o trabalho, no verdadeiro sentido de construírem realmente qualquer coisa, e aquele sim, era ele outra vez.
Mostrava-se competente e habilidoso, e quando estava de bom humor não parava de cantarolar. Mas atravessava longos períodos, às vezes meses, quase anos até, de contundência e irascibilidade. Depois, de repente, ficava bem-disposto outra vez e era bom vê-lo entrar pela copa dentro com um bocado de ferro incandescente, a gritar:
– Saiam da frente, saiam da frente!
Batia o ferro rubro e maleável na bigorna e moldava-o a gosto. Outras vezes sentava-se a soldar, e as crianças viam cheias de alegria o metal derreter instantaneamente e ser espalhado pelo ferro de soldar, impregnando a casa de um odor a lata quente e a resina queimada, enquanto Morel em silêncio se concentrava no trabalho. Cantava sempre que estava a remendar as botas, ao som das batidas do martelo. E via-se que estava feliz quando punha grandes remendos nas calças de fustão que usava na mina, o que acontecia bastas vezes, pois achava-as muito sujas e muito rijas para ser a mulher a fazê-lo.
Mas o que as crianças mais gostavam era de o verem fazer detonadores. Morel ia buscar ao sótão um molho de palhas de trigo compridas e resistentes. Limpava-as e polia-as à mão até cada uma luzir como uma hastezinha de ouro. Depois, cortava-as em bocados com cerca de seis polegadas, fazendo-lhes, se possível, um talho na ponta. Tinha sempre ao seu lado um canivete primorosamente afiado que cortava uma palha ao meio sem a danificar. Seguidamente, deitava em cima da mesa um montinho de pólvora – uma pilha de grãos pretos sobre o tampo de madeira bem lavada, e ia preparando e aparando as palhas, enquanto Paul e Annie as enchiam e vedavam com um bujão. O que Paul mais gostava era de ver os grãozinhos pretos escorregarem pela calha que ele fazia com a palma da mão e entrarem pela abertura da palhinha, até ela ficar cheia. Nessa altura, vedava a abertura com uma raspa de sabão que arrancava com a unha do polegar do bocado de sabão que tinha a seu lado num pires, e a palha estava pronta.
– Olhe, pai! – dizia ele.
– Isso mesmo, meu amor – respondia Morel, que era particularmente pródigo em elogios para com o seu segundo filho. Paul atirava os detonadores para dentro da lata da pólvora, já pronta para o dia seguinte, quando Morel a levasse para a mina, para com eles provocar uma explosão capaz de fracturar a parede de carvão.
Entretanto, Arthur, ainda muito agarrado ao pai, vinha apoiar-se no braço do cadeirão de Morel e dizia:
– Conte-nos como é lá em baixo na mina, papá.
Era o que Morel mais gostava de fazer.
– Ora bem, lá na mina há um cavalo, a gente chama-lhe Taffy – começava ele – e ele é um gra-a-nde manhoso!
Morel tinha uma maneira pitoresca de contar histórias. Parecia até que a manha do Taffy ganhava vida.
– É um baio – continuava ele – e dos pequenos. Bem, a cert’altura ele entra na galaria com ganda estardalhaço e a gente ouve-o espirrar.
– «Olá, Taff», diz a gente, «pra que tás tu a espirrar? Andaste a cheirar rapé?» E ele vá de espirrar outra vez. Depois vem ter co’a gente e dá-nos co’a cabeça no ombro, o malandreco.
– «Qu’é que tu queres, Taff?», diz a gente.
– E o qu’é qu’ele quer? – perguntava Arthur invariavelmente.
– Quer um bocado de tabaco, meu tontinho.
E a história do Taffy nunca mais acabava, para gáudio da pequenada.
Outras vezes a história mudava.
– Ora ouve esta, meu amor. De quando vou a vestir o casaco, na hora de vir dar ao dente, e dou c’um rato a correr-me pela manga acima. «Eh, lá!», grito eu, mesmo a tempo de lh’agarrar a ponta do rabo.
– E matou-o?
– Matei, pois. São uma praga. Aquilo tá cheio deles.
– E o que é que eles comem?
– Os grãos qu’os cavalos deixam cair... e até nos vêm ao bolso comer o farnel, s’os deixarmos... seja onde for que a gente pendure o casaco... Danados de comilões, isso é qu’eles são...
Estas noites bem passadas só aconteciam quando Morel tinha trabalho para fazer. Depois, ia deitar-se muito cedo, geralmente com as crianças. Não havia nada que o fizesse ficar a pé depois de terminar os consertos e ler por alto os títulos do jornal.
Os filhos sentiam-se seguros quando o pai estava na cama. Por vezes ficavam a conversar em voz baixa depois de se deitarem, e assustavam-se quando luzes de repente se projectavam no tecto, vindas das lanternas dos mineiros que passavam para o turno das nove horas. Ouviam as vozes dos homens e imaginavam-nos a penetrar no vale de breu. Às vezes iam à janela e ficavam a ver as três ou quatro lanternas cada vez mais pequeninas desaparecerem na distância, balançando na escuridão dos prados. E, depois, era tão bom voltarem para a cama e enroscarem-se uns nos outros, no quentinho.
De todos, só Paul era muito frágil, atreito a ataques de bronquite. Os outros eram todos fortes e essa era talvez a outra razão para a diferença que a mãe fazia entre ele e os irmãos. Um dia, Paul chegou adoentado à hora do almoço. A família, porém, não era dada a pieguices.
– O que se passa contigo? – perguntou a mãe, incisiva.
– Nada – respondeu ele.
Mas não quis comer.
– Se não comeres, não voltas para a escola.
– Porquê? – perguntou ele.
– Porque não.
Depois do almoço, ele foi deitar-se no sofá, entre as fofas almofadas de ramagens de que as crianças tanto gostavam, e pareceu adormecer. Nessa tarde, estava Mrs. Morel a passar a ferro quando ouviu os ruídos roucos e entrecortados que o filho fazia ao respirar. De novo a assaltou o antigo sentimento exacerbado de quando ele era bebé e julgava que não ia sobreviver. No entanto, o corpinho dele tinha grande vitalidade. Talvez para ela tivesse sido um alívio se ele tivesse morrido. Sentia sempre a angústia misturar-se ao amor que lhe tinha.
Ele, no seu estado de semiconsciência, apercebia-se vagamente do tinir do ferro no descanso e do seu assentar cavo sobre a tábua de engomar. Uma das vezes, acordando, abriu os olhos e viu a mãe junto à lareira com o ferro quente perto da cara, a escutar por assim dizer o ruído do calor. Ao ver o seu rosto imóvel, a boca crispada de tanto sofrimento, desilusão e abnegação, o nariz ligeiramente à banda e os seus olhos azuis, tão jovens, vivos e ternos, o coração de Paul apertou-se-lhe de amor. Quando ela ficava assim parada, como agora, parecia cheia de vida e de coragem, mas completamente privada dos seus direitos. Ao filho, magoava-o profundamente este pressentimento de ela nunca ter sido feliz, e a sua própria falta de capacidade para a compensar atingia-o como uma espécie de impotência, ao mesmo tempo que determinavam nele uma atitude de paciente tenacidade, em conformidade com as suas ambições pueris.
Ela cuspiu no ferro, e uma bolinha de cuspo enovelou-se e correu pela superfície negra e luzidia. Depois, pondo-se de joelhos, esfregou o ferro vigorosamente no forro de serapilheira do tapete. As chamas da fogueira envolviam-na num clarão cálido e avermelhado. Paul gostava da maneira como ela se baixava e inclinava a cabeça para o lado com movimentos leves e ligeiros. Era sempre com enlevo que a olhava. Nada que fizesse, nenhuma atitude ou movimento, podiam ter defeito para os filhos. A casa estava aquecida e cheirava a roupa quente. Mais tarde, o pároco veio conversar tranquilamente com Mrs. Morel.
Paul caiu à cama com um ataque de bronquite. Não que isso o contrariasse muito: o que tinha de ser tinha muita força e de nada servia revoltar-se. Gostava das noites, depois das oito horas, quando apagavam a luz e ele podia ver as chamas projectarem-se na escuridão das paredes e do tecto e seguir com o olhar as sombras alongadas que o percorriam, até a sala parecer invadida por guerreiros silenciosos, combatendo no silêncio.
Quando se ia deitar, o pai passava primeiro pelo quarto do enfermo. Se alguém estava doente em casa, mostrava-se sempre muito terno, mas a sua entrada não deixava de perturbar a paz que reinava no quarto de Paul.
– Tá a dormir, meu amor? – perguntava Morel, devagarinho.
– Não... A mãe não vem para cima?
– Tá só a acabar de dobrar a roupa. Quer alguma coisa? – Morel só raramente tratava o filho por «você».
– Não, não quero nada... Mas quanto tempo é que demora?
– Já falta pouco, meu tontinho.
O pai hesitava uns segundos frente à lareira. Sentia que o filho não queria a sua presença. Assomava-se então ao cimo das escadas e dizia à mulher:
– Aquela criança tá ansiosa por te ter ó pé... Inda vais ficar aí muito tempo?
– Até acabar o que estou a fazer, santo Deus! Diz-lhe que durma.
– Ela diz qu’o melhor é o meu menino adormecer – disse ele a Paul, de mansinho.
– Mas eu quero que ela venha para cima – insistiu o garoto.
– Ele diz que não dorme enquanto não vieres pra cima – gritou Morel lá para baixo.
– Calma, querido! Já vou. E vê se não gritas dessa maneira. Olha as outras crianças...
Depois, Morel voltou para o quarto de Paul e acocorou-se em frente da lareira. Que bem lhe sabia aquecer-se ao lume.
– Ela diz que já vem.
Parecia querer ficar ali indefinidamente. O garoto já estava febril de irritação. A presença do pai parecia aumentar ainda mais a sua impaciência. Por fim, depois de ficar a olhar para o filho por algum tempo, em silêncio, Morel disse mansamente:
– Boa noite, meu amor.
– Boa noite – respondeu Paul, voltando-se para o outro lado, satisfeito por ficar sozinho.
Paul adorava dormir com a mãe. O sono é ainda mais reparador, apesar de tudo o que dizem os defensores da higiene, quando partilhado com um ente querido. O aconchego, a segurança, a paz de espírito e o conforto que a presença do outro traz, conferem ao sono propriedades curativas. Paul adormecia encostado a ela e melhorava depressa, e ela, sempre atormentada por insónias, mergulhava num sono profundo que parecia renovar-lhe a esperança.
Durante a convalescença, Paul ficava sentado na cama, a ver os cavalos a pastar nos campos circundantes, espalhando o feno pela neve amarelada das pegadas, e a ver os mineiros voltarem para casa, figurinhas negras trilhando lentamente em grupos a alvura dos campos. Depois, vinda da neve, a noite avançava em vapores azulados, quase negros.
Durante a convalescença tudo era maravilhoso. Os flocos de neve caindo de repente na janela detinham-se por um momento, como andorinhas, mas logo desapareciam, e uma gota de água escorria pela vidraça. Os flocos de neve rodopiavam em torno da esquina da casa como pombas esvoaçantes. Do outro lado do vale, o pequeno comboio negro rolava hesitante através da planície toda branca.
Vendo-se tão pobres, as crianças ficavam radiantes quando podiam fazer qualquer coisa que pudesse ajudar os pais economicamente. Annie, Paul e Arthur saíam no Verão logo pela manhã e metiam-se pelo meio da erva molhada, de onde esvoaçavam cotovias, assustadas, à cata de cogumelos, esses corpos nus e de pele tão branca que se escondem dos olhares por entre o verde. Se conseguiam apanhar meia libra, já se davam por muito felizes: era a alegria de encontrarem qualquer coisa, a alegria de receberem qualquer coisa directamente das mãos da natureza e a alegria de poderem contribuir para a economia doméstica.
Mas a colheita mais importante, depois de andarem à procura de ervas aromáticas para as papas, era a das amoras. Mrs. Morel tinha de comprar fruta todos os sábados para os pudins; além disso, gostava muito de amoras. Assim, Paul e Arthur, enquanto houvesse uma amora à vista, esquadrinhavam os silvados, as moitas e as pedreiras abandonadas todos os fins-de-semana. Naquela região de cidades mineiras, as amoras eram relativamente raras. Mas Paul era persistente. Gostava de andar pelos campos entre os silvados, mas não suportava voltar de mãos a abanar. Isso seria desapontá-la, pensava ele, e antes queria morrer.
– Santo Deus! – exclamou a mãe ao vê-los entrar, já tarde, mortos de cansaço e cheios de fome. – Por onde é que vocês andaram?
– Bem – começou Paul –, como aqui não encontrámos nenhuma, fomos até Misk Hills... E veja só, mãe.
Ela espreitou para a cesta.
– E que lindas que são! – exclamou.
– E passa de duas libras... passa de duas libras, não passa, mãe?
A mãe tomou o peso à cesta.
– Passa, sim – respondeu, pouco convicta.
Paul estendeu-lhe um raminho. Trazia-lhe sempre um raminho, o mais bonito que encontrasse.
– Que bonito! – disse ela, com a entoação especial da mulher que recebe um testemunho de amor.
O filho preferia correr os campos o dia inteiro, calcorrear milhas e milhas, a dar-se por vencido e voltar de mãos vazias. Ela nunca o entendeu enquanto ele foi pequeno. Era uma mulher que esperava que os filhos crescessem depressa e se preocupava sobretudo com William.
Mas quando William foi trabalhar para Nottingham, e já não passava tanto tempo em casa, a mãe fez de Paul seu companheiro. Este sentia involuntariamente ciúmes do irmão, e William tinha ciúmes de Paul, mas eram ao mesmo tempo bons amigos.
A relação de Mrs. Morel com o seu segundo filho era mais subtil e tranquila, menos exacerbada talvez do que com o filho mais velho. Estava estabelecido que era Paul quem ia levantar o salário às sextas-feiras à tarde. Os mineiros das cinco minas da zona recebiam à sexta-feira, mas não individualmente. Os salários referentes a cada galeria eram pagos por junto ao capataz, chefe e contratador dos mineiros, e era ele quem fazia a distribuição, na taberna ou na sua própria casa. Para as crianças poderem ir buscar o dinheiro, a escola acabava mais cedo às sextas-feiras. Todos os filhos de Morel, primeiro William, depois Annie e agora Paul, já tinham ido buscar o dinheiro às sextas-feiras à tarde, até chegar a altura de eles próprios começarem a trabalhar. Paul costumava sair de casa às três e meia, com um saquinho de pano no bolso. Por todos os caminhos se viam mulheres, raparigas, crianças e homens a caminho dos escritórios.
Os escritórios eram muito bonitos: num edifício novo de tijolo vermelho, que mais parecia uma mansão, no meio de um jardim muito bem tratado, ao fundo de Greenhill Lane. A sala de espera era no vestíbulo, uma sala comprida e nua com chão de tijoleira azul e um banco a toda a volta, encostado à parede. Era aqui que se sentavam os mineiros, carregados de fuligem. Tinham saído mais cedo da mina. As mulheres e as crianças ficavam geralmente à espera nos arruamentos de gravilha avermelhada. Paul observava sempre com atenção a orla de relva e o grande canteiro onde cresciam amores-perfeitos e miosótis. Aos ouvidos chegava-lhe o som de muitas vozes misturadas. As mulheres exibiam os seus chapéus domingueiros. As raparigas tagarelavam animadas. Os cães corriam para um lado e para o outro. E, em redor, os arbustos erguiam-se verdes e silenciosos.
Nisto, alguém gritava de lá de dentro: «Spinney Park... Spinney Park», e todos os da mina de Spinney Park entravam de tropel. Quando chegava a vez da mina de Bretty, Paul entrava com a multidão. A sala de pagamentos era muito pequena. Um balcão a toda a largura dividia-a ao meio. Atrás do balcão estavam dois homens, Mr. Braithwaite e um empregado, Mr. Winterbottom. Mr. Braithwaite era um homem corpulento, com ar de patriarca austero e uma barbicha branca e rala. Tinha geralmente a boca tapada com um grande lenço de pescoço, em seda, e, mesmo no Verão, havia sempre uma fogueira acesa. Não se via uma janela aberta. Por vezes, no Inverno, o calor até chegava a queimar as gargantas de quem vinha do ar gélido do exterior. Mr. Winterbottom era baixinho, gordo e calvo. Tecia comentários sem o mínimo resquício de imaginação, enquanto o seu chefe não se cansava de proferir patriarcais invectivas contra os mineiros.
A sala estava apinhada de mineiros todos enfarruscados, homens que já tinham ido a casa mudar de roupa, mulheres e uma ou duas crianças, e, geralmente, um cão. Paul era bastante baixo e era por isso sina sua ver-se entalado entre as pernas dos homens, perto do calor sufocante da lareira. Sabia a ordem por que os nomes eram chamados: de acordo com o número da galeria.
– Holliday – chamou a voz metálica de Mr. Braithwaite. Mrs. Holliday avançou em silêncio, recebeu o salário e passou para o outro lado.
– Bower... John Bower.
Um rapaz chegou-se ao balcão. Mr. Braithwaite, uma bisarma irascível, fuzilou-o com o olhar por detrás das lentes.
– John Bower! – voltou ele a chamar.
– Sou eu – disse o rapaz.
– Esta agora..., dantes as ventas eram outras – disse o luzidio Mr. Winterbottom, espreitando por cima do balcão. Os presentes riram-se à socapa, a pensarem no John Bower pai.
– Porque é que o teu pai não veio? – perguntou Mr. Braithwaite, num tom magistral e grandiloquente.
– Não anda bem – respondeu o rapaz, na sua voz aflautada.
– Devias dizer-lhe para largar a bebida – aconselhou o corpulento tesoureiro.
– E depois não te queixes, se ele te ferrar um pontapé – disse uma voz trocista lá de trás.
Todos se riram. O tesoureiro, avantajado e com ares importantes, olhou para a folha que se seguia.
– Fred Pilkington! – chamou, em tom neutro.
Mr. Braithwaite era um importante accionista da firma.
Paul sabia que só faltava um e depois era a vez dele. O coração começou a bater mais depressa. Foi empurrado de encontro à chaminé. Tinha a barriga das pernas a arder, mas não podia furar a barreira humana à sua volta.
– Walter Morel! – soou a voz metálica.
– Aqui – esganiçou-se Paul, da sua pequenez desajeitada.
– Morel... Walter Morel! – repetiu o tesoureiro, de folha de pagamentos na mão, pronto a passar à frente.
Paul foi acometido de convulsões nervosas e não conseguia, ou não queria, gritar. As costas dos homens apagavam-no por completo. Então, Mr. Winterbottom veio em seu auxílio.
– Ele tava aqui... onde tá ele? O miúdo do Morel?
O homem gordo, vermelhusco e calvo perscrutou a sala, assestando os olhos. Nisto, apontou para a chaminé. Os mineiros olharam também e, afastando-se, libertaram o rapaz.
– Aqui tá ele! – disse Mr. Winterbottom. Paul aproximou-se do balcão.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros... Atão, não respondes quando te chamam? – disse Mr. Braithwaite. Pousou um saco com cinco libras em prata com toda a força em cima da folha de pagamentos e, depois, num gesto rápido e delicado, pegou numa pequena pilha de dez libras em ouro e colocou-a ao lado da prata. As moedas de ouro escorregaram sobre o papel como um rio de brilho. O tesoureiro acabou de contar o dinheiro e o rapaz levou tudo a Mr. Winterbottom, no outro extremo do balcão, a quem deviam ser pagas a renda da casa e o aluguer das ferramentas. Aí chegado, novo percalço.
– Dezasseis xelins e seis dinheiros – disse Mr. Winterbottom.
O rapaz estava nervoso de mais para contar o dinheiro, pelo que empurrou algumas moedas de prata e meio soberano na direcção do funcionário.
– Quanto julgas tu que me destes? – perguntou Mr. Winterbottom.
O rapaz fitou-o, sem responder. Não fazia a menor ideia.
– Perdestes a língua?
Paul mordeu o lábio e empurrou mais algumas moedas de prata por cima do balcão.
– Na escola num t’insinaram a contar? – perguntou o homem.
– Só álgibra e franciú – disse um mineiro.
– E a ser sabido – acrescentou outro.
Paul sabia que por sua causa havia gente à espera. Com mãos trémulas, guardou o dinheiro no saco e saiu. Estas ocasiões eram para ele como as penas do Inferno.
Quando se apanhou cá fora, na estrada de Mansfield, sentiu-se infinitamente aliviado. O muro do parque estava coberto de musgo muito verde. Galinhas brancas e douradas debicavam à volta das macieiras de um pomar. Os mineiros serpenteavam rumo a casa. O rapaz seguia rente ao muro, envergonhado. Conhecia muitos dos homens, mas assim, todos sujos, não conseguia identificá-los, o que para ele era uma nova tortura.
Quando chegou à taberna New Inn, em Bretty, o pai ainda não tinha chegado. Mrs. Wharmby, a taberneira, conhecia-o. A avó dele, a mãe de Morel, fora amiga de Mrs. Wharmby.
– O teu pai ainda não chegou – disse ela, naquele tom meio atrevido, meio maternal, de mulher habituada a falar sobretudo com homens feitos. – Senta-te.
Paul sentou-se ao balcão, na beira de um banco alto. Alguns mineiros estavam a um canto a «dividir o bolo» – a distribuir o dinheiro – e outros vinham a entrar. Todos miravam o rapaz, sem dizer palavra. Finalmente, Morel chegou, todo desempenado e com um certo toque de galhardia, apesar da pretidão.
– Olá – disse ele, ternamente, para o filho. – Atão, inda conseguiste chegar primeiro do qu’eu? Queres beber alguma coisa?
Paul, tal como os irmãos, tinha crescido um anti-alcoólico convicto, e para ele era pior beber uma limonada à frente de todos aqueles homens do que tirar um dente.
A taberneira mirou-o dos pés à cabeça, penalizada, mas ao mesmo tempo ofendida com a rigidez moral de que dava mostras. Paul voltou para casa rubro de vergonha. Entrou em silêncio. Sexta-feira era dia de cozer o pão e havia geralmente uma carcaça quentinha à sua espera. A mãe veio dar-lha.
De repente, ele virou-se a ela furioso, de olhos a faiscar.
– Nunca mais entro naquele escritório.
– Porquê, o que é que aconteceu? – perguntou a mãe, surpreendida. Divertia-se imenso com os súbitos ataques de fúria deste filho.
– Nunca mais lá volto – afirmou ele.
– Pronto, está bem. Então, vai dizer isso ao teu pai.
Paul mastigava o pão como se tivesse alguma coisa contra ele.
– Não vou... Não vou mais buscar o dinheiro.
– Então talvez um dos miúdos do Carlin possa ir. Eles haviam de gostar de ficar com os seis dinheiros – disse Mrs. Morel.
Os seis dinheiros era tudo o que Paul recebia. Gastava-os quase todos a comprar presentes de aniversário, é certo, mas eram a sua semanada e prezava-os muito. Porém, disse:
– Pois que fique com eles! Eu não os quero.
– Muito bem – respondeu a mãe. – Mas não precisas de me tratar mal por causa disso.
– Eles são horríveis e ordinários... são horríveis, pronto, e eu não vou lá mais. Mr. Braithwaite pronuncia mal as palavras e Mr. Winterbottom diz «a gente semos».
– E é por isso que não queres lá voltar? – disse a mãe a sorrir.
O rapaz ficou calado. Estava muito pálido, com os olhos pretos e furiosos. A mãe voltou aos seus afazeres sem lhe dar mais importância.
– Eles metem-se todos à minha frente e eu não consigo sair donde estou – disse ele.
– Bem, meu filho, só tens de pedir licença – respondeu ela.
– E depois o Alfred Winterbottom diz, «O qu’é que t’insinam na escola?»
– A ele nunca ensinaram grande coisa – disse Mrs. Morel. – Lá isso é verdade... nem boas maneiras, nem inteligência... a única coisa que tem é manha.
– E vão eles e dizem, «Só álgibra e franciú.» Na escola, não ensinam francês.
– Mas, se ensinassem – disse a mãe, sorrindo – não era preciso ficares tão zangado... Portas-te duma maneira tão infantil, meu filho, quando alguém brinca contigo.
– E depois? – Paul olhou para a mãe quase a chorar, e ainda com mais raiva e ódio do que propriamente ofendido.
– És tão pateta – continuou ela. – Não consegues dizer simplesmente «agora é a minha vez», deixas-te ultrapassar e depois ficas furioso. A culpa é tua.
E, assim, lá o acalmou, embora à sua maneira. A ridícula hiper-sensibilidade dele confrangia-lhe o coração. Outras vezes, a fúria que via nos olhos do filho alertava-a, fazia a sua alma adormecida levantar a cabeça momentaneamente, surpreendida.
– Quanto foi desta vez? – perguntou.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros, e dezasseis xelins e seis dinheiros de retenção – replicou o rapaz. Foi uma boa semana... e só cinco xelins de retenções para o meu pai.
Assim, ela podia calcular quanto o marido tinha ganho, e chamá-lo à pedra se ele lhe desse pouco dinheiro. Morel guardava sempre para si o segredo do montante da semana.
Sexta-feira era a noite de cozer pão e de ir ao mercado. Regra geral, Paul ficava em casa a vigiar o pão. Gostava de ficar a desenhar ou a ler – adorava desenhar. Annie punha-se sempre ao fresco à sexta-feira à noite, e Arthur entretinha-se a brincar na rua, como de costume. Por isso, Paul ficava sozinho.
Mrs. Morel gostava muito de ir à compras. No exíguo terreiro no cimo da colina onde se juntavam as quatro estradas vindas de Nottingham e Derby, Ilkeston e Mansfield, eram montadas muitas barracas. Chegavam breques das aldeias em redor. O mercado enchia-se de mulheres, as ruas ficavam apinhadas de homens. Mrs. Morel costumava discutir com a vendedeira de rendas, simpatizava com o homem da fruta, que era muito falador – mas a mulher, essa era uma desavergonhada, sempre a dar conversa ao peixeiro, que era um patife, mas muito espirituoso – metia na ordem o vendedor de linóleo, mostrava-se distante com o homem do bricabraque, e só entrava na barraca das loiças quando se sentia atraída – ou arrastada – pelas florinhas que decoravam algum prato ou alguma travessa. Mas, sempre que isso acontecia, mostrava-se delicadamente reservada.
– Estava aqui a pensar quanto poderia custar isto – dizia ela.
– Sete dinheiros, por ser para si.
– Obrigada.
Pousava de novo a travessa e ia-se embora. Mas não era capaz de deixar o mercado sem a levar. E lá ia ela outra vez ao sítio onde as loiças estavam expostas pelo chão, e olhava de soslaio para a travessa, furtivamente, fingindo que não estava a olhar.
Era uma mulher franzina, de chapéu e fato preto. O chapéu já tinha quase três anos, para vergonha e desespero de Annie.
– Mãe! – implorava ela. – Não ponhas mais esse chapéu horroroso.
– E queres que eu ponha o quê? – retorquia a mãe, com aspereza. – Acho que está até muito bom.
Começara por ser enfeitado com uma pala, depois seguiram-se flores, e agora estava reduzido a uma rendinha preta e um pouco de azeviche.
– Tem tão mau aspecto – dizia Paul. – Não lhe pode dar um ar um pouco mais moderno?
– Posso é dar-te umas boas palmadas, para não seres atrevido – disse Mrs. Morel, e atava as fitas do chapéu preto debaixo do queixo, com determinação.
Contemplou a travessa uma vez mais. Tanto ela como o oleiro se sentiam pouco à vontade, como se entre eles existisse qualquer desentendimento. De repente, o oleiro exclamou:
– Quer levá-la por cinco dinheiros?
Ela estremeceu. O coração apertou-se-lhe. Mas, depois, baixou-se e pegou na travessa.
– Fico com ela – disse ela.
– Faz-me esse favor, não é? – disse o homem. – O melhor é cuspir-lhe em cima, como se faz quando nos dão uma prenda.
Mrs. Morel deu-lhe os cinco dinheiros com frieza.
– Não acho que ma esteja a dar, percebe – disse ela. – Se não quisesse, não ma deixava levar por cinco dinheiros.
– Neste país de miséria, já nos podemos dar por muito felizes se pudermos dar as nossas coisas – resmungou o homem.
– Pois é, há tempos bons e maus – disse Mrs. Morel.
Mas já tinha perdoado ao oleiro. Agora, eram amigos. Já se atrevia a mexer nas loiças expostas e sentia-se feliz.
Paul estava à espera da mãe. Adorava vê-la entrar em casa. Chegava sempre radiante, triunfante, cansada, carregada de embrulhos, mas rica de espírito. Ele ouvia os seus passinhos leves na entrada e levantava os olhos das pinturas.
– Oh! – suspirava ela, sorrindo-lhe da soleira da porta.
– Ena pá, como vem carregada! – exclamava Paul, pousando o pincel.
– Se venho! – dizia ela, ofegante. – A marota da Annie disse que ia ter comigo. Olha para o peso que eu trago!
Pousou o saco e os pacotes em cima da mesa.
– O pão já está cozido? – perguntou, dirigindo-se para o forno.
– O último está a crescer – respondeu ele. – Não precisa de ir ver, eu não me esqueci dele.
– Ai, aquele oleiro! – disse ela, fechando a porta do forno. – Lembras-te de eu te dizer como ele era antipático. Bom, agora já não acho que seja assim tão mau.
– Ah, não?
O filho não tirava os olhos dela. Mrs. Morel tirou o chapelinho preto.
– Não... Acho que ele acaba por não ganhar nada... bem, passa-se o mesmo com toda a gente, nos tempos que correm... e é isso que o deixa mal-encarado.
– A mim deixava com certeza – disse Paul.
– Bom, e não seria para admirar... E ele deixou-me ficar esta... Por quanto é que achas que ele me deixou ficar isto?
Tirou a travessa do papel que a embrulhava e contemplou-a, satisfeita.
– Mostre lá! – pediu Paul.
E ficaram os dois lado a lado a admirar a travessa.
– Adoro ver estas florinhas a enfeitar as coisas – disse Paul.
– Eu também. E lembrei-me do bule que me compraste...
– Um xelim e três dinheiros – disse Paul.
– Cinco dinheiros!
– Foi muito barata, mãe.
– Pois foi. Pode dizer-se que foi quase roubada. Mas já tinha feito muitas extravagâncias e não tinha dinheiro para mais. E, se ele não quisesse, não precisava de ma vender.
– Lá isso, não, não precisava – disse Paul, e ficaram os dois a consolar-se mutuamente do receio de terem roubado o oleiro.
– Podemos usá-la para pôr fruta cozida – alvitrou Paul.
– Ou leite-creme... ou doce de fruta – acrescentou a mãe.
– Ou rabanetes e alface – continuou ele.
– Não te distraias com o pão – disse a mãe, numa voz transbordante de alegria.
Paul foi espreitar o pão e bateu-lhe ao de leve na parte de baixo.
– Já está cozido – disse, mostrando-o à mãe. Ela bateu-lhe também.
– Pois está – respondeu ela, começando a tirar as compras do saco. – Oh, sou uma gastadora, uma perdulária... Sei que um dia me vai fazer falta.
Paul foi a saltitar para junto da mãe, para ver as últimas extravagâncias. Ela abriu um outro embrulho em papel de jornal e pôs à mostra algumas raízes de amores-perfeitos e boninas carmesim.
– Quatro dinheiros! – lamentou-se.
– Que barato! – exclamou ele.
– Pois é, e logo esta semana que eu estava sem um tostão.
– Mas são lindas! – exclamou ele.
– Então não são! – exclamou ela, dando lugar ao mais genuíno contentamento. – Paul... olha para esta florinha amarela... que bonita, não é... e uma cara que parece de velho!
– E parece mesmo! – exclamou Paul, baixando-se para cheirar. – E que bem que cheira! Mas está um bocado suja.
Correu para a copa, voltou com um pano molhado, e lavou o amor-perfeito com todo o cuidado.
– Agora, olhe para ele, está todo molhado! – disse Paul.
– Pois está! – exclamou ela, a transbordar de felicidade.
As crianças de Scargill Street consideravam-se muito selectas. Ao fundo da rua, onde viviam os Morels, não havia muita gente nova, e, por isso, os que havia eram mais unidos. Rapazes e raparigas brincavam uns com os outros: as raparigas participavam nas lutas e jogos violentos dos rapazes, e os rapazes tomavam parte nas danças de roda e nos jogos de faz-de-conta das raparigas.
Annie, Paul e Arthur gostavam das noites de Inverno, quando não chovia. Deixavam-se ficar dentro de casa até os mineiros terem regressado todos, até ser noite fechada e a rua ficar deserta. Nessa altura, enrolavam um cachecol ao pescoço, pois prescindiam do casacão, tal como os outros filhos dos mineiros, e saíam de casa. A entrada da rua estava completamente às escuras daquele lado e a noite estendia-se vazia, com um pequeno emaranhado de luzinhas lá em baixo, na mina de Minton, e um outro bem mais longe, na direcção oposta, na de Selby. As luzes mais distantes pareciam prolongar as trevas para sempre. As crianças olhavam ansiosas para o lampião solitário postado ao fundo da rua, na extremidade da ladeira da encosta. Se o escasso espaço de luz estava deserto, os dois rapazes ficavam desolados. Encostavam-se ao candeeiro, de mãos nos bolsos e costas viradas à noite, aborrecidíssimos, a olharem para as casas às escuras. Nisto, avistaram um bibe por baixo de um casaquinho curto, e uma rapariga de pernas altas a correr para eles.
– Onde tão o Billy Pillins e a vossa Annie e o Eddie Dakin?
– Não sei.
Mas isso não tinha importância – agora já eram três, e punham-se a correr à volta do poste até os outros aparecerem a gritar. Daí em diante, era brincadeira a valer.
Existia apenas este candeeiro. Para trás dele, só a imensa concha de trevas que parecia conter a noite inteira. À sua frente, um caminho largo e escuro percorria a cumeada. De vez em quando, saía alguém desse caminho e dirigia-se para o vale, pelo carreiro, sendo tragado pela noite a uns escassos dez metros de distância. As crianças continuaram a brincar.
Eram excessivamente unidas devido ao isolamento em que viviam. Mas, se se zangavam, a brincadeira ficava completamente estragada. Arthur era muito susceptível, e Billy Pillins, ou melhor, Philips, era-o ainda mais. Paul tinha de tomar o partido de Arthur, e a Paul juntava-se Alice, enquanto Billy Pillins contava sempre com o apoio de Emmie Limb e Eddie Dakin. Depois, envolviam-se os seis à bulha, odiando-se com toda a fúria do mais genuíno ódio, e corriam para casa apavorados. Paul nunca se havia de esquecer de ter visto uma noite, depois de uma destas assanhadas lutas fratricidas, uma grande lua vermelha elevar-se lentamente no céu por cima da estrada deserta da cumeada, sem vacilar, como pássaro gigantesco; e a imagem bíblica que o assaltou, da lua a transformar-se em sangue. No dia seguinte, apressou-se a ir fazer as pazes com Billy Pillins, e as desenfreadas brincadeiras retomaram o seu curso à luz do candeeiro solitário, rodeadas da mais negra escuridão. Mrs. Morel, ao entrar na sala, ouvia as crianças a cantar ao longe:
«Uso sapatos de couro espanhol,
Meias de seda, para meu deleite;
Anéis nos dedos, que brilham ao sol,
E só tomo banho em tinas de leite.»
Pareciam tão absorvidas no jogo, pelo som das suas vozes que penetrava as trevas, que dir-se-ia o canto de criaturas selvagens. A mãe estremecia e entendia-os quando voltavam às oito horas, afogueados, de olhos brilhantes e língua solta e vibrante.
Todos eles gostavam desta casa de Scargill Street pela sua largueza de horizontes, pela sua abertura sobre a concha de mundo que dominava. Nas noites de Verão, as mulheres vinham arrimar-se à cerca da encosta, a conversar, viradas para poente, vendo o sol apagar-se num lampejo e espraiando o olhar até aos montes do Derbyshire, recortados ao longe num céu de carmim, como a crista negra de uma salamandra.
Neste Verão, as minas não estavam a trabalhar em pleno, especialmente as de carvão mole. Mrs. Dakin, que morava ao lado de Mrs. Morel, costumava ficar a ver os homens subirem a encosta lentamente sempre que se assomava à cerca para sacudir o tapete. Viu logo que eram mineiros e ficou à espera lá em cima, alcandorada na colina, alta, magra, olhar astuto e penetrante, uma quase ameaça para os pobres mineiros que a custo trepavam a ladeira. Eram apenas onze horas. A neblina que, como fino crepe negro, cobre o horizonte das manhãs estivais não se tinha ainda dissipado sobre as colinas frondosas desenhadas à distância. O primeiro homem alcançou a cancela, que chiou à sua passagem.
– O quê, mandaram-no embora? – gritou Mrs. Dakin.
– Mandaram, sim senhora.
– É uma pena deixarem-nos vir embora – disse ela, sarcástica.
– Lá isso é – respondeu o homem.
– E não apetece nada voltar para casa agora – disse ela.
O homem seguiu o seu caminho. Quando Mrs. Dakin atravessava o quintal, de volta a casa, avistou Mrs. Morel, que ia despejar as cinzas da lareira.
– Acho que Minton fechou, Mrs. Morel – gritou ela.
– É uma vergonha! – exclamou Mrs. Morel indignada.
– Pois é... Vi mesmo agora o Jont Hutchly.
– Bem podiam ter poupado as solas dos sapatos – disse Mrs. Morel, e voltaram as duas para casa indignadas.
Os mineiros, de caras quase limpas, voltavam para casa. Morel detestava ter de se vir embora. Adorava as manhãs soalheiras, mas ir para a mina e mandarem-no embora logo a seguir estragava-lhe a boa disposição.
– Santo Deus... já? – exclamou a mulher, vendo-o entrar.
– Qu’hei-d’eu fazer, mulher! – berrou ele.
– E eu não tenho comida que chegue.
– Num faz mal, como o farnel que levei – vociferou ele, pateticamente. Sentia-se envergonhado e irritado.
Os filhos, quando chegaram da escola, estranharam ver o pai a comer as duas grossas fatias de pão com manteiga que tinha levado para a mina, já muito secas e sujas.
– Porque é que o meu pai tem de comer o farnel aqui em casa? – perguntou Arthur.
– Porqu’ela ficava toda zangada s’eu num o comesse – respondeu Morel.
– Lá estás tu com histórias! – exclamou a mulher.
– E achas qu’é pra deitar fora? – disse Morel. – Eu num sou esquisito como vocês, que desperdiçam tudo. Se me cai um bocado de pão na mina, no meio daquela porcaria toda, apanho-o e como-o.
– Os ratos comiam-no – disse Paul – e já não era um desperdício.
– Pão cum manteiga pròs ratos? Nem pensar nisso – disse Morel. – Sujo ou limpo, antes comê-lo eu que deitá-lo fora.
– Podias dá-lo aos ratos e comprares mais com o dinheiro que gastas na cerveja – disse Mrs. Morel.
– Ah, podia...? – exclamou o marido.
O Outono que se seguiu foi de míngua. William tinha acabado de partir para Londres e a mãe sentia a falta do dinheiro que ele lhe costumava entregar. Ainda lhe mandou dez xelins por uma ou duas vezes, mas no início tinha muitas compras a fazer. As suas cartas chegavam com regularidade, uma vez por semana. Escrevia longas cartas à mãe em que lhe contava o que fazia, os amigos que tinha, as lições que trocava com um francês, como gostava de viver em Londres. Para a mãe era como se ele estivesse com ela, como no tempo em que morava em casa. E ele todas as semanas lhe escrevia cartas francas e cheias de espírito. Era nele que ela pensava o dia inteiro, enquanto fazia a limpeza da casa. Ele estava em Londres, ia ter sorte. Era quase como se fosse o seu cavaleiro andante, ostentando as cores dela na batalha.
Vinha agora a casa passar cinco dias pelo Natal. Não havia memória de tantos preparativos. Paul e Arthur correram os campos à procura de azevinho e sempre-viva. Annie fez enfeites de papel recortado à moda antiga, e a despensa estava farta como nunca. Mrs. Morel fez um bolo de natal enorme, magnífico, e sentindo-se uma rainha, mostrou a Paul como se pelavam amêndoas. Ele pelou as oleaginosas com reverência, contando-as, uma a uma, não fosse alguma perder-se. Dizia-se que as claras subiam mais num lugar frio e, por isso, Paul foi para a copa, onde o frio era quase insuportável, batendo-as sem parar e correndo excitadíssimo a mostrar a mãe como as claras cresciam, cada vez mais firmes e nevadas.
– Olhe, mãe... estão óptimas, não estão?
Depois, pôs um bocadinho na ponta do nariz e soprou-o para o ar.
– Então, isso não é para estragar – disse a mãe.
Toda a gente andava excitadíssima. William ia chegar na véspera de Natal. Mrs. Morel passou revista à despensa. Havia um grande bolo de passas e um bolo de farinha de arroz; tartes de geleia e de limão, e duas grandes travessas cheias de empadas de carne. E ainda faltavam umas tartes de amêndoa e de queijo que ela preparava a toda a pressa. A casa estava toda enfeitada. A coroa de azevinho, salpicada de bagas bem vermelhas e pendurada entre grinaldas cintilantes, rodopiava por cima da cabeça de Mrs. Morel enquanto ela recortava a massa das tartes na cozinha. A fogueira, imensa, crepitava. A casa rescendia a bolos e massa folhada. William devia chegar às sete horas, mas o mais provável era atrasar-se. Os irmãos tinham ido ao seu encontro. A mãe ficara sozinha. Mas, por volta de um quarto para as sete, Morel voltou para casa. Marido e mulher nada disseram. Ele sentou-se no cadeirão, ansioso, sem saber o que fazer, e ela continuou com os seus cozinhados. A sua comoção só era traída pelo modo meticuloso como ia fazendo as coisas. E o relógio continuou a bater.
– A que horas disseste qu’ele chegava? – perguntou Morel, pela quinta vez.
– O comboio chega às seis e meia – respondeu ela, enfaticamente.
– Então vai chegar por volta das sete e dez.
– Deus te oiça, mas o comboio vai atrasar-se algumas horas no Midlands – disse ela, aparentando indiferença. Fazia-o, no entanto, com a esperança de acontecer o contrário e ele chegar mais cedo. Morel foi até à porta, para ver se o via. Depois voltou para dentro.
– Credo, homem! – disse ela. – Parece que tens bicho-carpinteiro.
– Em vez de estares pr’aí a falar, num era melhor arranjares-lhe alguma coisa para comer? – disse o marido.
– Tenho muito tempo para isso – respondeu ela.
– Num é o que me parece – contrapôs ele, virando-se amuado na cadeira. Ela começou a limpar a mesa da cozinha. A chaleira já apitava. E eles à espera.
Entretanto, os outros três filhos estavam em Lethley Bridge, uma estação da linha do Midlands, a duas milhas de casa. Esperaram uma hora. Chegou um comboio, e nada. Ao fundo da linha, as luzes verdes e vermelhas acendiam e apagavam. Estava muito escuro e fazia muito frio.
– Vai perguntar-lhe se o comboio de Londres já passou – disse Paul a Annie quando avistaram um homem de boné de pala.
– Não vou nada – disse Annie. – Fica mas é calado, senão ele inda nos manda embora.
Mas Paul estava morto por que o homem soubesse que eles esperavam alguém que vinha de Londres, o que lhes dava uma certa importância. Porém, tinha medo, muito medo, de abordar um desconhecido, e ainda por cima de boné de pala. As crianças nem se atreviam a entrar na sala de espera, com medo de que os mandassem embora, e que alguma coisa acontecesse enquanto não estavam na plataforma. E lá continuaram à espera, no frio e na escuridão.
– Já está hora e meia atrasado – disse Arthur, já a desesperar.
– Bem – disse Annie –, é véspera de Natal.
O silêncio crescia entre eles. O irmão não vinha. Perscrutaram a escuridão ao longo da linha férrea. Lá ao fundo, ficava Londres! Uma lonjura infinita, pensaram. Tudo podia acontecer quando se vinha de Londres. Estavam demasiado preocupados para falarem. Enregelados, tristes e mudos, continuavam encostados uns aos outros na plataforma.
Finalmente, passadas mais de duas horas, avistaram os faróis de uma locomotiva a descrever uma curva na distância. Um bagageiro aproximou-se a correr. As crianças chegaram-se para trás com os corações a galope. Um enorme comboio com destino a Manchester parou. Abriram-se duas portas e, de uma delas, saiu William. Os irmãos atiraram-se a ele. Ele, todo contente, entregou-lhes muitos embrulhos e logo explicou que aquele grande comboio só tinha parado numa estação insignificante como Lethley Bridge por causa dele, já que a paragem não estava programada.
Entretanto, os pais iam ficando cada vez mais preocupados. A mesa estava posta, a costeleta grelhada, tudo estava a postos. Mrs. Morel pôs o seu avental preto. Por baixo, tinha o seu melhor vestido. Depois sentou-se e fingiu concentrar-se na leitura. Os minutos arrastavam-se como uma tortura.
– Hum! – disse Morel. – Já passa hora e meia.
– E aquelas crianças à espera! – disse ela.
– O comboio inda num pode ter chegado – disse ele.
– É o que eu digo. Na véspera de Natal vêm com horas de atraso.
Estavam os dois implicativos de tanta ansiedade. O freixo gemia lá fora fustigado por um vento gélido, implacável. E tanta noite a separar Londres do lar! Mrs. Morel sofria. O tiquetaque do relógio irritava-a sobremaneira. Estava a fazer-se tarde. A espera estava a tornar-se insuportável.
Por fim, o ruído de vozes e de passos na entrada.
– Já chegou! – gritou Morel, saltando da cadeira.
Depois, deu um passo à retaguarda. A mãe correu em direcção à porta e ficou à espera. Seguiu-se um tropel de passos, a porta escancarou-se e William apareceu. Largou no chão o saco de viagem e abraçou-se à mãe.
– Mater! – disse ele.
– Meu filho! – gritou ela.
E, durante não mais de dois segundos, ela abraçou-o e beijou-o. Depois, afastou-se e disse, com a naturalidade possível:
– Mas que grande atraso!
– Foi, não foi? – exclamou ele, voltando-se para o pai.
– Então, pai!
E os dois homens trocaram um aperto de mão.
– Então, meu rapaz!
Os olhos de Morel estavam rasos de lágrimas.
– Távamos a ver que nunca mais chegavas – disse ele.
– Então não havia de chegar! – exclamou William, voltando-se para mãe.
– Estás com óptimo aspecto – disse Mrs. Morel, a rir, toda orgulhosa.
– Claro... – respondeu o filho. – Basta ter voltado para casa.
Era um jovem desempenado, alto, garboso e de olhar intrépido. Olhou em volta, para a sempre-viva e o azevinho, e para as empadas que estavam dentro das forminhas em cima do fogão.
– Graças a Deus que nada mudou, mãe – disse ele, satisfeito. Todos ficaram calados por um momento. De repente, ele deu um salto em frente, tirou uma empadinha do fogão e meteu-a na boca de uma só vez.
– Safa, já alguma vez viram um saco roto como este? – exclamou o pai.
William trazia um nunca mais acabar de presentes para todos. Gastara quanto tinha para os comprar. A casa foi invadida por uma certa atmosfera de luxo e prosperidade. Para a mãe, uma sombrinha com o cabo beige com enfeites dourados. Ela guardou-a para quando morresse, e antes queria perder tudo o que tinha a ficar sem ela. Todos receberam coisas bonitas e, além disso, ele trouxe também montes de guloseimas desconhecidas naquelas paragens: geleias de frutos, ananás cristalizado, coisas que as crianças pensavam que só o esplendor de Londres tornava possíveis. E Paul não se calava de gabar tais guloseimas diante dos amigos.
– Ananás autêntico, às fatias, e transformado em cristal... bem bom!
Todos estavam loucos de felicidade. Não há nada que chegue ao próprio lar, e eles amavam-no com paixão, apesar dos maus bocados lá passados. Chegavam visitas, todos vinham dar-lhe os parabéns. Os vizinhos vinham ver o que Londres tinha feito de William e todos achavam que ele estava «um verdadeiro cavalheiro, e um belo rapaz, isso é que estava!».
Quando ele se foi embora outra vez, os irmãos foram chorar às escondidas para sítios diferentes, Morel foi meter-se na cama abatidíssimo e Mrs. Morel sentia-se como se estivesse drogada, como se os seus sentimentos tivessem paralisado. Amava o filho com verdadeira paixão.
William trabalhava no escritório de um advogado ligado a uma grande companhia de navegação e, em Junho, o chefe proporcionou-lhe uma viagem ao Mediterrâneo num dos barcos da companhia, por um preço irrisório. Mrs. Morel mandou-lhe dizer: «Vai, sim, meu filho. Podes não voltar a ter uma oportunidade como essa, e, para mim, ver-te a navegar no Mediterrâneo é talvez ainda melhor do que ter-te aqui em casa.» Mas William veio passar as duas semanas de férias a casa. Nem o Mediterrâneo, apelando embora a toda a sua ânsia de viajar e ao seu deslumbramento de homem pobre diante da opulência do Sul, podiam mantê-lo longe de casa. E isso era para a mãe compensação bastante para todos os sacrifícios.
V
PAUL ENFRENTA A VIDA
MOREL era um homem negligente, indiferente ao perigo, sofrendo por isso inúmeros acidentes. De tal forma que, quando Mrs. Morel ouvia chiar as rodas de uma carroça de transporte de carvão, estacando à sua porta, corria logo para a janela da sala à espera de ver o marido lá sentado, com o rosto macilento por baixo da camada de fuligem, e o corpo inerte, vítima de qualquer contusão ou outro percalço. Se era ele, saía de casa a correr para o ajudar.
Cerca de um ano após William ter ido para Londres, e logo depois de Paul ter saído da escola, mas quando ainda não tinha arranjado trabalho, estava Mrs. Morel no andar de cima e o filho na cozinha, entretido a pintar – fazia maravilhas com os pincéis – quando bateram à porta. Enfadado, Paul pousou o pincel para ir abrir. Simultaneamente, a mãe abriu a janela e espreitou para a rua.
Era um mineiro, um rapazito, que batia à porta.
– É aqui que mora o Walter Morel? – perguntou.
– É, sim! – respondeu Mrs. Morel. – Aconteceu alguma coisa?
Mas ela já tinha adivinhado.
– O seu marido aleijou-se – disse o rapaz.
– Oh, meu Deus! – exclamou ela. – Quando não acontece nada é que é para admirar. O que foi desta vez?
– Num sei bem, mas foi na perna... Levaram-no prò hospital.
– Valha-me Deus! – exclamou ela. – Ah, este homem... este homem...! Não me dá cinco minutos de descanso, eu morra aqui se não é verdade! O polegar já estava quase bom e agora... Tu viste-o?
– Vi-o lá ’baixo. E vi-os trazerem-no pra cima num elevador... tava branco cum’á cal. E o qu’ele berrou quando o Dr. Fraser o examinou na casa das lanternas... sempre aos berros e a praguejar... e a dizer que queria qu’o trouxessem pra casa... que num ia prò hospital...! E o rapaz calou-se.
– Isso é bem dele... quer vir para casa, para me dar trabalho... Obrigada, meu filho... Que cansada que eu estou de tudo isto... cansada e farta... isso é que eu estou!
Desceu as escadas. Paul tinha recomeçado a pintar, mecanicamente.
– Deve ser grave... para o levarem para o hospital... – continuou ela. – Mas que criatura mais descuidada! Os outros homens não podem ter assim tantos acidentes... É isso, ele queria deitar o trabalho todo para cima das minhas costas... E logo agora, que as coisas estavam finalmente a correr um bocadinho melhor... Vá, deixa isso, agora não há tempo para pinturas... A que horas tenho comboio? Agora vou ter de ir até Kreston... o quarto tem de esperar.
– Eu acabo de o arrumar – disse Paul.
– Não precisas... às sete horas estou de volta, acho eu... E o barulho que ele vai fazer... nem quero pensar... E aqueles calhaus de granito de Tinder Hill... ele bem pode chamar-lhes pedrinhas... os solavancos vão dar cabo dele. Não sei porque não consertam a estrada... naquele estado... e com tanta gente a passar por lá na ambulância... Devia haver aqui um hospital... Já compraram o terreno... e não iam faltar acidentes para o manter a funcionar. Mas não, têm de os levar não sei quantas milhas naquela ambulância ronceira até Nottingham. É uma vergonha! E o estardalhaço que ele vai fazer, já sei como é! Quem terá ido com ele?... O Barker, provavelmente. Coitado, vai desejar estar em qualquer lado menos ali. Mas vai cuidar bem dele, eu sei. E agora sei lá quanto tempo ele vai ficar naquele hospital... e ele que detesta! Enfim, se for só a perna, já não é mau.
Ia falando enquanto se preparava para sair. Despindo o corpete à pressa, baixou-se para a caldeira, enquanto a água corria lentamente para o jarro.
– Era bem melhor se esta caldeira não existisse! – exclamou ela, apertando a asa do jarro com impaciência. Tinha uns braços fortes e bem torneados, surpreendentes numa mulher da sua estatura.
Paul arrumou as suas tralhas, pôs a chaleira ao lume e pôs a mesa.
– Só há um comboio às quatro e vinte – disse ele. – Tem tempo de sobra.
– Não tenho, não! – gritou ela, piscando os olhos e fitando-o por cima da toalha, enquanto limpava a cara.
– Tem, sim... Tem pelo menos de beber uma chávena de chá. Quer que vá consigo até Keston?
– Vires comigo para quê, pode saber-se?... Ora deixa cá ver o que é que eu tenho de lhe levar... Valha-me Deus!... A camisa lavada... e é uma sorte estar lavada... mas ficava melhor se a tivesse posto ao ar... as meias... isso ele não vai querer... e uma toalha, acho eu... e lenços... e que mais?
– Um pente, uma faca, um garfo e uma colher – disse Paul. Já não era a primeira vez que o pai ficava internado no hospital.
– Sabe Deus em que estado ele tinha os pés – continuou Mrs. Morel, penteando o cabelo castanho e muito comprido, fino como seda e já salpicado de fios prateados. – Ele nunca se esquece de se lavar da cintura para cima, mas para baixo acha que já não é preciso. Mas devem apanhar lá muitos como ele.
Paul tinha posto a mesa e preparou duas fatias finas de pão com manteiga para a mãe.
– Aqui tem – disse, pondo uma chávena de chá em frente ao lugar dela.
– Agora não tenho tempo – disse ela, secamente.
– Mas tem de ter... Olhe, já está tudo pronto – insistiu o filho.
Ela acabou por se sentar, bebeu uns golinhos de chá e comeu um pouco de pão em silêncio. Estava a pensar.
Daí a nada, tinha de se ir embora, para percorrer a pé as duas milhas e meia até à estação de Keston. Já tinha metido no saco de rede tudo o que ele precisava. Paul ficou a vê-la subir a estrada, entre as sebes de arbustos, pequenina e franzina, e o seu coração sofria por ela, por vê-la sujeita a mais esta provação. E ela, correndo ligeira de tanta ansiedade, sentia atrás de si o coração do filho a acompanhá-la, a tomar para si a parte possível deste fardo, a dar-lhe forças. E, quando chegou ao hospital, pensou: «Ele vai ficar preocupadíssimo quando eu lhe disser que é assim tão grave... o melhor é ter cuidado.» E, de regresso a casa, sentia que tinha com quem partilhar o fardo.
– É grave? – perguntou Paul, mal a viu entrar.
– Mais ou menos – respondeu ela.
– O quê?
Ela suspirou, sentou-se e desapertou as fitas do chapéu. O filho viu-a levantar o queixo e desatar a laçada com os dedos pequeninos, mas endurecidos pelo trabalho.
– Bem – respondeu ela – não se pode dizer que seja perigoso... mas a enfermeira diz que foi uma pancada horrível. Estás a ver... foi um grande bocado de rocha que lhe caiu em cima da perna... aqui, salvo seja... uma fractura múltipla... e tem bocados de osso a sair para fora...
– Ui, que horror! – exclamaram os filhos.
– E claro que ele diz que vai morrer – continuou Mrs. Morel. – É mesmo dele dizer isso... «Estou arrumado, cachopa!», disse ele, olhando para mim. «Não digas disparates», disse eu. «Não vais morrer de uma perna partida, por pior que esteja»... «Só saio daqui num caixão», queixava-se ele. «Bem!», disse eu, «Se queres que eles te levem a passear ao jardim dentro dum caixão, quando estiveres melhor, é só pedires e eles fazem-te a vontade»... «Se acharmos que lhe vai fazer bem», acrescentou a Irmã. Ela é bem simpática, a Irmã, mas muito rigorosa.
Mrs. Morel tirou o chapéu. Os filhos mantiveram-se em silêncio, expectantes.
– Claro que ele está mal – prosseguiu ela. – E vai levar muito tempo a recompor-se. Foi um acidente muito grave e ele perdeu muito sangue... e, já se vê, a lesão é muito perigosa. Ninguém sabe o tempo que vai levar a sarar. E depois há a febre e a gangrena... se correr mal, ele até pode morrer... Mas lá no hospital... e depois ele tem bom sangue... e boa carnadura... Por isso não vejo razão para que tenha de correr mal... Claro que a ferida é muito grande...
Ela estava lívida, da angústia e da emoção. Os três filhos perceberam que o estado do pai era muito grave e a casa ficou silenciosa, perpassada de ansiedade.
– Mas ele melhora sempre – disse Paul, passado um bocado.
– Foi exactamente o que eu lhe disse – exclamou a mãe.
Todos se moviam de um lado para o outro sem fazerem o menor ruído.
– Ele de facto parecia que estava a morrer – disse Mrs. Morel. – Mas a Irmã diz que é das dores.
Annie foi arrumar o casaco e o chapéu da mãe.
– Ficou a olhar para mim quando eu me vim embora...! Eu disse: «Agora tenho de ir, Walter, por causa do comboio... e das crianças...» E ele ficou a olhar para mim... Custou-me tanto...
Paul pegou outra vez no pincel e continuou a pintar. Arthur foi lá fora buscar mais carvão. Annie ficou sentada, muito triste. E Mrs. Morel continuou imóvel, pensativa, na cadeira de baloiço que o marido lhe fizera, quando esperavam o primeiro filho. Estava triste e com muita pena de ver um homem sofrer tanto. Mas, mesmo assim, no fundo do coração, onde a chama do amor devia arder, tinha um vazio. No momento em que toda a sua compaixão de mulher estava exacerbada ao máximo, em que cuidaria dele dia e noite até cair para o lado, em que, se pudesse, de bom grado tomaria as suas dores, algures, num recôndito da alma, era indiferença que encontrava, por ele e pelo seu sofrimento. A dor que sentia vinha sobretudo desta incapacidade de o amar, mesmo quando ele despertava nela as mais fortes emoções. E assim se deixou ficar, pensativa, por um tempo.
– E nisto – disse ela de repente –, quando já ia a meio do caminho, vi que tinha saído com as botas de andar por casa... olhem para isto... – Era um par de botas velhas de Paul, castanhas e com as biqueiras muito gastas. – Nem sabia onde me havia de meter com a vergonha – acrescentou.
Na manhã seguinte, quando Annie e Arthur estavam na escola, Mrs. Morel conversou mais com Paul enquanto ele andava a ajudá-la a arrumar a casa.
– Encontrei o Barker no hospital. Não parecia muito atrapalhado, coitado. «Então», disse eu, «como correu a viagem?» «Num me pregunte, ’nha senhora!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «Eu sei como ele é.» «Mas foi muito custoso pra ele, Mrs. Morel, iss’é que foi!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «A cada safanão, eu inté pensava qu’o coração m’ia saltar pela boca», disse ele. «E os gritos qu’ele dav’às vezes, ’nha senhora... nem que me paguem uma fortuna, me quero ver noutra igual.» «Entendo perfeitamente», disse eu. «A coisa tá feia a valer», disse ele, «e vai levar muito tempo pra ficar bom.» «Também acho que sim», disse eu. Eu gosto de Mr. Barker... gosto mesmo. É um homem e tanto.
Paul continuava a pintar em silêncio.
– E já se sabe – continuou Mrs. Morel –, para um homem como o teu pai é muito duro estar no hospital. Para ele não há normas nem obrigações. E não deixa que ninguém lhe toque, a não ser que não tenha outro remédio. Quando esmagou os músculos da coxa, e tinha de mudar o penso quatro vezes por dia, ele deixava mais alguém mudar-lho a não ser eu ou a mãe dele?... Nem pensar nisso. Claro que agora vai sofrer no hospital, com todas aquelas enfermeiras... Não me agradou nada ter de o deixar lá ficar. Foi um dó de alma quando tive de lhe dar um beijo e vir-me embora...
Mrs. Morel falava com o filho quase como se estivesse a pensar em voz alta para ele ouvir, e ele colaborava o melhor que podia, partilhando com ela o sofrimento, para a aliviar. Afinal, mesmo sem saber, ela partilhava quase tudo com ele.
Morel passou muito mal. Durante uma semana o seu estado foi crítico. Depois, começou a melhorar e, quando souberam que o mau tempo tinha passado, toda a família respirou de alívio e a vida seguiu feliz.
Não passaram grandes dificuldades enquanto Morel esteve internado. Recebiam catorze xelins por semana da mina, dez da assistência aos enfermos, e cinco do Fundo de Invalidez. Além disso, os capatazes traziam todas as semanas qualquer coisa a Mrs. Morel, cinco ou sete xelins, pelo que ela vivia com bastante desafogo. E enquanto Morel ia melhorando no hospital, em casa a família vivia em paz e alegria. Aos sábados e quartas-feiras, Mrs. Morel ia visitar o marido a Nottingham. No regresso trazia sempre qualquer lembrança para os filhos: um tubo de guache para Paul, outras vezes papel cavalinho; postais para Annie, de que toda a família usufruía durante dois ou três dias antes de a deixarem enviá-los a alguém; ou então uma serra para Arthur, ou um belo bocado de madeira. E depois contava animadamente as suas aventuras nos grandes armazéns. Não tardou que os empregados da loja de gravuras a ficassem a conhecer e soubessem tudo sobre Paul. A rapariga da livraria simpatizava até muito com ela. Mrs. Morel tinha histórias sem fim para contar quando voltava de Nottingham. Ficavam os três sentados até à hora de irem para a cama a ouvirem-na contar histórias, a meterem a sua colherada, a conversarem. Depois, era geralmente Paul quem abafava o borralho.
– Agora, sou o homem da casa – dizia ele à mãe, todo ufano. Descobriram como o lar podia ser um lugar de perfeita tranquilidade e, embora nenhum deles ousasse admitir tal desumanidade, quase lamentaram quando souberam que o pai não tardaria a voltar para casa.
Paul tinha agora catorze anos e andava à procura de um emprego. Era um rapaz baixo e franzino, de cabelo castanho-escuro e olhos azul-claros. O seu rosto já tinha perdido os traços arredondados da infância e parecia-se agora com o de William, mais duro, quase austero, e com extraordinária mobilidade. Em geral, parecia estar sempre atento, cheio de vida e de ternura; umas vezes, o seu sorriso, igualzinho ao da mãe, abria-se pronto e encantador; outras, quando algum obstáculo lhe travava o passo ao espírito, a expressão do seu rosto adquiria fealdade e estupidez. Era um daqueles rapazes que se portam como palhaços desajeitados quando não são compreendidos ou sentem que não lhes dão o justo valor, mas que, com igual rapidez se transformam em criaturas adoráveis à primeira prova de ternura.
O primeiro contacto com as coisas era sempre penoso para ele. Aos sete anos tivera de se sujeitar à tortura de entrar para a escola. Mas depois até gostava. E agora, sentindo que era chegada a hora de enfrentar a vida, atravessava crises de avassaladora timidez. Pintava com bastante talento e inteligência para a sua idade, e sabia um pouco de francês, alemão e matemática, coisas que Mr. Heaton lhe havia ensinado. Como a mãe dizia, não era suficientemente forte para o trabalho manual, e também não se interessava por fazer coisas com as suas próprias mãos, preferindo correr, passear pelos campos, ler ou pintar.
– Que queres ser na vida? – perguntava-lhe a mãe.
Não fazia a menor ideia. Teria gostado de continuar a pintar, mas isso nem lhe passou pela cabeça, pois era impossível. Não havia nada que lhe interessasse muito fazer. Mas agora era urgente que começasse a ganhar dinheiro. E, uma vez que não achava que o seu trabalho valesse muito em termos monetários, e sabia que um homem ganhava em qualquer emprego trinta ou trinta e cinco xelins por semana, respondia invariavelmente:
– Qualquer coisa.
– Isso não é resposta – dizia Mrs. Morel.
Mas era a única resposta verdadeira que ele podia dar. As suas ambições, em termos materiais, eram ganhar tranquilamente os seus trinta ou trinta e cinco xelins por semana algures perto de casa, e depois, quando o pai morresse, ter uma casinha no campo, onde viveria com a mãe feliz para sempre, a pintar e a passear o quanto lhe apetecesse. Por agora, era este o seu programa. Tinha-se porém em grande conta, julgando as outras pessoas em relação a si próprio e classificando-as impiedosamente. Às vezes, pensava que talvez pudesse vir a ser um pintor a sério, mas por enquanto não queria alimentar tal sonho.
– Então tens de procurar nos anúncios do jornal – disse a mãe.
Paul ficou a olhar para ela. Parecia-lhe nova humilhação e mais uma tortura a suportar. Mas não disse nada. Desde manhãzinha só tinha um pensamento a martelar-lhe na cabeça: «Tenho de ir ver os anúncios de empregos.»
Este pensamento ensombrava-lhe a manhã e matava-lhe a alegria de viver. Sentia o coração apertar-se-lhe num nó.
Por fim, às dez horas, lá foi ele. As pessoas consideravam-no um rapaz envergonhado, reservado. Ao subir a rua ensolarada, tinha a sensação de que todos os que encontrava iam pensar: «Lá vai ele para a sala de leitura da Cooperativa, para procurar um emprego no jornal. Não consegue arranjar nada. Acho que está a viver à custa da mãe.» Lá chegado, subiu furtivamente a escadaria de pedra por detrás da loja de tecidos e espreitou para a sala de leitura. Geralmente havia por lá uma ou duas pessoas: velhos desocupados, já sem préstimo, ou mineiros «de baixa». Entrou muito retraído, e ficou deveras aflito quando eles levantaram a cabeça; sentou-se à mesa e fingiu estar a passar os olhos pelas notícias. Sabia no que eles estavam a pensar: «O que fará um miúdo de treze anos numa sala de leitura, agarrado a um jornal?» E isso magoava-o.
Depois, pôs-se a olhar lá para fora, pensativo. E sentia-se já presa do industrialismo. Por cima do velho muro fronteiriço de tijolo vermelho grandes girassóis miravam divertidos as mulheres que passavam apressadas, levando qualquer coisa para o almoço. O vale estava coberto de searas radiantes batidas pelo sol. Lá no meio, duas minas agitavam os seus finos penachos de vapor. Nas encostas distantes avistavam-se as florestas de Aldersley, tão cerradas e fascinantes. E logo o coração lhe esmoreceu. Sentia-se aprisionado. Chegara ao fim a vida em liberdade naquele vale que tanto amava.
A carroça da cerveja vinha de Keston estrada acima, carregada de barris – quatro de cada lado – apertados que nem feijões numa vagem. O carroceiro, encarrapitado no seu trono e oscilando pesadamente no assento, não passou a grande distância dos olhos de Paul. O cabelo do homem, de cabeça pequena e fusiforme, estava quase todo branco, descorado pelo sol, e nos braços grossos e avermelhados, balouçando lassamente sobre o avental de estopa, cintilavam pêlos também brancos. A face afogueada reluzia, quase adormecida de tanto sol. Os cavalos, castanhos e elegantes, seguiam a seu bel-prazer, mostrando serem eles os senhores da situação.
Paul queria ser estúpido. «Quem me dera», pensou de si para si, «ser gordo como ele e passar a vida estirado ao sol como um cão. Quem me dera ser um porco e condutor duma carroça de cerveja.»
Depois, vendo a sala finalmente vazia, copiou rapidamente um anúncio para um bocado de papel, e depois outro, e saiu à socapa, sentindo-se imensamente aliviado. A mãe examinou os anúncios.
– Sim – disse ela. – Podes tentar.
William tinha mandado uma carta admiravelmente redigida em linguagem comercial e Paul copiou-a com algumas alterações. A caligrafia do rapaz era execrável, pelo que William, que fazia tudo bem feito, fervia de impaciência.
O irmão mais velho estava a ficar muito pretensioso, ao descobrir que em Londres se podia dar com homens de uma classe muito superior à dos seus amigos de Bestwood. Alguns dos seus colegas do escritório tinham estudado leis e estavam a fazer uma espécie de estágio. William, dado o seu feitio extrovertido, fazia sempre amigos por onde passava e não tardou que começasse a frequentar a casa de pessoas que, em Bestwood, teriam olhado com desdém para o inacessível gerente do banco local e tratado com indiferença o próprio pastor. Começou, por isso, a achar-se um homem importante e até se admirava da facilidade com que se tinha tornado um cavalheiro.
As cartas que escrevia à mãe ilustravam bem a satisfação que sentia.
«The Myrmidons
Limpsfield
Mater querida,
É uma da manhã. Imagine o seu filho a escrever-lhe sentado numa velha cadeira de carvalho, com um candeeiro eléctrico dos mais modernos à frente dele, em cima da mesa. Vestido a rigor, com os botões de punho que lhe ofereceu quando fez 21 anos e achando-se o melhor do mundo. Só queria que a mãe o pudesse ver. Em comparação, Salomão, em toda a sua glória, deve ter-se sentido mal vestido.
Estou a passar o fim-de-semana com o Loosemore, e aproveitei a oportunidade para lhe escrever. ...»
A mãe ficou contente de o ver tão satisfeito. O seu quarto em Walthamstow era tão deprimente. Mas agora as cartas do filho deixavam transparecer uma súbita febre de viver. Afectado por tantas e tão súbitas mudanças, não tinha os pés assentes na terra, e parecia deixar-se arrastar vertiginosamente pelo turbilhão da sua nova vida. A mãe temia por ele. Sentia que ele se estava a perder. Tinha ido a um baile, ido ao teatro, andado de barco no rio, saído com os amigos; mas ela sabia que, depois, tinha ficado até altas horas acordado no quarto gélido a estudar latim, pois queria subir no escritório e estudar leis o mais depressa possível. Agora, nunca mandava dinheiro à mãe. A sua nova vida levava-lhe o pouco que ganhava. Ela também não queria que ele lho mandasse, excepto às vezes, quando as dificuldades eram maiores e dez xelins teriam sido o suficiente para a tirar de apuros. Mas continuava a sonhar com o que o filho faria com ela a apoiá-lo. Nem por um segundo seria capaz de admitir toda a angústia que passava por causa dele.
Entretanto, William começara a falar muito numa rapariga que tinha conhecido num baile, uma morena muito bonita e muito nova, uma verdadeira senhora, por quem todos os homens andavam perdidos de amor.
«Duvido que te perdesses por ela, meu filho, se não visses todos os outros perdidos também. As multidões fazem-nos sentir seguros e vaidosos. Mas tem cuidado, e pensa como te sentirás quando te vires sozinho e triunfante...»
William ficou ofendido com os reparos da mãe e não desistiu dos seus intentos. Tinha levado a rapariga a dar um passeio no rio: «Se a mãe a visse, ia entender o que eu sinto. Alta, elegante, com uma pele transparente, a mais transparente de todas as peles de azeitona, cabelo negro de azeviche e uns olhos esverdeados tão brilhantes e trocistas como luzes reflectidas à noite sobre as águas. Admito que seja um pouco mordaz enquanto não a conhecer. E, além disso, veste-se como as mulheres mais elegantes de Londres. Devo dizer-lhe que, quando ela passeia em Piccadilly com o seu filho, ele, por mais que se esforce, não aparenta nem metade do orgulho que sente.»
Mrs. Morel lia e perguntava-se no seu íntimo, se o filho não andaria a passear em Piccadilly com uma mulher apenas elegante e bem vestida, em vez de uma mulher de quem se sentisse próximo. Mas felicitou-o, no seu modo reticente. E enquanto estava encostada ao tanque, a mãe, preocupada, pensava no filho. Via-o casado com uma mulher cara e elegante e um pequeno ordenado, levando a vida conforme podia, numa casa feia e acanhada dos subúrbios. «E daí...», pensava ela, «é por certo tolice minha... vontade de arranjar complicações.» No entanto, o seu coração raramente sossegava, não fosse William fazer alguma asneira.
Entretanto, Paul foi chamado para se apresentar numa firma de acessórios ortopédicos, a Thomas Jordan, em Nottingham, Spaniel Row, número 21. Mrs. Morel estava radiante.
– Estás a ver! – exclamou, de olhos brilhantes. – Só escreveste quatro cartas e recebes resposta logo à terceira. Tens sorte, meu filho, como eu sempre disse.
Paul olhou para a perna de pau adornada com meias elásticas e outros acessórios que constituía o logotipo do papel timbrado de Mr. Jordan, e ficou alarmado. Até aí nem sabia que existiam meias elásticas. Parecia-lhe sentir o mundo dos negócios com o seu sistema de regras e valores e a sua impessoalidade, e isso atemorizava-o. Parecia-lhe também monstruoso que se pudesse fazer negócio com pernas de pau.
Numa bela terça-feira, manhã cedo, mãe e filho saíram juntos de casa. Era Agosto e o calor abrasava. Paul caminhava com o coração aperreado. Mil vezes a dor física, por maior que fosse, a este sofrimento irracional de se ver exposto perante estranhos, sujeito a ser aceite ou rejeitado. No entanto, conversava animadamente com a mãe. Jamais lhe confessaria o sofrimento que estas situações lhe causavam e de que ela só em parte suspeitava. Ia alegre como um passarinho. Postou-se diante da bilheteira, em Bestwood, e ficou a ver a mãe tirar o dinheiro para os bilhetes. Ao reparar nas luvas pretas que trazia, quase de criança e já muito velhas, com que retirou algumas moedas da carteira também coçada, o seu coração contraiu-se de dor e amor por ela. Ela estava muito excitada e bem-disposta, e ele sofria antecipadamente, pois sabia que ela se iria pôr a falar em voz alta diante dos outros passageiros.
– Olha para aquela vaca. Parece tola! A andar às voltas como se estivesse no circo.
– Deve ser algum moscardo – disse Paul, quase a bichanar.
– Algum quê? – perguntou ela, desabrida, sem complexos.
Depois, ficaram calados, pensativos. Paul não conseguia deixar de sentir a presença dela à sua frente. Nisto, os olhos de ambos encontraram-se e ela sorriu-lhe – um sorriso único, íntimo, belo e cintilante, cheio de amor. Em seguida, puseram-se a olhar pela vidraça. Mas ela voltou-se para ele de repente e disse, de forma bem audível:
– Sinceramente, acho que vais conseguir. E, se não conseguires, enfim, não te podes queixar só por não teres conseguido o terceiro emprego a que concorreste, pois não? Mas eu acho que consegues. És um rapaz de sorte, embora não a mereças – Assim falava ela, para todos ouvirem!
O comboio transpôs com lentidão as dezasseis milhas que os separavam do destino, e a viagem terminou. Mãe e filho meteram por Station Street com o entusiasmo de amantes a viver uma aventura. Em Carrington Street, pararam para contemplarem do parapeito as barcaças que passavam no canal.
– Parece mesmo Veneza – disse ele, vendo o sol reflectido na água entre os muros altos das fábricas.
– Talvez – respondeu ela, sorrindo. Ficaram deslumbrados com as lojas.
– Estás a ver aquela blusa? – disse ela. – Ficava mesmo bem à nossa Annie. E só custa uma libra, onze xelins e três dinheiros. Não é barato?
– E é toda bordada – disse o filho.
– É verdade.
Tinham ainda muito tempo, e por isso não precisavam de se apressar. Aos seus olhos, a cidade era estranha e fascinante. Mas o rapaz, apreensivo, era como se tivesse um nó no estômago. Apavorava-o a entrevista com Thomas Jordan.
Eram quase onze horas pelo relógio da igreja de São Pedro. Viraram para uma rua estreita que ia dar ao castelo. Era uma rua sombria, de casas velhas, com lojas baixas e soturnas e as portas dos prédios pintadas de verde-escuro, com grandes argolas de latão e degraus amarelo-ocre avançando sobre o passeio; ao lado, uma outra loja, de outros tempos, cuja montra diminuta parecia um olho astuto e semicerrado. Mãe e filho caminhavam devagar, olhando para as portas, à procura do letreiro Thomas Jordan & Filho. Era como caçar em plena coutada. A excitação atingia o auge.
De súbito, avistaram uma entrada ampla e escura, com os nomes de várias firmas afixados na parede e, entre eles, o da Thomas Jordan.
– É aqui – disse Mrs. Morel. – Mas... onde é que será?
Olharam em volta. De um lado, uma fábrica de papel, lúgubre e bizarra; do outro, o Commercial Hotel.
– É ali ao fundo – informou Paul.
Aventuraram-se pela arcada, como se penetrassem na bocarra de um dragão, indo desembocar num pátio amplo, semelhante a um poço, completamente rodeado de edifícios. O chão estava pejado de palha, caixas e cartões. O sol batia em cheio num caixote de onde saíam palhas que se espalhavam pelo chão como fios de ouro. Mas, fora isso, o lugar era escuro como uma mina. Havia várias portas e dois lanços de escadas. Mesmo em frente, numa porta suja e envidraçada, ao cimo da escada, ressaltavam as palavras fatídicas Thomas Jordan & Filho – Acessórios Ortopédicos. Mrs. Morel foi à frente, seguida pelo filho. Ao subir ao patíbulo, Carlos I tê-lo-á feito certamente com o coração mais leve do que Paul Morel ao subir atrás da mãe os degraus imundos que conduziam à tal porta também imunda.
Mrs. Morel empurrou a porta e ficou agradavelmente surpreendida. Diante dela estendia-se um imenso armazém com embalagens de papel pardo espalhadas por todo o lado, e os empregados, de mangas arregaçadas, movimentavam-se de um lado para o outro com um ar perfeitamente descontraído. A luz não feria a vista, as embalagens em papel brilhante tornavam-se luminosas, os balcões eram de madeira escura. A atmosfera era silenciosa e acolhedora. Mrs. Morel deu dois passos em frente e aguardou. Paul colocou-se atrás da mãe. Ela trazia o seu chapéu de domingo, com o véu preto descido sobre a cara, e ele a gola branca larga, que todos os rapazes usavam, e um fato de corte à caçador.
Um dos empregados olhou para eles. Era alto e magro, de rosto miúdo e olhar vivo e atento. Depois, os seus olhos percorreram a sala até à outra extremidade, onde se via um gabinete envidraçado; só então se aproximou. Não disse uma palavra, inclinou-se apenas perante Mrs. Morel, numa atitude prestável e interrogativa.
– Poderei falar com Mr. Jordan? – pediu ela.
– Vou já chamá-lo – respondeu o jovem.
Dirigiu-se ao gabinete envidraçado. Um homem idoso, de suíças brancas e faces coradas levantou os olhos da secretária. Paul achou-o parecido com um lulu da Pomerânia. Depois, o homenzinho atravessou o armazém para vir ao encontro deles. Tinha pernas curtas, era atarracado e envergava um casaco de alpaca. E lá vinha ele, de orelha arrebitada, por assim dizer, com ar resoluto e olho inquiridor.
– Bom dia! – disse, hesitante, dirigindo-se a Mrs. Morel, sem saber se se tratava ou não de uma cliente.
– Bom dia... Vim com o meu filho... Paul Morel... O senhor pediu-lhe que se apresentasse esta manhã.
– Acompanhem-me – disse Mr. Jordan, com uma frieza e desenvoltura que ele acreditava serem apropriadamente empresariais.
Mãe e filho acompanharam o industrial e entraram numa salinha desarrumada, com cadeirões de couro negro e já muito lustroso de tanto ser usado pelos clientes. Em cima da mesa estava uma pilha de fundas para hérnias – umas bandas de couro amarelo, pré-lavado, atadas em molho. Pareciam novinhas em folha. Paul sentiu o cheiro a couro lavado e perguntou-se o que seriam aquelas coisas. Estava tão atordoado que só reparava no aspecto exterior do que o rodeava.
– Sente-se! – disse Mr. Jordan, ríspido, convidando Mrs. Morel a sentar-se numa cadeira de crina. Ela sentou-se à beirinha, numa posição instável. O homenzinho vasculhou então em cima da secretária e pegou numa folha de papel.
– Foste tu que escreveste esta carta? – desferiu ele, intempestivo, colocando diante dos olhos de Paul um papel que ele logo reconheceu como sendo a carta que mandara.
– Fui, sim – respondeu Paul.
De momento, o rapaz era dominado por dois sentimentos: em primeiro lugar, sentia-se culpado por estar a mentir, uma vez que a carta tinha sido escrita por William; e, em segundo, estranhava como a sua carta podia parecer tão diferente na mão avermelhada e sapuda daquele homem de quando estava em cima da mesa da cozinha. Era como se uma parte dele mesmo se tivesse transviado, e desagradava-lhe a maneira como o homem pegava na carta.
– Onde aprendeste a escrever? – disse o velho, com brusquidão.
Paul limitou-se a olhar para ele envergonhado, sem responder.
– Ele escreve muito mal – interrompeu Mrs. Morel, apologética, levantando o véu em seguida. Paul ficou furioso por a mãe não mostrar mais orgulho perante este homem tão comesinho, mas, ao mesmo tempo, adorou ver o seu rosto sem véu.
– E dizes que também sabes francês? – inquiriu o homenzinho, ríspido, como sempre.
– Sim – respondeu Paul.
– Em que escola andaste?
– Na primária.
– E foi lá que aprendeste?
– Não... eu... – o rapaz ruborizou, e não adiantou mais nada.
– Foi o padrinho que lhe deu umas lições – disse Mrs. Morel, quase numa súplica, e com ar distante.
Mr. Jordan hesitou. E, então, mantendo o seu ar agressivo – parecia ter as mãos sempre prontas a agir – tirou do bolso uma outra folha de papel, desdobrou-a ruidosamente e entregou-a a Paul.
– Ora lê lá isto – disse.
Era uma carta em francês, escrita à mão, numa caligrafia estrangeira, esguia e incerta, que o rapaz não conseguia decifrar. Paul ficou parado a olhar para o papel, como se hipnotizado.
– «Monsieur» – começou ele, olhando em seguida muito aflito para Mr. Jordan.
– É a... é a...
Queria dizer «letra», mas já nem esta palavra conseguia pronunciar. Sentindo-se um perfeito idiota, e furioso com Mr. Jordan, voltou-se em desespero para o papel.
– «Exmo. Senhor... Queira fazer o favor de me enviar»... hum... hum... não consigo perceber a... hum... «dois pares... gris fil bas... de meias cinzentas de algodão... hum... hum... sans... sem...» hum... não consigo perceber a... hum... «doigts... dedos»... hum... não consigo perceber a...
Queria dizer «letra», mas a palavra teimava em não sair. Vendo-o atrapalhado, Mr. Jordan tirou-lhe o papel da mão e leu:
– «Queira fazer o favor de me enviar na volta do correio dois pares de meias cinzentas de algodão, sem os dedos dos pés...»
– Bem – atalhou Paul prontamente – doigts quer dizer apenas dedos... duma maneira geral...
O homenzinho olhou para ele. Tanto se lhe dava que doigts quisesse ou não dizer simplesmente dedos, o que ele sabia era que, para os fins em vista, queria dizer dedos dos pés.
– Só dedos, podia ser das mãos; com que então, dedos das mãos numas meias?! – ripostou Mr. Jordan.
– Bem, a palavra francesa quer mesmo dizer só dedos – teimava o rapaz.
Paul detestava aquele homenzinho que tentava fazer dele parvo. E Mr. Jordan olhava para aquele rapaz pálido, estúpido e atrevido à sua frente, sentado, muito calado, com aquele ar reservado dos pobres que têm de depender dos favores de outras pessoas.
– Quando é que ele pode começar a trabalhar? – perguntou o industrial.
– Bem... – disse Mrs. Morel –, quando o senhor desejar. Ele já deixou a escola.
– E vai continuar a viver em Bestwood?
– Sim... mas pode estar... chegar à estação... a um quarto para as oito...
– Hum!
Paul acabou por ser contratado como aspirante, a ganhar oito xelins por semana. O rapaz não abriu mais a boca depois de teimar que doigts era mesmo dedos (das mãos). Saiu atrás da mãe e desceu as escadas. Mrs. Morel olhou para ele com os seus olhos azuis iluminados de amor e contentamento.
– Acho que vais gostar do emprego – vaticinou.
– Doigts quer dizer só dedos, mãe... e com aquela letra... Eu não percebia a letra.
– Não te preocupes, meu filho... Verás que ele é boa pessoa, e, além disso, não vais ter de contactar muito com ele... Não achaste simpático aquele empregado mais novo?... Tenho a certeza de que vais gostar dos teus colegas.
– Mas a mãe não achou Mr. Jordan um homem grosseiro? Será ele o dono daquilo tudo?
– Cá para mim, começou por ser operário e depois singrou na vida – disse Mrs. Morel. – Não deves dar tanta importância às pessoas. Elas não te querem ofender... é a maneira de falarem... estás sempre a pensar que as pessoas te querem ofender... mas olha que não querem.
Estava um dia cheio de sol. No grande largo deserto do mercado, o céu azul iluminava-se e as pedras de granito da calçada brilhavam cintilantes. As lojas de Long Row estavam mergulhadas na penumbra e a sombra enchia-se de cor. No sítio onde os trens puxados a cavalos atravessavam o mercado, erguia-se uma fiada de bancas de fruta, com os frutos luzindo ao sol – maçãs e montes de laranjas avermelhadas, rainhas-cláudias e bananas. Quando mãe e filho passaram, sentiram no ar o odor morno da fruta. A pouco e pouco, os sentimentos de raiva e ignomínia de Paul foram soçobrando.
– Onde havemos de ir almoçar? – perguntou a mãe.
– E se comprássemos qualquer coisa e fôssemos comer para o Arboretum?
– Não. Nada disso.
– Então vamos ao Morley.
– O chá que lá servem é requentado. Não... tu conseguiste o emprego... vamos fazer uma refeição como deve ser.
Aquilo era para eles uma verdadeira extravagância. Paul só tinha ido a uma casa de pasto uma ou duas vezes na vida, e, mesmo assim, só para tomar chá e um pãozinho. A maior parte dos habitantes de Bestwood achavam que a única coisa para que tinham dinheiro quando iam a Nottingham era chá e pão com manteiga, ou, quando muito, carne afiambrada. Uma refeição cozinhada era um autêntico luxo, e Paul sentia-se até culpado. Encontraram um lugar que lhes pareceu bastante acessível. Porém, quando Mrs. Morel consultou a lista, caiu-lhe a alma aos pés, tal era o preço dos pratos. Mandou vir, por isso, empadas de rim e batata, que era o mais barato.
– Não devíamos ter vindo aqui, mãe – disse Paul.
– Deixa lá – respondeu ela. – Nunca mais cá voltamos.
Depois insistiu para que o filho, que era guloso, comesse uma pequena torta de mirtilos.
– Não quero, mãe – disse ele.
– Queres, sim – teimou a mãe. – Claro que queres.
E pôs-se a ver se chamava a criada. Mas a criada andava toda atarefada e Mrs. Morel não a quis importunar nesse momento, pelo que ficaram os dois à espera de que a rapariga se dignasse atendê-los, enquanto ela andava por ali a cirandar, fazendo olhinhos aos clientes.
– Que desavergonhada! – disse Mrs. Morel, virando-se para Paul. – Olha para ela, a servir pudim àquele homem, e ele chegou muito depois de nós.
– Não tem importância, mãe – disse Paul.
Mrs. Morel estava irritada, mas era pobre de mais e a refeição demasiado modesta para ter a coragem de reclamar os seus direitos imediatamente. E, assim, fartaram-se de esperar.
– Vamos embora, mãe? – sugeriu Paul. Mrs. Morel levantou-se. A rapariga ia a passar.
– Trazia-nos uma torta de mirtilos, por favor? – disse Mrs. Morel em voz suficientemente audível.
Mas a rapariga virou-se e olhou para ela com insolência.
– É para já – retorquiu.
– É que já esperámos um bom bocado – disse Mrs. Morel. A rapariga não tardou com a torta. Mrs. Morel pediu a conta secamente.
Paul tinha vontade de se enfiar pelo chão dentro. Pasmava perante a dureza da mãe. Sabia que haviam sido anos e anos de luta que a tinham ensinado a reclamar os seus direitos, por mais insignificantes que fossem, pois ela era tão tímida como ele.
– É a última vez que ali vou para comer seja o que for! – exclamou ela, já na rua, satisfeita por se ver livre daquele pesadelo.
– Vamos dar uma vista de olhos ao Keep’s e ao Boot’s, e a mais um ou dois armazéns, está bem?
Teceram comentários sobre as gravuras expostas para venda, e Mrs. Morel queria por força comprar ao filho um pequeno pincel de pêlo de marta, com que ele andava a sonhar, mas Paul recusou liminarmente mais esta generosidade, e foi esperando por ela estoicamente à porta dos fanqueiros e dos retroseiros, morto de tédio, mas feliz por ver a mãe tão entretida. E o passeio continuou.
– Veja só aquelas uvas pretas! – disse Paul. – Até fazem crescer água na boca... Há anos que ando desejoso de prová-las, mas ainda vou ter de esperar algum tempo para as poder comprar.
A mãe parou deliciada à porta da florista, a aspirar os aromas.
– Oh!... Oh!... Não é simplesmente uma maravilha?
Apesar de a loja estar na penumbra, Paul vislumbrou uma jovem elegante, vestida de preto, a espreitar por detrás do balcão, com ar divertido.
– Estão a olhar para si – disse Paul, tentando arrastar a mãe dali para fora.
– Mas... o que é aquilo? – exclamou ela, recusando-se a sair de onde estava.
– Goivos! – respondeu ele, cheirando o ar apressadamente. – Veja, têm um alguidar cheio.
– Pois têm... vermelhos e brancos!... Esta agora... nunca reparei que os goivos pudessem cheirar assim! – E, para grande alívio do rapaz, a mãe saiu da porta, mas só para se ir pôr diante da montra.
– Paul! – exclamou ela, virando-se para o filho, que tentava esquivar-se ao olhar da tal jovem elegante toda de preto, a empregada da loja. – Paul! Anda ver isto!
Ele aproximou-se relutante.
– Olha aqueles brincos-de-princesa! – disse ela, apontando.
– Humm! – fez ele, mostrando-se interessado. – Parece que as flores vão cair a todo o momento; são tão grandes e tão pesadas.
– E tantas! – exclamou a mãe.
– E já viu a maneira como se inclinam, com os filamentos e os nódulos...?
– Pois é! – disse ela. – São lindas!
– Sempre gostava de saber quem será que as vai comprar? – disse ele.
– Não faço ideia! – respondeu ela. – Nós não somos.
– Na nossa sala morriam logo.
– É, aquele buraco horrível, gélido e sem réstia de sol... mata qualquer planta que lá se ponha... e a cozinha atabafa-as.
Fizeram algumas compras e seguiram para a estação. Olhando ao longo do canal, pelos intervalos sombrios dos edifícios, avistaram o castelo, alcandorado no seu promontório negro coberto de vegetação, miraculosamente iluminado por um sol suave e radioso.
Vai ser tão bom vir dar um passeio à hora do almoço! – disse Paul. – Posso andar por aqui e ver tudo isto. Vou adorar.
– Vais, sim, meu filho – concordou a mãe.
Paul tinha passado uma tarde agradabilíssima em companhia da mãe. Chegaram a casa já a tarde esmorecia, feliz, ardente, e também cansada. Na manhã seguinte, o rapaz preencheu a requisição para o passe de comboio e levou-a à estação. Quando voltou, estava a mãe a começar a lavar o chão. Ele sentou-se com as pernas cruzadas em cima do sofá.
– O homem diz que o passe chega no sábado.
– E quanto custa? – perguntou ela.
– Mais ou menos uma libra e onze xelins.
A mãe continuou a lavar o chão em silêncio.
– Acha caro? – perguntou Paul.
– Não mais do que eu pensava – respondeu ela.
– E eu vou ganhar oito xelins por semana... – disse ele.
A mãe não respondeu, continuando com o seu trabalho. Por fim, disse:
– O William prometeu-me, quando foi para Londres, que me mandava uma libra por mês. E só me mandou dez xelins... por duas vezes. E sei que agora não tinha um tostão, se eu lho pedisse. Não que eu queira o dinheiro dele, mas nesta altura ficava-lhe bem dar uma ajuda para o passe, embora eu não esteja a contar com isso.
– Ele ganha muito bem – disse Paul.
– Cento e trinta libras. Mas os filhos são todos iguais. Uns mãos largas nas promessas, mas quando se trata de as cumprirem... é o que se vê.
– O William gasta mais de cinquenta xelins por semana só com ele – disse Paul.
– E eu mantenho esta casa com menos de trinta – retorquiu a mãe. – E ainda tenho de inventar o dinheiro para os extras. Mas eles, depois de saírem de casa, querem lá saber de ajudar a mãe. Mais depressa o gastava com aquela doidivanas toda aperaltada.
– Ela há-de ter dinheiro, se é assim tão fina – disse Paul.
– Pois havia, mas não tem. Eu já lhe perguntei... E eu sei bem que ele não lhe compra uma pulseira de ouro sem razão. A mim nunca ninguém me comprou uma pulseira de ouro.
– Ora, a mãe também nunca quis nenhuma.
– Lá isso é verdade... Mas, se quisesse, era o mesmo.
– O pai nunca lhe comprou nada?
– Comprou... um cartucho de maçãs... e foi tudo... todo o dinheiro que gastou comigo, antes de nos casarmos.
– Porquê?
– Porque eu era uma parva, e quando ele me dizia: «O que queres qu’eu te compre?», eu respondia: «Nada.» Ele lembrava-se lá de me trazer alguma coisa! E o William só ia comprar uma pulseira de ouro para uma espertalhona cheia de nove horas.
– Aposto que ela já tem muitas – disse o rapaz.
– Tem muitas, dizes tu? Mas ele também tinha de lhe dar uma, para parecer importante. Ele quer lá saber! Eu pude sustentá-lo enquanto ele ganhava uma miséria, mas depois, mal ele se apanha com dinheiro que se veja, e a gente pensa que vai ter um pouco de paz e segurança, ele desanda, e lá começa a luta de novo, sem ter a quem recorrer quando é preciso alguma coisa, sem ninguém que nos estenda a mão.
– A mãe devia pedir-lho.
– E depois ele tinha de o ir pedir emprestado. Isso também eu faço, se tivermos de chegar aí. Tenho a certeza, de que não vou ter de lhe ficar a dever favores. E ele não precisa de me escrever a gabar-lhe os encantos e a falar das óperas a que vão assistir. Nem quero saber. Ele importa-se lá comigo... Eles querem lá saber! Têm a vida deles para viver, fazem o que lhes apetece, e eu... sim... o que represento eu para ele?... Um estorvo nunca hei-de ser, nem lhe hei-de pedir nada... E espero que o teu pai viva muito tempo, e que seja eu a ir à frente, pois é muito triste ter de viver à custa dos filhos.
– Oh, mãe... não tarda, eu começo a ganhar dinheiro, e a mãe pode ficar com tudo, porque eu nunca me hei-de casar.
– Essa já é velha, o William também dizia o mesmo. Dá tempo ao tempo e vais ver como a música é outra.
– Não vai ser, não.
– Então está bem.
E continuou a lavar o chão, em silêncio.
– Que vai fazer? – perguntou Paul.
– Acho que vou ter de meter um vale na Cooperativa... e isso vai sair da minha parte e vou receber menos dividendos. Não me apetecia nada ir lá buscar mais dinheiro outra vez.
O rapaz sentia-se muito infeliz, muito aborrecido. Era ele que precisava do dinheiro, e isso deixava-o amargurado.
– Bem – disse Paul –, em breve serei aumentado, e a mãe pode ficar com o dinheiro todo.
– Tudo isso é muito bonito – disse a mãe. – Mas não é assim que arranjo uma libra e trinta xelins até sábado de manhã.
William fazia progressos com a sua Cigana, como ele lhe chamava. Pedira à rapariga – uma tal Louisa Lily Denys Western – uma fotografia para mandar à mãe. A fotografia chegou: era uma morena bonita, de perfil, com um sorriso afectado, e que bem podia estar completamente nua, pois não se vislumbrava qualquer peça de roupa no retrato, só o colo desnudo.
«Sim senhor», escreveu Mrs. Morel ao filho, «a fotografia da Louie é deveras impressionante e vê-se que deve ser muito atraente. Mas achas, meu filho, que foi sensato e elegante da parte dela dar ao namorado aquela foto para ele mandar à mãe, e pela primeira vez? Tem uns ombros lindos, sem dúvida, como mandaste dizer. Mas eu não estava à espera de os ver tão bem logo da primeira vez...»
Morel encontrou a fotografia na sala, em cima da cómoda, e veio até à cozinha com ela presa entre o polegar e o indicador.
– Quem vem a ser esta? – perguntou ele à mulher.
– É a rapariga com quem o nosso William anda de namoro – respondeu Mrs. Morel.
– Hum! Ganda brasa, pelo menos parece... e num lhá-de fazer bem nenhum... Quem é ela?
– Chama-se Louisa Lily Denys Western.
– Muito prazer! – exclamou o mineiro. – É alguma artista?
– Não, não é. Ele diz que é uma senhora da sociedade.
– Não hajam dúvidas – exclamou o pai, sem tirar os olhos da fotografia. – Com qu’intão uma senhora? E há-de ter muito dinheiro, pra manter as aparências.
– Não tem, não... vive com uma tia velha, que ela detesta, e aceita tudo o que lhe dão.
– Hum! – disse Morel, pousando a fotografia. – Atão ele foi um gand’otário em ter-se metido c’uma tipa dessas.
«Querida Mater», respondeu William. «Lamento que não tenha gostado da fotografia. Nunca me passou pela cabeça, quando lha mandei, que pudesse achá-la pouco decente. Mas já disse à Ciganita que o retrato não correspondia exactamente à sua noção de decoro e decência, e ela vai mandar-lhe outro, que eu espero lhe agrade mais. Ela está sempre a ser fotografada. Na verdade, os fotógrafos estão sempre a pedir-lhe insistentemente para ela se deixar fotografar, absolutamente de graça.»
A nova fotografia acabou por chegar, acompanhada de um bilhete idiota da rapariga. Desta vez, a jovem estava com um ves-tido de noite em cetim preto, de decote quadrado, com mangas curtas e tufadas e folhos de renda preta cobrindo-lhe os braços elegantes.
– Será que só usa vestidos de noite? – disse Mrs. Morel, sarcasticamente. – Tenho a certeza de que eu devia estar impressionada.
– Está a ser antipática, mãe – disse Paul. – Eu acho a primeira fotografia, a dos ombros nus, bem bonita.
– Achas? – disse Mrs. Morel. – Pois olha, eu não.
Na segunda-feira de manhã, o rapaz levantou-se às seis horas, para começar a trabalhar. No bolso do colete levava o passe do comboio que tanta amargura representava. Gostava de olhar para ele, todo às riscas amarelas. A mãe metera-lhe o almoço num cestinho de verga com tampa, e ele saiu de casa quando faltava um quarto para as sete, para apanhar o comboio das sete e um quarto. Mrs. Morel veio despedir-se do filho ao portão.
A manhã estava imaculada. Do grande freixo, pendiam os frutos verdes e delgados – as crianças chamavam-lhes «pombinhos» – cintilando alegremente, soprados pela brisa matinal, suspensos sobre os jardins das vivendas. O vale estava coberto de uma névoa escura, mas brilhante, através da qual luziam as searas já maduras, e em contacto com a qual logo se condensava o vapor que se elevava da mina de Minton. De quando em vez, o vento passava em baforadas. Paul espraiou a vista para lá das altas florestas de Aldersley, onde os campos brilhavam imensos, e nunca o apelo do lar fora tão forte.
– Adeus, mãe – disse ele, sorrindo, mas com a alma entristecida.
– Adeus – respondeu ela, com alegria e ternura na voz.
Mrs. Morel ficou parada na estrada, com o seu avental branco, vendo o filho atravessar os campos. Era um rapaz baixo e robusto, cheio de vida. Ao vê-lo caminhar pelos campos fora, sentiu que ele seria capaz de chegar onde quisesse. Pensou no William. Esse teria saltado a cerca em vez de passar pela cancela. Esse estava em Londres a viver à grande. E agora Paul ia trabalhar para Nottingham. Tinha dois filhos lançados no mundo. Podia pensar em dois lugares, dois grandes centros industriais, e sentir que tinha posto um homem em cada um, e que esses homens seriam capazes de conseguir tudo o que ela ambicionava; provinham dela, eram parte dela, e as suas vitórias seriam também as dela. Durante toda a manhã só pensou em Paul.
Às oito horas, Paul subiu as escadas lúgubres da Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan e deteve-se timidamente junto da primeira prateleira que encontrou cheia de embalagens, à espera de que alguém viesse ao seu encontro. O lugar ainda não tinha acordado. Os balcões estavam cobertos de espessas camadas de poeira. Ainda só tinham chegado dois funcionários. Paul ouvia-os conversar a um canto, enquanto tiravam os casacos e arregaçavam as mangas da camisa. Eram oito e dez. A pontualidade não era evidentemente a preocupação dominante no local. Paul continuou a ouvir as vozes dos dois funcionários. Depois, ouviu alguém tossir e viu no gabinete ao fundo do armazém um empregado já velho e caduco, com um bonezinho redondo de veludo preto bordado a verde e vermelho, a abrir cartas. Paul continuou à espera.
Um dos empregados mais novos dirigiu-se ao velhote e cumprimentou-o efusivamente e em voz muito alta. Estava visto que o velho «chefe» era surdo. A seguir, o jovem voltou para o seu balcão com passo arrogante. A certa altura reparou em Paul.
– Olá! – disse ele. – És o novo rapaz?
– Sou – respondeu Paul.
– Hum! Como te chamas?
– Paul Morel.
– Paul Morel?... Está bem. Vem comigo.
CONTINUA
Quando as crianças já tinham idade suficiente para ficarem sozinhas em casa, Mrs. Morel entrou para o Grémio Feminino. Tratava-se de um pequeno clube de mulheres ligado à Cooperativa de Revenda, que reunia às segundas-feiras à noite numa sala muito comprida por cima da mercearia Bestwood Co-op. Aí, as mulheres discutiam os benefícios de uma política de cooperação e outras questões de importância social. Por vezes, Mrs. Morel tinha de apresentar uma comunicação, e as crianças estranhavam ver a mãe, que passara a vida a fazer a lida da casa, sentar-se agora a escrever, com a rapidez que a caracterizava, a pensar, a consultar livros, e a continuar a escrever. Nessas ocasiões, sentiam por ela o mais profundo respeito.
Mas gostavam do Grémio. Era a única concessão que faziam à mãe de boa vontade – por um lado, por ser uma coisa de que ela tanto gostava, e, por outro, pelas guloseimas que depois lhes trazia. Alguns maridos hostis, que achavam que as mulheres estavam a ficar independentes de mais, chamavam ao Grémio o «clube dos traques-tagarelas», ou seja, o clube da má-língua. A verdade é que, graças ao Grémio, as mulheres podiam olhar para as suas casas, para as condições em que viviam e apontarem o que estava mal. E, assim, os mineiros começavam a descobrir que as suas mulheres lutavam por um novo padrão de vida, o que era para eles bastante desconcertante. Além disso, Mrs. Morel voltava sempre às segundas-feiras à noite carregada de novidades, e as outras crianças gostavam que William estivesse em casa quando a mãe chegava, porque ela lhe contava muitas coisas.
Mais tarde, quando o rapaz tinha treze anos, a mãe arranjou-lhe emprego nos escritórios da Cooperativa. Nessa altura, ele era já um rapaz muito inteligente e franco, de feições duras e os olhos azuis penetrantes de um verdadeiro viking.
– Pra que queres fazer dele um mangas-de-alpaca, num me dizes? – disse Morel. – Tudo o qu’ele vai fazer é gastar as calças no rabo e não ganhar um tostão. Quant’é qu’ele vai ganhar de início?
– O que ele vai ganhar não interessa – disse Mrs. Morel.
– Mas devia interessar! Põe-no mas é na mina ao pé de mim, e ele faz sem custo dez xelins por semana, logo no começo. Mas seis xelins para dar cabo do traseiro sentado num banco é melhor que dez na mina ao pé de mim, eu sei.
– Ele não vai para a mina – disse Mrs. Morel – e não se fala mais nisso.
– Pra mim serviu, mas pra ele não.
– Se a tua mãe te mandou para as minas aos doze anos, isso não quer dizer que eu faça o mesmo ao meu filho.
– Doze anos!... Muito antes disso!
– Fosse quando fosse – disse Mrs. Morel.
Ela tinha um grande orgulho no filho. Ele frequentava a escola nocturna, e aprendeu estenografia, e aos dezasseis anos, já era o melhor estenógrafo e o melhor guarda-livros do escritório, a par de um outro colega. Depois, começou a dar aulas nas escolas nocturnas. Mas era tão vivaço que só o seu bom feitio e o seu tamanho o protegiam.
Todas as coisas que os homens fazem – as coisas decentes – William também fazia. Corria tanto como o vento. Aos doze anos, ganhou o primeiro prémio numa corrida: um tinteiro de vidro, em forma de bigorna, que marcava honrosa presença no louceiro, para orgulho de Mrs. Morel. Fora para ela que ele correra. Voou para casa com a bigorna, ofegante, dizendo:
– Olha, mãe!
Esse foi o primeiro tributo que ele lhe prestou, e ela recebeu-o como uma rainha.
– Que bonito! – exclamou.
Quando iam brincar para perto da cerca da encosta, as crianças das Bottoms costumavam gritar quando William se aproximava:
– Salta, William... Salta!
E ele saltava a sebe, com cerca de cinco pés de altura, sem qualquer dificuldade.
– Caramba! – gritavam os mais pequenos.
Também atirava pedras mais longe do que qualquer outro rapaz de Bestwood. Amigos e rivais, todos tinham inveja das suas façanhas e torciam para que as pedras dele não fossem as que chegavam mais longe, passando para lá da cerca. Mas, à cautela, William gravava-lhes displicentemente as iniciais WM.
Aos dezassete anos, ganhou uma corrida de bicicletas em Ilkeston. Morel, num dos seus alardes de fanfarronice, tinha desafiado todos os campeões que estivessem na taberna a correrem contra o filho, e William sentiu que tinha de honrar as gabarolices do pai. Mas Mrs. Morel não aprovou a ideia.
– Vem ver-me limpar-lhes o sarampo a todos, mãe! – gritou ele, batendo na barriga da perna. Mas Mrs. Morel passou o dia ansiosa e infeliz. Ele podia morrer ou magoar-se, e, além disso, ela tinha a certeza de que o seu coração não tinha resistência para corridas de bicicleta. Não obstante, ele voltou para casa nessa noite trazendo uma pequena secretária de carvalho.
– Aqui tem, mãe! – disse ele. – Não lhe disse que lha trazia?
Mas ela obrigou-o a prometer-lhe que não entrava em mais nenhuma corrida.
William tinha alunos a quem dava aulas de estenografia em casa. Mas era tão impulsivo e irascível, que só os alunos mais aplicados e com mais vocação o aturavam. Sentava-se com eles à mesa da cozinha. A cozinha estava aquecida, iluminada e em silêncio absoluto. As almofadas de chintz vermelho do sofá eram fofas, a toalha vermelha sobre a mesa parecia acolhedora. Geralmente, o aluno, de treze ou catorze anos, sentava-se muito nervoso, enquanto William, rápido e enérgico, lhe corrigia os trabalhos de casa. O professor ia soltando desabafos de impaciência e intolerância. Nisto, voltava-se para o aluno e gritava:
– Meu grande cabeça de burro, fizeste bem a última frase, e agora...
O pobre do aluno assoava-se nervosamente ao lenço vermelho e olhava de soslaio para William. Às vezes, Mrs. Morel estava sentada a coser na cadeira de baloiço. Depois, começava a lição propriamente dita. William, evidenciando cada vez menos paciência, não tardava a explodir:
– Seu parvalhão, seu cabeça de burro, seu idiota chapado, o que é que eu te disse mais de mil vezes...?
– William! William! – exclamava a mãe. – Que vergonha! Não sei como ainda te aturam... Não lhe ligues, Robert, o mal está na falta de paciência dele, não em ti. Tu até és muito rápido. – E Robert olhava para Mrs. Morel envergonhado e agradecido, enquanto William continuava:
– Vá lá... e por amor de Deus não te faças de estúpido. Olha...!
Por fim, Mrs. Morel decidiu não ficar mais em casa quando ele dava as lições, para poupar aos garotos o vexame.
William tinha de entrar no escritório às oito da manhã, e a mãe levantava-se por isso às sete, para lhe preparar as coisas. Ele chegava geralmente atrasado, ou mesmo em cima da hora. Mas não havia nada que o fizesse andar mais depressa. Adorava tomar o pequeno-almoço a sós com a mãe. Quando estava bem-disposto, tagarelava e brincava com ela.
Uma manhã, pediu-lhe uma camisa lavada. Ele estava de pé, em frente à lareira, quando ela lha entregou, sentando-se em seguida a tomar o chá. Ele ergueu no ar repetidamente a camisa de flanela remendada por todos os lados.
– Mãe, o que é isto? – perguntou.
– Uma camisa – respondeu ela, desatando a rir.
– Uma rosa não cheiraria melhor...! – citou ele, de memória, com espirituosidade.
– Pois é... tu dás cabo de tudo... e eu já não tinha mais tecido igual... mas também quem vai notar?
– Tem a certeza de que não se vê?... Cá para mim, vê-se tudo à transparência – disse ele, ainda a torcer o nariz para a camisa.
– Veste-a lá... Olha as horas! – disse ela, sem poder conter o riso, da cadeira de baloiço onde estava sentada a beber o chá. E ele, de pé diante dela, um rapagão alto e espadaúdo, com a camisa de remendos na mão, dizia:
– Oh, minha camisinha de pobre! – disse ele, falando com a dita. – Acho que ninguém te vai cobiçar... um, dois, três... qual destes é o tecido original, mãe?
– Vá, veste a camisa! – ordenou a mãe.
– Imagine que eu tenho um acidente, e vou parar ao hospital, e quando volto a mim vejo quatro enfermeiras a olharem-me para a fralda da camisa... – resmungou ele.
– Só podem estar a dizer que andas com a roupa muito bem tratada – disse a mãe a rir.
Ele vestiu a camisa, e disse ainda, tapando a boca com a mão:
– Nem o rei Salomão em toda a sua glória...
– Não – disse a mãe, continuando a rir –, não creio que houvesse ninguém capaz de dar tantos pontos, nem por Salomão...
William deitou um olho à camisa por cima do ombro, e disse, num lamento:
– És a história da minha desgraça!
Mrs. Morel riu às gargalhadas. A custo, recompôs-se o suficiente para dar uma palmada na mesa e exclamar:
– Toca a vestir, menino! Já é um quarto para as oito.
– Não está à espera que eu tenha pressa de me vestir, para andar por aí todo remendado, pois não, mãe?
– És um tagarela sem juízo! – exclamou ela. – Ainda cais da bicicleta, partes a cabeça...
– Tem razão, se eu morresse ia ter vergonha da camisa que levava – atalhou ele.
Ela saltou da cadeira, pegou na escova e deu-lhe com ela ao de leve na cabeça.
– Vê lá se escovas esse cabelo – ordenou. Separaram-se, reconfortados: ele aquecia-lhe a alma a ela, e ela a ele.
Depois, ele começou a tornar-se ambicioso. Dava todo o dinheiro que ganhava à mãe. Quando recebia catorze xelins, ela deixava-o ficar com dois para os seus gastos, mas ele, como não bebia, começou a achar que estava rico, e só se dava com a burguesia de Bestwood. A pessoa mais importante da cidade era o pastor. Seguiam-se-lhe o gerente do banco, os médicos, depois os comerciantes, e, por fim, as hostes de mineiros. William começou a andar com os filhos do farmacêutico, do mestre-escola e de alguns comerciantes. Ia jogar bilhar para o Mechanics’Hall, e frequentava também os bailes, apesar de a mãe ser contra. Desfrutava de tudo o que Bestwood tinha de bom para lhe oferecer – dos bailaricos de Church Street, a seis dinheiros o ingresso, às provas desportivas e ao bilhar.
– A valsa! – exclamou o pai. – É verdade que tu sabes valsar? Quando eu era mais ágil, também sabia dar as minhas voltinhas.
– Será que sabia? – disse William, meio desconfiado.
– Sabia, sim senhor! – protestou Morel, ferido no seu amor-próprio.
– Então, vá lá... mostre-nos do que é capaz.
Mas Morel tinha vergonha de dançar diante dos filhos.
– Não, isso eu num faço! Estares a desafiar-me é uma parvoíce sem pés nem cabeça, e num vejo o qu’é que ganhas com isso.
– Mas vê que sigo as suas pisadas – retorquiu William.
– Atão inda és mais parvo do qu’eu julgava, s’alguma vez fizeres isso – disse o pai.
– Pronto, não faz mal, se está perro de mais para dançar... – disse o filho.
– Há vinte anos qu’eu num danço – gritou Morel, já alterado.
– E aposto que lhe custou a parar.
Mas William não desistiu. E as raparigas não o largavam.
– ’Póstolo – disse ele ao irmão, depois de um baile, quando já estavam os dois deitados. – ’Póstolo... uma rapariga de cetim branco... tás’ouvir, cetim branco até aos sapatos... vive em Sutton... e tá pelo beicinho! Amanhã vou lá, para m’encontrar com ela.
Daí a duas semanas, Paul perguntou-lhe:
– Então a rapariga do vestido de cetim branco?
– Já não m’interessa, ’Póstolo... Não presta! Mas encontrei uma pérola em Ripley... cheira vagamente a flor de cerejeira... branca como um lírio...
Paul era mimoseado com as mais estonteantes descrições florais das várias raparigas, a maior parte das quais perduravam por menos de quinze dias no coração de William, como um botão de rosa posto ao peito.
Uma vez por outra, lá aparecia uma namorada, preocupada em vir atrás do seu amado. Mrs. Morel encontrou um dia à porta uma rapariga de aspecto estranho, e logo lhe cheirou a esturro.
– Mr. Morel está em casa? – perguntou a donzela, toda sorrisos.
– O meu marido? Está, sim – respondeu Mrs. Morel.
– Eu... Eu queria referir-me a Mr. Morel... filho – repetiu a rapariga, penosamente.
– Qual deles? Há vários...
Nesta altura, a menina loira já gaguejava, muito corada:
– Eu... Eu conheci Mr. Morel... em Ripley. – E apressava-se a dar explicações.
– Ah... num baile!
– Sim, sim.
– Pois eu não gosto das raparigas que o meu filho conhece nos bailes. E ele não está em casa.
Mrs. Morel detestava os bailes duvidosos que o filho frequentava.
– Julgas que não sei das desavergonhadas que por lá andam?
– Pois olhe, mãe, eu não sou nenhum leviano, como pode ver.
– Isso é que eu não sei – dizia a mãe a rir.
– Não está a pensar que eu me vou apaixonar, pois não? Descanse que não vou. É só para me divertir com elas.
– Mas elas é que não querem só divertir-se contigo. E isso não está certo.
– Ora essa, porquê? Não faço tenções de me casar. Não se aflija, Mater. Eu não me caso enquanto não encontrar uma mulher como a senhora... e isso só daqui a muito tempo... E... só me hei-de casar aos trinta, quando já estiver de barriguinha cheia.
– Veremos, meu filho – respondeu a mãe.
Depois, voltou para casa zangado com a mãe por ter sido tão dura para com a rapariga. Era um rapaz despreocupado, mas de olhar apaixonado, que caminhava com grandes passadas, às vezes de sobrolho carregado, e quase sempre com o boné atirado para trás com galhardia. Agora, vinha de sobrolho carregado. Atirou o boné para cima do sofá, apoiou o queixo decidido na palma da mão e olhou zangado para a mãe. Ela era pequena, com o cabelo arrepiado para trás. Tinha um ar de serena autoridade, mas, ao mesmo tempo, de rara afabilidade. Ao ver o filho zangado, o coração apertou-se-lhe.
– Esteve cá ontem alguma senhora à minha procura? – perguntou.
– Uma senhora eu não vi... esteve foi uma rapariga.
– E porque não me disse nada?
– Porque me esqueci.
Ele expeliu o ar com ímpeto.
– Uma rapariga bonita... uma senhora?
– Não olhei para ela.
– Olhos castanhos... grandes?
– Isso mesmo.
Voltou a assoprar.
– E o que lhe disse a mãe?
– Que não estavas em casa.
– E que mais?
– Apenas que não gostava de que raparigas que tinhas visto uma vez viessem aqui a casa à tua procura.
– Bem... não precisava de ter dito isso – replicou ele. – O pai dela tem dinheiro... até têm duas criadas...
– Não vinham com ela... por isso, eu não podia adivinhar.
– Mas porque é que a mãe tinha de ser desagradável? Ela não estava a fazer mal nenhum, ou estava?
– Pensei que fosse uma dessas desavergonhadas.
– Mas não era... Não era... O pai dela...
– Tem dinheiro para duas criadas – atalhou Mrs. Morel.
– Não... É o veterinário de Woodlinton... E, além disso, mãe...
– Ela era uma desavergonhada.
– Não era nada... E era bonita, não era?
– Nem olhei para ela.
– Mas devia ter olhado...
– Mas não olhei, pronto. E olha, meu filho, trata de dizeres às tuas namoradas que, quando vierem atrás de ti, não devem vir perguntar por ti à tua mãe... É isso que tens de dizer a essas desavergonhadas que encontras pelos salões de dança.
– Tenho a certeza de que ela é uma rapariga séria...
– E eu tenho a certeza de que não é.
E assim acabou a discussão. A dança era sempre motivo de conflito entre mãe e filho. A afronta atingiu o auge quando William anunciou que ia a um baile de máscaras em Hucknall Torkard, uma terra mal-afamada. Havia uma fantasia que ele podia alugar, que um dos seus amigos já tinha usado, e lhe assentava que nem uma luva. E o fato de escocês lá foi parar a casa. Mrs. Morel recebeu-o com indiferença e recusou-se a desembrulhá-lo.
– O meu fato já chegou? – gritou William.
– Está um embrulho na sala da frente.
Ele precipitou-se para o fato e cortou o cordel.
– Já imaginou o seu filho assim vestido? – disse entusiasmado, mostrando-lhe o fato.
– Sabes bem que não quero imaginar-te com isso vestido.
Na noite do baile, quando ele veio a casa para se mascarar, Mrs. Morel vestiu o casaco e pôs o chapéu.
– Não fica para me ver vestido, mãe? – perguntou ele.
– Não... Não te quero ver – foi a resposta.
Estava muito pálida, com a expressão dura e fechada. Tinha medo de que o filho seguisse as pisadas do pai. Ele hesitou uns instantes, com o coração suspenso de ansiedade. Depois, viu a boina de escocês cheia de fitas, e agarrou-a, já esquecido da mãe. Mrs. Morel saiu.
Ele nunca se apercebeu de como tinha ficado desapontado. A excitação do momento, vivido em antecipação, era o suficiente para o fazer esquecer. Contudo, o seu maior orgulho era que ela o visse mascarado, e, pela vida fora, era sempre com mágoa que recordava este baile.
Na altura, porém, correu escada acima em grande alvoroço. Paul ajudou-o a vestir-se.
– É um fato de máscara, ’Póstolo – disse ele. – Dá-me cá essas coisas. – Primeiro enfiou um par de calções pretos, muito justos e curtos. Depois, foi mirar-se e remirar-se ao espelho da mãe.
– Estás a ver os meus calções pretos? – disse ele, dando uma volta sobre si mesmo, e acrescentando: – Sabes, ’Póstolo, um verdadeiro escocês não usa calções... cobre a nudez com o kilt. Mas acontece que eu dou saltos muito altos... e... com as senhoras a assistir... bem... já não dava!
O mais pequeno também achava que não, embora o caso não lhe parecesse muito grave.
– Belo par de pernas que aqui estão, ’Póstolo! Belas pernas! Já me ajudaram a ganhar quatro prémios nas corridas e dois nas bicicletas. Nada mau! – E dava palmadas nas coxas jovens e vigorosas. – Só músculo, miúdo!... No entanto, têm um defeito: não consigo juntar os joelhos. Tenho as pernas arqueadas, ’Póstolo. Mas assim ainda são mais fortes... Já o Nicholas Nickleby... esse tinha umas belas pernas e conseguia juntar os joelhos, a julgar pela gravura, e acho que Mr. Good também. Não era Mr. Good que tinha uma «belas pernas muito brancas» n’As Minas de Salomão? Aperta-me isto. Este fato não me assenta nada bem, pois não, ’Póstolo?
– Não – disse Paul, reverente.
– Um verdadeiro escocês – continuou William – tem de dobrar o seu kilt. Quem me dera que este fosse desses... gostava de ser eu a prepará-lo. Estás a ver, ’Póstolo, eu posso usar um kilt porque tenho a medida exacta para ele assentar como deve ser. A ti não te ia ficar bem... és espalmado como uma tampa de cartão. Tens de pedir a Deus que te desenvolva mais essa parte do corpo, senão nunca vais poder vestir um kilt.
Paul não percebia porque é que um dia havia de querer usar um kilt. Baixinho e magro como era, não podia aspirar ao físico e à estatura do irmão.
– Então, que tal ficam os meus joelhos?... Ficam bem, não ficam? Uns valentes joelhos, isso é que eles são... uns valentes joelhos... e as pernas também! Outro dia, os tipos lá do escritório apostaram em como eu andava enchumaçado. E então o Vickers veio de gatas enquanto eu estava a escrever e espetou-me um alfinete. Dei um berro que ia deitando a casa abaixo, e depois dei um pinote e ferrei-lhe um murro na cabeça, estás a ver... quem me dera não ter arrancado aquele bocadinho de pele com a bicicleta.
– Podias pôr um bocadinho do pó cor-de-rosa de lavar os dentes – alvitrou Paul.
– Lá isso podia... diz que é anti-séptico, mas será que resulta? Sabes, eu tenho mesmo pinta de escocês – cabelo louro, olhos azuis e valentia, ’Póstolo, valentia... e arcaboiço a condizer... Se alguma vez me alistasse no exército, havia de ser na Guarda Escocesa. Essa do pó dos dentes é uma ideia porreira...
Quando já estava vestido, um monte de crianças, as de casa e as da vizinhança, vieram admirá-lo. Depois, ele partiu. Divertiu-se à grande e, no entanto, era-lhe doloroso recordá-lo. A mãe mostrou-se indiferente com ele durante um ou dois dias. Mas achava-o tão encantador...! E depois... aquele toque de solidão, a instalar-se outra vez entre ele e ela.
Foi mais ou menos por esta altura que ele começou a estudar. Ele e um amigo começaram a aprender francês, latim e outras coisas. Depressa começou a ficar mais abatido. Depois do escritório, ia para casa de Fred Simpson, e ficavam os dois a estudar até à meia-noite e, às vezes, até à uma. Mrs. Morel protestava, ralhava, implorava-lhe que tivesse mais cuidado com a saúde.
– Quando estamos a estudar – dizia ele – nem dou pelas horas passarem... nenhum de nós dá, até a mãe do Fred gritar lá de baixo que já é muito tarde.
Estas noites de estudo intervalavam com farras e bailaricos. À medida que os anos iam passando, William foi ficando mais magro e a despreocupação fugiu-lhe do olhar.
A mãe, sempre atenta, sempre à espera, sentia um frio na alma ao vê-lo assim. Teria ele forças para «sobreviver»? Um pingo de ansiedade manchava o orgulho que sentia. Tinha esperado por ele tanto tempo que não suportaria o seu fracasso. Na verdade, não sabia o que queria dele, afinal. Talvez quisesse apenas que ele fosse fiel a si próprio, que crescesse e frutificasse tudo o que ela tinha semeado. Queria ver nele a sua própria realização, era tudo. E, com toda a força de que era capaz, tentava mantê-lo forte, equilibrado, com ânimo para seguir em frente. Mas ele vacilava, faltava-lhe lucidez. Havia momentos em que descambava e era igualzinho ao pai, o que lhe enchia o coração de apreensão e desalento.
Ele tivera dúzias de namoricos, mas nada a que se pudesse chamar um caso amoroso. Ela não se importava com os namoricos, desde que não lhe afectassem a carreira, mas receava que ele se deixasse prender por alguma dessas raparigas fúteis e desavergonhadas.
Tinha ele dezanove anos, quando um dia, sem mais nem menos, deixou o escritório da Cooperativa e arranjou um emprego em Nottingham. Este novo lugar rendia-lhe trinta xelins por semana, em vez dos dezoito do anterior. Era na verdade um bom aumento e os pais não cabiam em si de orgulhosos. Todos o elogiavam. Parecia que ia subir na vida num instante. E Mrs. Morel esperava poder, com o auxílio dele, ajudar os filhos mais novos. Annie andava a estudar para professora. Paul, também muito inteligente, ia muito bem nas lições de francês e alemão que o padrinho lhe dava – o pastor, velho amigo de Mrs. Morel. Arthur, um menino mimado e muito bonito, andava ainda na escola primária, mas tinha hipóteses de conseguir uma bolsa para ir para o liceu, em Nottingham.
William conservou-se durante um ano no seu novo emprego em Nottingham. Estudava afincadamente e tornava-se cada vez mais circunspecto. Algo parecia preocupá-lo. No entanto, continuava a ir aos bailes e aos festivais no rio. Não bebia. Todos os irmãos eram abstémios convictos. Chegava a casa muito tarde e estudava até altas horas da noite. A mãe implorava-lhe que tomasse cuidado, que fizesse uma coisa ou outra.
– Dança, se te apetece dançar, meu filho, mas não julgues que podes passar o dia no escritório e depois ires para a paródia, e depois ficares ainda a estudar. Não podes, o corpo não aguenta. Faz uma coisa ou a outra... diverte-te ou estuda latim... mas não tentes fazer as duas.
Depois, ele arranjou um emprego em Londres, a ganhar cento e vinte libras por ano, o que parecia uma soma fabulosa. A mãe nem sabia se havia de rir ou de chorar.
– Querem-me em Lime Street de segunda a oito, mãe – gritou ele, de olhos brilhantes, ao ler a carta. Mrs. Morel sentiu que tudo nela era silêncio. Ele continuou a ler: – «... queira confirmar até à próxima quinta-feira se aceita o lugar... Atentamente...» Eles querem-me lá, mãe, por cento e vinte libras por ano, e nem quiseram falar comigo. Eu não lhe disse que conseguia! Imagine-me só em Londres!... E posso dar-lhe vinte libras por ano, Mater... Vamos ficar afogados em dinheiro.
– Pois vamos, meu filho – respondeu ela, tristemente.
A ele nem lhe ocorreu que a mãe pudesse estar mais magoada com a sua partida do que contente com o seu sucesso. Na verdade, à medida que se aproximava o dia da partida, o coração dela começou a fechar-se e a sucumbir ao desespero. Amava-o tanto. Mais ainda: esperava tanto dele. Quase se podia dizer que vivia através dele. Gostava de lhe fazer as coisas: de lhe fazer uma chávena de chá e de lhe passar a ferro os colarinhos, de que ele tanto se orgulhava. Era para ela uma alegria vê-lo tão vaidoso dos seus colarinhos. Como não havia nenhuma lavandaria perto, costumava passá-los e repassá-los com o seu pequeno ferro de carvão, para os polir, até os pôr a brilhar à simples pressão do braço. E, agora, já não lhe podia fazer isso. Agora, ele ia partir, e era quase como se partisse também do seu coração. E ele parecia não querer deixar ficar nada de si dentro dela. Essa a causa da dor e do desgosto. Ele levava consigo quase tudo.
Uns dias antes da partida – tinha ele acabado de fazer vinte anos – queimou todas as cartas de amor, que estavam guardadas numa caixa em cima do armário da cozinha. Tinha lido extractos de algumas delas para a mãe ouvir, mas a maior parte delas eram demasiado banais.
No sábado de manhã, disse:
– Anda, ’Póstolo, vamos dar uma volta às minhas cartas, e tu podes ficar com os passarinhos e as flores.
Mrs. Morel tinha feito de véspera o trabalho destinado para sábado, pois tinham dado folga a William no último dia. Ela estava até a fazer-lhe um bolo de farinha de arroz, para ele levar. Mas ele não tinha consciência da tristeza que a mãe sentia.
Tirou da caixa a primeira carta. Era cor de malva e estava ornamentada com cardos verdes e púrpura. William cheirou a folha de papel:
– Cheira bem... perfumada...!
E meteu a carta debaixo do nariz de Paul.
– Hum! – disse Paul, inspirando fundo. – Que perfume é este?
– Jockey Club – disse William, embora não fizesse a menor ideia.
– Não podia ser cardo – disse Paul – porque os cardos não têm cheiro.
– Ora oiça esta: «Meu Único Amor»... Safa, Mater.
– Não me interessa ouvir essas baboseiras – disse Mrs. Morel.
– Oiça só esta!.. «Meu único Amor, Como não me disseste o teu primeiro nome, só te posso chamar aquilo que és na realidade. Tenho de te escrever, porque, se o não fizer, acho que a minha cabeça vai rebentar...» Veja só, Mater.
– São mesmo parvas! Têm tão pouca cabeça que não dá nem para rebentar... A adularem-te dessa maneira... Mal sabem elas que estão a arranjar lenha para se queimarem.
– Não é para me adularem. Esta ficou mesmo caidinha por mim.
– E, mesmo que tenha ficado, isso é motivo para se orgulhar? Que parvoíce!
– A mãe não devia dizer que andam a «adulá-lo para arranjar lenha para se queimarem» – interveio Paul.
– Claro, se tu o dizes... – disse a mãe a rir.
– «Fiquei a adorar coisas escocesas desde que te vi com aquele kilt. Ficava-te mesmo mal. Acho que nunca vi ninguém que ficasse tão bonito, com aquele kilt e aquelas meias...» São os meus joelhos... Têm de ser os meus joelhos, Mater. Não me escapa uma.
– Só não te escapam se forem das fáceis.
– Cala a boca, ’Póstolo. É bonita, não é?
Paul gostava de ver os desenhos que decoravam as cartas de amor. William queimou a carta. A seguinte era cor-de-rosa, com um raminho de flor de cerejeira ao canto.
– Flor de cerejeira! – disse Paul, aspirando o perfume. – Que bom... ora cheire, mãe.
A mãe aproximou o nariz pequeno e fino do papel.
– Não me apetece cheirar as parvoíces que elas fazem – disse, aspirando o perfume.
– O pai desta rapariga – disse William – é rico como Cresus. Tem terras que nunca mais acabam... Ela chama-me Lafayette, por eu saber falar francês... «Como vês, já te perdoei.» Esta de ela me perdoar é muito boa... «Falei de ti esta manhã à minha mãe, e ela terá muito prazer em que venhas tomar chá connosco no domingo, mas primeiro precisa do consentimento do meu pai. Espero bem que ele concorde. Logo que saiba, mando-te dizer se sim ou sopas. Se tu no entanto...»
– «Se sim ou...» quê? – atalhou Mrs. Morel.
– «... ou sopas»... é isso mesmo!
– «Se sim ou sopas!» – repetiu Mrs. Morel, trocista. – E eu que a julgava tão fina!
William começou a sentir-se algo desconfortável e pôs de lado esta donzela, dando a Paul o canto com a flor de cerejeira. Continuou a ler excertos das cartas, alguns dos quais deixavam a mãe divertida, outros triste e outros ainda apreensiva.
– Meu filho – disse ela –, elas são muito espertas. Já perceberam que só têm de alimentar a tua vaidade, para tu correres logo atrás delas como um cão a quem fizeram festas na cabeça.
– Ora, elas não podem estar sempre a fazer festas – retorquiu William. – E quando deixam de fazer, eu ponho-me a andar.
– Mas um dia descobres que te prenderam com uma corda que não consegues desatar – respondeu a mãe.
– Isso é que era bom! Eu chego bem para elas, Mater, elas que não se deixem enganar.
– Quem se deixa enganar és tu – disse Mrs. Morel, muito serena.
Não tardou que um monte de papéis retorcidos e tisnados se formasse na lareira, tudo o que restava da colecção de cartas perfumadas, à excepção dos trinta ou quarenta desenhos recortados dos cantos – andorinhas, miosótis e raminhos de hera – que agora pertenciam a Paul. Quanto a William, partiu para Londres, para dar início a uma nova colecção.
IV
A JUVENTUDE DE PAUL
PAUL saía à mãe – era baixo e franzino. O cabelo loiro tornou-se progressivamente arruivado e depois castanho-escuro, enquanto os olhos eram acinzentados. Era uma criança pálida e de poucas falas, com uns olhos que pareciam escutar e um lábio inferior carnudo e descaído.
Geralmente davam-lhe mais idade, pela constante preocupação que mostrava pelo que as outras pessoas sentiam, especialmente a mãe. Quando ela sofria, ele apercebia-se e não tinha paz, sempre de alma atenta às suas mais pequenas reacções.
À medida que crescia, ia-se tornando mais forte. William, devido à diferença de idades, não o queria por companheiro, pelo que só Annie estava com ele o dia inteiro. Annie era uma garota endiabrada, uma maria-rapaz, como a mãe lhe chamava, mas adorava o irmão mais novo, que andava sempre atrás dela. Quando ela fazia corridas com as outras garotas da vizinhança, Paul corria ao lado dela, a apoiá-la, uma vez que ainda não podia participar. Muito calado, passava quase despercebido. Mas a irmã adorava-o e ele fazia-lhe as vontades todas.
Annie tinha uma boneca grande de que muito se ufanava, embora não gostasse tanto dela como do irmão. Um dia, deitou-a no sofá, cobriu-a com uma manta, para ela adormecer, e foi-se embora. Entretanto, Paul pôs-se a saltar em cima do sofá e caiu mesmo em cima da cara da boneca, escondida debaixo da coberta. Annie precipitou-se para o sofá soltando um grito lancinante e sentou-se a chorar, inconsolável. Paul nem se mexeu.
– Não se percebia que a boneca estava ali, mãe; não se percebia – não se cansava ele de repetir, deixando-se ficar sentado muito triste enquanto Annie continuava a chorar. Por fim, o desgosto passou e ela perdoou ao irmão, que estava genuinamente contrito. Porém, um ou dois dias depois Annie ficou chocadíssima.
– Vamos oferecer a Arabella em sacrifício – disse ele. – Vamos queimá-la. – A irmã ficou horrorizada, mas ao mesmo tempo fascinada. Sempre queria ver o que o irmão ia fazer. Ele fez um altar de tijolos, tirou bocadinhos do enchimento do corpo de Arabella, enfiou esses bocadinhos na cara esburacada, deitou-lhe em cima um pouco de parafina e incendiou a boneca. Depois, com perversa satisfação, ficou a ver as gotas de cera derretida a escorrerem pela testa de Arabella, como se fossem suor a pingar sobre a chama. Enquanto a estúpida da boneca esteve a arder, ele rejubilou em silêncio. No fim, esgravatou nas brasas com um pauzinho, pescou os braços e as pernas, todos pretos, e esmagou-os com uma pedra.
– Pronto, este foi o sacrifício da Arabella – anunciou. – E ainda bem que não sobejou nada.
Annie, embora nada dissesse, estava perturbada com a cena. Era como se ele odiasse a boneca intensamente pelo facto de a ter partido.
Todos os irmãos, mas Paul em particular, colocavam-se nitidamente ao lado da mãe contra o pai. Morel continuava a fazer desmandos e a embebedar-se. Havia alturas, às vezes meses a fio, em que transformava a vida de toda a família num inferno. Paul nunca se havia de esquecer de ter vindo para casa, depois de uma reunião religiosa uma segunda-feira à tardinha, e ter encontrado a mãe com um olho negro e todo inchado, o pai de pé junto à lareira, de pernas afastadas e cabisbaixo, e William, que acabara de chegar do trabalho, a olhar enfurecido para o pai. Fez-se silêncio quando os irmãos mais novos entraram, mas nenhum dos adultos olhou para eles.
William estava lívido e de punhos cerrados. Esperou que os mais pequenos se calassem, limitando-se a olhar a cena com indizível raiva infantil, e disse:
– Seu grande cobarde, se eu cá estivesse, não se atrevia a fazer uma coisa destas.
Mas Morel estava ao rubro e voltou-se contra o filho. William era mais alto, mas Morel era mais possante e estava cego de raiva.
– Ah, não? – berrou. – Ah, não atrevia? Se abres mais essa boca, meu menino, assento-te a mão em cima, olá se assento!
E, vergando os joelhos, brandiu o punho ameaçadoramente, animalescamente. William estava lívido de raiva.
– Ah, sim? – disse William, sereno e intrépido. – Pois seria a última vez.
Morel aproximou-se gingão, semivergado, de punho no ar em posição de ataque. William armou também o punho. Os seus olhos azuis fixos no pai tinham o brilho de uma gargalhada. Mais uma palavra e os dois homens engalfinhavam-se. Paul desejava que isso acontecesse. Os três mais novos assistiam sentados no sofá, sem pinga de sangue.
– Acabem já com isso – gritou Mrs. Morel, com dureza. – Por esta noite chega... E tu – disse, virando-se para o marido – pensa nos teus filhos.
Morel virou os olhos para o sofá.
– Pensa nos teus filhos, ess’agora, minha grande cabra – disse ele, acintoso – o qu’é qu’eu fiz òs meus filhos, sempre gostava de saber. Mas eles saem a ti... ensinaste-lhes todas as tuas manhas e truques... criaste-os à tua maneira, foi o que foi.
Ela não respondeu. Ninguém abriu a boca. Passado algum tempo, ele atirou as botas para debaixo da mesa e foi deitar-se.
– Porque é que não me deixou fazer-lhe frente? – disse William, quando o pai já tinha ido para cima. – Ele tinha apanhado, e bem.
– Que bonito... bateres no teu pai – respondeu a mãe.
– Pai! – repetiu William. – Aquilo, meu pai!
– Bom, lá que é... é. Por isso...
– Mas porque é que não me deixa dar-lhe uma ensinadela, não custava nada...
– Que disparate! – gritou Mrs. Morel. – Ainda não chegámos a esse ponto.
– Não – disse o filho. – Ainda é pior... olhe para a sua cara. Porque não me deixou bater-lhe?
– Porque não ia suportar assistir a uma coisa dessas. É melhor que nem te passe pela cabeça – gritou ela, peremptória.
As crianças foram deitar-se muito tristes.
Quando William já era grande, a família mudou-se das Bottoms para uma casa no alto da colina, de onde se alcançava todo o vale, que se estendia por baixo, convexo, como concha de amêijoa ou berbigão. Fronteiro à casa, estava postado um velho freixo de grandes dimensões. Quando o vento oeste soprava forte das bandas do Derbyshire, apanhava em cheio as casas e a árvore não parava de ulular. Morel gostava de a ouvir.
– É como a música – dizia ele. – Ajuda-me a adormecer.
Mas Paul, Arthur e Annie detestavam o zumbido do vento. Para Paul, era quase um gemido demoníaco. Durante o primeiro Inverno que passaram na nova casa, o pai portou-se muito mal. As crianças ficavam a brincar na rua, alcandorada sobre o vale extenso e sombrio, e só voltavam para casa às oito horas, indo directas para a cama. A mãe ficava a costurar no andar de baixo. Todo aquele espaço aberto diante da casa incutia nas crianças uma sensação de vastidão nocturna, de terror. Terror esse que provinha da árvore ululante e da discórdia entre os pais. Paul, mesmo depois de adormecer, tinha um sono sobressaltado e acordava amiúde com os barulhos que vinham de baixo. Acordava e ficava atento. Ouvia então os berros desabridos do pai, que chegara a casa a cair de bêbado, seguidos das respostas aceradas da mãe, e depois os murros do pai em cima da mesa e os seus gritos descontrolados, à medida que ia elevando a voz. E, finalmente, tudo isto era abafado pelos gemidos e os uivos penetrantes do grande freixo agitado pela ventania. As crianças mantinham-se caladas e expectantes, a aguardarem que o vento se calasse, para perceberem o que o pai estava a fazer, não fosse ele bater na mãe outra vez. A escuridão instilava neles sentimentos de horror, violenta tensão e sangue, e adormeciam com o coração apertado de angústia. O vento era cada vez mais assustador. Todas as cordas da grande harpa gemiam, silvavam e uivavam. E, depois, o horror do súbito silêncio: o silêncio total, lá fora e lá em baixo. Que silêncio era aquele?... Um silêncio de sangue? Que teria ele feito?
As crianças mantinham-se deitadas a respirar escuridão. Por fim, ouviam o pai atirar com as botas e subir a escada só de meias. Mesmo assim, ficavam à escuta, até que, se o vento deixava, ouviam a água a sair da torneira para a chaleira, que a mãe já deixava preparada para o dia seguinte, e podiam, finalmente, dormir em paz.
De manhã, acordavam felizes, muito felizes, e brincavam e dançavam à volta do candeeiro solitário, ainda na escuridão, mas guardavam um recanto de ansiedade dentro dos seus corações e uma tristeza nos olhos que conservaram para toda a vida.
Paul odiava o pai. Quando era ainda pequeno, tinha uma religião muito sua.
– Faz com que ele deixe de beber – pedia ele todas as noites.
– Senhor, deixa o meu pai morrer – rezava ele muitas vezes.
– Faz com que ele morra na mina – pedia ele quando, depois do chá, o pai tardava a vir do trabalho.
Esse era outro dos momentos em que a família sofria intensamente. As crianças chegavam da escola e tomavam chá. A enorme chaleira preta fervilhava a um lado do fogão e a terrina do guisado estava no forno, à espera de que Morel chegasse. Era esperado às cinco horas. Porém, durante meses a fio, parava sempre na taberna quando voltava do trabalho e por lá ficava a beber.
Nas noites de Inverno, quando o frio era intenso e anoitecia mais cedo, Mrs. Morel levava para a mesa uma palmatória de latão com uma vela acesa, para poupar o gás. As crianças comiam a sua fatia de pão com manteiga ou com banha e iam brincar para a rua. Mas, se Morel ainda não tinha chegado, eles pensavam duas vezes. Mrs. Morel não suportava imaginá-lo sentado na taberna a beber, todo sujo e ainda com as roupas da mina, depois de um dia de trabalho, e, em vez de vir para casa comer e lavar-se, preferir embebedar-se de estômago vazio. E este seu sentimento comunicava--se aos filhos. Agora, ela já não sofria sozinha: os filhos sofriam com ela.
Paul foi brincar com os outros rapazes. No vale semeado no crepúsculo, cintilavam aglomerados de luzes a marcarem a entrada das minas. Alguns mineiros retardatários subiam desgarrados o carreiro da encosta. Por fim, passou o homem que acendia os lampiões da rua. Mais nenhum mineiro se avistava. A escuridão abateu-se sobre o vale, o trabalho terminara, era a noite que chegava.
Paul correu ansioso para a cozinha. A vela solitária ardia ainda sobre a mesa, o clarão vermelho da fogueira inundava a cozinha, e Mrs. Morel estava sentada e só. A chaleira fumegava no fogão, o prato continuava à espera. Um sentimento de espera perpassava toda a casa, um sentimento de espera pelo homem que estava nesse momento sentado na taberna, a pouco mais de uma milha de casa, já noite escura, com a roupa de trabalho, sem comer, e a beber até cair. Paul apareceu à porta.
– O papá já chegou? – perguntou.
– Bem vês que não – disse Mrs. Morel, aborrecida com a redundância da pergunta.
Depois, o garoto pôs-se a andar de um lado para o outro à volta da mãe. Partilhavam a mesma ansiedade. A certa altura, Mrs. Morel foi lá fora escorrer a água das batatas.
– Estão todas negras, uma porcaria – disse ela. – Quero lá saber. – Não se trocavam muitas palavras. Paul quase odiava a mãe por sofrer daquela maneira quando o pai não vinha para casa.
– Para que se aflige tanto? – disse ele. – Se ele quer ficar por lá a embebedar-se, porque não o deixa?
– Deixá-lo! – ripostou Mrs. Morel. – Essa é boa, «deixá-lo». – Ela sabia que todo o homem que se mete na taberna quando devia voltar para casa sem demora se arruina a si mesmo e à família. As crianças eram ainda muito pequenas e ele era o seu único ganha-pão. William viera trazer-lhe algum alívio, pois, com ele empregado, sempre tinha alguém a quem recorrer se Morel descambasse de vez. Porém, isso em nada alterava a tensão que se respirava na cozinha nestas noites de espera.
Os minutos escoavam-se no bater ritmado do relógio. Às seis horas, a mesa ainda estava posta, o jantar à espera, e a mesma atmosfera de ansiedade e expectativa invadia toda a casa. Paul já não aguentava mais. Não lhe apetecia ir lá para fora brincar. Correu por isso para casa de Mrs. Inger, duas portas mais abaixo, para conversar com ela. Mrs. Inger não tinha filhos. O marido era amigo dela, mas era caixeiro numa loja e chegava muito tarde. Quando ela viu o garoto à porta, chamou-o:
– Vem cá, Paul.
Ficaram os dois a conversar durante um bocado, mas logo Paul se levantou, dizendo:
– Bem, vou andando, para ver se a minha mãe precisa que eu lhe vá fazer algum recado.
Fingia estar muito alegre e não contou à amiga o que o preocupava. Depois, voltou a correr para casa.
Em alturas como esta, Morel chegava sempre mal-humorado, insuportável.
– Lindas horas de voltares para casa – dizia Mrs. Morel.
– Que tens tu co’isso, cas horas a qu’eu venho pra casa? – berrava ele.
E ninguém abria a boca, porque ele era perigoso. Comia o que lhe punham à frente com inultrapassável grosseria e, quando terminava, empurrava tudo o que tinha diante de si para longe, para poder estender os braços por cima da mesa, e, em seguida, adormecia.
Paul odiava por demais o pai. A cabeça do mineiro, pequena e mesquinha, com o cabelo preto empastado de fuligem, repousava sobre os braços nus, e a cara, suja e mal-humorada, de nariz grosso e sobrancelhas finas e insolentes, estava virada para o lado, adormecida – da cerveja, do cansaço e da má índole. Se alguém entrasse de repente ou fizesse o mais pequeno ruído, o homem abria os olhos e berrava:
– Tás aqui, tás a levar um murro, se não paras com essa chinfrineira. Tás’ouvir?
Estas palavras, gritadas selvaticamente e quase sempre dirigidas contra Annie, deixavam toda a família transida de medo.
Ele era mantido fora de todos os assuntos. Ninguém lhe contava nada. Enquanto estavam sozinhos com a mãe, o filhos relatavam-lhe as peripécias do dia, contavam-lhe tudo. Era como se nada realmente acontecesse até contarem à mãe. Mas, mal o pai entrava, fazia-se silêncio. A sua presença era como um travão na engrenagem fluente e feliz da vida doméstica. Ele apercebia-se deste muro de silêncio, do isolamento a que o votavam, de que não era bem-vindo; mas era já demasiado tarde para mudar.
Bem gostaria de que os filhos conversassem com ele, mas eles não conseguiam. Às vezes Mrs. Morel dizia:
– Devias contar ao teu pai.
Paul ganhou um prémio num concurso de jornal e todos ficaram radiantes.
– O melhor é contares ao teu pai quando ele chegar – disse Mrs. Morel. – Sabes bem que ele passa a vida a dizer que nunca lhe contam nada.
– Está bem – concordou Paul. No entanto, quase preferia ter perdido o prémio a ter de contar ao pai.
– Ganhei um prémio num concurso, pai – disse ele.
Morel voltou-se e disse:
– Ah, ganhaste, meu rapaz?... E que concurso era esse?
– Nada de especial... era sobre mulheres famosas.
– E de quanto é esse tal prémio que ganhaste?
– É um livro.
– Ah, é?
– Sobre aves.
– Hum!
E era assim. Não havia conversa possível entre o pai e qualquer dos restantes membros da família. Era como se ele fosse um estranho, tivesse negado o Deus que nele habitava.
Os únicos momentos em que voltava a entrar na vida da família era quando fazia consertos em casa e o trabalho lhe corria de feição. Às vezes, ao fim da tarde, depois de jantar, punha-se a remendar as botas ou a soldar a chaleira ou o cantil. Nessa altura precisava de ajudantes e as crianças rejubilavam. Partilhavam com ele o trabalho, no verdadeiro sentido de construírem realmente qualquer coisa, e aquele sim, era ele outra vez.
Mostrava-se competente e habilidoso, e quando estava de bom humor não parava de cantarolar. Mas atravessava longos períodos, às vezes meses, quase anos até, de contundência e irascibilidade. Depois, de repente, ficava bem-disposto outra vez e era bom vê-lo entrar pela copa dentro com um bocado de ferro incandescente, a gritar:
– Saiam da frente, saiam da frente!
Batia o ferro rubro e maleável na bigorna e moldava-o a gosto. Outras vezes sentava-se a soldar, e as crianças viam cheias de alegria o metal derreter instantaneamente e ser espalhado pelo ferro de soldar, impregnando a casa de um odor a lata quente e a resina queimada, enquanto Morel em silêncio se concentrava no trabalho. Cantava sempre que estava a remendar as botas, ao som das batidas do martelo. E via-se que estava feliz quando punha grandes remendos nas calças de fustão que usava na mina, o que acontecia bastas vezes, pois achava-as muito sujas e muito rijas para ser a mulher a fazê-lo.
Mas o que as crianças mais gostavam era de o verem fazer detonadores. Morel ia buscar ao sótão um molho de palhas de trigo compridas e resistentes. Limpava-as e polia-as à mão até cada uma luzir como uma hastezinha de ouro. Depois, cortava-as em bocados com cerca de seis polegadas, fazendo-lhes, se possível, um talho na ponta. Tinha sempre ao seu lado um canivete primorosamente afiado que cortava uma palha ao meio sem a danificar. Seguidamente, deitava em cima da mesa um montinho de pólvora – uma pilha de grãos pretos sobre o tampo de madeira bem lavada, e ia preparando e aparando as palhas, enquanto Paul e Annie as enchiam e vedavam com um bujão. O que Paul mais gostava era de ver os grãozinhos pretos escorregarem pela calha que ele fazia com a palma da mão e entrarem pela abertura da palhinha, até ela ficar cheia. Nessa altura, vedava a abertura com uma raspa de sabão que arrancava com a unha do polegar do bocado de sabão que tinha a seu lado num pires, e a palha estava pronta.
– Olhe, pai! – dizia ele.
– Isso mesmo, meu amor – respondia Morel, que era particularmente pródigo em elogios para com o seu segundo filho. Paul atirava os detonadores para dentro da lata da pólvora, já pronta para o dia seguinte, quando Morel a levasse para a mina, para com eles provocar uma explosão capaz de fracturar a parede de carvão.
Entretanto, Arthur, ainda muito agarrado ao pai, vinha apoiar-se no braço do cadeirão de Morel e dizia:
– Conte-nos como é lá em baixo na mina, papá.
Era o que Morel mais gostava de fazer.
– Ora bem, lá na mina há um cavalo, a gente chama-lhe Taffy – começava ele – e ele é um gra-a-nde manhoso!
Morel tinha uma maneira pitoresca de contar histórias. Parecia até que a manha do Taffy ganhava vida.
– É um baio – continuava ele – e dos pequenos. Bem, a cert’altura ele entra na galaria com ganda estardalhaço e a gente ouve-o espirrar.
– «Olá, Taff», diz a gente, «pra que tás tu a espirrar? Andaste a cheirar rapé?» E ele vá de espirrar outra vez. Depois vem ter co’a gente e dá-nos co’a cabeça no ombro, o malandreco.
– «Qu’é que tu queres, Taff?», diz a gente.
– E o qu’é qu’ele quer? – perguntava Arthur invariavelmente.
– Quer um bocado de tabaco, meu tontinho.
E a história do Taffy nunca mais acabava, para gáudio da pequenada.
Outras vezes a história mudava.
– Ora ouve esta, meu amor. De quando vou a vestir o casaco, na hora de vir dar ao dente, e dou c’um rato a correr-me pela manga acima. «Eh, lá!», grito eu, mesmo a tempo de lh’agarrar a ponta do rabo.
– E matou-o?
– Matei, pois. São uma praga. Aquilo tá cheio deles.
– E o que é que eles comem?
– Os grãos qu’os cavalos deixam cair... e até nos vêm ao bolso comer o farnel, s’os deixarmos... seja onde for que a gente pendure o casaco... Danados de comilões, isso é qu’eles são...
Estas noites bem passadas só aconteciam quando Morel tinha trabalho para fazer. Depois, ia deitar-se muito cedo, geralmente com as crianças. Não havia nada que o fizesse ficar a pé depois de terminar os consertos e ler por alto os títulos do jornal.
Os filhos sentiam-se seguros quando o pai estava na cama. Por vezes ficavam a conversar em voz baixa depois de se deitarem, e assustavam-se quando luzes de repente se projectavam no tecto, vindas das lanternas dos mineiros que passavam para o turno das nove horas. Ouviam as vozes dos homens e imaginavam-nos a penetrar no vale de breu. Às vezes iam à janela e ficavam a ver as três ou quatro lanternas cada vez mais pequeninas desaparecerem na distância, balançando na escuridão dos prados. E, depois, era tão bom voltarem para a cama e enroscarem-se uns nos outros, no quentinho.
De todos, só Paul era muito frágil, atreito a ataques de bronquite. Os outros eram todos fortes e essa era talvez a outra razão para a diferença que a mãe fazia entre ele e os irmãos. Um dia, Paul chegou adoentado à hora do almoço. A família, porém, não era dada a pieguices.
– O que se passa contigo? – perguntou a mãe, incisiva.
– Nada – respondeu ele.
Mas não quis comer.
– Se não comeres, não voltas para a escola.
– Porquê? – perguntou ele.
– Porque não.
Depois do almoço, ele foi deitar-se no sofá, entre as fofas almofadas de ramagens de que as crianças tanto gostavam, e pareceu adormecer. Nessa tarde, estava Mrs. Morel a passar a ferro quando ouviu os ruídos roucos e entrecortados que o filho fazia ao respirar. De novo a assaltou o antigo sentimento exacerbado de quando ele era bebé e julgava que não ia sobreviver. No entanto, o corpinho dele tinha grande vitalidade. Talvez para ela tivesse sido um alívio se ele tivesse morrido. Sentia sempre a angústia misturar-se ao amor que lhe tinha.
Ele, no seu estado de semiconsciência, apercebia-se vagamente do tinir do ferro no descanso e do seu assentar cavo sobre a tábua de engomar. Uma das vezes, acordando, abriu os olhos e viu a mãe junto à lareira com o ferro quente perto da cara, a escutar por assim dizer o ruído do calor. Ao ver o seu rosto imóvel, a boca crispada de tanto sofrimento, desilusão e abnegação, o nariz ligeiramente à banda e os seus olhos azuis, tão jovens, vivos e ternos, o coração de Paul apertou-se-lhe de amor. Quando ela ficava assim parada, como agora, parecia cheia de vida e de coragem, mas completamente privada dos seus direitos. Ao filho, magoava-o profundamente este pressentimento de ela nunca ter sido feliz, e a sua própria falta de capacidade para a compensar atingia-o como uma espécie de impotência, ao mesmo tempo que determinavam nele uma atitude de paciente tenacidade, em conformidade com as suas ambições pueris.
Ela cuspiu no ferro, e uma bolinha de cuspo enovelou-se e correu pela superfície negra e luzidia. Depois, pondo-se de joelhos, esfregou o ferro vigorosamente no forro de serapilheira do tapete. As chamas da fogueira envolviam-na num clarão cálido e avermelhado. Paul gostava da maneira como ela se baixava e inclinava a cabeça para o lado com movimentos leves e ligeiros. Era sempre com enlevo que a olhava. Nada que fizesse, nenhuma atitude ou movimento, podiam ter defeito para os filhos. A casa estava aquecida e cheirava a roupa quente. Mais tarde, o pároco veio conversar tranquilamente com Mrs. Morel.
Paul caiu à cama com um ataque de bronquite. Não que isso o contrariasse muito: o que tinha de ser tinha muita força e de nada servia revoltar-se. Gostava das noites, depois das oito horas, quando apagavam a luz e ele podia ver as chamas projectarem-se na escuridão das paredes e do tecto e seguir com o olhar as sombras alongadas que o percorriam, até a sala parecer invadida por guerreiros silenciosos, combatendo no silêncio.
Quando se ia deitar, o pai passava primeiro pelo quarto do enfermo. Se alguém estava doente em casa, mostrava-se sempre muito terno, mas a sua entrada não deixava de perturbar a paz que reinava no quarto de Paul.
– Tá a dormir, meu amor? – perguntava Morel, devagarinho.
– Não... A mãe não vem para cima?
– Tá só a acabar de dobrar a roupa. Quer alguma coisa? – Morel só raramente tratava o filho por «você».
– Não, não quero nada... Mas quanto tempo é que demora?
– Já falta pouco, meu tontinho.
O pai hesitava uns segundos frente à lareira. Sentia que o filho não queria a sua presença. Assomava-se então ao cimo das escadas e dizia à mulher:
– Aquela criança tá ansiosa por te ter ó pé... Inda vais ficar aí muito tempo?
– Até acabar o que estou a fazer, santo Deus! Diz-lhe que durma.
– Ela diz qu’o melhor é o meu menino adormecer – disse ele a Paul, de mansinho.
– Mas eu quero que ela venha para cima – insistiu o garoto.
– Ele diz que não dorme enquanto não vieres pra cima – gritou Morel lá para baixo.
– Calma, querido! Já vou. E vê se não gritas dessa maneira. Olha as outras crianças...
Depois, Morel voltou para o quarto de Paul e acocorou-se em frente da lareira. Que bem lhe sabia aquecer-se ao lume.
– Ela diz que já vem.
Parecia querer ficar ali indefinidamente. O garoto já estava febril de irritação. A presença do pai parecia aumentar ainda mais a sua impaciência. Por fim, depois de ficar a olhar para o filho por algum tempo, em silêncio, Morel disse mansamente:
– Boa noite, meu amor.
– Boa noite – respondeu Paul, voltando-se para o outro lado, satisfeito por ficar sozinho.
Paul adorava dormir com a mãe. O sono é ainda mais reparador, apesar de tudo o que dizem os defensores da higiene, quando partilhado com um ente querido. O aconchego, a segurança, a paz de espírito e o conforto que a presença do outro traz, conferem ao sono propriedades curativas. Paul adormecia encostado a ela e melhorava depressa, e ela, sempre atormentada por insónias, mergulhava num sono profundo que parecia renovar-lhe a esperança.
Durante a convalescença, Paul ficava sentado na cama, a ver os cavalos a pastar nos campos circundantes, espalhando o feno pela neve amarelada das pegadas, e a ver os mineiros voltarem para casa, figurinhas negras trilhando lentamente em grupos a alvura dos campos. Depois, vinda da neve, a noite avançava em vapores azulados, quase negros.
Durante a convalescença tudo era maravilhoso. Os flocos de neve caindo de repente na janela detinham-se por um momento, como andorinhas, mas logo desapareciam, e uma gota de água escorria pela vidraça. Os flocos de neve rodopiavam em torno da esquina da casa como pombas esvoaçantes. Do outro lado do vale, o pequeno comboio negro rolava hesitante através da planície toda branca.
Vendo-se tão pobres, as crianças ficavam radiantes quando podiam fazer qualquer coisa que pudesse ajudar os pais economicamente. Annie, Paul e Arthur saíam no Verão logo pela manhã e metiam-se pelo meio da erva molhada, de onde esvoaçavam cotovias, assustadas, à cata de cogumelos, esses corpos nus e de pele tão branca que se escondem dos olhares por entre o verde. Se conseguiam apanhar meia libra, já se davam por muito felizes: era a alegria de encontrarem qualquer coisa, a alegria de receberem qualquer coisa directamente das mãos da natureza e a alegria de poderem contribuir para a economia doméstica.
Mas a colheita mais importante, depois de andarem à procura de ervas aromáticas para as papas, era a das amoras. Mrs. Morel tinha de comprar fruta todos os sábados para os pudins; além disso, gostava muito de amoras. Assim, Paul e Arthur, enquanto houvesse uma amora à vista, esquadrinhavam os silvados, as moitas e as pedreiras abandonadas todos os fins-de-semana. Naquela região de cidades mineiras, as amoras eram relativamente raras. Mas Paul era persistente. Gostava de andar pelos campos entre os silvados, mas não suportava voltar de mãos a abanar. Isso seria desapontá-la, pensava ele, e antes queria morrer.
– Santo Deus! – exclamou a mãe ao vê-los entrar, já tarde, mortos de cansaço e cheios de fome. – Por onde é que vocês andaram?
– Bem – começou Paul –, como aqui não encontrámos nenhuma, fomos até Misk Hills... E veja só, mãe.
Ela espreitou para a cesta.
– E que lindas que são! – exclamou.
– E passa de duas libras... passa de duas libras, não passa, mãe?
A mãe tomou o peso à cesta.
– Passa, sim – respondeu, pouco convicta.
Paul estendeu-lhe um raminho. Trazia-lhe sempre um raminho, o mais bonito que encontrasse.
– Que bonito! – disse ela, com a entoação especial da mulher que recebe um testemunho de amor.
O filho preferia correr os campos o dia inteiro, calcorrear milhas e milhas, a dar-se por vencido e voltar de mãos vazias. Ela nunca o entendeu enquanto ele foi pequeno. Era uma mulher que esperava que os filhos crescessem depressa e se preocupava sobretudo com William.
Mas quando William foi trabalhar para Nottingham, e já não passava tanto tempo em casa, a mãe fez de Paul seu companheiro. Este sentia involuntariamente ciúmes do irmão, e William tinha ciúmes de Paul, mas eram ao mesmo tempo bons amigos.
A relação de Mrs. Morel com o seu segundo filho era mais subtil e tranquila, menos exacerbada talvez do que com o filho mais velho. Estava estabelecido que era Paul quem ia levantar o salário às sextas-feiras à tarde. Os mineiros das cinco minas da zona recebiam à sexta-feira, mas não individualmente. Os salários referentes a cada galeria eram pagos por junto ao capataz, chefe e contratador dos mineiros, e era ele quem fazia a distribuição, na taberna ou na sua própria casa. Para as crianças poderem ir buscar o dinheiro, a escola acabava mais cedo às sextas-feiras. Todos os filhos de Morel, primeiro William, depois Annie e agora Paul, já tinham ido buscar o dinheiro às sextas-feiras à tarde, até chegar a altura de eles próprios começarem a trabalhar. Paul costumava sair de casa às três e meia, com um saquinho de pano no bolso. Por todos os caminhos se viam mulheres, raparigas, crianças e homens a caminho dos escritórios.
Os escritórios eram muito bonitos: num edifício novo de tijolo vermelho, que mais parecia uma mansão, no meio de um jardim muito bem tratado, ao fundo de Greenhill Lane. A sala de espera era no vestíbulo, uma sala comprida e nua com chão de tijoleira azul e um banco a toda a volta, encostado à parede. Era aqui que se sentavam os mineiros, carregados de fuligem. Tinham saído mais cedo da mina. As mulheres e as crianças ficavam geralmente à espera nos arruamentos de gravilha avermelhada. Paul observava sempre com atenção a orla de relva e o grande canteiro onde cresciam amores-perfeitos e miosótis. Aos ouvidos chegava-lhe o som de muitas vozes misturadas. As mulheres exibiam os seus chapéus domingueiros. As raparigas tagarelavam animadas. Os cães corriam para um lado e para o outro. E, em redor, os arbustos erguiam-se verdes e silenciosos.
Nisto, alguém gritava de lá de dentro: «Spinney Park... Spinney Park», e todos os da mina de Spinney Park entravam de tropel. Quando chegava a vez da mina de Bretty, Paul entrava com a multidão. A sala de pagamentos era muito pequena. Um balcão a toda a largura dividia-a ao meio. Atrás do balcão estavam dois homens, Mr. Braithwaite e um empregado, Mr. Winterbottom. Mr. Braithwaite era um homem corpulento, com ar de patriarca austero e uma barbicha branca e rala. Tinha geralmente a boca tapada com um grande lenço de pescoço, em seda, e, mesmo no Verão, havia sempre uma fogueira acesa. Não se via uma janela aberta. Por vezes, no Inverno, o calor até chegava a queimar as gargantas de quem vinha do ar gélido do exterior. Mr. Winterbottom era baixinho, gordo e calvo. Tecia comentários sem o mínimo resquício de imaginação, enquanto o seu chefe não se cansava de proferir patriarcais invectivas contra os mineiros.
A sala estava apinhada de mineiros todos enfarruscados, homens que já tinham ido a casa mudar de roupa, mulheres e uma ou duas crianças, e, geralmente, um cão. Paul era bastante baixo e era por isso sina sua ver-se entalado entre as pernas dos homens, perto do calor sufocante da lareira. Sabia a ordem por que os nomes eram chamados: de acordo com o número da galeria.
– Holliday – chamou a voz metálica de Mr. Braithwaite. Mrs. Holliday avançou em silêncio, recebeu o salário e passou para o outro lado.
– Bower... John Bower.
Um rapaz chegou-se ao balcão. Mr. Braithwaite, uma bisarma irascível, fuzilou-o com o olhar por detrás das lentes.
– John Bower! – voltou ele a chamar.
– Sou eu – disse o rapaz.
– Esta agora..., dantes as ventas eram outras – disse o luzidio Mr. Winterbottom, espreitando por cima do balcão. Os presentes riram-se à socapa, a pensarem no John Bower pai.
– Porque é que o teu pai não veio? – perguntou Mr. Braithwaite, num tom magistral e grandiloquente.
– Não anda bem – respondeu o rapaz, na sua voz aflautada.
– Devias dizer-lhe para largar a bebida – aconselhou o corpulento tesoureiro.
– E depois não te queixes, se ele te ferrar um pontapé – disse uma voz trocista lá de trás.
Todos se riram. O tesoureiro, avantajado e com ares importantes, olhou para a folha que se seguia.
– Fred Pilkington! – chamou, em tom neutro.
Mr. Braithwaite era um importante accionista da firma.
Paul sabia que só faltava um e depois era a vez dele. O coração começou a bater mais depressa. Foi empurrado de encontro à chaminé. Tinha a barriga das pernas a arder, mas não podia furar a barreira humana à sua volta.
– Walter Morel! – soou a voz metálica.
– Aqui – esganiçou-se Paul, da sua pequenez desajeitada.
– Morel... Walter Morel! – repetiu o tesoureiro, de folha de pagamentos na mão, pronto a passar à frente.
Paul foi acometido de convulsões nervosas e não conseguia, ou não queria, gritar. As costas dos homens apagavam-no por completo. Então, Mr. Winterbottom veio em seu auxílio.
– Ele tava aqui... onde tá ele? O miúdo do Morel?
O homem gordo, vermelhusco e calvo perscrutou a sala, assestando os olhos. Nisto, apontou para a chaminé. Os mineiros olharam também e, afastando-se, libertaram o rapaz.
– Aqui tá ele! – disse Mr. Winterbottom. Paul aproximou-se do balcão.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros... Atão, não respondes quando te chamam? – disse Mr. Braithwaite. Pousou um saco com cinco libras em prata com toda a força em cima da folha de pagamentos e, depois, num gesto rápido e delicado, pegou numa pequena pilha de dez libras em ouro e colocou-a ao lado da prata. As moedas de ouro escorregaram sobre o papel como um rio de brilho. O tesoureiro acabou de contar o dinheiro e o rapaz levou tudo a Mr. Winterbottom, no outro extremo do balcão, a quem deviam ser pagas a renda da casa e o aluguer das ferramentas. Aí chegado, novo percalço.
– Dezasseis xelins e seis dinheiros – disse Mr. Winterbottom.
O rapaz estava nervoso de mais para contar o dinheiro, pelo que empurrou algumas moedas de prata e meio soberano na direcção do funcionário.
– Quanto julgas tu que me destes? – perguntou Mr. Winterbottom.
O rapaz fitou-o, sem responder. Não fazia a menor ideia.
– Perdestes a língua?
Paul mordeu o lábio e empurrou mais algumas moedas de prata por cima do balcão.
– Na escola num t’insinaram a contar? – perguntou o homem.
– Só álgibra e franciú – disse um mineiro.
– E a ser sabido – acrescentou outro.
Paul sabia que por sua causa havia gente à espera. Com mãos trémulas, guardou o dinheiro no saco e saiu. Estas ocasiões eram para ele como as penas do Inferno.
Quando se apanhou cá fora, na estrada de Mansfield, sentiu-se infinitamente aliviado. O muro do parque estava coberto de musgo muito verde. Galinhas brancas e douradas debicavam à volta das macieiras de um pomar. Os mineiros serpenteavam rumo a casa. O rapaz seguia rente ao muro, envergonhado. Conhecia muitos dos homens, mas assim, todos sujos, não conseguia identificá-los, o que para ele era uma nova tortura.
Quando chegou à taberna New Inn, em Bretty, o pai ainda não tinha chegado. Mrs. Wharmby, a taberneira, conhecia-o. A avó dele, a mãe de Morel, fora amiga de Mrs. Wharmby.
– O teu pai ainda não chegou – disse ela, naquele tom meio atrevido, meio maternal, de mulher habituada a falar sobretudo com homens feitos. – Senta-te.
Paul sentou-se ao balcão, na beira de um banco alto. Alguns mineiros estavam a um canto a «dividir o bolo» – a distribuir o dinheiro – e outros vinham a entrar. Todos miravam o rapaz, sem dizer palavra. Finalmente, Morel chegou, todo desempenado e com um certo toque de galhardia, apesar da pretidão.
– Olá – disse ele, ternamente, para o filho. – Atão, inda conseguiste chegar primeiro do qu’eu? Queres beber alguma coisa?
Paul, tal como os irmãos, tinha crescido um anti-alcoólico convicto, e para ele era pior beber uma limonada à frente de todos aqueles homens do que tirar um dente.
A taberneira mirou-o dos pés à cabeça, penalizada, mas ao mesmo tempo ofendida com a rigidez moral de que dava mostras. Paul voltou para casa rubro de vergonha. Entrou em silêncio. Sexta-feira era dia de cozer o pão e havia geralmente uma carcaça quentinha à sua espera. A mãe veio dar-lha.
De repente, ele virou-se a ela furioso, de olhos a faiscar.
– Nunca mais entro naquele escritório.
– Porquê, o que é que aconteceu? – perguntou a mãe, surpreendida. Divertia-se imenso com os súbitos ataques de fúria deste filho.
– Nunca mais lá volto – afirmou ele.
– Pronto, está bem. Então, vai dizer isso ao teu pai.
Paul mastigava o pão como se tivesse alguma coisa contra ele.
– Não vou... Não vou mais buscar o dinheiro.
– Então talvez um dos miúdos do Carlin possa ir. Eles haviam de gostar de ficar com os seis dinheiros – disse Mrs. Morel.
Os seis dinheiros era tudo o que Paul recebia. Gastava-os quase todos a comprar presentes de aniversário, é certo, mas eram a sua semanada e prezava-os muito. Porém, disse:
– Pois que fique com eles! Eu não os quero.
– Muito bem – respondeu a mãe. – Mas não precisas de me tratar mal por causa disso.
– Eles são horríveis e ordinários... são horríveis, pronto, e eu não vou lá mais. Mr. Braithwaite pronuncia mal as palavras e Mr. Winterbottom diz «a gente semos».
– E é por isso que não queres lá voltar? – disse a mãe a sorrir.
O rapaz ficou calado. Estava muito pálido, com os olhos pretos e furiosos. A mãe voltou aos seus afazeres sem lhe dar mais importância.
– Eles metem-se todos à minha frente e eu não consigo sair donde estou – disse ele.
– Bem, meu filho, só tens de pedir licença – respondeu ela.
– E depois o Alfred Winterbottom diz, «O qu’é que t’insinam na escola?»
– A ele nunca ensinaram grande coisa – disse Mrs. Morel. – Lá isso é verdade... nem boas maneiras, nem inteligência... a única coisa que tem é manha.
– E vão eles e dizem, «Só álgibra e franciú.» Na escola, não ensinam francês.
– Mas, se ensinassem – disse a mãe, sorrindo – não era preciso ficares tão zangado... Portas-te duma maneira tão infantil, meu filho, quando alguém brinca contigo.
– E depois? – Paul olhou para a mãe quase a chorar, e ainda com mais raiva e ódio do que propriamente ofendido.
– És tão pateta – continuou ela. – Não consegues dizer simplesmente «agora é a minha vez», deixas-te ultrapassar e depois ficas furioso. A culpa é tua.
E, assim, lá o acalmou, embora à sua maneira. A ridícula hiper-sensibilidade dele confrangia-lhe o coração. Outras vezes, a fúria que via nos olhos do filho alertava-a, fazia a sua alma adormecida levantar a cabeça momentaneamente, surpreendida.
– Quanto foi desta vez? – perguntou.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros, e dezasseis xelins e seis dinheiros de retenção – replicou o rapaz. Foi uma boa semana... e só cinco xelins de retenções para o meu pai.
Assim, ela podia calcular quanto o marido tinha ganho, e chamá-lo à pedra se ele lhe desse pouco dinheiro. Morel guardava sempre para si o segredo do montante da semana.
Sexta-feira era a noite de cozer pão e de ir ao mercado. Regra geral, Paul ficava em casa a vigiar o pão. Gostava de ficar a desenhar ou a ler – adorava desenhar. Annie punha-se sempre ao fresco à sexta-feira à noite, e Arthur entretinha-se a brincar na rua, como de costume. Por isso, Paul ficava sozinho.
Mrs. Morel gostava muito de ir à compras. No exíguo terreiro no cimo da colina onde se juntavam as quatro estradas vindas de Nottingham e Derby, Ilkeston e Mansfield, eram montadas muitas barracas. Chegavam breques das aldeias em redor. O mercado enchia-se de mulheres, as ruas ficavam apinhadas de homens. Mrs. Morel costumava discutir com a vendedeira de rendas, simpatizava com o homem da fruta, que era muito falador – mas a mulher, essa era uma desavergonhada, sempre a dar conversa ao peixeiro, que era um patife, mas muito espirituoso – metia na ordem o vendedor de linóleo, mostrava-se distante com o homem do bricabraque, e só entrava na barraca das loiças quando se sentia atraída – ou arrastada – pelas florinhas que decoravam algum prato ou alguma travessa. Mas, sempre que isso acontecia, mostrava-se delicadamente reservada.
– Estava aqui a pensar quanto poderia custar isto – dizia ela.
– Sete dinheiros, por ser para si.
– Obrigada.
Pousava de novo a travessa e ia-se embora. Mas não era capaz de deixar o mercado sem a levar. E lá ia ela outra vez ao sítio onde as loiças estavam expostas pelo chão, e olhava de soslaio para a travessa, furtivamente, fingindo que não estava a olhar.
Era uma mulher franzina, de chapéu e fato preto. O chapéu já tinha quase três anos, para vergonha e desespero de Annie.
– Mãe! – implorava ela. – Não ponhas mais esse chapéu horroroso.
– E queres que eu ponha o quê? – retorquia a mãe, com aspereza. – Acho que está até muito bom.
Começara por ser enfeitado com uma pala, depois seguiram-se flores, e agora estava reduzido a uma rendinha preta e um pouco de azeviche.
– Tem tão mau aspecto – dizia Paul. – Não lhe pode dar um ar um pouco mais moderno?
– Posso é dar-te umas boas palmadas, para não seres atrevido – disse Mrs. Morel, e atava as fitas do chapéu preto debaixo do queixo, com determinação.
Contemplou a travessa uma vez mais. Tanto ela como o oleiro se sentiam pouco à vontade, como se entre eles existisse qualquer desentendimento. De repente, o oleiro exclamou:
– Quer levá-la por cinco dinheiros?
Ela estremeceu. O coração apertou-se-lhe. Mas, depois, baixou-se e pegou na travessa.
– Fico com ela – disse ela.
– Faz-me esse favor, não é? – disse o homem. – O melhor é cuspir-lhe em cima, como se faz quando nos dão uma prenda.
Mrs. Morel deu-lhe os cinco dinheiros com frieza.
– Não acho que ma esteja a dar, percebe – disse ela. – Se não quisesse, não ma deixava levar por cinco dinheiros.
– Neste país de miséria, já nos podemos dar por muito felizes se pudermos dar as nossas coisas – resmungou o homem.
– Pois é, há tempos bons e maus – disse Mrs. Morel.
Mas já tinha perdoado ao oleiro. Agora, eram amigos. Já se atrevia a mexer nas loiças expostas e sentia-se feliz.
Paul estava à espera da mãe. Adorava vê-la entrar em casa. Chegava sempre radiante, triunfante, cansada, carregada de embrulhos, mas rica de espírito. Ele ouvia os seus passinhos leves na entrada e levantava os olhos das pinturas.
– Oh! – suspirava ela, sorrindo-lhe da soleira da porta.
– Ena pá, como vem carregada! – exclamava Paul, pousando o pincel.
– Se venho! – dizia ela, ofegante. – A marota da Annie disse que ia ter comigo. Olha para o peso que eu trago!
Pousou o saco e os pacotes em cima da mesa.
– O pão já está cozido? – perguntou, dirigindo-se para o forno.
– O último está a crescer – respondeu ele. – Não precisa de ir ver, eu não me esqueci dele.
– Ai, aquele oleiro! – disse ela, fechando a porta do forno. – Lembras-te de eu te dizer como ele era antipático. Bom, agora já não acho que seja assim tão mau.
– Ah, não?
O filho não tirava os olhos dela. Mrs. Morel tirou o chapelinho preto.
– Não... Acho que ele acaba por não ganhar nada... bem, passa-se o mesmo com toda a gente, nos tempos que correm... e é isso que o deixa mal-encarado.
– A mim deixava com certeza – disse Paul.
– Bom, e não seria para admirar... E ele deixou-me ficar esta... Por quanto é que achas que ele me deixou ficar isto?
Tirou a travessa do papel que a embrulhava e contemplou-a, satisfeita.
– Mostre lá! – pediu Paul.
E ficaram os dois lado a lado a admirar a travessa.
– Adoro ver estas florinhas a enfeitar as coisas – disse Paul.
– Eu também. E lembrei-me do bule que me compraste...
– Um xelim e três dinheiros – disse Paul.
– Cinco dinheiros!
– Foi muito barata, mãe.
– Pois foi. Pode dizer-se que foi quase roubada. Mas já tinha feito muitas extravagâncias e não tinha dinheiro para mais. E, se ele não quisesse, não precisava de ma vender.
– Lá isso, não, não precisava – disse Paul, e ficaram os dois a consolar-se mutuamente do receio de terem roubado o oleiro.
– Podemos usá-la para pôr fruta cozida – alvitrou Paul.
– Ou leite-creme... ou doce de fruta – acrescentou a mãe.
– Ou rabanetes e alface – continuou ele.
– Não te distraias com o pão – disse a mãe, numa voz transbordante de alegria.
Paul foi espreitar o pão e bateu-lhe ao de leve na parte de baixo.
– Já está cozido – disse, mostrando-o à mãe. Ela bateu-lhe também.
– Pois está – respondeu ela, começando a tirar as compras do saco. – Oh, sou uma gastadora, uma perdulária... Sei que um dia me vai fazer falta.
Paul foi a saltitar para junto da mãe, para ver as últimas extravagâncias. Ela abriu um outro embrulho em papel de jornal e pôs à mostra algumas raízes de amores-perfeitos e boninas carmesim.
– Quatro dinheiros! – lamentou-se.
– Que barato! – exclamou ele.
– Pois é, e logo esta semana que eu estava sem um tostão.
– Mas são lindas! – exclamou ele.
– Então não são! – exclamou ela, dando lugar ao mais genuíno contentamento. – Paul... olha para esta florinha amarela... que bonita, não é... e uma cara que parece de velho!
– E parece mesmo! – exclamou Paul, baixando-se para cheirar. – E que bem que cheira! Mas está um bocado suja.
Correu para a copa, voltou com um pano molhado, e lavou o amor-perfeito com todo o cuidado.
– Agora, olhe para ele, está todo molhado! – disse Paul.
– Pois está! – exclamou ela, a transbordar de felicidade.
As crianças de Scargill Street consideravam-se muito selectas. Ao fundo da rua, onde viviam os Morels, não havia muita gente nova, e, por isso, os que havia eram mais unidos. Rapazes e raparigas brincavam uns com os outros: as raparigas participavam nas lutas e jogos violentos dos rapazes, e os rapazes tomavam parte nas danças de roda e nos jogos de faz-de-conta das raparigas.
Annie, Paul e Arthur gostavam das noites de Inverno, quando não chovia. Deixavam-se ficar dentro de casa até os mineiros terem regressado todos, até ser noite fechada e a rua ficar deserta. Nessa altura, enrolavam um cachecol ao pescoço, pois prescindiam do casacão, tal como os outros filhos dos mineiros, e saíam de casa. A entrada da rua estava completamente às escuras daquele lado e a noite estendia-se vazia, com um pequeno emaranhado de luzinhas lá em baixo, na mina de Minton, e um outro bem mais longe, na direcção oposta, na de Selby. As luzes mais distantes pareciam prolongar as trevas para sempre. As crianças olhavam ansiosas para o lampião solitário postado ao fundo da rua, na extremidade da ladeira da encosta. Se o escasso espaço de luz estava deserto, os dois rapazes ficavam desolados. Encostavam-se ao candeeiro, de mãos nos bolsos e costas viradas à noite, aborrecidíssimos, a olharem para as casas às escuras. Nisto, avistaram um bibe por baixo de um casaquinho curto, e uma rapariga de pernas altas a correr para eles.
– Onde tão o Billy Pillins e a vossa Annie e o Eddie Dakin?
– Não sei.
Mas isso não tinha importância – agora já eram três, e punham-se a correr à volta do poste até os outros aparecerem a gritar. Daí em diante, era brincadeira a valer.
Existia apenas este candeeiro. Para trás dele, só a imensa concha de trevas que parecia conter a noite inteira. À sua frente, um caminho largo e escuro percorria a cumeada. De vez em quando, saía alguém desse caminho e dirigia-se para o vale, pelo carreiro, sendo tragado pela noite a uns escassos dez metros de distância. As crianças continuaram a brincar.
Eram excessivamente unidas devido ao isolamento em que viviam. Mas, se se zangavam, a brincadeira ficava completamente estragada. Arthur era muito susceptível, e Billy Pillins, ou melhor, Philips, era-o ainda mais. Paul tinha de tomar o partido de Arthur, e a Paul juntava-se Alice, enquanto Billy Pillins contava sempre com o apoio de Emmie Limb e Eddie Dakin. Depois, envolviam-se os seis à bulha, odiando-se com toda a fúria do mais genuíno ódio, e corriam para casa apavorados. Paul nunca se havia de esquecer de ter visto uma noite, depois de uma destas assanhadas lutas fratricidas, uma grande lua vermelha elevar-se lentamente no céu por cima da estrada deserta da cumeada, sem vacilar, como pássaro gigantesco; e a imagem bíblica que o assaltou, da lua a transformar-se em sangue. No dia seguinte, apressou-se a ir fazer as pazes com Billy Pillins, e as desenfreadas brincadeiras retomaram o seu curso à luz do candeeiro solitário, rodeadas da mais negra escuridão. Mrs. Morel, ao entrar na sala, ouvia as crianças a cantar ao longe:
«Uso sapatos de couro espanhol,
Meias de seda, para meu deleite;
Anéis nos dedos, que brilham ao sol,
E só tomo banho em tinas de leite.»
Pareciam tão absorvidas no jogo, pelo som das suas vozes que penetrava as trevas, que dir-se-ia o canto de criaturas selvagens. A mãe estremecia e entendia-os quando voltavam às oito horas, afogueados, de olhos brilhantes e língua solta e vibrante.
Todos eles gostavam desta casa de Scargill Street pela sua largueza de horizontes, pela sua abertura sobre a concha de mundo que dominava. Nas noites de Verão, as mulheres vinham arrimar-se à cerca da encosta, a conversar, viradas para poente, vendo o sol apagar-se num lampejo e espraiando o olhar até aos montes do Derbyshire, recortados ao longe num céu de carmim, como a crista negra de uma salamandra.
Neste Verão, as minas não estavam a trabalhar em pleno, especialmente as de carvão mole. Mrs. Dakin, que morava ao lado de Mrs. Morel, costumava ficar a ver os homens subirem a encosta lentamente sempre que se assomava à cerca para sacudir o tapete. Viu logo que eram mineiros e ficou à espera lá em cima, alcandorada na colina, alta, magra, olhar astuto e penetrante, uma quase ameaça para os pobres mineiros que a custo trepavam a ladeira. Eram apenas onze horas. A neblina que, como fino crepe negro, cobre o horizonte das manhãs estivais não se tinha ainda dissipado sobre as colinas frondosas desenhadas à distância. O primeiro homem alcançou a cancela, que chiou à sua passagem.
– O quê, mandaram-no embora? – gritou Mrs. Dakin.
– Mandaram, sim senhora.
– É uma pena deixarem-nos vir embora – disse ela, sarcástica.
– Lá isso é – respondeu o homem.
– E não apetece nada voltar para casa agora – disse ela.
O homem seguiu o seu caminho. Quando Mrs. Dakin atravessava o quintal, de volta a casa, avistou Mrs. Morel, que ia despejar as cinzas da lareira.
– Acho que Minton fechou, Mrs. Morel – gritou ela.
– É uma vergonha! – exclamou Mrs. Morel indignada.
– Pois é... Vi mesmo agora o Jont Hutchly.
– Bem podiam ter poupado as solas dos sapatos – disse Mrs. Morel, e voltaram as duas para casa indignadas.
Os mineiros, de caras quase limpas, voltavam para casa. Morel detestava ter de se vir embora. Adorava as manhãs soalheiras, mas ir para a mina e mandarem-no embora logo a seguir estragava-lhe a boa disposição.
– Santo Deus... já? – exclamou a mulher, vendo-o entrar.
– Qu’hei-d’eu fazer, mulher! – berrou ele.
– E eu não tenho comida que chegue.
– Num faz mal, como o farnel que levei – vociferou ele, pateticamente. Sentia-se envergonhado e irritado.
Os filhos, quando chegaram da escola, estranharam ver o pai a comer as duas grossas fatias de pão com manteiga que tinha levado para a mina, já muito secas e sujas.
– Porque é que o meu pai tem de comer o farnel aqui em casa? – perguntou Arthur.
– Porqu’ela ficava toda zangada s’eu num o comesse – respondeu Morel.
– Lá estás tu com histórias! – exclamou a mulher.
– E achas qu’é pra deitar fora? – disse Morel. – Eu num sou esquisito como vocês, que desperdiçam tudo. Se me cai um bocado de pão na mina, no meio daquela porcaria toda, apanho-o e como-o.
– Os ratos comiam-no – disse Paul – e já não era um desperdício.
– Pão cum manteiga pròs ratos? Nem pensar nisso – disse Morel. – Sujo ou limpo, antes comê-lo eu que deitá-lo fora.
– Podias dá-lo aos ratos e comprares mais com o dinheiro que gastas na cerveja – disse Mrs. Morel.
– Ah, podia...? – exclamou o marido.
O Outono que se seguiu foi de míngua. William tinha acabado de partir para Londres e a mãe sentia a falta do dinheiro que ele lhe costumava entregar. Ainda lhe mandou dez xelins por uma ou duas vezes, mas no início tinha muitas compras a fazer. As suas cartas chegavam com regularidade, uma vez por semana. Escrevia longas cartas à mãe em que lhe contava o que fazia, os amigos que tinha, as lições que trocava com um francês, como gostava de viver em Londres. Para a mãe era como se ele estivesse com ela, como no tempo em que morava em casa. E ele todas as semanas lhe escrevia cartas francas e cheias de espírito. Era nele que ela pensava o dia inteiro, enquanto fazia a limpeza da casa. Ele estava em Londres, ia ter sorte. Era quase como se fosse o seu cavaleiro andante, ostentando as cores dela na batalha.
Vinha agora a casa passar cinco dias pelo Natal. Não havia memória de tantos preparativos. Paul e Arthur correram os campos à procura de azevinho e sempre-viva. Annie fez enfeites de papel recortado à moda antiga, e a despensa estava farta como nunca. Mrs. Morel fez um bolo de natal enorme, magnífico, e sentindo-se uma rainha, mostrou a Paul como se pelavam amêndoas. Ele pelou as oleaginosas com reverência, contando-as, uma a uma, não fosse alguma perder-se. Dizia-se que as claras subiam mais num lugar frio e, por isso, Paul foi para a copa, onde o frio era quase insuportável, batendo-as sem parar e correndo excitadíssimo a mostrar a mãe como as claras cresciam, cada vez mais firmes e nevadas.
– Olhe, mãe... estão óptimas, não estão?
Depois, pôs um bocadinho na ponta do nariz e soprou-o para o ar.
– Então, isso não é para estragar – disse a mãe.
Toda a gente andava excitadíssima. William ia chegar na véspera de Natal. Mrs. Morel passou revista à despensa. Havia um grande bolo de passas e um bolo de farinha de arroz; tartes de geleia e de limão, e duas grandes travessas cheias de empadas de carne. E ainda faltavam umas tartes de amêndoa e de queijo que ela preparava a toda a pressa. A casa estava toda enfeitada. A coroa de azevinho, salpicada de bagas bem vermelhas e pendurada entre grinaldas cintilantes, rodopiava por cima da cabeça de Mrs. Morel enquanto ela recortava a massa das tartes na cozinha. A fogueira, imensa, crepitava. A casa rescendia a bolos e massa folhada. William devia chegar às sete horas, mas o mais provável era atrasar-se. Os irmãos tinham ido ao seu encontro. A mãe ficara sozinha. Mas, por volta de um quarto para as sete, Morel voltou para casa. Marido e mulher nada disseram. Ele sentou-se no cadeirão, ansioso, sem saber o que fazer, e ela continuou com os seus cozinhados. A sua comoção só era traída pelo modo meticuloso como ia fazendo as coisas. E o relógio continuou a bater.
– A que horas disseste qu’ele chegava? – perguntou Morel, pela quinta vez.
– O comboio chega às seis e meia – respondeu ela, enfaticamente.
– Então vai chegar por volta das sete e dez.
– Deus te oiça, mas o comboio vai atrasar-se algumas horas no Midlands – disse ela, aparentando indiferença. Fazia-o, no entanto, com a esperança de acontecer o contrário e ele chegar mais cedo. Morel foi até à porta, para ver se o via. Depois voltou para dentro.
– Credo, homem! – disse ela. – Parece que tens bicho-carpinteiro.
– Em vez de estares pr’aí a falar, num era melhor arranjares-lhe alguma coisa para comer? – disse o marido.
– Tenho muito tempo para isso – respondeu ela.
– Num é o que me parece – contrapôs ele, virando-se amuado na cadeira. Ela começou a limpar a mesa da cozinha. A chaleira já apitava. E eles à espera.
Entretanto, os outros três filhos estavam em Lethley Bridge, uma estação da linha do Midlands, a duas milhas de casa. Esperaram uma hora. Chegou um comboio, e nada. Ao fundo da linha, as luzes verdes e vermelhas acendiam e apagavam. Estava muito escuro e fazia muito frio.
– Vai perguntar-lhe se o comboio de Londres já passou – disse Paul a Annie quando avistaram um homem de boné de pala.
– Não vou nada – disse Annie. – Fica mas é calado, senão ele inda nos manda embora.
Mas Paul estava morto por que o homem soubesse que eles esperavam alguém que vinha de Londres, o que lhes dava uma certa importância. Porém, tinha medo, muito medo, de abordar um desconhecido, e ainda por cima de boné de pala. As crianças nem se atreviam a entrar na sala de espera, com medo de que os mandassem embora, e que alguma coisa acontecesse enquanto não estavam na plataforma. E lá continuaram à espera, no frio e na escuridão.
– Já está hora e meia atrasado – disse Arthur, já a desesperar.
– Bem – disse Annie –, é véspera de Natal.
O silêncio crescia entre eles. O irmão não vinha. Perscrutaram a escuridão ao longo da linha férrea. Lá ao fundo, ficava Londres! Uma lonjura infinita, pensaram. Tudo podia acontecer quando se vinha de Londres. Estavam demasiado preocupados para falarem. Enregelados, tristes e mudos, continuavam encostados uns aos outros na plataforma.
Finalmente, passadas mais de duas horas, avistaram os faróis de uma locomotiva a descrever uma curva na distância. Um bagageiro aproximou-se a correr. As crianças chegaram-se para trás com os corações a galope. Um enorme comboio com destino a Manchester parou. Abriram-se duas portas e, de uma delas, saiu William. Os irmãos atiraram-se a ele. Ele, todo contente, entregou-lhes muitos embrulhos e logo explicou que aquele grande comboio só tinha parado numa estação insignificante como Lethley Bridge por causa dele, já que a paragem não estava programada.
Entretanto, os pais iam ficando cada vez mais preocupados. A mesa estava posta, a costeleta grelhada, tudo estava a postos. Mrs. Morel pôs o seu avental preto. Por baixo, tinha o seu melhor vestido. Depois sentou-se e fingiu concentrar-se na leitura. Os minutos arrastavam-se como uma tortura.
– Hum! – disse Morel. – Já passa hora e meia.
– E aquelas crianças à espera! – disse ela.
– O comboio inda num pode ter chegado – disse ele.
– É o que eu digo. Na véspera de Natal vêm com horas de atraso.
Estavam os dois implicativos de tanta ansiedade. O freixo gemia lá fora fustigado por um vento gélido, implacável. E tanta noite a separar Londres do lar! Mrs. Morel sofria. O tiquetaque do relógio irritava-a sobremaneira. Estava a fazer-se tarde. A espera estava a tornar-se insuportável.
Por fim, o ruído de vozes e de passos na entrada.
– Já chegou! – gritou Morel, saltando da cadeira.
Depois, deu um passo à retaguarda. A mãe correu em direcção à porta e ficou à espera. Seguiu-se um tropel de passos, a porta escancarou-se e William apareceu. Largou no chão o saco de viagem e abraçou-se à mãe.
– Mater! – disse ele.
– Meu filho! – gritou ela.
E, durante não mais de dois segundos, ela abraçou-o e beijou-o. Depois, afastou-se e disse, com a naturalidade possível:
– Mas que grande atraso!
– Foi, não foi? – exclamou ele, voltando-se para o pai.
– Então, pai!
E os dois homens trocaram um aperto de mão.
– Então, meu rapaz!
Os olhos de Morel estavam rasos de lágrimas.
– Távamos a ver que nunca mais chegavas – disse ele.
– Então não havia de chegar! – exclamou William, voltando-se para mãe.
– Estás com óptimo aspecto – disse Mrs. Morel, a rir, toda orgulhosa.
– Claro... – respondeu o filho. – Basta ter voltado para casa.
Era um jovem desempenado, alto, garboso e de olhar intrépido. Olhou em volta, para a sempre-viva e o azevinho, e para as empadas que estavam dentro das forminhas em cima do fogão.
– Graças a Deus que nada mudou, mãe – disse ele, satisfeito. Todos ficaram calados por um momento. De repente, ele deu um salto em frente, tirou uma empadinha do fogão e meteu-a na boca de uma só vez.
– Safa, já alguma vez viram um saco roto como este? – exclamou o pai.
William trazia um nunca mais acabar de presentes para todos. Gastara quanto tinha para os comprar. A casa foi invadida por uma certa atmosfera de luxo e prosperidade. Para a mãe, uma sombrinha com o cabo beige com enfeites dourados. Ela guardou-a para quando morresse, e antes queria perder tudo o que tinha a ficar sem ela. Todos receberam coisas bonitas e, além disso, ele trouxe também montes de guloseimas desconhecidas naquelas paragens: geleias de frutos, ananás cristalizado, coisas que as crianças pensavam que só o esplendor de Londres tornava possíveis. E Paul não se calava de gabar tais guloseimas diante dos amigos.
– Ananás autêntico, às fatias, e transformado em cristal... bem bom!
Todos estavam loucos de felicidade. Não há nada que chegue ao próprio lar, e eles amavam-no com paixão, apesar dos maus bocados lá passados. Chegavam visitas, todos vinham dar-lhe os parabéns. Os vizinhos vinham ver o que Londres tinha feito de William e todos achavam que ele estava «um verdadeiro cavalheiro, e um belo rapaz, isso é que estava!».
Quando ele se foi embora outra vez, os irmãos foram chorar às escondidas para sítios diferentes, Morel foi meter-se na cama abatidíssimo e Mrs. Morel sentia-se como se estivesse drogada, como se os seus sentimentos tivessem paralisado. Amava o filho com verdadeira paixão.
William trabalhava no escritório de um advogado ligado a uma grande companhia de navegação e, em Junho, o chefe proporcionou-lhe uma viagem ao Mediterrâneo num dos barcos da companhia, por um preço irrisório. Mrs. Morel mandou-lhe dizer: «Vai, sim, meu filho. Podes não voltar a ter uma oportunidade como essa, e, para mim, ver-te a navegar no Mediterrâneo é talvez ainda melhor do que ter-te aqui em casa.» Mas William veio passar as duas semanas de férias a casa. Nem o Mediterrâneo, apelando embora a toda a sua ânsia de viajar e ao seu deslumbramento de homem pobre diante da opulência do Sul, podiam mantê-lo longe de casa. E isso era para a mãe compensação bastante para todos os sacrifícios.
V
PAUL ENFRENTA A VIDA
MOREL era um homem negligente, indiferente ao perigo, sofrendo por isso inúmeros acidentes. De tal forma que, quando Mrs. Morel ouvia chiar as rodas de uma carroça de transporte de carvão, estacando à sua porta, corria logo para a janela da sala à espera de ver o marido lá sentado, com o rosto macilento por baixo da camada de fuligem, e o corpo inerte, vítima de qualquer contusão ou outro percalço. Se era ele, saía de casa a correr para o ajudar.
Cerca de um ano após William ter ido para Londres, e logo depois de Paul ter saído da escola, mas quando ainda não tinha arranjado trabalho, estava Mrs. Morel no andar de cima e o filho na cozinha, entretido a pintar – fazia maravilhas com os pincéis – quando bateram à porta. Enfadado, Paul pousou o pincel para ir abrir. Simultaneamente, a mãe abriu a janela e espreitou para a rua.
Era um mineiro, um rapazito, que batia à porta.
– É aqui que mora o Walter Morel? – perguntou.
– É, sim! – respondeu Mrs. Morel. – Aconteceu alguma coisa?
Mas ela já tinha adivinhado.
– O seu marido aleijou-se – disse o rapaz.
– Oh, meu Deus! – exclamou ela. – Quando não acontece nada é que é para admirar. O que foi desta vez?
– Num sei bem, mas foi na perna... Levaram-no prò hospital.
– Valha-me Deus! – exclamou ela. – Ah, este homem... este homem...! Não me dá cinco minutos de descanso, eu morra aqui se não é verdade! O polegar já estava quase bom e agora... Tu viste-o?
– Vi-o lá ’baixo. E vi-os trazerem-no pra cima num elevador... tava branco cum’á cal. E o qu’ele berrou quando o Dr. Fraser o examinou na casa das lanternas... sempre aos berros e a praguejar... e a dizer que queria qu’o trouxessem pra casa... que num ia prò hospital...! E o rapaz calou-se.
– Isso é bem dele... quer vir para casa, para me dar trabalho... Obrigada, meu filho... Que cansada que eu estou de tudo isto... cansada e farta... isso é que eu estou!
Desceu as escadas. Paul tinha recomeçado a pintar, mecanicamente.
– Deve ser grave... para o levarem para o hospital... – continuou ela. – Mas que criatura mais descuidada! Os outros homens não podem ter assim tantos acidentes... É isso, ele queria deitar o trabalho todo para cima das minhas costas... E logo agora, que as coisas estavam finalmente a correr um bocadinho melhor... Vá, deixa isso, agora não há tempo para pinturas... A que horas tenho comboio? Agora vou ter de ir até Kreston... o quarto tem de esperar.
– Eu acabo de o arrumar – disse Paul.
– Não precisas... às sete horas estou de volta, acho eu... E o barulho que ele vai fazer... nem quero pensar... E aqueles calhaus de granito de Tinder Hill... ele bem pode chamar-lhes pedrinhas... os solavancos vão dar cabo dele. Não sei porque não consertam a estrada... naquele estado... e com tanta gente a passar por lá na ambulância... Devia haver aqui um hospital... Já compraram o terreno... e não iam faltar acidentes para o manter a funcionar. Mas não, têm de os levar não sei quantas milhas naquela ambulância ronceira até Nottingham. É uma vergonha! E o estardalhaço que ele vai fazer, já sei como é! Quem terá ido com ele?... O Barker, provavelmente. Coitado, vai desejar estar em qualquer lado menos ali. Mas vai cuidar bem dele, eu sei. E agora sei lá quanto tempo ele vai ficar naquele hospital... e ele que detesta! Enfim, se for só a perna, já não é mau.
Ia falando enquanto se preparava para sair. Despindo o corpete à pressa, baixou-se para a caldeira, enquanto a água corria lentamente para o jarro.
– Era bem melhor se esta caldeira não existisse! – exclamou ela, apertando a asa do jarro com impaciência. Tinha uns braços fortes e bem torneados, surpreendentes numa mulher da sua estatura.
Paul arrumou as suas tralhas, pôs a chaleira ao lume e pôs a mesa.
– Só há um comboio às quatro e vinte – disse ele. – Tem tempo de sobra.
– Não tenho, não! – gritou ela, piscando os olhos e fitando-o por cima da toalha, enquanto limpava a cara.
– Tem, sim... Tem pelo menos de beber uma chávena de chá. Quer que vá consigo até Keston?
– Vires comigo para quê, pode saber-se?... Ora deixa cá ver o que é que eu tenho de lhe levar... Valha-me Deus!... A camisa lavada... e é uma sorte estar lavada... mas ficava melhor se a tivesse posto ao ar... as meias... isso ele não vai querer... e uma toalha, acho eu... e lenços... e que mais?
– Um pente, uma faca, um garfo e uma colher – disse Paul. Já não era a primeira vez que o pai ficava internado no hospital.
– Sabe Deus em que estado ele tinha os pés – continuou Mrs. Morel, penteando o cabelo castanho e muito comprido, fino como seda e já salpicado de fios prateados. – Ele nunca se esquece de se lavar da cintura para cima, mas para baixo acha que já não é preciso. Mas devem apanhar lá muitos como ele.
Paul tinha posto a mesa e preparou duas fatias finas de pão com manteiga para a mãe.
– Aqui tem – disse, pondo uma chávena de chá em frente ao lugar dela.
– Agora não tenho tempo – disse ela, secamente.
– Mas tem de ter... Olhe, já está tudo pronto – insistiu o filho.
Ela acabou por se sentar, bebeu uns golinhos de chá e comeu um pouco de pão em silêncio. Estava a pensar.
Daí a nada, tinha de se ir embora, para percorrer a pé as duas milhas e meia até à estação de Keston. Já tinha metido no saco de rede tudo o que ele precisava. Paul ficou a vê-la subir a estrada, entre as sebes de arbustos, pequenina e franzina, e o seu coração sofria por ela, por vê-la sujeita a mais esta provação. E ela, correndo ligeira de tanta ansiedade, sentia atrás de si o coração do filho a acompanhá-la, a tomar para si a parte possível deste fardo, a dar-lhe forças. E, quando chegou ao hospital, pensou: «Ele vai ficar preocupadíssimo quando eu lhe disser que é assim tão grave... o melhor é ter cuidado.» E, de regresso a casa, sentia que tinha com quem partilhar o fardo.
– É grave? – perguntou Paul, mal a viu entrar.
– Mais ou menos – respondeu ela.
– O quê?
Ela suspirou, sentou-se e desapertou as fitas do chapéu. O filho viu-a levantar o queixo e desatar a laçada com os dedos pequeninos, mas endurecidos pelo trabalho.
– Bem – respondeu ela – não se pode dizer que seja perigoso... mas a enfermeira diz que foi uma pancada horrível. Estás a ver... foi um grande bocado de rocha que lhe caiu em cima da perna... aqui, salvo seja... uma fractura múltipla... e tem bocados de osso a sair para fora...
– Ui, que horror! – exclamaram os filhos.
– E claro que ele diz que vai morrer – continuou Mrs. Morel. – É mesmo dele dizer isso... «Estou arrumado, cachopa!», disse ele, olhando para mim. «Não digas disparates», disse eu. «Não vais morrer de uma perna partida, por pior que esteja»... «Só saio daqui num caixão», queixava-se ele. «Bem!», disse eu, «Se queres que eles te levem a passear ao jardim dentro dum caixão, quando estiveres melhor, é só pedires e eles fazem-te a vontade»... «Se acharmos que lhe vai fazer bem», acrescentou a Irmã. Ela é bem simpática, a Irmã, mas muito rigorosa.
Mrs. Morel tirou o chapéu. Os filhos mantiveram-se em silêncio, expectantes.
– Claro que ele está mal – prosseguiu ela. – E vai levar muito tempo a recompor-se. Foi um acidente muito grave e ele perdeu muito sangue... e, já se vê, a lesão é muito perigosa. Ninguém sabe o tempo que vai levar a sarar. E depois há a febre e a gangrena... se correr mal, ele até pode morrer... Mas lá no hospital... e depois ele tem bom sangue... e boa carnadura... Por isso não vejo razão para que tenha de correr mal... Claro que a ferida é muito grande...
Ela estava lívida, da angústia e da emoção. Os três filhos perceberam que o estado do pai era muito grave e a casa ficou silenciosa, perpassada de ansiedade.
– Mas ele melhora sempre – disse Paul, passado um bocado.
– Foi exactamente o que eu lhe disse – exclamou a mãe.
Todos se moviam de um lado para o outro sem fazerem o menor ruído.
– Ele de facto parecia que estava a morrer – disse Mrs. Morel. – Mas a Irmã diz que é das dores.
Annie foi arrumar o casaco e o chapéu da mãe.
– Ficou a olhar para mim quando eu me vim embora...! Eu disse: «Agora tenho de ir, Walter, por causa do comboio... e das crianças...» E ele ficou a olhar para mim... Custou-me tanto...
Paul pegou outra vez no pincel e continuou a pintar. Arthur foi lá fora buscar mais carvão. Annie ficou sentada, muito triste. E Mrs. Morel continuou imóvel, pensativa, na cadeira de baloiço que o marido lhe fizera, quando esperavam o primeiro filho. Estava triste e com muita pena de ver um homem sofrer tanto. Mas, mesmo assim, no fundo do coração, onde a chama do amor devia arder, tinha um vazio. No momento em que toda a sua compaixão de mulher estava exacerbada ao máximo, em que cuidaria dele dia e noite até cair para o lado, em que, se pudesse, de bom grado tomaria as suas dores, algures, num recôndito da alma, era indiferença que encontrava, por ele e pelo seu sofrimento. A dor que sentia vinha sobretudo desta incapacidade de o amar, mesmo quando ele despertava nela as mais fortes emoções. E assim se deixou ficar, pensativa, por um tempo.
– E nisto – disse ela de repente –, quando já ia a meio do caminho, vi que tinha saído com as botas de andar por casa... olhem para isto... – Era um par de botas velhas de Paul, castanhas e com as biqueiras muito gastas. – Nem sabia onde me havia de meter com a vergonha – acrescentou.
Na manhã seguinte, quando Annie e Arthur estavam na escola, Mrs. Morel conversou mais com Paul enquanto ele andava a ajudá-la a arrumar a casa.
– Encontrei o Barker no hospital. Não parecia muito atrapalhado, coitado. «Então», disse eu, «como correu a viagem?» «Num me pregunte, ’nha senhora!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «Eu sei como ele é.» «Mas foi muito custoso pra ele, Mrs. Morel, iss’é que foi!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «A cada safanão, eu inté pensava qu’o coração m’ia saltar pela boca», disse ele. «E os gritos qu’ele dav’às vezes, ’nha senhora... nem que me paguem uma fortuna, me quero ver noutra igual.» «Entendo perfeitamente», disse eu. «A coisa tá feia a valer», disse ele, «e vai levar muito tempo pra ficar bom.» «Também acho que sim», disse eu. Eu gosto de Mr. Barker... gosto mesmo. É um homem e tanto.
Paul continuava a pintar em silêncio.
– E já se sabe – continuou Mrs. Morel –, para um homem como o teu pai é muito duro estar no hospital. Para ele não há normas nem obrigações. E não deixa que ninguém lhe toque, a não ser que não tenha outro remédio. Quando esmagou os músculos da coxa, e tinha de mudar o penso quatro vezes por dia, ele deixava mais alguém mudar-lho a não ser eu ou a mãe dele?... Nem pensar nisso. Claro que agora vai sofrer no hospital, com todas aquelas enfermeiras... Não me agradou nada ter de o deixar lá ficar. Foi um dó de alma quando tive de lhe dar um beijo e vir-me embora...
Mrs. Morel falava com o filho quase como se estivesse a pensar em voz alta para ele ouvir, e ele colaborava o melhor que podia, partilhando com ela o sofrimento, para a aliviar. Afinal, mesmo sem saber, ela partilhava quase tudo com ele.
Morel passou muito mal. Durante uma semana o seu estado foi crítico. Depois, começou a melhorar e, quando souberam que o mau tempo tinha passado, toda a família respirou de alívio e a vida seguiu feliz.
Não passaram grandes dificuldades enquanto Morel esteve internado. Recebiam catorze xelins por semana da mina, dez da assistência aos enfermos, e cinco do Fundo de Invalidez. Além disso, os capatazes traziam todas as semanas qualquer coisa a Mrs. Morel, cinco ou sete xelins, pelo que ela vivia com bastante desafogo. E enquanto Morel ia melhorando no hospital, em casa a família vivia em paz e alegria. Aos sábados e quartas-feiras, Mrs. Morel ia visitar o marido a Nottingham. No regresso trazia sempre qualquer lembrança para os filhos: um tubo de guache para Paul, outras vezes papel cavalinho; postais para Annie, de que toda a família usufruía durante dois ou três dias antes de a deixarem enviá-los a alguém; ou então uma serra para Arthur, ou um belo bocado de madeira. E depois contava animadamente as suas aventuras nos grandes armazéns. Não tardou que os empregados da loja de gravuras a ficassem a conhecer e soubessem tudo sobre Paul. A rapariga da livraria simpatizava até muito com ela. Mrs. Morel tinha histórias sem fim para contar quando voltava de Nottingham. Ficavam os três sentados até à hora de irem para a cama a ouvirem-na contar histórias, a meterem a sua colherada, a conversarem. Depois, era geralmente Paul quem abafava o borralho.
– Agora, sou o homem da casa – dizia ele à mãe, todo ufano. Descobriram como o lar podia ser um lugar de perfeita tranquilidade e, embora nenhum deles ousasse admitir tal desumanidade, quase lamentaram quando souberam que o pai não tardaria a voltar para casa.
Paul tinha agora catorze anos e andava à procura de um emprego. Era um rapaz baixo e franzino, de cabelo castanho-escuro e olhos azul-claros. O seu rosto já tinha perdido os traços arredondados da infância e parecia-se agora com o de William, mais duro, quase austero, e com extraordinária mobilidade. Em geral, parecia estar sempre atento, cheio de vida e de ternura; umas vezes, o seu sorriso, igualzinho ao da mãe, abria-se pronto e encantador; outras, quando algum obstáculo lhe travava o passo ao espírito, a expressão do seu rosto adquiria fealdade e estupidez. Era um daqueles rapazes que se portam como palhaços desajeitados quando não são compreendidos ou sentem que não lhes dão o justo valor, mas que, com igual rapidez se transformam em criaturas adoráveis à primeira prova de ternura.
O primeiro contacto com as coisas era sempre penoso para ele. Aos sete anos tivera de se sujeitar à tortura de entrar para a escola. Mas depois até gostava. E agora, sentindo que era chegada a hora de enfrentar a vida, atravessava crises de avassaladora timidez. Pintava com bastante talento e inteligência para a sua idade, e sabia um pouco de francês, alemão e matemática, coisas que Mr. Heaton lhe havia ensinado. Como a mãe dizia, não era suficientemente forte para o trabalho manual, e também não se interessava por fazer coisas com as suas próprias mãos, preferindo correr, passear pelos campos, ler ou pintar.
– Que queres ser na vida? – perguntava-lhe a mãe.
Não fazia a menor ideia. Teria gostado de continuar a pintar, mas isso nem lhe passou pela cabeça, pois era impossível. Não havia nada que lhe interessasse muito fazer. Mas agora era urgente que começasse a ganhar dinheiro. E, uma vez que não achava que o seu trabalho valesse muito em termos monetários, e sabia que um homem ganhava em qualquer emprego trinta ou trinta e cinco xelins por semana, respondia invariavelmente:
– Qualquer coisa.
– Isso não é resposta – dizia Mrs. Morel.
Mas era a única resposta verdadeira que ele podia dar. As suas ambições, em termos materiais, eram ganhar tranquilamente os seus trinta ou trinta e cinco xelins por semana algures perto de casa, e depois, quando o pai morresse, ter uma casinha no campo, onde viveria com a mãe feliz para sempre, a pintar e a passear o quanto lhe apetecesse. Por agora, era este o seu programa. Tinha-se porém em grande conta, julgando as outras pessoas em relação a si próprio e classificando-as impiedosamente. Às vezes, pensava que talvez pudesse vir a ser um pintor a sério, mas por enquanto não queria alimentar tal sonho.
– Então tens de procurar nos anúncios do jornal – disse a mãe.
Paul ficou a olhar para ela. Parecia-lhe nova humilhação e mais uma tortura a suportar. Mas não disse nada. Desde manhãzinha só tinha um pensamento a martelar-lhe na cabeça: «Tenho de ir ver os anúncios de empregos.»
Este pensamento ensombrava-lhe a manhã e matava-lhe a alegria de viver. Sentia o coração apertar-se-lhe num nó.
Por fim, às dez horas, lá foi ele. As pessoas consideravam-no um rapaz envergonhado, reservado. Ao subir a rua ensolarada, tinha a sensação de que todos os que encontrava iam pensar: «Lá vai ele para a sala de leitura da Cooperativa, para procurar um emprego no jornal. Não consegue arranjar nada. Acho que está a viver à custa da mãe.» Lá chegado, subiu furtivamente a escadaria de pedra por detrás da loja de tecidos e espreitou para a sala de leitura. Geralmente havia por lá uma ou duas pessoas: velhos desocupados, já sem préstimo, ou mineiros «de baixa». Entrou muito retraído, e ficou deveras aflito quando eles levantaram a cabeça; sentou-se à mesa e fingiu estar a passar os olhos pelas notícias. Sabia no que eles estavam a pensar: «O que fará um miúdo de treze anos numa sala de leitura, agarrado a um jornal?» E isso magoava-o.
Depois, pôs-se a olhar lá para fora, pensativo. E sentia-se já presa do industrialismo. Por cima do velho muro fronteiriço de tijolo vermelho grandes girassóis miravam divertidos as mulheres que passavam apressadas, levando qualquer coisa para o almoço. O vale estava coberto de searas radiantes batidas pelo sol. Lá no meio, duas minas agitavam os seus finos penachos de vapor. Nas encostas distantes avistavam-se as florestas de Aldersley, tão cerradas e fascinantes. E logo o coração lhe esmoreceu. Sentia-se aprisionado. Chegara ao fim a vida em liberdade naquele vale que tanto amava.
A carroça da cerveja vinha de Keston estrada acima, carregada de barris – quatro de cada lado – apertados que nem feijões numa vagem. O carroceiro, encarrapitado no seu trono e oscilando pesadamente no assento, não passou a grande distância dos olhos de Paul. O cabelo do homem, de cabeça pequena e fusiforme, estava quase todo branco, descorado pelo sol, e nos braços grossos e avermelhados, balouçando lassamente sobre o avental de estopa, cintilavam pêlos também brancos. A face afogueada reluzia, quase adormecida de tanto sol. Os cavalos, castanhos e elegantes, seguiam a seu bel-prazer, mostrando serem eles os senhores da situação.
Paul queria ser estúpido. «Quem me dera», pensou de si para si, «ser gordo como ele e passar a vida estirado ao sol como um cão. Quem me dera ser um porco e condutor duma carroça de cerveja.»
Depois, vendo a sala finalmente vazia, copiou rapidamente um anúncio para um bocado de papel, e depois outro, e saiu à socapa, sentindo-se imensamente aliviado. A mãe examinou os anúncios.
– Sim – disse ela. – Podes tentar.
William tinha mandado uma carta admiravelmente redigida em linguagem comercial e Paul copiou-a com algumas alterações. A caligrafia do rapaz era execrável, pelo que William, que fazia tudo bem feito, fervia de impaciência.
O irmão mais velho estava a ficar muito pretensioso, ao descobrir que em Londres se podia dar com homens de uma classe muito superior à dos seus amigos de Bestwood. Alguns dos seus colegas do escritório tinham estudado leis e estavam a fazer uma espécie de estágio. William, dado o seu feitio extrovertido, fazia sempre amigos por onde passava e não tardou que começasse a frequentar a casa de pessoas que, em Bestwood, teriam olhado com desdém para o inacessível gerente do banco local e tratado com indiferença o próprio pastor. Começou, por isso, a achar-se um homem importante e até se admirava da facilidade com que se tinha tornado um cavalheiro.
As cartas que escrevia à mãe ilustravam bem a satisfação que sentia.
«The Myrmidons
Limpsfield
Mater querida,
É uma da manhã. Imagine o seu filho a escrever-lhe sentado numa velha cadeira de carvalho, com um candeeiro eléctrico dos mais modernos à frente dele, em cima da mesa. Vestido a rigor, com os botões de punho que lhe ofereceu quando fez 21 anos e achando-se o melhor do mundo. Só queria que a mãe o pudesse ver. Em comparação, Salomão, em toda a sua glória, deve ter-se sentido mal vestido.
Estou a passar o fim-de-semana com o Loosemore, e aproveitei a oportunidade para lhe escrever. ...»
A mãe ficou contente de o ver tão satisfeito. O seu quarto em Walthamstow era tão deprimente. Mas agora as cartas do filho deixavam transparecer uma súbita febre de viver. Afectado por tantas e tão súbitas mudanças, não tinha os pés assentes na terra, e parecia deixar-se arrastar vertiginosamente pelo turbilhão da sua nova vida. A mãe temia por ele. Sentia que ele se estava a perder. Tinha ido a um baile, ido ao teatro, andado de barco no rio, saído com os amigos; mas ela sabia que, depois, tinha ficado até altas horas acordado no quarto gélido a estudar latim, pois queria subir no escritório e estudar leis o mais depressa possível. Agora, nunca mandava dinheiro à mãe. A sua nova vida levava-lhe o pouco que ganhava. Ela também não queria que ele lho mandasse, excepto às vezes, quando as dificuldades eram maiores e dez xelins teriam sido o suficiente para a tirar de apuros. Mas continuava a sonhar com o que o filho faria com ela a apoiá-lo. Nem por um segundo seria capaz de admitir toda a angústia que passava por causa dele.
Entretanto, William começara a falar muito numa rapariga que tinha conhecido num baile, uma morena muito bonita e muito nova, uma verdadeira senhora, por quem todos os homens andavam perdidos de amor.
«Duvido que te perdesses por ela, meu filho, se não visses todos os outros perdidos também. As multidões fazem-nos sentir seguros e vaidosos. Mas tem cuidado, e pensa como te sentirás quando te vires sozinho e triunfante...»
William ficou ofendido com os reparos da mãe e não desistiu dos seus intentos. Tinha levado a rapariga a dar um passeio no rio: «Se a mãe a visse, ia entender o que eu sinto. Alta, elegante, com uma pele transparente, a mais transparente de todas as peles de azeitona, cabelo negro de azeviche e uns olhos esverdeados tão brilhantes e trocistas como luzes reflectidas à noite sobre as águas. Admito que seja um pouco mordaz enquanto não a conhecer. E, além disso, veste-se como as mulheres mais elegantes de Londres. Devo dizer-lhe que, quando ela passeia em Piccadilly com o seu filho, ele, por mais que se esforce, não aparenta nem metade do orgulho que sente.»
Mrs. Morel lia e perguntava-se no seu íntimo, se o filho não andaria a passear em Piccadilly com uma mulher apenas elegante e bem vestida, em vez de uma mulher de quem se sentisse próximo. Mas felicitou-o, no seu modo reticente. E enquanto estava encostada ao tanque, a mãe, preocupada, pensava no filho. Via-o casado com uma mulher cara e elegante e um pequeno ordenado, levando a vida conforme podia, numa casa feia e acanhada dos subúrbios. «E daí...», pensava ela, «é por certo tolice minha... vontade de arranjar complicações.» No entanto, o seu coração raramente sossegava, não fosse William fazer alguma asneira.
Entretanto, Paul foi chamado para se apresentar numa firma de acessórios ortopédicos, a Thomas Jordan, em Nottingham, Spaniel Row, número 21. Mrs. Morel estava radiante.
– Estás a ver! – exclamou, de olhos brilhantes. – Só escreveste quatro cartas e recebes resposta logo à terceira. Tens sorte, meu filho, como eu sempre disse.
Paul olhou para a perna de pau adornada com meias elásticas e outros acessórios que constituía o logotipo do papel timbrado de Mr. Jordan, e ficou alarmado. Até aí nem sabia que existiam meias elásticas. Parecia-lhe sentir o mundo dos negócios com o seu sistema de regras e valores e a sua impessoalidade, e isso atemorizava-o. Parecia-lhe também monstruoso que se pudesse fazer negócio com pernas de pau.
Numa bela terça-feira, manhã cedo, mãe e filho saíram juntos de casa. Era Agosto e o calor abrasava. Paul caminhava com o coração aperreado. Mil vezes a dor física, por maior que fosse, a este sofrimento irracional de se ver exposto perante estranhos, sujeito a ser aceite ou rejeitado. No entanto, conversava animadamente com a mãe. Jamais lhe confessaria o sofrimento que estas situações lhe causavam e de que ela só em parte suspeitava. Ia alegre como um passarinho. Postou-se diante da bilheteira, em Bestwood, e ficou a ver a mãe tirar o dinheiro para os bilhetes. Ao reparar nas luvas pretas que trazia, quase de criança e já muito velhas, com que retirou algumas moedas da carteira também coçada, o seu coração contraiu-se de dor e amor por ela. Ela estava muito excitada e bem-disposta, e ele sofria antecipadamente, pois sabia que ela se iria pôr a falar em voz alta diante dos outros passageiros.
– Olha para aquela vaca. Parece tola! A andar às voltas como se estivesse no circo.
– Deve ser algum moscardo – disse Paul, quase a bichanar.
– Algum quê? – perguntou ela, desabrida, sem complexos.
Depois, ficaram calados, pensativos. Paul não conseguia deixar de sentir a presença dela à sua frente. Nisto, os olhos de ambos encontraram-se e ela sorriu-lhe – um sorriso único, íntimo, belo e cintilante, cheio de amor. Em seguida, puseram-se a olhar pela vidraça. Mas ela voltou-se para ele de repente e disse, de forma bem audível:
– Sinceramente, acho que vais conseguir. E, se não conseguires, enfim, não te podes queixar só por não teres conseguido o terceiro emprego a que concorreste, pois não? Mas eu acho que consegues. És um rapaz de sorte, embora não a mereças – Assim falava ela, para todos ouvirem!
O comboio transpôs com lentidão as dezasseis milhas que os separavam do destino, e a viagem terminou. Mãe e filho meteram por Station Street com o entusiasmo de amantes a viver uma aventura. Em Carrington Street, pararam para contemplarem do parapeito as barcaças que passavam no canal.
– Parece mesmo Veneza – disse ele, vendo o sol reflectido na água entre os muros altos das fábricas.
– Talvez – respondeu ela, sorrindo. Ficaram deslumbrados com as lojas.
– Estás a ver aquela blusa? – disse ela. – Ficava mesmo bem à nossa Annie. E só custa uma libra, onze xelins e três dinheiros. Não é barato?
– E é toda bordada – disse o filho.
– É verdade.
Tinham ainda muito tempo, e por isso não precisavam de se apressar. Aos seus olhos, a cidade era estranha e fascinante. Mas o rapaz, apreensivo, era como se tivesse um nó no estômago. Apavorava-o a entrevista com Thomas Jordan.
Eram quase onze horas pelo relógio da igreja de São Pedro. Viraram para uma rua estreita que ia dar ao castelo. Era uma rua sombria, de casas velhas, com lojas baixas e soturnas e as portas dos prédios pintadas de verde-escuro, com grandes argolas de latão e degraus amarelo-ocre avançando sobre o passeio; ao lado, uma outra loja, de outros tempos, cuja montra diminuta parecia um olho astuto e semicerrado. Mãe e filho caminhavam devagar, olhando para as portas, à procura do letreiro Thomas Jordan & Filho. Era como caçar em plena coutada. A excitação atingia o auge.
De súbito, avistaram uma entrada ampla e escura, com os nomes de várias firmas afixados na parede e, entre eles, o da Thomas Jordan.
– É aqui – disse Mrs. Morel. – Mas... onde é que será?
Olharam em volta. De um lado, uma fábrica de papel, lúgubre e bizarra; do outro, o Commercial Hotel.
– É ali ao fundo – informou Paul.
Aventuraram-se pela arcada, como se penetrassem na bocarra de um dragão, indo desembocar num pátio amplo, semelhante a um poço, completamente rodeado de edifícios. O chão estava pejado de palha, caixas e cartões. O sol batia em cheio num caixote de onde saíam palhas que se espalhavam pelo chão como fios de ouro. Mas, fora isso, o lugar era escuro como uma mina. Havia várias portas e dois lanços de escadas. Mesmo em frente, numa porta suja e envidraçada, ao cimo da escada, ressaltavam as palavras fatídicas Thomas Jordan & Filho – Acessórios Ortopédicos. Mrs. Morel foi à frente, seguida pelo filho. Ao subir ao patíbulo, Carlos I tê-lo-á feito certamente com o coração mais leve do que Paul Morel ao subir atrás da mãe os degraus imundos que conduziam à tal porta também imunda.
Mrs. Morel empurrou a porta e ficou agradavelmente surpreendida. Diante dela estendia-se um imenso armazém com embalagens de papel pardo espalhadas por todo o lado, e os empregados, de mangas arregaçadas, movimentavam-se de um lado para o outro com um ar perfeitamente descontraído. A luz não feria a vista, as embalagens em papel brilhante tornavam-se luminosas, os balcões eram de madeira escura. A atmosfera era silenciosa e acolhedora. Mrs. Morel deu dois passos em frente e aguardou. Paul colocou-se atrás da mãe. Ela trazia o seu chapéu de domingo, com o véu preto descido sobre a cara, e ele a gola branca larga, que todos os rapazes usavam, e um fato de corte à caçador.
Um dos empregados olhou para eles. Era alto e magro, de rosto miúdo e olhar vivo e atento. Depois, os seus olhos percorreram a sala até à outra extremidade, onde se via um gabinete envidraçado; só então se aproximou. Não disse uma palavra, inclinou-se apenas perante Mrs. Morel, numa atitude prestável e interrogativa.
– Poderei falar com Mr. Jordan? – pediu ela.
– Vou já chamá-lo – respondeu o jovem.
Dirigiu-se ao gabinete envidraçado. Um homem idoso, de suíças brancas e faces coradas levantou os olhos da secretária. Paul achou-o parecido com um lulu da Pomerânia. Depois, o homenzinho atravessou o armazém para vir ao encontro deles. Tinha pernas curtas, era atarracado e envergava um casaco de alpaca. E lá vinha ele, de orelha arrebitada, por assim dizer, com ar resoluto e olho inquiridor.
– Bom dia! – disse, hesitante, dirigindo-se a Mrs. Morel, sem saber se se tratava ou não de uma cliente.
– Bom dia... Vim com o meu filho... Paul Morel... O senhor pediu-lhe que se apresentasse esta manhã.
– Acompanhem-me – disse Mr. Jordan, com uma frieza e desenvoltura que ele acreditava serem apropriadamente empresariais.
Mãe e filho acompanharam o industrial e entraram numa salinha desarrumada, com cadeirões de couro negro e já muito lustroso de tanto ser usado pelos clientes. Em cima da mesa estava uma pilha de fundas para hérnias – umas bandas de couro amarelo, pré-lavado, atadas em molho. Pareciam novinhas em folha. Paul sentiu o cheiro a couro lavado e perguntou-se o que seriam aquelas coisas. Estava tão atordoado que só reparava no aspecto exterior do que o rodeava.
– Sente-se! – disse Mr. Jordan, ríspido, convidando Mrs. Morel a sentar-se numa cadeira de crina. Ela sentou-se à beirinha, numa posição instável. O homenzinho vasculhou então em cima da secretária e pegou numa folha de papel.
– Foste tu que escreveste esta carta? – desferiu ele, intempestivo, colocando diante dos olhos de Paul um papel que ele logo reconheceu como sendo a carta que mandara.
– Fui, sim – respondeu Paul.
De momento, o rapaz era dominado por dois sentimentos: em primeiro lugar, sentia-se culpado por estar a mentir, uma vez que a carta tinha sido escrita por William; e, em segundo, estranhava como a sua carta podia parecer tão diferente na mão avermelhada e sapuda daquele homem de quando estava em cima da mesa da cozinha. Era como se uma parte dele mesmo se tivesse transviado, e desagradava-lhe a maneira como o homem pegava na carta.
– Onde aprendeste a escrever? – disse o velho, com brusquidão.
Paul limitou-se a olhar para ele envergonhado, sem responder.
– Ele escreve muito mal – interrompeu Mrs. Morel, apologética, levantando o véu em seguida. Paul ficou furioso por a mãe não mostrar mais orgulho perante este homem tão comesinho, mas, ao mesmo tempo, adorou ver o seu rosto sem véu.
– E dizes que também sabes francês? – inquiriu o homenzinho, ríspido, como sempre.
– Sim – respondeu Paul.
– Em que escola andaste?
– Na primária.
– E foi lá que aprendeste?
– Não... eu... – o rapaz ruborizou, e não adiantou mais nada.
– Foi o padrinho que lhe deu umas lições – disse Mrs. Morel, quase numa súplica, e com ar distante.
Mr. Jordan hesitou. E, então, mantendo o seu ar agressivo – parecia ter as mãos sempre prontas a agir – tirou do bolso uma outra folha de papel, desdobrou-a ruidosamente e entregou-a a Paul.
– Ora lê lá isto – disse.
Era uma carta em francês, escrita à mão, numa caligrafia estrangeira, esguia e incerta, que o rapaz não conseguia decifrar. Paul ficou parado a olhar para o papel, como se hipnotizado.
– «Monsieur» – começou ele, olhando em seguida muito aflito para Mr. Jordan.
– É a... é a...
Queria dizer «letra», mas já nem esta palavra conseguia pronunciar. Sentindo-se um perfeito idiota, e furioso com Mr. Jordan, voltou-se em desespero para o papel.
– «Exmo. Senhor... Queira fazer o favor de me enviar»... hum... hum... não consigo perceber a... hum... «dois pares... gris fil bas... de meias cinzentas de algodão... hum... hum... sans... sem...» hum... não consigo perceber a... hum... «doigts... dedos»... hum... não consigo perceber a...
Queria dizer «letra», mas a palavra teimava em não sair. Vendo-o atrapalhado, Mr. Jordan tirou-lhe o papel da mão e leu:
– «Queira fazer o favor de me enviar na volta do correio dois pares de meias cinzentas de algodão, sem os dedos dos pés...»
– Bem – atalhou Paul prontamente – doigts quer dizer apenas dedos... duma maneira geral...
O homenzinho olhou para ele. Tanto se lhe dava que doigts quisesse ou não dizer simplesmente dedos, o que ele sabia era que, para os fins em vista, queria dizer dedos dos pés.
– Só dedos, podia ser das mãos; com que então, dedos das mãos numas meias?! – ripostou Mr. Jordan.
– Bem, a palavra francesa quer mesmo dizer só dedos – teimava o rapaz.
Paul detestava aquele homenzinho que tentava fazer dele parvo. E Mr. Jordan olhava para aquele rapaz pálido, estúpido e atrevido à sua frente, sentado, muito calado, com aquele ar reservado dos pobres que têm de depender dos favores de outras pessoas.
– Quando é que ele pode começar a trabalhar? – perguntou o industrial.
– Bem... – disse Mrs. Morel –, quando o senhor desejar. Ele já deixou a escola.
– E vai continuar a viver em Bestwood?
– Sim... mas pode estar... chegar à estação... a um quarto para as oito...
– Hum!
Paul acabou por ser contratado como aspirante, a ganhar oito xelins por semana. O rapaz não abriu mais a boca depois de teimar que doigts era mesmo dedos (das mãos). Saiu atrás da mãe e desceu as escadas. Mrs. Morel olhou para ele com os seus olhos azuis iluminados de amor e contentamento.
– Acho que vais gostar do emprego – vaticinou.
– Doigts quer dizer só dedos, mãe... e com aquela letra... Eu não percebia a letra.
– Não te preocupes, meu filho... Verás que ele é boa pessoa, e, além disso, não vais ter de contactar muito com ele... Não achaste simpático aquele empregado mais novo?... Tenho a certeza de que vais gostar dos teus colegas.
– Mas a mãe não achou Mr. Jordan um homem grosseiro? Será ele o dono daquilo tudo?
– Cá para mim, começou por ser operário e depois singrou na vida – disse Mrs. Morel. – Não deves dar tanta importância às pessoas. Elas não te querem ofender... é a maneira de falarem... estás sempre a pensar que as pessoas te querem ofender... mas olha que não querem.
Estava um dia cheio de sol. No grande largo deserto do mercado, o céu azul iluminava-se e as pedras de granito da calçada brilhavam cintilantes. As lojas de Long Row estavam mergulhadas na penumbra e a sombra enchia-se de cor. No sítio onde os trens puxados a cavalos atravessavam o mercado, erguia-se uma fiada de bancas de fruta, com os frutos luzindo ao sol – maçãs e montes de laranjas avermelhadas, rainhas-cláudias e bananas. Quando mãe e filho passaram, sentiram no ar o odor morno da fruta. A pouco e pouco, os sentimentos de raiva e ignomínia de Paul foram soçobrando.
– Onde havemos de ir almoçar? – perguntou a mãe.
– E se comprássemos qualquer coisa e fôssemos comer para o Arboretum?
– Não. Nada disso.
– Então vamos ao Morley.
– O chá que lá servem é requentado. Não... tu conseguiste o emprego... vamos fazer uma refeição como deve ser.
Aquilo era para eles uma verdadeira extravagância. Paul só tinha ido a uma casa de pasto uma ou duas vezes na vida, e, mesmo assim, só para tomar chá e um pãozinho. A maior parte dos habitantes de Bestwood achavam que a única coisa para que tinham dinheiro quando iam a Nottingham era chá e pão com manteiga, ou, quando muito, carne afiambrada. Uma refeição cozinhada era um autêntico luxo, e Paul sentia-se até culpado. Encontraram um lugar que lhes pareceu bastante acessível. Porém, quando Mrs. Morel consultou a lista, caiu-lhe a alma aos pés, tal era o preço dos pratos. Mandou vir, por isso, empadas de rim e batata, que era o mais barato.
– Não devíamos ter vindo aqui, mãe – disse Paul.
– Deixa lá – respondeu ela. – Nunca mais cá voltamos.
Depois insistiu para que o filho, que era guloso, comesse uma pequena torta de mirtilos.
– Não quero, mãe – disse ele.
– Queres, sim – teimou a mãe. – Claro que queres.
E pôs-se a ver se chamava a criada. Mas a criada andava toda atarefada e Mrs. Morel não a quis importunar nesse momento, pelo que ficaram os dois à espera de que a rapariga se dignasse atendê-los, enquanto ela andava por ali a cirandar, fazendo olhinhos aos clientes.
– Que desavergonhada! – disse Mrs. Morel, virando-se para Paul. – Olha para ela, a servir pudim àquele homem, e ele chegou muito depois de nós.
– Não tem importância, mãe – disse Paul.
Mrs. Morel estava irritada, mas era pobre de mais e a refeição demasiado modesta para ter a coragem de reclamar os seus direitos imediatamente. E, assim, fartaram-se de esperar.
– Vamos embora, mãe? – sugeriu Paul. Mrs. Morel levantou-se. A rapariga ia a passar.
– Trazia-nos uma torta de mirtilos, por favor? – disse Mrs. Morel em voz suficientemente audível.
Mas a rapariga virou-se e olhou para ela com insolência.
– É para já – retorquiu.
– É que já esperámos um bom bocado – disse Mrs. Morel. A rapariga não tardou com a torta. Mrs. Morel pediu a conta secamente.
Paul tinha vontade de se enfiar pelo chão dentro. Pasmava perante a dureza da mãe. Sabia que haviam sido anos e anos de luta que a tinham ensinado a reclamar os seus direitos, por mais insignificantes que fossem, pois ela era tão tímida como ele.
– É a última vez que ali vou para comer seja o que for! – exclamou ela, já na rua, satisfeita por se ver livre daquele pesadelo.
– Vamos dar uma vista de olhos ao Keep’s e ao Boot’s, e a mais um ou dois armazéns, está bem?
Teceram comentários sobre as gravuras expostas para venda, e Mrs. Morel queria por força comprar ao filho um pequeno pincel de pêlo de marta, com que ele andava a sonhar, mas Paul recusou liminarmente mais esta generosidade, e foi esperando por ela estoicamente à porta dos fanqueiros e dos retroseiros, morto de tédio, mas feliz por ver a mãe tão entretida. E o passeio continuou.
– Veja só aquelas uvas pretas! – disse Paul. – Até fazem crescer água na boca... Há anos que ando desejoso de prová-las, mas ainda vou ter de esperar algum tempo para as poder comprar.
A mãe parou deliciada à porta da florista, a aspirar os aromas.
– Oh!... Oh!... Não é simplesmente uma maravilha?
Apesar de a loja estar na penumbra, Paul vislumbrou uma jovem elegante, vestida de preto, a espreitar por detrás do balcão, com ar divertido.
– Estão a olhar para si – disse Paul, tentando arrastar a mãe dali para fora.
– Mas... o que é aquilo? – exclamou ela, recusando-se a sair de onde estava.
– Goivos! – respondeu ele, cheirando o ar apressadamente. – Veja, têm um alguidar cheio.
– Pois têm... vermelhos e brancos!... Esta agora... nunca reparei que os goivos pudessem cheirar assim! – E, para grande alívio do rapaz, a mãe saiu da porta, mas só para se ir pôr diante da montra.
– Paul! – exclamou ela, virando-se para o filho, que tentava esquivar-se ao olhar da tal jovem elegante toda de preto, a empregada da loja. – Paul! Anda ver isto!
Ele aproximou-se relutante.
– Olha aqueles brincos-de-princesa! – disse ela, apontando.
– Humm! – fez ele, mostrando-se interessado. – Parece que as flores vão cair a todo o momento; são tão grandes e tão pesadas.
– E tantas! – exclamou a mãe.
– E já viu a maneira como se inclinam, com os filamentos e os nódulos...?
– Pois é! – disse ela. – São lindas!
– Sempre gostava de saber quem será que as vai comprar? – disse ele.
– Não faço ideia! – respondeu ela. – Nós não somos.
– Na nossa sala morriam logo.
– É, aquele buraco horrível, gélido e sem réstia de sol... mata qualquer planta que lá se ponha... e a cozinha atabafa-as.
Fizeram algumas compras e seguiram para a estação. Olhando ao longo do canal, pelos intervalos sombrios dos edifícios, avistaram o castelo, alcandorado no seu promontório negro coberto de vegetação, miraculosamente iluminado por um sol suave e radioso.
Vai ser tão bom vir dar um passeio à hora do almoço! – disse Paul. – Posso andar por aqui e ver tudo isto. Vou adorar.
– Vais, sim, meu filho – concordou a mãe.
Paul tinha passado uma tarde agradabilíssima em companhia da mãe. Chegaram a casa já a tarde esmorecia, feliz, ardente, e também cansada. Na manhã seguinte, o rapaz preencheu a requisição para o passe de comboio e levou-a à estação. Quando voltou, estava a mãe a começar a lavar o chão. Ele sentou-se com as pernas cruzadas em cima do sofá.
– O homem diz que o passe chega no sábado.
– E quanto custa? – perguntou ela.
– Mais ou menos uma libra e onze xelins.
A mãe continuou a lavar o chão em silêncio.
– Acha caro? – perguntou Paul.
– Não mais do que eu pensava – respondeu ela.
– E eu vou ganhar oito xelins por semana... – disse ele.
A mãe não respondeu, continuando com o seu trabalho. Por fim, disse:
– O William prometeu-me, quando foi para Londres, que me mandava uma libra por mês. E só me mandou dez xelins... por duas vezes. E sei que agora não tinha um tostão, se eu lho pedisse. Não que eu queira o dinheiro dele, mas nesta altura ficava-lhe bem dar uma ajuda para o passe, embora eu não esteja a contar com isso.
– Ele ganha muito bem – disse Paul.
– Cento e trinta libras. Mas os filhos são todos iguais. Uns mãos largas nas promessas, mas quando se trata de as cumprirem... é o que se vê.
– O William gasta mais de cinquenta xelins por semana só com ele – disse Paul.
– E eu mantenho esta casa com menos de trinta – retorquiu a mãe. – E ainda tenho de inventar o dinheiro para os extras. Mas eles, depois de saírem de casa, querem lá saber de ajudar a mãe. Mais depressa o gastava com aquela doidivanas toda aperaltada.
– Ela há-de ter dinheiro, se é assim tão fina – disse Paul.
– Pois havia, mas não tem. Eu já lhe perguntei... E eu sei bem que ele não lhe compra uma pulseira de ouro sem razão. A mim nunca ninguém me comprou uma pulseira de ouro.
– Ora, a mãe também nunca quis nenhuma.
– Lá isso é verdade... Mas, se quisesse, era o mesmo.
– O pai nunca lhe comprou nada?
– Comprou... um cartucho de maçãs... e foi tudo... todo o dinheiro que gastou comigo, antes de nos casarmos.
– Porquê?
– Porque eu era uma parva, e quando ele me dizia: «O que queres qu’eu te compre?», eu respondia: «Nada.» Ele lembrava-se lá de me trazer alguma coisa! E o William só ia comprar uma pulseira de ouro para uma espertalhona cheia de nove horas.
– Aposto que ela já tem muitas – disse o rapaz.
– Tem muitas, dizes tu? Mas ele também tinha de lhe dar uma, para parecer importante. Ele quer lá saber! Eu pude sustentá-lo enquanto ele ganhava uma miséria, mas depois, mal ele se apanha com dinheiro que se veja, e a gente pensa que vai ter um pouco de paz e segurança, ele desanda, e lá começa a luta de novo, sem ter a quem recorrer quando é preciso alguma coisa, sem ninguém que nos estenda a mão.
– A mãe devia pedir-lho.
– E depois ele tinha de o ir pedir emprestado. Isso também eu faço, se tivermos de chegar aí. Tenho a certeza, de que não vou ter de lhe ficar a dever favores. E ele não precisa de me escrever a gabar-lhe os encantos e a falar das óperas a que vão assistir. Nem quero saber. Ele importa-se lá comigo... Eles querem lá saber! Têm a vida deles para viver, fazem o que lhes apetece, e eu... sim... o que represento eu para ele?... Um estorvo nunca hei-de ser, nem lhe hei-de pedir nada... E espero que o teu pai viva muito tempo, e que seja eu a ir à frente, pois é muito triste ter de viver à custa dos filhos.
– Oh, mãe... não tarda, eu começo a ganhar dinheiro, e a mãe pode ficar com tudo, porque eu nunca me hei-de casar.
– Essa já é velha, o William também dizia o mesmo. Dá tempo ao tempo e vais ver como a música é outra.
– Não vai ser, não.
– Então está bem.
E continuou a lavar o chão, em silêncio.
– Que vai fazer? – perguntou Paul.
– Acho que vou ter de meter um vale na Cooperativa... e isso vai sair da minha parte e vou receber menos dividendos. Não me apetecia nada ir lá buscar mais dinheiro outra vez.
O rapaz sentia-se muito infeliz, muito aborrecido. Era ele que precisava do dinheiro, e isso deixava-o amargurado.
– Bem – disse Paul –, em breve serei aumentado, e a mãe pode ficar com o dinheiro todo.
– Tudo isso é muito bonito – disse a mãe. – Mas não é assim que arranjo uma libra e trinta xelins até sábado de manhã.
William fazia progressos com a sua Cigana, como ele lhe chamava. Pedira à rapariga – uma tal Louisa Lily Denys Western – uma fotografia para mandar à mãe. A fotografia chegou: era uma morena bonita, de perfil, com um sorriso afectado, e que bem podia estar completamente nua, pois não se vislumbrava qualquer peça de roupa no retrato, só o colo desnudo.
«Sim senhor», escreveu Mrs. Morel ao filho, «a fotografia da Louie é deveras impressionante e vê-se que deve ser muito atraente. Mas achas, meu filho, que foi sensato e elegante da parte dela dar ao namorado aquela foto para ele mandar à mãe, e pela primeira vez? Tem uns ombros lindos, sem dúvida, como mandaste dizer. Mas eu não estava à espera de os ver tão bem logo da primeira vez...»
Morel encontrou a fotografia na sala, em cima da cómoda, e veio até à cozinha com ela presa entre o polegar e o indicador.
– Quem vem a ser esta? – perguntou ele à mulher.
– É a rapariga com quem o nosso William anda de namoro – respondeu Mrs. Morel.
– Hum! Ganda brasa, pelo menos parece... e num lhá-de fazer bem nenhum... Quem é ela?
– Chama-se Louisa Lily Denys Western.
– Muito prazer! – exclamou o mineiro. – É alguma artista?
– Não, não é. Ele diz que é uma senhora da sociedade.
– Não hajam dúvidas – exclamou o pai, sem tirar os olhos da fotografia. – Com qu’intão uma senhora? E há-de ter muito dinheiro, pra manter as aparências.
– Não tem, não... vive com uma tia velha, que ela detesta, e aceita tudo o que lhe dão.
– Hum! – disse Morel, pousando a fotografia. – Atão ele foi um gand’otário em ter-se metido c’uma tipa dessas.
«Querida Mater», respondeu William. «Lamento que não tenha gostado da fotografia. Nunca me passou pela cabeça, quando lha mandei, que pudesse achá-la pouco decente. Mas já disse à Ciganita que o retrato não correspondia exactamente à sua noção de decoro e decência, e ela vai mandar-lhe outro, que eu espero lhe agrade mais. Ela está sempre a ser fotografada. Na verdade, os fotógrafos estão sempre a pedir-lhe insistentemente para ela se deixar fotografar, absolutamente de graça.»
A nova fotografia acabou por chegar, acompanhada de um bilhete idiota da rapariga. Desta vez, a jovem estava com um ves-tido de noite em cetim preto, de decote quadrado, com mangas curtas e tufadas e folhos de renda preta cobrindo-lhe os braços elegantes.
– Será que só usa vestidos de noite? – disse Mrs. Morel, sarcasticamente. – Tenho a certeza de que eu devia estar impressionada.
– Está a ser antipática, mãe – disse Paul. – Eu acho a primeira fotografia, a dos ombros nus, bem bonita.
– Achas? – disse Mrs. Morel. – Pois olha, eu não.
Na segunda-feira de manhã, o rapaz levantou-se às seis horas, para começar a trabalhar. No bolso do colete levava o passe do comboio que tanta amargura representava. Gostava de olhar para ele, todo às riscas amarelas. A mãe metera-lhe o almoço num cestinho de verga com tampa, e ele saiu de casa quando faltava um quarto para as sete, para apanhar o comboio das sete e um quarto. Mrs. Morel veio despedir-se do filho ao portão.
A manhã estava imaculada. Do grande freixo, pendiam os frutos verdes e delgados – as crianças chamavam-lhes «pombinhos» – cintilando alegremente, soprados pela brisa matinal, suspensos sobre os jardins das vivendas. O vale estava coberto de uma névoa escura, mas brilhante, através da qual luziam as searas já maduras, e em contacto com a qual logo se condensava o vapor que se elevava da mina de Minton. De quando em vez, o vento passava em baforadas. Paul espraiou a vista para lá das altas florestas de Aldersley, onde os campos brilhavam imensos, e nunca o apelo do lar fora tão forte.
– Adeus, mãe – disse ele, sorrindo, mas com a alma entristecida.
– Adeus – respondeu ela, com alegria e ternura na voz.
Mrs. Morel ficou parada na estrada, com o seu avental branco, vendo o filho atravessar os campos. Era um rapaz baixo e robusto, cheio de vida. Ao vê-lo caminhar pelos campos fora, sentiu que ele seria capaz de chegar onde quisesse. Pensou no William. Esse teria saltado a cerca em vez de passar pela cancela. Esse estava em Londres a viver à grande. E agora Paul ia trabalhar para Nottingham. Tinha dois filhos lançados no mundo. Podia pensar em dois lugares, dois grandes centros industriais, e sentir que tinha posto um homem em cada um, e que esses homens seriam capazes de conseguir tudo o que ela ambicionava; provinham dela, eram parte dela, e as suas vitórias seriam também as dela. Durante toda a manhã só pensou em Paul.
Às oito horas, Paul subiu as escadas lúgubres da Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan e deteve-se timidamente junto da primeira prateleira que encontrou cheia de embalagens, à espera de que alguém viesse ao seu encontro. O lugar ainda não tinha acordado. Os balcões estavam cobertos de espessas camadas de poeira. Ainda só tinham chegado dois funcionários. Paul ouvia-os conversar a um canto, enquanto tiravam os casacos e arregaçavam as mangas da camisa. Eram oito e dez. A pontualidade não era evidentemente a preocupação dominante no local. Paul continuou a ouvir as vozes dos dois funcionários. Depois, ouviu alguém tossir e viu no gabinete ao fundo do armazém um empregado já velho e caduco, com um bonezinho redondo de veludo preto bordado a verde e vermelho, a abrir cartas. Paul continuou à espera.
Um dos empregados mais novos dirigiu-se ao velhote e cumprimentou-o efusivamente e em voz muito alta. Estava visto que o velho «chefe» era surdo. A seguir, o jovem voltou para o seu balcão com passo arrogante. A certa altura reparou em Paul.
– Olá! – disse ele. – És o novo rapaz?
– Sou – respondeu Paul.
– Hum! Como te chamas?
– Paul Morel.
– Paul Morel?... Está bem. Vem comigo.
CONTINUA
Quando as crianças já tinham idade suficiente para ficarem sozinhas em casa, Mrs. Morel entrou para o Grémio Feminino. Tratava-se de um pequeno clube de mulheres ligado à Cooperativa de Revenda, que reunia às segundas-feiras à noite numa sala muito comprida por cima da mercearia Bestwood Co-op. Aí, as mulheres discutiam os benefícios de uma política de cooperação e outras questões de importância social. Por vezes, Mrs. Morel tinha de apresentar uma comunicação, e as crianças estranhavam ver a mãe, que passara a vida a fazer a lida da casa, sentar-se agora a escrever, com a rapidez que a caracterizava, a pensar, a consultar livros, e a continuar a escrever. Nessas ocasiões, sentiam por ela o mais profundo respeito.
Mas gostavam do Grémio. Era a única concessão que faziam à mãe de boa vontade – por um lado, por ser uma coisa de que ela tanto gostava, e, por outro, pelas guloseimas que depois lhes trazia. Alguns maridos hostis, que achavam que as mulheres estavam a ficar independentes de mais, chamavam ao Grémio o «clube dos traques-tagarelas», ou seja, o clube da má-língua. A verdade é que, graças ao Grémio, as mulheres podiam olhar para as suas casas, para as condições em que viviam e apontarem o que estava mal. E, assim, os mineiros começavam a descobrir que as suas mulheres lutavam por um novo padrão de vida, o que era para eles bastante desconcertante. Além disso, Mrs. Morel voltava sempre às segundas-feiras à noite carregada de novidades, e as outras crianças gostavam que William estivesse em casa quando a mãe chegava, porque ela lhe contava muitas coisas.
Mais tarde, quando o rapaz tinha treze anos, a mãe arranjou-lhe emprego nos escritórios da Cooperativa. Nessa altura, ele era já um rapaz muito inteligente e franco, de feições duras e os olhos azuis penetrantes de um verdadeiro viking.
– Pra que queres fazer dele um mangas-de-alpaca, num me dizes? – disse Morel. – Tudo o qu’ele vai fazer é gastar as calças no rabo e não ganhar um tostão. Quant’é qu’ele vai ganhar de início?
– O que ele vai ganhar não interessa – disse Mrs. Morel.
– Mas devia interessar! Põe-no mas é na mina ao pé de mim, e ele faz sem custo dez xelins por semana, logo no começo. Mas seis xelins para dar cabo do traseiro sentado num banco é melhor que dez na mina ao pé de mim, eu sei.
– Ele não vai para a mina – disse Mrs. Morel – e não se fala mais nisso.
– Pra mim serviu, mas pra ele não.
– Se a tua mãe te mandou para as minas aos doze anos, isso não quer dizer que eu faça o mesmo ao meu filho.
– Doze anos!... Muito antes disso!
– Fosse quando fosse – disse Mrs. Morel.
Ela tinha um grande orgulho no filho. Ele frequentava a escola nocturna, e aprendeu estenografia, e aos dezasseis anos, já era o melhor estenógrafo e o melhor guarda-livros do escritório, a par de um outro colega. Depois, começou a dar aulas nas escolas nocturnas. Mas era tão vivaço que só o seu bom feitio e o seu tamanho o protegiam.
Todas as coisas que os homens fazem – as coisas decentes – William também fazia. Corria tanto como o vento. Aos doze anos, ganhou o primeiro prémio numa corrida: um tinteiro de vidro, em forma de bigorna, que marcava honrosa presença no louceiro, para orgulho de Mrs. Morel. Fora para ela que ele correra. Voou para casa com a bigorna, ofegante, dizendo:
– Olha, mãe!
Esse foi o primeiro tributo que ele lhe prestou, e ela recebeu-o como uma rainha.
– Que bonito! – exclamou.
Quando iam brincar para perto da cerca da encosta, as crianças das Bottoms costumavam gritar quando William se aproximava:
– Salta, William... Salta!
E ele saltava a sebe, com cerca de cinco pés de altura, sem qualquer dificuldade.
– Caramba! – gritavam os mais pequenos.
Também atirava pedras mais longe do que qualquer outro rapaz de Bestwood. Amigos e rivais, todos tinham inveja das suas façanhas e torciam para que as pedras dele não fossem as que chegavam mais longe, passando para lá da cerca. Mas, à cautela, William gravava-lhes displicentemente as iniciais WM.
Aos dezassete anos, ganhou uma corrida de bicicletas em Ilkeston. Morel, num dos seus alardes de fanfarronice, tinha desafiado todos os campeões que estivessem na taberna a correrem contra o filho, e William sentiu que tinha de honrar as gabarolices do pai. Mas Mrs. Morel não aprovou a ideia.
– Vem ver-me limpar-lhes o sarampo a todos, mãe! – gritou ele, batendo na barriga da perna. Mas Mrs. Morel passou o dia ansiosa e infeliz. Ele podia morrer ou magoar-se, e, além disso, ela tinha a certeza de que o seu coração não tinha resistência para corridas de bicicleta. Não obstante, ele voltou para casa nessa noite trazendo uma pequena secretária de carvalho.
– Aqui tem, mãe! – disse ele. – Não lhe disse que lha trazia?
Mas ela obrigou-o a prometer-lhe que não entrava em mais nenhuma corrida.
William tinha alunos a quem dava aulas de estenografia em casa. Mas era tão impulsivo e irascível, que só os alunos mais aplicados e com mais vocação o aturavam. Sentava-se com eles à mesa da cozinha. A cozinha estava aquecida, iluminada e em silêncio absoluto. As almofadas de chintz vermelho do sofá eram fofas, a toalha vermelha sobre a mesa parecia acolhedora. Geralmente, o aluno, de treze ou catorze anos, sentava-se muito nervoso, enquanto William, rápido e enérgico, lhe corrigia os trabalhos de casa. O professor ia soltando desabafos de impaciência e intolerância. Nisto, voltava-se para o aluno e gritava:
– Meu grande cabeça de burro, fizeste bem a última frase, e agora...
O pobre do aluno assoava-se nervosamente ao lenço vermelho e olhava de soslaio para William. Às vezes, Mrs. Morel estava sentada a coser na cadeira de baloiço. Depois, começava a lição propriamente dita. William, evidenciando cada vez menos paciência, não tardava a explodir:
– Seu parvalhão, seu cabeça de burro, seu idiota chapado, o que é que eu te disse mais de mil vezes...?
– William! William! – exclamava a mãe. – Que vergonha! Não sei como ainda te aturam... Não lhe ligues, Robert, o mal está na falta de paciência dele, não em ti. Tu até és muito rápido. – E Robert olhava para Mrs. Morel envergonhado e agradecido, enquanto William continuava:
– Vá lá... e por amor de Deus não te faças de estúpido. Olha...!
Por fim, Mrs. Morel decidiu não ficar mais em casa quando ele dava as lições, para poupar aos garotos o vexame.
William tinha de entrar no escritório às oito da manhã, e a mãe levantava-se por isso às sete, para lhe preparar as coisas. Ele chegava geralmente atrasado, ou mesmo em cima da hora. Mas não havia nada que o fizesse andar mais depressa. Adorava tomar o pequeno-almoço a sós com a mãe. Quando estava bem-disposto, tagarelava e brincava com ela.
Uma manhã, pediu-lhe uma camisa lavada. Ele estava de pé, em frente à lareira, quando ela lha entregou, sentando-se em seguida a tomar o chá. Ele ergueu no ar repetidamente a camisa de flanela remendada por todos os lados.
– Mãe, o que é isto? – perguntou.
– Uma camisa – respondeu ela, desatando a rir.
– Uma rosa não cheiraria melhor...! – citou ele, de memória, com espirituosidade.
– Pois é... tu dás cabo de tudo... e eu já não tinha mais tecido igual... mas também quem vai notar?
– Tem a certeza de que não se vê?... Cá para mim, vê-se tudo à transparência – disse ele, ainda a torcer o nariz para a camisa.
– Veste-a lá... Olha as horas! – disse ela, sem poder conter o riso, da cadeira de baloiço onde estava sentada a beber o chá. E ele, de pé diante dela, um rapagão alto e espadaúdo, com a camisa de remendos na mão, dizia:
– Oh, minha camisinha de pobre! – disse ele, falando com a dita. – Acho que ninguém te vai cobiçar... um, dois, três... qual destes é o tecido original, mãe?
– Vá, veste a camisa! – ordenou a mãe.
– Imagine que eu tenho um acidente, e vou parar ao hospital, e quando volto a mim vejo quatro enfermeiras a olharem-me para a fralda da camisa... – resmungou ele.
– Só podem estar a dizer que andas com a roupa muito bem tratada – disse a mãe a rir.
Ele vestiu a camisa, e disse ainda, tapando a boca com a mão:
– Nem o rei Salomão em toda a sua glória...
– Não – disse a mãe, continuando a rir –, não creio que houvesse ninguém capaz de dar tantos pontos, nem por Salomão...
William deitou um olho à camisa por cima do ombro, e disse, num lamento:
– És a história da minha desgraça!
Mrs. Morel riu às gargalhadas. A custo, recompôs-se o suficiente para dar uma palmada na mesa e exclamar:
– Toca a vestir, menino! Já é um quarto para as oito.
– Não está à espera que eu tenha pressa de me vestir, para andar por aí todo remendado, pois não, mãe?
– És um tagarela sem juízo! – exclamou ela. – Ainda cais da bicicleta, partes a cabeça...
– Tem razão, se eu morresse ia ter vergonha da camisa que levava – atalhou ele.
Ela saltou da cadeira, pegou na escova e deu-lhe com ela ao de leve na cabeça.
– Vê lá se escovas esse cabelo – ordenou. Separaram-se, reconfortados: ele aquecia-lhe a alma a ela, e ela a ele.
Depois, ele começou a tornar-se ambicioso. Dava todo o dinheiro que ganhava à mãe. Quando recebia catorze xelins, ela deixava-o ficar com dois para os seus gastos, mas ele, como não bebia, começou a achar que estava rico, e só se dava com a burguesia de Bestwood. A pessoa mais importante da cidade era o pastor. Seguiam-se-lhe o gerente do banco, os médicos, depois os comerciantes, e, por fim, as hostes de mineiros. William começou a andar com os filhos do farmacêutico, do mestre-escola e de alguns comerciantes. Ia jogar bilhar para o Mechanics’Hall, e frequentava também os bailes, apesar de a mãe ser contra. Desfrutava de tudo o que Bestwood tinha de bom para lhe oferecer – dos bailaricos de Church Street, a seis dinheiros o ingresso, às provas desportivas e ao bilhar.
– A valsa! – exclamou o pai. – É verdade que tu sabes valsar? Quando eu era mais ágil, também sabia dar as minhas voltinhas.
– Será que sabia? – disse William, meio desconfiado.
– Sabia, sim senhor! – protestou Morel, ferido no seu amor-próprio.
– Então, vá lá... mostre-nos do que é capaz.
Mas Morel tinha vergonha de dançar diante dos filhos.
– Não, isso eu num faço! Estares a desafiar-me é uma parvoíce sem pés nem cabeça, e num vejo o qu’é que ganhas com isso.
– Mas vê que sigo as suas pisadas – retorquiu William.
– Atão inda és mais parvo do qu’eu julgava, s’alguma vez fizeres isso – disse o pai.
– Pronto, não faz mal, se está perro de mais para dançar... – disse o filho.
– Há vinte anos qu’eu num danço – gritou Morel, já alterado.
– E aposto que lhe custou a parar.
Mas William não desistiu. E as raparigas não o largavam.
– ’Póstolo – disse ele ao irmão, depois de um baile, quando já estavam os dois deitados. – ’Póstolo... uma rapariga de cetim branco... tás’ouvir, cetim branco até aos sapatos... vive em Sutton... e tá pelo beicinho! Amanhã vou lá, para m’encontrar com ela.
Daí a duas semanas, Paul perguntou-lhe:
– Então a rapariga do vestido de cetim branco?
– Já não m’interessa, ’Póstolo... Não presta! Mas encontrei uma pérola em Ripley... cheira vagamente a flor de cerejeira... branca como um lírio...
Paul era mimoseado com as mais estonteantes descrições florais das várias raparigas, a maior parte das quais perduravam por menos de quinze dias no coração de William, como um botão de rosa posto ao peito.
Uma vez por outra, lá aparecia uma namorada, preocupada em vir atrás do seu amado. Mrs. Morel encontrou um dia à porta uma rapariga de aspecto estranho, e logo lhe cheirou a esturro.
– Mr. Morel está em casa? – perguntou a donzela, toda sorrisos.
– O meu marido? Está, sim – respondeu Mrs. Morel.
– Eu... Eu queria referir-me a Mr. Morel... filho – repetiu a rapariga, penosamente.
– Qual deles? Há vários...
Nesta altura, a menina loira já gaguejava, muito corada:
– Eu... Eu conheci Mr. Morel... em Ripley. – E apressava-se a dar explicações.
– Ah... num baile!
– Sim, sim.
– Pois eu não gosto das raparigas que o meu filho conhece nos bailes. E ele não está em casa.
Mrs. Morel detestava os bailes duvidosos que o filho frequentava.
– Julgas que não sei das desavergonhadas que por lá andam?
– Pois olhe, mãe, eu não sou nenhum leviano, como pode ver.
– Isso é que eu não sei – dizia a mãe a rir.
– Não está a pensar que eu me vou apaixonar, pois não? Descanse que não vou. É só para me divertir com elas.
– Mas elas é que não querem só divertir-se contigo. E isso não está certo.
– Ora essa, porquê? Não faço tenções de me casar. Não se aflija, Mater. Eu não me caso enquanto não encontrar uma mulher como a senhora... e isso só daqui a muito tempo... E... só me hei-de casar aos trinta, quando já estiver de barriguinha cheia.
– Veremos, meu filho – respondeu a mãe.
Depois, voltou para casa zangado com a mãe por ter sido tão dura para com a rapariga. Era um rapaz despreocupado, mas de olhar apaixonado, que caminhava com grandes passadas, às vezes de sobrolho carregado, e quase sempre com o boné atirado para trás com galhardia. Agora, vinha de sobrolho carregado. Atirou o boné para cima do sofá, apoiou o queixo decidido na palma da mão e olhou zangado para a mãe. Ela era pequena, com o cabelo arrepiado para trás. Tinha um ar de serena autoridade, mas, ao mesmo tempo, de rara afabilidade. Ao ver o filho zangado, o coração apertou-se-lhe.
– Esteve cá ontem alguma senhora à minha procura? – perguntou.
– Uma senhora eu não vi... esteve foi uma rapariga.
– E porque não me disse nada?
– Porque me esqueci.
Ele expeliu o ar com ímpeto.
– Uma rapariga bonita... uma senhora?
– Não olhei para ela.
– Olhos castanhos... grandes?
– Isso mesmo.
Voltou a assoprar.
– E o que lhe disse a mãe?
– Que não estavas em casa.
– E que mais?
– Apenas que não gostava de que raparigas que tinhas visto uma vez viessem aqui a casa à tua procura.
– Bem... não precisava de ter dito isso – replicou ele. – O pai dela tem dinheiro... até têm duas criadas...
– Não vinham com ela... por isso, eu não podia adivinhar.
– Mas porque é que a mãe tinha de ser desagradável? Ela não estava a fazer mal nenhum, ou estava?
– Pensei que fosse uma dessas desavergonhadas.
– Mas não era... Não era... O pai dela...
– Tem dinheiro para duas criadas – atalhou Mrs. Morel.
– Não... É o veterinário de Woodlinton... E, além disso, mãe...
– Ela era uma desavergonhada.
– Não era nada... E era bonita, não era?
– Nem olhei para ela.
– Mas devia ter olhado...
– Mas não olhei, pronto. E olha, meu filho, trata de dizeres às tuas namoradas que, quando vierem atrás de ti, não devem vir perguntar por ti à tua mãe... É isso que tens de dizer a essas desavergonhadas que encontras pelos salões de dança.
– Tenho a certeza de que ela é uma rapariga séria...
– E eu tenho a certeza de que não é.
E assim acabou a discussão. A dança era sempre motivo de conflito entre mãe e filho. A afronta atingiu o auge quando William anunciou que ia a um baile de máscaras em Hucknall Torkard, uma terra mal-afamada. Havia uma fantasia que ele podia alugar, que um dos seus amigos já tinha usado, e lhe assentava que nem uma luva. E o fato de escocês lá foi parar a casa. Mrs. Morel recebeu-o com indiferença e recusou-se a desembrulhá-lo.
– O meu fato já chegou? – gritou William.
– Está um embrulho na sala da frente.
Ele precipitou-se para o fato e cortou o cordel.
– Já imaginou o seu filho assim vestido? – disse entusiasmado, mostrando-lhe o fato.
– Sabes bem que não quero imaginar-te com isso vestido.
Na noite do baile, quando ele veio a casa para se mascarar, Mrs. Morel vestiu o casaco e pôs o chapéu.
– Não fica para me ver vestido, mãe? – perguntou ele.
– Não... Não te quero ver – foi a resposta.
Estava muito pálida, com a expressão dura e fechada. Tinha medo de que o filho seguisse as pisadas do pai. Ele hesitou uns instantes, com o coração suspenso de ansiedade. Depois, viu a boina de escocês cheia de fitas, e agarrou-a, já esquecido da mãe. Mrs. Morel saiu.
Ele nunca se apercebeu de como tinha ficado desapontado. A excitação do momento, vivido em antecipação, era o suficiente para o fazer esquecer. Contudo, o seu maior orgulho era que ela o visse mascarado, e, pela vida fora, era sempre com mágoa que recordava este baile.
Na altura, porém, correu escada acima em grande alvoroço. Paul ajudou-o a vestir-se.
– É um fato de máscara, ’Póstolo – disse ele. – Dá-me cá essas coisas. – Primeiro enfiou um par de calções pretos, muito justos e curtos. Depois, foi mirar-se e remirar-se ao espelho da mãe.
– Estás a ver os meus calções pretos? – disse ele, dando uma volta sobre si mesmo, e acrescentando: – Sabes, ’Póstolo, um verdadeiro escocês não usa calções... cobre a nudez com o kilt. Mas acontece que eu dou saltos muito altos... e... com as senhoras a assistir... bem... já não dava!
O mais pequeno também achava que não, embora o caso não lhe parecesse muito grave.
– Belo par de pernas que aqui estão, ’Póstolo! Belas pernas! Já me ajudaram a ganhar quatro prémios nas corridas e dois nas bicicletas. Nada mau! – E dava palmadas nas coxas jovens e vigorosas. – Só músculo, miúdo!... No entanto, têm um defeito: não consigo juntar os joelhos. Tenho as pernas arqueadas, ’Póstolo. Mas assim ainda são mais fortes... Já o Nicholas Nickleby... esse tinha umas belas pernas e conseguia juntar os joelhos, a julgar pela gravura, e acho que Mr. Good também. Não era Mr. Good que tinha uma «belas pernas muito brancas» n’As Minas de Salomão? Aperta-me isto. Este fato não me assenta nada bem, pois não, ’Póstolo?
– Não – disse Paul, reverente.
– Um verdadeiro escocês – continuou William – tem de dobrar o seu kilt. Quem me dera que este fosse desses... gostava de ser eu a prepará-lo. Estás a ver, ’Póstolo, eu posso usar um kilt porque tenho a medida exacta para ele assentar como deve ser. A ti não te ia ficar bem... és espalmado como uma tampa de cartão. Tens de pedir a Deus que te desenvolva mais essa parte do corpo, senão nunca vais poder vestir um kilt.
Paul não percebia porque é que um dia havia de querer usar um kilt. Baixinho e magro como era, não podia aspirar ao físico e à estatura do irmão.
– Então, que tal ficam os meus joelhos?... Ficam bem, não ficam? Uns valentes joelhos, isso é que eles são... uns valentes joelhos... e as pernas também! Outro dia, os tipos lá do escritório apostaram em como eu andava enchumaçado. E então o Vickers veio de gatas enquanto eu estava a escrever e espetou-me um alfinete. Dei um berro que ia deitando a casa abaixo, e depois dei um pinote e ferrei-lhe um murro na cabeça, estás a ver... quem me dera não ter arrancado aquele bocadinho de pele com a bicicleta.
– Podias pôr um bocadinho do pó cor-de-rosa de lavar os dentes – alvitrou Paul.
– Lá isso podia... diz que é anti-séptico, mas será que resulta? Sabes, eu tenho mesmo pinta de escocês – cabelo louro, olhos azuis e valentia, ’Póstolo, valentia... e arcaboiço a condizer... Se alguma vez me alistasse no exército, havia de ser na Guarda Escocesa. Essa do pó dos dentes é uma ideia porreira...
Quando já estava vestido, um monte de crianças, as de casa e as da vizinhança, vieram admirá-lo. Depois, ele partiu. Divertiu-se à grande e, no entanto, era-lhe doloroso recordá-lo. A mãe mostrou-se indiferente com ele durante um ou dois dias. Mas achava-o tão encantador...! E depois... aquele toque de solidão, a instalar-se outra vez entre ele e ela.
Foi mais ou menos por esta altura que ele começou a estudar. Ele e um amigo começaram a aprender francês, latim e outras coisas. Depressa começou a ficar mais abatido. Depois do escritório, ia para casa de Fred Simpson, e ficavam os dois a estudar até à meia-noite e, às vezes, até à uma. Mrs. Morel protestava, ralhava, implorava-lhe que tivesse mais cuidado com a saúde.
– Quando estamos a estudar – dizia ele – nem dou pelas horas passarem... nenhum de nós dá, até a mãe do Fred gritar lá de baixo que já é muito tarde.
Estas noites de estudo intervalavam com farras e bailaricos. À medida que os anos iam passando, William foi ficando mais magro e a despreocupação fugiu-lhe do olhar.
A mãe, sempre atenta, sempre à espera, sentia um frio na alma ao vê-lo assim. Teria ele forças para «sobreviver»? Um pingo de ansiedade manchava o orgulho que sentia. Tinha esperado por ele tanto tempo que não suportaria o seu fracasso. Na verdade, não sabia o que queria dele, afinal. Talvez quisesse apenas que ele fosse fiel a si próprio, que crescesse e frutificasse tudo o que ela tinha semeado. Queria ver nele a sua própria realização, era tudo. E, com toda a força de que era capaz, tentava mantê-lo forte, equilibrado, com ânimo para seguir em frente. Mas ele vacilava, faltava-lhe lucidez. Havia momentos em que descambava e era igualzinho ao pai, o que lhe enchia o coração de apreensão e desalento.
Ele tivera dúzias de namoricos, mas nada a que se pudesse chamar um caso amoroso. Ela não se importava com os namoricos, desde que não lhe afectassem a carreira, mas receava que ele se deixasse prender por alguma dessas raparigas fúteis e desavergonhadas.
Tinha ele dezanove anos, quando um dia, sem mais nem menos, deixou o escritório da Cooperativa e arranjou um emprego em Nottingham. Este novo lugar rendia-lhe trinta xelins por semana, em vez dos dezoito do anterior. Era na verdade um bom aumento e os pais não cabiam em si de orgulhosos. Todos o elogiavam. Parecia que ia subir na vida num instante. E Mrs. Morel esperava poder, com o auxílio dele, ajudar os filhos mais novos. Annie andava a estudar para professora. Paul, também muito inteligente, ia muito bem nas lições de francês e alemão que o padrinho lhe dava – o pastor, velho amigo de Mrs. Morel. Arthur, um menino mimado e muito bonito, andava ainda na escola primária, mas tinha hipóteses de conseguir uma bolsa para ir para o liceu, em Nottingham.
William conservou-se durante um ano no seu novo emprego em Nottingham. Estudava afincadamente e tornava-se cada vez mais circunspecto. Algo parecia preocupá-lo. No entanto, continuava a ir aos bailes e aos festivais no rio. Não bebia. Todos os irmãos eram abstémios convictos. Chegava a casa muito tarde e estudava até altas horas da noite. A mãe implorava-lhe que tomasse cuidado, que fizesse uma coisa ou outra.
– Dança, se te apetece dançar, meu filho, mas não julgues que podes passar o dia no escritório e depois ires para a paródia, e depois ficares ainda a estudar. Não podes, o corpo não aguenta. Faz uma coisa ou a outra... diverte-te ou estuda latim... mas não tentes fazer as duas.
Depois, ele arranjou um emprego em Londres, a ganhar cento e vinte libras por ano, o que parecia uma soma fabulosa. A mãe nem sabia se havia de rir ou de chorar.
– Querem-me em Lime Street de segunda a oito, mãe – gritou ele, de olhos brilhantes, ao ler a carta. Mrs. Morel sentiu que tudo nela era silêncio. Ele continuou a ler: – «... queira confirmar até à próxima quinta-feira se aceita o lugar... Atentamente...» Eles querem-me lá, mãe, por cento e vinte libras por ano, e nem quiseram falar comigo. Eu não lhe disse que conseguia! Imagine-me só em Londres!... E posso dar-lhe vinte libras por ano, Mater... Vamos ficar afogados em dinheiro.
– Pois vamos, meu filho – respondeu ela, tristemente.
A ele nem lhe ocorreu que a mãe pudesse estar mais magoada com a sua partida do que contente com o seu sucesso. Na verdade, à medida que se aproximava o dia da partida, o coração dela começou a fechar-se e a sucumbir ao desespero. Amava-o tanto. Mais ainda: esperava tanto dele. Quase se podia dizer que vivia através dele. Gostava de lhe fazer as coisas: de lhe fazer uma chávena de chá e de lhe passar a ferro os colarinhos, de que ele tanto se orgulhava. Era para ela uma alegria vê-lo tão vaidoso dos seus colarinhos. Como não havia nenhuma lavandaria perto, costumava passá-los e repassá-los com o seu pequeno ferro de carvão, para os polir, até os pôr a brilhar à simples pressão do braço. E, agora, já não lhe podia fazer isso. Agora, ele ia partir, e era quase como se partisse também do seu coração. E ele parecia não querer deixar ficar nada de si dentro dela. Essa a causa da dor e do desgosto. Ele levava consigo quase tudo.
Uns dias antes da partida – tinha ele acabado de fazer vinte anos – queimou todas as cartas de amor, que estavam guardadas numa caixa em cima do armário da cozinha. Tinha lido extractos de algumas delas para a mãe ouvir, mas a maior parte delas eram demasiado banais.
No sábado de manhã, disse:
– Anda, ’Póstolo, vamos dar uma volta às minhas cartas, e tu podes ficar com os passarinhos e as flores.
Mrs. Morel tinha feito de véspera o trabalho destinado para sábado, pois tinham dado folga a William no último dia. Ela estava até a fazer-lhe um bolo de farinha de arroz, para ele levar. Mas ele não tinha consciência da tristeza que a mãe sentia.
Tirou da caixa a primeira carta. Era cor de malva e estava ornamentada com cardos verdes e púrpura. William cheirou a folha de papel:
– Cheira bem... perfumada...!
E meteu a carta debaixo do nariz de Paul.
– Hum! – disse Paul, inspirando fundo. – Que perfume é este?
– Jockey Club – disse William, embora não fizesse a menor ideia.
– Não podia ser cardo – disse Paul – porque os cardos não têm cheiro.
– Ora oiça esta: «Meu Único Amor»... Safa, Mater.
– Não me interessa ouvir essas baboseiras – disse Mrs. Morel.
– Oiça só esta!.. «Meu único Amor, Como não me disseste o teu primeiro nome, só te posso chamar aquilo que és na realidade. Tenho de te escrever, porque, se o não fizer, acho que a minha cabeça vai rebentar...» Veja só, Mater.
– São mesmo parvas! Têm tão pouca cabeça que não dá nem para rebentar... A adularem-te dessa maneira... Mal sabem elas que estão a arranjar lenha para se queimarem.
– Não é para me adularem. Esta ficou mesmo caidinha por mim.
– E, mesmo que tenha ficado, isso é motivo para se orgulhar? Que parvoíce!
– A mãe não devia dizer que andam a «adulá-lo para arranjar lenha para se queimarem» – interveio Paul.
– Claro, se tu o dizes... – disse a mãe a rir.
– «Fiquei a adorar coisas escocesas desde que te vi com aquele kilt. Ficava-te mesmo mal. Acho que nunca vi ninguém que ficasse tão bonito, com aquele kilt e aquelas meias...» São os meus joelhos... Têm de ser os meus joelhos, Mater. Não me escapa uma.
– Só não te escapam se forem das fáceis.
– Cala a boca, ’Póstolo. É bonita, não é?
Paul gostava de ver os desenhos que decoravam as cartas de amor. William queimou a carta. A seguinte era cor-de-rosa, com um raminho de flor de cerejeira ao canto.
– Flor de cerejeira! – disse Paul, aspirando o perfume. – Que bom... ora cheire, mãe.
A mãe aproximou o nariz pequeno e fino do papel.
– Não me apetece cheirar as parvoíces que elas fazem – disse, aspirando o perfume.
– O pai desta rapariga – disse William – é rico como Cresus. Tem terras que nunca mais acabam... Ela chama-me Lafayette, por eu saber falar francês... «Como vês, já te perdoei.» Esta de ela me perdoar é muito boa... «Falei de ti esta manhã à minha mãe, e ela terá muito prazer em que venhas tomar chá connosco no domingo, mas primeiro precisa do consentimento do meu pai. Espero bem que ele concorde. Logo que saiba, mando-te dizer se sim ou sopas. Se tu no entanto...»
– «Se sim ou...» quê? – atalhou Mrs. Morel.
– «... ou sopas»... é isso mesmo!
– «Se sim ou sopas!» – repetiu Mrs. Morel, trocista. – E eu que a julgava tão fina!
William começou a sentir-se algo desconfortável e pôs de lado esta donzela, dando a Paul o canto com a flor de cerejeira. Continuou a ler excertos das cartas, alguns dos quais deixavam a mãe divertida, outros triste e outros ainda apreensiva.
– Meu filho – disse ela –, elas são muito espertas. Já perceberam que só têm de alimentar a tua vaidade, para tu correres logo atrás delas como um cão a quem fizeram festas na cabeça.
– Ora, elas não podem estar sempre a fazer festas – retorquiu William. – E quando deixam de fazer, eu ponho-me a andar.
– Mas um dia descobres que te prenderam com uma corda que não consegues desatar – respondeu a mãe.
– Isso é que era bom! Eu chego bem para elas, Mater, elas que não se deixem enganar.
– Quem se deixa enganar és tu – disse Mrs. Morel, muito serena.
Não tardou que um monte de papéis retorcidos e tisnados se formasse na lareira, tudo o que restava da colecção de cartas perfumadas, à excepção dos trinta ou quarenta desenhos recortados dos cantos – andorinhas, miosótis e raminhos de hera – que agora pertenciam a Paul. Quanto a William, partiu para Londres, para dar início a uma nova colecção.
IV
A JUVENTUDE DE PAUL
PAUL saía à mãe – era baixo e franzino. O cabelo loiro tornou-se progressivamente arruivado e depois castanho-escuro, enquanto os olhos eram acinzentados. Era uma criança pálida e de poucas falas, com uns olhos que pareciam escutar e um lábio inferior carnudo e descaído.
Geralmente davam-lhe mais idade, pela constante preocupação que mostrava pelo que as outras pessoas sentiam, especialmente a mãe. Quando ela sofria, ele apercebia-se e não tinha paz, sempre de alma atenta às suas mais pequenas reacções.
À medida que crescia, ia-se tornando mais forte. William, devido à diferença de idades, não o queria por companheiro, pelo que só Annie estava com ele o dia inteiro. Annie era uma garota endiabrada, uma maria-rapaz, como a mãe lhe chamava, mas adorava o irmão mais novo, que andava sempre atrás dela. Quando ela fazia corridas com as outras garotas da vizinhança, Paul corria ao lado dela, a apoiá-la, uma vez que ainda não podia participar. Muito calado, passava quase despercebido. Mas a irmã adorava-o e ele fazia-lhe as vontades todas.
Annie tinha uma boneca grande de que muito se ufanava, embora não gostasse tanto dela como do irmão. Um dia, deitou-a no sofá, cobriu-a com uma manta, para ela adormecer, e foi-se embora. Entretanto, Paul pôs-se a saltar em cima do sofá e caiu mesmo em cima da cara da boneca, escondida debaixo da coberta. Annie precipitou-se para o sofá soltando um grito lancinante e sentou-se a chorar, inconsolável. Paul nem se mexeu.
– Não se percebia que a boneca estava ali, mãe; não se percebia – não se cansava ele de repetir, deixando-se ficar sentado muito triste enquanto Annie continuava a chorar. Por fim, o desgosto passou e ela perdoou ao irmão, que estava genuinamente contrito. Porém, um ou dois dias depois Annie ficou chocadíssima.
– Vamos oferecer a Arabella em sacrifício – disse ele. – Vamos queimá-la. – A irmã ficou horrorizada, mas ao mesmo tempo fascinada. Sempre queria ver o que o irmão ia fazer. Ele fez um altar de tijolos, tirou bocadinhos do enchimento do corpo de Arabella, enfiou esses bocadinhos na cara esburacada, deitou-lhe em cima um pouco de parafina e incendiou a boneca. Depois, com perversa satisfação, ficou a ver as gotas de cera derretida a escorrerem pela testa de Arabella, como se fossem suor a pingar sobre a chama. Enquanto a estúpida da boneca esteve a arder, ele rejubilou em silêncio. No fim, esgravatou nas brasas com um pauzinho, pescou os braços e as pernas, todos pretos, e esmagou-os com uma pedra.
– Pronto, este foi o sacrifício da Arabella – anunciou. – E ainda bem que não sobejou nada.
Annie, embora nada dissesse, estava perturbada com a cena. Era como se ele odiasse a boneca intensamente pelo facto de a ter partido.
Todos os irmãos, mas Paul em particular, colocavam-se nitidamente ao lado da mãe contra o pai. Morel continuava a fazer desmandos e a embebedar-se. Havia alturas, às vezes meses a fio, em que transformava a vida de toda a família num inferno. Paul nunca se havia de esquecer de ter vindo para casa, depois de uma reunião religiosa uma segunda-feira à tardinha, e ter encontrado a mãe com um olho negro e todo inchado, o pai de pé junto à lareira, de pernas afastadas e cabisbaixo, e William, que acabara de chegar do trabalho, a olhar enfurecido para o pai. Fez-se silêncio quando os irmãos mais novos entraram, mas nenhum dos adultos olhou para eles.
William estava lívido e de punhos cerrados. Esperou que os mais pequenos se calassem, limitando-se a olhar a cena com indizível raiva infantil, e disse:
– Seu grande cobarde, se eu cá estivesse, não se atrevia a fazer uma coisa destas.
Mas Morel estava ao rubro e voltou-se contra o filho. William era mais alto, mas Morel era mais possante e estava cego de raiva.
– Ah, não? – berrou. – Ah, não atrevia? Se abres mais essa boca, meu menino, assento-te a mão em cima, olá se assento!
E, vergando os joelhos, brandiu o punho ameaçadoramente, animalescamente. William estava lívido de raiva.
– Ah, sim? – disse William, sereno e intrépido. – Pois seria a última vez.
Morel aproximou-se gingão, semivergado, de punho no ar em posição de ataque. William armou também o punho. Os seus olhos azuis fixos no pai tinham o brilho de uma gargalhada. Mais uma palavra e os dois homens engalfinhavam-se. Paul desejava que isso acontecesse. Os três mais novos assistiam sentados no sofá, sem pinga de sangue.
– Acabem já com isso – gritou Mrs. Morel, com dureza. – Por esta noite chega... E tu – disse, virando-se para o marido – pensa nos teus filhos.
Morel virou os olhos para o sofá.
– Pensa nos teus filhos, ess’agora, minha grande cabra – disse ele, acintoso – o qu’é qu’eu fiz òs meus filhos, sempre gostava de saber. Mas eles saem a ti... ensinaste-lhes todas as tuas manhas e truques... criaste-os à tua maneira, foi o que foi.
Ela não respondeu. Ninguém abriu a boca. Passado algum tempo, ele atirou as botas para debaixo da mesa e foi deitar-se.
– Porque é que não me deixou fazer-lhe frente? – disse William, quando o pai já tinha ido para cima. – Ele tinha apanhado, e bem.
– Que bonito... bateres no teu pai – respondeu a mãe.
– Pai! – repetiu William. – Aquilo, meu pai!
– Bom, lá que é... é. Por isso...
– Mas porque é que não me deixa dar-lhe uma ensinadela, não custava nada...
– Que disparate! – gritou Mrs. Morel. – Ainda não chegámos a esse ponto.
– Não – disse o filho. – Ainda é pior... olhe para a sua cara. Porque não me deixou bater-lhe?
– Porque não ia suportar assistir a uma coisa dessas. É melhor que nem te passe pela cabeça – gritou ela, peremptória.
As crianças foram deitar-se muito tristes.
Quando William já era grande, a família mudou-se das Bottoms para uma casa no alto da colina, de onde se alcançava todo o vale, que se estendia por baixo, convexo, como concha de amêijoa ou berbigão. Fronteiro à casa, estava postado um velho freixo de grandes dimensões. Quando o vento oeste soprava forte das bandas do Derbyshire, apanhava em cheio as casas e a árvore não parava de ulular. Morel gostava de a ouvir.
– É como a música – dizia ele. – Ajuda-me a adormecer.
Mas Paul, Arthur e Annie detestavam o zumbido do vento. Para Paul, era quase um gemido demoníaco. Durante o primeiro Inverno que passaram na nova casa, o pai portou-se muito mal. As crianças ficavam a brincar na rua, alcandorada sobre o vale extenso e sombrio, e só voltavam para casa às oito horas, indo directas para a cama. A mãe ficava a costurar no andar de baixo. Todo aquele espaço aberto diante da casa incutia nas crianças uma sensação de vastidão nocturna, de terror. Terror esse que provinha da árvore ululante e da discórdia entre os pais. Paul, mesmo depois de adormecer, tinha um sono sobressaltado e acordava amiúde com os barulhos que vinham de baixo. Acordava e ficava atento. Ouvia então os berros desabridos do pai, que chegara a casa a cair de bêbado, seguidos das respostas aceradas da mãe, e depois os murros do pai em cima da mesa e os seus gritos descontrolados, à medida que ia elevando a voz. E, finalmente, tudo isto era abafado pelos gemidos e os uivos penetrantes do grande freixo agitado pela ventania. As crianças mantinham-se caladas e expectantes, a aguardarem que o vento se calasse, para perceberem o que o pai estava a fazer, não fosse ele bater na mãe outra vez. A escuridão instilava neles sentimentos de horror, violenta tensão e sangue, e adormeciam com o coração apertado de angústia. O vento era cada vez mais assustador. Todas as cordas da grande harpa gemiam, silvavam e uivavam. E, depois, o horror do súbito silêncio: o silêncio total, lá fora e lá em baixo. Que silêncio era aquele?... Um silêncio de sangue? Que teria ele feito?
As crianças mantinham-se deitadas a respirar escuridão. Por fim, ouviam o pai atirar com as botas e subir a escada só de meias. Mesmo assim, ficavam à escuta, até que, se o vento deixava, ouviam a água a sair da torneira para a chaleira, que a mãe já deixava preparada para o dia seguinte, e podiam, finalmente, dormir em paz.
De manhã, acordavam felizes, muito felizes, e brincavam e dançavam à volta do candeeiro solitário, ainda na escuridão, mas guardavam um recanto de ansiedade dentro dos seus corações e uma tristeza nos olhos que conservaram para toda a vida.
Paul odiava o pai. Quando era ainda pequeno, tinha uma religião muito sua.
– Faz com que ele deixe de beber – pedia ele todas as noites.
– Senhor, deixa o meu pai morrer – rezava ele muitas vezes.
– Faz com que ele morra na mina – pedia ele quando, depois do chá, o pai tardava a vir do trabalho.
Esse era outro dos momentos em que a família sofria intensamente. As crianças chegavam da escola e tomavam chá. A enorme chaleira preta fervilhava a um lado do fogão e a terrina do guisado estava no forno, à espera de que Morel chegasse. Era esperado às cinco horas. Porém, durante meses a fio, parava sempre na taberna quando voltava do trabalho e por lá ficava a beber.
Nas noites de Inverno, quando o frio era intenso e anoitecia mais cedo, Mrs. Morel levava para a mesa uma palmatória de latão com uma vela acesa, para poupar o gás. As crianças comiam a sua fatia de pão com manteiga ou com banha e iam brincar para a rua. Mas, se Morel ainda não tinha chegado, eles pensavam duas vezes. Mrs. Morel não suportava imaginá-lo sentado na taberna a beber, todo sujo e ainda com as roupas da mina, depois de um dia de trabalho, e, em vez de vir para casa comer e lavar-se, preferir embebedar-se de estômago vazio. E este seu sentimento comunicava--se aos filhos. Agora, ela já não sofria sozinha: os filhos sofriam com ela.
Paul foi brincar com os outros rapazes. No vale semeado no crepúsculo, cintilavam aglomerados de luzes a marcarem a entrada das minas. Alguns mineiros retardatários subiam desgarrados o carreiro da encosta. Por fim, passou o homem que acendia os lampiões da rua. Mais nenhum mineiro se avistava. A escuridão abateu-se sobre o vale, o trabalho terminara, era a noite que chegava.
Paul correu ansioso para a cozinha. A vela solitária ardia ainda sobre a mesa, o clarão vermelho da fogueira inundava a cozinha, e Mrs. Morel estava sentada e só. A chaleira fumegava no fogão, o prato continuava à espera. Um sentimento de espera perpassava toda a casa, um sentimento de espera pelo homem que estava nesse momento sentado na taberna, a pouco mais de uma milha de casa, já noite escura, com a roupa de trabalho, sem comer, e a beber até cair. Paul apareceu à porta.
– O papá já chegou? – perguntou.
– Bem vês que não – disse Mrs. Morel, aborrecida com a redundância da pergunta.
Depois, o garoto pôs-se a andar de um lado para o outro à volta da mãe. Partilhavam a mesma ansiedade. A certa altura, Mrs. Morel foi lá fora escorrer a água das batatas.
– Estão todas negras, uma porcaria – disse ela. – Quero lá saber. – Não se trocavam muitas palavras. Paul quase odiava a mãe por sofrer daquela maneira quando o pai não vinha para casa.
– Para que se aflige tanto? – disse ele. – Se ele quer ficar por lá a embebedar-se, porque não o deixa?
– Deixá-lo! – ripostou Mrs. Morel. – Essa é boa, «deixá-lo». – Ela sabia que todo o homem que se mete na taberna quando devia voltar para casa sem demora se arruina a si mesmo e à família. As crianças eram ainda muito pequenas e ele era o seu único ganha-pão. William viera trazer-lhe algum alívio, pois, com ele empregado, sempre tinha alguém a quem recorrer se Morel descambasse de vez. Porém, isso em nada alterava a tensão que se respirava na cozinha nestas noites de espera.
Os minutos escoavam-se no bater ritmado do relógio. Às seis horas, a mesa ainda estava posta, o jantar à espera, e a mesma atmosfera de ansiedade e expectativa invadia toda a casa. Paul já não aguentava mais. Não lhe apetecia ir lá para fora brincar. Correu por isso para casa de Mrs. Inger, duas portas mais abaixo, para conversar com ela. Mrs. Inger não tinha filhos. O marido era amigo dela, mas era caixeiro numa loja e chegava muito tarde. Quando ela viu o garoto à porta, chamou-o:
– Vem cá, Paul.
Ficaram os dois a conversar durante um bocado, mas logo Paul se levantou, dizendo:
– Bem, vou andando, para ver se a minha mãe precisa que eu lhe vá fazer algum recado.
Fingia estar muito alegre e não contou à amiga o que o preocupava. Depois, voltou a correr para casa.
Em alturas como esta, Morel chegava sempre mal-humorado, insuportável.
– Lindas horas de voltares para casa – dizia Mrs. Morel.
– Que tens tu co’isso, cas horas a qu’eu venho pra casa? – berrava ele.
E ninguém abria a boca, porque ele era perigoso. Comia o que lhe punham à frente com inultrapassável grosseria e, quando terminava, empurrava tudo o que tinha diante de si para longe, para poder estender os braços por cima da mesa, e, em seguida, adormecia.
Paul odiava por demais o pai. A cabeça do mineiro, pequena e mesquinha, com o cabelo preto empastado de fuligem, repousava sobre os braços nus, e a cara, suja e mal-humorada, de nariz grosso e sobrancelhas finas e insolentes, estava virada para o lado, adormecida – da cerveja, do cansaço e da má índole. Se alguém entrasse de repente ou fizesse o mais pequeno ruído, o homem abria os olhos e berrava:
– Tás aqui, tás a levar um murro, se não paras com essa chinfrineira. Tás’ouvir?
Estas palavras, gritadas selvaticamente e quase sempre dirigidas contra Annie, deixavam toda a família transida de medo.
Ele era mantido fora de todos os assuntos. Ninguém lhe contava nada. Enquanto estavam sozinhos com a mãe, o filhos relatavam-lhe as peripécias do dia, contavam-lhe tudo. Era como se nada realmente acontecesse até contarem à mãe. Mas, mal o pai entrava, fazia-se silêncio. A sua presença era como um travão na engrenagem fluente e feliz da vida doméstica. Ele apercebia-se deste muro de silêncio, do isolamento a que o votavam, de que não era bem-vindo; mas era já demasiado tarde para mudar.
Bem gostaria de que os filhos conversassem com ele, mas eles não conseguiam. Às vezes Mrs. Morel dizia:
– Devias contar ao teu pai.
Paul ganhou um prémio num concurso de jornal e todos ficaram radiantes.
– O melhor é contares ao teu pai quando ele chegar – disse Mrs. Morel. – Sabes bem que ele passa a vida a dizer que nunca lhe contam nada.
– Está bem – concordou Paul. No entanto, quase preferia ter perdido o prémio a ter de contar ao pai.
– Ganhei um prémio num concurso, pai – disse ele.
Morel voltou-se e disse:
– Ah, ganhaste, meu rapaz?... E que concurso era esse?
– Nada de especial... era sobre mulheres famosas.
– E de quanto é esse tal prémio que ganhaste?
– É um livro.
– Ah, é?
– Sobre aves.
– Hum!
E era assim. Não havia conversa possível entre o pai e qualquer dos restantes membros da família. Era como se ele fosse um estranho, tivesse negado o Deus que nele habitava.
Os únicos momentos em que voltava a entrar na vida da família era quando fazia consertos em casa e o trabalho lhe corria de feição. Às vezes, ao fim da tarde, depois de jantar, punha-se a remendar as botas ou a soldar a chaleira ou o cantil. Nessa altura precisava de ajudantes e as crianças rejubilavam. Partilhavam com ele o trabalho, no verdadeiro sentido de construírem realmente qualquer coisa, e aquele sim, era ele outra vez.
Mostrava-se competente e habilidoso, e quando estava de bom humor não parava de cantarolar. Mas atravessava longos períodos, às vezes meses, quase anos até, de contundência e irascibilidade. Depois, de repente, ficava bem-disposto outra vez e era bom vê-lo entrar pela copa dentro com um bocado de ferro incandescente, a gritar:
– Saiam da frente, saiam da frente!
Batia o ferro rubro e maleável na bigorna e moldava-o a gosto. Outras vezes sentava-se a soldar, e as crianças viam cheias de alegria o metal derreter instantaneamente e ser espalhado pelo ferro de soldar, impregnando a casa de um odor a lata quente e a resina queimada, enquanto Morel em silêncio se concentrava no trabalho. Cantava sempre que estava a remendar as botas, ao som das batidas do martelo. E via-se que estava feliz quando punha grandes remendos nas calças de fustão que usava na mina, o que acontecia bastas vezes, pois achava-as muito sujas e muito rijas para ser a mulher a fazê-lo.
Mas o que as crianças mais gostavam era de o verem fazer detonadores. Morel ia buscar ao sótão um molho de palhas de trigo compridas e resistentes. Limpava-as e polia-as à mão até cada uma luzir como uma hastezinha de ouro. Depois, cortava-as em bocados com cerca de seis polegadas, fazendo-lhes, se possível, um talho na ponta. Tinha sempre ao seu lado um canivete primorosamente afiado que cortava uma palha ao meio sem a danificar. Seguidamente, deitava em cima da mesa um montinho de pólvora – uma pilha de grãos pretos sobre o tampo de madeira bem lavada, e ia preparando e aparando as palhas, enquanto Paul e Annie as enchiam e vedavam com um bujão. O que Paul mais gostava era de ver os grãozinhos pretos escorregarem pela calha que ele fazia com a palma da mão e entrarem pela abertura da palhinha, até ela ficar cheia. Nessa altura, vedava a abertura com uma raspa de sabão que arrancava com a unha do polegar do bocado de sabão que tinha a seu lado num pires, e a palha estava pronta.
– Olhe, pai! – dizia ele.
– Isso mesmo, meu amor – respondia Morel, que era particularmente pródigo em elogios para com o seu segundo filho. Paul atirava os detonadores para dentro da lata da pólvora, já pronta para o dia seguinte, quando Morel a levasse para a mina, para com eles provocar uma explosão capaz de fracturar a parede de carvão.
Entretanto, Arthur, ainda muito agarrado ao pai, vinha apoiar-se no braço do cadeirão de Morel e dizia:
– Conte-nos como é lá em baixo na mina, papá.
Era o que Morel mais gostava de fazer.
– Ora bem, lá na mina há um cavalo, a gente chama-lhe Taffy – começava ele – e ele é um gra-a-nde manhoso!
Morel tinha uma maneira pitoresca de contar histórias. Parecia até que a manha do Taffy ganhava vida.
– É um baio – continuava ele – e dos pequenos. Bem, a cert’altura ele entra na galaria com ganda estardalhaço e a gente ouve-o espirrar.
– «Olá, Taff», diz a gente, «pra que tás tu a espirrar? Andaste a cheirar rapé?» E ele vá de espirrar outra vez. Depois vem ter co’a gente e dá-nos co’a cabeça no ombro, o malandreco.
– «Qu’é que tu queres, Taff?», diz a gente.
– E o qu’é qu’ele quer? – perguntava Arthur invariavelmente.
– Quer um bocado de tabaco, meu tontinho.
E a história do Taffy nunca mais acabava, para gáudio da pequenada.
Outras vezes a história mudava.
– Ora ouve esta, meu amor. De quando vou a vestir o casaco, na hora de vir dar ao dente, e dou c’um rato a correr-me pela manga acima. «Eh, lá!», grito eu, mesmo a tempo de lh’agarrar a ponta do rabo.
– E matou-o?
– Matei, pois. São uma praga. Aquilo tá cheio deles.
– E o que é que eles comem?
– Os grãos qu’os cavalos deixam cair... e até nos vêm ao bolso comer o farnel, s’os deixarmos... seja onde for que a gente pendure o casaco... Danados de comilões, isso é qu’eles são...
Estas noites bem passadas só aconteciam quando Morel tinha trabalho para fazer. Depois, ia deitar-se muito cedo, geralmente com as crianças. Não havia nada que o fizesse ficar a pé depois de terminar os consertos e ler por alto os títulos do jornal.
Os filhos sentiam-se seguros quando o pai estava na cama. Por vezes ficavam a conversar em voz baixa depois de se deitarem, e assustavam-se quando luzes de repente se projectavam no tecto, vindas das lanternas dos mineiros que passavam para o turno das nove horas. Ouviam as vozes dos homens e imaginavam-nos a penetrar no vale de breu. Às vezes iam à janela e ficavam a ver as três ou quatro lanternas cada vez mais pequeninas desaparecerem na distância, balançando na escuridão dos prados. E, depois, era tão bom voltarem para a cama e enroscarem-se uns nos outros, no quentinho.
De todos, só Paul era muito frágil, atreito a ataques de bronquite. Os outros eram todos fortes e essa era talvez a outra razão para a diferença que a mãe fazia entre ele e os irmãos. Um dia, Paul chegou adoentado à hora do almoço. A família, porém, não era dada a pieguices.
– O que se passa contigo? – perguntou a mãe, incisiva.
– Nada – respondeu ele.
Mas não quis comer.
– Se não comeres, não voltas para a escola.
– Porquê? – perguntou ele.
– Porque não.
Depois do almoço, ele foi deitar-se no sofá, entre as fofas almofadas de ramagens de que as crianças tanto gostavam, e pareceu adormecer. Nessa tarde, estava Mrs. Morel a passar a ferro quando ouviu os ruídos roucos e entrecortados que o filho fazia ao respirar. De novo a assaltou o antigo sentimento exacerbado de quando ele era bebé e julgava que não ia sobreviver. No entanto, o corpinho dele tinha grande vitalidade. Talvez para ela tivesse sido um alívio se ele tivesse morrido. Sentia sempre a angústia misturar-se ao amor que lhe tinha.
Ele, no seu estado de semiconsciência, apercebia-se vagamente do tinir do ferro no descanso e do seu assentar cavo sobre a tábua de engomar. Uma das vezes, acordando, abriu os olhos e viu a mãe junto à lareira com o ferro quente perto da cara, a escutar por assim dizer o ruído do calor. Ao ver o seu rosto imóvel, a boca crispada de tanto sofrimento, desilusão e abnegação, o nariz ligeiramente à banda e os seus olhos azuis, tão jovens, vivos e ternos, o coração de Paul apertou-se-lhe de amor. Quando ela ficava assim parada, como agora, parecia cheia de vida e de coragem, mas completamente privada dos seus direitos. Ao filho, magoava-o profundamente este pressentimento de ela nunca ter sido feliz, e a sua própria falta de capacidade para a compensar atingia-o como uma espécie de impotência, ao mesmo tempo que determinavam nele uma atitude de paciente tenacidade, em conformidade com as suas ambições pueris.
Ela cuspiu no ferro, e uma bolinha de cuspo enovelou-se e correu pela superfície negra e luzidia. Depois, pondo-se de joelhos, esfregou o ferro vigorosamente no forro de serapilheira do tapete. As chamas da fogueira envolviam-na num clarão cálido e avermelhado. Paul gostava da maneira como ela se baixava e inclinava a cabeça para o lado com movimentos leves e ligeiros. Era sempre com enlevo que a olhava. Nada que fizesse, nenhuma atitude ou movimento, podiam ter defeito para os filhos. A casa estava aquecida e cheirava a roupa quente. Mais tarde, o pároco veio conversar tranquilamente com Mrs. Morel.
Paul caiu à cama com um ataque de bronquite. Não que isso o contrariasse muito: o que tinha de ser tinha muita força e de nada servia revoltar-se. Gostava das noites, depois das oito horas, quando apagavam a luz e ele podia ver as chamas projectarem-se na escuridão das paredes e do tecto e seguir com o olhar as sombras alongadas que o percorriam, até a sala parecer invadida por guerreiros silenciosos, combatendo no silêncio.
Quando se ia deitar, o pai passava primeiro pelo quarto do enfermo. Se alguém estava doente em casa, mostrava-se sempre muito terno, mas a sua entrada não deixava de perturbar a paz que reinava no quarto de Paul.
– Tá a dormir, meu amor? – perguntava Morel, devagarinho.
– Não... A mãe não vem para cima?
– Tá só a acabar de dobrar a roupa. Quer alguma coisa? – Morel só raramente tratava o filho por «você».
– Não, não quero nada... Mas quanto tempo é que demora?
– Já falta pouco, meu tontinho.
O pai hesitava uns segundos frente à lareira. Sentia que o filho não queria a sua presença. Assomava-se então ao cimo das escadas e dizia à mulher:
– Aquela criança tá ansiosa por te ter ó pé... Inda vais ficar aí muito tempo?
– Até acabar o que estou a fazer, santo Deus! Diz-lhe que durma.
– Ela diz qu’o melhor é o meu menino adormecer – disse ele a Paul, de mansinho.
– Mas eu quero que ela venha para cima – insistiu o garoto.
– Ele diz que não dorme enquanto não vieres pra cima – gritou Morel lá para baixo.
– Calma, querido! Já vou. E vê se não gritas dessa maneira. Olha as outras crianças...
Depois, Morel voltou para o quarto de Paul e acocorou-se em frente da lareira. Que bem lhe sabia aquecer-se ao lume.
– Ela diz que já vem.
Parecia querer ficar ali indefinidamente. O garoto já estava febril de irritação. A presença do pai parecia aumentar ainda mais a sua impaciência. Por fim, depois de ficar a olhar para o filho por algum tempo, em silêncio, Morel disse mansamente:
– Boa noite, meu amor.
– Boa noite – respondeu Paul, voltando-se para o outro lado, satisfeito por ficar sozinho.
Paul adorava dormir com a mãe. O sono é ainda mais reparador, apesar de tudo o que dizem os defensores da higiene, quando partilhado com um ente querido. O aconchego, a segurança, a paz de espírito e o conforto que a presença do outro traz, conferem ao sono propriedades curativas. Paul adormecia encostado a ela e melhorava depressa, e ela, sempre atormentada por insónias, mergulhava num sono profundo que parecia renovar-lhe a esperança.
Durante a convalescença, Paul ficava sentado na cama, a ver os cavalos a pastar nos campos circundantes, espalhando o feno pela neve amarelada das pegadas, e a ver os mineiros voltarem para casa, figurinhas negras trilhando lentamente em grupos a alvura dos campos. Depois, vinda da neve, a noite avançava em vapores azulados, quase negros.
Durante a convalescença tudo era maravilhoso. Os flocos de neve caindo de repente na janela detinham-se por um momento, como andorinhas, mas logo desapareciam, e uma gota de água escorria pela vidraça. Os flocos de neve rodopiavam em torno da esquina da casa como pombas esvoaçantes. Do outro lado do vale, o pequeno comboio negro rolava hesitante através da planície toda branca.
Vendo-se tão pobres, as crianças ficavam radiantes quando podiam fazer qualquer coisa que pudesse ajudar os pais economicamente. Annie, Paul e Arthur saíam no Verão logo pela manhã e metiam-se pelo meio da erva molhada, de onde esvoaçavam cotovias, assustadas, à cata de cogumelos, esses corpos nus e de pele tão branca que se escondem dos olhares por entre o verde. Se conseguiam apanhar meia libra, já se davam por muito felizes: era a alegria de encontrarem qualquer coisa, a alegria de receberem qualquer coisa directamente das mãos da natureza e a alegria de poderem contribuir para a economia doméstica.
Mas a colheita mais importante, depois de andarem à procura de ervas aromáticas para as papas, era a das amoras. Mrs. Morel tinha de comprar fruta todos os sábados para os pudins; além disso, gostava muito de amoras. Assim, Paul e Arthur, enquanto houvesse uma amora à vista, esquadrinhavam os silvados, as moitas e as pedreiras abandonadas todos os fins-de-semana. Naquela região de cidades mineiras, as amoras eram relativamente raras. Mas Paul era persistente. Gostava de andar pelos campos entre os silvados, mas não suportava voltar de mãos a abanar. Isso seria desapontá-la, pensava ele, e antes queria morrer.
– Santo Deus! – exclamou a mãe ao vê-los entrar, já tarde, mortos de cansaço e cheios de fome. – Por onde é que vocês andaram?
– Bem – começou Paul –, como aqui não encontrámos nenhuma, fomos até Misk Hills... E veja só, mãe.
Ela espreitou para a cesta.
– E que lindas que são! – exclamou.
– E passa de duas libras... passa de duas libras, não passa, mãe?
A mãe tomou o peso à cesta.
– Passa, sim – respondeu, pouco convicta.
Paul estendeu-lhe um raminho. Trazia-lhe sempre um raminho, o mais bonito que encontrasse.
– Que bonito! – disse ela, com a entoação especial da mulher que recebe um testemunho de amor.
O filho preferia correr os campos o dia inteiro, calcorrear milhas e milhas, a dar-se por vencido e voltar de mãos vazias. Ela nunca o entendeu enquanto ele foi pequeno. Era uma mulher que esperava que os filhos crescessem depressa e se preocupava sobretudo com William.
Mas quando William foi trabalhar para Nottingham, e já não passava tanto tempo em casa, a mãe fez de Paul seu companheiro. Este sentia involuntariamente ciúmes do irmão, e William tinha ciúmes de Paul, mas eram ao mesmo tempo bons amigos.
A relação de Mrs. Morel com o seu segundo filho era mais subtil e tranquila, menos exacerbada talvez do que com o filho mais velho. Estava estabelecido que era Paul quem ia levantar o salário às sextas-feiras à tarde. Os mineiros das cinco minas da zona recebiam à sexta-feira, mas não individualmente. Os salários referentes a cada galeria eram pagos por junto ao capataz, chefe e contratador dos mineiros, e era ele quem fazia a distribuição, na taberna ou na sua própria casa. Para as crianças poderem ir buscar o dinheiro, a escola acabava mais cedo às sextas-feiras. Todos os filhos de Morel, primeiro William, depois Annie e agora Paul, já tinham ido buscar o dinheiro às sextas-feiras à tarde, até chegar a altura de eles próprios começarem a trabalhar. Paul costumava sair de casa às três e meia, com um saquinho de pano no bolso. Por todos os caminhos se viam mulheres, raparigas, crianças e homens a caminho dos escritórios.
Os escritórios eram muito bonitos: num edifício novo de tijolo vermelho, que mais parecia uma mansão, no meio de um jardim muito bem tratado, ao fundo de Greenhill Lane. A sala de espera era no vestíbulo, uma sala comprida e nua com chão de tijoleira azul e um banco a toda a volta, encostado à parede. Era aqui que se sentavam os mineiros, carregados de fuligem. Tinham saído mais cedo da mina. As mulheres e as crianças ficavam geralmente à espera nos arruamentos de gravilha avermelhada. Paul observava sempre com atenção a orla de relva e o grande canteiro onde cresciam amores-perfeitos e miosótis. Aos ouvidos chegava-lhe o som de muitas vozes misturadas. As mulheres exibiam os seus chapéus domingueiros. As raparigas tagarelavam animadas. Os cães corriam para um lado e para o outro. E, em redor, os arbustos erguiam-se verdes e silenciosos.
Nisto, alguém gritava de lá de dentro: «Spinney Park... Spinney Park», e todos os da mina de Spinney Park entravam de tropel. Quando chegava a vez da mina de Bretty, Paul entrava com a multidão. A sala de pagamentos era muito pequena. Um balcão a toda a largura dividia-a ao meio. Atrás do balcão estavam dois homens, Mr. Braithwaite e um empregado, Mr. Winterbottom. Mr. Braithwaite era um homem corpulento, com ar de patriarca austero e uma barbicha branca e rala. Tinha geralmente a boca tapada com um grande lenço de pescoço, em seda, e, mesmo no Verão, havia sempre uma fogueira acesa. Não se via uma janela aberta. Por vezes, no Inverno, o calor até chegava a queimar as gargantas de quem vinha do ar gélido do exterior. Mr. Winterbottom era baixinho, gordo e calvo. Tecia comentários sem o mínimo resquício de imaginação, enquanto o seu chefe não se cansava de proferir patriarcais invectivas contra os mineiros.
A sala estava apinhada de mineiros todos enfarruscados, homens que já tinham ido a casa mudar de roupa, mulheres e uma ou duas crianças, e, geralmente, um cão. Paul era bastante baixo e era por isso sina sua ver-se entalado entre as pernas dos homens, perto do calor sufocante da lareira. Sabia a ordem por que os nomes eram chamados: de acordo com o número da galeria.
– Holliday – chamou a voz metálica de Mr. Braithwaite. Mrs. Holliday avançou em silêncio, recebeu o salário e passou para o outro lado.
– Bower... John Bower.
Um rapaz chegou-se ao balcão. Mr. Braithwaite, uma bisarma irascível, fuzilou-o com o olhar por detrás das lentes.
– John Bower! – voltou ele a chamar.
– Sou eu – disse o rapaz.
– Esta agora..., dantes as ventas eram outras – disse o luzidio Mr. Winterbottom, espreitando por cima do balcão. Os presentes riram-se à socapa, a pensarem no John Bower pai.
– Porque é que o teu pai não veio? – perguntou Mr. Braithwaite, num tom magistral e grandiloquente.
– Não anda bem – respondeu o rapaz, na sua voz aflautada.
– Devias dizer-lhe para largar a bebida – aconselhou o corpulento tesoureiro.
– E depois não te queixes, se ele te ferrar um pontapé – disse uma voz trocista lá de trás.
Todos se riram. O tesoureiro, avantajado e com ares importantes, olhou para a folha que se seguia.
– Fred Pilkington! – chamou, em tom neutro.
Mr. Braithwaite era um importante accionista da firma.
Paul sabia que só faltava um e depois era a vez dele. O coração começou a bater mais depressa. Foi empurrado de encontro à chaminé. Tinha a barriga das pernas a arder, mas não podia furar a barreira humana à sua volta.
– Walter Morel! – soou a voz metálica.
– Aqui – esganiçou-se Paul, da sua pequenez desajeitada.
– Morel... Walter Morel! – repetiu o tesoureiro, de folha de pagamentos na mão, pronto a passar à frente.
Paul foi acometido de convulsões nervosas e não conseguia, ou não queria, gritar. As costas dos homens apagavam-no por completo. Então, Mr. Winterbottom veio em seu auxílio.
– Ele tava aqui... onde tá ele? O miúdo do Morel?
O homem gordo, vermelhusco e calvo perscrutou a sala, assestando os olhos. Nisto, apontou para a chaminé. Os mineiros olharam também e, afastando-se, libertaram o rapaz.
– Aqui tá ele! – disse Mr. Winterbottom. Paul aproximou-se do balcão.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros... Atão, não respondes quando te chamam? – disse Mr. Braithwaite. Pousou um saco com cinco libras em prata com toda a força em cima da folha de pagamentos e, depois, num gesto rápido e delicado, pegou numa pequena pilha de dez libras em ouro e colocou-a ao lado da prata. As moedas de ouro escorregaram sobre o papel como um rio de brilho. O tesoureiro acabou de contar o dinheiro e o rapaz levou tudo a Mr. Winterbottom, no outro extremo do balcão, a quem deviam ser pagas a renda da casa e o aluguer das ferramentas. Aí chegado, novo percalço.
– Dezasseis xelins e seis dinheiros – disse Mr. Winterbottom.
O rapaz estava nervoso de mais para contar o dinheiro, pelo que empurrou algumas moedas de prata e meio soberano na direcção do funcionário.
– Quanto julgas tu que me destes? – perguntou Mr. Winterbottom.
O rapaz fitou-o, sem responder. Não fazia a menor ideia.
– Perdestes a língua?
Paul mordeu o lábio e empurrou mais algumas moedas de prata por cima do balcão.
– Na escola num t’insinaram a contar? – perguntou o homem.
– Só álgibra e franciú – disse um mineiro.
– E a ser sabido – acrescentou outro.
Paul sabia que por sua causa havia gente à espera. Com mãos trémulas, guardou o dinheiro no saco e saiu. Estas ocasiões eram para ele como as penas do Inferno.
Quando se apanhou cá fora, na estrada de Mansfield, sentiu-se infinitamente aliviado. O muro do parque estava coberto de musgo muito verde. Galinhas brancas e douradas debicavam à volta das macieiras de um pomar. Os mineiros serpenteavam rumo a casa. O rapaz seguia rente ao muro, envergonhado. Conhecia muitos dos homens, mas assim, todos sujos, não conseguia identificá-los, o que para ele era uma nova tortura.
Quando chegou à taberna New Inn, em Bretty, o pai ainda não tinha chegado. Mrs. Wharmby, a taberneira, conhecia-o. A avó dele, a mãe de Morel, fora amiga de Mrs. Wharmby.
– O teu pai ainda não chegou – disse ela, naquele tom meio atrevido, meio maternal, de mulher habituada a falar sobretudo com homens feitos. – Senta-te.
Paul sentou-se ao balcão, na beira de um banco alto. Alguns mineiros estavam a um canto a «dividir o bolo» – a distribuir o dinheiro – e outros vinham a entrar. Todos miravam o rapaz, sem dizer palavra. Finalmente, Morel chegou, todo desempenado e com um certo toque de galhardia, apesar da pretidão.
– Olá – disse ele, ternamente, para o filho. – Atão, inda conseguiste chegar primeiro do qu’eu? Queres beber alguma coisa?
Paul, tal como os irmãos, tinha crescido um anti-alcoólico convicto, e para ele era pior beber uma limonada à frente de todos aqueles homens do que tirar um dente.
A taberneira mirou-o dos pés à cabeça, penalizada, mas ao mesmo tempo ofendida com a rigidez moral de que dava mostras. Paul voltou para casa rubro de vergonha. Entrou em silêncio. Sexta-feira era dia de cozer o pão e havia geralmente uma carcaça quentinha à sua espera. A mãe veio dar-lha.
De repente, ele virou-se a ela furioso, de olhos a faiscar.
– Nunca mais entro naquele escritório.
– Porquê, o que é que aconteceu? – perguntou a mãe, surpreendida. Divertia-se imenso com os súbitos ataques de fúria deste filho.
– Nunca mais lá volto – afirmou ele.
– Pronto, está bem. Então, vai dizer isso ao teu pai.
Paul mastigava o pão como se tivesse alguma coisa contra ele.
– Não vou... Não vou mais buscar o dinheiro.
– Então talvez um dos miúdos do Carlin possa ir. Eles haviam de gostar de ficar com os seis dinheiros – disse Mrs. Morel.
Os seis dinheiros era tudo o que Paul recebia. Gastava-os quase todos a comprar presentes de aniversário, é certo, mas eram a sua semanada e prezava-os muito. Porém, disse:
– Pois que fique com eles! Eu não os quero.
– Muito bem – respondeu a mãe. – Mas não precisas de me tratar mal por causa disso.
– Eles são horríveis e ordinários... são horríveis, pronto, e eu não vou lá mais. Mr. Braithwaite pronuncia mal as palavras e Mr. Winterbottom diz «a gente semos».
– E é por isso que não queres lá voltar? – disse a mãe a sorrir.
O rapaz ficou calado. Estava muito pálido, com os olhos pretos e furiosos. A mãe voltou aos seus afazeres sem lhe dar mais importância.
– Eles metem-se todos à minha frente e eu não consigo sair donde estou – disse ele.
– Bem, meu filho, só tens de pedir licença – respondeu ela.
– E depois o Alfred Winterbottom diz, «O qu’é que t’insinam na escola?»
– A ele nunca ensinaram grande coisa – disse Mrs. Morel. – Lá isso é verdade... nem boas maneiras, nem inteligência... a única coisa que tem é manha.
– E vão eles e dizem, «Só álgibra e franciú.» Na escola, não ensinam francês.
– Mas, se ensinassem – disse a mãe, sorrindo – não era preciso ficares tão zangado... Portas-te duma maneira tão infantil, meu filho, quando alguém brinca contigo.
– E depois? – Paul olhou para a mãe quase a chorar, e ainda com mais raiva e ódio do que propriamente ofendido.
– És tão pateta – continuou ela. – Não consegues dizer simplesmente «agora é a minha vez», deixas-te ultrapassar e depois ficas furioso. A culpa é tua.
E, assim, lá o acalmou, embora à sua maneira. A ridícula hiper-sensibilidade dele confrangia-lhe o coração. Outras vezes, a fúria que via nos olhos do filho alertava-a, fazia a sua alma adormecida levantar a cabeça momentaneamente, surpreendida.
– Quanto foi desta vez? – perguntou.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros, e dezasseis xelins e seis dinheiros de retenção – replicou o rapaz. Foi uma boa semana... e só cinco xelins de retenções para o meu pai.
Assim, ela podia calcular quanto o marido tinha ganho, e chamá-lo à pedra se ele lhe desse pouco dinheiro. Morel guardava sempre para si o segredo do montante da semana.
Sexta-feira era a noite de cozer pão e de ir ao mercado. Regra geral, Paul ficava em casa a vigiar o pão. Gostava de ficar a desenhar ou a ler – adorava desenhar. Annie punha-se sempre ao fresco à sexta-feira à noite, e Arthur entretinha-se a brincar na rua, como de costume. Por isso, Paul ficava sozinho.
Mrs. Morel gostava muito de ir à compras. No exíguo terreiro no cimo da colina onde se juntavam as quatro estradas vindas de Nottingham e Derby, Ilkeston e Mansfield, eram montadas muitas barracas. Chegavam breques das aldeias em redor. O mercado enchia-se de mulheres, as ruas ficavam apinhadas de homens. Mrs. Morel costumava discutir com a vendedeira de rendas, simpatizava com o homem da fruta, que era muito falador – mas a mulher, essa era uma desavergonhada, sempre a dar conversa ao peixeiro, que era um patife, mas muito espirituoso – metia na ordem o vendedor de linóleo, mostrava-se distante com o homem do bricabraque, e só entrava na barraca das loiças quando se sentia atraída – ou arrastada – pelas florinhas que decoravam algum prato ou alguma travessa. Mas, sempre que isso acontecia, mostrava-se delicadamente reservada.
– Estava aqui a pensar quanto poderia custar isto – dizia ela.
– Sete dinheiros, por ser para si.
– Obrigada.
Pousava de novo a travessa e ia-se embora. Mas não era capaz de deixar o mercado sem a levar. E lá ia ela outra vez ao sítio onde as loiças estavam expostas pelo chão, e olhava de soslaio para a travessa, furtivamente, fingindo que não estava a olhar.
Era uma mulher franzina, de chapéu e fato preto. O chapéu já tinha quase três anos, para vergonha e desespero de Annie.
– Mãe! – implorava ela. – Não ponhas mais esse chapéu horroroso.
– E queres que eu ponha o quê? – retorquia a mãe, com aspereza. – Acho que está até muito bom.
Começara por ser enfeitado com uma pala, depois seguiram-se flores, e agora estava reduzido a uma rendinha preta e um pouco de azeviche.
– Tem tão mau aspecto – dizia Paul. – Não lhe pode dar um ar um pouco mais moderno?
– Posso é dar-te umas boas palmadas, para não seres atrevido – disse Mrs. Morel, e atava as fitas do chapéu preto debaixo do queixo, com determinação.
Contemplou a travessa uma vez mais. Tanto ela como o oleiro se sentiam pouco à vontade, como se entre eles existisse qualquer desentendimento. De repente, o oleiro exclamou:
– Quer levá-la por cinco dinheiros?
Ela estremeceu. O coração apertou-se-lhe. Mas, depois, baixou-se e pegou na travessa.
– Fico com ela – disse ela.
– Faz-me esse favor, não é? – disse o homem. – O melhor é cuspir-lhe em cima, como se faz quando nos dão uma prenda.
Mrs. Morel deu-lhe os cinco dinheiros com frieza.
– Não acho que ma esteja a dar, percebe – disse ela. – Se não quisesse, não ma deixava levar por cinco dinheiros.
– Neste país de miséria, já nos podemos dar por muito felizes se pudermos dar as nossas coisas – resmungou o homem.
– Pois é, há tempos bons e maus – disse Mrs. Morel.
Mas já tinha perdoado ao oleiro. Agora, eram amigos. Já se atrevia a mexer nas loiças expostas e sentia-se feliz.
Paul estava à espera da mãe. Adorava vê-la entrar em casa. Chegava sempre radiante, triunfante, cansada, carregada de embrulhos, mas rica de espírito. Ele ouvia os seus passinhos leves na entrada e levantava os olhos das pinturas.
– Oh! – suspirava ela, sorrindo-lhe da soleira da porta.
– Ena pá, como vem carregada! – exclamava Paul, pousando o pincel.
– Se venho! – dizia ela, ofegante. – A marota da Annie disse que ia ter comigo. Olha para o peso que eu trago!
Pousou o saco e os pacotes em cima da mesa.
– O pão já está cozido? – perguntou, dirigindo-se para o forno.
– O último está a crescer – respondeu ele. – Não precisa de ir ver, eu não me esqueci dele.
– Ai, aquele oleiro! – disse ela, fechando a porta do forno. – Lembras-te de eu te dizer como ele era antipático. Bom, agora já não acho que seja assim tão mau.
– Ah, não?
O filho não tirava os olhos dela. Mrs. Morel tirou o chapelinho preto.
– Não... Acho que ele acaba por não ganhar nada... bem, passa-se o mesmo com toda a gente, nos tempos que correm... e é isso que o deixa mal-encarado.
– A mim deixava com certeza – disse Paul.
– Bom, e não seria para admirar... E ele deixou-me ficar esta... Por quanto é que achas que ele me deixou ficar isto?
Tirou a travessa do papel que a embrulhava e contemplou-a, satisfeita.
– Mostre lá! – pediu Paul.
E ficaram os dois lado a lado a admirar a travessa.
– Adoro ver estas florinhas a enfeitar as coisas – disse Paul.
– Eu também. E lembrei-me do bule que me compraste...
– Um xelim e três dinheiros – disse Paul.
– Cinco dinheiros!
– Foi muito barata, mãe.
– Pois foi. Pode dizer-se que foi quase roubada. Mas já tinha feito muitas extravagâncias e não tinha dinheiro para mais. E, se ele não quisesse, não precisava de ma vender.
– Lá isso, não, não precisava – disse Paul, e ficaram os dois a consolar-se mutuamente do receio de terem roubado o oleiro.
– Podemos usá-la para pôr fruta cozida – alvitrou Paul.
– Ou leite-creme... ou doce de fruta – acrescentou a mãe.
– Ou rabanetes e alface – continuou ele.
– Não te distraias com o pão – disse a mãe, numa voz transbordante de alegria.
Paul foi espreitar o pão e bateu-lhe ao de leve na parte de baixo.
– Já está cozido – disse, mostrando-o à mãe. Ela bateu-lhe também.
– Pois está – respondeu ela, começando a tirar as compras do saco. – Oh, sou uma gastadora, uma perdulária... Sei que um dia me vai fazer falta.
Paul foi a saltitar para junto da mãe, para ver as últimas extravagâncias. Ela abriu um outro embrulho em papel de jornal e pôs à mostra algumas raízes de amores-perfeitos e boninas carmesim.
– Quatro dinheiros! – lamentou-se.
– Que barato! – exclamou ele.
– Pois é, e logo esta semana que eu estava sem um tostão.
– Mas são lindas! – exclamou ele.
– Então não são! – exclamou ela, dando lugar ao mais genuíno contentamento. – Paul... olha para esta florinha amarela... que bonita, não é... e uma cara que parece de velho!
– E parece mesmo! – exclamou Paul, baixando-se para cheirar. – E que bem que cheira! Mas está um bocado suja.
Correu para a copa, voltou com um pano molhado, e lavou o amor-perfeito com todo o cuidado.
– Agora, olhe para ele, está todo molhado! – disse Paul.
– Pois está! – exclamou ela, a transbordar de felicidade.
As crianças de Scargill Street consideravam-se muito selectas. Ao fundo da rua, onde viviam os Morels, não havia muita gente nova, e, por isso, os que havia eram mais unidos. Rapazes e raparigas brincavam uns com os outros: as raparigas participavam nas lutas e jogos violentos dos rapazes, e os rapazes tomavam parte nas danças de roda e nos jogos de faz-de-conta das raparigas.
Annie, Paul e Arthur gostavam das noites de Inverno, quando não chovia. Deixavam-se ficar dentro de casa até os mineiros terem regressado todos, até ser noite fechada e a rua ficar deserta. Nessa altura, enrolavam um cachecol ao pescoço, pois prescindiam do casacão, tal como os outros filhos dos mineiros, e saíam de casa. A entrada da rua estava completamente às escuras daquele lado e a noite estendia-se vazia, com um pequeno emaranhado de luzinhas lá em baixo, na mina de Minton, e um outro bem mais longe, na direcção oposta, na de Selby. As luzes mais distantes pareciam prolongar as trevas para sempre. As crianças olhavam ansiosas para o lampião solitário postado ao fundo da rua, na extremidade da ladeira da encosta. Se o escasso espaço de luz estava deserto, os dois rapazes ficavam desolados. Encostavam-se ao candeeiro, de mãos nos bolsos e costas viradas à noite, aborrecidíssimos, a olharem para as casas às escuras. Nisto, avistaram um bibe por baixo de um casaquinho curto, e uma rapariga de pernas altas a correr para eles.
– Onde tão o Billy Pillins e a vossa Annie e o Eddie Dakin?
– Não sei.
Mas isso não tinha importância – agora já eram três, e punham-se a correr à volta do poste até os outros aparecerem a gritar. Daí em diante, era brincadeira a valer.
Existia apenas este candeeiro. Para trás dele, só a imensa concha de trevas que parecia conter a noite inteira. À sua frente, um caminho largo e escuro percorria a cumeada. De vez em quando, saía alguém desse caminho e dirigia-se para o vale, pelo carreiro, sendo tragado pela noite a uns escassos dez metros de distância. As crianças continuaram a brincar.
Eram excessivamente unidas devido ao isolamento em que viviam. Mas, se se zangavam, a brincadeira ficava completamente estragada. Arthur era muito susceptível, e Billy Pillins, ou melhor, Philips, era-o ainda mais. Paul tinha de tomar o partido de Arthur, e a Paul juntava-se Alice, enquanto Billy Pillins contava sempre com o apoio de Emmie Limb e Eddie Dakin. Depois, envolviam-se os seis à bulha, odiando-se com toda a fúria do mais genuíno ódio, e corriam para casa apavorados. Paul nunca se havia de esquecer de ter visto uma noite, depois de uma destas assanhadas lutas fratricidas, uma grande lua vermelha elevar-se lentamente no céu por cima da estrada deserta da cumeada, sem vacilar, como pássaro gigantesco; e a imagem bíblica que o assaltou, da lua a transformar-se em sangue. No dia seguinte, apressou-se a ir fazer as pazes com Billy Pillins, e as desenfreadas brincadeiras retomaram o seu curso à luz do candeeiro solitário, rodeadas da mais negra escuridão. Mrs. Morel, ao entrar na sala, ouvia as crianças a cantar ao longe:
«Uso sapatos de couro espanhol,
Meias de seda, para meu deleite;
Anéis nos dedos, que brilham ao sol,
E só tomo banho em tinas de leite.»
Pareciam tão absorvidas no jogo, pelo som das suas vozes que penetrava as trevas, que dir-se-ia o canto de criaturas selvagens. A mãe estremecia e entendia-os quando voltavam às oito horas, afogueados, de olhos brilhantes e língua solta e vibrante.
Todos eles gostavam desta casa de Scargill Street pela sua largueza de horizontes, pela sua abertura sobre a concha de mundo que dominava. Nas noites de Verão, as mulheres vinham arrimar-se à cerca da encosta, a conversar, viradas para poente, vendo o sol apagar-se num lampejo e espraiando o olhar até aos montes do Derbyshire, recortados ao longe num céu de carmim, como a crista negra de uma salamandra.
Neste Verão, as minas não estavam a trabalhar em pleno, especialmente as de carvão mole. Mrs. Dakin, que morava ao lado de Mrs. Morel, costumava ficar a ver os homens subirem a encosta lentamente sempre que se assomava à cerca para sacudir o tapete. Viu logo que eram mineiros e ficou à espera lá em cima, alcandorada na colina, alta, magra, olhar astuto e penetrante, uma quase ameaça para os pobres mineiros que a custo trepavam a ladeira. Eram apenas onze horas. A neblina que, como fino crepe negro, cobre o horizonte das manhãs estivais não se tinha ainda dissipado sobre as colinas frondosas desenhadas à distância. O primeiro homem alcançou a cancela, que chiou à sua passagem.
– O quê, mandaram-no embora? – gritou Mrs. Dakin.
– Mandaram, sim senhora.
– É uma pena deixarem-nos vir embora – disse ela, sarcástica.
– Lá isso é – respondeu o homem.
– E não apetece nada voltar para casa agora – disse ela.
O homem seguiu o seu caminho. Quando Mrs. Dakin atravessava o quintal, de volta a casa, avistou Mrs. Morel, que ia despejar as cinzas da lareira.
– Acho que Minton fechou, Mrs. Morel – gritou ela.
– É uma vergonha! – exclamou Mrs. Morel indignada.
– Pois é... Vi mesmo agora o Jont Hutchly.
– Bem podiam ter poupado as solas dos sapatos – disse Mrs. Morel, e voltaram as duas para casa indignadas.
Os mineiros, de caras quase limpas, voltavam para casa. Morel detestava ter de se vir embora. Adorava as manhãs soalheiras, mas ir para a mina e mandarem-no embora logo a seguir estragava-lhe a boa disposição.
– Santo Deus... já? – exclamou a mulher, vendo-o entrar.
– Qu’hei-d’eu fazer, mulher! – berrou ele.
– E eu não tenho comida que chegue.
– Num faz mal, como o farnel que levei – vociferou ele, pateticamente. Sentia-se envergonhado e irritado.
Os filhos, quando chegaram da escola, estranharam ver o pai a comer as duas grossas fatias de pão com manteiga que tinha levado para a mina, já muito secas e sujas.
– Porque é que o meu pai tem de comer o farnel aqui em casa? – perguntou Arthur.
– Porqu’ela ficava toda zangada s’eu num o comesse – respondeu Morel.
– Lá estás tu com histórias! – exclamou a mulher.
– E achas qu’é pra deitar fora? – disse Morel. – Eu num sou esquisito como vocês, que desperdiçam tudo. Se me cai um bocado de pão na mina, no meio daquela porcaria toda, apanho-o e como-o.
– Os ratos comiam-no – disse Paul – e já não era um desperdício.
– Pão cum manteiga pròs ratos? Nem pensar nisso – disse Morel. – Sujo ou limpo, antes comê-lo eu que deitá-lo fora.
– Podias dá-lo aos ratos e comprares mais com o dinheiro que gastas na cerveja – disse Mrs. Morel.
– Ah, podia...? – exclamou o marido.
O Outono que se seguiu foi de míngua. William tinha acabado de partir para Londres e a mãe sentia a falta do dinheiro que ele lhe costumava entregar. Ainda lhe mandou dez xelins por uma ou duas vezes, mas no início tinha muitas compras a fazer. As suas cartas chegavam com regularidade, uma vez por semana. Escrevia longas cartas à mãe em que lhe contava o que fazia, os amigos que tinha, as lições que trocava com um francês, como gostava de viver em Londres. Para a mãe era como se ele estivesse com ela, como no tempo em que morava em casa. E ele todas as semanas lhe escrevia cartas francas e cheias de espírito. Era nele que ela pensava o dia inteiro, enquanto fazia a limpeza da casa. Ele estava em Londres, ia ter sorte. Era quase como se fosse o seu cavaleiro andante, ostentando as cores dela na batalha.
Vinha agora a casa passar cinco dias pelo Natal. Não havia memória de tantos preparativos. Paul e Arthur correram os campos à procura de azevinho e sempre-viva. Annie fez enfeites de papel recortado à moda antiga, e a despensa estava farta como nunca. Mrs. Morel fez um bolo de natal enorme, magnífico, e sentindo-se uma rainha, mostrou a Paul como se pelavam amêndoas. Ele pelou as oleaginosas com reverência, contando-as, uma a uma, não fosse alguma perder-se. Dizia-se que as claras subiam mais num lugar frio e, por isso, Paul foi para a copa, onde o frio era quase insuportável, batendo-as sem parar e correndo excitadíssimo a mostrar a mãe como as claras cresciam, cada vez mais firmes e nevadas.
– Olhe, mãe... estão óptimas, não estão?
Depois, pôs um bocadinho na ponta do nariz e soprou-o para o ar.
– Então, isso não é para estragar – disse a mãe.
Toda a gente andava excitadíssima. William ia chegar na véspera de Natal. Mrs. Morel passou revista à despensa. Havia um grande bolo de passas e um bolo de farinha de arroz; tartes de geleia e de limão, e duas grandes travessas cheias de empadas de carne. E ainda faltavam umas tartes de amêndoa e de queijo que ela preparava a toda a pressa. A casa estava toda enfeitada. A coroa de azevinho, salpicada de bagas bem vermelhas e pendurada entre grinaldas cintilantes, rodopiava por cima da cabeça de Mrs. Morel enquanto ela recortava a massa das tartes na cozinha. A fogueira, imensa, crepitava. A casa rescendia a bolos e massa folhada. William devia chegar às sete horas, mas o mais provável era atrasar-se. Os irmãos tinham ido ao seu encontro. A mãe ficara sozinha. Mas, por volta de um quarto para as sete, Morel voltou para casa. Marido e mulher nada disseram. Ele sentou-se no cadeirão, ansioso, sem saber o que fazer, e ela continuou com os seus cozinhados. A sua comoção só era traída pelo modo meticuloso como ia fazendo as coisas. E o relógio continuou a bater.
– A que horas disseste qu’ele chegava? – perguntou Morel, pela quinta vez.
– O comboio chega às seis e meia – respondeu ela, enfaticamente.
– Então vai chegar por volta das sete e dez.
– Deus te oiça, mas o comboio vai atrasar-se algumas horas no Midlands – disse ela, aparentando indiferença. Fazia-o, no entanto, com a esperança de acontecer o contrário e ele chegar mais cedo. Morel foi até à porta, para ver se o via. Depois voltou para dentro.
– Credo, homem! – disse ela. – Parece que tens bicho-carpinteiro.
– Em vez de estares pr’aí a falar, num era melhor arranjares-lhe alguma coisa para comer? – disse o marido.
– Tenho muito tempo para isso – respondeu ela.
– Num é o que me parece – contrapôs ele, virando-se amuado na cadeira. Ela começou a limpar a mesa da cozinha. A chaleira já apitava. E eles à espera.
Entretanto, os outros três filhos estavam em Lethley Bridge, uma estação da linha do Midlands, a duas milhas de casa. Esperaram uma hora. Chegou um comboio, e nada. Ao fundo da linha, as luzes verdes e vermelhas acendiam e apagavam. Estava muito escuro e fazia muito frio.
– Vai perguntar-lhe se o comboio de Londres já passou – disse Paul a Annie quando avistaram um homem de boné de pala.
– Não vou nada – disse Annie. – Fica mas é calado, senão ele inda nos manda embora.
Mas Paul estava morto por que o homem soubesse que eles esperavam alguém que vinha de Londres, o que lhes dava uma certa importância. Porém, tinha medo, muito medo, de abordar um desconhecido, e ainda por cima de boné de pala. As crianças nem se atreviam a entrar na sala de espera, com medo de que os mandassem embora, e que alguma coisa acontecesse enquanto não estavam na plataforma. E lá continuaram à espera, no frio e na escuridão.
– Já está hora e meia atrasado – disse Arthur, já a desesperar.
– Bem – disse Annie –, é véspera de Natal.
O silêncio crescia entre eles. O irmão não vinha. Perscrutaram a escuridão ao longo da linha férrea. Lá ao fundo, ficava Londres! Uma lonjura infinita, pensaram. Tudo podia acontecer quando se vinha de Londres. Estavam demasiado preocupados para falarem. Enregelados, tristes e mudos, continuavam encostados uns aos outros na plataforma.
Finalmente, passadas mais de duas horas, avistaram os faróis de uma locomotiva a descrever uma curva na distância. Um bagageiro aproximou-se a correr. As crianças chegaram-se para trás com os corações a galope. Um enorme comboio com destino a Manchester parou. Abriram-se duas portas e, de uma delas, saiu William. Os irmãos atiraram-se a ele. Ele, todo contente, entregou-lhes muitos embrulhos e logo explicou que aquele grande comboio só tinha parado numa estação insignificante como Lethley Bridge por causa dele, já que a paragem não estava programada.
Entretanto, os pais iam ficando cada vez mais preocupados. A mesa estava posta, a costeleta grelhada, tudo estava a postos. Mrs. Morel pôs o seu avental preto. Por baixo, tinha o seu melhor vestido. Depois sentou-se e fingiu concentrar-se na leitura. Os minutos arrastavam-se como uma tortura.
– Hum! – disse Morel. – Já passa hora e meia.
– E aquelas crianças à espera! – disse ela.
– O comboio inda num pode ter chegado – disse ele.
– É o que eu digo. Na véspera de Natal vêm com horas de atraso.
Estavam os dois implicativos de tanta ansiedade. O freixo gemia lá fora fustigado por um vento gélido, implacável. E tanta noite a separar Londres do lar! Mrs. Morel sofria. O tiquetaque do relógio irritava-a sobremaneira. Estava a fazer-se tarde. A espera estava a tornar-se insuportável.
Por fim, o ruído de vozes e de passos na entrada.
– Já chegou! – gritou Morel, saltando da cadeira.
Depois, deu um passo à retaguarda. A mãe correu em direcção à porta e ficou à espera. Seguiu-se um tropel de passos, a porta escancarou-se e William apareceu. Largou no chão o saco de viagem e abraçou-se à mãe.
– Mater! – disse ele.
– Meu filho! – gritou ela.
E, durante não mais de dois segundos, ela abraçou-o e beijou-o. Depois, afastou-se e disse, com a naturalidade possível:
– Mas que grande atraso!
– Foi, não foi? – exclamou ele, voltando-se para o pai.
– Então, pai!
E os dois homens trocaram um aperto de mão.
– Então, meu rapaz!
Os olhos de Morel estavam rasos de lágrimas.
– Távamos a ver que nunca mais chegavas – disse ele.
– Então não havia de chegar! – exclamou William, voltando-se para mãe.
– Estás com óptimo aspecto – disse Mrs. Morel, a rir, toda orgulhosa.
– Claro... – respondeu o filho. – Basta ter voltado para casa.
Era um jovem desempenado, alto, garboso e de olhar intrépido. Olhou em volta, para a sempre-viva e o azevinho, e para as empadas que estavam dentro das forminhas em cima do fogão.
– Graças a Deus que nada mudou, mãe – disse ele, satisfeito. Todos ficaram calados por um momento. De repente, ele deu um salto em frente, tirou uma empadinha do fogão e meteu-a na boca de uma só vez.
– Safa, já alguma vez viram um saco roto como este? – exclamou o pai.
William trazia um nunca mais acabar de presentes para todos. Gastara quanto tinha para os comprar. A casa foi invadida por uma certa atmosfera de luxo e prosperidade. Para a mãe, uma sombrinha com o cabo beige com enfeites dourados. Ela guardou-a para quando morresse, e antes queria perder tudo o que tinha a ficar sem ela. Todos receberam coisas bonitas e, além disso, ele trouxe também montes de guloseimas desconhecidas naquelas paragens: geleias de frutos, ananás cristalizado, coisas que as crianças pensavam que só o esplendor de Londres tornava possíveis. E Paul não se calava de gabar tais guloseimas diante dos amigos.
– Ananás autêntico, às fatias, e transformado em cristal... bem bom!
Todos estavam loucos de felicidade. Não há nada que chegue ao próprio lar, e eles amavam-no com paixão, apesar dos maus bocados lá passados. Chegavam visitas, todos vinham dar-lhe os parabéns. Os vizinhos vinham ver o que Londres tinha feito de William e todos achavam que ele estava «um verdadeiro cavalheiro, e um belo rapaz, isso é que estava!».
Quando ele se foi embora outra vez, os irmãos foram chorar às escondidas para sítios diferentes, Morel foi meter-se na cama abatidíssimo e Mrs. Morel sentia-se como se estivesse drogada, como se os seus sentimentos tivessem paralisado. Amava o filho com verdadeira paixão.
William trabalhava no escritório de um advogado ligado a uma grande companhia de navegação e, em Junho, o chefe proporcionou-lhe uma viagem ao Mediterrâneo num dos barcos da companhia, por um preço irrisório. Mrs. Morel mandou-lhe dizer: «Vai, sim, meu filho. Podes não voltar a ter uma oportunidade como essa, e, para mim, ver-te a navegar no Mediterrâneo é talvez ainda melhor do que ter-te aqui em casa.» Mas William veio passar as duas semanas de férias a casa. Nem o Mediterrâneo, apelando embora a toda a sua ânsia de viajar e ao seu deslumbramento de homem pobre diante da opulência do Sul, podiam mantê-lo longe de casa. E isso era para a mãe compensação bastante para todos os sacrifícios.
V
PAUL ENFRENTA A VIDA
MOREL era um homem negligente, indiferente ao perigo, sofrendo por isso inúmeros acidentes. De tal forma que, quando Mrs. Morel ouvia chiar as rodas de uma carroça de transporte de carvão, estacando à sua porta, corria logo para a janela da sala à espera de ver o marido lá sentado, com o rosto macilento por baixo da camada de fuligem, e o corpo inerte, vítima de qualquer contusão ou outro percalço. Se era ele, saía de casa a correr para o ajudar.
Cerca de um ano após William ter ido para Londres, e logo depois de Paul ter saído da escola, mas quando ainda não tinha arranjado trabalho, estava Mrs. Morel no andar de cima e o filho na cozinha, entretido a pintar – fazia maravilhas com os pincéis – quando bateram à porta. Enfadado, Paul pousou o pincel para ir abrir. Simultaneamente, a mãe abriu a janela e espreitou para a rua.
Era um mineiro, um rapazito, que batia à porta.
– É aqui que mora o Walter Morel? – perguntou.
– É, sim! – respondeu Mrs. Morel. – Aconteceu alguma coisa?
Mas ela já tinha adivinhado.
– O seu marido aleijou-se – disse o rapaz.
– Oh, meu Deus! – exclamou ela. – Quando não acontece nada é que é para admirar. O que foi desta vez?
– Num sei bem, mas foi na perna... Levaram-no prò hospital.
– Valha-me Deus! – exclamou ela. – Ah, este homem... este homem...! Não me dá cinco minutos de descanso, eu morra aqui se não é verdade! O polegar já estava quase bom e agora... Tu viste-o?
– Vi-o lá ’baixo. E vi-os trazerem-no pra cima num elevador... tava branco cum’á cal. E o qu’ele berrou quando o Dr. Fraser o examinou na casa das lanternas... sempre aos berros e a praguejar... e a dizer que queria qu’o trouxessem pra casa... que num ia prò hospital...! E o rapaz calou-se.
– Isso é bem dele... quer vir para casa, para me dar trabalho... Obrigada, meu filho... Que cansada que eu estou de tudo isto... cansada e farta... isso é que eu estou!
Desceu as escadas. Paul tinha recomeçado a pintar, mecanicamente.
– Deve ser grave... para o levarem para o hospital... – continuou ela. – Mas que criatura mais descuidada! Os outros homens não podem ter assim tantos acidentes... É isso, ele queria deitar o trabalho todo para cima das minhas costas... E logo agora, que as coisas estavam finalmente a correr um bocadinho melhor... Vá, deixa isso, agora não há tempo para pinturas... A que horas tenho comboio? Agora vou ter de ir até Kreston... o quarto tem de esperar.
– Eu acabo de o arrumar – disse Paul.
– Não precisas... às sete horas estou de volta, acho eu... E o barulho que ele vai fazer... nem quero pensar... E aqueles calhaus de granito de Tinder Hill... ele bem pode chamar-lhes pedrinhas... os solavancos vão dar cabo dele. Não sei porque não consertam a estrada... naquele estado... e com tanta gente a passar por lá na ambulância... Devia haver aqui um hospital... Já compraram o terreno... e não iam faltar acidentes para o manter a funcionar. Mas não, têm de os levar não sei quantas milhas naquela ambulância ronceira até Nottingham. É uma vergonha! E o estardalhaço que ele vai fazer, já sei como é! Quem terá ido com ele?... O Barker, provavelmente. Coitado, vai desejar estar em qualquer lado menos ali. Mas vai cuidar bem dele, eu sei. E agora sei lá quanto tempo ele vai ficar naquele hospital... e ele que detesta! Enfim, se for só a perna, já não é mau.
Ia falando enquanto se preparava para sair. Despindo o corpete à pressa, baixou-se para a caldeira, enquanto a água corria lentamente para o jarro.
– Era bem melhor se esta caldeira não existisse! – exclamou ela, apertando a asa do jarro com impaciência. Tinha uns braços fortes e bem torneados, surpreendentes numa mulher da sua estatura.
Paul arrumou as suas tralhas, pôs a chaleira ao lume e pôs a mesa.
– Só há um comboio às quatro e vinte – disse ele. – Tem tempo de sobra.
– Não tenho, não! – gritou ela, piscando os olhos e fitando-o por cima da toalha, enquanto limpava a cara.
– Tem, sim... Tem pelo menos de beber uma chávena de chá. Quer que vá consigo até Keston?
– Vires comigo para quê, pode saber-se?... Ora deixa cá ver o que é que eu tenho de lhe levar... Valha-me Deus!... A camisa lavada... e é uma sorte estar lavada... mas ficava melhor se a tivesse posto ao ar... as meias... isso ele não vai querer... e uma toalha, acho eu... e lenços... e que mais?
– Um pente, uma faca, um garfo e uma colher – disse Paul. Já não era a primeira vez que o pai ficava internado no hospital.
– Sabe Deus em que estado ele tinha os pés – continuou Mrs. Morel, penteando o cabelo castanho e muito comprido, fino como seda e já salpicado de fios prateados. – Ele nunca se esquece de se lavar da cintura para cima, mas para baixo acha que já não é preciso. Mas devem apanhar lá muitos como ele.
Paul tinha posto a mesa e preparou duas fatias finas de pão com manteiga para a mãe.
– Aqui tem – disse, pondo uma chávena de chá em frente ao lugar dela.
– Agora não tenho tempo – disse ela, secamente.
– Mas tem de ter... Olhe, já está tudo pronto – insistiu o filho.
Ela acabou por se sentar, bebeu uns golinhos de chá e comeu um pouco de pão em silêncio. Estava a pensar.
Daí a nada, tinha de se ir embora, para percorrer a pé as duas milhas e meia até à estação de Keston. Já tinha metido no saco de rede tudo o que ele precisava. Paul ficou a vê-la subir a estrada, entre as sebes de arbustos, pequenina e franzina, e o seu coração sofria por ela, por vê-la sujeita a mais esta provação. E ela, correndo ligeira de tanta ansiedade, sentia atrás de si o coração do filho a acompanhá-la, a tomar para si a parte possível deste fardo, a dar-lhe forças. E, quando chegou ao hospital, pensou: «Ele vai ficar preocupadíssimo quando eu lhe disser que é assim tão grave... o melhor é ter cuidado.» E, de regresso a casa, sentia que tinha com quem partilhar o fardo.
– É grave? – perguntou Paul, mal a viu entrar.
– Mais ou menos – respondeu ela.
– O quê?
Ela suspirou, sentou-se e desapertou as fitas do chapéu. O filho viu-a levantar o queixo e desatar a laçada com os dedos pequeninos, mas endurecidos pelo trabalho.
– Bem – respondeu ela – não se pode dizer que seja perigoso... mas a enfermeira diz que foi uma pancada horrível. Estás a ver... foi um grande bocado de rocha que lhe caiu em cima da perna... aqui, salvo seja... uma fractura múltipla... e tem bocados de osso a sair para fora...
– Ui, que horror! – exclamaram os filhos.
– E claro que ele diz que vai morrer – continuou Mrs. Morel. – É mesmo dele dizer isso... «Estou arrumado, cachopa!», disse ele, olhando para mim. «Não digas disparates», disse eu. «Não vais morrer de uma perna partida, por pior que esteja»... «Só saio daqui num caixão», queixava-se ele. «Bem!», disse eu, «Se queres que eles te levem a passear ao jardim dentro dum caixão, quando estiveres melhor, é só pedires e eles fazem-te a vontade»... «Se acharmos que lhe vai fazer bem», acrescentou a Irmã. Ela é bem simpática, a Irmã, mas muito rigorosa.
Mrs. Morel tirou o chapéu. Os filhos mantiveram-se em silêncio, expectantes.
– Claro que ele está mal – prosseguiu ela. – E vai levar muito tempo a recompor-se. Foi um acidente muito grave e ele perdeu muito sangue... e, já se vê, a lesão é muito perigosa. Ninguém sabe o tempo que vai levar a sarar. E depois há a febre e a gangrena... se correr mal, ele até pode morrer... Mas lá no hospital... e depois ele tem bom sangue... e boa carnadura... Por isso não vejo razão para que tenha de correr mal... Claro que a ferida é muito grande...
Ela estava lívida, da angústia e da emoção. Os três filhos perceberam que o estado do pai era muito grave e a casa ficou silenciosa, perpassada de ansiedade.
– Mas ele melhora sempre – disse Paul, passado um bocado.
– Foi exactamente o que eu lhe disse – exclamou a mãe.
Todos se moviam de um lado para o outro sem fazerem o menor ruído.
– Ele de facto parecia que estava a morrer – disse Mrs. Morel. – Mas a Irmã diz que é das dores.
Annie foi arrumar o casaco e o chapéu da mãe.
– Ficou a olhar para mim quando eu me vim embora...! Eu disse: «Agora tenho de ir, Walter, por causa do comboio... e das crianças...» E ele ficou a olhar para mim... Custou-me tanto...
Paul pegou outra vez no pincel e continuou a pintar. Arthur foi lá fora buscar mais carvão. Annie ficou sentada, muito triste. E Mrs. Morel continuou imóvel, pensativa, na cadeira de baloiço que o marido lhe fizera, quando esperavam o primeiro filho. Estava triste e com muita pena de ver um homem sofrer tanto. Mas, mesmo assim, no fundo do coração, onde a chama do amor devia arder, tinha um vazio. No momento em que toda a sua compaixão de mulher estava exacerbada ao máximo, em que cuidaria dele dia e noite até cair para o lado, em que, se pudesse, de bom grado tomaria as suas dores, algures, num recôndito da alma, era indiferença que encontrava, por ele e pelo seu sofrimento. A dor que sentia vinha sobretudo desta incapacidade de o amar, mesmo quando ele despertava nela as mais fortes emoções. E assim se deixou ficar, pensativa, por um tempo.
– E nisto – disse ela de repente –, quando já ia a meio do caminho, vi que tinha saído com as botas de andar por casa... olhem para isto... – Era um par de botas velhas de Paul, castanhas e com as biqueiras muito gastas. – Nem sabia onde me havia de meter com a vergonha – acrescentou.
Na manhã seguinte, quando Annie e Arthur estavam na escola, Mrs. Morel conversou mais com Paul enquanto ele andava a ajudá-la a arrumar a casa.
– Encontrei o Barker no hospital. Não parecia muito atrapalhado, coitado. «Então», disse eu, «como correu a viagem?» «Num me pregunte, ’nha senhora!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «Eu sei como ele é.» «Mas foi muito custoso pra ele, Mrs. Morel, iss’é que foi!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «A cada safanão, eu inté pensava qu’o coração m’ia saltar pela boca», disse ele. «E os gritos qu’ele dav’às vezes, ’nha senhora... nem que me paguem uma fortuna, me quero ver noutra igual.» «Entendo perfeitamente», disse eu. «A coisa tá feia a valer», disse ele, «e vai levar muito tempo pra ficar bom.» «Também acho que sim», disse eu. Eu gosto de Mr. Barker... gosto mesmo. É um homem e tanto.
Paul continuava a pintar em silêncio.
– E já se sabe – continuou Mrs. Morel –, para um homem como o teu pai é muito duro estar no hospital. Para ele não há normas nem obrigações. E não deixa que ninguém lhe toque, a não ser que não tenha outro remédio. Quando esmagou os músculos da coxa, e tinha de mudar o penso quatro vezes por dia, ele deixava mais alguém mudar-lho a não ser eu ou a mãe dele?... Nem pensar nisso. Claro que agora vai sofrer no hospital, com todas aquelas enfermeiras... Não me agradou nada ter de o deixar lá ficar. Foi um dó de alma quando tive de lhe dar um beijo e vir-me embora...
Mrs. Morel falava com o filho quase como se estivesse a pensar em voz alta para ele ouvir, e ele colaborava o melhor que podia, partilhando com ela o sofrimento, para a aliviar. Afinal, mesmo sem saber, ela partilhava quase tudo com ele.
Morel passou muito mal. Durante uma semana o seu estado foi crítico. Depois, começou a melhorar e, quando souberam que o mau tempo tinha passado, toda a família respirou de alívio e a vida seguiu feliz.
Não passaram grandes dificuldades enquanto Morel esteve internado. Recebiam catorze xelins por semana da mina, dez da assistência aos enfermos, e cinco do Fundo de Invalidez. Além disso, os capatazes traziam todas as semanas qualquer coisa a Mrs. Morel, cinco ou sete xelins, pelo que ela vivia com bastante desafogo. E enquanto Morel ia melhorando no hospital, em casa a família vivia em paz e alegria. Aos sábados e quartas-feiras, Mrs. Morel ia visitar o marido a Nottingham. No regresso trazia sempre qualquer lembrança para os filhos: um tubo de guache para Paul, outras vezes papel cavalinho; postais para Annie, de que toda a família usufruía durante dois ou três dias antes de a deixarem enviá-los a alguém; ou então uma serra para Arthur, ou um belo bocado de madeira. E depois contava animadamente as suas aventuras nos grandes armazéns. Não tardou que os empregados da loja de gravuras a ficassem a conhecer e soubessem tudo sobre Paul. A rapariga da livraria simpatizava até muito com ela. Mrs. Morel tinha histórias sem fim para contar quando voltava de Nottingham. Ficavam os três sentados até à hora de irem para a cama a ouvirem-na contar histórias, a meterem a sua colherada, a conversarem. Depois, era geralmente Paul quem abafava o borralho.
– Agora, sou o homem da casa – dizia ele à mãe, todo ufano. Descobriram como o lar podia ser um lugar de perfeita tranquilidade e, embora nenhum deles ousasse admitir tal desumanidade, quase lamentaram quando souberam que o pai não tardaria a voltar para casa.
Paul tinha agora catorze anos e andava à procura de um emprego. Era um rapaz baixo e franzino, de cabelo castanho-escuro e olhos azul-claros. O seu rosto já tinha perdido os traços arredondados da infância e parecia-se agora com o de William, mais duro, quase austero, e com extraordinária mobilidade. Em geral, parecia estar sempre atento, cheio de vida e de ternura; umas vezes, o seu sorriso, igualzinho ao da mãe, abria-se pronto e encantador; outras, quando algum obstáculo lhe travava o passo ao espírito, a expressão do seu rosto adquiria fealdade e estupidez. Era um daqueles rapazes que se portam como palhaços desajeitados quando não são compreendidos ou sentem que não lhes dão o justo valor, mas que, com igual rapidez se transformam em criaturas adoráveis à primeira prova de ternura.
O primeiro contacto com as coisas era sempre penoso para ele. Aos sete anos tivera de se sujeitar à tortura de entrar para a escola. Mas depois até gostava. E agora, sentindo que era chegada a hora de enfrentar a vida, atravessava crises de avassaladora timidez. Pintava com bastante talento e inteligência para a sua idade, e sabia um pouco de francês, alemão e matemática, coisas que Mr. Heaton lhe havia ensinado. Como a mãe dizia, não era suficientemente forte para o trabalho manual, e também não se interessava por fazer coisas com as suas próprias mãos, preferindo correr, passear pelos campos, ler ou pintar.
– Que queres ser na vida? – perguntava-lhe a mãe.
Não fazia a menor ideia. Teria gostado de continuar a pintar, mas isso nem lhe passou pela cabeça, pois era impossível. Não havia nada que lhe interessasse muito fazer. Mas agora era urgente que começasse a ganhar dinheiro. E, uma vez que não achava que o seu trabalho valesse muito em termos monetários, e sabia que um homem ganhava em qualquer emprego trinta ou trinta e cinco xelins por semana, respondia invariavelmente:
– Qualquer coisa.
– Isso não é resposta – dizia Mrs. Morel.
Mas era a única resposta verdadeira que ele podia dar. As suas ambições, em termos materiais, eram ganhar tranquilamente os seus trinta ou trinta e cinco xelins por semana algures perto de casa, e depois, quando o pai morresse, ter uma casinha no campo, onde viveria com a mãe feliz para sempre, a pintar e a passear o quanto lhe apetecesse. Por agora, era este o seu programa. Tinha-se porém em grande conta, julgando as outras pessoas em relação a si próprio e classificando-as impiedosamente. Às vezes, pensava que talvez pudesse vir a ser um pintor a sério, mas por enquanto não queria alimentar tal sonho.
– Então tens de procurar nos anúncios do jornal – disse a mãe.
Paul ficou a olhar para ela. Parecia-lhe nova humilhação e mais uma tortura a suportar. Mas não disse nada. Desde manhãzinha só tinha um pensamento a martelar-lhe na cabeça: «Tenho de ir ver os anúncios de empregos.»
Este pensamento ensombrava-lhe a manhã e matava-lhe a alegria de viver. Sentia o coração apertar-se-lhe num nó.
Por fim, às dez horas, lá foi ele. As pessoas consideravam-no um rapaz envergonhado, reservado. Ao subir a rua ensolarada, tinha a sensação de que todos os que encontrava iam pensar: «Lá vai ele para a sala de leitura da Cooperativa, para procurar um emprego no jornal. Não consegue arranjar nada. Acho que está a viver à custa da mãe.» Lá chegado, subiu furtivamente a escadaria de pedra por detrás da loja de tecidos e espreitou para a sala de leitura. Geralmente havia por lá uma ou duas pessoas: velhos desocupados, já sem préstimo, ou mineiros «de baixa». Entrou muito retraído, e ficou deveras aflito quando eles levantaram a cabeça; sentou-se à mesa e fingiu estar a passar os olhos pelas notícias. Sabia no que eles estavam a pensar: «O que fará um miúdo de treze anos numa sala de leitura, agarrado a um jornal?» E isso magoava-o.
Depois, pôs-se a olhar lá para fora, pensativo. E sentia-se já presa do industrialismo. Por cima do velho muro fronteiriço de tijolo vermelho grandes girassóis miravam divertidos as mulheres que passavam apressadas, levando qualquer coisa para o almoço. O vale estava coberto de searas radiantes batidas pelo sol. Lá no meio, duas minas agitavam os seus finos penachos de vapor. Nas encostas distantes avistavam-se as florestas de Aldersley, tão cerradas e fascinantes. E logo o coração lhe esmoreceu. Sentia-se aprisionado. Chegara ao fim a vida em liberdade naquele vale que tanto amava.
A carroça da cerveja vinha de Keston estrada acima, carregada de barris – quatro de cada lado – apertados que nem feijões numa vagem. O carroceiro, encarrapitado no seu trono e oscilando pesadamente no assento, não passou a grande distância dos olhos de Paul. O cabelo do homem, de cabeça pequena e fusiforme, estava quase todo branco, descorado pelo sol, e nos braços grossos e avermelhados, balouçando lassamente sobre o avental de estopa, cintilavam pêlos também brancos. A face afogueada reluzia, quase adormecida de tanto sol. Os cavalos, castanhos e elegantes, seguiam a seu bel-prazer, mostrando serem eles os senhores da situação.
Paul queria ser estúpido. «Quem me dera», pensou de si para si, «ser gordo como ele e passar a vida estirado ao sol como um cão. Quem me dera ser um porco e condutor duma carroça de cerveja.»
Depois, vendo a sala finalmente vazia, copiou rapidamente um anúncio para um bocado de papel, e depois outro, e saiu à socapa, sentindo-se imensamente aliviado. A mãe examinou os anúncios.
– Sim – disse ela. – Podes tentar.
William tinha mandado uma carta admiravelmente redigida em linguagem comercial e Paul copiou-a com algumas alterações. A caligrafia do rapaz era execrável, pelo que William, que fazia tudo bem feito, fervia de impaciência.
O irmão mais velho estava a ficar muito pretensioso, ao descobrir que em Londres se podia dar com homens de uma classe muito superior à dos seus amigos de Bestwood. Alguns dos seus colegas do escritório tinham estudado leis e estavam a fazer uma espécie de estágio. William, dado o seu feitio extrovertido, fazia sempre amigos por onde passava e não tardou que começasse a frequentar a casa de pessoas que, em Bestwood, teriam olhado com desdém para o inacessível gerente do banco local e tratado com indiferença o próprio pastor. Começou, por isso, a achar-se um homem importante e até se admirava da facilidade com que se tinha tornado um cavalheiro.
As cartas que escrevia à mãe ilustravam bem a satisfação que sentia.
«The Myrmidons
Limpsfield
Mater querida,
É uma da manhã. Imagine o seu filho a escrever-lhe sentado numa velha cadeira de carvalho, com um candeeiro eléctrico dos mais modernos à frente dele, em cima da mesa. Vestido a rigor, com os botões de punho que lhe ofereceu quando fez 21 anos e achando-se o melhor do mundo. Só queria que a mãe o pudesse ver. Em comparação, Salomão, em toda a sua glória, deve ter-se sentido mal vestido.
Estou a passar o fim-de-semana com o Loosemore, e aproveitei a oportunidade para lhe escrever. ...»
A mãe ficou contente de o ver tão satisfeito. O seu quarto em Walthamstow era tão deprimente. Mas agora as cartas do filho deixavam transparecer uma súbita febre de viver. Afectado por tantas e tão súbitas mudanças, não tinha os pés assentes na terra, e parecia deixar-se arrastar vertiginosamente pelo turbilhão da sua nova vida. A mãe temia por ele. Sentia que ele se estava a perder. Tinha ido a um baile, ido ao teatro, andado de barco no rio, saído com os amigos; mas ela sabia que, depois, tinha ficado até altas horas acordado no quarto gélido a estudar latim, pois queria subir no escritório e estudar leis o mais depressa possível. Agora, nunca mandava dinheiro à mãe. A sua nova vida levava-lhe o pouco que ganhava. Ela também não queria que ele lho mandasse, excepto às vezes, quando as dificuldades eram maiores e dez xelins teriam sido o suficiente para a tirar de apuros. Mas continuava a sonhar com o que o filho faria com ela a apoiá-lo. Nem por um segundo seria capaz de admitir toda a angústia que passava por causa dele.
Entretanto, William começara a falar muito numa rapariga que tinha conhecido num baile, uma morena muito bonita e muito nova, uma verdadeira senhora, por quem todos os homens andavam perdidos de amor.
«Duvido que te perdesses por ela, meu filho, se não visses todos os outros perdidos também. As multidões fazem-nos sentir seguros e vaidosos. Mas tem cuidado, e pensa como te sentirás quando te vires sozinho e triunfante...»
William ficou ofendido com os reparos da mãe e não desistiu dos seus intentos. Tinha levado a rapariga a dar um passeio no rio: «Se a mãe a visse, ia entender o que eu sinto. Alta, elegante, com uma pele transparente, a mais transparente de todas as peles de azeitona, cabelo negro de azeviche e uns olhos esverdeados tão brilhantes e trocistas como luzes reflectidas à noite sobre as águas. Admito que seja um pouco mordaz enquanto não a conhecer. E, além disso, veste-se como as mulheres mais elegantes de Londres. Devo dizer-lhe que, quando ela passeia em Piccadilly com o seu filho, ele, por mais que se esforce, não aparenta nem metade do orgulho que sente.»
Mrs. Morel lia e perguntava-se no seu íntimo, se o filho não andaria a passear em Piccadilly com uma mulher apenas elegante e bem vestida, em vez de uma mulher de quem se sentisse próximo. Mas felicitou-o, no seu modo reticente. E enquanto estava encostada ao tanque, a mãe, preocupada, pensava no filho. Via-o casado com uma mulher cara e elegante e um pequeno ordenado, levando a vida conforme podia, numa casa feia e acanhada dos subúrbios. «E daí...», pensava ela, «é por certo tolice minha... vontade de arranjar complicações.» No entanto, o seu coração raramente sossegava, não fosse William fazer alguma asneira.
Entretanto, Paul foi chamado para se apresentar numa firma de acessórios ortopédicos, a Thomas Jordan, em Nottingham, Spaniel Row, número 21. Mrs. Morel estava radiante.
– Estás a ver! – exclamou, de olhos brilhantes. – Só escreveste quatro cartas e recebes resposta logo à terceira. Tens sorte, meu filho, como eu sempre disse.
Paul olhou para a perna de pau adornada com meias elásticas e outros acessórios que constituía o logotipo do papel timbrado de Mr. Jordan, e ficou alarmado. Até aí nem sabia que existiam meias elásticas. Parecia-lhe sentir o mundo dos negócios com o seu sistema de regras e valores e a sua impessoalidade, e isso atemorizava-o. Parecia-lhe também monstruoso que se pudesse fazer negócio com pernas de pau.
Numa bela terça-feira, manhã cedo, mãe e filho saíram juntos de casa. Era Agosto e o calor abrasava. Paul caminhava com o coração aperreado. Mil vezes a dor física, por maior que fosse, a este sofrimento irracional de se ver exposto perante estranhos, sujeito a ser aceite ou rejeitado. No entanto, conversava animadamente com a mãe. Jamais lhe confessaria o sofrimento que estas situações lhe causavam e de que ela só em parte suspeitava. Ia alegre como um passarinho. Postou-se diante da bilheteira, em Bestwood, e ficou a ver a mãe tirar o dinheiro para os bilhetes. Ao reparar nas luvas pretas que trazia, quase de criança e já muito velhas, com que retirou algumas moedas da carteira também coçada, o seu coração contraiu-se de dor e amor por ela. Ela estava muito excitada e bem-disposta, e ele sofria antecipadamente, pois sabia que ela se iria pôr a falar em voz alta diante dos outros passageiros.
– Olha para aquela vaca. Parece tola! A andar às voltas como se estivesse no circo.
– Deve ser algum moscardo – disse Paul, quase a bichanar.
– Algum quê? – perguntou ela, desabrida, sem complexos.
Depois, ficaram calados, pensativos. Paul não conseguia deixar de sentir a presença dela à sua frente. Nisto, os olhos de ambos encontraram-se e ela sorriu-lhe – um sorriso único, íntimo, belo e cintilante, cheio de amor. Em seguida, puseram-se a olhar pela vidraça. Mas ela voltou-se para ele de repente e disse, de forma bem audível:
– Sinceramente, acho que vais conseguir. E, se não conseguires, enfim, não te podes queixar só por não teres conseguido o terceiro emprego a que concorreste, pois não? Mas eu acho que consegues. És um rapaz de sorte, embora não a mereças – Assim falava ela, para todos ouvirem!
O comboio transpôs com lentidão as dezasseis milhas que os separavam do destino, e a viagem terminou. Mãe e filho meteram por Station Street com o entusiasmo de amantes a viver uma aventura. Em Carrington Street, pararam para contemplarem do parapeito as barcaças que passavam no canal.
– Parece mesmo Veneza – disse ele, vendo o sol reflectido na água entre os muros altos das fábricas.
– Talvez – respondeu ela, sorrindo. Ficaram deslumbrados com as lojas.
– Estás a ver aquela blusa? – disse ela. – Ficava mesmo bem à nossa Annie. E só custa uma libra, onze xelins e três dinheiros. Não é barato?
– E é toda bordada – disse o filho.
– É verdade.
Tinham ainda muito tempo, e por isso não precisavam de se apressar. Aos seus olhos, a cidade era estranha e fascinante. Mas o rapaz, apreensivo, era como se tivesse um nó no estômago. Apavorava-o a entrevista com Thomas Jordan.
Eram quase onze horas pelo relógio da igreja de São Pedro. Viraram para uma rua estreita que ia dar ao castelo. Era uma rua sombria, de casas velhas, com lojas baixas e soturnas e as portas dos prédios pintadas de verde-escuro, com grandes argolas de latão e degraus amarelo-ocre avançando sobre o passeio; ao lado, uma outra loja, de outros tempos, cuja montra diminuta parecia um olho astuto e semicerrado. Mãe e filho caminhavam devagar, olhando para as portas, à procura do letreiro Thomas Jordan & Filho. Era como caçar em plena coutada. A excitação atingia o auge.
De súbito, avistaram uma entrada ampla e escura, com os nomes de várias firmas afixados na parede e, entre eles, o da Thomas Jordan.
– É aqui – disse Mrs. Morel. – Mas... onde é que será?
Olharam em volta. De um lado, uma fábrica de papel, lúgubre e bizarra; do outro, o Commercial Hotel.
– É ali ao fundo – informou Paul.
Aventuraram-se pela arcada, como se penetrassem na bocarra de um dragão, indo desembocar num pátio amplo, semelhante a um poço, completamente rodeado de edifícios. O chão estava pejado de palha, caixas e cartões. O sol batia em cheio num caixote de onde saíam palhas que se espalhavam pelo chão como fios de ouro. Mas, fora isso, o lugar era escuro como uma mina. Havia várias portas e dois lanços de escadas. Mesmo em frente, numa porta suja e envidraçada, ao cimo da escada, ressaltavam as palavras fatídicas Thomas Jordan & Filho – Acessórios Ortopédicos. Mrs. Morel foi à frente, seguida pelo filho. Ao subir ao patíbulo, Carlos I tê-lo-á feito certamente com o coração mais leve do que Paul Morel ao subir atrás da mãe os degraus imundos que conduziam à tal porta também imunda.
Mrs. Morel empurrou a porta e ficou agradavelmente surpreendida. Diante dela estendia-se um imenso armazém com embalagens de papel pardo espalhadas por todo o lado, e os empregados, de mangas arregaçadas, movimentavam-se de um lado para o outro com um ar perfeitamente descontraído. A luz não feria a vista, as embalagens em papel brilhante tornavam-se luminosas, os balcões eram de madeira escura. A atmosfera era silenciosa e acolhedora. Mrs. Morel deu dois passos em frente e aguardou. Paul colocou-se atrás da mãe. Ela trazia o seu chapéu de domingo, com o véu preto descido sobre a cara, e ele a gola branca larga, que todos os rapazes usavam, e um fato de corte à caçador.
Um dos empregados olhou para eles. Era alto e magro, de rosto miúdo e olhar vivo e atento. Depois, os seus olhos percorreram a sala até à outra extremidade, onde se via um gabinete envidraçado; só então se aproximou. Não disse uma palavra, inclinou-se apenas perante Mrs. Morel, numa atitude prestável e interrogativa.
– Poderei falar com Mr. Jordan? – pediu ela.
– Vou já chamá-lo – respondeu o jovem.
Dirigiu-se ao gabinete envidraçado. Um homem idoso, de suíças brancas e faces coradas levantou os olhos da secretária. Paul achou-o parecido com um lulu da Pomerânia. Depois, o homenzinho atravessou o armazém para vir ao encontro deles. Tinha pernas curtas, era atarracado e envergava um casaco de alpaca. E lá vinha ele, de orelha arrebitada, por assim dizer, com ar resoluto e olho inquiridor.
– Bom dia! – disse, hesitante, dirigindo-se a Mrs. Morel, sem saber se se tratava ou não de uma cliente.
– Bom dia... Vim com o meu filho... Paul Morel... O senhor pediu-lhe que se apresentasse esta manhã.
– Acompanhem-me – disse Mr. Jordan, com uma frieza e desenvoltura que ele acreditava serem apropriadamente empresariais.
Mãe e filho acompanharam o industrial e entraram numa salinha desarrumada, com cadeirões de couro negro e já muito lustroso de tanto ser usado pelos clientes. Em cima da mesa estava uma pilha de fundas para hérnias – umas bandas de couro amarelo, pré-lavado, atadas em molho. Pareciam novinhas em folha. Paul sentiu o cheiro a couro lavado e perguntou-se o que seriam aquelas coisas. Estava tão atordoado que só reparava no aspecto exterior do que o rodeava.
– Sente-se! – disse Mr. Jordan, ríspido, convidando Mrs. Morel a sentar-se numa cadeira de crina. Ela sentou-se à beirinha, numa posição instável. O homenzinho vasculhou então em cima da secretária e pegou numa folha de papel.
– Foste tu que escreveste esta carta? – desferiu ele, intempestivo, colocando diante dos olhos de Paul um papel que ele logo reconheceu como sendo a carta que mandara.
– Fui, sim – respondeu Paul.
De momento, o rapaz era dominado por dois sentimentos: em primeiro lugar, sentia-se culpado por estar a mentir, uma vez que a carta tinha sido escrita por William; e, em segundo, estranhava como a sua carta podia parecer tão diferente na mão avermelhada e sapuda daquele homem de quando estava em cima da mesa da cozinha. Era como se uma parte dele mesmo se tivesse transviado, e desagradava-lhe a maneira como o homem pegava na carta.
– Onde aprendeste a escrever? – disse o velho, com brusquidão.
Paul limitou-se a olhar para ele envergonhado, sem responder.
– Ele escreve muito mal – interrompeu Mrs. Morel, apologética, levantando o véu em seguida. Paul ficou furioso por a mãe não mostrar mais orgulho perante este homem tão comesinho, mas, ao mesmo tempo, adorou ver o seu rosto sem véu.
– E dizes que também sabes francês? – inquiriu o homenzinho, ríspido, como sempre.
– Sim – respondeu Paul.
– Em que escola andaste?
– Na primária.
– E foi lá que aprendeste?
– Não... eu... – o rapaz ruborizou, e não adiantou mais nada.
– Foi o padrinho que lhe deu umas lições – disse Mrs. Morel, quase numa súplica, e com ar distante.
Mr. Jordan hesitou. E, então, mantendo o seu ar agressivo – parecia ter as mãos sempre prontas a agir – tirou do bolso uma outra folha de papel, desdobrou-a ruidosamente e entregou-a a Paul.
– Ora lê lá isto – disse.
Era uma carta em francês, escrita à mão, numa caligrafia estrangeira, esguia e incerta, que o rapaz não conseguia decifrar. Paul ficou parado a olhar para o papel, como se hipnotizado.
– «Monsieur» – começou ele, olhando em seguida muito aflito para Mr. Jordan.
– É a... é a...
Queria dizer «letra», mas já nem esta palavra conseguia pronunciar. Sentindo-se um perfeito idiota, e furioso com Mr. Jordan, voltou-se em desespero para o papel.
– «Exmo. Senhor... Queira fazer o favor de me enviar»... hum... hum... não consigo perceber a... hum... «dois pares... gris fil bas... de meias cinzentas de algodão... hum... hum... sans... sem...» hum... não consigo perceber a... hum... «doigts... dedos»... hum... não consigo perceber a...
Queria dizer «letra», mas a palavra teimava em não sair. Vendo-o atrapalhado, Mr. Jordan tirou-lhe o papel da mão e leu:
– «Queira fazer o favor de me enviar na volta do correio dois pares de meias cinzentas de algodão, sem os dedos dos pés...»
– Bem – atalhou Paul prontamente – doigts quer dizer apenas dedos... duma maneira geral...
O homenzinho olhou para ele. Tanto se lhe dava que doigts quisesse ou não dizer simplesmente dedos, o que ele sabia era que, para os fins em vista, queria dizer dedos dos pés.
– Só dedos, podia ser das mãos; com que então, dedos das mãos numas meias?! – ripostou Mr. Jordan.
– Bem, a palavra francesa quer mesmo dizer só dedos – teimava o rapaz.
Paul detestava aquele homenzinho que tentava fazer dele parvo. E Mr. Jordan olhava para aquele rapaz pálido, estúpido e atrevido à sua frente, sentado, muito calado, com aquele ar reservado dos pobres que têm de depender dos favores de outras pessoas.
– Quando é que ele pode começar a trabalhar? – perguntou o industrial.
– Bem... – disse Mrs. Morel –, quando o senhor desejar. Ele já deixou a escola.
– E vai continuar a viver em Bestwood?
– Sim... mas pode estar... chegar à estação... a um quarto para as oito...
– Hum!
Paul acabou por ser contratado como aspirante, a ganhar oito xelins por semana. O rapaz não abriu mais a boca depois de teimar que doigts era mesmo dedos (das mãos). Saiu atrás da mãe e desceu as escadas. Mrs. Morel olhou para ele com os seus olhos azuis iluminados de amor e contentamento.
– Acho que vais gostar do emprego – vaticinou.
– Doigts quer dizer só dedos, mãe... e com aquela letra... Eu não percebia a letra.
– Não te preocupes, meu filho... Verás que ele é boa pessoa, e, além disso, não vais ter de contactar muito com ele... Não achaste simpático aquele empregado mais novo?... Tenho a certeza de que vais gostar dos teus colegas.
– Mas a mãe não achou Mr. Jordan um homem grosseiro? Será ele o dono daquilo tudo?
– Cá para mim, começou por ser operário e depois singrou na vida – disse Mrs. Morel. – Não deves dar tanta importância às pessoas. Elas não te querem ofender... é a maneira de falarem... estás sempre a pensar que as pessoas te querem ofender... mas olha que não querem.
Estava um dia cheio de sol. No grande largo deserto do mercado, o céu azul iluminava-se e as pedras de granito da calçada brilhavam cintilantes. As lojas de Long Row estavam mergulhadas na penumbra e a sombra enchia-se de cor. No sítio onde os trens puxados a cavalos atravessavam o mercado, erguia-se uma fiada de bancas de fruta, com os frutos luzindo ao sol – maçãs e montes de laranjas avermelhadas, rainhas-cláudias e bananas. Quando mãe e filho passaram, sentiram no ar o odor morno da fruta. A pouco e pouco, os sentimentos de raiva e ignomínia de Paul foram soçobrando.
– Onde havemos de ir almoçar? – perguntou a mãe.
– E se comprássemos qualquer coisa e fôssemos comer para o Arboretum?
– Não. Nada disso.
– Então vamos ao Morley.
– O chá que lá servem é requentado. Não... tu conseguiste o emprego... vamos fazer uma refeição como deve ser.
Aquilo era para eles uma verdadeira extravagância. Paul só tinha ido a uma casa de pasto uma ou duas vezes na vida, e, mesmo assim, só para tomar chá e um pãozinho. A maior parte dos habitantes de Bestwood achavam que a única coisa para que tinham dinheiro quando iam a Nottingham era chá e pão com manteiga, ou, quando muito, carne afiambrada. Uma refeição cozinhada era um autêntico luxo, e Paul sentia-se até culpado. Encontraram um lugar que lhes pareceu bastante acessível. Porém, quando Mrs. Morel consultou a lista, caiu-lhe a alma aos pés, tal era o preço dos pratos. Mandou vir, por isso, empadas de rim e batata, que era o mais barato.
– Não devíamos ter vindo aqui, mãe – disse Paul.
– Deixa lá – respondeu ela. – Nunca mais cá voltamos.
Depois insistiu para que o filho, que era guloso, comesse uma pequena torta de mirtilos.
– Não quero, mãe – disse ele.
– Queres, sim – teimou a mãe. – Claro que queres.
E pôs-se a ver se chamava a criada. Mas a criada andava toda atarefada e Mrs. Morel não a quis importunar nesse momento, pelo que ficaram os dois à espera de que a rapariga se dignasse atendê-los, enquanto ela andava por ali a cirandar, fazendo olhinhos aos clientes.
– Que desavergonhada! – disse Mrs. Morel, virando-se para Paul. – Olha para ela, a servir pudim àquele homem, e ele chegou muito depois de nós.
– Não tem importância, mãe – disse Paul.
Mrs. Morel estava irritada, mas era pobre de mais e a refeição demasiado modesta para ter a coragem de reclamar os seus direitos imediatamente. E, assim, fartaram-se de esperar.
– Vamos embora, mãe? – sugeriu Paul. Mrs. Morel levantou-se. A rapariga ia a passar.
– Trazia-nos uma torta de mirtilos, por favor? – disse Mrs. Morel em voz suficientemente audível.
Mas a rapariga virou-se e olhou para ela com insolência.
– É para já – retorquiu.
– É que já esperámos um bom bocado – disse Mrs. Morel. A rapariga não tardou com a torta. Mrs. Morel pediu a conta secamente.
Paul tinha vontade de se enfiar pelo chão dentro. Pasmava perante a dureza da mãe. Sabia que haviam sido anos e anos de luta que a tinham ensinado a reclamar os seus direitos, por mais insignificantes que fossem, pois ela era tão tímida como ele.
– É a última vez que ali vou para comer seja o que for! – exclamou ela, já na rua, satisfeita por se ver livre daquele pesadelo.
– Vamos dar uma vista de olhos ao Keep’s e ao Boot’s, e a mais um ou dois armazéns, está bem?
Teceram comentários sobre as gravuras expostas para venda, e Mrs. Morel queria por força comprar ao filho um pequeno pincel de pêlo de marta, com que ele andava a sonhar, mas Paul recusou liminarmente mais esta generosidade, e foi esperando por ela estoicamente à porta dos fanqueiros e dos retroseiros, morto de tédio, mas feliz por ver a mãe tão entretida. E o passeio continuou.
– Veja só aquelas uvas pretas! – disse Paul. – Até fazem crescer água na boca... Há anos que ando desejoso de prová-las, mas ainda vou ter de esperar algum tempo para as poder comprar.
A mãe parou deliciada à porta da florista, a aspirar os aromas.
– Oh!... Oh!... Não é simplesmente uma maravilha?
Apesar de a loja estar na penumbra, Paul vislumbrou uma jovem elegante, vestida de preto, a espreitar por detrás do balcão, com ar divertido.
– Estão a olhar para si – disse Paul, tentando arrastar a mãe dali para fora.
– Mas... o que é aquilo? – exclamou ela, recusando-se a sair de onde estava.
– Goivos! – respondeu ele, cheirando o ar apressadamente. – Veja, têm um alguidar cheio.
– Pois têm... vermelhos e brancos!... Esta agora... nunca reparei que os goivos pudessem cheirar assim! – E, para grande alívio do rapaz, a mãe saiu da porta, mas só para se ir pôr diante da montra.
– Paul! – exclamou ela, virando-se para o filho, que tentava esquivar-se ao olhar da tal jovem elegante toda de preto, a empregada da loja. – Paul! Anda ver isto!
Ele aproximou-se relutante.
– Olha aqueles brincos-de-princesa! – disse ela, apontando.
– Humm! – fez ele, mostrando-se interessado. – Parece que as flores vão cair a todo o momento; são tão grandes e tão pesadas.
– E tantas! – exclamou a mãe.
– E já viu a maneira como se inclinam, com os filamentos e os nódulos...?
– Pois é! – disse ela. – São lindas!
– Sempre gostava de saber quem será que as vai comprar? – disse ele.
– Não faço ideia! – respondeu ela. – Nós não somos.
– Na nossa sala morriam logo.
– É, aquele buraco horrível, gélido e sem réstia de sol... mata qualquer planta que lá se ponha... e a cozinha atabafa-as.
Fizeram algumas compras e seguiram para a estação. Olhando ao longo do canal, pelos intervalos sombrios dos edifícios, avistaram o castelo, alcandorado no seu promontório negro coberto de vegetação, miraculosamente iluminado por um sol suave e radioso.
Vai ser tão bom vir dar um passeio à hora do almoço! – disse Paul. – Posso andar por aqui e ver tudo isto. Vou adorar.
– Vais, sim, meu filho – concordou a mãe.
Paul tinha passado uma tarde agradabilíssima em companhia da mãe. Chegaram a casa já a tarde esmorecia, feliz, ardente, e também cansada. Na manhã seguinte, o rapaz preencheu a requisição para o passe de comboio e levou-a à estação. Quando voltou, estava a mãe a começar a lavar o chão. Ele sentou-se com as pernas cruzadas em cima do sofá.
– O homem diz que o passe chega no sábado.
– E quanto custa? – perguntou ela.
– Mais ou menos uma libra e onze xelins.
A mãe continuou a lavar o chão em silêncio.
– Acha caro? – perguntou Paul.
– Não mais do que eu pensava – respondeu ela.
– E eu vou ganhar oito xelins por semana... – disse ele.
A mãe não respondeu, continuando com o seu trabalho. Por fim, disse:
– O William prometeu-me, quando foi para Londres, que me mandava uma libra por mês. E só me mandou dez xelins... por duas vezes. E sei que agora não tinha um tostão, se eu lho pedisse. Não que eu queira o dinheiro dele, mas nesta altura ficava-lhe bem dar uma ajuda para o passe, embora eu não esteja a contar com isso.
– Ele ganha muito bem – disse Paul.
– Cento e trinta libras. Mas os filhos são todos iguais. Uns mãos largas nas promessas, mas quando se trata de as cumprirem... é o que se vê.
– O William gasta mais de cinquenta xelins por semana só com ele – disse Paul.
– E eu mantenho esta casa com menos de trinta – retorquiu a mãe. – E ainda tenho de inventar o dinheiro para os extras. Mas eles, depois de saírem de casa, querem lá saber de ajudar a mãe. Mais depressa o gastava com aquela doidivanas toda aperaltada.
– Ela há-de ter dinheiro, se é assim tão fina – disse Paul.
– Pois havia, mas não tem. Eu já lhe perguntei... E eu sei bem que ele não lhe compra uma pulseira de ouro sem razão. A mim nunca ninguém me comprou uma pulseira de ouro.
– Ora, a mãe também nunca quis nenhuma.
– Lá isso é verdade... Mas, se quisesse, era o mesmo.
– O pai nunca lhe comprou nada?
– Comprou... um cartucho de maçãs... e foi tudo... todo o dinheiro que gastou comigo, antes de nos casarmos.
– Porquê?
– Porque eu era uma parva, e quando ele me dizia: «O que queres qu’eu te compre?», eu respondia: «Nada.» Ele lembrava-se lá de me trazer alguma coisa! E o William só ia comprar uma pulseira de ouro para uma espertalhona cheia de nove horas.
– Aposto que ela já tem muitas – disse o rapaz.
– Tem muitas, dizes tu? Mas ele também tinha de lhe dar uma, para parecer importante. Ele quer lá saber! Eu pude sustentá-lo enquanto ele ganhava uma miséria, mas depois, mal ele se apanha com dinheiro que se veja, e a gente pensa que vai ter um pouco de paz e segurança, ele desanda, e lá começa a luta de novo, sem ter a quem recorrer quando é preciso alguma coisa, sem ninguém que nos estenda a mão.
– A mãe devia pedir-lho.
– E depois ele tinha de o ir pedir emprestado. Isso também eu faço, se tivermos de chegar aí. Tenho a certeza, de que não vou ter de lhe ficar a dever favores. E ele não precisa de me escrever a gabar-lhe os encantos e a falar das óperas a que vão assistir. Nem quero saber. Ele importa-se lá comigo... Eles querem lá saber! Têm a vida deles para viver, fazem o que lhes apetece, e eu... sim... o que represento eu para ele?... Um estorvo nunca hei-de ser, nem lhe hei-de pedir nada... E espero que o teu pai viva muito tempo, e que seja eu a ir à frente, pois é muito triste ter de viver à custa dos filhos.
– Oh, mãe... não tarda, eu começo a ganhar dinheiro, e a mãe pode ficar com tudo, porque eu nunca me hei-de casar.
– Essa já é velha, o William também dizia o mesmo. Dá tempo ao tempo e vais ver como a música é outra.
– Não vai ser, não.
– Então está bem.
E continuou a lavar o chão, em silêncio.
– Que vai fazer? – perguntou Paul.
– Acho que vou ter de meter um vale na Cooperativa... e isso vai sair da minha parte e vou receber menos dividendos. Não me apetecia nada ir lá buscar mais dinheiro outra vez.
O rapaz sentia-se muito infeliz, muito aborrecido. Era ele que precisava do dinheiro, e isso deixava-o amargurado.
– Bem – disse Paul –, em breve serei aumentado, e a mãe pode ficar com o dinheiro todo.
– Tudo isso é muito bonito – disse a mãe. – Mas não é assim que arranjo uma libra e trinta xelins até sábado de manhã.
William fazia progressos com a sua Cigana, como ele lhe chamava. Pedira à rapariga – uma tal Louisa Lily Denys Western – uma fotografia para mandar à mãe. A fotografia chegou: era uma morena bonita, de perfil, com um sorriso afectado, e que bem podia estar completamente nua, pois não se vislumbrava qualquer peça de roupa no retrato, só o colo desnudo.
«Sim senhor», escreveu Mrs. Morel ao filho, «a fotografia da Louie é deveras impressionante e vê-se que deve ser muito atraente. Mas achas, meu filho, que foi sensato e elegante da parte dela dar ao namorado aquela foto para ele mandar à mãe, e pela primeira vez? Tem uns ombros lindos, sem dúvida, como mandaste dizer. Mas eu não estava à espera de os ver tão bem logo da primeira vez...»
Morel encontrou a fotografia na sala, em cima da cómoda, e veio até à cozinha com ela presa entre o polegar e o indicador.
– Quem vem a ser esta? – perguntou ele à mulher.
– É a rapariga com quem o nosso William anda de namoro – respondeu Mrs. Morel.
– Hum! Ganda brasa, pelo menos parece... e num lhá-de fazer bem nenhum... Quem é ela?
– Chama-se Louisa Lily Denys Western.
– Muito prazer! – exclamou o mineiro. – É alguma artista?
– Não, não é. Ele diz que é uma senhora da sociedade.
– Não hajam dúvidas – exclamou o pai, sem tirar os olhos da fotografia. – Com qu’intão uma senhora? E há-de ter muito dinheiro, pra manter as aparências.
– Não tem, não... vive com uma tia velha, que ela detesta, e aceita tudo o que lhe dão.
– Hum! – disse Morel, pousando a fotografia. – Atão ele foi um gand’otário em ter-se metido c’uma tipa dessas.
«Querida Mater», respondeu William. «Lamento que não tenha gostado da fotografia. Nunca me passou pela cabeça, quando lha mandei, que pudesse achá-la pouco decente. Mas já disse à Ciganita que o retrato não correspondia exactamente à sua noção de decoro e decência, e ela vai mandar-lhe outro, que eu espero lhe agrade mais. Ela está sempre a ser fotografada. Na verdade, os fotógrafos estão sempre a pedir-lhe insistentemente para ela se deixar fotografar, absolutamente de graça.»
A nova fotografia acabou por chegar, acompanhada de um bilhete idiota da rapariga. Desta vez, a jovem estava com um ves-tido de noite em cetim preto, de decote quadrado, com mangas curtas e tufadas e folhos de renda preta cobrindo-lhe os braços elegantes.
– Será que só usa vestidos de noite? – disse Mrs. Morel, sarcasticamente. – Tenho a certeza de que eu devia estar impressionada.
– Está a ser antipática, mãe – disse Paul. – Eu acho a primeira fotografia, a dos ombros nus, bem bonita.
– Achas? – disse Mrs. Morel. – Pois olha, eu não.
Na segunda-feira de manhã, o rapaz levantou-se às seis horas, para começar a trabalhar. No bolso do colete levava o passe do comboio que tanta amargura representava. Gostava de olhar para ele, todo às riscas amarelas. A mãe metera-lhe o almoço num cestinho de verga com tampa, e ele saiu de casa quando faltava um quarto para as sete, para apanhar o comboio das sete e um quarto. Mrs. Morel veio despedir-se do filho ao portão.
A manhã estava imaculada. Do grande freixo, pendiam os frutos verdes e delgados – as crianças chamavam-lhes «pombinhos» – cintilando alegremente, soprados pela brisa matinal, suspensos sobre os jardins das vivendas. O vale estava coberto de uma névoa escura, mas brilhante, através da qual luziam as searas já maduras, e em contacto com a qual logo se condensava o vapor que se elevava da mina de Minton. De quando em vez, o vento passava em baforadas. Paul espraiou a vista para lá das altas florestas de Aldersley, onde os campos brilhavam imensos, e nunca o apelo do lar fora tão forte.
– Adeus, mãe – disse ele, sorrindo, mas com a alma entristecida.
– Adeus – respondeu ela, com alegria e ternura na voz.
Mrs. Morel ficou parada na estrada, com o seu avental branco, vendo o filho atravessar os campos. Era um rapaz baixo e robusto, cheio de vida. Ao vê-lo caminhar pelos campos fora, sentiu que ele seria capaz de chegar onde quisesse. Pensou no William. Esse teria saltado a cerca em vez de passar pela cancela. Esse estava em Londres a viver à grande. E agora Paul ia trabalhar para Nottingham. Tinha dois filhos lançados no mundo. Podia pensar em dois lugares, dois grandes centros industriais, e sentir que tinha posto um homem em cada um, e que esses homens seriam capazes de conseguir tudo o que ela ambicionava; provinham dela, eram parte dela, e as suas vitórias seriam também as dela. Durante toda a manhã só pensou em Paul.
Às oito horas, Paul subiu as escadas lúgubres da Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan e deteve-se timidamente junto da primeira prateleira que encontrou cheia de embalagens, à espera de que alguém viesse ao seu encontro. O lugar ainda não tinha acordado. Os balcões estavam cobertos de espessas camadas de poeira. Ainda só tinham chegado dois funcionários. Paul ouvia-os conversar a um canto, enquanto tiravam os casacos e arregaçavam as mangas da camisa. Eram oito e dez. A pontualidade não era evidentemente a preocupação dominante no local. Paul continuou a ouvir as vozes dos dois funcionários. Depois, ouviu alguém tossir e viu no gabinete ao fundo do armazém um empregado já velho e caduco, com um bonezinho redondo de veludo preto bordado a verde e vermelho, a abrir cartas. Paul continuou à espera.
Um dos empregados mais novos dirigiu-se ao velhote e cumprimentou-o efusivamente e em voz muito alta. Estava visto que o velho «chefe» era surdo. A seguir, o jovem voltou para o seu balcão com passo arrogante. A certa altura reparou em Paul.
– Olá! – disse ele. – És o novo rapaz?
– Sou – respondeu Paul.
– Hum! Como te chamas?
– Paul Morel.
– Paul Morel?... Está bem. Vem comigo.
CONTINUA
Quando as crianças já tinham idade suficiente para ficarem sozinhas em casa, Mrs. Morel entrou para o Grémio Feminino. Tratava-se de um pequeno clube de mulheres ligado à Cooperativa de Revenda, que reunia às segundas-feiras à noite numa sala muito comprida por cima da mercearia Bestwood Co-op. Aí, as mulheres discutiam os benefícios de uma política de cooperação e outras questões de importância social. Por vezes, Mrs. Morel tinha de apresentar uma comunicação, e as crianças estranhavam ver a mãe, que passara a vida a fazer a lida da casa, sentar-se agora a escrever, com a rapidez que a caracterizava, a pensar, a consultar livros, e a continuar a escrever. Nessas ocasiões, sentiam por ela o mais profundo respeito.
Mas gostavam do Grémio. Era a única concessão que faziam à mãe de boa vontade – por um lado, por ser uma coisa de que ela tanto gostava, e, por outro, pelas guloseimas que depois lhes trazia. Alguns maridos hostis, que achavam que as mulheres estavam a ficar independentes de mais, chamavam ao Grémio o «clube dos traques-tagarelas», ou seja, o clube da má-língua. A verdade é que, graças ao Grémio, as mulheres podiam olhar para as suas casas, para as condições em que viviam e apontarem o que estava mal. E, assim, os mineiros começavam a descobrir que as suas mulheres lutavam por um novo padrão de vida, o que era para eles bastante desconcertante. Além disso, Mrs. Morel voltava sempre às segundas-feiras à noite carregada de novidades, e as outras crianças gostavam que William estivesse em casa quando a mãe chegava, porque ela lhe contava muitas coisas.
Mais tarde, quando o rapaz tinha treze anos, a mãe arranjou-lhe emprego nos escritórios da Cooperativa. Nessa altura, ele era já um rapaz muito inteligente e franco, de feições duras e os olhos azuis penetrantes de um verdadeiro viking.
– Pra que queres fazer dele um mangas-de-alpaca, num me dizes? – disse Morel. – Tudo o qu’ele vai fazer é gastar as calças no rabo e não ganhar um tostão. Quant’é qu’ele vai ganhar de início?
– O que ele vai ganhar não interessa – disse Mrs. Morel.
– Mas devia interessar! Põe-no mas é na mina ao pé de mim, e ele faz sem custo dez xelins por semana, logo no começo. Mas seis xelins para dar cabo do traseiro sentado num banco é melhor que dez na mina ao pé de mim, eu sei.
– Ele não vai para a mina – disse Mrs. Morel – e não se fala mais nisso.
– Pra mim serviu, mas pra ele não.
– Se a tua mãe te mandou para as minas aos doze anos, isso não quer dizer que eu faça o mesmo ao meu filho.
– Doze anos!... Muito antes disso!
– Fosse quando fosse – disse Mrs. Morel.
Ela tinha um grande orgulho no filho. Ele frequentava a escola nocturna, e aprendeu estenografia, e aos dezasseis anos, já era o melhor estenógrafo e o melhor guarda-livros do escritório, a par de um outro colega. Depois, começou a dar aulas nas escolas nocturnas. Mas era tão vivaço que só o seu bom feitio e o seu tamanho o protegiam.
Todas as coisas que os homens fazem – as coisas decentes – William também fazia. Corria tanto como o vento. Aos doze anos, ganhou o primeiro prémio numa corrida: um tinteiro de vidro, em forma de bigorna, que marcava honrosa presença no louceiro, para orgulho de Mrs. Morel. Fora para ela que ele correra. Voou para casa com a bigorna, ofegante, dizendo:
– Olha, mãe!
Esse foi o primeiro tributo que ele lhe prestou, e ela recebeu-o como uma rainha.
– Que bonito! – exclamou.
Quando iam brincar para perto da cerca da encosta, as crianças das Bottoms costumavam gritar quando William se aproximava:
– Salta, William... Salta!
E ele saltava a sebe, com cerca de cinco pés de altura, sem qualquer dificuldade.
– Caramba! – gritavam os mais pequenos.
Também atirava pedras mais longe do que qualquer outro rapaz de Bestwood. Amigos e rivais, todos tinham inveja das suas façanhas e torciam para que as pedras dele não fossem as que chegavam mais longe, passando para lá da cerca. Mas, à cautela, William gravava-lhes displicentemente as iniciais WM.
Aos dezassete anos, ganhou uma corrida de bicicletas em Ilkeston. Morel, num dos seus alardes de fanfarronice, tinha desafiado todos os campeões que estivessem na taberna a correrem contra o filho, e William sentiu que tinha de honrar as gabarolices do pai. Mas Mrs. Morel não aprovou a ideia.
– Vem ver-me limpar-lhes o sarampo a todos, mãe! – gritou ele, batendo na barriga da perna. Mas Mrs. Morel passou o dia ansiosa e infeliz. Ele podia morrer ou magoar-se, e, além disso, ela tinha a certeza de que o seu coração não tinha resistência para corridas de bicicleta. Não obstante, ele voltou para casa nessa noite trazendo uma pequena secretária de carvalho.
– Aqui tem, mãe! – disse ele. – Não lhe disse que lha trazia?
Mas ela obrigou-o a prometer-lhe que não entrava em mais nenhuma corrida.
William tinha alunos a quem dava aulas de estenografia em casa. Mas era tão impulsivo e irascível, que só os alunos mais aplicados e com mais vocação o aturavam. Sentava-se com eles à mesa da cozinha. A cozinha estava aquecida, iluminada e em silêncio absoluto. As almofadas de chintz vermelho do sofá eram fofas, a toalha vermelha sobre a mesa parecia acolhedora. Geralmente, o aluno, de treze ou catorze anos, sentava-se muito nervoso, enquanto William, rápido e enérgico, lhe corrigia os trabalhos de casa. O professor ia soltando desabafos de impaciência e intolerância. Nisto, voltava-se para o aluno e gritava:
– Meu grande cabeça de burro, fizeste bem a última frase, e agora...
O pobre do aluno assoava-se nervosamente ao lenço vermelho e olhava de soslaio para William. Às vezes, Mrs. Morel estava sentada a coser na cadeira de baloiço. Depois, começava a lição propriamente dita. William, evidenciando cada vez menos paciência, não tardava a explodir:
– Seu parvalhão, seu cabeça de burro, seu idiota chapado, o que é que eu te disse mais de mil vezes...?
– William! William! – exclamava a mãe. – Que vergonha! Não sei como ainda te aturam... Não lhe ligues, Robert, o mal está na falta de paciência dele, não em ti. Tu até és muito rápido. – E Robert olhava para Mrs. Morel envergonhado e agradecido, enquanto William continuava:
– Vá lá... e por amor de Deus não te faças de estúpido. Olha...!
Por fim, Mrs. Morel decidiu não ficar mais em casa quando ele dava as lições, para poupar aos garotos o vexame.
William tinha de entrar no escritório às oito da manhã, e a mãe levantava-se por isso às sete, para lhe preparar as coisas. Ele chegava geralmente atrasado, ou mesmo em cima da hora. Mas não havia nada que o fizesse andar mais depressa. Adorava tomar o pequeno-almoço a sós com a mãe. Quando estava bem-disposto, tagarelava e brincava com ela.
Uma manhã, pediu-lhe uma camisa lavada. Ele estava de pé, em frente à lareira, quando ela lha entregou, sentando-se em seguida a tomar o chá. Ele ergueu no ar repetidamente a camisa de flanela remendada por todos os lados.
– Mãe, o que é isto? – perguntou.
– Uma camisa – respondeu ela, desatando a rir.
– Uma rosa não cheiraria melhor...! – citou ele, de memória, com espirituosidade.
– Pois é... tu dás cabo de tudo... e eu já não tinha mais tecido igual... mas também quem vai notar?
– Tem a certeza de que não se vê?... Cá para mim, vê-se tudo à transparência – disse ele, ainda a torcer o nariz para a camisa.
– Veste-a lá... Olha as horas! – disse ela, sem poder conter o riso, da cadeira de baloiço onde estava sentada a beber o chá. E ele, de pé diante dela, um rapagão alto e espadaúdo, com a camisa de remendos na mão, dizia:
– Oh, minha camisinha de pobre! – disse ele, falando com a dita. – Acho que ninguém te vai cobiçar... um, dois, três... qual destes é o tecido original, mãe?
– Vá, veste a camisa! – ordenou a mãe.
– Imagine que eu tenho um acidente, e vou parar ao hospital, e quando volto a mim vejo quatro enfermeiras a olharem-me para a fralda da camisa... – resmungou ele.
– Só podem estar a dizer que andas com a roupa muito bem tratada – disse a mãe a rir.
Ele vestiu a camisa, e disse ainda, tapando a boca com a mão:
– Nem o rei Salomão em toda a sua glória...
– Não – disse a mãe, continuando a rir –, não creio que houvesse ninguém capaz de dar tantos pontos, nem por Salomão...
William deitou um olho à camisa por cima do ombro, e disse, num lamento:
– És a história da minha desgraça!
Mrs. Morel riu às gargalhadas. A custo, recompôs-se o suficiente para dar uma palmada na mesa e exclamar:
– Toca a vestir, menino! Já é um quarto para as oito.
– Não está à espera que eu tenha pressa de me vestir, para andar por aí todo remendado, pois não, mãe?
– És um tagarela sem juízo! – exclamou ela. – Ainda cais da bicicleta, partes a cabeça...
– Tem razão, se eu morresse ia ter vergonha da camisa que levava – atalhou ele.
Ela saltou da cadeira, pegou na escova e deu-lhe com ela ao de leve na cabeça.
– Vê lá se escovas esse cabelo – ordenou. Separaram-se, reconfortados: ele aquecia-lhe a alma a ela, e ela a ele.
Depois, ele começou a tornar-se ambicioso. Dava todo o dinheiro que ganhava à mãe. Quando recebia catorze xelins, ela deixava-o ficar com dois para os seus gastos, mas ele, como não bebia, começou a achar que estava rico, e só se dava com a burguesia de Bestwood. A pessoa mais importante da cidade era o pastor. Seguiam-se-lhe o gerente do banco, os médicos, depois os comerciantes, e, por fim, as hostes de mineiros. William começou a andar com os filhos do farmacêutico, do mestre-escola e de alguns comerciantes. Ia jogar bilhar para o Mechanics’Hall, e frequentava também os bailes, apesar de a mãe ser contra. Desfrutava de tudo o que Bestwood tinha de bom para lhe oferecer – dos bailaricos de Church Street, a seis dinheiros o ingresso, às provas desportivas e ao bilhar.
– A valsa! – exclamou o pai. – É verdade que tu sabes valsar? Quando eu era mais ágil, também sabia dar as minhas voltinhas.
– Será que sabia? – disse William, meio desconfiado.
– Sabia, sim senhor! – protestou Morel, ferido no seu amor-próprio.
– Então, vá lá... mostre-nos do que é capaz.
Mas Morel tinha vergonha de dançar diante dos filhos.
– Não, isso eu num faço! Estares a desafiar-me é uma parvoíce sem pés nem cabeça, e num vejo o qu’é que ganhas com isso.
– Mas vê que sigo as suas pisadas – retorquiu William.
– Atão inda és mais parvo do qu’eu julgava, s’alguma vez fizeres isso – disse o pai.
– Pronto, não faz mal, se está perro de mais para dançar... – disse o filho.
– Há vinte anos qu’eu num danço – gritou Morel, já alterado.
– E aposto que lhe custou a parar.
Mas William não desistiu. E as raparigas não o largavam.
– ’Póstolo – disse ele ao irmão, depois de um baile, quando já estavam os dois deitados. – ’Póstolo... uma rapariga de cetim branco... tás’ouvir, cetim branco até aos sapatos... vive em Sutton... e tá pelo beicinho! Amanhã vou lá, para m’encontrar com ela.
Daí a duas semanas, Paul perguntou-lhe:
– Então a rapariga do vestido de cetim branco?
– Já não m’interessa, ’Póstolo... Não presta! Mas encontrei uma pérola em Ripley... cheira vagamente a flor de cerejeira... branca como um lírio...
Paul era mimoseado com as mais estonteantes descrições florais das várias raparigas, a maior parte das quais perduravam por menos de quinze dias no coração de William, como um botão de rosa posto ao peito.
Uma vez por outra, lá aparecia uma namorada, preocupada em vir atrás do seu amado. Mrs. Morel encontrou um dia à porta uma rapariga de aspecto estranho, e logo lhe cheirou a esturro.
– Mr. Morel está em casa? – perguntou a donzela, toda sorrisos.
– O meu marido? Está, sim – respondeu Mrs. Morel.
– Eu... Eu queria referir-me a Mr. Morel... filho – repetiu a rapariga, penosamente.
– Qual deles? Há vários...
Nesta altura, a menina loira já gaguejava, muito corada:
– Eu... Eu conheci Mr. Morel... em Ripley. – E apressava-se a dar explicações.
– Ah... num baile!
– Sim, sim.
– Pois eu não gosto das raparigas que o meu filho conhece nos bailes. E ele não está em casa.
Mrs. Morel detestava os bailes duvidosos que o filho frequentava.
– Julgas que não sei das desavergonhadas que por lá andam?
– Pois olhe, mãe, eu não sou nenhum leviano, como pode ver.
– Isso é que eu não sei – dizia a mãe a rir.
– Não está a pensar que eu me vou apaixonar, pois não? Descanse que não vou. É só para me divertir com elas.
– Mas elas é que não querem só divertir-se contigo. E isso não está certo.
– Ora essa, porquê? Não faço tenções de me casar. Não se aflija, Mater. Eu não me caso enquanto não encontrar uma mulher como a senhora... e isso só daqui a muito tempo... E... só me hei-de casar aos trinta, quando já estiver de barriguinha cheia.
– Veremos, meu filho – respondeu a mãe.
Depois, voltou para casa zangado com a mãe por ter sido tão dura para com a rapariga. Era um rapaz despreocupado, mas de olhar apaixonado, que caminhava com grandes passadas, às vezes de sobrolho carregado, e quase sempre com o boné atirado para trás com galhardia. Agora, vinha de sobrolho carregado. Atirou o boné para cima do sofá, apoiou o queixo decidido na palma da mão e olhou zangado para a mãe. Ela era pequena, com o cabelo arrepiado para trás. Tinha um ar de serena autoridade, mas, ao mesmo tempo, de rara afabilidade. Ao ver o filho zangado, o coração apertou-se-lhe.
– Esteve cá ontem alguma senhora à minha procura? – perguntou.
– Uma senhora eu não vi... esteve foi uma rapariga.
– E porque não me disse nada?
– Porque me esqueci.
Ele expeliu o ar com ímpeto.
– Uma rapariga bonita... uma senhora?
– Não olhei para ela.
– Olhos castanhos... grandes?
– Isso mesmo.
Voltou a assoprar.
– E o que lhe disse a mãe?
– Que não estavas em casa.
– E que mais?
– Apenas que não gostava de que raparigas que tinhas visto uma vez viessem aqui a casa à tua procura.
– Bem... não precisava de ter dito isso – replicou ele. – O pai dela tem dinheiro... até têm duas criadas...
– Não vinham com ela... por isso, eu não podia adivinhar.
– Mas porque é que a mãe tinha de ser desagradável? Ela não estava a fazer mal nenhum, ou estava?
– Pensei que fosse uma dessas desavergonhadas.
– Mas não era... Não era... O pai dela...
– Tem dinheiro para duas criadas – atalhou Mrs. Morel.
– Não... É o veterinário de Woodlinton... E, além disso, mãe...
– Ela era uma desavergonhada.
– Não era nada... E era bonita, não era?
– Nem olhei para ela.
– Mas devia ter olhado...
– Mas não olhei, pronto. E olha, meu filho, trata de dizeres às tuas namoradas que, quando vierem atrás de ti, não devem vir perguntar por ti à tua mãe... É isso que tens de dizer a essas desavergonhadas que encontras pelos salões de dança.
– Tenho a certeza de que ela é uma rapariga séria...
– E eu tenho a certeza de que não é.
E assim acabou a discussão. A dança era sempre motivo de conflito entre mãe e filho. A afronta atingiu o auge quando William anunciou que ia a um baile de máscaras em Hucknall Torkard, uma terra mal-afamada. Havia uma fantasia que ele podia alugar, que um dos seus amigos já tinha usado, e lhe assentava que nem uma luva. E o fato de escocês lá foi parar a casa. Mrs. Morel recebeu-o com indiferença e recusou-se a desembrulhá-lo.
– O meu fato já chegou? – gritou William.
– Está um embrulho na sala da frente.
Ele precipitou-se para o fato e cortou o cordel.
– Já imaginou o seu filho assim vestido? – disse entusiasmado, mostrando-lhe o fato.
– Sabes bem que não quero imaginar-te com isso vestido.
Na noite do baile, quando ele veio a casa para se mascarar, Mrs. Morel vestiu o casaco e pôs o chapéu.
– Não fica para me ver vestido, mãe? – perguntou ele.
– Não... Não te quero ver – foi a resposta.
Estava muito pálida, com a expressão dura e fechada. Tinha medo de que o filho seguisse as pisadas do pai. Ele hesitou uns instantes, com o coração suspenso de ansiedade. Depois, viu a boina de escocês cheia de fitas, e agarrou-a, já esquecido da mãe. Mrs. Morel saiu.
Ele nunca se apercebeu de como tinha ficado desapontado. A excitação do momento, vivido em antecipação, era o suficiente para o fazer esquecer. Contudo, o seu maior orgulho era que ela o visse mascarado, e, pela vida fora, era sempre com mágoa que recordava este baile.
Na altura, porém, correu escada acima em grande alvoroço. Paul ajudou-o a vestir-se.
– É um fato de máscara, ’Póstolo – disse ele. – Dá-me cá essas coisas. – Primeiro enfiou um par de calções pretos, muito justos e curtos. Depois, foi mirar-se e remirar-se ao espelho da mãe.
– Estás a ver os meus calções pretos? – disse ele, dando uma volta sobre si mesmo, e acrescentando: – Sabes, ’Póstolo, um verdadeiro escocês não usa calções... cobre a nudez com o kilt. Mas acontece que eu dou saltos muito altos... e... com as senhoras a assistir... bem... já não dava!
O mais pequeno também achava que não, embora o caso não lhe parecesse muito grave.
– Belo par de pernas que aqui estão, ’Póstolo! Belas pernas! Já me ajudaram a ganhar quatro prémios nas corridas e dois nas bicicletas. Nada mau! – E dava palmadas nas coxas jovens e vigorosas. – Só músculo, miúdo!... No entanto, têm um defeito: não consigo juntar os joelhos. Tenho as pernas arqueadas, ’Póstolo. Mas assim ainda são mais fortes... Já o Nicholas Nickleby... esse tinha umas belas pernas e conseguia juntar os joelhos, a julgar pela gravura, e acho que Mr. Good também. Não era Mr. Good que tinha uma «belas pernas muito brancas» n’As Minas de Salomão? Aperta-me isto. Este fato não me assenta nada bem, pois não, ’Póstolo?
– Não – disse Paul, reverente.
– Um verdadeiro escocês – continuou William – tem de dobrar o seu kilt. Quem me dera que este fosse desses... gostava de ser eu a prepará-lo. Estás a ver, ’Póstolo, eu posso usar um kilt porque tenho a medida exacta para ele assentar como deve ser. A ti não te ia ficar bem... és espalmado como uma tampa de cartão. Tens de pedir a Deus que te desenvolva mais essa parte do corpo, senão nunca vais poder vestir um kilt.
Paul não percebia porque é que um dia havia de querer usar um kilt. Baixinho e magro como era, não podia aspirar ao físico e à estatura do irmão.
– Então, que tal ficam os meus joelhos?... Ficam bem, não ficam? Uns valentes joelhos, isso é que eles são... uns valentes joelhos... e as pernas também! Outro dia, os tipos lá do escritório apostaram em como eu andava enchumaçado. E então o Vickers veio de gatas enquanto eu estava a escrever e espetou-me um alfinete. Dei um berro que ia deitando a casa abaixo, e depois dei um pinote e ferrei-lhe um murro na cabeça, estás a ver... quem me dera não ter arrancado aquele bocadinho de pele com a bicicleta.
– Podias pôr um bocadinho do pó cor-de-rosa de lavar os dentes – alvitrou Paul.
– Lá isso podia... diz que é anti-séptico, mas será que resulta? Sabes, eu tenho mesmo pinta de escocês – cabelo louro, olhos azuis e valentia, ’Póstolo, valentia... e arcaboiço a condizer... Se alguma vez me alistasse no exército, havia de ser na Guarda Escocesa. Essa do pó dos dentes é uma ideia porreira...
Quando já estava vestido, um monte de crianças, as de casa e as da vizinhança, vieram admirá-lo. Depois, ele partiu. Divertiu-se à grande e, no entanto, era-lhe doloroso recordá-lo. A mãe mostrou-se indiferente com ele durante um ou dois dias. Mas achava-o tão encantador...! E depois... aquele toque de solidão, a instalar-se outra vez entre ele e ela.
Foi mais ou menos por esta altura que ele começou a estudar. Ele e um amigo começaram a aprender francês, latim e outras coisas. Depressa começou a ficar mais abatido. Depois do escritório, ia para casa de Fred Simpson, e ficavam os dois a estudar até à meia-noite e, às vezes, até à uma. Mrs. Morel protestava, ralhava, implorava-lhe que tivesse mais cuidado com a saúde.
– Quando estamos a estudar – dizia ele – nem dou pelas horas passarem... nenhum de nós dá, até a mãe do Fred gritar lá de baixo que já é muito tarde.
Estas noites de estudo intervalavam com farras e bailaricos. À medida que os anos iam passando, William foi ficando mais magro e a despreocupação fugiu-lhe do olhar.
A mãe, sempre atenta, sempre à espera, sentia um frio na alma ao vê-lo assim. Teria ele forças para «sobreviver»? Um pingo de ansiedade manchava o orgulho que sentia. Tinha esperado por ele tanto tempo que não suportaria o seu fracasso. Na verdade, não sabia o que queria dele, afinal. Talvez quisesse apenas que ele fosse fiel a si próprio, que crescesse e frutificasse tudo o que ela tinha semeado. Queria ver nele a sua própria realização, era tudo. E, com toda a força de que era capaz, tentava mantê-lo forte, equilibrado, com ânimo para seguir em frente. Mas ele vacilava, faltava-lhe lucidez. Havia momentos em que descambava e era igualzinho ao pai, o que lhe enchia o coração de apreensão e desalento.
Ele tivera dúzias de namoricos, mas nada a que se pudesse chamar um caso amoroso. Ela não se importava com os namoricos, desde que não lhe afectassem a carreira, mas receava que ele se deixasse prender por alguma dessas raparigas fúteis e desavergonhadas.
Tinha ele dezanove anos, quando um dia, sem mais nem menos, deixou o escritório da Cooperativa e arranjou um emprego em Nottingham. Este novo lugar rendia-lhe trinta xelins por semana, em vez dos dezoito do anterior. Era na verdade um bom aumento e os pais não cabiam em si de orgulhosos. Todos o elogiavam. Parecia que ia subir na vida num instante. E Mrs. Morel esperava poder, com o auxílio dele, ajudar os filhos mais novos. Annie andava a estudar para professora. Paul, também muito inteligente, ia muito bem nas lições de francês e alemão que o padrinho lhe dava – o pastor, velho amigo de Mrs. Morel. Arthur, um menino mimado e muito bonito, andava ainda na escola primária, mas tinha hipóteses de conseguir uma bolsa para ir para o liceu, em Nottingham.
William conservou-se durante um ano no seu novo emprego em Nottingham. Estudava afincadamente e tornava-se cada vez mais circunspecto. Algo parecia preocupá-lo. No entanto, continuava a ir aos bailes e aos festivais no rio. Não bebia. Todos os irmãos eram abstémios convictos. Chegava a casa muito tarde e estudava até altas horas da noite. A mãe implorava-lhe que tomasse cuidado, que fizesse uma coisa ou outra.
– Dança, se te apetece dançar, meu filho, mas não julgues que podes passar o dia no escritório e depois ires para a paródia, e depois ficares ainda a estudar. Não podes, o corpo não aguenta. Faz uma coisa ou a outra... diverte-te ou estuda latim... mas não tentes fazer as duas.
Depois, ele arranjou um emprego em Londres, a ganhar cento e vinte libras por ano, o que parecia uma soma fabulosa. A mãe nem sabia se havia de rir ou de chorar.
– Querem-me em Lime Street de segunda a oito, mãe – gritou ele, de olhos brilhantes, ao ler a carta. Mrs. Morel sentiu que tudo nela era silêncio. Ele continuou a ler: – «... queira confirmar até à próxima quinta-feira se aceita o lugar... Atentamente...» Eles querem-me lá, mãe, por cento e vinte libras por ano, e nem quiseram falar comigo. Eu não lhe disse que conseguia! Imagine-me só em Londres!... E posso dar-lhe vinte libras por ano, Mater... Vamos ficar afogados em dinheiro.
– Pois vamos, meu filho – respondeu ela, tristemente.
A ele nem lhe ocorreu que a mãe pudesse estar mais magoada com a sua partida do que contente com o seu sucesso. Na verdade, à medida que se aproximava o dia da partida, o coração dela começou a fechar-se e a sucumbir ao desespero. Amava-o tanto. Mais ainda: esperava tanto dele. Quase se podia dizer que vivia através dele. Gostava de lhe fazer as coisas: de lhe fazer uma chávena de chá e de lhe passar a ferro os colarinhos, de que ele tanto se orgulhava. Era para ela uma alegria vê-lo tão vaidoso dos seus colarinhos. Como não havia nenhuma lavandaria perto, costumava passá-los e repassá-los com o seu pequeno ferro de carvão, para os polir, até os pôr a brilhar à simples pressão do braço. E, agora, já não lhe podia fazer isso. Agora, ele ia partir, e era quase como se partisse também do seu coração. E ele parecia não querer deixar ficar nada de si dentro dela. Essa a causa da dor e do desgosto. Ele levava consigo quase tudo.
Uns dias antes da partida – tinha ele acabado de fazer vinte anos – queimou todas as cartas de amor, que estavam guardadas numa caixa em cima do armário da cozinha. Tinha lido extractos de algumas delas para a mãe ouvir, mas a maior parte delas eram demasiado banais.
No sábado de manhã, disse:
– Anda, ’Póstolo, vamos dar uma volta às minhas cartas, e tu podes ficar com os passarinhos e as flores.
Mrs. Morel tinha feito de véspera o trabalho destinado para sábado, pois tinham dado folga a William no último dia. Ela estava até a fazer-lhe um bolo de farinha de arroz, para ele levar. Mas ele não tinha consciência da tristeza que a mãe sentia.
Tirou da caixa a primeira carta. Era cor de malva e estava ornamentada com cardos verdes e púrpura. William cheirou a folha de papel:
– Cheira bem... perfumada...!
E meteu a carta debaixo do nariz de Paul.
– Hum! – disse Paul, inspirando fundo. – Que perfume é este?
– Jockey Club – disse William, embora não fizesse a menor ideia.
– Não podia ser cardo – disse Paul – porque os cardos não têm cheiro.
– Ora oiça esta: «Meu Único Amor»... Safa, Mater.
– Não me interessa ouvir essas baboseiras – disse Mrs. Morel.
– Oiça só esta!.. «Meu único Amor, Como não me disseste o teu primeiro nome, só te posso chamar aquilo que és na realidade. Tenho de te escrever, porque, se o não fizer, acho que a minha cabeça vai rebentar...» Veja só, Mater.
– São mesmo parvas! Têm tão pouca cabeça que não dá nem para rebentar... A adularem-te dessa maneira... Mal sabem elas que estão a arranjar lenha para se queimarem.
– Não é para me adularem. Esta ficou mesmo caidinha por mim.
– E, mesmo que tenha ficado, isso é motivo para se orgulhar? Que parvoíce!
– A mãe não devia dizer que andam a «adulá-lo para arranjar lenha para se queimarem» – interveio Paul.
– Claro, se tu o dizes... – disse a mãe a rir.
– «Fiquei a adorar coisas escocesas desde que te vi com aquele kilt. Ficava-te mesmo mal. Acho que nunca vi ninguém que ficasse tão bonito, com aquele kilt e aquelas meias...» São os meus joelhos... Têm de ser os meus joelhos, Mater. Não me escapa uma.
– Só não te escapam se forem das fáceis.
– Cala a boca, ’Póstolo. É bonita, não é?
Paul gostava de ver os desenhos que decoravam as cartas de amor. William queimou a carta. A seguinte era cor-de-rosa, com um raminho de flor de cerejeira ao canto.
– Flor de cerejeira! – disse Paul, aspirando o perfume. – Que bom... ora cheire, mãe.
A mãe aproximou o nariz pequeno e fino do papel.
– Não me apetece cheirar as parvoíces que elas fazem – disse, aspirando o perfume.
– O pai desta rapariga – disse William – é rico como Cresus. Tem terras que nunca mais acabam... Ela chama-me Lafayette, por eu saber falar francês... «Como vês, já te perdoei.» Esta de ela me perdoar é muito boa... «Falei de ti esta manhã à minha mãe, e ela terá muito prazer em que venhas tomar chá connosco no domingo, mas primeiro precisa do consentimento do meu pai. Espero bem que ele concorde. Logo que saiba, mando-te dizer se sim ou sopas. Se tu no entanto...»
– «Se sim ou...» quê? – atalhou Mrs. Morel.
– «... ou sopas»... é isso mesmo!
– «Se sim ou sopas!» – repetiu Mrs. Morel, trocista. – E eu que a julgava tão fina!
William começou a sentir-se algo desconfortável e pôs de lado esta donzela, dando a Paul o canto com a flor de cerejeira. Continuou a ler excertos das cartas, alguns dos quais deixavam a mãe divertida, outros triste e outros ainda apreensiva.
– Meu filho – disse ela –, elas são muito espertas. Já perceberam que só têm de alimentar a tua vaidade, para tu correres logo atrás delas como um cão a quem fizeram festas na cabeça.
– Ora, elas não podem estar sempre a fazer festas – retorquiu William. – E quando deixam de fazer, eu ponho-me a andar.
– Mas um dia descobres que te prenderam com uma corda que não consegues desatar – respondeu a mãe.
– Isso é que era bom! Eu chego bem para elas, Mater, elas que não se deixem enganar.
– Quem se deixa enganar és tu – disse Mrs. Morel, muito serena.
Não tardou que um monte de papéis retorcidos e tisnados se formasse na lareira, tudo o que restava da colecção de cartas perfumadas, à excepção dos trinta ou quarenta desenhos recortados dos cantos – andorinhas, miosótis e raminhos de hera – que agora pertenciam a Paul. Quanto a William, partiu para Londres, para dar início a uma nova colecção.
IV
A JUVENTUDE DE PAUL
PAUL saía à mãe – era baixo e franzino. O cabelo loiro tornou-se progressivamente arruivado e depois castanho-escuro, enquanto os olhos eram acinzentados. Era uma criança pálida e de poucas falas, com uns olhos que pareciam escutar e um lábio inferior carnudo e descaído.
Geralmente davam-lhe mais idade, pela constante preocupação que mostrava pelo que as outras pessoas sentiam, especialmente a mãe. Quando ela sofria, ele apercebia-se e não tinha paz, sempre de alma atenta às suas mais pequenas reacções.
À medida que crescia, ia-se tornando mais forte. William, devido à diferença de idades, não o queria por companheiro, pelo que só Annie estava com ele o dia inteiro. Annie era uma garota endiabrada, uma maria-rapaz, como a mãe lhe chamava, mas adorava o irmão mais novo, que andava sempre atrás dela. Quando ela fazia corridas com as outras garotas da vizinhança, Paul corria ao lado dela, a apoiá-la, uma vez que ainda não podia participar. Muito calado, passava quase despercebido. Mas a irmã adorava-o e ele fazia-lhe as vontades todas.
Annie tinha uma boneca grande de que muito se ufanava, embora não gostasse tanto dela como do irmão. Um dia, deitou-a no sofá, cobriu-a com uma manta, para ela adormecer, e foi-se embora. Entretanto, Paul pôs-se a saltar em cima do sofá e caiu mesmo em cima da cara da boneca, escondida debaixo da coberta. Annie precipitou-se para o sofá soltando um grito lancinante e sentou-se a chorar, inconsolável. Paul nem se mexeu.
– Não se percebia que a boneca estava ali, mãe; não se percebia – não se cansava ele de repetir, deixando-se ficar sentado muito triste enquanto Annie continuava a chorar. Por fim, o desgosto passou e ela perdoou ao irmão, que estava genuinamente contrito. Porém, um ou dois dias depois Annie ficou chocadíssima.
– Vamos oferecer a Arabella em sacrifício – disse ele. – Vamos queimá-la. – A irmã ficou horrorizada, mas ao mesmo tempo fascinada. Sempre queria ver o que o irmão ia fazer. Ele fez um altar de tijolos, tirou bocadinhos do enchimento do corpo de Arabella, enfiou esses bocadinhos na cara esburacada, deitou-lhe em cima um pouco de parafina e incendiou a boneca. Depois, com perversa satisfação, ficou a ver as gotas de cera derretida a escorrerem pela testa de Arabella, como se fossem suor a pingar sobre a chama. Enquanto a estúpida da boneca esteve a arder, ele rejubilou em silêncio. No fim, esgravatou nas brasas com um pauzinho, pescou os braços e as pernas, todos pretos, e esmagou-os com uma pedra.
– Pronto, este foi o sacrifício da Arabella – anunciou. – E ainda bem que não sobejou nada.
Annie, embora nada dissesse, estava perturbada com a cena. Era como se ele odiasse a boneca intensamente pelo facto de a ter partido.
Todos os irmãos, mas Paul em particular, colocavam-se nitidamente ao lado da mãe contra o pai. Morel continuava a fazer desmandos e a embebedar-se. Havia alturas, às vezes meses a fio, em que transformava a vida de toda a família num inferno. Paul nunca se havia de esquecer de ter vindo para casa, depois de uma reunião religiosa uma segunda-feira à tardinha, e ter encontrado a mãe com um olho negro e todo inchado, o pai de pé junto à lareira, de pernas afastadas e cabisbaixo, e William, que acabara de chegar do trabalho, a olhar enfurecido para o pai. Fez-se silêncio quando os irmãos mais novos entraram, mas nenhum dos adultos olhou para eles.
William estava lívido e de punhos cerrados. Esperou que os mais pequenos se calassem, limitando-se a olhar a cena com indizível raiva infantil, e disse:
– Seu grande cobarde, se eu cá estivesse, não se atrevia a fazer uma coisa destas.
Mas Morel estava ao rubro e voltou-se contra o filho. William era mais alto, mas Morel era mais possante e estava cego de raiva.
– Ah, não? – berrou. – Ah, não atrevia? Se abres mais essa boca, meu menino, assento-te a mão em cima, olá se assento!
E, vergando os joelhos, brandiu o punho ameaçadoramente, animalescamente. William estava lívido de raiva.
– Ah, sim? – disse William, sereno e intrépido. – Pois seria a última vez.
Morel aproximou-se gingão, semivergado, de punho no ar em posição de ataque. William armou também o punho. Os seus olhos azuis fixos no pai tinham o brilho de uma gargalhada. Mais uma palavra e os dois homens engalfinhavam-se. Paul desejava que isso acontecesse. Os três mais novos assistiam sentados no sofá, sem pinga de sangue.
– Acabem já com isso – gritou Mrs. Morel, com dureza. – Por esta noite chega... E tu – disse, virando-se para o marido – pensa nos teus filhos.
Morel virou os olhos para o sofá.
– Pensa nos teus filhos, ess’agora, minha grande cabra – disse ele, acintoso – o qu’é qu’eu fiz òs meus filhos, sempre gostava de saber. Mas eles saem a ti... ensinaste-lhes todas as tuas manhas e truques... criaste-os à tua maneira, foi o que foi.
Ela não respondeu. Ninguém abriu a boca. Passado algum tempo, ele atirou as botas para debaixo da mesa e foi deitar-se.
– Porque é que não me deixou fazer-lhe frente? – disse William, quando o pai já tinha ido para cima. – Ele tinha apanhado, e bem.
– Que bonito... bateres no teu pai – respondeu a mãe.
– Pai! – repetiu William. – Aquilo, meu pai!
– Bom, lá que é... é. Por isso...
– Mas porque é que não me deixa dar-lhe uma ensinadela, não custava nada...
– Que disparate! – gritou Mrs. Morel. – Ainda não chegámos a esse ponto.
– Não – disse o filho. – Ainda é pior... olhe para a sua cara. Porque não me deixou bater-lhe?
– Porque não ia suportar assistir a uma coisa dessas. É melhor que nem te passe pela cabeça – gritou ela, peremptória.
As crianças foram deitar-se muito tristes.
Quando William já era grande, a família mudou-se das Bottoms para uma casa no alto da colina, de onde se alcançava todo o vale, que se estendia por baixo, convexo, como concha de amêijoa ou berbigão. Fronteiro à casa, estava postado um velho freixo de grandes dimensões. Quando o vento oeste soprava forte das bandas do Derbyshire, apanhava em cheio as casas e a árvore não parava de ulular. Morel gostava de a ouvir.
– É como a música – dizia ele. – Ajuda-me a adormecer.
Mas Paul, Arthur e Annie detestavam o zumbido do vento. Para Paul, era quase um gemido demoníaco. Durante o primeiro Inverno que passaram na nova casa, o pai portou-se muito mal. As crianças ficavam a brincar na rua, alcandorada sobre o vale extenso e sombrio, e só voltavam para casa às oito horas, indo directas para a cama. A mãe ficava a costurar no andar de baixo. Todo aquele espaço aberto diante da casa incutia nas crianças uma sensação de vastidão nocturna, de terror. Terror esse que provinha da árvore ululante e da discórdia entre os pais. Paul, mesmo depois de adormecer, tinha um sono sobressaltado e acordava amiúde com os barulhos que vinham de baixo. Acordava e ficava atento. Ouvia então os berros desabridos do pai, que chegara a casa a cair de bêbado, seguidos das respostas aceradas da mãe, e depois os murros do pai em cima da mesa e os seus gritos descontrolados, à medida que ia elevando a voz. E, finalmente, tudo isto era abafado pelos gemidos e os uivos penetrantes do grande freixo agitado pela ventania. As crianças mantinham-se caladas e expectantes, a aguardarem que o vento se calasse, para perceberem o que o pai estava a fazer, não fosse ele bater na mãe outra vez. A escuridão instilava neles sentimentos de horror, violenta tensão e sangue, e adormeciam com o coração apertado de angústia. O vento era cada vez mais assustador. Todas as cordas da grande harpa gemiam, silvavam e uivavam. E, depois, o horror do súbito silêncio: o silêncio total, lá fora e lá em baixo. Que silêncio era aquele?... Um silêncio de sangue? Que teria ele feito?
As crianças mantinham-se deitadas a respirar escuridão. Por fim, ouviam o pai atirar com as botas e subir a escada só de meias. Mesmo assim, ficavam à escuta, até que, se o vento deixava, ouviam a água a sair da torneira para a chaleira, que a mãe já deixava preparada para o dia seguinte, e podiam, finalmente, dormir em paz.
De manhã, acordavam felizes, muito felizes, e brincavam e dançavam à volta do candeeiro solitário, ainda na escuridão, mas guardavam um recanto de ansiedade dentro dos seus corações e uma tristeza nos olhos que conservaram para toda a vida.
Paul odiava o pai. Quando era ainda pequeno, tinha uma religião muito sua.
– Faz com que ele deixe de beber – pedia ele todas as noites.
– Senhor, deixa o meu pai morrer – rezava ele muitas vezes.
– Faz com que ele morra na mina – pedia ele quando, depois do chá, o pai tardava a vir do trabalho.
Esse era outro dos momentos em que a família sofria intensamente. As crianças chegavam da escola e tomavam chá. A enorme chaleira preta fervilhava a um lado do fogão e a terrina do guisado estava no forno, à espera de que Morel chegasse. Era esperado às cinco horas. Porém, durante meses a fio, parava sempre na taberna quando voltava do trabalho e por lá ficava a beber.
Nas noites de Inverno, quando o frio era intenso e anoitecia mais cedo, Mrs. Morel levava para a mesa uma palmatória de latão com uma vela acesa, para poupar o gás. As crianças comiam a sua fatia de pão com manteiga ou com banha e iam brincar para a rua. Mas, se Morel ainda não tinha chegado, eles pensavam duas vezes. Mrs. Morel não suportava imaginá-lo sentado na taberna a beber, todo sujo e ainda com as roupas da mina, depois de um dia de trabalho, e, em vez de vir para casa comer e lavar-se, preferir embebedar-se de estômago vazio. E este seu sentimento comunicava--se aos filhos. Agora, ela já não sofria sozinha: os filhos sofriam com ela.
Paul foi brincar com os outros rapazes. No vale semeado no crepúsculo, cintilavam aglomerados de luzes a marcarem a entrada das minas. Alguns mineiros retardatários subiam desgarrados o carreiro da encosta. Por fim, passou o homem que acendia os lampiões da rua. Mais nenhum mineiro se avistava. A escuridão abateu-se sobre o vale, o trabalho terminara, era a noite que chegava.
Paul correu ansioso para a cozinha. A vela solitária ardia ainda sobre a mesa, o clarão vermelho da fogueira inundava a cozinha, e Mrs. Morel estava sentada e só. A chaleira fumegava no fogão, o prato continuava à espera. Um sentimento de espera perpassava toda a casa, um sentimento de espera pelo homem que estava nesse momento sentado na taberna, a pouco mais de uma milha de casa, já noite escura, com a roupa de trabalho, sem comer, e a beber até cair. Paul apareceu à porta.
– O papá já chegou? – perguntou.
– Bem vês que não – disse Mrs. Morel, aborrecida com a redundância da pergunta.
Depois, o garoto pôs-se a andar de um lado para o outro à volta da mãe. Partilhavam a mesma ansiedade. A certa altura, Mrs. Morel foi lá fora escorrer a água das batatas.
– Estão todas negras, uma porcaria – disse ela. – Quero lá saber. – Não se trocavam muitas palavras. Paul quase odiava a mãe por sofrer daquela maneira quando o pai não vinha para casa.
– Para que se aflige tanto? – disse ele. – Se ele quer ficar por lá a embebedar-se, porque não o deixa?
– Deixá-lo! – ripostou Mrs. Morel. – Essa é boa, «deixá-lo». – Ela sabia que todo o homem que se mete na taberna quando devia voltar para casa sem demora se arruina a si mesmo e à família. As crianças eram ainda muito pequenas e ele era o seu único ganha-pão. William viera trazer-lhe algum alívio, pois, com ele empregado, sempre tinha alguém a quem recorrer se Morel descambasse de vez. Porém, isso em nada alterava a tensão que se respirava na cozinha nestas noites de espera.
Os minutos escoavam-se no bater ritmado do relógio. Às seis horas, a mesa ainda estava posta, o jantar à espera, e a mesma atmosfera de ansiedade e expectativa invadia toda a casa. Paul já não aguentava mais. Não lhe apetecia ir lá para fora brincar. Correu por isso para casa de Mrs. Inger, duas portas mais abaixo, para conversar com ela. Mrs. Inger não tinha filhos. O marido era amigo dela, mas era caixeiro numa loja e chegava muito tarde. Quando ela viu o garoto à porta, chamou-o:
– Vem cá, Paul.
Ficaram os dois a conversar durante um bocado, mas logo Paul se levantou, dizendo:
– Bem, vou andando, para ver se a minha mãe precisa que eu lhe vá fazer algum recado.
Fingia estar muito alegre e não contou à amiga o que o preocupava. Depois, voltou a correr para casa.
Em alturas como esta, Morel chegava sempre mal-humorado, insuportável.
– Lindas horas de voltares para casa – dizia Mrs. Morel.
– Que tens tu co’isso, cas horas a qu’eu venho pra casa? – berrava ele.
E ninguém abria a boca, porque ele era perigoso. Comia o que lhe punham à frente com inultrapassável grosseria e, quando terminava, empurrava tudo o que tinha diante de si para longe, para poder estender os braços por cima da mesa, e, em seguida, adormecia.
Paul odiava por demais o pai. A cabeça do mineiro, pequena e mesquinha, com o cabelo preto empastado de fuligem, repousava sobre os braços nus, e a cara, suja e mal-humorada, de nariz grosso e sobrancelhas finas e insolentes, estava virada para o lado, adormecida – da cerveja, do cansaço e da má índole. Se alguém entrasse de repente ou fizesse o mais pequeno ruído, o homem abria os olhos e berrava:
– Tás aqui, tás a levar um murro, se não paras com essa chinfrineira. Tás’ouvir?
Estas palavras, gritadas selvaticamente e quase sempre dirigidas contra Annie, deixavam toda a família transida de medo.
Ele era mantido fora de todos os assuntos. Ninguém lhe contava nada. Enquanto estavam sozinhos com a mãe, o filhos relatavam-lhe as peripécias do dia, contavam-lhe tudo. Era como se nada realmente acontecesse até contarem à mãe. Mas, mal o pai entrava, fazia-se silêncio. A sua presença era como um travão na engrenagem fluente e feliz da vida doméstica. Ele apercebia-se deste muro de silêncio, do isolamento a que o votavam, de que não era bem-vindo; mas era já demasiado tarde para mudar.
Bem gostaria de que os filhos conversassem com ele, mas eles não conseguiam. Às vezes Mrs. Morel dizia:
– Devias contar ao teu pai.
Paul ganhou um prémio num concurso de jornal e todos ficaram radiantes.
– O melhor é contares ao teu pai quando ele chegar – disse Mrs. Morel. – Sabes bem que ele passa a vida a dizer que nunca lhe contam nada.
– Está bem – concordou Paul. No entanto, quase preferia ter perdido o prémio a ter de contar ao pai.
– Ganhei um prémio num concurso, pai – disse ele.
Morel voltou-se e disse:
– Ah, ganhaste, meu rapaz?... E que concurso era esse?
– Nada de especial... era sobre mulheres famosas.
– E de quanto é esse tal prémio que ganhaste?
– É um livro.
– Ah, é?
– Sobre aves.
– Hum!
E era assim. Não havia conversa possível entre o pai e qualquer dos restantes membros da família. Era como se ele fosse um estranho, tivesse negado o Deus que nele habitava.
Os únicos momentos em que voltava a entrar na vida da família era quando fazia consertos em casa e o trabalho lhe corria de feição. Às vezes, ao fim da tarde, depois de jantar, punha-se a remendar as botas ou a soldar a chaleira ou o cantil. Nessa altura precisava de ajudantes e as crianças rejubilavam. Partilhavam com ele o trabalho, no verdadeiro sentido de construírem realmente qualquer coisa, e aquele sim, era ele outra vez.
Mostrava-se competente e habilidoso, e quando estava de bom humor não parava de cantarolar. Mas atravessava longos períodos, às vezes meses, quase anos até, de contundência e irascibilidade. Depois, de repente, ficava bem-disposto outra vez e era bom vê-lo entrar pela copa dentro com um bocado de ferro incandescente, a gritar:
– Saiam da frente, saiam da frente!
Batia o ferro rubro e maleável na bigorna e moldava-o a gosto. Outras vezes sentava-se a soldar, e as crianças viam cheias de alegria o metal derreter instantaneamente e ser espalhado pelo ferro de soldar, impregnando a casa de um odor a lata quente e a resina queimada, enquanto Morel em silêncio se concentrava no trabalho. Cantava sempre que estava a remendar as botas, ao som das batidas do martelo. E via-se que estava feliz quando punha grandes remendos nas calças de fustão que usava na mina, o que acontecia bastas vezes, pois achava-as muito sujas e muito rijas para ser a mulher a fazê-lo.
Mas o que as crianças mais gostavam era de o verem fazer detonadores. Morel ia buscar ao sótão um molho de palhas de trigo compridas e resistentes. Limpava-as e polia-as à mão até cada uma luzir como uma hastezinha de ouro. Depois, cortava-as em bocados com cerca de seis polegadas, fazendo-lhes, se possível, um talho na ponta. Tinha sempre ao seu lado um canivete primorosamente afiado que cortava uma palha ao meio sem a danificar. Seguidamente, deitava em cima da mesa um montinho de pólvora – uma pilha de grãos pretos sobre o tampo de madeira bem lavada, e ia preparando e aparando as palhas, enquanto Paul e Annie as enchiam e vedavam com um bujão. O que Paul mais gostava era de ver os grãozinhos pretos escorregarem pela calha que ele fazia com a palma da mão e entrarem pela abertura da palhinha, até ela ficar cheia. Nessa altura, vedava a abertura com uma raspa de sabão que arrancava com a unha do polegar do bocado de sabão que tinha a seu lado num pires, e a palha estava pronta.
– Olhe, pai! – dizia ele.
– Isso mesmo, meu amor – respondia Morel, que era particularmente pródigo em elogios para com o seu segundo filho. Paul atirava os detonadores para dentro da lata da pólvora, já pronta para o dia seguinte, quando Morel a levasse para a mina, para com eles provocar uma explosão capaz de fracturar a parede de carvão.
Entretanto, Arthur, ainda muito agarrado ao pai, vinha apoiar-se no braço do cadeirão de Morel e dizia:
– Conte-nos como é lá em baixo na mina, papá.
Era o que Morel mais gostava de fazer.
– Ora bem, lá na mina há um cavalo, a gente chama-lhe Taffy – começava ele – e ele é um gra-a-nde manhoso!
Morel tinha uma maneira pitoresca de contar histórias. Parecia até que a manha do Taffy ganhava vida.
– É um baio – continuava ele – e dos pequenos. Bem, a cert’altura ele entra na galaria com ganda estardalhaço e a gente ouve-o espirrar.
– «Olá, Taff», diz a gente, «pra que tás tu a espirrar? Andaste a cheirar rapé?» E ele vá de espirrar outra vez. Depois vem ter co’a gente e dá-nos co’a cabeça no ombro, o malandreco.
– «Qu’é que tu queres, Taff?», diz a gente.
– E o qu’é qu’ele quer? – perguntava Arthur invariavelmente.
– Quer um bocado de tabaco, meu tontinho.
E a história do Taffy nunca mais acabava, para gáudio da pequenada.
Outras vezes a história mudava.
– Ora ouve esta, meu amor. De quando vou a vestir o casaco, na hora de vir dar ao dente, e dou c’um rato a correr-me pela manga acima. «Eh, lá!», grito eu, mesmo a tempo de lh’agarrar a ponta do rabo.
– E matou-o?
– Matei, pois. São uma praga. Aquilo tá cheio deles.
– E o que é que eles comem?
– Os grãos qu’os cavalos deixam cair... e até nos vêm ao bolso comer o farnel, s’os deixarmos... seja onde for que a gente pendure o casaco... Danados de comilões, isso é qu’eles são...
Estas noites bem passadas só aconteciam quando Morel tinha trabalho para fazer. Depois, ia deitar-se muito cedo, geralmente com as crianças. Não havia nada que o fizesse ficar a pé depois de terminar os consertos e ler por alto os títulos do jornal.
Os filhos sentiam-se seguros quando o pai estava na cama. Por vezes ficavam a conversar em voz baixa depois de se deitarem, e assustavam-se quando luzes de repente se projectavam no tecto, vindas das lanternas dos mineiros que passavam para o turno das nove horas. Ouviam as vozes dos homens e imaginavam-nos a penetrar no vale de breu. Às vezes iam à janela e ficavam a ver as três ou quatro lanternas cada vez mais pequeninas desaparecerem na distância, balançando na escuridão dos prados. E, depois, era tão bom voltarem para a cama e enroscarem-se uns nos outros, no quentinho.
De todos, só Paul era muito frágil, atreito a ataques de bronquite. Os outros eram todos fortes e essa era talvez a outra razão para a diferença que a mãe fazia entre ele e os irmãos. Um dia, Paul chegou adoentado à hora do almoço. A família, porém, não era dada a pieguices.
– O que se passa contigo? – perguntou a mãe, incisiva.
– Nada – respondeu ele.
Mas não quis comer.
– Se não comeres, não voltas para a escola.
– Porquê? – perguntou ele.
– Porque não.
Depois do almoço, ele foi deitar-se no sofá, entre as fofas almofadas de ramagens de que as crianças tanto gostavam, e pareceu adormecer. Nessa tarde, estava Mrs. Morel a passar a ferro quando ouviu os ruídos roucos e entrecortados que o filho fazia ao respirar. De novo a assaltou o antigo sentimento exacerbado de quando ele era bebé e julgava que não ia sobreviver. No entanto, o corpinho dele tinha grande vitalidade. Talvez para ela tivesse sido um alívio se ele tivesse morrido. Sentia sempre a angústia misturar-se ao amor que lhe tinha.
Ele, no seu estado de semiconsciência, apercebia-se vagamente do tinir do ferro no descanso e do seu assentar cavo sobre a tábua de engomar. Uma das vezes, acordando, abriu os olhos e viu a mãe junto à lareira com o ferro quente perto da cara, a escutar por assim dizer o ruído do calor. Ao ver o seu rosto imóvel, a boca crispada de tanto sofrimento, desilusão e abnegação, o nariz ligeiramente à banda e os seus olhos azuis, tão jovens, vivos e ternos, o coração de Paul apertou-se-lhe de amor. Quando ela ficava assim parada, como agora, parecia cheia de vida e de coragem, mas completamente privada dos seus direitos. Ao filho, magoava-o profundamente este pressentimento de ela nunca ter sido feliz, e a sua própria falta de capacidade para a compensar atingia-o como uma espécie de impotência, ao mesmo tempo que determinavam nele uma atitude de paciente tenacidade, em conformidade com as suas ambições pueris.
Ela cuspiu no ferro, e uma bolinha de cuspo enovelou-se e correu pela superfície negra e luzidia. Depois, pondo-se de joelhos, esfregou o ferro vigorosamente no forro de serapilheira do tapete. As chamas da fogueira envolviam-na num clarão cálido e avermelhado. Paul gostava da maneira como ela se baixava e inclinava a cabeça para o lado com movimentos leves e ligeiros. Era sempre com enlevo que a olhava. Nada que fizesse, nenhuma atitude ou movimento, podiam ter defeito para os filhos. A casa estava aquecida e cheirava a roupa quente. Mais tarde, o pároco veio conversar tranquilamente com Mrs. Morel.
Paul caiu à cama com um ataque de bronquite. Não que isso o contrariasse muito: o que tinha de ser tinha muita força e de nada servia revoltar-se. Gostava das noites, depois das oito horas, quando apagavam a luz e ele podia ver as chamas projectarem-se na escuridão das paredes e do tecto e seguir com o olhar as sombras alongadas que o percorriam, até a sala parecer invadida por guerreiros silenciosos, combatendo no silêncio.
Quando se ia deitar, o pai passava primeiro pelo quarto do enfermo. Se alguém estava doente em casa, mostrava-se sempre muito terno, mas a sua entrada não deixava de perturbar a paz que reinava no quarto de Paul.
– Tá a dormir, meu amor? – perguntava Morel, devagarinho.
– Não... A mãe não vem para cima?
– Tá só a acabar de dobrar a roupa. Quer alguma coisa? – Morel só raramente tratava o filho por «você».
– Não, não quero nada... Mas quanto tempo é que demora?
– Já falta pouco, meu tontinho.
O pai hesitava uns segundos frente à lareira. Sentia que o filho não queria a sua presença. Assomava-se então ao cimo das escadas e dizia à mulher:
– Aquela criança tá ansiosa por te ter ó pé... Inda vais ficar aí muito tempo?
– Até acabar o que estou a fazer, santo Deus! Diz-lhe que durma.
– Ela diz qu’o melhor é o meu menino adormecer – disse ele a Paul, de mansinho.
– Mas eu quero que ela venha para cima – insistiu o garoto.
– Ele diz que não dorme enquanto não vieres pra cima – gritou Morel lá para baixo.
– Calma, querido! Já vou. E vê se não gritas dessa maneira. Olha as outras crianças...
Depois, Morel voltou para o quarto de Paul e acocorou-se em frente da lareira. Que bem lhe sabia aquecer-se ao lume.
– Ela diz que já vem.
Parecia querer ficar ali indefinidamente. O garoto já estava febril de irritação. A presença do pai parecia aumentar ainda mais a sua impaciência. Por fim, depois de ficar a olhar para o filho por algum tempo, em silêncio, Morel disse mansamente:
– Boa noite, meu amor.
– Boa noite – respondeu Paul, voltando-se para o outro lado, satisfeito por ficar sozinho.
Paul adorava dormir com a mãe. O sono é ainda mais reparador, apesar de tudo o que dizem os defensores da higiene, quando partilhado com um ente querido. O aconchego, a segurança, a paz de espírito e o conforto que a presença do outro traz, conferem ao sono propriedades curativas. Paul adormecia encostado a ela e melhorava depressa, e ela, sempre atormentada por insónias, mergulhava num sono profundo que parecia renovar-lhe a esperança.
Durante a convalescença, Paul ficava sentado na cama, a ver os cavalos a pastar nos campos circundantes, espalhando o feno pela neve amarelada das pegadas, e a ver os mineiros voltarem para casa, figurinhas negras trilhando lentamente em grupos a alvura dos campos. Depois, vinda da neve, a noite avançava em vapores azulados, quase negros.
Durante a convalescença tudo era maravilhoso. Os flocos de neve caindo de repente na janela detinham-se por um momento, como andorinhas, mas logo desapareciam, e uma gota de água escorria pela vidraça. Os flocos de neve rodopiavam em torno da esquina da casa como pombas esvoaçantes. Do outro lado do vale, o pequeno comboio negro rolava hesitante através da planície toda branca.
Vendo-se tão pobres, as crianças ficavam radiantes quando podiam fazer qualquer coisa que pudesse ajudar os pais economicamente. Annie, Paul e Arthur saíam no Verão logo pela manhã e metiam-se pelo meio da erva molhada, de onde esvoaçavam cotovias, assustadas, à cata de cogumelos, esses corpos nus e de pele tão branca que se escondem dos olhares por entre o verde. Se conseguiam apanhar meia libra, já se davam por muito felizes: era a alegria de encontrarem qualquer coisa, a alegria de receberem qualquer coisa directamente das mãos da natureza e a alegria de poderem contribuir para a economia doméstica.
Mas a colheita mais importante, depois de andarem à procura de ervas aromáticas para as papas, era a das amoras. Mrs. Morel tinha de comprar fruta todos os sábados para os pudins; além disso, gostava muito de amoras. Assim, Paul e Arthur, enquanto houvesse uma amora à vista, esquadrinhavam os silvados, as moitas e as pedreiras abandonadas todos os fins-de-semana. Naquela região de cidades mineiras, as amoras eram relativamente raras. Mas Paul era persistente. Gostava de andar pelos campos entre os silvados, mas não suportava voltar de mãos a abanar. Isso seria desapontá-la, pensava ele, e antes queria morrer.
– Santo Deus! – exclamou a mãe ao vê-los entrar, já tarde, mortos de cansaço e cheios de fome. – Por onde é que vocês andaram?
– Bem – começou Paul –, como aqui não encontrámos nenhuma, fomos até Misk Hills... E veja só, mãe.
Ela espreitou para a cesta.
– E que lindas que são! – exclamou.
– E passa de duas libras... passa de duas libras, não passa, mãe?
A mãe tomou o peso à cesta.
– Passa, sim – respondeu, pouco convicta.
Paul estendeu-lhe um raminho. Trazia-lhe sempre um raminho, o mais bonito que encontrasse.
– Que bonito! – disse ela, com a entoação especial da mulher que recebe um testemunho de amor.
O filho preferia correr os campos o dia inteiro, calcorrear milhas e milhas, a dar-se por vencido e voltar de mãos vazias. Ela nunca o entendeu enquanto ele foi pequeno. Era uma mulher que esperava que os filhos crescessem depressa e se preocupava sobretudo com William.
Mas quando William foi trabalhar para Nottingham, e já não passava tanto tempo em casa, a mãe fez de Paul seu companheiro. Este sentia involuntariamente ciúmes do irmão, e William tinha ciúmes de Paul, mas eram ao mesmo tempo bons amigos.
A relação de Mrs. Morel com o seu segundo filho era mais subtil e tranquila, menos exacerbada talvez do que com o filho mais velho. Estava estabelecido que era Paul quem ia levantar o salário às sextas-feiras à tarde. Os mineiros das cinco minas da zona recebiam à sexta-feira, mas não individualmente. Os salários referentes a cada galeria eram pagos por junto ao capataz, chefe e contratador dos mineiros, e era ele quem fazia a distribuição, na taberna ou na sua própria casa. Para as crianças poderem ir buscar o dinheiro, a escola acabava mais cedo às sextas-feiras. Todos os filhos de Morel, primeiro William, depois Annie e agora Paul, já tinham ido buscar o dinheiro às sextas-feiras à tarde, até chegar a altura de eles próprios começarem a trabalhar. Paul costumava sair de casa às três e meia, com um saquinho de pano no bolso. Por todos os caminhos se viam mulheres, raparigas, crianças e homens a caminho dos escritórios.
Os escritórios eram muito bonitos: num edifício novo de tijolo vermelho, que mais parecia uma mansão, no meio de um jardim muito bem tratado, ao fundo de Greenhill Lane. A sala de espera era no vestíbulo, uma sala comprida e nua com chão de tijoleira azul e um banco a toda a volta, encostado à parede. Era aqui que se sentavam os mineiros, carregados de fuligem. Tinham saído mais cedo da mina. As mulheres e as crianças ficavam geralmente à espera nos arruamentos de gravilha avermelhada. Paul observava sempre com atenção a orla de relva e o grande canteiro onde cresciam amores-perfeitos e miosótis. Aos ouvidos chegava-lhe o som de muitas vozes misturadas. As mulheres exibiam os seus chapéus domingueiros. As raparigas tagarelavam animadas. Os cães corriam para um lado e para o outro. E, em redor, os arbustos erguiam-se verdes e silenciosos.
Nisto, alguém gritava de lá de dentro: «Spinney Park... Spinney Park», e todos os da mina de Spinney Park entravam de tropel. Quando chegava a vez da mina de Bretty, Paul entrava com a multidão. A sala de pagamentos era muito pequena. Um balcão a toda a largura dividia-a ao meio. Atrás do balcão estavam dois homens, Mr. Braithwaite e um empregado, Mr. Winterbottom. Mr. Braithwaite era um homem corpulento, com ar de patriarca austero e uma barbicha branca e rala. Tinha geralmente a boca tapada com um grande lenço de pescoço, em seda, e, mesmo no Verão, havia sempre uma fogueira acesa. Não se via uma janela aberta. Por vezes, no Inverno, o calor até chegava a queimar as gargantas de quem vinha do ar gélido do exterior. Mr. Winterbottom era baixinho, gordo e calvo. Tecia comentários sem o mínimo resquício de imaginação, enquanto o seu chefe não se cansava de proferir patriarcais invectivas contra os mineiros.
A sala estava apinhada de mineiros todos enfarruscados, homens que já tinham ido a casa mudar de roupa, mulheres e uma ou duas crianças, e, geralmente, um cão. Paul era bastante baixo e era por isso sina sua ver-se entalado entre as pernas dos homens, perto do calor sufocante da lareira. Sabia a ordem por que os nomes eram chamados: de acordo com o número da galeria.
– Holliday – chamou a voz metálica de Mr. Braithwaite. Mrs. Holliday avançou em silêncio, recebeu o salário e passou para o outro lado.
– Bower... John Bower.
Um rapaz chegou-se ao balcão. Mr. Braithwaite, uma bisarma irascível, fuzilou-o com o olhar por detrás das lentes.
– John Bower! – voltou ele a chamar.
– Sou eu – disse o rapaz.
– Esta agora..., dantes as ventas eram outras – disse o luzidio Mr. Winterbottom, espreitando por cima do balcão. Os presentes riram-se à socapa, a pensarem no John Bower pai.
– Porque é que o teu pai não veio? – perguntou Mr. Braithwaite, num tom magistral e grandiloquente.
– Não anda bem – respondeu o rapaz, na sua voz aflautada.
– Devias dizer-lhe para largar a bebida – aconselhou o corpulento tesoureiro.
– E depois não te queixes, se ele te ferrar um pontapé – disse uma voz trocista lá de trás.
Todos se riram. O tesoureiro, avantajado e com ares importantes, olhou para a folha que se seguia.
– Fred Pilkington! – chamou, em tom neutro.
Mr. Braithwaite era um importante accionista da firma.
Paul sabia que só faltava um e depois era a vez dele. O coração começou a bater mais depressa. Foi empurrado de encontro à chaminé. Tinha a barriga das pernas a arder, mas não podia furar a barreira humana à sua volta.
– Walter Morel! – soou a voz metálica.
– Aqui – esganiçou-se Paul, da sua pequenez desajeitada.
– Morel... Walter Morel! – repetiu o tesoureiro, de folha de pagamentos na mão, pronto a passar à frente.
Paul foi acometido de convulsões nervosas e não conseguia, ou não queria, gritar. As costas dos homens apagavam-no por completo. Então, Mr. Winterbottom veio em seu auxílio.
– Ele tava aqui... onde tá ele? O miúdo do Morel?
O homem gordo, vermelhusco e calvo perscrutou a sala, assestando os olhos. Nisto, apontou para a chaminé. Os mineiros olharam também e, afastando-se, libertaram o rapaz.
– Aqui tá ele! – disse Mr. Winterbottom. Paul aproximou-se do balcão.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros... Atão, não respondes quando te chamam? – disse Mr. Braithwaite. Pousou um saco com cinco libras em prata com toda a força em cima da folha de pagamentos e, depois, num gesto rápido e delicado, pegou numa pequena pilha de dez libras em ouro e colocou-a ao lado da prata. As moedas de ouro escorregaram sobre o papel como um rio de brilho. O tesoureiro acabou de contar o dinheiro e o rapaz levou tudo a Mr. Winterbottom, no outro extremo do balcão, a quem deviam ser pagas a renda da casa e o aluguer das ferramentas. Aí chegado, novo percalço.
– Dezasseis xelins e seis dinheiros – disse Mr. Winterbottom.
O rapaz estava nervoso de mais para contar o dinheiro, pelo que empurrou algumas moedas de prata e meio soberano na direcção do funcionário.
– Quanto julgas tu que me destes? – perguntou Mr. Winterbottom.
O rapaz fitou-o, sem responder. Não fazia a menor ideia.
– Perdestes a língua?
Paul mordeu o lábio e empurrou mais algumas moedas de prata por cima do balcão.
– Na escola num t’insinaram a contar? – perguntou o homem.
– Só álgibra e franciú – disse um mineiro.
– E a ser sabido – acrescentou outro.
Paul sabia que por sua causa havia gente à espera. Com mãos trémulas, guardou o dinheiro no saco e saiu. Estas ocasiões eram para ele como as penas do Inferno.
Quando se apanhou cá fora, na estrada de Mansfield, sentiu-se infinitamente aliviado. O muro do parque estava coberto de musgo muito verde. Galinhas brancas e douradas debicavam à volta das macieiras de um pomar. Os mineiros serpenteavam rumo a casa. O rapaz seguia rente ao muro, envergonhado. Conhecia muitos dos homens, mas assim, todos sujos, não conseguia identificá-los, o que para ele era uma nova tortura.
Quando chegou à taberna New Inn, em Bretty, o pai ainda não tinha chegado. Mrs. Wharmby, a taberneira, conhecia-o. A avó dele, a mãe de Morel, fora amiga de Mrs. Wharmby.
– O teu pai ainda não chegou – disse ela, naquele tom meio atrevido, meio maternal, de mulher habituada a falar sobretudo com homens feitos. – Senta-te.
Paul sentou-se ao balcão, na beira de um banco alto. Alguns mineiros estavam a um canto a «dividir o bolo» – a distribuir o dinheiro – e outros vinham a entrar. Todos miravam o rapaz, sem dizer palavra. Finalmente, Morel chegou, todo desempenado e com um certo toque de galhardia, apesar da pretidão.
– Olá – disse ele, ternamente, para o filho. – Atão, inda conseguiste chegar primeiro do qu’eu? Queres beber alguma coisa?
Paul, tal como os irmãos, tinha crescido um anti-alcoólico convicto, e para ele era pior beber uma limonada à frente de todos aqueles homens do que tirar um dente.
A taberneira mirou-o dos pés à cabeça, penalizada, mas ao mesmo tempo ofendida com a rigidez moral de que dava mostras. Paul voltou para casa rubro de vergonha. Entrou em silêncio. Sexta-feira era dia de cozer o pão e havia geralmente uma carcaça quentinha à sua espera. A mãe veio dar-lha.
De repente, ele virou-se a ela furioso, de olhos a faiscar.
– Nunca mais entro naquele escritório.
– Porquê, o que é que aconteceu? – perguntou a mãe, surpreendida. Divertia-se imenso com os súbitos ataques de fúria deste filho.
– Nunca mais lá volto – afirmou ele.
– Pronto, está bem. Então, vai dizer isso ao teu pai.
Paul mastigava o pão como se tivesse alguma coisa contra ele.
– Não vou... Não vou mais buscar o dinheiro.
– Então talvez um dos miúdos do Carlin possa ir. Eles haviam de gostar de ficar com os seis dinheiros – disse Mrs. Morel.
Os seis dinheiros era tudo o que Paul recebia. Gastava-os quase todos a comprar presentes de aniversário, é certo, mas eram a sua semanada e prezava-os muito. Porém, disse:
– Pois que fique com eles! Eu não os quero.
– Muito bem – respondeu a mãe. – Mas não precisas de me tratar mal por causa disso.
– Eles são horríveis e ordinários... são horríveis, pronto, e eu não vou lá mais. Mr. Braithwaite pronuncia mal as palavras e Mr. Winterbottom diz «a gente semos».
– E é por isso que não queres lá voltar? – disse a mãe a sorrir.
O rapaz ficou calado. Estava muito pálido, com os olhos pretos e furiosos. A mãe voltou aos seus afazeres sem lhe dar mais importância.
– Eles metem-se todos à minha frente e eu não consigo sair donde estou – disse ele.
– Bem, meu filho, só tens de pedir licença – respondeu ela.
– E depois o Alfred Winterbottom diz, «O qu’é que t’insinam na escola?»
– A ele nunca ensinaram grande coisa – disse Mrs. Morel. – Lá isso é verdade... nem boas maneiras, nem inteligência... a única coisa que tem é manha.
– E vão eles e dizem, «Só álgibra e franciú.» Na escola, não ensinam francês.
– Mas, se ensinassem – disse a mãe, sorrindo – não era preciso ficares tão zangado... Portas-te duma maneira tão infantil, meu filho, quando alguém brinca contigo.
– E depois? – Paul olhou para a mãe quase a chorar, e ainda com mais raiva e ódio do que propriamente ofendido.
– És tão pateta – continuou ela. – Não consegues dizer simplesmente «agora é a minha vez», deixas-te ultrapassar e depois ficas furioso. A culpa é tua.
E, assim, lá o acalmou, embora à sua maneira. A ridícula hiper-sensibilidade dele confrangia-lhe o coração. Outras vezes, a fúria que via nos olhos do filho alertava-a, fazia a sua alma adormecida levantar a cabeça momentaneamente, surpreendida.
– Quanto foi desta vez? – perguntou.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros, e dezasseis xelins e seis dinheiros de retenção – replicou o rapaz. Foi uma boa semana... e só cinco xelins de retenções para o meu pai.
Assim, ela podia calcular quanto o marido tinha ganho, e chamá-lo à pedra se ele lhe desse pouco dinheiro. Morel guardava sempre para si o segredo do montante da semana.
Sexta-feira era a noite de cozer pão e de ir ao mercado. Regra geral, Paul ficava em casa a vigiar o pão. Gostava de ficar a desenhar ou a ler – adorava desenhar. Annie punha-se sempre ao fresco à sexta-feira à noite, e Arthur entretinha-se a brincar na rua, como de costume. Por isso, Paul ficava sozinho.
Mrs. Morel gostava muito de ir à compras. No exíguo terreiro no cimo da colina onde se juntavam as quatro estradas vindas de Nottingham e Derby, Ilkeston e Mansfield, eram montadas muitas barracas. Chegavam breques das aldeias em redor. O mercado enchia-se de mulheres, as ruas ficavam apinhadas de homens. Mrs. Morel costumava discutir com a vendedeira de rendas, simpatizava com o homem da fruta, que era muito falador – mas a mulher, essa era uma desavergonhada, sempre a dar conversa ao peixeiro, que era um patife, mas muito espirituoso – metia na ordem o vendedor de linóleo, mostrava-se distante com o homem do bricabraque, e só entrava na barraca das loiças quando se sentia atraída – ou arrastada – pelas florinhas que decoravam algum prato ou alguma travessa. Mas, sempre que isso acontecia, mostrava-se delicadamente reservada.
– Estava aqui a pensar quanto poderia custar isto – dizia ela.
– Sete dinheiros, por ser para si.
– Obrigada.
Pousava de novo a travessa e ia-se embora. Mas não era capaz de deixar o mercado sem a levar. E lá ia ela outra vez ao sítio onde as loiças estavam expostas pelo chão, e olhava de soslaio para a travessa, furtivamente, fingindo que não estava a olhar.
Era uma mulher franzina, de chapéu e fato preto. O chapéu já tinha quase três anos, para vergonha e desespero de Annie.
– Mãe! – implorava ela. – Não ponhas mais esse chapéu horroroso.
– E queres que eu ponha o quê? – retorquia a mãe, com aspereza. – Acho que está até muito bom.
Começara por ser enfeitado com uma pala, depois seguiram-se flores, e agora estava reduzido a uma rendinha preta e um pouco de azeviche.
– Tem tão mau aspecto – dizia Paul. – Não lhe pode dar um ar um pouco mais moderno?
– Posso é dar-te umas boas palmadas, para não seres atrevido – disse Mrs. Morel, e atava as fitas do chapéu preto debaixo do queixo, com determinação.
Contemplou a travessa uma vez mais. Tanto ela como o oleiro se sentiam pouco à vontade, como se entre eles existisse qualquer desentendimento. De repente, o oleiro exclamou:
– Quer levá-la por cinco dinheiros?
Ela estremeceu. O coração apertou-se-lhe. Mas, depois, baixou-se e pegou na travessa.
– Fico com ela – disse ela.
– Faz-me esse favor, não é? – disse o homem. – O melhor é cuspir-lhe em cima, como se faz quando nos dão uma prenda.
Mrs. Morel deu-lhe os cinco dinheiros com frieza.
– Não acho que ma esteja a dar, percebe – disse ela. – Se não quisesse, não ma deixava levar por cinco dinheiros.
– Neste país de miséria, já nos podemos dar por muito felizes se pudermos dar as nossas coisas – resmungou o homem.
– Pois é, há tempos bons e maus – disse Mrs. Morel.
Mas já tinha perdoado ao oleiro. Agora, eram amigos. Já se atrevia a mexer nas loiças expostas e sentia-se feliz.
Paul estava à espera da mãe. Adorava vê-la entrar em casa. Chegava sempre radiante, triunfante, cansada, carregada de embrulhos, mas rica de espírito. Ele ouvia os seus passinhos leves na entrada e levantava os olhos das pinturas.
– Oh! – suspirava ela, sorrindo-lhe da soleira da porta.
– Ena pá, como vem carregada! – exclamava Paul, pousando o pincel.
– Se venho! – dizia ela, ofegante. – A marota da Annie disse que ia ter comigo. Olha para o peso que eu trago!
Pousou o saco e os pacotes em cima da mesa.
– O pão já está cozido? – perguntou, dirigindo-se para o forno.
– O último está a crescer – respondeu ele. – Não precisa de ir ver, eu não me esqueci dele.
– Ai, aquele oleiro! – disse ela, fechando a porta do forno. – Lembras-te de eu te dizer como ele era antipático. Bom, agora já não acho que seja assim tão mau.
– Ah, não?
O filho não tirava os olhos dela. Mrs. Morel tirou o chapelinho preto.
– Não... Acho que ele acaba por não ganhar nada... bem, passa-se o mesmo com toda a gente, nos tempos que correm... e é isso que o deixa mal-encarado.
– A mim deixava com certeza – disse Paul.
– Bom, e não seria para admirar... E ele deixou-me ficar esta... Por quanto é que achas que ele me deixou ficar isto?
Tirou a travessa do papel que a embrulhava e contemplou-a, satisfeita.
– Mostre lá! – pediu Paul.
E ficaram os dois lado a lado a admirar a travessa.
– Adoro ver estas florinhas a enfeitar as coisas – disse Paul.
– Eu também. E lembrei-me do bule que me compraste...
– Um xelim e três dinheiros – disse Paul.
– Cinco dinheiros!
– Foi muito barata, mãe.
– Pois foi. Pode dizer-se que foi quase roubada. Mas já tinha feito muitas extravagâncias e não tinha dinheiro para mais. E, se ele não quisesse, não precisava de ma vender.
– Lá isso, não, não precisava – disse Paul, e ficaram os dois a consolar-se mutuamente do receio de terem roubado o oleiro.
– Podemos usá-la para pôr fruta cozida – alvitrou Paul.
– Ou leite-creme... ou doce de fruta – acrescentou a mãe.
– Ou rabanetes e alface – continuou ele.
– Não te distraias com o pão – disse a mãe, numa voz transbordante de alegria.
Paul foi espreitar o pão e bateu-lhe ao de leve na parte de baixo.
– Já está cozido – disse, mostrando-o à mãe. Ela bateu-lhe também.
– Pois está – respondeu ela, começando a tirar as compras do saco. – Oh, sou uma gastadora, uma perdulária... Sei que um dia me vai fazer falta.
Paul foi a saltitar para junto da mãe, para ver as últimas extravagâncias. Ela abriu um outro embrulho em papel de jornal e pôs à mostra algumas raízes de amores-perfeitos e boninas carmesim.
– Quatro dinheiros! – lamentou-se.
– Que barato! – exclamou ele.
– Pois é, e logo esta semana que eu estava sem um tostão.
– Mas são lindas! – exclamou ele.
– Então não são! – exclamou ela, dando lugar ao mais genuíno contentamento. – Paul... olha para esta florinha amarela... que bonita, não é... e uma cara que parece de velho!
– E parece mesmo! – exclamou Paul, baixando-se para cheirar. – E que bem que cheira! Mas está um bocado suja.
Correu para a copa, voltou com um pano molhado, e lavou o amor-perfeito com todo o cuidado.
– Agora, olhe para ele, está todo molhado! – disse Paul.
– Pois está! – exclamou ela, a transbordar de felicidade.
As crianças de Scargill Street consideravam-se muito selectas. Ao fundo da rua, onde viviam os Morels, não havia muita gente nova, e, por isso, os que havia eram mais unidos. Rapazes e raparigas brincavam uns com os outros: as raparigas participavam nas lutas e jogos violentos dos rapazes, e os rapazes tomavam parte nas danças de roda e nos jogos de faz-de-conta das raparigas.
Annie, Paul e Arthur gostavam das noites de Inverno, quando não chovia. Deixavam-se ficar dentro de casa até os mineiros terem regressado todos, até ser noite fechada e a rua ficar deserta. Nessa altura, enrolavam um cachecol ao pescoço, pois prescindiam do casacão, tal como os outros filhos dos mineiros, e saíam de casa. A entrada da rua estava completamente às escuras daquele lado e a noite estendia-se vazia, com um pequeno emaranhado de luzinhas lá em baixo, na mina de Minton, e um outro bem mais longe, na direcção oposta, na de Selby. As luzes mais distantes pareciam prolongar as trevas para sempre. As crianças olhavam ansiosas para o lampião solitário postado ao fundo da rua, na extremidade da ladeira da encosta. Se o escasso espaço de luz estava deserto, os dois rapazes ficavam desolados. Encostavam-se ao candeeiro, de mãos nos bolsos e costas viradas à noite, aborrecidíssimos, a olharem para as casas às escuras. Nisto, avistaram um bibe por baixo de um casaquinho curto, e uma rapariga de pernas altas a correr para eles.
– Onde tão o Billy Pillins e a vossa Annie e o Eddie Dakin?
– Não sei.
Mas isso não tinha importância – agora já eram três, e punham-se a correr à volta do poste até os outros aparecerem a gritar. Daí em diante, era brincadeira a valer.
Existia apenas este candeeiro. Para trás dele, só a imensa concha de trevas que parecia conter a noite inteira. À sua frente, um caminho largo e escuro percorria a cumeada. De vez em quando, saía alguém desse caminho e dirigia-se para o vale, pelo carreiro, sendo tragado pela noite a uns escassos dez metros de distância. As crianças continuaram a brincar.
Eram excessivamente unidas devido ao isolamento em que viviam. Mas, se se zangavam, a brincadeira ficava completamente estragada. Arthur era muito susceptível, e Billy Pillins, ou melhor, Philips, era-o ainda mais. Paul tinha de tomar o partido de Arthur, e a Paul juntava-se Alice, enquanto Billy Pillins contava sempre com o apoio de Emmie Limb e Eddie Dakin. Depois, envolviam-se os seis à bulha, odiando-se com toda a fúria do mais genuíno ódio, e corriam para casa apavorados. Paul nunca se havia de esquecer de ter visto uma noite, depois de uma destas assanhadas lutas fratricidas, uma grande lua vermelha elevar-se lentamente no céu por cima da estrada deserta da cumeada, sem vacilar, como pássaro gigantesco; e a imagem bíblica que o assaltou, da lua a transformar-se em sangue. No dia seguinte, apressou-se a ir fazer as pazes com Billy Pillins, e as desenfreadas brincadeiras retomaram o seu curso à luz do candeeiro solitário, rodeadas da mais negra escuridão. Mrs. Morel, ao entrar na sala, ouvia as crianças a cantar ao longe:
«Uso sapatos de couro espanhol,
Meias de seda, para meu deleite;
Anéis nos dedos, que brilham ao sol,
E só tomo banho em tinas de leite.»
Pareciam tão absorvidas no jogo, pelo som das suas vozes que penetrava as trevas, que dir-se-ia o canto de criaturas selvagens. A mãe estremecia e entendia-os quando voltavam às oito horas, afogueados, de olhos brilhantes e língua solta e vibrante.
Todos eles gostavam desta casa de Scargill Street pela sua largueza de horizontes, pela sua abertura sobre a concha de mundo que dominava. Nas noites de Verão, as mulheres vinham arrimar-se à cerca da encosta, a conversar, viradas para poente, vendo o sol apagar-se num lampejo e espraiando o olhar até aos montes do Derbyshire, recortados ao longe num céu de carmim, como a crista negra de uma salamandra.
Neste Verão, as minas não estavam a trabalhar em pleno, especialmente as de carvão mole. Mrs. Dakin, que morava ao lado de Mrs. Morel, costumava ficar a ver os homens subirem a encosta lentamente sempre que se assomava à cerca para sacudir o tapete. Viu logo que eram mineiros e ficou à espera lá em cima, alcandorada na colina, alta, magra, olhar astuto e penetrante, uma quase ameaça para os pobres mineiros que a custo trepavam a ladeira. Eram apenas onze horas. A neblina que, como fino crepe negro, cobre o horizonte das manhãs estivais não se tinha ainda dissipado sobre as colinas frondosas desenhadas à distância. O primeiro homem alcançou a cancela, que chiou à sua passagem.
– O quê, mandaram-no embora? – gritou Mrs. Dakin.
– Mandaram, sim senhora.
– É uma pena deixarem-nos vir embora – disse ela, sarcástica.
– Lá isso é – respondeu o homem.
– E não apetece nada voltar para casa agora – disse ela.
O homem seguiu o seu caminho. Quando Mrs. Dakin atravessava o quintal, de volta a casa, avistou Mrs. Morel, que ia despejar as cinzas da lareira.
– Acho que Minton fechou, Mrs. Morel – gritou ela.
– É uma vergonha! – exclamou Mrs. Morel indignada.
– Pois é... Vi mesmo agora o Jont Hutchly.
– Bem podiam ter poupado as solas dos sapatos – disse Mrs. Morel, e voltaram as duas para casa indignadas.
Os mineiros, de caras quase limpas, voltavam para casa. Morel detestava ter de se vir embora. Adorava as manhãs soalheiras, mas ir para a mina e mandarem-no embora logo a seguir estragava-lhe a boa disposição.
– Santo Deus... já? – exclamou a mulher, vendo-o entrar.
– Qu’hei-d’eu fazer, mulher! – berrou ele.
– E eu não tenho comida que chegue.
– Num faz mal, como o farnel que levei – vociferou ele, pateticamente. Sentia-se envergonhado e irritado.
Os filhos, quando chegaram da escola, estranharam ver o pai a comer as duas grossas fatias de pão com manteiga que tinha levado para a mina, já muito secas e sujas.
– Porque é que o meu pai tem de comer o farnel aqui em casa? – perguntou Arthur.
– Porqu’ela ficava toda zangada s’eu num o comesse – respondeu Morel.
– Lá estás tu com histórias! – exclamou a mulher.
– E achas qu’é pra deitar fora? – disse Morel. – Eu num sou esquisito como vocês, que desperdiçam tudo. Se me cai um bocado de pão na mina, no meio daquela porcaria toda, apanho-o e como-o.
– Os ratos comiam-no – disse Paul – e já não era um desperdício.
– Pão cum manteiga pròs ratos? Nem pensar nisso – disse Morel. – Sujo ou limpo, antes comê-lo eu que deitá-lo fora.
– Podias dá-lo aos ratos e comprares mais com o dinheiro que gastas na cerveja – disse Mrs. Morel.
– Ah, podia...? – exclamou o marido.
O Outono que se seguiu foi de míngua. William tinha acabado de partir para Londres e a mãe sentia a falta do dinheiro que ele lhe costumava entregar. Ainda lhe mandou dez xelins por uma ou duas vezes, mas no início tinha muitas compras a fazer. As suas cartas chegavam com regularidade, uma vez por semana. Escrevia longas cartas à mãe em que lhe contava o que fazia, os amigos que tinha, as lições que trocava com um francês, como gostava de viver em Londres. Para a mãe era como se ele estivesse com ela, como no tempo em que morava em casa. E ele todas as semanas lhe escrevia cartas francas e cheias de espírito. Era nele que ela pensava o dia inteiro, enquanto fazia a limpeza da casa. Ele estava em Londres, ia ter sorte. Era quase como se fosse o seu cavaleiro andante, ostentando as cores dela na batalha.
Vinha agora a casa passar cinco dias pelo Natal. Não havia memória de tantos preparativos. Paul e Arthur correram os campos à procura de azevinho e sempre-viva. Annie fez enfeites de papel recortado à moda antiga, e a despensa estava farta como nunca. Mrs. Morel fez um bolo de natal enorme, magnífico, e sentindo-se uma rainha, mostrou a Paul como se pelavam amêndoas. Ele pelou as oleaginosas com reverência, contando-as, uma a uma, não fosse alguma perder-se. Dizia-se que as claras subiam mais num lugar frio e, por isso, Paul foi para a copa, onde o frio era quase insuportável, batendo-as sem parar e correndo excitadíssimo a mostrar a mãe como as claras cresciam, cada vez mais firmes e nevadas.
– Olhe, mãe... estão óptimas, não estão?
Depois, pôs um bocadinho na ponta do nariz e soprou-o para o ar.
– Então, isso não é para estragar – disse a mãe.
Toda a gente andava excitadíssima. William ia chegar na véspera de Natal. Mrs. Morel passou revista à despensa. Havia um grande bolo de passas e um bolo de farinha de arroz; tartes de geleia e de limão, e duas grandes travessas cheias de empadas de carne. E ainda faltavam umas tartes de amêndoa e de queijo que ela preparava a toda a pressa. A casa estava toda enfeitada. A coroa de azevinho, salpicada de bagas bem vermelhas e pendurada entre grinaldas cintilantes, rodopiava por cima da cabeça de Mrs. Morel enquanto ela recortava a massa das tartes na cozinha. A fogueira, imensa, crepitava. A casa rescendia a bolos e massa folhada. William devia chegar às sete horas, mas o mais provável era atrasar-se. Os irmãos tinham ido ao seu encontro. A mãe ficara sozinha. Mas, por volta de um quarto para as sete, Morel voltou para casa. Marido e mulher nada disseram. Ele sentou-se no cadeirão, ansioso, sem saber o que fazer, e ela continuou com os seus cozinhados. A sua comoção só era traída pelo modo meticuloso como ia fazendo as coisas. E o relógio continuou a bater.
– A que horas disseste qu’ele chegava? – perguntou Morel, pela quinta vez.
– O comboio chega às seis e meia – respondeu ela, enfaticamente.
– Então vai chegar por volta das sete e dez.
– Deus te oiça, mas o comboio vai atrasar-se algumas horas no Midlands – disse ela, aparentando indiferença. Fazia-o, no entanto, com a esperança de acontecer o contrário e ele chegar mais cedo. Morel foi até à porta, para ver se o via. Depois voltou para dentro.
– Credo, homem! – disse ela. – Parece que tens bicho-carpinteiro.
– Em vez de estares pr’aí a falar, num era melhor arranjares-lhe alguma coisa para comer? – disse o marido.
– Tenho muito tempo para isso – respondeu ela.
– Num é o que me parece – contrapôs ele, virando-se amuado na cadeira. Ela começou a limpar a mesa da cozinha. A chaleira já apitava. E eles à espera.
Entretanto, os outros três filhos estavam em Lethley Bridge, uma estação da linha do Midlands, a duas milhas de casa. Esperaram uma hora. Chegou um comboio, e nada. Ao fundo da linha, as luzes verdes e vermelhas acendiam e apagavam. Estava muito escuro e fazia muito frio.
– Vai perguntar-lhe se o comboio de Londres já passou – disse Paul a Annie quando avistaram um homem de boné de pala.
– Não vou nada – disse Annie. – Fica mas é calado, senão ele inda nos manda embora.
Mas Paul estava morto por que o homem soubesse que eles esperavam alguém que vinha de Londres, o que lhes dava uma certa importância. Porém, tinha medo, muito medo, de abordar um desconhecido, e ainda por cima de boné de pala. As crianças nem se atreviam a entrar na sala de espera, com medo de que os mandassem embora, e que alguma coisa acontecesse enquanto não estavam na plataforma. E lá continuaram à espera, no frio e na escuridão.
– Já está hora e meia atrasado – disse Arthur, já a desesperar.
– Bem – disse Annie –, é véspera de Natal.
O silêncio crescia entre eles. O irmão não vinha. Perscrutaram a escuridão ao longo da linha férrea. Lá ao fundo, ficava Londres! Uma lonjura infinita, pensaram. Tudo podia acontecer quando se vinha de Londres. Estavam demasiado preocupados para falarem. Enregelados, tristes e mudos, continuavam encostados uns aos outros na plataforma.
Finalmente, passadas mais de duas horas, avistaram os faróis de uma locomotiva a descrever uma curva na distância. Um bagageiro aproximou-se a correr. As crianças chegaram-se para trás com os corações a galope. Um enorme comboio com destino a Manchester parou. Abriram-se duas portas e, de uma delas, saiu William. Os irmãos atiraram-se a ele. Ele, todo contente, entregou-lhes muitos embrulhos e logo explicou que aquele grande comboio só tinha parado numa estação insignificante como Lethley Bridge por causa dele, já que a paragem não estava programada.
Entretanto, os pais iam ficando cada vez mais preocupados. A mesa estava posta, a costeleta grelhada, tudo estava a postos. Mrs. Morel pôs o seu avental preto. Por baixo, tinha o seu melhor vestido. Depois sentou-se e fingiu concentrar-se na leitura. Os minutos arrastavam-se como uma tortura.
– Hum! – disse Morel. – Já passa hora e meia.
– E aquelas crianças à espera! – disse ela.
– O comboio inda num pode ter chegado – disse ele.
– É o que eu digo. Na véspera de Natal vêm com horas de atraso.
Estavam os dois implicativos de tanta ansiedade. O freixo gemia lá fora fustigado por um vento gélido, implacável. E tanta noite a separar Londres do lar! Mrs. Morel sofria. O tiquetaque do relógio irritava-a sobremaneira. Estava a fazer-se tarde. A espera estava a tornar-se insuportável.
Por fim, o ruído de vozes e de passos na entrada.
– Já chegou! – gritou Morel, saltando da cadeira.
Depois, deu um passo à retaguarda. A mãe correu em direcção à porta e ficou à espera. Seguiu-se um tropel de passos, a porta escancarou-se e William apareceu. Largou no chão o saco de viagem e abraçou-se à mãe.
– Mater! – disse ele.
– Meu filho! – gritou ela.
E, durante não mais de dois segundos, ela abraçou-o e beijou-o. Depois, afastou-se e disse, com a naturalidade possível:
– Mas que grande atraso!
– Foi, não foi? – exclamou ele, voltando-se para o pai.
– Então, pai!
E os dois homens trocaram um aperto de mão.
– Então, meu rapaz!
Os olhos de Morel estavam rasos de lágrimas.
– Távamos a ver que nunca mais chegavas – disse ele.
– Então não havia de chegar! – exclamou William, voltando-se para mãe.
– Estás com óptimo aspecto – disse Mrs. Morel, a rir, toda orgulhosa.
– Claro... – respondeu o filho. – Basta ter voltado para casa.
Era um jovem desempenado, alto, garboso e de olhar intrépido. Olhou em volta, para a sempre-viva e o azevinho, e para as empadas que estavam dentro das forminhas em cima do fogão.
– Graças a Deus que nada mudou, mãe – disse ele, satisfeito. Todos ficaram calados por um momento. De repente, ele deu um salto em frente, tirou uma empadinha do fogão e meteu-a na boca de uma só vez.
– Safa, já alguma vez viram um saco roto como este? – exclamou o pai.
William trazia um nunca mais acabar de presentes para todos. Gastara quanto tinha para os comprar. A casa foi invadida por uma certa atmosfera de luxo e prosperidade. Para a mãe, uma sombrinha com o cabo beige com enfeites dourados. Ela guardou-a para quando morresse, e antes queria perder tudo o que tinha a ficar sem ela. Todos receberam coisas bonitas e, além disso, ele trouxe também montes de guloseimas desconhecidas naquelas paragens: geleias de frutos, ananás cristalizado, coisas que as crianças pensavam que só o esplendor de Londres tornava possíveis. E Paul não se calava de gabar tais guloseimas diante dos amigos.
– Ananás autêntico, às fatias, e transformado em cristal... bem bom!
Todos estavam loucos de felicidade. Não há nada que chegue ao próprio lar, e eles amavam-no com paixão, apesar dos maus bocados lá passados. Chegavam visitas, todos vinham dar-lhe os parabéns. Os vizinhos vinham ver o que Londres tinha feito de William e todos achavam que ele estava «um verdadeiro cavalheiro, e um belo rapaz, isso é que estava!».
Quando ele se foi embora outra vez, os irmãos foram chorar às escondidas para sítios diferentes, Morel foi meter-se na cama abatidíssimo e Mrs. Morel sentia-se como se estivesse drogada, como se os seus sentimentos tivessem paralisado. Amava o filho com verdadeira paixão.
William trabalhava no escritório de um advogado ligado a uma grande companhia de navegação e, em Junho, o chefe proporcionou-lhe uma viagem ao Mediterrâneo num dos barcos da companhia, por um preço irrisório. Mrs. Morel mandou-lhe dizer: «Vai, sim, meu filho. Podes não voltar a ter uma oportunidade como essa, e, para mim, ver-te a navegar no Mediterrâneo é talvez ainda melhor do que ter-te aqui em casa.» Mas William veio passar as duas semanas de férias a casa. Nem o Mediterrâneo, apelando embora a toda a sua ânsia de viajar e ao seu deslumbramento de homem pobre diante da opulência do Sul, podiam mantê-lo longe de casa. E isso era para a mãe compensação bastante para todos os sacrifícios.
V
PAUL ENFRENTA A VIDA
MOREL era um homem negligente, indiferente ao perigo, sofrendo por isso inúmeros acidentes. De tal forma que, quando Mrs. Morel ouvia chiar as rodas de uma carroça de transporte de carvão, estacando à sua porta, corria logo para a janela da sala à espera de ver o marido lá sentado, com o rosto macilento por baixo da camada de fuligem, e o corpo inerte, vítima de qualquer contusão ou outro percalço. Se era ele, saía de casa a correr para o ajudar.
Cerca de um ano após William ter ido para Londres, e logo depois de Paul ter saído da escola, mas quando ainda não tinha arranjado trabalho, estava Mrs. Morel no andar de cima e o filho na cozinha, entretido a pintar – fazia maravilhas com os pincéis – quando bateram à porta. Enfadado, Paul pousou o pincel para ir abrir. Simultaneamente, a mãe abriu a janela e espreitou para a rua.
Era um mineiro, um rapazito, que batia à porta.
– É aqui que mora o Walter Morel? – perguntou.
– É, sim! – respondeu Mrs. Morel. – Aconteceu alguma coisa?
Mas ela já tinha adivinhado.
– O seu marido aleijou-se – disse o rapaz.
– Oh, meu Deus! – exclamou ela. – Quando não acontece nada é que é para admirar. O que foi desta vez?
– Num sei bem, mas foi na perna... Levaram-no prò hospital.
– Valha-me Deus! – exclamou ela. – Ah, este homem... este homem...! Não me dá cinco minutos de descanso, eu morra aqui se não é verdade! O polegar já estava quase bom e agora... Tu viste-o?
– Vi-o lá ’baixo. E vi-os trazerem-no pra cima num elevador... tava branco cum’á cal. E o qu’ele berrou quando o Dr. Fraser o examinou na casa das lanternas... sempre aos berros e a praguejar... e a dizer que queria qu’o trouxessem pra casa... que num ia prò hospital...! E o rapaz calou-se.
– Isso é bem dele... quer vir para casa, para me dar trabalho... Obrigada, meu filho... Que cansada que eu estou de tudo isto... cansada e farta... isso é que eu estou!
Desceu as escadas. Paul tinha recomeçado a pintar, mecanicamente.
– Deve ser grave... para o levarem para o hospital... – continuou ela. – Mas que criatura mais descuidada! Os outros homens não podem ter assim tantos acidentes... É isso, ele queria deitar o trabalho todo para cima das minhas costas... E logo agora, que as coisas estavam finalmente a correr um bocadinho melhor... Vá, deixa isso, agora não há tempo para pinturas... A que horas tenho comboio? Agora vou ter de ir até Kreston... o quarto tem de esperar.
– Eu acabo de o arrumar – disse Paul.
– Não precisas... às sete horas estou de volta, acho eu... E o barulho que ele vai fazer... nem quero pensar... E aqueles calhaus de granito de Tinder Hill... ele bem pode chamar-lhes pedrinhas... os solavancos vão dar cabo dele. Não sei porque não consertam a estrada... naquele estado... e com tanta gente a passar por lá na ambulância... Devia haver aqui um hospital... Já compraram o terreno... e não iam faltar acidentes para o manter a funcionar. Mas não, têm de os levar não sei quantas milhas naquela ambulância ronceira até Nottingham. É uma vergonha! E o estardalhaço que ele vai fazer, já sei como é! Quem terá ido com ele?... O Barker, provavelmente. Coitado, vai desejar estar em qualquer lado menos ali. Mas vai cuidar bem dele, eu sei. E agora sei lá quanto tempo ele vai ficar naquele hospital... e ele que detesta! Enfim, se for só a perna, já não é mau.
Ia falando enquanto se preparava para sair. Despindo o corpete à pressa, baixou-se para a caldeira, enquanto a água corria lentamente para o jarro.
– Era bem melhor se esta caldeira não existisse! – exclamou ela, apertando a asa do jarro com impaciência. Tinha uns braços fortes e bem torneados, surpreendentes numa mulher da sua estatura.
Paul arrumou as suas tralhas, pôs a chaleira ao lume e pôs a mesa.
– Só há um comboio às quatro e vinte – disse ele. – Tem tempo de sobra.
– Não tenho, não! – gritou ela, piscando os olhos e fitando-o por cima da toalha, enquanto limpava a cara.
– Tem, sim... Tem pelo menos de beber uma chávena de chá. Quer que vá consigo até Keston?
– Vires comigo para quê, pode saber-se?... Ora deixa cá ver o que é que eu tenho de lhe levar... Valha-me Deus!... A camisa lavada... e é uma sorte estar lavada... mas ficava melhor se a tivesse posto ao ar... as meias... isso ele não vai querer... e uma toalha, acho eu... e lenços... e que mais?
– Um pente, uma faca, um garfo e uma colher – disse Paul. Já não era a primeira vez que o pai ficava internado no hospital.
– Sabe Deus em que estado ele tinha os pés – continuou Mrs. Morel, penteando o cabelo castanho e muito comprido, fino como seda e já salpicado de fios prateados. – Ele nunca se esquece de se lavar da cintura para cima, mas para baixo acha que já não é preciso. Mas devem apanhar lá muitos como ele.
Paul tinha posto a mesa e preparou duas fatias finas de pão com manteiga para a mãe.
– Aqui tem – disse, pondo uma chávena de chá em frente ao lugar dela.
– Agora não tenho tempo – disse ela, secamente.
– Mas tem de ter... Olhe, já está tudo pronto – insistiu o filho.
Ela acabou por se sentar, bebeu uns golinhos de chá e comeu um pouco de pão em silêncio. Estava a pensar.
Daí a nada, tinha de se ir embora, para percorrer a pé as duas milhas e meia até à estação de Keston. Já tinha metido no saco de rede tudo o que ele precisava. Paul ficou a vê-la subir a estrada, entre as sebes de arbustos, pequenina e franzina, e o seu coração sofria por ela, por vê-la sujeita a mais esta provação. E ela, correndo ligeira de tanta ansiedade, sentia atrás de si o coração do filho a acompanhá-la, a tomar para si a parte possível deste fardo, a dar-lhe forças. E, quando chegou ao hospital, pensou: «Ele vai ficar preocupadíssimo quando eu lhe disser que é assim tão grave... o melhor é ter cuidado.» E, de regresso a casa, sentia que tinha com quem partilhar o fardo.
– É grave? – perguntou Paul, mal a viu entrar.
– Mais ou menos – respondeu ela.
– O quê?
Ela suspirou, sentou-se e desapertou as fitas do chapéu. O filho viu-a levantar o queixo e desatar a laçada com os dedos pequeninos, mas endurecidos pelo trabalho.
– Bem – respondeu ela – não se pode dizer que seja perigoso... mas a enfermeira diz que foi uma pancada horrível. Estás a ver... foi um grande bocado de rocha que lhe caiu em cima da perna... aqui, salvo seja... uma fractura múltipla... e tem bocados de osso a sair para fora...
– Ui, que horror! – exclamaram os filhos.
– E claro que ele diz que vai morrer – continuou Mrs. Morel. – É mesmo dele dizer isso... «Estou arrumado, cachopa!», disse ele, olhando para mim. «Não digas disparates», disse eu. «Não vais morrer de uma perna partida, por pior que esteja»... «Só saio daqui num caixão», queixava-se ele. «Bem!», disse eu, «Se queres que eles te levem a passear ao jardim dentro dum caixão, quando estiveres melhor, é só pedires e eles fazem-te a vontade»... «Se acharmos que lhe vai fazer bem», acrescentou a Irmã. Ela é bem simpática, a Irmã, mas muito rigorosa.
Mrs. Morel tirou o chapéu. Os filhos mantiveram-se em silêncio, expectantes.
– Claro que ele está mal – prosseguiu ela. – E vai levar muito tempo a recompor-se. Foi um acidente muito grave e ele perdeu muito sangue... e, já se vê, a lesão é muito perigosa. Ninguém sabe o tempo que vai levar a sarar. E depois há a febre e a gangrena... se correr mal, ele até pode morrer... Mas lá no hospital... e depois ele tem bom sangue... e boa carnadura... Por isso não vejo razão para que tenha de correr mal... Claro que a ferida é muito grande...
Ela estava lívida, da angústia e da emoção. Os três filhos perceberam que o estado do pai era muito grave e a casa ficou silenciosa, perpassada de ansiedade.
– Mas ele melhora sempre – disse Paul, passado um bocado.
– Foi exactamente o que eu lhe disse – exclamou a mãe.
Todos se moviam de um lado para o outro sem fazerem o menor ruído.
– Ele de facto parecia que estava a morrer – disse Mrs. Morel. – Mas a Irmã diz que é das dores.
Annie foi arrumar o casaco e o chapéu da mãe.
– Ficou a olhar para mim quando eu me vim embora...! Eu disse: «Agora tenho de ir, Walter, por causa do comboio... e das crianças...» E ele ficou a olhar para mim... Custou-me tanto...
Paul pegou outra vez no pincel e continuou a pintar. Arthur foi lá fora buscar mais carvão. Annie ficou sentada, muito triste. E Mrs. Morel continuou imóvel, pensativa, na cadeira de baloiço que o marido lhe fizera, quando esperavam o primeiro filho. Estava triste e com muita pena de ver um homem sofrer tanto. Mas, mesmo assim, no fundo do coração, onde a chama do amor devia arder, tinha um vazio. No momento em que toda a sua compaixão de mulher estava exacerbada ao máximo, em que cuidaria dele dia e noite até cair para o lado, em que, se pudesse, de bom grado tomaria as suas dores, algures, num recôndito da alma, era indiferença que encontrava, por ele e pelo seu sofrimento. A dor que sentia vinha sobretudo desta incapacidade de o amar, mesmo quando ele despertava nela as mais fortes emoções. E assim se deixou ficar, pensativa, por um tempo.
– E nisto – disse ela de repente –, quando já ia a meio do caminho, vi que tinha saído com as botas de andar por casa... olhem para isto... – Era um par de botas velhas de Paul, castanhas e com as biqueiras muito gastas. – Nem sabia onde me havia de meter com a vergonha – acrescentou.
Na manhã seguinte, quando Annie e Arthur estavam na escola, Mrs. Morel conversou mais com Paul enquanto ele andava a ajudá-la a arrumar a casa.
– Encontrei o Barker no hospital. Não parecia muito atrapalhado, coitado. «Então», disse eu, «como correu a viagem?» «Num me pregunte, ’nha senhora!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «Eu sei como ele é.» «Mas foi muito custoso pra ele, Mrs. Morel, iss’é que foi!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «A cada safanão, eu inté pensava qu’o coração m’ia saltar pela boca», disse ele. «E os gritos qu’ele dav’às vezes, ’nha senhora... nem que me paguem uma fortuna, me quero ver noutra igual.» «Entendo perfeitamente», disse eu. «A coisa tá feia a valer», disse ele, «e vai levar muito tempo pra ficar bom.» «Também acho que sim», disse eu. Eu gosto de Mr. Barker... gosto mesmo. É um homem e tanto.
Paul continuava a pintar em silêncio.
– E já se sabe – continuou Mrs. Morel –, para um homem como o teu pai é muito duro estar no hospital. Para ele não há normas nem obrigações. E não deixa que ninguém lhe toque, a não ser que não tenha outro remédio. Quando esmagou os músculos da coxa, e tinha de mudar o penso quatro vezes por dia, ele deixava mais alguém mudar-lho a não ser eu ou a mãe dele?... Nem pensar nisso. Claro que agora vai sofrer no hospital, com todas aquelas enfermeiras... Não me agradou nada ter de o deixar lá ficar. Foi um dó de alma quando tive de lhe dar um beijo e vir-me embora...
Mrs. Morel falava com o filho quase como se estivesse a pensar em voz alta para ele ouvir, e ele colaborava o melhor que podia, partilhando com ela o sofrimento, para a aliviar. Afinal, mesmo sem saber, ela partilhava quase tudo com ele.
Morel passou muito mal. Durante uma semana o seu estado foi crítico. Depois, começou a melhorar e, quando souberam que o mau tempo tinha passado, toda a família respirou de alívio e a vida seguiu feliz.
Não passaram grandes dificuldades enquanto Morel esteve internado. Recebiam catorze xelins por semana da mina, dez da assistência aos enfermos, e cinco do Fundo de Invalidez. Além disso, os capatazes traziam todas as semanas qualquer coisa a Mrs. Morel, cinco ou sete xelins, pelo que ela vivia com bastante desafogo. E enquanto Morel ia melhorando no hospital, em casa a família vivia em paz e alegria. Aos sábados e quartas-feiras, Mrs. Morel ia visitar o marido a Nottingham. No regresso trazia sempre qualquer lembrança para os filhos: um tubo de guache para Paul, outras vezes papel cavalinho; postais para Annie, de que toda a família usufruía durante dois ou três dias antes de a deixarem enviá-los a alguém; ou então uma serra para Arthur, ou um belo bocado de madeira. E depois contava animadamente as suas aventuras nos grandes armazéns. Não tardou que os empregados da loja de gravuras a ficassem a conhecer e soubessem tudo sobre Paul. A rapariga da livraria simpatizava até muito com ela. Mrs. Morel tinha histórias sem fim para contar quando voltava de Nottingham. Ficavam os três sentados até à hora de irem para a cama a ouvirem-na contar histórias, a meterem a sua colherada, a conversarem. Depois, era geralmente Paul quem abafava o borralho.
– Agora, sou o homem da casa – dizia ele à mãe, todo ufano. Descobriram como o lar podia ser um lugar de perfeita tranquilidade e, embora nenhum deles ousasse admitir tal desumanidade, quase lamentaram quando souberam que o pai não tardaria a voltar para casa.
Paul tinha agora catorze anos e andava à procura de um emprego. Era um rapaz baixo e franzino, de cabelo castanho-escuro e olhos azul-claros. O seu rosto já tinha perdido os traços arredondados da infância e parecia-se agora com o de William, mais duro, quase austero, e com extraordinária mobilidade. Em geral, parecia estar sempre atento, cheio de vida e de ternura; umas vezes, o seu sorriso, igualzinho ao da mãe, abria-se pronto e encantador; outras, quando algum obstáculo lhe travava o passo ao espírito, a expressão do seu rosto adquiria fealdade e estupidez. Era um daqueles rapazes que se portam como palhaços desajeitados quando não são compreendidos ou sentem que não lhes dão o justo valor, mas que, com igual rapidez se transformam em criaturas adoráveis à primeira prova de ternura.
O primeiro contacto com as coisas era sempre penoso para ele. Aos sete anos tivera de se sujeitar à tortura de entrar para a escola. Mas depois até gostava. E agora, sentindo que era chegada a hora de enfrentar a vida, atravessava crises de avassaladora timidez. Pintava com bastante talento e inteligência para a sua idade, e sabia um pouco de francês, alemão e matemática, coisas que Mr. Heaton lhe havia ensinado. Como a mãe dizia, não era suficientemente forte para o trabalho manual, e também não se interessava por fazer coisas com as suas próprias mãos, preferindo correr, passear pelos campos, ler ou pintar.
– Que queres ser na vida? – perguntava-lhe a mãe.
Não fazia a menor ideia. Teria gostado de continuar a pintar, mas isso nem lhe passou pela cabeça, pois era impossível. Não havia nada que lhe interessasse muito fazer. Mas agora era urgente que começasse a ganhar dinheiro. E, uma vez que não achava que o seu trabalho valesse muito em termos monetários, e sabia que um homem ganhava em qualquer emprego trinta ou trinta e cinco xelins por semana, respondia invariavelmente:
– Qualquer coisa.
– Isso não é resposta – dizia Mrs. Morel.
Mas era a única resposta verdadeira que ele podia dar. As suas ambições, em termos materiais, eram ganhar tranquilamente os seus trinta ou trinta e cinco xelins por semana algures perto de casa, e depois, quando o pai morresse, ter uma casinha no campo, onde viveria com a mãe feliz para sempre, a pintar e a passear o quanto lhe apetecesse. Por agora, era este o seu programa. Tinha-se porém em grande conta, julgando as outras pessoas em relação a si próprio e classificando-as impiedosamente. Às vezes, pensava que talvez pudesse vir a ser um pintor a sério, mas por enquanto não queria alimentar tal sonho.
– Então tens de procurar nos anúncios do jornal – disse a mãe.
Paul ficou a olhar para ela. Parecia-lhe nova humilhação e mais uma tortura a suportar. Mas não disse nada. Desde manhãzinha só tinha um pensamento a martelar-lhe na cabeça: «Tenho de ir ver os anúncios de empregos.»
Este pensamento ensombrava-lhe a manhã e matava-lhe a alegria de viver. Sentia o coração apertar-se-lhe num nó.
Por fim, às dez horas, lá foi ele. As pessoas consideravam-no um rapaz envergonhado, reservado. Ao subir a rua ensolarada, tinha a sensação de que todos os que encontrava iam pensar: «Lá vai ele para a sala de leitura da Cooperativa, para procurar um emprego no jornal. Não consegue arranjar nada. Acho que está a viver à custa da mãe.» Lá chegado, subiu furtivamente a escadaria de pedra por detrás da loja de tecidos e espreitou para a sala de leitura. Geralmente havia por lá uma ou duas pessoas: velhos desocupados, já sem préstimo, ou mineiros «de baixa». Entrou muito retraído, e ficou deveras aflito quando eles levantaram a cabeça; sentou-se à mesa e fingiu estar a passar os olhos pelas notícias. Sabia no que eles estavam a pensar: «O que fará um miúdo de treze anos numa sala de leitura, agarrado a um jornal?» E isso magoava-o.
Depois, pôs-se a olhar lá para fora, pensativo. E sentia-se já presa do industrialismo. Por cima do velho muro fronteiriço de tijolo vermelho grandes girassóis miravam divertidos as mulheres que passavam apressadas, levando qualquer coisa para o almoço. O vale estava coberto de searas radiantes batidas pelo sol. Lá no meio, duas minas agitavam os seus finos penachos de vapor. Nas encostas distantes avistavam-se as florestas de Aldersley, tão cerradas e fascinantes. E logo o coração lhe esmoreceu. Sentia-se aprisionado. Chegara ao fim a vida em liberdade naquele vale que tanto amava.
A carroça da cerveja vinha de Keston estrada acima, carregada de barris – quatro de cada lado – apertados que nem feijões numa vagem. O carroceiro, encarrapitado no seu trono e oscilando pesadamente no assento, não passou a grande distância dos olhos de Paul. O cabelo do homem, de cabeça pequena e fusiforme, estava quase todo branco, descorado pelo sol, e nos braços grossos e avermelhados, balouçando lassamente sobre o avental de estopa, cintilavam pêlos também brancos. A face afogueada reluzia, quase adormecida de tanto sol. Os cavalos, castanhos e elegantes, seguiam a seu bel-prazer, mostrando serem eles os senhores da situação.
Paul queria ser estúpido. «Quem me dera», pensou de si para si, «ser gordo como ele e passar a vida estirado ao sol como um cão. Quem me dera ser um porco e condutor duma carroça de cerveja.»
Depois, vendo a sala finalmente vazia, copiou rapidamente um anúncio para um bocado de papel, e depois outro, e saiu à socapa, sentindo-se imensamente aliviado. A mãe examinou os anúncios.
– Sim – disse ela. – Podes tentar.
William tinha mandado uma carta admiravelmente redigida em linguagem comercial e Paul copiou-a com algumas alterações. A caligrafia do rapaz era execrável, pelo que William, que fazia tudo bem feito, fervia de impaciência.
O irmão mais velho estava a ficar muito pretensioso, ao descobrir que em Londres se podia dar com homens de uma classe muito superior à dos seus amigos de Bestwood. Alguns dos seus colegas do escritório tinham estudado leis e estavam a fazer uma espécie de estágio. William, dado o seu feitio extrovertido, fazia sempre amigos por onde passava e não tardou que começasse a frequentar a casa de pessoas que, em Bestwood, teriam olhado com desdém para o inacessível gerente do banco local e tratado com indiferença o próprio pastor. Começou, por isso, a achar-se um homem importante e até se admirava da facilidade com que se tinha tornado um cavalheiro.
As cartas que escrevia à mãe ilustravam bem a satisfação que sentia.
«The Myrmidons
Limpsfield
Mater querida,
É uma da manhã. Imagine o seu filho a escrever-lhe sentado numa velha cadeira de carvalho, com um candeeiro eléctrico dos mais modernos à frente dele, em cima da mesa. Vestido a rigor, com os botões de punho que lhe ofereceu quando fez 21 anos e achando-se o melhor do mundo. Só queria que a mãe o pudesse ver. Em comparação, Salomão, em toda a sua glória, deve ter-se sentido mal vestido.
Estou a passar o fim-de-semana com o Loosemore, e aproveitei a oportunidade para lhe escrever. ...»
A mãe ficou contente de o ver tão satisfeito. O seu quarto em Walthamstow era tão deprimente. Mas agora as cartas do filho deixavam transparecer uma súbita febre de viver. Afectado por tantas e tão súbitas mudanças, não tinha os pés assentes na terra, e parecia deixar-se arrastar vertiginosamente pelo turbilhão da sua nova vida. A mãe temia por ele. Sentia que ele se estava a perder. Tinha ido a um baile, ido ao teatro, andado de barco no rio, saído com os amigos; mas ela sabia que, depois, tinha ficado até altas horas acordado no quarto gélido a estudar latim, pois queria subir no escritório e estudar leis o mais depressa possível. Agora, nunca mandava dinheiro à mãe. A sua nova vida levava-lhe o pouco que ganhava. Ela também não queria que ele lho mandasse, excepto às vezes, quando as dificuldades eram maiores e dez xelins teriam sido o suficiente para a tirar de apuros. Mas continuava a sonhar com o que o filho faria com ela a apoiá-lo. Nem por um segundo seria capaz de admitir toda a angústia que passava por causa dele.
Entretanto, William começara a falar muito numa rapariga que tinha conhecido num baile, uma morena muito bonita e muito nova, uma verdadeira senhora, por quem todos os homens andavam perdidos de amor.
«Duvido que te perdesses por ela, meu filho, se não visses todos os outros perdidos também. As multidões fazem-nos sentir seguros e vaidosos. Mas tem cuidado, e pensa como te sentirás quando te vires sozinho e triunfante...»
William ficou ofendido com os reparos da mãe e não desistiu dos seus intentos. Tinha levado a rapariga a dar um passeio no rio: «Se a mãe a visse, ia entender o que eu sinto. Alta, elegante, com uma pele transparente, a mais transparente de todas as peles de azeitona, cabelo negro de azeviche e uns olhos esverdeados tão brilhantes e trocistas como luzes reflectidas à noite sobre as águas. Admito que seja um pouco mordaz enquanto não a conhecer. E, além disso, veste-se como as mulheres mais elegantes de Londres. Devo dizer-lhe que, quando ela passeia em Piccadilly com o seu filho, ele, por mais que se esforce, não aparenta nem metade do orgulho que sente.»
Mrs. Morel lia e perguntava-se no seu íntimo, se o filho não andaria a passear em Piccadilly com uma mulher apenas elegante e bem vestida, em vez de uma mulher de quem se sentisse próximo. Mas felicitou-o, no seu modo reticente. E enquanto estava encostada ao tanque, a mãe, preocupada, pensava no filho. Via-o casado com uma mulher cara e elegante e um pequeno ordenado, levando a vida conforme podia, numa casa feia e acanhada dos subúrbios. «E daí...», pensava ela, «é por certo tolice minha... vontade de arranjar complicações.» No entanto, o seu coração raramente sossegava, não fosse William fazer alguma asneira.
Entretanto, Paul foi chamado para se apresentar numa firma de acessórios ortopédicos, a Thomas Jordan, em Nottingham, Spaniel Row, número 21. Mrs. Morel estava radiante.
– Estás a ver! – exclamou, de olhos brilhantes. – Só escreveste quatro cartas e recebes resposta logo à terceira. Tens sorte, meu filho, como eu sempre disse.
Paul olhou para a perna de pau adornada com meias elásticas e outros acessórios que constituía o logotipo do papel timbrado de Mr. Jordan, e ficou alarmado. Até aí nem sabia que existiam meias elásticas. Parecia-lhe sentir o mundo dos negócios com o seu sistema de regras e valores e a sua impessoalidade, e isso atemorizava-o. Parecia-lhe também monstruoso que se pudesse fazer negócio com pernas de pau.
Numa bela terça-feira, manhã cedo, mãe e filho saíram juntos de casa. Era Agosto e o calor abrasava. Paul caminhava com o coração aperreado. Mil vezes a dor física, por maior que fosse, a este sofrimento irracional de se ver exposto perante estranhos, sujeito a ser aceite ou rejeitado. No entanto, conversava animadamente com a mãe. Jamais lhe confessaria o sofrimento que estas situações lhe causavam e de que ela só em parte suspeitava. Ia alegre como um passarinho. Postou-se diante da bilheteira, em Bestwood, e ficou a ver a mãe tirar o dinheiro para os bilhetes. Ao reparar nas luvas pretas que trazia, quase de criança e já muito velhas, com que retirou algumas moedas da carteira também coçada, o seu coração contraiu-se de dor e amor por ela. Ela estava muito excitada e bem-disposta, e ele sofria antecipadamente, pois sabia que ela se iria pôr a falar em voz alta diante dos outros passageiros.
– Olha para aquela vaca. Parece tola! A andar às voltas como se estivesse no circo.
– Deve ser algum moscardo – disse Paul, quase a bichanar.
– Algum quê? – perguntou ela, desabrida, sem complexos.
Depois, ficaram calados, pensativos. Paul não conseguia deixar de sentir a presença dela à sua frente. Nisto, os olhos de ambos encontraram-se e ela sorriu-lhe – um sorriso único, íntimo, belo e cintilante, cheio de amor. Em seguida, puseram-se a olhar pela vidraça. Mas ela voltou-se para ele de repente e disse, de forma bem audível:
– Sinceramente, acho que vais conseguir. E, se não conseguires, enfim, não te podes queixar só por não teres conseguido o terceiro emprego a que concorreste, pois não? Mas eu acho que consegues. És um rapaz de sorte, embora não a mereças – Assim falava ela, para todos ouvirem!
O comboio transpôs com lentidão as dezasseis milhas que os separavam do destino, e a viagem terminou. Mãe e filho meteram por Station Street com o entusiasmo de amantes a viver uma aventura. Em Carrington Street, pararam para contemplarem do parapeito as barcaças que passavam no canal.
– Parece mesmo Veneza – disse ele, vendo o sol reflectido na água entre os muros altos das fábricas.
– Talvez – respondeu ela, sorrindo. Ficaram deslumbrados com as lojas.
– Estás a ver aquela blusa? – disse ela. – Ficava mesmo bem à nossa Annie. E só custa uma libra, onze xelins e três dinheiros. Não é barato?
– E é toda bordada – disse o filho.
– É verdade.
Tinham ainda muito tempo, e por isso não precisavam de se apressar. Aos seus olhos, a cidade era estranha e fascinante. Mas o rapaz, apreensivo, era como se tivesse um nó no estômago. Apavorava-o a entrevista com Thomas Jordan.
Eram quase onze horas pelo relógio da igreja de São Pedro. Viraram para uma rua estreita que ia dar ao castelo. Era uma rua sombria, de casas velhas, com lojas baixas e soturnas e as portas dos prédios pintadas de verde-escuro, com grandes argolas de latão e degraus amarelo-ocre avançando sobre o passeio; ao lado, uma outra loja, de outros tempos, cuja montra diminuta parecia um olho astuto e semicerrado. Mãe e filho caminhavam devagar, olhando para as portas, à procura do letreiro Thomas Jordan & Filho. Era como caçar em plena coutada. A excitação atingia o auge.
De súbito, avistaram uma entrada ampla e escura, com os nomes de várias firmas afixados na parede e, entre eles, o da Thomas Jordan.
– É aqui – disse Mrs. Morel. – Mas... onde é que será?
Olharam em volta. De um lado, uma fábrica de papel, lúgubre e bizarra; do outro, o Commercial Hotel.
– É ali ao fundo – informou Paul.
Aventuraram-se pela arcada, como se penetrassem na bocarra de um dragão, indo desembocar num pátio amplo, semelhante a um poço, completamente rodeado de edifícios. O chão estava pejado de palha, caixas e cartões. O sol batia em cheio num caixote de onde saíam palhas que se espalhavam pelo chão como fios de ouro. Mas, fora isso, o lugar era escuro como uma mina. Havia várias portas e dois lanços de escadas. Mesmo em frente, numa porta suja e envidraçada, ao cimo da escada, ressaltavam as palavras fatídicas Thomas Jordan & Filho – Acessórios Ortopédicos. Mrs. Morel foi à frente, seguida pelo filho. Ao subir ao patíbulo, Carlos I tê-lo-á feito certamente com o coração mais leve do que Paul Morel ao subir atrás da mãe os degraus imundos que conduziam à tal porta também imunda.
Mrs. Morel empurrou a porta e ficou agradavelmente surpreendida. Diante dela estendia-se um imenso armazém com embalagens de papel pardo espalhadas por todo o lado, e os empregados, de mangas arregaçadas, movimentavam-se de um lado para o outro com um ar perfeitamente descontraído. A luz não feria a vista, as embalagens em papel brilhante tornavam-se luminosas, os balcões eram de madeira escura. A atmosfera era silenciosa e acolhedora. Mrs. Morel deu dois passos em frente e aguardou. Paul colocou-se atrás da mãe. Ela trazia o seu chapéu de domingo, com o véu preto descido sobre a cara, e ele a gola branca larga, que todos os rapazes usavam, e um fato de corte à caçador.
Um dos empregados olhou para eles. Era alto e magro, de rosto miúdo e olhar vivo e atento. Depois, os seus olhos percorreram a sala até à outra extremidade, onde se via um gabinete envidraçado; só então se aproximou. Não disse uma palavra, inclinou-se apenas perante Mrs. Morel, numa atitude prestável e interrogativa.
– Poderei falar com Mr. Jordan? – pediu ela.
– Vou já chamá-lo – respondeu o jovem.
Dirigiu-se ao gabinete envidraçado. Um homem idoso, de suíças brancas e faces coradas levantou os olhos da secretária. Paul achou-o parecido com um lulu da Pomerânia. Depois, o homenzinho atravessou o armazém para vir ao encontro deles. Tinha pernas curtas, era atarracado e envergava um casaco de alpaca. E lá vinha ele, de orelha arrebitada, por assim dizer, com ar resoluto e olho inquiridor.
– Bom dia! – disse, hesitante, dirigindo-se a Mrs. Morel, sem saber se se tratava ou não de uma cliente.
– Bom dia... Vim com o meu filho... Paul Morel... O senhor pediu-lhe que se apresentasse esta manhã.
– Acompanhem-me – disse Mr. Jordan, com uma frieza e desenvoltura que ele acreditava serem apropriadamente empresariais.
Mãe e filho acompanharam o industrial e entraram numa salinha desarrumada, com cadeirões de couro negro e já muito lustroso de tanto ser usado pelos clientes. Em cima da mesa estava uma pilha de fundas para hérnias – umas bandas de couro amarelo, pré-lavado, atadas em molho. Pareciam novinhas em folha. Paul sentiu o cheiro a couro lavado e perguntou-se o que seriam aquelas coisas. Estava tão atordoado que só reparava no aspecto exterior do que o rodeava.
– Sente-se! – disse Mr. Jordan, ríspido, convidando Mrs. Morel a sentar-se numa cadeira de crina. Ela sentou-se à beirinha, numa posição instável. O homenzinho vasculhou então em cima da secretária e pegou numa folha de papel.
– Foste tu que escreveste esta carta? – desferiu ele, intempestivo, colocando diante dos olhos de Paul um papel que ele logo reconheceu como sendo a carta que mandara.
– Fui, sim – respondeu Paul.
De momento, o rapaz era dominado por dois sentimentos: em primeiro lugar, sentia-se culpado por estar a mentir, uma vez que a carta tinha sido escrita por William; e, em segundo, estranhava como a sua carta podia parecer tão diferente na mão avermelhada e sapuda daquele homem de quando estava em cima da mesa da cozinha. Era como se uma parte dele mesmo se tivesse transviado, e desagradava-lhe a maneira como o homem pegava na carta.
– Onde aprendeste a escrever? – disse o velho, com brusquidão.
Paul limitou-se a olhar para ele envergonhado, sem responder.
– Ele escreve muito mal – interrompeu Mrs. Morel, apologética, levantando o véu em seguida. Paul ficou furioso por a mãe não mostrar mais orgulho perante este homem tão comesinho, mas, ao mesmo tempo, adorou ver o seu rosto sem véu.
– E dizes que também sabes francês? – inquiriu o homenzinho, ríspido, como sempre.
– Sim – respondeu Paul.
– Em que escola andaste?
– Na primária.
– E foi lá que aprendeste?
– Não... eu... – o rapaz ruborizou, e não adiantou mais nada.
– Foi o padrinho que lhe deu umas lições – disse Mrs. Morel, quase numa súplica, e com ar distante.
Mr. Jordan hesitou. E, então, mantendo o seu ar agressivo – parecia ter as mãos sempre prontas a agir – tirou do bolso uma outra folha de papel, desdobrou-a ruidosamente e entregou-a a Paul.
– Ora lê lá isto – disse.
Era uma carta em francês, escrita à mão, numa caligrafia estrangeira, esguia e incerta, que o rapaz não conseguia decifrar. Paul ficou parado a olhar para o papel, como se hipnotizado.
– «Monsieur» – começou ele, olhando em seguida muito aflito para Mr. Jordan.
– É a... é a...
Queria dizer «letra», mas já nem esta palavra conseguia pronunciar. Sentindo-se um perfeito idiota, e furioso com Mr. Jordan, voltou-se em desespero para o papel.
– «Exmo. Senhor... Queira fazer o favor de me enviar»... hum... hum... não consigo perceber a... hum... «dois pares... gris fil bas... de meias cinzentas de algodão... hum... hum... sans... sem...» hum... não consigo perceber a... hum... «doigts... dedos»... hum... não consigo perceber a...
Queria dizer «letra», mas a palavra teimava em não sair. Vendo-o atrapalhado, Mr. Jordan tirou-lhe o papel da mão e leu:
– «Queira fazer o favor de me enviar na volta do correio dois pares de meias cinzentas de algodão, sem os dedos dos pés...»
– Bem – atalhou Paul prontamente – doigts quer dizer apenas dedos... duma maneira geral...
O homenzinho olhou para ele. Tanto se lhe dava que doigts quisesse ou não dizer simplesmente dedos, o que ele sabia era que, para os fins em vista, queria dizer dedos dos pés.
– Só dedos, podia ser das mãos; com que então, dedos das mãos numas meias?! – ripostou Mr. Jordan.
– Bem, a palavra francesa quer mesmo dizer só dedos – teimava o rapaz.
Paul detestava aquele homenzinho que tentava fazer dele parvo. E Mr. Jordan olhava para aquele rapaz pálido, estúpido e atrevido à sua frente, sentado, muito calado, com aquele ar reservado dos pobres que têm de depender dos favores de outras pessoas.
– Quando é que ele pode começar a trabalhar? – perguntou o industrial.
– Bem... – disse Mrs. Morel –, quando o senhor desejar. Ele já deixou a escola.
– E vai continuar a viver em Bestwood?
– Sim... mas pode estar... chegar à estação... a um quarto para as oito...
– Hum!
Paul acabou por ser contratado como aspirante, a ganhar oito xelins por semana. O rapaz não abriu mais a boca depois de teimar que doigts era mesmo dedos (das mãos). Saiu atrás da mãe e desceu as escadas. Mrs. Morel olhou para ele com os seus olhos azuis iluminados de amor e contentamento.
– Acho que vais gostar do emprego – vaticinou.
– Doigts quer dizer só dedos, mãe... e com aquela letra... Eu não percebia a letra.
– Não te preocupes, meu filho... Verás que ele é boa pessoa, e, além disso, não vais ter de contactar muito com ele... Não achaste simpático aquele empregado mais novo?... Tenho a certeza de que vais gostar dos teus colegas.
– Mas a mãe não achou Mr. Jordan um homem grosseiro? Será ele o dono daquilo tudo?
– Cá para mim, começou por ser operário e depois singrou na vida – disse Mrs. Morel. – Não deves dar tanta importância às pessoas. Elas não te querem ofender... é a maneira de falarem... estás sempre a pensar que as pessoas te querem ofender... mas olha que não querem.
Estava um dia cheio de sol. No grande largo deserto do mercado, o céu azul iluminava-se e as pedras de granito da calçada brilhavam cintilantes. As lojas de Long Row estavam mergulhadas na penumbra e a sombra enchia-se de cor. No sítio onde os trens puxados a cavalos atravessavam o mercado, erguia-se uma fiada de bancas de fruta, com os frutos luzindo ao sol – maçãs e montes de laranjas avermelhadas, rainhas-cláudias e bananas. Quando mãe e filho passaram, sentiram no ar o odor morno da fruta. A pouco e pouco, os sentimentos de raiva e ignomínia de Paul foram soçobrando.
– Onde havemos de ir almoçar? – perguntou a mãe.
– E se comprássemos qualquer coisa e fôssemos comer para o Arboretum?
– Não. Nada disso.
– Então vamos ao Morley.
– O chá que lá servem é requentado. Não... tu conseguiste o emprego... vamos fazer uma refeição como deve ser.
Aquilo era para eles uma verdadeira extravagância. Paul só tinha ido a uma casa de pasto uma ou duas vezes na vida, e, mesmo assim, só para tomar chá e um pãozinho. A maior parte dos habitantes de Bestwood achavam que a única coisa para que tinham dinheiro quando iam a Nottingham era chá e pão com manteiga, ou, quando muito, carne afiambrada. Uma refeição cozinhada era um autêntico luxo, e Paul sentia-se até culpado. Encontraram um lugar que lhes pareceu bastante acessível. Porém, quando Mrs. Morel consultou a lista, caiu-lhe a alma aos pés, tal era o preço dos pratos. Mandou vir, por isso, empadas de rim e batata, que era o mais barato.
– Não devíamos ter vindo aqui, mãe – disse Paul.
– Deixa lá – respondeu ela. – Nunca mais cá voltamos.
Depois insistiu para que o filho, que era guloso, comesse uma pequena torta de mirtilos.
– Não quero, mãe – disse ele.
– Queres, sim – teimou a mãe. – Claro que queres.
E pôs-se a ver se chamava a criada. Mas a criada andava toda atarefada e Mrs. Morel não a quis importunar nesse momento, pelo que ficaram os dois à espera de que a rapariga se dignasse atendê-los, enquanto ela andava por ali a cirandar, fazendo olhinhos aos clientes.
– Que desavergonhada! – disse Mrs. Morel, virando-se para Paul. – Olha para ela, a servir pudim àquele homem, e ele chegou muito depois de nós.
– Não tem importância, mãe – disse Paul.
Mrs. Morel estava irritada, mas era pobre de mais e a refeição demasiado modesta para ter a coragem de reclamar os seus direitos imediatamente. E, assim, fartaram-se de esperar.
– Vamos embora, mãe? – sugeriu Paul. Mrs. Morel levantou-se. A rapariga ia a passar.
– Trazia-nos uma torta de mirtilos, por favor? – disse Mrs. Morel em voz suficientemente audível.
Mas a rapariga virou-se e olhou para ela com insolência.
– É para já – retorquiu.
– É que já esperámos um bom bocado – disse Mrs. Morel. A rapariga não tardou com a torta. Mrs. Morel pediu a conta secamente.
Paul tinha vontade de se enfiar pelo chão dentro. Pasmava perante a dureza da mãe. Sabia que haviam sido anos e anos de luta que a tinham ensinado a reclamar os seus direitos, por mais insignificantes que fossem, pois ela era tão tímida como ele.
– É a última vez que ali vou para comer seja o que for! – exclamou ela, já na rua, satisfeita por se ver livre daquele pesadelo.
– Vamos dar uma vista de olhos ao Keep’s e ao Boot’s, e a mais um ou dois armazéns, está bem?
Teceram comentários sobre as gravuras expostas para venda, e Mrs. Morel queria por força comprar ao filho um pequeno pincel de pêlo de marta, com que ele andava a sonhar, mas Paul recusou liminarmente mais esta generosidade, e foi esperando por ela estoicamente à porta dos fanqueiros e dos retroseiros, morto de tédio, mas feliz por ver a mãe tão entretida. E o passeio continuou.
– Veja só aquelas uvas pretas! – disse Paul. – Até fazem crescer água na boca... Há anos que ando desejoso de prová-las, mas ainda vou ter de esperar algum tempo para as poder comprar.
A mãe parou deliciada à porta da florista, a aspirar os aromas.
– Oh!... Oh!... Não é simplesmente uma maravilha?
Apesar de a loja estar na penumbra, Paul vislumbrou uma jovem elegante, vestida de preto, a espreitar por detrás do balcão, com ar divertido.
– Estão a olhar para si – disse Paul, tentando arrastar a mãe dali para fora.
– Mas... o que é aquilo? – exclamou ela, recusando-se a sair de onde estava.
– Goivos! – respondeu ele, cheirando o ar apressadamente. – Veja, têm um alguidar cheio.
– Pois têm... vermelhos e brancos!... Esta agora... nunca reparei que os goivos pudessem cheirar assim! – E, para grande alívio do rapaz, a mãe saiu da porta, mas só para se ir pôr diante da montra.
– Paul! – exclamou ela, virando-se para o filho, que tentava esquivar-se ao olhar da tal jovem elegante toda de preto, a empregada da loja. – Paul! Anda ver isto!
Ele aproximou-se relutante.
– Olha aqueles brincos-de-princesa! – disse ela, apontando.
– Humm! – fez ele, mostrando-se interessado. – Parece que as flores vão cair a todo o momento; são tão grandes e tão pesadas.
– E tantas! – exclamou a mãe.
– E já viu a maneira como se inclinam, com os filamentos e os nódulos...?
– Pois é! – disse ela. – São lindas!
– Sempre gostava de saber quem será que as vai comprar? – disse ele.
– Não faço ideia! – respondeu ela. – Nós não somos.
– Na nossa sala morriam logo.
– É, aquele buraco horrível, gélido e sem réstia de sol... mata qualquer planta que lá se ponha... e a cozinha atabafa-as.
Fizeram algumas compras e seguiram para a estação. Olhando ao longo do canal, pelos intervalos sombrios dos edifícios, avistaram o castelo, alcandorado no seu promontório negro coberto de vegetação, miraculosamente iluminado por um sol suave e radioso.
Vai ser tão bom vir dar um passeio à hora do almoço! – disse Paul. – Posso andar por aqui e ver tudo isto. Vou adorar.
– Vais, sim, meu filho – concordou a mãe.
Paul tinha passado uma tarde agradabilíssima em companhia da mãe. Chegaram a casa já a tarde esmorecia, feliz, ardente, e também cansada. Na manhã seguinte, o rapaz preencheu a requisição para o passe de comboio e levou-a à estação. Quando voltou, estava a mãe a começar a lavar o chão. Ele sentou-se com as pernas cruzadas em cima do sofá.
– O homem diz que o passe chega no sábado.
– E quanto custa? – perguntou ela.
– Mais ou menos uma libra e onze xelins.
A mãe continuou a lavar o chão em silêncio.
– Acha caro? – perguntou Paul.
– Não mais do que eu pensava – respondeu ela.
– E eu vou ganhar oito xelins por semana... – disse ele.
A mãe não respondeu, continuando com o seu trabalho. Por fim, disse:
– O William prometeu-me, quando foi para Londres, que me mandava uma libra por mês. E só me mandou dez xelins... por duas vezes. E sei que agora não tinha um tostão, se eu lho pedisse. Não que eu queira o dinheiro dele, mas nesta altura ficava-lhe bem dar uma ajuda para o passe, embora eu não esteja a contar com isso.
– Ele ganha muito bem – disse Paul.
– Cento e trinta libras. Mas os filhos são todos iguais. Uns mãos largas nas promessas, mas quando se trata de as cumprirem... é o que se vê.
– O William gasta mais de cinquenta xelins por semana só com ele – disse Paul.
– E eu mantenho esta casa com menos de trinta – retorquiu a mãe. – E ainda tenho de inventar o dinheiro para os extras. Mas eles, depois de saírem de casa, querem lá saber de ajudar a mãe. Mais depressa o gastava com aquela doidivanas toda aperaltada.
– Ela há-de ter dinheiro, se é assim tão fina – disse Paul.
– Pois havia, mas não tem. Eu já lhe perguntei... E eu sei bem que ele não lhe compra uma pulseira de ouro sem razão. A mim nunca ninguém me comprou uma pulseira de ouro.
– Ora, a mãe também nunca quis nenhuma.
– Lá isso é verdade... Mas, se quisesse, era o mesmo.
– O pai nunca lhe comprou nada?
– Comprou... um cartucho de maçãs... e foi tudo... todo o dinheiro que gastou comigo, antes de nos casarmos.
– Porquê?
– Porque eu era uma parva, e quando ele me dizia: «O que queres qu’eu te compre?», eu respondia: «Nada.» Ele lembrava-se lá de me trazer alguma coisa! E o William só ia comprar uma pulseira de ouro para uma espertalhona cheia de nove horas.
– Aposto que ela já tem muitas – disse o rapaz.
– Tem muitas, dizes tu? Mas ele também tinha de lhe dar uma, para parecer importante. Ele quer lá saber! Eu pude sustentá-lo enquanto ele ganhava uma miséria, mas depois, mal ele se apanha com dinheiro que se veja, e a gente pensa que vai ter um pouco de paz e segurança, ele desanda, e lá começa a luta de novo, sem ter a quem recorrer quando é preciso alguma coisa, sem ninguém que nos estenda a mão.
– A mãe devia pedir-lho.
– E depois ele tinha de o ir pedir emprestado. Isso também eu faço, se tivermos de chegar aí. Tenho a certeza, de que não vou ter de lhe ficar a dever favores. E ele não precisa de me escrever a gabar-lhe os encantos e a falar das óperas a que vão assistir. Nem quero saber. Ele importa-se lá comigo... Eles querem lá saber! Têm a vida deles para viver, fazem o que lhes apetece, e eu... sim... o que represento eu para ele?... Um estorvo nunca hei-de ser, nem lhe hei-de pedir nada... E espero que o teu pai viva muito tempo, e que seja eu a ir à frente, pois é muito triste ter de viver à custa dos filhos.
– Oh, mãe... não tarda, eu começo a ganhar dinheiro, e a mãe pode ficar com tudo, porque eu nunca me hei-de casar.
– Essa já é velha, o William também dizia o mesmo. Dá tempo ao tempo e vais ver como a música é outra.
– Não vai ser, não.
– Então está bem.
E continuou a lavar o chão, em silêncio.
– Que vai fazer? – perguntou Paul.
– Acho que vou ter de meter um vale na Cooperativa... e isso vai sair da minha parte e vou receber menos dividendos. Não me apetecia nada ir lá buscar mais dinheiro outra vez.
O rapaz sentia-se muito infeliz, muito aborrecido. Era ele que precisava do dinheiro, e isso deixava-o amargurado.
– Bem – disse Paul –, em breve serei aumentado, e a mãe pode ficar com o dinheiro todo.
– Tudo isso é muito bonito – disse a mãe. – Mas não é assim que arranjo uma libra e trinta xelins até sábado de manhã.
William fazia progressos com a sua Cigana, como ele lhe chamava. Pedira à rapariga – uma tal Louisa Lily Denys Western – uma fotografia para mandar à mãe. A fotografia chegou: era uma morena bonita, de perfil, com um sorriso afectado, e que bem podia estar completamente nua, pois não se vislumbrava qualquer peça de roupa no retrato, só o colo desnudo.
«Sim senhor», escreveu Mrs. Morel ao filho, «a fotografia da Louie é deveras impressionante e vê-se que deve ser muito atraente. Mas achas, meu filho, que foi sensato e elegante da parte dela dar ao namorado aquela foto para ele mandar à mãe, e pela primeira vez? Tem uns ombros lindos, sem dúvida, como mandaste dizer. Mas eu não estava à espera de os ver tão bem logo da primeira vez...»
Morel encontrou a fotografia na sala, em cima da cómoda, e veio até à cozinha com ela presa entre o polegar e o indicador.
– Quem vem a ser esta? – perguntou ele à mulher.
– É a rapariga com quem o nosso William anda de namoro – respondeu Mrs. Morel.
– Hum! Ganda brasa, pelo menos parece... e num lhá-de fazer bem nenhum... Quem é ela?
– Chama-se Louisa Lily Denys Western.
– Muito prazer! – exclamou o mineiro. – É alguma artista?
– Não, não é. Ele diz que é uma senhora da sociedade.
– Não hajam dúvidas – exclamou o pai, sem tirar os olhos da fotografia. – Com qu’intão uma senhora? E há-de ter muito dinheiro, pra manter as aparências.
– Não tem, não... vive com uma tia velha, que ela detesta, e aceita tudo o que lhe dão.
– Hum! – disse Morel, pousando a fotografia. – Atão ele foi um gand’otário em ter-se metido c’uma tipa dessas.
«Querida Mater», respondeu William. «Lamento que não tenha gostado da fotografia. Nunca me passou pela cabeça, quando lha mandei, que pudesse achá-la pouco decente. Mas já disse à Ciganita que o retrato não correspondia exactamente à sua noção de decoro e decência, e ela vai mandar-lhe outro, que eu espero lhe agrade mais. Ela está sempre a ser fotografada. Na verdade, os fotógrafos estão sempre a pedir-lhe insistentemente para ela se deixar fotografar, absolutamente de graça.»
A nova fotografia acabou por chegar, acompanhada de um bilhete idiota da rapariga. Desta vez, a jovem estava com um ves-tido de noite em cetim preto, de decote quadrado, com mangas curtas e tufadas e folhos de renda preta cobrindo-lhe os braços elegantes.
– Será que só usa vestidos de noite? – disse Mrs. Morel, sarcasticamente. – Tenho a certeza de que eu devia estar impressionada.
– Está a ser antipática, mãe – disse Paul. – Eu acho a primeira fotografia, a dos ombros nus, bem bonita.
– Achas? – disse Mrs. Morel. – Pois olha, eu não.
Na segunda-feira de manhã, o rapaz levantou-se às seis horas, para começar a trabalhar. No bolso do colete levava o passe do comboio que tanta amargura representava. Gostava de olhar para ele, todo às riscas amarelas. A mãe metera-lhe o almoço num cestinho de verga com tampa, e ele saiu de casa quando faltava um quarto para as sete, para apanhar o comboio das sete e um quarto. Mrs. Morel veio despedir-se do filho ao portão.
A manhã estava imaculada. Do grande freixo, pendiam os frutos verdes e delgados – as crianças chamavam-lhes «pombinhos» – cintilando alegremente, soprados pela brisa matinal, suspensos sobre os jardins das vivendas. O vale estava coberto de uma névoa escura, mas brilhante, através da qual luziam as searas já maduras, e em contacto com a qual logo se condensava o vapor que se elevava da mina de Minton. De quando em vez, o vento passava em baforadas. Paul espraiou a vista para lá das altas florestas de Aldersley, onde os campos brilhavam imensos, e nunca o apelo do lar fora tão forte.
– Adeus, mãe – disse ele, sorrindo, mas com a alma entristecida.
– Adeus – respondeu ela, com alegria e ternura na voz.
Mrs. Morel ficou parada na estrada, com o seu avental branco, vendo o filho atravessar os campos. Era um rapaz baixo e robusto, cheio de vida. Ao vê-lo caminhar pelos campos fora, sentiu que ele seria capaz de chegar onde quisesse. Pensou no William. Esse teria saltado a cerca em vez de passar pela cancela. Esse estava em Londres a viver à grande. E agora Paul ia trabalhar para Nottingham. Tinha dois filhos lançados no mundo. Podia pensar em dois lugares, dois grandes centros industriais, e sentir que tinha posto um homem em cada um, e que esses homens seriam capazes de conseguir tudo o que ela ambicionava; provinham dela, eram parte dela, e as suas vitórias seriam também as dela. Durante toda a manhã só pensou em Paul.
Às oito horas, Paul subiu as escadas lúgubres da Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan e deteve-se timidamente junto da primeira prateleira que encontrou cheia de embalagens, à espera de que alguém viesse ao seu encontro. O lugar ainda não tinha acordado. Os balcões estavam cobertos de espessas camadas de poeira. Ainda só tinham chegado dois funcionários. Paul ouvia-os conversar a um canto, enquanto tiravam os casacos e arregaçavam as mangas da camisa. Eram oito e dez. A pontualidade não era evidentemente a preocupação dominante no local. Paul continuou a ouvir as vozes dos dois funcionários. Depois, ouviu alguém tossir e viu no gabinete ao fundo do armazém um empregado já velho e caduco, com um bonezinho redondo de veludo preto bordado a verde e vermelho, a abrir cartas. Paul continuou à espera.
Um dos empregados mais novos dirigiu-se ao velhote e cumprimentou-o efusivamente e em voz muito alta. Estava visto que o velho «chefe» era surdo. A seguir, o jovem voltou para o seu balcão com passo arrogante. A certa altura reparou em Paul.
– Olá! – disse ele. – És o novo rapaz?
– Sou – respondeu Paul.
– Hum! Como te chamas?
– Paul Morel.
– Paul Morel?... Está bem. Vem comigo.
CONTINUA
Quando as crianças já tinham idade suficiente para ficarem sozinhas em casa, Mrs. Morel entrou para o Grémio Feminino. Tratava-se de um pequeno clube de mulheres ligado à Cooperativa de Revenda, que reunia às segundas-feiras à noite numa sala muito comprida por cima da mercearia Bestwood Co-op. Aí, as mulheres discutiam os benefícios de uma política de cooperação e outras questões de importância social. Por vezes, Mrs. Morel tinha de apresentar uma comunicação, e as crianças estranhavam ver a mãe, que passara a vida a fazer a lida da casa, sentar-se agora a escrever, com a rapidez que a caracterizava, a pensar, a consultar livros, e a continuar a escrever. Nessas ocasiões, sentiam por ela o mais profundo respeito.
Mas gostavam do Grémio. Era a única concessão que faziam à mãe de boa vontade – por um lado, por ser uma coisa de que ela tanto gostava, e, por outro, pelas guloseimas que depois lhes trazia. Alguns maridos hostis, que achavam que as mulheres estavam a ficar independentes de mais, chamavam ao Grémio o «clube dos traques-tagarelas», ou seja, o clube da má-língua. A verdade é que, graças ao Grémio, as mulheres podiam olhar para as suas casas, para as condições em que viviam e apontarem o que estava mal. E, assim, os mineiros começavam a descobrir que as suas mulheres lutavam por um novo padrão de vida, o que era para eles bastante desconcertante. Além disso, Mrs. Morel voltava sempre às segundas-feiras à noite carregada de novidades, e as outras crianças gostavam que William estivesse em casa quando a mãe chegava, porque ela lhe contava muitas coisas.
Mais tarde, quando o rapaz tinha treze anos, a mãe arranjou-lhe emprego nos escritórios da Cooperativa. Nessa altura, ele era já um rapaz muito inteligente e franco, de feições duras e os olhos azuis penetrantes de um verdadeiro viking.
– Pra que queres fazer dele um mangas-de-alpaca, num me dizes? – disse Morel. – Tudo o qu’ele vai fazer é gastar as calças no rabo e não ganhar um tostão. Quant’é qu’ele vai ganhar de início?
– O que ele vai ganhar não interessa – disse Mrs. Morel.
– Mas devia interessar! Põe-no mas é na mina ao pé de mim, e ele faz sem custo dez xelins por semana, logo no começo. Mas seis xelins para dar cabo do traseiro sentado num banco é melhor que dez na mina ao pé de mim, eu sei.
– Ele não vai para a mina – disse Mrs. Morel – e não se fala mais nisso.
– Pra mim serviu, mas pra ele não.
– Se a tua mãe te mandou para as minas aos doze anos, isso não quer dizer que eu faça o mesmo ao meu filho.
– Doze anos!... Muito antes disso!
– Fosse quando fosse – disse Mrs. Morel.
Ela tinha um grande orgulho no filho. Ele frequentava a escola nocturna, e aprendeu estenografia, e aos dezasseis anos, já era o melhor estenógrafo e o melhor guarda-livros do escritório, a par de um outro colega. Depois, começou a dar aulas nas escolas nocturnas. Mas era tão vivaço que só o seu bom feitio e o seu tamanho o protegiam.
Todas as coisas que os homens fazem – as coisas decentes – William também fazia. Corria tanto como o vento. Aos doze anos, ganhou o primeiro prémio numa corrida: um tinteiro de vidro, em forma de bigorna, que marcava honrosa presença no louceiro, para orgulho de Mrs. Morel. Fora para ela que ele correra. Voou para casa com a bigorna, ofegante, dizendo:
– Olha, mãe!
Esse foi o primeiro tributo que ele lhe prestou, e ela recebeu-o como uma rainha.
– Que bonito! – exclamou.
Quando iam brincar para perto da cerca da encosta, as crianças das Bottoms costumavam gritar quando William se aproximava:
– Salta, William... Salta!
E ele saltava a sebe, com cerca de cinco pés de altura, sem qualquer dificuldade.
– Caramba! – gritavam os mais pequenos.
Também atirava pedras mais longe do que qualquer outro rapaz de Bestwood. Amigos e rivais, todos tinham inveja das suas façanhas e torciam para que as pedras dele não fossem as que chegavam mais longe, passando para lá da cerca. Mas, à cautela, William gravava-lhes displicentemente as iniciais WM.
Aos dezassete anos, ganhou uma corrida de bicicletas em Ilkeston. Morel, num dos seus alardes de fanfarronice, tinha desafiado todos os campeões que estivessem na taberna a correrem contra o filho, e William sentiu que tinha de honrar as gabarolices do pai. Mas Mrs. Morel não aprovou a ideia.
– Vem ver-me limpar-lhes o sarampo a todos, mãe! – gritou ele, batendo na barriga da perna. Mas Mrs. Morel passou o dia ansiosa e infeliz. Ele podia morrer ou magoar-se, e, além disso, ela tinha a certeza de que o seu coração não tinha resistência para corridas de bicicleta. Não obstante, ele voltou para casa nessa noite trazendo uma pequena secretária de carvalho.
– Aqui tem, mãe! – disse ele. – Não lhe disse que lha trazia?
Mas ela obrigou-o a prometer-lhe que não entrava em mais nenhuma corrida.
William tinha alunos a quem dava aulas de estenografia em casa. Mas era tão impulsivo e irascível, que só os alunos mais aplicados e com mais vocação o aturavam. Sentava-se com eles à mesa da cozinha. A cozinha estava aquecida, iluminada e em silêncio absoluto. As almofadas de chintz vermelho do sofá eram fofas, a toalha vermelha sobre a mesa parecia acolhedora. Geralmente, o aluno, de treze ou catorze anos, sentava-se muito nervoso, enquanto William, rápido e enérgico, lhe corrigia os trabalhos de casa. O professor ia soltando desabafos de impaciência e intolerância. Nisto, voltava-se para o aluno e gritava:
– Meu grande cabeça de burro, fizeste bem a última frase, e agora...
O pobre do aluno assoava-se nervosamente ao lenço vermelho e olhava de soslaio para William. Às vezes, Mrs. Morel estava sentada a coser na cadeira de baloiço. Depois, começava a lição propriamente dita. William, evidenciando cada vez menos paciência, não tardava a explodir:
– Seu parvalhão, seu cabeça de burro, seu idiota chapado, o que é que eu te disse mais de mil vezes...?
– William! William! – exclamava a mãe. – Que vergonha! Não sei como ainda te aturam... Não lhe ligues, Robert, o mal está na falta de paciência dele, não em ti. Tu até és muito rápido. – E Robert olhava para Mrs. Morel envergonhado e agradecido, enquanto William continuava:
– Vá lá... e por amor de Deus não te faças de estúpido. Olha...!
Por fim, Mrs. Morel decidiu não ficar mais em casa quando ele dava as lições, para poupar aos garotos o vexame.
William tinha de entrar no escritório às oito da manhã, e a mãe levantava-se por isso às sete, para lhe preparar as coisas. Ele chegava geralmente atrasado, ou mesmo em cima da hora. Mas não havia nada que o fizesse andar mais depressa. Adorava tomar o pequeno-almoço a sós com a mãe. Quando estava bem-disposto, tagarelava e brincava com ela.
Uma manhã, pediu-lhe uma camisa lavada. Ele estava de pé, em frente à lareira, quando ela lha entregou, sentando-se em seguida a tomar o chá. Ele ergueu no ar repetidamente a camisa de flanela remendada por todos os lados.
– Mãe, o que é isto? – perguntou.
– Uma camisa – respondeu ela, desatando a rir.
– Uma rosa não cheiraria melhor...! – citou ele, de memória, com espirituosidade.
– Pois é... tu dás cabo de tudo... e eu já não tinha mais tecido igual... mas também quem vai notar?
– Tem a certeza de que não se vê?... Cá para mim, vê-se tudo à transparência – disse ele, ainda a torcer o nariz para a camisa.
– Veste-a lá... Olha as horas! – disse ela, sem poder conter o riso, da cadeira de baloiço onde estava sentada a beber o chá. E ele, de pé diante dela, um rapagão alto e espadaúdo, com a camisa de remendos na mão, dizia:
– Oh, minha camisinha de pobre! – disse ele, falando com a dita. – Acho que ninguém te vai cobiçar... um, dois, três... qual destes é o tecido original, mãe?
– Vá, veste a camisa! – ordenou a mãe.
– Imagine que eu tenho um acidente, e vou parar ao hospital, e quando volto a mim vejo quatro enfermeiras a olharem-me para a fralda da camisa... – resmungou ele.
– Só podem estar a dizer que andas com a roupa muito bem tratada – disse a mãe a rir.
Ele vestiu a camisa, e disse ainda, tapando a boca com a mão:
– Nem o rei Salomão em toda a sua glória...
– Não – disse a mãe, continuando a rir –, não creio que houvesse ninguém capaz de dar tantos pontos, nem por Salomão...
William deitou um olho à camisa por cima do ombro, e disse, num lamento:
– És a história da minha desgraça!
Mrs. Morel riu às gargalhadas. A custo, recompôs-se o suficiente para dar uma palmada na mesa e exclamar:
– Toca a vestir, menino! Já é um quarto para as oito.
– Não está à espera que eu tenha pressa de me vestir, para andar por aí todo remendado, pois não, mãe?
– És um tagarela sem juízo! – exclamou ela. – Ainda cais da bicicleta, partes a cabeça...
– Tem razão, se eu morresse ia ter vergonha da camisa que levava – atalhou ele.
Ela saltou da cadeira, pegou na escova e deu-lhe com ela ao de leve na cabeça.
– Vê lá se escovas esse cabelo – ordenou. Separaram-se, reconfortados: ele aquecia-lhe a alma a ela, e ela a ele.
Depois, ele começou a tornar-se ambicioso. Dava todo o dinheiro que ganhava à mãe. Quando recebia catorze xelins, ela deixava-o ficar com dois para os seus gastos, mas ele, como não bebia, começou a achar que estava rico, e só se dava com a burguesia de Bestwood. A pessoa mais importante da cidade era o pastor. Seguiam-se-lhe o gerente do banco, os médicos, depois os comerciantes, e, por fim, as hostes de mineiros. William começou a andar com os filhos do farmacêutico, do mestre-escola e de alguns comerciantes. Ia jogar bilhar para o Mechanics’Hall, e frequentava também os bailes, apesar de a mãe ser contra. Desfrutava de tudo o que Bestwood tinha de bom para lhe oferecer – dos bailaricos de Church Street, a seis dinheiros o ingresso, às provas desportivas e ao bilhar.
– A valsa! – exclamou o pai. – É verdade que tu sabes valsar? Quando eu era mais ágil, também sabia dar as minhas voltinhas.
– Será que sabia? – disse William, meio desconfiado.
– Sabia, sim senhor! – protestou Morel, ferido no seu amor-próprio.
– Então, vá lá... mostre-nos do que é capaz.
Mas Morel tinha vergonha de dançar diante dos filhos.
– Não, isso eu num faço! Estares a desafiar-me é uma parvoíce sem pés nem cabeça, e num vejo o qu’é que ganhas com isso.
– Mas vê que sigo as suas pisadas – retorquiu William.
– Atão inda és mais parvo do qu’eu julgava, s’alguma vez fizeres isso – disse o pai.
– Pronto, não faz mal, se está perro de mais para dançar... – disse o filho.
– Há vinte anos qu’eu num danço – gritou Morel, já alterado.
– E aposto que lhe custou a parar.
Mas William não desistiu. E as raparigas não o largavam.
– ’Póstolo – disse ele ao irmão, depois de um baile, quando já estavam os dois deitados. – ’Póstolo... uma rapariga de cetim branco... tás’ouvir, cetim branco até aos sapatos... vive em Sutton... e tá pelo beicinho! Amanhã vou lá, para m’encontrar com ela.
Daí a duas semanas, Paul perguntou-lhe:
– Então a rapariga do vestido de cetim branco?
– Já não m’interessa, ’Póstolo... Não presta! Mas encontrei uma pérola em Ripley... cheira vagamente a flor de cerejeira... branca como um lírio...
Paul era mimoseado com as mais estonteantes descrições florais das várias raparigas, a maior parte das quais perduravam por menos de quinze dias no coração de William, como um botão de rosa posto ao peito.
Uma vez por outra, lá aparecia uma namorada, preocupada em vir atrás do seu amado. Mrs. Morel encontrou um dia à porta uma rapariga de aspecto estranho, e logo lhe cheirou a esturro.
– Mr. Morel está em casa? – perguntou a donzela, toda sorrisos.
– O meu marido? Está, sim – respondeu Mrs. Morel.
– Eu... Eu queria referir-me a Mr. Morel... filho – repetiu a rapariga, penosamente.
– Qual deles? Há vários...
Nesta altura, a menina loira já gaguejava, muito corada:
– Eu... Eu conheci Mr. Morel... em Ripley. – E apressava-se a dar explicações.
– Ah... num baile!
– Sim, sim.
– Pois eu não gosto das raparigas que o meu filho conhece nos bailes. E ele não está em casa.
Mrs. Morel detestava os bailes duvidosos que o filho frequentava.
– Julgas que não sei das desavergonhadas que por lá andam?
– Pois olhe, mãe, eu não sou nenhum leviano, como pode ver.
– Isso é que eu não sei – dizia a mãe a rir.
– Não está a pensar que eu me vou apaixonar, pois não? Descanse que não vou. É só para me divertir com elas.
– Mas elas é que não querem só divertir-se contigo. E isso não está certo.
– Ora essa, porquê? Não faço tenções de me casar. Não se aflija, Mater. Eu não me caso enquanto não encontrar uma mulher como a senhora... e isso só daqui a muito tempo... E... só me hei-de casar aos trinta, quando já estiver de barriguinha cheia.
– Veremos, meu filho – respondeu a mãe.
Depois, voltou para casa zangado com a mãe por ter sido tão dura para com a rapariga. Era um rapaz despreocupado, mas de olhar apaixonado, que caminhava com grandes passadas, às vezes de sobrolho carregado, e quase sempre com o boné atirado para trás com galhardia. Agora, vinha de sobrolho carregado. Atirou o boné para cima do sofá, apoiou o queixo decidido na palma da mão e olhou zangado para a mãe. Ela era pequena, com o cabelo arrepiado para trás. Tinha um ar de serena autoridade, mas, ao mesmo tempo, de rara afabilidade. Ao ver o filho zangado, o coração apertou-se-lhe.
– Esteve cá ontem alguma senhora à minha procura? – perguntou.
– Uma senhora eu não vi... esteve foi uma rapariga.
– E porque não me disse nada?
– Porque me esqueci.
Ele expeliu o ar com ímpeto.
– Uma rapariga bonita... uma senhora?
– Não olhei para ela.
– Olhos castanhos... grandes?
– Isso mesmo.
Voltou a assoprar.
– E o que lhe disse a mãe?
– Que não estavas em casa.
– E que mais?
– Apenas que não gostava de que raparigas que tinhas visto uma vez viessem aqui a casa à tua procura.
– Bem... não precisava de ter dito isso – replicou ele. – O pai dela tem dinheiro... até têm duas criadas...
– Não vinham com ela... por isso, eu não podia adivinhar.
– Mas porque é que a mãe tinha de ser desagradável? Ela não estava a fazer mal nenhum, ou estava?
– Pensei que fosse uma dessas desavergonhadas.
– Mas não era... Não era... O pai dela...
– Tem dinheiro para duas criadas – atalhou Mrs. Morel.
– Não... É o veterinário de Woodlinton... E, além disso, mãe...
– Ela era uma desavergonhada.
– Não era nada... E era bonita, não era?
– Nem olhei para ela.
– Mas devia ter olhado...
– Mas não olhei, pronto. E olha, meu filho, trata de dizeres às tuas namoradas que, quando vierem atrás de ti, não devem vir perguntar por ti à tua mãe... É isso que tens de dizer a essas desavergonhadas que encontras pelos salões de dança.
– Tenho a certeza de que ela é uma rapariga séria...
– E eu tenho a certeza de que não é.
E assim acabou a discussão. A dança era sempre motivo de conflito entre mãe e filho. A afronta atingiu o auge quando William anunciou que ia a um baile de máscaras em Hucknall Torkard, uma terra mal-afamada. Havia uma fantasia que ele podia alugar, que um dos seus amigos já tinha usado, e lhe assentava que nem uma luva. E o fato de escocês lá foi parar a casa. Mrs. Morel recebeu-o com indiferença e recusou-se a desembrulhá-lo.
– O meu fato já chegou? – gritou William.
– Está um embrulho na sala da frente.
Ele precipitou-se para o fato e cortou o cordel.
– Já imaginou o seu filho assim vestido? – disse entusiasmado, mostrando-lhe o fato.
– Sabes bem que não quero imaginar-te com isso vestido.
Na noite do baile, quando ele veio a casa para se mascarar, Mrs. Morel vestiu o casaco e pôs o chapéu.
– Não fica para me ver vestido, mãe? – perguntou ele.
– Não... Não te quero ver – foi a resposta.
Estava muito pálida, com a expressão dura e fechada. Tinha medo de que o filho seguisse as pisadas do pai. Ele hesitou uns instantes, com o coração suspenso de ansiedade. Depois, viu a boina de escocês cheia de fitas, e agarrou-a, já esquecido da mãe. Mrs. Morel saiu.
Ele nunca se apercebeu de como tinha ficado desapontado. A excitação do momento, vivido em antecipação, era o suficiente para o fazer esquecer. Contudo, o seu maior orgulho era que ela o visse mascarado, e, pela vida fora, era sempre com mágoa que recordava este baile.
Na altura, porém, correu escada acima em grande alvoroço. Paul ajudou-o a vestir-se.
– É um fato de máscara, ’Póstolo – disse ele. – Dá-me cá essas coisas. – Primeiro enfiou um par de calções pretos, muito justos e curtos. Depois, foi mirar-se e remirar-se ao espelho da mãe.
– Estás a ver os meus calções pretos? – disse ele, dando uma volta sobre si mesmo, e acrescentando: – Sabes, ’Póstolo, um verdadeiro escocês não usa calções... cobre a nudez com o kilt. Mas acontece que eu dou saltos muito altos... e... com as senhoras a assistir... bem... já não dava!
O mais pequeno também achava que não, embora o caso não lhe parecesse muito grave.
– Belo par de pernas que aqui estão, ’Póstolo! Belas pernas! Já me ajudaram a ganhar quatro prémios nas corridas e dois nas bicicletas. Nada mau! – E dava palmadas nas coxas jovens e vigorosas. – Só músculo, miúdo!... No entanto, têm um defeito: não consigo juntar os joelhos. Tenho as pernas arqueadas, ’Póstolo. Mas assim ainda são mais fortes... Já o Nicholas Nickleby... esse tinha umas belas pernas e conseguia juntar os joelhos, a julgar pela gravura, e acho que Mr. Good também. Não era Mr. Good que tinha uma «belas pernas muito brancas» n’As Minas de Salomão? Aperta-me isto. Este fato não me assenta nada bem, pois não, ’Póstolo?
– Não – disse Paul, reverente.
– Um verdadeiro escocês – continuou William – tem de dobrar o seu kilt. Quem me dera que este fosse desses... gostava de ser eu a prepará-lo. Estás a ver, ’Póstolo, eu posso usar um kilt porque tenho a medida exacta para ele assentar como deve ser. A ti não te ia ficar bem... és espalmado como uma tampa de cartão. Tens de pedir a Deus que te desenvolva mais essa parte do corpo, senão nunca vais poder vestir um kilt.
Paul não percebia porque é que um dia havia de querer usar um kilt. Baixinho e magro como era, não podia aspirar ao físico e à estatura do irmão.
– Então, que tal ficam os meus joelhos?... Ficam bem, não ficam? Uns valentes joelhos, isso é que eles são... uns valentes joelhos... e as pernas também! Outro dia, os tipos lá do escritório apostaram em como eu andava enchumaçado. E então o Vickers veio de gatas enquanto eu estava a escrever e espetou-me um alfinete. Dei um berro que ia deitando a casa abaixo, e depois dei um pinote e ferrei-lhe um murro na cabeça, estás a ver... quem me dera não ter arrancado aquele bocadinho de pele com a bicicleta.
– Podias pôr um bocadinho do pó cor-de-rosa de lavar os dentes – alvitrou Paul.
– Lá isso podia... diz que é anti-séptico, mas será que resulta? Sabes, eu tenho mesmo pinta de escocês – cabelo louro, olhos azuis e valentia, ’Póstolo, valentia... e arcaboiço a condizer... Se alguma vez me alistasse no exército, havia de ser na Guarda Escocesa. Essa do pó dos dentes é uma ideia porreira...
Quando já estava vestido, um monte de crianças, as de casa e as da vizinhança, vieram admirá-lo. Depois, ele partiu. Divertiu-se à grande e, no entanto, era-lhe doloroso recordá-lo. A mãe mostrou-se indiferente com ele durante um ou dois dias. Mas achava-o tão encantador...! E depois... aquele toque de solidão, a instalar-se outra vez entre ele e ela.
Foi mais ou menos por esta altura que ele começou a estudar. Ele e um amigo começaram a aprender francês, latim e outras coisas. Depressa começou a ficar mais abatido. Depois do escritório, ia para casa de Fred Simpson, e ficavam os dois a estudar até à meia-noite e, às vezes, até à uma. Mrs. Morel protestava, ralhava, implorava-lhe que tivesse mais cuidado com a saúde.
– Quando estamos a estudar – dizia ele – nem dou pelas horas passarem... nenhum de nós dá, até a mãe do Fred gritar lá de baixo que já é muito tarde.
Estas noites de estudo intervalavam com farras e bailaricos. À medida que os anos iam passando, William foi ficando mais magro e a despreocupação fugiu-lhe do olhar.
A mãe, sempre atenta, sempre à espera, sentia um frio na alma ao vê-lo assim. Teria ele forças para «sobreviver»? Um pingo de ansiedade manchava o orgulho que sentia. Tinha esperado por ele tanto tempo que não suportaria o seu fracasso. Na verdade, não sabia o que queria dele, afinal. Talvez quisesse apenas que ele fosse fiel a si próprio, que crescesse e frutificasse tudo o que ela tinha semeado. Queria ver nele a sua própria realização, era tudo. E, com toda a força de que era capaz, tentava mantê-lo forte, equilibrado, com ânimo para seguir em frente. Mas ele vacilava, faltava-lhe lucidez. Havia momentos em que descambava e era igualzinho ao pai, o que lhe enchia o coração de apreensão e desalento.
Ele tivera dúzias de namoricos, mas nada a que se pudesse chamar um caso amoroso. Ela não se importava com os namoricos, desde que não lhe afectassem a carreira, mas receava que ele se deixasse prender por alguma dessas raparigas fúteis e desavergonhadas.
Tinha ele dezanove anos, quando um dia, sem mais nem menos, deixou o escritório da Cooperativa e arranjou um emprego em Nottingham. Este novo lugar rendia-lhe trinta xelins por semana, em vez dos dezoito do anterior. Era na verdade um bom aumento e os pais não cabiam em si de orgulhosos. Todos o elogiavam. Parecia que ia subir na vida num instante. E Mrs. Morel esperava poder, com o auxílio dele, ajudar os filhos mais novos. Annie andava a estudar para professora. Paul, também muito inteligente, ia muito bem nas lições de francês e alemão que o padrinho lhe dava – o pastor, velho amigo de Mrs. Morel. Arthur, um menino mimado e muito bonito, andava ainda na escola primária, mas tinha hipóteses de conseguir uma bolsa para ir para o liceu, em Nottingham.
William conservou-se durante um ano no seu novo emprego em Nottingham. Estudava afincadamente e tornava-se cada vez mais circunspecto. Algo parecia preocupá-lo. No entanto, continuava a ir aos bailes e aos festivais no rio. Não bebia. Todos os irmãos eram abstémios convictos. Chegava a casa muito tarde e estudava até altas horas da noite. A mãe implorava-lhe que tomasse cuidado, que fizesse uma coisa ou outra.
– Dança, se te apetece dançar, meu filho, mas não julgues que podes passar o dia no escritório e depois ires para a paródia, e depois ficares ainda a estudar. Não podes, o corpo não aguenta. Faz uma coisa ou a outra... diverte-te ou estuda latim... mas não tentes fazer as duas.
Depois, ele arranjou um emprego em Londres, a ganhar cento e vinte libras por ano, o que parecia uma soma fabulosa. A mãe nem sabia se havia de rir ou de chorar.
– Querem-me em Lime Street de segunda a oito, mãe – gritou ele, de olhos brilhantes, ao ler a carta. Mrs. Morel sentiu que tudo nela era silêncio. Ele continuou a ler: – «... queira confirmar até à próxima quinta-feira se aceita o lugar... Atentamente...» Eles querem-me lá, mãe, por cento e vinte libras por ano, e nem quiseram falar comigo. Eu não lhe disse que conseguia! Imagine-me só em Londres!... E posso dar-lhe vinte libras por ano, Mater... Vamos ficar afogados em dinheiro.
– Pois vamos, meu filho – respondeu ela, tristemente.
A ele nem lhe ocorreu que a mãe pudesse estar mais magoada com a sua partida do que contente com o seu sucesso. Na verdade, à medida que se aproximava o dia da partida, o coração dela começou a fechar-se e a sucumbir ao desespero. Amava-o tanto. Mais ainda: esperava tanto dele. Quase se podia dizer que vivia através dele. Gostava de lhe fazer as coisas: de lhe fazer uma chávena de chá e de lhe passar a ferro os colarinhos, de que ele tanto se orgulhava. Era para ela uma alegria vê-lo tão vaidoso dos seus colarinhos. Como não havia nenhuma lavandaria perto, costumava passá-los e repassá-los com o seu pequeno ferro de carvão, para os polir, até os pôr a brilhar à simples pressão do braço. E, agora, já não lhe podia fazer isso. Agora, ele ia partir, e era quase como se partisse também do seu coração. E ele parecia não querer deixar ficar nada de si dentro dela. Essa a causa da dor e do desgosto. Ele levava consigo quase tudo.
Uns dias antes da partida – tinha ele acabado de fazer vinte anos – queimou todas as cartas de amor, que estavam guardadas numa caixa em cima do armário da cozinha. Tinha lido extractos de algumas delas para a mãe ouvir, mas a maior parte delas eram demasiado banais.
No sábado de manhã, disse:
– Anda, ’Póstolo, vamos dar uma volta às minhas cartas, e tu podes ficar com os passarinhos e as flores.
Mrs. Morel tinha feito de véspera o trabalho destinado para sábado, pois tinham dado folga a William no último dia. Ela estava até a fazer-lhe um bolo de farinha de arroz, para ele levar. Mas ele não tinha consciência da tristeza que a mãe sentia.
Tirou da caixa a primeira carta. Era cor de malva e estava ornamentada com cardos verdes e púrpura. William cheirou a folha de papel:
– Cheira bem... perfumada...!
E meteu a carta debaixo do nariz de Paul.
– Hum! – disse Paul, inspirando fundo. – Que perfume é este?
– Jockey Club – disse William, embora não fizesse a menor ideia.
– Não podia ser cardo – disse Paul – porque os cardos não têm cheiro.
– Ora oiça esta: «Meu Único Amor»... Safa, Mater.
– Não me interessa ouvir essas baboseiras – disse Mrs. Morel.
– Oiça só esta!.. «Meu único Amor, Como não me disseste o teu primeiro nome, só te posso chamar aquilo que és na realidade. Tenho de te escrever, porque, se o não fizer, acho que a minha cabeça vai rebentar...» Veja só, Mater.
– São mesmo parvas! Têm tão pouca cabeça que não dá nem para rebentar... A adularem-te dessa maneira... Mal sabem elas que estão a arranjar lenha para se queimarem.
– Não é para me adularem. Esta ficou mesmo caidinha por mim.
– E, mesmo que tenha ficado, isso é motivo para se orgulhar? Que parvoíce!
– A mãe não devia dizer que andam a «adulá-lo para arranjar lenha para se queimarem» – interveio Paul.
– Claro, se tu o dizes... – disse a mãe a rir.
– «Fiquei a adorar coisas escocesas desde que te vi com aquele kilt. Ficava-te mesmo mal. Acho que nunca vi ninguém que ficasse tão bonito, com aquele kilt e aquelas meias...» São os meus joelhos... Têm de ser os meus joelhos, Mater. Não me escapa uma.
– Só não te escapam se forem das fáceis.
– Cala a boca, ’Póstolo. É bonita, não é?
Paul gostava de ver os desenhos que decoravam as cartas de amor. William queimou a carta. A seguinte era cor-de-rosa, com um raminho de flor de cerejeira ao canto.
– Flor de cerejeira! – disse Paul, aspirando o perfume. – Que bom... ora cheire, mãe.
A mãe aproximou o nariz pequeno e fino do papel.
– Não me apetece cheirar as parvoíces que elas fazem – disse, aspirando o perfume.
– O pai desta rapariga – disse William – é rico como Cresus. Tem terras que nunca mais acabam... Ela chama-me Lafayette, por eu saber falar francês... «Como vês, já te perdoei.» Esta de ela me perdoar é muito boa... «Falei de ti esta manhã à minha mãe, e ela terá muito prazer em que venhas tomar chá connosco no domingo, mas primeiro precisa do consentimento do meu pai. Espero bem que ele concorde. Logo que saiba, mando-te dizer se sim ou sopas. Se tu no entanto...»
– «Se sim ou...» quê? – atalhou Mrs. Morel.
– «... ou sopas»... é isso mesmo!
– «Se sim ou sopas!» – repetiu Mrs. Morel, trocista. – E eu que a julgava tão fina!
William começou a sentir-se algo desconfortável e pôs de lado esta donzela, dando a Paul o canto com a flor de cerejeira. Continuou a ler excertos das cartas, alguns dos quais deixavam a mãe divertida, outros triste e outros ainda apreensiva.
– Meu filho – disse ela –, elas são muito espertas. Já perceberam que só têm de alimentar a tua vaidade, para tu correres logo atrás delas como um cão a quem fizeram festas na cabeça.
– Ora, elas não podem estar sempre a fazer festas – retorquiu William. – E quando deixam de fazer, eu ponho-me a andar.
– Mas um dia descobres que te prenderam com uma corda que não consegues desatar – respondeu a mãe.
– Isso é que era bom! Eu chego bem para elas, Mater, elas que não se deixem enganar.
– Quem se deixa enganar és tu – disse Mrs. Morel, muito serena.
Não tardou que um monte de papéis retorcidos e tisnados se formasse na lareira, tudo o que restava da colecção de cartas perfumadas, à excepção dos trinta ou quarenta desenhos recortados dos cantos – andorinhas, miosótis e raminhos de hera – que agora pertenciam a Paul. Quanto a William, partiu para Londres, para dar início a uma nova colecção.
IV
A JUVENTUDE DE PAUL
PAUL saía à mãe – era baixo e franzino. O cabelo loiro tornou-se progressivamente arruivado e depois castanho-escuro, enquanto os olhos eram acinzentados. Era uma criança pálida e de poucas falas, com uns olhos que pareciam escutar e um lábio inferior carnudo e descaído.
Geralmente davam-lhe mais idade, pela constante preocupação que mostrava pelo que as outras pessoas sentiam, especialmente a mãe. Quando ela sofria, ele apercebia-se e não tinha paz, sempre de alma atenta às suas mais pequenas reacções.
À medida que crescia, ia-se tornando mais forte. William, devido à diferença de idades, não o queria por companheiro, pelo que só Annie estava com ele o dia inteiro. Annie era uma garota endiabrada, uma maria-rapaz, como a mãe lhe chamava, mas adorava o irmão mais novo, que andava sempre atrás dela. Quando ela fazia corridas com as outras garotas da vizinhança, Paul corria ao lado dela, a apoiá-la, uma vez que ainda não podia participar. Muito calado, passava quase despercebido. Mas a irmã adorava-o e ele fazia-lhe as vontades todas.
Annie tinha uma boneca grande de que muito se ufanava, embora não gostasse tanto dela como do irmão. Um dia, deitou-a no sofá, cobriu-a com uma manta, para ela adormecer, e foi-se embora. Entretanto, Paul pôs-se a saltar em cima do sofá e caiu mesmo em cima da cara da boneca, escondida debaixo da coberta. Annie precipitou-se para o sofá soltando um grito lancinante e sentou-se a chorar, inconsolável. Paul nem se mexeu.
– Não se percebia que a boneca estava ali, mãe; não se percebia – não se cansava ele de repetir, deixando-se ficar sentado muito triste enquanto Annie continuava a chorar. Por fim, o desgosto passou e ela perdoou ao irmão, que estava genuinamente contrito. Porém, um ou dois dias depois Annie ficou chocadíssima.
– Vamos oferecer a Arabella em sacrifício – disse ele. – Vamos queimá-la. – A irmã ficou horrorizada, mas ao mesmo tempo fascinada. Sempre queria ver o que o irmão ia fazer. Ele fez um altar de tijolos, tirou bocadinhos do enchimento do corpo de Arabella, enfiou esses bocadinhos na cara esburacada, deitou-lhe em cima um pouco de parafina e incendiou a boneca. Depois, com perversa satisfação, ficou a ver as gotas de cera derretida a escorrerem pela testa de Arabella, como se fossem suor a pingar sobre a chama. Enquanto a estúpida da boneca esteve a arder, ele rejubilou em silêncio. No fim, esgravatou nas brasas com um pauzinho, pescou os braços e as pernas, todos pretos, e esmagou-os com uma pedra.
– Pronto, este foi o sacrifício da Arabella – anunciou. – E ainda bem que não sobejou nada.
Annie, embora nada dissesse, estava perturbada com a cena. Era como se ele odiasse a boneca intensamente pelo facto de a ter partido.
Todos os irmãos, mas Paul em particular, colocavam-se nitidamente ao lado da mãe contra o pai. Morel continuava a fazer desmandos e a embebedar-se. Havia alturas, às vezes meses a fio, em que transformava a vida de toda a família num inferno. Paul nunca se havia de esquecer de ter vindo para casa, depois de uma reunião religiosa uma segunda-feira à tardinha, e ter encontrado a mãe com um olho negro e todo inchado, o pai de pé junto à lareira, de pernas afastadas e cabisbaixo, e William, que acabara de chegar do trabalho, a olhar enfurecido para o pai. Fez-se silêncio quando os irmãos mais novos entraram, mas nenhum dos adultos olhou para eles.
William estava lívido e de punhos cerrados. Esperou que os mais pequenos se calassem, limitando-se a olhar a cena com indizível raiva infantil, e disse:
– Seu grande cobarde, se eu cá estivesse, não se atrevia a fazer uma coisa destas.
Mas Morel estava ao rubro e voltou-se contra o filho. William era mais alto, mas Morel era mais possante e estava cego de raiva.
– Ah, não? – berrou. – Ah, não atrevia? Se abres mais essa boca, meu menino, assento-te a mão em cima, olá se assento!
E, vergando os joelhos, brandiu o punho ameaçadoramente, animalescamente. William estava lívido de raiva.
– Ah, sim? – disse William, sereno e intrépido. – Pois seria a última vez.
Morel aproximou-se gingão, semivergado, de punho no ar em posição de ataque. William armou também o punho. Os seus olhos azuis fixos no pai tinham o brilho de uma gargalhada. Mais uma palavra e os dois homens engalfinhavam-se. Paul desejava que isso acontecesse. Os três mais novos assistiam sentados no sofá, sem pinga de sangue.
– Acabem já com isso – gritou Mrs. Morel, com dureza. – Por esta noite chega... E tu – disse, virando-se para o marido – pensa nos teus filhos.
Morel virou os olhos para o sofá.
– Pensa nos teus filhos, ess’agora, minha grande cabra – disse ele, acintoso – o qu’é qu’eu fiz òs meus filhos, sempre gostava de saber. Mas eles saem a ti... ensinaste-lhes todas as tuas manhas e truques... criaste-os à tua maneira, foi o que foi.
Ela não respondeu. Ninguém abriu a boca. Passado algum tempo, ele atirou as botas para debaixo da mesa e foi deitar-se.
– Porque é que não me deixou fazer-lhe frente? – disse William, quando o pai já tinha ido para cima. – Ele tinha apanhado, e bem.
– Que bonito... bateres no teu pai – respondeu a mãe.
– Pai! – repetiu William. – Aquilo, meu pai!
– Bom, lá que é... é. Por isso...
– Mas porque é que não me deixa dar-lhe uma ensinadela, não custava nada...
– Que disparate! – gritou Mrs. Morel. – Ainda não chegámos a esse ponto.
– Não – disse o filho. – Ainda é pior... olhe para a sua cara. Porque não me deixou bater-lhe?
– Porque não ia suportar assistir a uma coisa dessas. É melhor que nem te passe pela cabeça – gritou ela, peremptória.
As crianças foram deitar-se muito tristes.
Quando William já era grande, a família mudou-se das Bottoms para uma casa no alto da colina, de onde se alcançava todo o vale, que se estendia por baixo, convexo, como concha de amêijoa ou berbigão. Fronteiro à casa, estava postado um velho freixo de grandes dimensões. Quando o vento oeste soprava forte das bandas do Derbyshire, apanhava em cheio as casas e a árvore não parava de ulular. Morel gostava de a ouvir.
– É como a música – dizia ele. – Ajuda-me a adormecer.
Mas Paul, Arthur e Annie detestavam o zumbido do vento. Para Paul, era quase um gemido demoníaco. Durante o primeiro Inverno que passaram na nova casa, o pai portou-se muito mal. As crianças ficavam a brincar na rua, alcandorada sobre o vale extenso e sombrio, e só voltavam para casa às oito horas, indo directas para a cama. A mãe ficava a costurar no andar de baixo. Todo aquele espaço aberto diante da casa incutia nas crianças uma sensação de vastidão nocturna, de terror. Terror esse que provinha da árvore ululante e da discórdia entre os pais. Paul, mesmo depois de adormecer, tinha um sono sobressaltado e acordava amiúde com os barulhos que vinham de baixo. Acordava e ficava atento. Ouvia então os berros desabridos do pai, que chegara a casa a cair de bêbado, seguidos das respostas aceradas da mãe, e depois os murros do pai em cima da mesa e os seus gritos descontrolados, à medida que ia elevando a voz. E, finalmente, tudo isto era abafado pelos gemidos e os uivos penetrantes do grande freixo agitado pela ventania. As crianças mantinham-se caladas e expectantes, a aguardarem que o vento se calasse, para perceberem o que o pai estava a fazer, não fosse ele bater na mãe outra vez. A escuridão instilava neles sentimentos de horror, violenta tensão e sangue, e adormeciam com o coração apertado de angústia. O vento era cada vez mais assustador. Todas as cordas da grande harpa gemiam, silvavam e uivavam. E, depois, o horror do súbito silêncio: o silêncio total, lá fora e lá em baixo. Que silêncio era aquele?... Um silêncio de sangue? Que teria ele feito?
As crianças mantinham-se deitadas a respirar escuridão. Por fim, ouviam o pai atirar com as botas e subir a escada só de meias. Mesmo assim, ficavam à escuta, até que, se o vento deixava, ouviam a água a sair da torneira para a chaleira, que a mãe já deixava preparada para o dia seguinte, e podiam, finalmente, dormir em paz.
De manhã, acordavam felizes, muito felizes, e brincavam e dançavam à volta do candeeiro solitário, ainda na escuridão, mas guardavam um recanto de ansiedade dentro dos seus corações e uma tristeza nos olhos que conservaram para toda a vida.
Paul odiava o pai. Quando era ainda pequeno, tinha uma religião muito sua.
– Faz com que ele deixe de beber – pedia ele todas as noites.
– Senhor, deixa o meu pai morrer – rezava ele muitas vezes.
– Faz com que ele morra na mina – pedia ele quando, depois do chá, o pai tardava a vir do trabalho.
Esse era outro dos momentos em que a família sofria intensamente. As crianças chegavam da escola e tomavam chá. A enorme chaleira preta fervilhava a um lado do fogão e a terrina do guisado estava no forno, à espera de que Morel chegasse. Era esperado às cinco horas. Porém, durante meses a fio, parava sempre na taberna quando voltava do trabalho e por lá ficava a beber.
Nas noites de Inverno, quando o frio era intenso e anoitecia mais cedo, Mrs. Morel levava para a mesa uma palmatória de latão com uma vela acesa, para poupar o gás. As crianças comiam a sua fatia de pão com manteiga ou com banha e iam brincar para a rua. Mas, se Morel ainda não tinha chegado, eles pensavam duas vezes. Mrs. Morel não suportava imaginá-lo sentado na taberna a beber, todo sujo e ainda com as roupas da mina, depois de um dia de trabalho, e, em vez de vir para casa comer e lavar-se, preferir embebedar-se de estômago vazio. E este seu sentimento comunicava--se aos filhos. Agora, ela já não sofria sozinha: os filhos sofriam com ela.
Paul foi brincar com os outros rapazes. No vale semeado no crepúsculo, cintilavam aglomerados de luzes a marcarem a entrada das minas. Alguns mineiros retardatários subiam desgarrados o carreiro da encosta. Por fim, passou o homem que acendia os lampiões da rua. Mais nenhum mineiro se avistava. A escuridão abateu-se sobre o vale, o trabalho terminara, era a noite que chegava.
Paul correu ansioso para a cozinha. A vela solitária ardia ainda sobre a mesa, o clarão vermelho da fogueira inundava a cozinha, e Mrs. Morel estava sentada e só. A chaleira fumegava no fogão, o prato continuava à espera. Um sentimento de espera perpassava toda a casa, um sentimento de espera pelo homem que estava nesse momento sentado na taberna, a pouco mais de uma milha de casa, já noite escura, com a roupa de trabalho, sem comer, e a beber até cair. Paul apareceu à porta.
– O papá já chegou? – perguntou.
– Bem vês que não – disse Mrs. Morel, aborrecida com a redundância da pergunta.
Depois, o garoto pôs-se a andar de um lado para o outro à volta da mãe. Partilhavam a mesma ansiedade. A certa altura, Mrs. Morel foi lá fora escorrer a água das batatas.
– Estão todas negras, uma porcaria – disse ela. – Quero lá saber. – Não se trocavam muitas palavras. Paul quase odiava a mãe por sofrer daquela maneira quando o pai não vinha para casa.
– Para que se aflige tanto? – disse ele. – Se ele quer ficar por lá a embebedar-se, porque não o deixa?
– Deixá-lo! – ripostou Mrs. Morel. – Essa é boa, «deixá-lo». – Ela sabia que todo o homem que se mete na taberna quando devia voltar para casa sem demora se arruina a si mesmo e à família. As crianças eram ainda muito pequenas e ele era o seu único ganha-pão. William viera trazer-lhe algum alívio, pois, com ele empregado, sempre tinha alguém a quem recorrer se Morel descambasse de vez. Porém, isso em nada alterava a tensão que se respirava na cozinha nestas noites de espera.
Os minutos escoavam-se no bater ritmado do relógio. Às seis horas, a mesa ainda estava posta, o jantar à espera, e a mesma atmosfera de ansiedade e expectativa invadia toda a casa. Paul já não aguentava mais. Não lhe apetecia ir lá para fora brincar. Correu por isso para casa de Mrs. Inger, duas portas mais abaixo, para conversar com ela. Mrs. Inger não tinha filhos. O marido era amigo dela, mas era caixeiro numa loja e chegava muito tarde. Quando ela viu o garoto à porta, chamou-o:
– Vem cá, Paul.
Ficaram os dois a conversar durante um bocado, mas logo Paul se levantou, dizendo:
– Bem, vou andando, para ver se a minha mãe precisa que eu lhe vá fazer algum recado.
Fingia estar muito alegre e não contou à amiga o que o preocupava. Depois, voltou a correr para casa.
Em alturas como esta, Morel chegava sempre mal-humorado, insuportável.
– Lindas horas de voltares para casa – dizia Mrs. Morel.
– Que tens tu co’isso, cas horas a qu’eu venho pra casa? – berrava ele.
E ninguém abria a boca, porque ele era perigoso. Comia o que lhe punham à frente com inultrapassável grosseria e, quando terminava, empurrava tudo o que tinha diante de si para longe, para poder estender os braços por cima da mesa, e, em seguida, adormecia.
Paul odiava por demais o pai. A cabeça do mineiro, pequena e mesquinha, com o cabelo preto empastado de fuligem, repousava sobre os braços nus, e a cara, suja e mal-humorada, de nariz grosso e sobrancelhas finas e insolentes, estava virada para o lado, adormecida – da cerveja, do cansaço e da má índole. Se alguém entrasse de repente ou fizesse o mais pequeno ruído, o homem abria os olhos e berrava:
– Tás aqui, tás a levar um murro, se não paras com essa chinfrineira. Tás’ouvir?
Estas palavras, gritadas selvaticamente e quase sempre dirigidas contra Annie, deixavam toda a família transida de medo.
Ele era mantido fora de todos os assuntos. Ninguém lhe contava nada. Enquanto estavam sozinhos com a mãe, o filhos relatavam-lhe as peripécias do dia, contavam-lhe tudo. Era como se nada realmente acontecesse até contarem à mãe. Mas, mal o pai entrava, fazia-se silêncio. A sua presença era como um travão na engrenagem fluente e feliz da vida doméstica. Ele apercebia-se deste muro de silêncio, do isolamento a que o votavam, de que não era bem-vindo; mas era já demasiado tarde para mudar.
Bem gostaria de que os filhos conversassem com ele, mas eles não conseguiam. Às vezes Mrs. Morel dizia:
– Devias contar ao teu pai.
Paul ganhou um prémio num concurso de jornal e todos ficaram radiantes.
– O melhor é contares ao teu pai quando ele chegar – disse Mrs. Morel. – Sabes bem que ele passa a vida a dizer que nunca lhe contam nada.
– Está bem – concordou Paul. No entanto, quase preferia ter perdido o prémio a ter de contar ao pai.
– Ganhei um prémio num concurso, pai – disse ele.
Morel voltou-se e disse:
– Ah, ganhaste, meu rapaz?... E que concurso era esse?
– Nada de especial... era sobre mulheres famosas.
– E de quanto é esse tal prémio que ganhaste?
– É um livro.
– Ah, é?
– Sobre aves.
– Hum!
E era assim. Não havia conversa possível entre o pai e qualquer dos restantes membros da família. Era como se ele fosse um estranho, tivesse negado o Deus que nele habitava.
Os únicos momentos em que voltava a entrar na vida da família era quando fazia consertos em casa e o trabalho lhe corria de feição. Às vezes, ao fim da tarde, depois de jantar, punha-se a remendar as botas ou a soldar a chaleira ou o cantil. Nessa altura precisava de ajudantes e as crianças rejubilavam. Partilhavam com ele o trabalho, no verdadeiro sentido de construírem realmente qualquer coisa, e aquele sim, era ele outra vez.
Mostrava-se competente e habilidoso, e quando estava de bom humor não parava de cantarolar. Mas atravessava longos períodos, às vezes meses, quase anos até, de contundência e irascibilidade. Depois, de repente, ficava bem-disposto outra vez e era bom vê-lo entrar pela copa dentro com um bocado de ferro incandescente, a gritar:
– Saiam da frente, saiam da frente!
Batia o ferro rubro e maleável na bigorna e moldava-o a gosto. Outras vezes sentava-se a soldar, e as crianças viam cheias de alegria o metal derreter instantaneamente e ser espalhado pelo ferro de soldar, impregnando a casa de um odor a lata quente e a resina queimada, enquanto Morel em silêncio se concentrava no trabalho. Cantava sempre que estava a remendar as botas, ao som das batidas do martelo. E via-se que estava feliz quando punha grandes remendos nas calças de fustão que usava na mina, o que acontecia bastas vezes, pois achava-as muito sujas e muito rijas para ser a mulher a fazê-lo.
Mas o que as crianças mais gostavam era de o verem fazer detonadores. Morel ia buscar ao sótão um molho de palhas de trigo compridas e resistentes. Limpava-as e polia-as à mão até cada uma luzir como uma hastezinha de ouro. Depois, cortava-as em bocados com cerca de seis polegadas, fazendo-lhes, se possível, um talho na ponta. Tinha sempre ao seu lado um canivete primorosamente afiado que cortava uma palha ao meio sem a danificar. Seguidamente, deitava em cima da mesa um montinho de pólvora – uma pilha de grãos pretos sobre o tampo de madeira bem lavada, e ia preparando e aparando as palhas, enquanto Paul e Annie as enchiam e vedavam com um bujão. O que Paul mais gostava era de ver os grãozinhos pretos escorregarem pela calha que ele fazia com a palma da mão e entrarem pela abertura da palhinha, até ela ficar cheia. Nessa altura, vedava a abertura com uma raspa de sabão que arrancava com a unha do polegar do bocado de sabão que tinha a seu lado num pires, e a palha estava pronta.
– Olhe, pai! – dizia ele.
– Isso mesmo, meu amor – respondia Morel, que era particularmente pródigo em elogios para com o seu segundo filho. Paul atirava os detonadores para dentro da lata da pólvora, já pronta para o dia seguinte, quando Morel a levasse para a mina, para com eles provocar uma explosão capaz de fracturar a parede de carvão.
Entretanto, Arthur, ainda muito agarrado ao pai, vinha apoiar-se no braço do cadeirão de Morel e dizia:
– Conte-nos como é lá em baixo na mina, papá.
Era o que Morel mais gostava de fazer.
– Ora bem, lá na mina há um cavalo, a gente chama-lhe Taffy – começava ele – e ele é um gra-a-nde manhoso!
Morel tinha uma maneira pitoresca de contar histórias. Parecia até que a manha do Taffy ganhava vida.
– É um baio – continuava ele – e dos pequenos. Bem, a cert’altura ele entra na galaria com ganda estardalhaço e a gente ouve-o espirrar.
– «Olá, Taff», diz a gente, «pra que tás tu a espirrar? Andaste a cheirar rapé?» E ele vá de espirrar outra vez. Depois vem ter co’a gente e dá-nos co’a cabeça no ombro, o malandreco.
– «Qu’é que tu queres, Taff?», diz a gente.
– E o qu’é qu’ele quer? – perguntava Arthur invariavelmente.
– Quer um bocado de tabaco, meu tontinho.
E a história do Taffy nunca mais acabava, para gáudio da pequenada.
Outras vezes a história mudava.
– Ora ouve esta, meu amor. De quando vou a vestir o casaco, na hora de vir dar ao dente, e dou c’um rato a correr-me pela manga acima. «Eh, lá!», grito eu, mesmo a tempo de lh’agarrar a ponta do rabo.
– E matou-o?
– Matei, pois. São uma praga. Aquilo tá cheio deles.
– E o que é que eles comem?
– Os grãos qu’os cavalos deixam cair... e até nos vêm ao bolso comer o farnel, s’os deixarmos... seja onde for que a gente pendure o casaco... Danados de comilões, isso é qu’eles são...
Estas noites bem passadas só aconteciam quando Morel tinha trabalho para fazer. Depois, ia deitar-se muito cedo, geralmente com as crianças. Não havia nada que o fizesse ficar a pé depois de terminar os consertos e ler por alto os títulos do jornal.
Os filhos sentiam-se seguros quando o pai estava na cama. Por vezes ficavam a conversar em voz baixa depois de se deitarem, e assustavam-se quando luzes de repente se projectavam no tecto, vindas das lanternas dos mineiros que passavam para o turno das nove horas. Ouviam as vozes dos homens e imaginavam-nos a penetrar no vale de breu. Às vezes iam à janela e ficavam a ver as três ou quatro lanternas cada vez mais pequeninas desaparecerem na distância, balançando na escuridão dos prados. E, depois, era tão bom voltarem para a cama e enroscarem-se uns nos outros, no quentinho.
De todos, só Paul era muito frágil, atreito a ataques de bronquite. Os outros eram todos fortes e essa era talvez a outra razão para a diferença que a mãe fazia entre ele e os irmãos. Um dia, Paul chegou adoentado à hora do almoço. A família, porém, não era dada a pieguices.
– O que se passa contigo? – perguntou a mãe, incisiva.
– Nada – respondeu ele.
Mas não quis comer.
– Se não comeres, não voltas para a escola.
– Porquê? – perguntou ele.
– Porque não.
Depois do almoço, ele foi deitar-se no sofá, entre as fofas almofadas de ramagens de que as crianças tanto gostavam, e pareceu adormecer. Nessa tarde, estava Mrs. Morel a passar a ferro quando ouviu os ruídos roucos e entrecortados que o filho fazia ao respirar. De novo a assaltou o antigo sentimento exacerbado de quando ele era bebé e julgava que não ia sobreviver. No entanto, o corpinho dele tinha grande vitalidade. Talvez para ela tivesse sido um alívio se ele tivesse morrido. Sentia sempre a angústia misturar-se ao amor que lhe tinha.
Ele, no seu estado de semiconsciência, apercebia-se vagamente do tinir do ferro no descanso e do seu assentar cavo sobre a tábua de engomar. Uma das vezes, acordando, abriu os olhos e viu a mãe junto à lareira com o ferro quente perto da cara, a escutar por assim dizer o ruído do calor. Ao ver o seu rosto imóvel, a boca crispada de tanto sofrimento, desilusão e abnegação, o nariz ligeiramente à banda e os seus olhos azuis, tão jovens, vivos e ternos, o coração de Paul apertou-se-lhe de amor. Quando ela ficava assim parada, como agora, parecia cheia de vida e de coragem, mas completamente privada dos seus direitos. Ao filho, magoava-o profundamente este pressentimento de ela nunca ter sido feliz, e a sua própria falta de capacidade para a compensar atingia-o como uma espécie de impotência, ao mesmo tempo que determinavam nele uma atitude de paciente tenacidade, em conformidade com as suas ambições pueris.
Ela cuspiu no ferro, e uma bolinha de cuspo enovelou-se e correu pela superfície negra e luzidia. Depois, pondo-se de joelhos, esfregou o ferro vigorosamente no forro de serapilheira do tapete. As chamas da fogueira envolviam-na num clarão cálido e avermelhado. Paul gostava da maneira como ela se baixava e inclinava a cabeça para o lado com movimentos leves e ligeiros. Era sempre com enlevo que a olhava. Nada que fizesse, nenhuma atitude ou movimento, podiam ter defeito para os filhos. A casa estava aquecida e cheirava a roupa quente. Mais tarde, o pároco veio conversar tranquilamente com Mrs. Morel.
Paul caiu à cama com um ataque de bronquite. Não que isso o contrariasse muito: o que tinha de ser tinha muita força e de nada servia revoltar-se. Gostava das noites, depois das oito horas, quando apagavam a luz e ele podia ver as chamas projectarem-se na escuridão das paredes e do tecto e seguir com o olhar as sombras alongadas que o percorriam, até a sala parecer invadida por guerreiros silenciosos, combatendo no silêncio.
Quando se ia deitar, o pai passava primeiro pelo quarto do enfermo. Se alguém estava doente em casa, mostrava-se sempre muito terno, mas a sua entrada não deixava de perturbar a paz que reinava no quarto de Paul.
– Tá a dormir, meu amor? – perguntava Morel, devagarinho.
– Não... A mãe não vem para cima?
– Tá só a acabar de dobrar a roupa. Quer alguma coisa? – Morel só raramente tratava o filho por «você».
– Não, não quero nada... Mas quanto tempo é que demora?
– Já falta pouco, meu tontinho.
O pai hesitava uns segundos frente à lareira. Sentia que o filho não queria a sua presença. Assomava-se então ao cimo das escadas e dizia à mulher:
– Aquela criança tá ansiosa por te ter ó pé... Inda vais ficar aí muito tempo?
– Até acabar o que estou a fazer, santo Deus! Diz-lhe que durma.
– Ela diz qu’o melhor é o meu menino adormecer – disse ele a Paul, de mansinho.
– Mas eu quero que ela venha para cima – insistiu o garoto.
– Ele diz que não dorme enquanto não vieres pra cima – gritou Morel lá para baixo.
– Calma, querido! Já vou. E vê se não gritas dessa maneira. Olha as outras crianças...
Depois, Morel voltou para o quarto de Paul e acocorou-se em frente da lareira. Que bem lhe sabia aquecer-se ao lume.
– Ela diz que já vem.
Parecia querer ficar ali indefinidamente. O garoto já estava febril de irritação. A presença do pai parecia aumentar ainda mais a sua impaciência. Por fim, depois de ficar a olhar para o filho por algum tempo, em silêncio, Morel disse mansamente:
– Boa noite, meu amor.
– Boa noite – respondeu Paul, voltando-se para o outro lado, satisfeito por ficar sozinho.
Paul adorava dormir com a mãe. O sono é ainda mais reparador, apesar de tudo o que dizem os defensores da higiene, quando partilhado com um ente querido. O aconchego, a segurança, a paz de espírito e o conforto que a presença do outro traz, conferem ao sono propriedades curativas. Paul adormecia encostado a ela e melhorava depressa, e ela, sempre atormentada por insónias, mergulhava num sono profundo que parecia renovar-lhe a esperança.
Durante a convalescença, Paul ficava sentado na cama, a ver os cavalos a pastar nos campos circundantes, espalhando o feno pela neve amarelada das pegadas, e a ver os mineiros voltarem para casa, figurinhas negras trilhando lentamente em grupos a alvura dos campos. Depois, vinda da neve, a noite avançava em vapores azulados, quase negros.
Durante a convalescença tudo era maravilhoso. Os flocos de neve caindo de repente na janela detinham-se por um momento, como andorinhas, mas logo desapareciam, e uma gota de água escorria pela vidraça. Os flocos de neve rodopiavam em torno da esquina da casa como pombas esvoaçantes. Do outro lado do vale, o pequeno comboio negro rolava hesitante através da planície toda branca.
Vendo-se tão pobres, as crianças ficavam radiantes quando podiam fazer qualquer coisa que pudesse ajudar os pais economicamente. Annie, Paul e Arthur saíam no Verão logo pela manhã e metiam-se pelo meio da erva molhada, de onde esvoaçavam cotovias, assustadas, à cata de cogumelos, esses corpos nus e de pele tão branca que se escondem dos olhares por entre o verde. Se conseguiam apanhar meia libra, já se davam por muito felizes: era a alegria de encontrarem qualquer coisa, a alegria de receberem qualquer coisa directamente das mãos da natureza e a alegria de poderem contribuir para a economia doméstica.
Mas a colheita mais importante, depois de andarem à procura de ervas aromáticas para as papas, era a das amoras. Mrs. Morel tinha de comprar fruta todos os sábados para os pudins; além disso, gostava muito de amoras. Assim, Paul e Arthur, enquanto houvesse uma amora à vista, esquadrinhavam os silvados, as moitas e as pedreiras abandonadas todos os fins-de-semana. Naquela região de cidades mineiras, as amoras eram relativamente raras. Mas Paul era persistente. Gostava de andar pelos campos entre os silvados, mas não suportava voltar de mãos a abanar. Isso seria desapontá-la, pensava ele, e antes queria morrer.
– Santo Deus! – exclamou a mãe ao vê-los entrar, já tarde, mortos de cansaço e cheios de fome. – Por onde é que vocês andaram?
– Bem – começou Paul –, como aqui não encontrámos nenhuma, fomos até Misk Hills... E veja só, mãe.
Ela espreitou para a cesta.
– E que lindas que são! – exclamou.
– E passa de duas libras... passa de duas libras, não passa, mãe?
A mãe tomou o peso à cesta.
– Passa, sim – respondeu, pouco convicta.
Paul estendeu-lhe um raminho. Trazia-lhe sempre um raminho, o mais bonito que encontrasse.
– Que bonito! – disse ela, com a entoação especial da mulher que recebe um testemunho de amor.
O filho preferia correr os campos o dia inteiro, calcorrear milhas e milhas, a dar-se por vencido e voltar de mãos vazias. Ela nunca o entendeu enquanto ele foi pequeno. Era uma mulher que esperava que os filhos crescessem depressa e se preocupava sobretudo com William.
Mas quando William foi trabalhar para Nottingham, e já não passava tanto tempo em casa, a mãe fez de Paul seu companheiro. Este sentia involuntariamente ciúmes do irmão, e William tinha ciúmes de Paul, mas eram ao mesmo tempo bons amigos.
A relação de Mrs. Morel com o seu segundo filho era mais subtil e tranquila, menos exacerbada talvez do que com o filho mais velho. Estava estabelecido que era Paul quem ia levantar o salário às sextas-feiras à tarde. Os mineiros das cinco minas da zona recebiam à sexta-feira, mas não individualmente. Os salários referentes a cada galeria eram pagos por junto ao capataz, chefe e contratador dos mineiros, e era ele quem fazia a distribuição, na taberna ou na sua própria casa. Para as crianças poderem ir buscar o dinheiro, a escola acabava mais cedo às sextas-feiras. Todos os filhos de Morel, primeiro William, depois Annie e agora Paul, já tinham ido buscar o dinheiro às sextas-feiras à tarde, até chegar a altura de eles próprios começarem a trabalhar. Paul costumava sair de casa às três e meia, com um saquinho de pano no bolso. Por todos os caminhos se viam mulheres, raparigas, crianças e homens a caminho dos escritórios.
Os escritórios eram muito bonitos: num edifício novo de tijolo vermelho, que mais parecia uma mansão, no meio de um jardim muito bem tratado, ao fundo de Greenhill Lane. A sala de espera era no vestíbulo, uma sala comprida e nua com chão de tijoleira azul e um banco a toda a volta, encostado à parede. Era aqui que se sentavam os mineiros, carregados de fuligem. Tinham saído mais cedo da mina. As mulheres e as crianças ficavam geralmente à espera nos arruamentos de gravilha avermelhada. Paul observava sempre com atenção a orla de relva e o grande canteiro onde cresciam amores-perfeitos e miosótis. Aos ouvidos chegava-lhe o som de muitas vozes misturadas. As mulheres exibiam os seus chapéus domingueiros. As raparigas tagarelavam animadas. Os cães corriam para um lado e para o outro. E, em redor, os arbustos erguiam-se verdes e silenciosos.
Nisto, alguém gritava de lá de dentro: «Spinney Park... Spinney Park», e todos os da mina de Spinney Park entravam de tropel. Quando chegava a vez da mina de Bretty, Paul entrava com a multidão. A sala de pagamentos era muito pequena. Um balcão a toda a largura dividia-a ao meio. Atrás do balcão estavam dois homens, Mr. Braithwaite e um empregado, Mr. Winterbottom. Mr. Braithwaite era um homem corpulento, com ar de patriarca austero e uma barbicha branca e rala. Tinha geralmente a boca tapada com um grande lenço de pescoço, em seda, e, mesmo no Verão, havia sempre uma fogueira acesa. Não se via uma janela aberta. Por vezes, no Inverno, o calor até chegava a queimar as gargantas de quem vinha do ar gélido do exterior. Mr. Winterbottom era baixinho, gordo e calvo. Tecia comentários sem o mínimo resquício de imaginação, enquanto o seu chefe não se cansava de proferir patriarcais invectivas contra os mineiros.
A sala estava apinhada de mineiros todos enfarruscados, homens que já tinham ido a casa mudar de roupa, mulheres e uma ou duas crianças, e, geralmente, um cão. Paul era bastante baixo e era por isso sina sua ver-se entalado entre as pernas dos homens, perto do calor sufocante da lareira. Sabia a ordem por que os nomes eram chamados: de acordo com o número da galeria.
– Holliday – chamou a voz metálica de Mr. Braithwaite. Mrs. Holliday avançou em silêncio, recebeu o salário e passou para o outro lado.
– Bower... John Bower.
Um rapaz chegou-se ao balcão. Mr. Braithwaite, uma bisarma irascível, fuzilou-o com o olhar por detrás das lentes.
– John Bower! – voltou ele a chamar.
– Sou eu – disse o rapaz.
– Esta agora..., dantes as ventas eram outras – disse o luzidio Mr. Winterbottom, espreitando por cima do balcão. Os presentes riram-se à socapa, a pensarem no John Bower pai.
– Porque é que o teu pai não veio? – perguntou Mr. Braithwaite, num tom magistral e grandiloquente.
– Não anda bem – respondeu o rapaz, na sua voz aflautada.
– Devias dizer-lhe para largar a bebida – aconselhou o corpulento tesoureiro.
– E depois não te queixes, se ele te ferrar um pontapé – disse uma voz trocista lá de trás.
Todos se riram. O tesoureiro, avantajado e com ares importantes, olhou para a folha que se seguia.
– Fred Pilkington! – chamou, em tom neutro.
Mr. Braithwaite era um importante accionista da firma.
Paul sabia que só faltava um e depois era a vez dele. O coração começou a bater mais depressa. Foi empurrado de encontro à chaminé. Tinha a barriga das pernas a arder, mas não podia furar a barreira humana à sua volta.
– Walter Morel! – soou a voz metálica.
– Aqui – esganiçou-se Paul, da sua pequenez desajeitada.
– Morel... Walter Morel! – repetiu o tesoureiro, de folha de pagamentos na mão, pronto a passar à frente.
Paul foi acometido de convulsões nervosas e não conseguia, ou não queria, gritar. As costas dos homens apagavam-no por completo. Então, Mr. Winterbottom veio em seu auxílio.
– Ele tava aqui... onde tá ele? O miúdo do Morel?
O homem gordo, vermelhusco e calvo perscrutou a sala, assestando os olhos. Nisto, apontou para a chaminé. Os mineiros olharam também e, afastando-se, libertaram o rapaz.
– Aqui tá ele! – disse Mr. Winterbottom. Paul aproximou-se do balcão.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros... Atão, não respondes quando te chamam? – disse Mr. Braithwaite. Pousou um saco com cinco libras em prata com toda a força em cima da folha de pagamentos e, depois, num gesto rápido e delicado, pegou numa pequena pilha de dez libras em ouro e colocou-a ao lado da prata. As moedas de ouro escorregaram sobre o papel como um rio de brilho. O tesoureiro acabou de contar o dinheiro e o rapaz levou tudo a Mr. Winterbottom, no outro extremo do balcão, a quem deviam ser pagas a renda da casa e o aluguer das ferramentas. Aí chegado, novo percalço.
– Dezasseis xelins e seis dinheiros – disse Mr. Winterbottom.
O rapaz estava nervoso de mais para contar o dinheiro, pelo que empurrou algumas moedas de prata e meio soberano na direcção do funcionário.
– Quanto julgas tu que me destes? – perguntou Mr. Winterbottom.
O rapaz fitou-o, sem responder. Não fazia a menor ideia.
– Perdestes a língua?
Paul mordeu o lábio e empurrou mais algumas moedas de prata por cima do balcão.
– Na escola num t’insinaram a contar? – perguntou o homem.
– Só álgibra e franciú – disse um mineiro.
– E a ser sabido – acrescentou outro.
Paul sabia que por sua causa havia gente à espera. Com mãos trémulas, guardou o dinheiro no saco e saiu. Estas ocasiões eram para ele como as penas do Inferno.
Quando se apanhou cá fora, na estrada de Mansfield, sentiu-se infinitamente aliviado. O muro do parque estava coberto de musgo muito verde. Galinhas brancas e douradas debicavam à volta das macieiras de um pomar. Os mineiros serpenteavam rumo a casa. O rapaz seguia rente ao muro, envergonhado. Conhecia muitos dos homens, mas assim, todos sujos, não conseguia identificá-los, o que para ele era uma nova tortura.
Quando chegou à taberna New Inn, em Bretty, o pai ainda não tinha chegado. Mrs. Wharmby, a taberneira, conhecia-o. A avó dele, a mãe de Morel, fora amiga de Mrs. Wharmby.
– O teu pai ainda não chegou – disse ela, naquele tom meio atrevido, meio maternal, de mulher habituada a falar sobretudo com homens feitos. – Senta-te.
Paul sentou-se ao balcão, na beira de um banco alto. Alguns mineiros estavam a um canto a «dividir o bolo» – a distribuir o dinheiro – e outros vinham a entrar. Todos miravam o rapaz, sem dizer palavra. Finalmente, Morel chegou, todo desempenado e com um certo toque de galhardia, apesar da pretidão.
– Olá – disse ele, ternamente, para o filho. – Atão, inda conseguiste chegar primeiro do qu’eu? Queres beber alguma coisa?
Paul, tal como os irmãos, tinha crescido um anti-alcoólico convicto, e para ele era pior beber uma limonada à frente de todos aqueles homens do que tirar um dente.
A taberneira mirou-o dos pés à cabeça, penalizada, mas ao mesmo tempo ofendida com a rigidez moral de que dava mostras. Paul voltou para casa rubro de vergonha. Entrou em silêncio. Sexta-feira era dia de cozer o pão e havia geralmente uma carcaça quentinha à sua espera. A mãe veio dar-lha.
De repente, ele virou-se a ela furioso, de olhos a faiscar.
– Nunca mais entro naquele escritório.
– Porquê, o que é que aconteceu? – perguntou a mãe, surpreendida. Divertia-se imenso com os súbitos ataques de fúria deste filho.
– Nunca mais lá volto – afirmou ele.
– Pronto, está bem. Então, vai dizer isso ao teu pai.
Paul mastigava o pão como se tivesse alguma coisa contra ele.
– Não vou... Não vou mais buscar o dinheiro.
– Então talvez um dos miúdos do Carlin possa ir. Eles haviam de gostar de ficar com os seis dinheiros – disse Mrs. Morel.
Os seis dinheiros era tudo o que Paul recebia. Gastava-os quase todos a comprar presentes de aniversário, é certo, mas eram a sua semanada e prezava-os muito. Porém, disse:
– Pois que fique com eles! Eu não os quero.
– Muito bem – respondeu a mãe. – Mas não precisas de me tratar mal por causa disso.
– Eles são horríveis e ordinários... são horríveis, pronto, e eu não vou lá mais. Mr. Braithwaite pronuncia mal as palavras e Mr. Winterbottom diz «a gente semos».
– E é por isso que não queres lá voltar? – disse a mãe a sorrir.
O rapaz ficou calado. Estava muito pálido, com os olhos pretos e furiosos. A mãe voltou aos seus afazeres sem lhe dar mais importância.
– Eles metem-se todos à minha frente e eu não consigo sair donde estou – disse ele.
– Bem, meu filho, só tens de pedir licença – respondeu ela.
– E depois o Alfred Winterbottom diz, «O qu’é que t’insinam na escola?»
– A ele nunca ensinaram grande coisa – disse Mrs. Morel. – Lá isso é verdade... nem boas maneiras, nem inteligência... a única coisa que tem é manha.
– E vão eles e dizem, «Só álgibra e franciú.» Na escola, não ensinam francês.
– Mas, se ensinassem – disse a mãe, sorrindo – não era preciso ficares tão zangado... Portas-te duma maneira tão infantil, meu filho, quando alguém brinca contigo.
– E depois? – Paul olhou para a mãe quase a chorar, e ainda com mais raiva e ódio do que propriamente ofendido.
– És tão pateta – continuou ela. – Não consegues dizer simplesmente «agora é a minha vez», deixas-te ultrapassar e depois ficas furioso. A culpa é tua.
E, assim, lá o acalmou, embora à sua maneira. A ridícula hiper-sensibilidade dele confrangia-lhe o coração. Outras vezes, a fúria que via nos olhos do filho alertava-a, fazia a sua alma adormecida levantar a cabeça momentaneamente, surpreendida.
– Quanto foi desta vez? – perguntou.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros, e dezasseis xelins e seis dinheiros de retenção – replicou o rapaz. Foi uma boa semana... e só cinco xelins de retenções para o meu pai.
Assim, ela podia calcular quanto o marido tinha ganho, e chamá-lo à pedra se ele lhe desse pouco dinheiro. Morel guardava sempre para si o segredo do montante da semana.
Sexta-feira era a noite de cozer pão e de ir ao mercado. Regra geral, Paul ficava em casa a vigiar o pão. Gostava de ficar a desenhar ou a ler – adorava desenhar. Annie punha-se sempre ao fresco à sexta-feira à noite, e Arthur entretinha-se a brincar na rua, como de costume. Por isso, Paul ficava sozinho.
Mrs. Morel gostava muito de ir à compras. No exíguo terreiro no cimo da colina onde se juntavam as quatro estradas vindas de Nottingham e Derby, Ilkeston e Mansfield, eram montadas muitas barracas. Chegavam breques das aldeias em redor. O mercado enchia-se de mulheres, as ruas ficavam apinhadas de homens. Mrs. Morel costumava discutir com a vendedeira de rendas, simpatizava com o homem da fruta, que era muito falador – mas a mulher, essa era uma desavergonhada, sempre a dar conversa ao peixeiro, que era um patife, mas muito espirituoso – metia na ordem o vendedor de linóleo, mostrava-se distante com o homem do bricabraque, e só entrava na barraca das loiças quando se sentia atraída – ou arrastada – pelas florinhas que decoravam algum prato ou alguma travessa. Mas, sempre que isso acontecia, mostrava-se delicadamente reservada.
– Estava aqui a pensar quanto poderia custar isto – dizia ela.
– Sete dinheiros, por ser para si.
– Obrigada.
Pousava de novo a travessa e ia-se embora. Mas não era capaz de deixar o mercado sem a levar. E lá ia ela outra vez ao sítio onde as loiças estavam expostas pelo chão, e olhava de soslaio para a travessa, furtivamente, fingindo que não estava a olhar.
Era uma mulher franzina, de chapéu e fato preto. O chapéu já tinha quase três anos, para vergonha e desespero de Annie.
– Mãe! – implorava ela. – Não ponhas mais esse chapéu horroroso.
– E queres que eu ponha o quê? – retorquia a mãe, com aspereza. – Acho que está até muito bom.
Começara por ser enfeitado com uma pala, depois seguiram-se flores, e agora estava reduzido a uma rendinha preta e um pouco de azeviche.
– Tem tão mau aspecto – dizia Paul. – Não lhe pode dar um ar um pouco mais moderno?
– Posso é dar-te umas boas palmadas, para não seres atrevido – disse Mrs. Morel, e atava as fitas do chapéu preto debaixo do queixo, com determinação.
Contemplou a travessa uma vez mais. Tanto ela como o oleiro se sentiam pouco à vontade, como se entre eles existisse qualquer desentendimento. De repente, o oleiro exclamou:
– Quer levá-la por cinco dinheiros?
Ela estremeceu. O coração apertou-se-lhe. Mas, depois, baixou-se e pegou na travessa.
– Fico com ela – disse ela.
– Faz-me esse favor, não é? – disse o homem. – O melhor é cuspir-lhe em cima, como se faz quando nos dão uma prenda.
Mrs. Morel deu-lhe os cinco dinheiros com frieza.
– Não acho que ma esteja a dar, percebe – disse ela. – Se não quisesse, não ma deixava levar por cinco dinheiros.
– Neste país de miséria, já nos podemos dar por muito felizes se pudermos dar as nossas coisas – resmungou o homem.
– Pois é, há tempos bons e maus – disse Mrs. Morel.
Mas já tinha perdoado ao oleiro. Agora, eram amigos. Já se atrevia a mexer nas loiças expostas e sentia-se feliz.
Paul estava à espera da mãe. Adorava vê-la entrar em casa. Chegava sempre radiante, triunfante, cansada, carregada de embrulhos, mas rica de espírito. Ele ouvia os seus passinhos leves na entrada e levantava os olhos das pinturas.
– Oh! – suspirava ela, sorrindo-lhe da soleira da porta.
– Ena pá, como vem carregada! – exclamava Paul, pousando o pincel.
– Se venho! – dizia ela, ofegante. – A marota da Annie disse que ia ter comigo. Olha para o peso que eu trago!
Pousou o saco e os pacotes em cima da mesa.
– O pão já está cozido? – perguntou, dirigindo-se para o forno.
– O último está a crescer – respondeu ele. – Não precisa de ir ver, eu não me esqueci dele.
– Ai, aquele oleiro! – disse ela, fechando a porta do forno. – Lembras-te de eu te dizer como ele era antipático. Bom, agora já não acho que seja assim tão mau.
– Ah, não?
O filho não tirava os olhos dela. Mrs. Morel tirou o chapelinho preto.
– Não... Acho que ele acaba por não ganhar nada... bem, passa-se o mesmo com toda a gente, nos tempos que correm... e é isso que o deixa mal-encarado.
– A mim deixava com certeza – disse Paul.
– Bom, e não seria para admirar... E ele deixou-me ficar esta... Por quanto é que achas que ele me deixou ficar isto?
Tirou a travessa do papel que a embrulhava e contemplou-a, satisfeita.
– Mostre lá! – pediu Paul.
E ficaram os dois lado a lado a admirar a travessa.
– Adoro ver estas florinhas a enfeitar as coisas – disse Paul.
– Eu também. E lembrei-me do bule que me compraste...
– Um xelim e três dinheiros – disse Paul.
– Cinco dinheiros!
– Foi muito barata, mãe.
– Pois foi. Pode dizer-se que foi quase roubada. Mas já tinha feito muitas extravagâncias e não tinha dinheiro para mais. E, se ele não quisesse, não precisava de ma vender.
– Lá isso, não, não precisava – disse Paul, e ficaram os dois a consolar-se mutuamente do receio de terem roubado o oleiro.
– Podemos usá-la para pôr fruta cozida – alvitrou Paul.
– Ou leite-creme... ou doce de fruta – acrescentou a mãe.
– Ou rabanetes e alface – continuou ele.
– Não te distraias com o pão – disse a mãe, numa voz transbordante de alegria.
Paul foi espreitar o pão e bateu-lhe ao de leve na parte de baixo.
– Já está cozido – disse, mostrando-o à mãe. Ela bateu-lhe também.
– Pois está – respondeu ela, começando a tirar as compras do saco. – Oh, sou uma gastadora, uma perdulária... Sei que um dia me vai fazer falta.
Paul foi a saltitar para junto da mãe, para ver as últimas extravagâncias. Ela abriu um outro embrulho em papel de jornal e pôs à mostra algumas raízes de amores-perfeitos e boninas carmesim.
– Quatro dinheiros! – lamentou-se.
– Que barato! – exclamou ele.
– Pois é, e logo esta semana que eu estava sem um tostão.
– Mas são lindas! – exclamou ele.
– Então não são! – exclamou ela, dando lugar ao mais genuíno contentamento. – Paul... olha para esta florinha amarela... que bonita, não é... e uma cara que parece de velho!
– E parece mesmo! – exclamou Paul, baixando-se para cheirar. – E que bem que cheira! Mas está um bocado suja.
Correu para a copa, voltou com um pano molhado, e lavou o amor-perfeito com todo o cuidado.
– Agora, olhe para ele, está todo molhado! – disse Paul.
– Pois está! – exclamou ela, a transbordar de felicidade.
As crianças de Scargill Street consideravam-se muito selectas. Ao fundo da rua, onde viviam os Morels, não havia muita gente nova, e, por isso, os que havia eram mais unidos. Rapazes e raparigas brincavam uns com os outros: as raparigas participavam nas lutas e jogos violentos dos rapazes, e os rapazes tomavam parte nas danças de roda e nos jogos de faz-de-conta das raparigas.
Annie, Paul e Arthur gostavam das noites de Inverno, quando não chovia. Deixavam-se ficar dentro de casa até os mineiros terem regressado todos, até ser noite fechada e a rua ficar deserta. Nessa altura, enrolavam um cachecol ao pescoço, pois prescindiam do casacão, tal como os outros filhos dos mineiros, e saíam de casa. A entrada da rua estava completamente às escuras daquele lado e a noite estendia-se vazia, com um pequeno emaranhado de luzinhas lá em baixo, na mina de Minton, e um outro bem mais longe, na direcção oposta, na de Selby. As luzes mais distantes pareciam prolongar as trevas para sempre. As crianças olhavam ansiosas para o lampião solitário postado ao fundo da rua, na extremidade da ladeira da encosta. Se o escasso espaço de luz estava deserto, os dois rapazes ficavam desolados. Encostavam-se ao candeeiro, de mãos nos bolsos e costas viradas à noite, aborrecidíssimos, a olharem para as casas às escuras. Nisto, avistaram um bibe por baixo de um casaquinho curto, e uma rapariga de pernas altas a correr para eles.
– Onde tão o Billy Pillins e a vossa Annie e o Eddie Dakin?
– Não sei.
Mas isso não tinha importância – agora já eram três, e punham-se a correr à volta do poste até os outros aparecerem a gritar. Daí em diante, era brincadeira a valer.
Existia apenas este candeeiro. Para trás dele, só a imensa concha de trevas que parecia conter a noite inteira. À sua frente, um caminho largo e escuro percorria a cumeada. De vez em quando, saía alguém desse caminho e dirigia-se para o vale, pelo carreiro, sendo tragado pela noite a uns escassos dez metros de distância. As crianças continuaram a brincar.
Eram excessivamente unidas devido ao isolamento em que viviam. Mas, se se zangavam, a brincadeira ficava completamente estragada. Arthur era muito susceptível, e Billy Pillins, ou melhor, Philips, era-o ainda mais. Paul tinha de tomar o partido de Arthur, e a Paul juntava-se Alice, enquanto Billy Pillins contava sempre com o apoio de Emmie Limb e Eddie Dakin. Depois, envolviam-se os seis à bulha, odiando-se com toda a fúria do mais genuíno ódio, e corriam para casa apavorados. Paul nunca se havia de esquecer de ter visto uma noite, depois de uma destas assanhadas lutas fratricidas, uma grande lua vermelha elevar-se lentamente no céu por cima da estrada deserta da cumeada, sem vacilar, como pássaro gigantesco; e a imagem bíblica que o assaltou, da lua a transformar-se em sangue. No dia seguinte, apressou-se a ir fazer as pazes com Billy Pillins, e as desenfreadas brincadeiras retomaram o seu curso à luz do candeeiro solitário, rodeadas da mais negra escuridão. Mrs. Morel, ao entrar na sala, ouvia as crianças a cantar ao longe:
«Uso sapatos de couro espanhol,
Meias de seda, para meu deleite;
Anéis nos dedos, que brilham ao sol,
E só tomo banho em tinas de leite.»
Pareciam tão absorvidas no jogo, pelo som das suas vozes que penetrava as trevas, que dir-se-ia o canto de criaturas selvagens. A mãe estremecia e entendia-os quando voltavam às oito horas, afogueados, de olhos brilhantes e língua solta e vibrante.
Todos eles gostavam desta casa de Scargill Street pela sua largueza de horizontes, pela sua abertura sobre a concha de mundo que dominava. Nas noites de Verão, as mulheres vinham arrimar-se à cerca da encosta, a conversar, viradas para poente, vendo o sol apagar-se num lampejo e espraiando o olhar até aos montes do Derbyshire, recortados ao longe num céu de carmim, como a crista negra de uma salamandra.
Neste Verão, as minas não estavam a trabalhar em pleno, especialmente as de carvão mole. Mrs. Dakin, que morava ao lado de Mrs. Morel, costumava ficar a ver os homens subirem a encosta lentamente sempre que se assomava à cerca para sacudir o tapete. Viu logo que eram mineiros e ficou à espera lá em cima, alcandorada na colina, alta, magra, olhar astuto e penetrante, uma quase ameaça para os pobres mineiros que a custo trepavam a ladeira. Eram apenas onze horas. A neblina que, como fino crepe negro, cobre o horizonte das manhãs estivais não se tinha ainda dissipado sobre as colinas frondosas desenhadas à distância. O primeiro homem alcançou a cancela, que chiou à sua passagem.
– O quê, mandaram-no embora? – gritou Mrs. Dakin.
– Mandaram, sim senhora.
– É uma pena deixarem-nos vir embora – disse ela, sarcástica.
– Lá isso é – respondeu o homem.
– E não apetece nada voltar para casa agora – disse ela.
O homem seguiu o seu caminho. Quando Mrs. Dakin atravessava o quintal, de volta a casa, avistou Mrs. Morel, que ia despejar as cinzas da lareira.
– Acho que Minton fechou, Mrs. Morel – gritou ela.
– É uma vergonha! – exclamou Mrs. Morel indignada.
– Pois é... Vi mesmo agora o Jont Hutchly.
– Bem podiam ter poupado as solas dos sapatos – disse Mrs. Morel, e voltaram as duas para casa indignadas.
Os mineiros, de caras quase limpas, voltavam para casa. Morel detestava ter de se vir embora. Adorava as manhãs soalheiras, mas ir para a mina e mandarem-no embora logo a seguir estragava-lhe a boa disposição.
– Santo Deus... já? – exclamou a mulher, vendo-o entrar.
– Qu’hei-d’eu fazer, mulher! – berrou ele.
– E eu não tenho comida que chegue.
– Num faz mal, como o farnel que levei – vociferou ele, pateticamente. Sentia-se envergonhado e irritado.
Os filhos, quando chegaram da escola, estranharam ver o pai a comer as duas grossas fatias de pão com manteiga que tinha levado para a mina, já muito secas e sujas.
– Porque é que o meu pai tem de comer o farnel aqui em casa? – perguntou Arthur.
– Porqu’ela ficava toda zangada s’eu num o comesse – respondeu Morel.
– Lá estás tu com histórias! – exclamou a mulher.
– E achas qu’é pra deitar fora? – disse Morel. – Eu num sou esquisito como vocês, que desperdiçam tudo. Se me cai um bocado de pão na mina, no meio daquela porcaria toda, apanho-o e como-o.
– Os ratos comiam-no – disse Paul – e já não era um desperdício.
– Pão cum manteiga pròs ratos? Nem pensar nisso – disse Morel. – Sujo ou limpo, antes comê-lo eu que deitá-lo fora.
– Podias dá-lo aos ratos e comprares mais com o dinheiro que gastas na cerveja – disse Mrs. Morel.
– Ah, podia...? – exclamou o marido.
O Outono que se seguiu foi de míngua. William tinha acabado de partir para Londres e a mãe sentia a falta do dinheiro que ele lhe costumava entregar. Ainda lhe mandou dez xelins por uma ou duas vezes, mas no início tinha muitas compras a fazer. As suas cartas chegavam com regularidade, uma vez por semana. Escrevia longas cartas à mãe em que lhe contava o que fazia, os amigos que tinha, as lições que trocava com um francês, como gostava de viver em Londres. Para a mãe era como se ele estivesse com ela, como no tempo em que morava em casa. E ele todas as semanas lhe escrevia cartas francas e cheias de espírito. Era nele que ela pensava o dia inteiro, enquanto fazia a limpeza da casa. Ele estava em Londres, ia ter sorte. Era quase como se fosse o seu cavaleiro andante, ostentando as cores dela na batalha.
Vinha agora a casa passar cinco dias pelo Natal. Não havia memória de tantos preparativos. Paul e Arthur correram os campos à procura de azevinho e sempre-viva. Annie fez enfeites de papel recortado à moda antiga, e a despensa estava farta como nunca. Mrs. Morel fez um bolo de natal enorme, magnífico, e sentindo-se uma rainha, mostrou a Paul como se pelavam amêndoas. Ele pelou as oleaginosas com reverência, contando-as, uma a uma, não fosse alguma perder-se. Dizia-se que as claras subiam mais num lugar frio e, por isso, Paul foi para a copa, onde o frio era quase insuportável, batendo-as sem parar e correndo excitadíssimo a mostrar a mãe como as claras cresciam, cada vez mais firmes e nevadas.
– Olhe, mãe... estão óptimas, não estão?
Depois, pôs um bocadinho na ponta do nariz e soprou-o para o ar.
– Então, isso não é para estragar – disse a mãe.
Toda a gente andava excitadíssima. William ia chegar na véspera de Natal. Mrs. Morel passou revista à despensa. Havia um grande bolo de passas e um bolo de farinha de arroz; tartes de geleia e de limão, e duas grandes travessas cheias de empadas de carne. E ainda faltavam umas tartes de amêndoa e de queijo que ela preparava a toda a pressa. A casa estava toda enfeitada. A coroa de azevinho, salpicada de bagas bem vermelhas e pendurada entre grinaldas cintilantes, rodopiava por cima da cabeça de Mrs. Morel enquanto ela recortava a massa das tartes na cozinha. A fogueira, imensa, crepitava. A casa rescendia a bolos e massa folhada. William devia chegar às sete horas, mas o mais provável era atrasar-se. Os irmãos tinham ido ao seu encontro. A mãe ficara sozinha. Mas, por volta de um quarto para as sete, Morel voltou para casa. Marido e mulher nada disseram. Ele sentou-se no cadeirão, ansioso, sem saber o que fazer, e ela continuou com os seus cozinhados. A sua comoção só era traída pelo modo meticuloso como ia fazendo as coisas. E o relógio continuou a bater.
– A que horas disseste qu’ele chegava? – perguntou Morel, pela quinta vez.
– O comboio chega às seis e meia – respondeu ela, enfaticamente.
– Então vai chegar por volta das sete e dez.
– Deus te oiça, mas o comboio vai atrasar-se algumas horas no Midlands – disse ela, aparentando indiferença. Fazia-o, no entanto, com a esperança de acontecer o contrário e ele chegar mais cedo. Morel foi até à porta, para ver se o via. Depois voltou para dentro.
– Credo, homem! – disse ela. – Parece que tens bicho-carpinteiro.
– Em vez de estares pr’aí a falar, num era melhor arranjares-lhe alguma coisa para comer? – disse o marido.
– Tenho muito tempo para isso – respondeu ela.
– Num é o que me parece – contrapôs ele, virando-se amuado na cadeira. Ela começou a limpar a mesa da cozinha. A chaleira já apitava. E eles à espera.
Entretanto, os outros três filhos estavam em Lethley Bridge, uma estação da linha do Midlands, a duas milhas de casa. Esperaram uma hora. Chegou um comboio, e nada. Ao fundo da linha, as luzes verdes e vermelhas acendiam e apagavam. Estava muito escuro e fazia muito frio.
– Vai perguntar-lhe se o comboio de Londres já passou – disse Paul a Annie quando avistaram um homem de boné de pala.
– Não vou nada – disse Annie. – Fica mas é calado, senão ele inda nos manda embora.
Mas Paul estava morto por que o homem soubesse que eles esperavam alguém que vinha de Londres, o que lhes dava uma certa importância. Porém, tinha medo, muito medo, de abordar um desconhecido, e ainda por cima de boné de pala. As crianças nem se atreviam a entrar na sala de espera, com medo de que os mandassem embora, e que alguma coisa acontecesse enquanto não estavam na plataforma. E lá continuaram à espera, no frio e na escuridão.
– Já está hora e meia atrasado – disse Arthur, já a desesperar.
– Bem – disse Annie –, é véspera de Natal.
O silêncio crescia entre eles. O irmão não vinha. Perscrutaram a escuridão ao longo da linha férrea. Lá ao fundo, ficava Londres! Uma lonjura infinita, pensaram. Tudo podia acontecer quando se vinha de Londres. Estavam demasiado preocupados para falarem. Enregelados, tristes e mudos, continuavam encostados uns aos outros na plataforma.
Finalmente, passadas mais de duas horas, avistaram os faróis de uma locomotiva a descrever uma curva na distância. Um bagageiro aproximou-se a correr. As crianças chegaram-se para trás com os corações a galope. Um enorme comboio com destino a Manchester parou. Abriram-se duas portas e, de uma delas, saiu William. Os irmãos atiraram-se a ele. Ele, todo contente, entregou-lhes muitos embrulhos e logo explicou que aquele grande comboio só tinha parado numa estação insignificante como Lethley Bridge por causa dele, já que a paragem não estava programada.
Entretanto, os pais iam ficando cada vez mais preocupados. A mesa estava posta, a costeleta grelhada, tudo estava a postos. Mrs. Morel pôs o seu avental preto. Por baixo, tinha o seu melhor vestido. Depois sentou-se e fingiu concentrar-se na leitura. Os minutos arrastavam-se como uma tortura.
– Hum! – disse Morel. – Já passa hora e meia.
– E aquelas crianças à espera! – disse ela.
– O comboio inda num pode ter chegado – disse ele.
– É o que eu digo. Na véspera de Natal vêm com horas de atraso.
Estavam os dois implicativos de tanta ansiedade. O freixo gemia lá fora fustigado por um vento gélido, implacável. E tanta noite a separar Londres do lar! Mrs. Morel sofria. O tiquetaque do relógio irritava-a sobremaneira. Estava a fazer-se tarde. A espera estava a tornar-se insuportável.
Por fim, o ruído de vozes e de passos na entrada.
– Já chegou! – gritou Morel, saltando da cadeira.
Depois, deu um passo à retaguarda. A mãe correu em direcção à porta e ficou à espera. Seguiu-se um tropel de passos, a porta escancarou-se e William apareceu. Largou no chão o saco de viagem e abraçou-se à mãe.
– Mater! – disse ele.
– Meu filho! – gritou ela.
E, durante não mais de dois segundos, ela abraçou-o e beijou-o. Depois, afastou-se e disse, com a naturalidade possível:
– Mas que grande atraso!
– Foi, não foi? – exclamou ele, voltando-se para o pai.
– Então, pai!
E os dois homens trocaram um aperto de mão.
– Então, meu rapaz!
Os olhos de Morel estavam rasos de lágrimas.
– Távamos a ver que nunca mais chegavas – disse ele.
– Então não havia de chegar! – exclamou William, voltando-se para mãe.
– Estás com óptimo aspecto – disse Mrs. Morel, a rir, toda orgulhosa.
– Claro... – respondeu o filho. – Basta ter voltado para casa.
Era um jovem desempenado, alto, garboso e de olhar intrépido. Olhou em volta, para a sempre-viva e o azevinho, e para as empadas que estavam dentro das forminhas em cima do fogão.
– Graças a Deus que nada mudou, mãe – disse ele, satisfeito. Todos ficaram calados por um momento. De repente, ele deu um salto em frente, tirou uma empadinha do fogão e meteu-a na boca de uma só vez.
– Safa, já alguma vez viram um saco roto como este? – exclamou o pai.
William trazia um nunca mais acabar de presentes para todos. Gastara quanto tinha para os comprar. A casa foi invadida por uma certa atmosfera de luxo e prosperidade. Para a mãe, uma sombrinha com o cabo beige com enfeites dourados. Ela guardou-a para quando morresse, e antes queria perder tudo o que tinha a ficar sem ela. Todos receberam coisas bonitas e, além disso, ele trouxe também montes de guloseimas desconhecidas naquelas paragens: geleias de frutos, ananás cristalizado, coisas que as crianças pensavam que só o esplendor de Londres tornava possíveis. E Paul não se calava de gabar tais guloseimas diante dos amigos.
– Ananás autêntico, às fatias, e transformado em cristal... bem bom!
Todos estavam loucos de felicidade. Não há nada que chegue ao próprio lar, e eles amavam-no com paixão, apesar dos maus bocados lá passados. Chegavam visitas, todos vinham dar-lhe os parabéns. Os vizinhos vinham ver o que Londres tinha feito de William e todos achavam que ele estava «um verdadeiro cavalheiro, e um belo rapaz, isso é que estava!».
Quando ele se foi embora outra vez, os irmãos foram chorar às escondidas para sítios diferentes, Morel foi meter-se na cama abatidíssimo e Mrs. Morel sentia-se como se estivesse drogada, como se os seus sentimentos tivessem paralisado. Amava o filho com verdadeira paixão.
William trabalhava no escritório de um advogado ligado a uma grande companhia de navegação e, em Junho, o chefe proporcionou-lhe uma viagem ao Mediterrâneo num dos barcos da companhia, por um preço irrisório. Mrs. Morel mandou-lhe dizer: «Vai, sim, meu filho. Podes não voltar a ter uma oportunidade como essa, e, para mim, ver-te a navegar no Mediterrâneo é talvez ainda melhor do que ter-te aqui em casa.» Mas William veio passar as duas semanas de férias a casa. Nem o Mediterrâneo, apelando embora a toda a sua ânsia de viajar e ao seu deslumbramento de homem pobre diante da opulência do Sul, podiam mantê-lo longe de casa. E isso era para a mãe compensação bastante para todos os sacrifícios.
V
PAUL ENFRENTA A VIDA
MOREL era um homem negligente, indiferente ao perigo, sofrendo por isso inúmeros acidentes. De tal forma que, quando Mrs. Morel ouvia chiar as rodas de uma carroça de transporte de carvão, estacando à sua porta, corria logo para a janela da sala à espera de ver o marido lá sentado, com o rosto macilento por baixo da camada de fuligem, e o corpo inerte, vítima de qualquer contusão ou outro percalço. Se era ele, saía de casa a correr para o ajudar.
Cerca de um ano após William ter ido para Londres, e logo depois de Paul ter saído da escola, mas quando ainda não tinha arranjado trabalho, estava Mrs. Morel no andar de cima e o filho na cozinha, entretido a pintar – fazia maravilhas com os pincéis – quando bateram à porta. Enfadado, Paul pousou o pincel para ir abrir. Simultaneamente, a mãe abriu a janela e espreitou para a rua.
Era um mineiro, um rapazito, que batia à porta.
– É aqui que mora o Walter Morel? – perguntou.
– É, sim! – respondeu Mrs. Morel. – Aconteceu alguma coisa?
Mas ela já tinha adivinhado.
– O seu marido aleijou-se – disse o rapaz.
– Oh, meu Deus! – exclamou ela. – Quando não acontece nada é que é para admirar. O que foi desta vez?
– Num sei bem, mas foi na perna... Levaram-no prò hospital.
– Valha-me Deus! – exclamou ela. – Ah, este homem... este homem...! Não me dá cinco minutos de descanso, eu morra aqui se não é verdade! O polegar já estava quase bom e agora... Tu viste-o?
– Vi-o lá ’baixo. E vi-os trazerem-no pra cima num elevador... tava branco cum’á cal. E o qu’ele berrou quando o Dr. Fraser o examinou na casa das lanternas... sempre aos berros e a praguejar... e a dizer que queria qu’o trouxessem pra casa... que num ia prò hospital...! E o rapaz calou-se.
– Isso é bem dele... quer vir para casa, para me dar trabalho... Obrigada, meu filho... Que cansada que eu estou de tudo isto... cansada e farta... isso é que eu estou!
Desceu as escadas. Paul tinha recomeçado a pintar, mecanicamente.
– Deve ser grave... para o levarem para o hospital... – continuou ela. – Mas que criatura mais descuidada! Os outros homens não podem ter assim tantos acidentes... É isso, ele queria deitar o trabalho todo para cima das minhas costas... E logo agora, que as coisas estavam finalmente a correr um bocadinho melhor... Vá, deixa isso, agora não há tempo para pinturas... A que horas tenho comboio? Agora vou ter de ir até Kreston... o quarto tem de esperar.
– Eu acabo de o arrumar – disse Paul.
– Não precisas... às sete horas estou de volta, acho eu... E o barulho que ele vai fazer... nem quero pensar... E aqueles calhaus de granito de Tinder Hill... ele bem pode chamar-lhes pedrinhas... os solavancos vão dar cabo dele. Não sei porque não consertam a estrada... naquele estado... e com tanta gente a passar por lá na ambulância... Devia haver aqui um hospital... Já compraram o terreno... e não iam faltar acidentes para o manter a funcionar. Mas não, têm de os levar não sei quantas milhas naquela ambulância ronceira até Nottingham. É uma vergonha! E o estardalhaço que ele vai fazer, já sei como é! Quem terá ido com ele?... O Barker, provavelmente. Coitado, vai desejar estar em qualquer lado menos ali. Mas vai cuidar bem dele, eu sei. E agora sei lá quanto tempo ele vai ficar naquele hospital... e ele que detesta! Enfim, se for só a perna, já não é mau.
Ia falando enquanto se preparava para sair. Despindo o corpete à pressa, baixou-se para a caldeira, enquanto a água corria lentamente para o jarro.
– Era bem melhor se esta caldeira não existisse! – exclamou ela, apertando a asa do jarro com impaciência. Tinha uns braços fortes e bem torneados, surpreendentes numa mulher da sua estatura.
Paul arrumou as suas tralhas, pôs a chaleira ao lume e pôs a mesa.
– Só há um comboio às quatro e vinte – disse ele. – Tem tempo de sobra.
– Não tenho, não! – gritou ela, piscando os olhos e fitando-o por cima da toalha, enquanto limpava a cara.
– Tem, sim... Tem pelo menos de beber uma chávena de chá. Quer que vá consigo até Keston?
– Vires comigo para quê, pode saber-se?... Ora deixa cá ver o que é que eu tenho de lhe levar... Valha-me Deus!... A camisa lavada... e é uma sorte estar lavada... mas ficava melhor se a tivesse posto ao ar... as meias... isso ele não vai querer... e uma toalha, acho eu... e lenços... e que mais?
– Um pente, uma faca, um garfo e uma colher – disse Paul. Já não era a primeira vez que o pai ficava internado no hospital.
– Sabe Deus em que estado ele tinha os pés – continuou Mrs. Morel, penteando o cabelo castanho e muito comprido, fino como seda e já salpicado de fios prateados. – Ele nunca se esquece de se lavar da cintura para cima, mas para baixo acha que já não é preciso. Mas devem apanhar lá muitos como ele.
Paul tinha posto a mesa e preparou duas fatias finas de pão com manteiga para a mãe.
– Aqui tem – disse, pondo uma chávena de chá em frente ao lugar dela.
– Agora não tenho tempo – disse ela, secamente.
– Mas tem de ter... Olhe, já está tudo pronto – insistiu o filho.
Ela acabou por se sentar, bebeu uns golinhos de chá e comeu um pouco de pão em silêncio. Estava a pensar.
Daí a nada, tinha de se ir embora, para percorrer a pé as duas milhas e meia até à estação de Keston. Já tinha metido no saco de rede tudo o que ele precisava. Paul ficou a vê-la subir a estrada, entre as sebes de arbustos, pequenina e franzina, e o seu coração sofria por ela, por vê-la sujeita a mais esta provação. E ela, correndo ligeira de tanta ansiedade, sentia atrás de si o coração do filho a acompanhá-la, a tomar para si a parte possível deste fardo, a dar-lhe forças. E, quando chegou ao hospital, pensou: «Ele vai ficar preocupadíssimo quando eu lhe disser que é assim tão grave... o melhor é ter cuidado.» E, de regresso a casa, sentia que tinha com quem partilhar o fardo.
– É grave? – perguntou Paul, mal a viu entrar.
– Mais ou menos – respondeu ela.
– O quê?
Ela suspirou, sentou-se e desapertou as fitas do chapéu. O filho viu-a levantar o queixo e desatar a laçada com os dedos pequeninos, mas endurecidos pelo trabalho.
– Bem – respondeu ela – não se pode dizer que seja perigoso... mas a enfermeira diz que foi uma pancada horrível. Estás a ver... foi um grande bocado de rocha que lhe caiu em cima da perna... aqui, salvo seja... uma fractura múltipla... e tem bocados de osso a sair para fora...
– Ui, que horror! – exclamaram os filhos.
– E claro que ele diz que vai morrer – continuou Mrs. Morel. – É mesmo dele dizer isso... «Estou arrumado, cachopa!», disse ele, olhando para mim. «Não digas disparates», disse eu. «Não vais morrer de uma perna partida, por pior que esteja»... «Só saio daqui num caixão», queixava-se ele. «Bem!», disse eu, «Se queres que eles te levem a passear ao jardim dentro dum caixão, quando estiveres melhor, é só pedires e eles fazem-te a vontade»... «Se acharmos que lhe vai fazer bem», acrescentou a Irmã. Ela é bem simpática, a Irmã, mas muito rigorosa.
Mrs. Morel tirou o chapéu. Os filhos mantiveram-se em silêncio, expectantes.
– Claro que ele está mal – prosseguiu ela. – E vai levar muito tempo a recompor-se. Foi um acidente muito grave e ele perdeu muito sangue... e, já se vê, a lesão é muito perigosa. Ninguém sabe o tempo que vai levar a sarar. E depois há a febre e a gangrena... se correr mal, ele até pode morrer... Mas lá no hospital... e depois ele tem bom sangue... e boa carnadura... Por isso não vejo razão para que tenha de correr mal... Claro que a ferida é muito grande...
Ela estava lívida, da angústia e da emoção. Os três filhos perceberam que o estado do pai era muito grave e a casa ficou silenciosa, perpassada de ansiedade.
– Mas ele melhora sempre – disse Paul, passado um bocado.
– Foi exactamente o que eu lhe disse – exclamou a mãe.
Todos se moviam de um lado para o outro sem fazerem o menor ruído.
– Ele de facto parecia que estava a morrer – disse Mrs. Morel. – Mas a Irmã diz que é das dores.
Annie foi arrumar o casaco e o chapéu da mãe.
– Ficou a olhar para mim quando eu me vim embora...! Eu disse: «Agora tenho de ir, Walter, por causa do comboio... e das crianças...» E ele ficou a olhar para mim... Custou-me tanto...
Paul pegou outra vez no pincel e continuou a pintar. Arthur foi lá fora buscar mais carvão. Annie ficou sentada, muito triste. E Mrs. Morel continuou imóvel, pensativa, na cadeira de baloiço que o marido lhe fizera, quando esperavam o primeiro filho. Estava triste e com muita pena de ver um homem sofrer tanto. Mas, mesmo assim, no fundo do coração, onde a chama do amor devia arder, tinha um vazio. No momento em que toda a sua compaixão de mulher estava exacerbada ao máximo, em que cuidaria dele dia e noite até cair para o lado, em que, se pudesse, de bom grado tomaria as suas dores, algures, num recôndito da alma, era indiferença que encontrava, por ele e pelo seu sofrimento. A dor que sentia vinha sobretudo desta incapacidade de o amar, mesmo quando ele despertava nela as mais fortes emoções. E assim se deixou ficar, pensativa, por um tempo.
– E nisto – disse ela de repente –, quando já ia a meio do caminho, vi que tinha saído com as botas de andar por casa... olhem para isto... – Era um par de botas velhas de Paul, castanhas e com as biqueiras muito gastas. – Nem sabia onde me havia de meter com a vergonha – acrescentou.
Na manhã seguinte, quando Annie e Arthur estavam na escola, Mrs. Morel conversou mais com Paul enquanto ele andava a ajudá-la a arrumar a casa.
– Encontrei o Barker no hospital. Não parecia muito atrapalhado, coitado. «Então», disse eu, «como correu a viagem?» «Num me pregunte, ’nha senhora!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «Eu sei como ele é.» «Mas foi muito custoso pra ele, Mrs. Morel, iss’é que foi!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «A cada safanão, eu inté pensava qu’o coração m’ia saltar pela boca», disse ele. «E os gritos qu’ele dav’às vezes, ’nha senhora... nem que me paguem uma fortuna, me quero ver noutra igual.» «Entendo perfeitamente», disse eu. «A coisa tá feia a valer», disse ele, «e vai levar muito tempo pra ficar bom.» «Também acho que sim», disse eu. Eu gosto de Mr. Barker... gosto mesmo. É um homem e tanto.
Paul continuava a pintar em silêncio.
– E já se sabe – continuou Mrs. Morel –, para um homem como o teu pai é muito duro estar no hospital. Para ele não há normas nem obrigações. E não deixa que ninguém lhe toque, a não ser que não tenha outro remédio. Quando esmagou os músculos da coxa, e tinha de mudar o penso quatro vezes por dia, ele deixava mais alguém mudar-lho a não ser eu ou a mãe dele?... Nem pensar nisso. Claro que agora vai sofrer no hospital, com todas aquelas enfermeiras... Não me agradou nada ter de o deixar lá ficar. Foi um dó de alma quando tive de lhe dar um beijo e vir-me embora...
Mrs. Morel falava com o filho quase como se estivesse a pensar em voz alta para ele ouvir, e ele colaborava o melhor que podia, partilhando com ela o sofrimento, para a aliviar. Afinal, mesmo sem saber, ela partilhava quase tudo com ele.
Morel passou muito mal. Durante uma semana o seu estado foi crítico. Depois, começou a melhorar e, quando souberam que o mau tempo tinha passado, toda a família respirou de alívio e a vida seguiu feliz.
Não passaram grandes dificuldades enquanto Morel esteve internado. Recebiam catorze xelins por semana da mina, dez da assistência aos enfermos, e cinco do Fundo de Invalidez. Além disso, os capatazes traziam todas as semanas qualquer coisa a Mrs. Morel, cinco ou sete xelins, pelo que ela vivia com bastante desafogo. E enquanto Morel ia melhorando no hospital, em casa a família vivia em paz e alegria. Aos sábados e quartas-feiras, Mrs. Morel ia visitar o marido a Nottingham. No regresso trazia sempre qualquer lembrança para os filhos: um tubo de guache para Paul, outras vezes papel cavalinho; postais para Annie, de que toda a família usufruía durante dois ou três dias antes de a deixarem enviá-los a alguém; ou então uma serra para Arthur, ou um belo bocado de madeira. E depois contava animadamente as suas aventuras nos grandes armazéns. Não tardou que os empregados da loja de gravuras a ficassem a conhecer e soubessem tudo sobre Paul. A rapariga da livraria simpatizava até muito com ela. Mrs. Morel tinha histórias sem fim para contar quando voltava de Nottingham. Ficavam os três sentados até à hora de irem para a cama a ouvirem-na contar histórias, a meterem a sua colherada, a conversarem. Depois, era geralmente Paul quem abafava o borralho.
– Agora, sou o homem da casa – dizia ele à mãe, todo ufano. Descobriram como o lar podia ser um lugar de perfeita tranquilidade e, embora nenhum deles ousasse admitir tal desumanidade, quase lamentaram quando souberam que o pai não tardaria a voltar para casa.
Paul tinha agora catorze anos e andava à procura de um emprego. Era um rapaz baixo e franzino, de cabelo castanho-escuro e olhos azul-claros. O seu rosto já tinha perdido os traços arredondados da infância e parecia-se agora com o de William, mais duro, quase austero, e com extraordinária mobilidade. Em geral, parecia estar sempre atento, cheio de vida e de ternura; umas vezes, o seu sorriso, igualzinho ao da mãe, abria-se pronto e encantador; outras, quando algum obstáculo lhe travava o passo ao espírito, a expressão do seu rosto adquiria fealdade e estupidez. Era um daqueles rapazes que se portam como palhaços desajeitados quando não são compreendidos ou sentem que não lhes dão o justo valor, mas que, com igual rapidez se transformam em criaturas adoráveis à primeira prova de ternura.
O primeiro contacto com as coisas era sempre penoso para ele. Aos sete anos tivera de se sujeitar à tortura de entrar para a escola. Mas depois até gostava. E agora, sentindo que era chegada a hora de enfrentar a vida, atravessava crises de avassaladora timidez. Pintava com bastante talento e inteligência para a sua idade, e sabia um pouco de francês, alemão e matemática, coisas que Mr. Heaton lhe havia ensinado. Como a mãe dizia, não era suficientemente forte para o trabalho manual, e também não se interessava por fazer coisas com as suas próprias mãos, preferindo correr, passear pelos campos, ler ou pintar.
– Que queres ser na vida? – perguntava-lhe a mãe.
Não fazia a menor ideia. Teria gostado de continuar a pintar, mas isso nem lhe passou pela cabeça, pois era impossível. Não havia nada que lhe interessasse muito fazer. Mas agora era urgente que começasse a ganhar dinheiro. E, uma vez que não achava que o seu trabalho valesse muito em termos monetários, e sabia que um homem ganhava em qualquer emprego trinta ou trinta e cinco xelins por semana, respondia invariavelmente:
– Qualquer coisa.
– Isso não é resposta – dizia Mrs. Morel.
Mas era a única resposta verdadeira que ele podia dar. As suas ambições, em termos materiais, eram ganhar tranquilamente os seus trinta ou trinta e cinco xelins por semana algures perto de casa, e depois, quando o pai morresse, ter uma casinha no campo, onde viveria com a mãe feliz para sempre, a pintar e a passear o quanto lhe apetecesse. Por agora, era este o seu programa. Tinha-se porém em grande conta, julgando as outras pessoas em relação a si próprio e classificando-as impiedosamente. Às vezes, pensava que talvez pudesse vir a ser um pintor a sério, mas por enquanto não queria alimentar tal sonho.
– Então tens de procurar nos anúncios do jornal – disse a mãe.
Paul ficou a olhar para ela. Parecia-lhe nova humilhação e mais uma tortura a suportar. Mas não disse nada. Desde manhãzinha só tinha um pensamento a martelar-lhe na cabeça: «Tenho de ir ver os anúncios de empregos.»
Este pensamento ensombrava-lhe a manhã e matava-lhe a alegria de viver. Sentia o coração apertar-se-lhe num nó.
Por fim, às dez horas, lá foi ele. As pessoas consideravam-no um rapaz envergonhado, reservado. Ao subir a rua ensolarada, tinha a sensação de que todos os que encontrava iam pensar: «Lá vai ele para a sala de leitura da Cooperativa, para procurar um emprego no jornal. Não consegue arranjar nada. Acho que está a viver à custa da mãe.» Lá chegado, subiu furtivamente a escadaria de pedra por detrás da loja de tecidos e espreitou para a sala de leitura. Geralmente havia por lá uma ou duas pessoas: velhos desocupados, já sem préstimo, ou mineiros «de baixa». Entrou muito retraído, e ficou deveras aflito quando eles levantaram a cabeça; sentou-se à mesa e fingiu estar a passar os olhos pelas notícias. Sabia no que eles estavam a pensar: «O que fará um miúdo de treze anos numa sala de leitura, agarrado a um jornal?» E isso magoava-o.
Depois, pôs-se a olhar lá para fora, pensativo. E sentia-se já presa do industrialismo. Por cima do velho muro fronteiriço de tijolo vermelho grandes girassóis miravam divertidos as mulheres que passavam apressadas, levando qualquer coisa para o almoço. O vale estava coberto de searas radiantes batidas pelo sol. Lá no meio, duas minas agitavam os seus finos penachos de vapor. Nas encostas distantes avistavam-se as florestas de Aldersley, tão cerradas e fascinantes. E logo o coração lhe esmoreceu. Sentia-se aprisionado. Chegara ao fim a vida em liberdade naquele vale que tanto amava.
A carroça da cerveja vinha de Keston estrada acima, carregada de barris – quatro de cada lado – apertados que nem feijões numa vagem. O carroceiro, encarrapitado no seu trono e oscilando pesadamente no assento, não passou a grande distância dos olhos de Paul. O cabelo do homem, de cabeça pequena e fusiforme, estava quase todo branco, descorado pelo sol, e nos braços grossos e avermelhados, balouçando lassamente sobre o avental de estopa, cintilavam pêlos também brancos. A face afogueada reluzia, quase adormecida de tanto sol. Os cavalos, castanhos e elegantes, seguiam a seu bel-prazer, mostrando serem eles os senhores da situação.
Paul queria ser estúpido. «Quem me dera», pensou de si para si, «ser gordo como ele e passar a vida estirado ao sol como um cão. Quem me dera ser um porco e condutor duma carroça de cerveja.»
Depois, vendo a sala finalmente vazia, copiou rapidamente um anúncio para um bocado de papel, e depois outro, e saiu à socapa, sentindo-se imensamente aliviado. A mãe examinou os anúncios.
– Sim – disse ela. – Podes tentar.
William tinha mandado uma carta admiravelmente redigida em linguagem comercial e Paul copiou-a com algumas alterações. A caligrafia do rapaz era execrável, pelo que William, que fazia tudo bem feito, fervia de impaciência.
O irmão mais velho estava a ficar muito pretensioso, ao descobrir que em Londres se podia dar com homens de uma classe muito superior à dos seus amigos de Bestwood. Alguns dos seus colegas do escritório tinham estudado leis e estavam a fazer uma espécie de estágio. William, dado o seu feitio extrovertido, fazia sempre amigos por onde passava e não tardou que começasse a frequentar a casa de pessoas que, em Bestwood, teriam olhado com desdém para o inacessível gerente do banco local e tratado com indiferença o próprio pastor. Começou, por isso, a achar-se um homem importante e até se admirava da facilidade com que se tinha tornado um cavalheiro.
As cartas que escrevia à mãe ilustravam bem a satisfação que sentia.
«The Myrmidons
Limpsfield
Mater querida,
É uma da manhã. Imagine o seu filho a escrever-lhe sentado numa velha cadeira de carvalho, com um candeeiro eléctrico dos mais modernos à frente dele, em cima da mesa. Vestido a rigor, com os botões de punho que lhe ofereceu quando fez 21 anos e achando-se o melhor do mundo. Só queria que a mãe o pudesse ver. Em comparação, Salomão, em toda a sua glória, deve ter-se sentido mal vestido.
Estou a passar o fim-de-semana com o Loosemore, e aproveitei a oportunidade para lhe escrever. ...»
A mãe ficou contente de o ver tão satisfeito. O seu quarto em Walthamstow era tão deprimente. Mas agora as cartas do filho deixavam transparecer uma súbita febre de viver. Afectado por tantas e tão súbitas mudanças, não tinha os pés assentes na terra, e parecia deixar-se arrastar vertiginosamente pelo turbilhão da sua nova vida. A mãe temia por ele. Sentia que ele se estava a perder. Tinha ido a um baile, ido ao teatro, andado de barco no rio, saído com os amigos; mas ela sabia que, depois, tinha ficado até altas horas acordado no quarto gélido a estudar latim, pois queria subir no escritório e estudar leis o mais depressa possível. Agora, nunca mandava dinheiro à mãe. A sua nova vida levava-lhe o pouco que ganhava. Ela também não queria que ele lho mandasse, excepto às vezes, quando as dificuldades eram maiores e dez xelins teriam sido o suficiente para a tirar de apuros. Mas continuava a sonhar com o que o filho faria com ela a apoiá-lo. Nem por um segundo seria capaz de admitir toda a angústia que passava por causa dele.
Entretanto, William começara a falar muito numa rapariga que tinha conhecido num baile, uma morena muito bonita e muito nova, uma verdadeira senhora, por quem todos os homens andavam perdidos de amor.
«Duvido que te perdesses por ela, meu filho, se não visses todos os outros perdidos também. As multidões fazem-nos sentir seguros e vaidosos. Mas tem cuidado, e pensa como te sentirás quando te vires sozinho e triunfante...»
William ficou ofendido com os reparos da mãe e não desistiu dos seus intentos. Tinha levado a rapariga a dar um passeio no rio: «Se a mãe a visse, ia entender o que eu sinto. Alta, elegante, com uma pele transparente, a mais transparente de todas as peles de azeitona, cabelo negro de azeviche e uns olhos esverdeados tão brilhantes e trocistas como luzes reflectidas à noite sobre as águas. Admito que seja um pouco mordaz enquanto não a conhecer. E, além disso, veste-se como as mulheres mais elegantes de Londres. Devo dizer-lhe que, quando ela passeia em Piccadilly com o seu filho, ele, por mais que se esforce, não aparenta nem metade do orgulho que sente.»
Mrs. Morel lia e perguntava-se no seu íntimo, se o filho não andaria a passear em Piccadilly com uma mulher apenas elegante e bem vestida, em vez de uma mulher de quem se sentisse próximo. Mas felicitou-o, no seu modo reticente. E enquanto estava encostada ao tanque, a mãe, preocupada, pensava no filho. Via-o casado com uma mulher cara e elegante e um pequeno ordenado, levando a vida conforme podia, numa casa feia e acanhada dos subúrbios. «E daí...», pensava ela, «é por certo tolice minha... vontade de arranjar complicações.» No entanto, o seu coração raramente sossegava, não fosse William fazer alguma asneira.
Entretanto, Paul foi chamado para se apresentar numa firma de acessórios ortopédicos, a Thomas Jordan, em Nottingham, Spaniel Row, número 21. Mrs. Morel estava radiante.
– Estás a ver! – exclamou, de olhos brilhantes. – Só escreveste quatro cartas e recebes resposta logo à terceira. Tens sorte, meu filho, como eu sempre disse.
Paul olhou para a perna de pau adornada com meias elásticas e outros acessórios que constituía o logotipo do papel timbrado de Mr. Jordan, e ficou alarmado. Até aí nem sabia que existiam meias elásticas. Parecia-lhe sentir o mundo dos negócios com o seu sistema de regras e valores e a sua impessoalidade, e isso atemorizava-o. Parecia-lhe também monstruoso que se pudesse fazer negócio com pernas de pau.
Numa bela terça-feira, manhã cedo, mãe e filho saíram juntos de casa. Era Agosto e o calor abrasava. Paul caminhava com o coração aperreado. Mil vezes a dor física, por maior que fosse, a este sofrimento irracional de se ver exposto perante estranhos, sujeito a ser aceite ou rejeitado. No entanto, conversava animadamente com a mãe. Jamais lhe confessaria o sofrimento que estas situações lhe causavam e de que ela só em parte suspeitava. Ia alegre como um passarinho. Postou-se diante da bilheteira, em Bestwood, e ficou a ver a mãe tirar o dinheiro para os bilhetes. Ao reparar nas luvas pretas que trazia, quase de criança e já muito velhas, com que retirou algumas moedas da carteira também coçada, o seu coração contraiu-se de dor e amor por ela. Ela estava muito excitada e bem-disposta, e ele sofria antecipadamente, pois sabia que ela se iria pôr a falar em voz alta diante dos outros passageiros.
– Olha para aquela vaca. Parece tola! A andar às voltas como se estivesse no circo.
– Deve ser algum moscardo – disse Paul, quase a bichanar.
– Algum quê? – perguntou ela, desabrida, sem complexos.
Depois, ficaram calados, pensativos. Paul não conseguia deixar de sentir a presença dela à sua frente. Nisto, os olhos de ambos encontraram-se e ela sorriu-lhe – um sorriso único, íntimo, belo e cintilante, cheio de amor. Em seguida, puseram-se a olhar pela vidraça. Mas ela voltou-se para ele de repente e disse, de forma bem audível:
– Sinceramente, acho que vais conseguir. E, se não conseguires, enfim, não te podes queixar só por não teres conseguido o terceiro emprego a que concorreste, pois não? Mas eu acho que consegues. És um rapaz de sorte, embora não a mereças – Assim falava ela, para todos ouvirem!
O comboio transpôs com lentidão as dezasseis milhas que os separavam do destino, e a viagem terminou. Mãe e filho meteram por Station Street com o entusiasmo de amantes a viver uma aventura. Em Carrington Street, pararam para contemplarem do parapeito as barcaças que passavam no canal.
– Parece mesmo Veneza – disse ele, vendo o sol reflectido na água entre os muros altos das fábricas.
– Talvez – respondeu ela, sorrindo. Ficaram deslumbrados com as lojas.
– Estás a ver aquela blusa? – disse ela. – Ficava mesmo bem à nossa Annie. E só custa uma libra, onze xelins e três dinheiros. Não é barato?
– E é toda bordada – disse o filho.
– É verdade.
Tinham ainda muito tempo, e por isso não precisavam de se apressar. Aos seus olhos, a cidade era estranha e fascinante. Mas o rapaz, apreensivo, era como se tivesse um nó no estômago. Apavorava-o a entrevista com Thomas Jordan.
Eram quase onze horas pelo relógio da igreja de São Pedro. Viraram para uma rua estreita que ia dar ao castelo. Era uma rua sombria, de casas velhas, com lojas baixas e soturnas e as portas dos prédios pintadas de verde-escuro, com grandes argolas de latão e degraus amarelo-ocre avançando sobre o passeio; ao lado, uma outra loja, de outros tempos, cuja montra diminuta parecia um olho astuto e semicerrado. Mãe e filho caminhavam devagar, olhando para as portas, à procura do letreiro Thomas Jordan & Filho. Era como caçar em plena coutada. A excitação atingia o auge.
De súbito, avistaram uma entrada ampla e escura, com os nomes de várias firmas afixados na parede e, entre eles, o da Thomas Jordan.
– É aqui – disse Mrs. Morel. – Mas... onde é que será?
Olharam em volta. De um lado, uma fábrica de papel, lúgubre e bizarra; do outro, o Commercial Hotel.
– É ali ao fundo – informou Paul.
Aventuraram-se pela arcada, como se penetrassem na bocarra de um dragão, indo desembocar num pátio amplo, semelhante a um poço, completamente rodeado de edifícios. O chão estava pejado de palha, caixas e cartões. O sol batia em cheio num caixote de onde saíam palhas que se espalhavam pelo chão como fios de ouro. Mas, fora isso, o lugar era escuro como uma mina. Havia várias portas e dois lanços de escadas. Mesmo em frente, numa porta suja e envidraçada, ao cimo da escada, ressaltavam as palavras fatídicas Thomas Jordan & Filho – Acessórios Ortopédicos. Mrs. Morel foi à frente, seguida pelo filho. Ao subir ao patíbulo, Carlos I tê-lo-á feito certamente com o coração mais leve do que Paul Morel ao subir atrás da mãe os degraus imundos que conduziam à tal porta também imunda.
Mrs. Morel empurrou a porta e ficou agradavelmente surpreendida. Diante dela estendia-se um imenso armazém com embalagens de papel pardo espalhadas por todo o lado, e os empregados, de mangas arregaçadas, movimentavam-se de um lado para o outro com um ar perfeitamente descontraído. A luz não feria a vista, as embalagens em papel brilhante tornavam-se luminosas, os balcões eram de madeira escura. A atmosfera era silenciosa e acolhedora. Mrs. Morel deu dois passos em frente e aguardou. Paul colocou-se atrás da mãe. Ela trazia o seu chapéu de domingo, com o véu preto descido sobre a cara, e ele a gola branca larga, que todos os rapazes usavam, e um fato de corte à caçador.
Um dos empregados olhou para eles. Era alto e magro, de rosto miúdo e olhar vivo e atento. Depois, os seus olhos percorreram a sala até à outra extremidade, onde se via um gabinete envidraçado; só então se aproximou. Não disse uma palavra, inclinou-se apenas perante Mrs. Morel, numa atitude prestável e interrogativa.
– Poderei falar com Mr. Jordan? – pediu ela.
– Vou já chamá-lo – respondeu o jovem.
Dirigiu-se ao gabinete envidraçado. Um homem idoso, de suíças brancas e faces coradas levantou os olhos da secretária. Paul achou-o parecido com um lulu da Pomerânia. Depois, o homenzinho atravessou o armazém para vir ao encontro deles. Tinha pernas curtas, era atarracado e envergava um casaco de alpaca. E lá vinha ele, de orelha arrebitada, por assim dizer, com ar resoluto e olho inquiridor.
– Bom dia! – disse, hesitante, dirigindo-se a Mrs. Morel, sem saber se se tratava ou não de uma cliente.
– Bom dia... Vim com o meu filho... Paul Morel... O senhor pediu-lhe que se apresentasse esta manhã.
– Acompanhem-me – disse Mr. Jordan, com uma frieza e desenvoltura que ele acreditava serem apropriadamente empresariais.
Mãe e filho acompanharam o industrial e entraram numa salinha desarrumada, com cadeirões de couro negro e já muito lustroso de tanto ser usado pelos clientes. Em cima da mesa estava uma pilha de fundas para hérnias – umas bandas de couro amarelo, pré-lavado, atadas em molho. Pareciam novinhas em folha. Paul sentiu o cheiro a couro lavado e perguntou-se o que seriam aquelas coisas. Estava tão atordoado que só reparava no aspecto exterior do que o rodeava.
– Sente-se! – disse Mr. Jordan, ríspido, convidando Mrs. Morel a sentar-se numa cadeira de crina. Ela sentou-se à beirinha, numa posição instável. O homenzinho vasculhou então em cima da secretária e pegou numa folha de papel.
– Foste tu que escreveste esta carta? – desferiu ele, intempestivo, colocando diante dos olhos de Paul um papel que ele logo reconheceu como sendo a carta que mandara.
– Fui, sim – respondeu Paul.
De momento, o rapaz era dominado por dois sentimentos: em primeiro lugar, sentia-se culpado por estar a mentir, uma vez que a carta tinha sido escrita por William; e, em segundo, estranhava como a sua carta podia parecer tão diferente na mão avermelhada e sapuda daquele homem de quando estava em cima da mesa da cozinha. Era como se uma parte dele mesmo se tivesse transviado, e desagradava-lhe a maneira como o homem pegava na carta.
– Onde aprendeste a escrever? – disse o velho, com brusquidão.
Paul limitou-se a olhar para ele envergonhado, sem responder.
– Ele escreve muito mal – interrompeu Mrs. Morel, apologética, levantando o véu em seguida. Paul ficou furioso por a mãe não mostrar mais orgulho perante este homem tão comesinho, mas, ao mesmo tempo, adorou ver o seu rosto sem véu.
– E dizes que também sabes francês? – inquiriu o homenzinho, ríspido, como sempre.
– Sim – respondeu Paul.
– Em que escola andaste?
– Na primária.
– E foi lá que aprendeste?
– Não... eu... – o rapaz ruborizou, e não adiantou mais nada.
– Foi o padrinho que lhe deu umas lições – disse Mrs. Morel, quase numa súplica, e com ar distante.
Mr. Jordan hesitou. E, então, mantendo o seu ar agressivo – parecia ter as mãos sempre prontas a agir – tirou do bolso uma outra folha de papel, desdobrou-a ruidosamente e entregou-a a Paul.
– Ora lê lá isto – disse.
Era uma carta em francês, escrita à mão, numa caligrafia estrangeira, esguia e incerta, que o rapaz não conseguia decifrar. Paul ficou parado a olhar para o papel, como se hipnotizado.
– «Monsieur» – começou ele, olhando em seguida muito aflito para Mr. Jordan.
– É a... é a...
Queria dizer «letra», mas já nem esta palavra conseguia pronunciar. Sentindo-se um perfeito idiota, e furioso com Mr. Jordan, voltou-se em desespero para o papel.
– «Exmo. Senhor... Queira fazer o favor de me enviar»... hum... hum... não consigo perceber a... hum... «dois pares... gris fil bas... de meias cinzentas de algodão... hum... hum... sans... sem...» hum... não consigo perceber a... hum... «doigts... dedos»... hum... não consigo perceber a...
Queria dizer «letra», mas a palavra teimava em não sair. Vendo-o atrapalhado, Mr. Jordan tirou-lhe o papel da mão e leu:
– «Queira fazer o favor de me enviar na volta do correio dois pares de meias cinzentas de algodão, sem os dedos dos pés...»
– Bem – atalhou Paul prontamente – doigts quer dizer apenas dedos... duma maneira geral...
O homenzinho olhou para ele. Tanto se lhe dava que doigts quisesse ou não dizer simplesmente dedos, o que ele sabia era que, para os fins em vista, queria dizer dedos dos pés.
– Só dedos, podia ser das mãos; com que então, dedos das mãos numas meias?! – ripostou Mr. Jordan.
– Bem, a palavra francesa quer mesmo dizer só dedos – teimava o rapaz.
Paul detestava aquele homenzinho que tentava fazer dele parvo. E Mr. Jordan olhava para aquele rapaz pálido, estúpido e atrevido à sua frente, sentado, muito calado, com aquele ar reservado dos pobres que têm de depender dos favores de outras pessoas.
– Quando é que ele pode começar a trabalhar? – perguntou o industrial.
– Bem... – disse Mrs. Morel –, quando o senhor desejar. Ele já deixou a escola.
– E vai continuar a viver em Bestwood?
– Sim... mas pode estar... chegar à estação... a um quarto para as oito...
– Hum!
Paul acabou por ser contratado como aspirante, a ganhar oito xelins por semana. O rapaz não abriu mais a boca depois de teimar que doigts era mesmo dedos (das mãos). Saiu atrás da mãe e desceu as escadas. Mrs. Morel olhou para ele com os seus olhos azuis iluminados de amor e contentamento.
– Acho que vais gostar do emprego – vaticinou.
– Doigts quer dizer só dedos, mãe... e com aquela letra... Eu não percebia a letra.
– Não te preocupes, meu filho... Verás que ele é boa pessoa, e, além disso, não vais ter de contactar muito com ele... Não achaste simpático aquele empregado mais novo?... Tenho a certeza de que vais gostar dos teus colegas.
– Mas a mãe não achou Mr. Jordan um homem grosseiro? Será ele o dono daquilo tudo?
– Cá para mim, começou por ser operário e depois singrou na vida – disse Mrs. Morel. – Não deves dar tanta importância às pessoas. Elas não te querem ofender... é a maneira de falarem... estás sempre a pensar que as pessoas te querem ofender... mas olha que não querem.
Estava um dia cheio de sol. No grande largo deserto do mercado, o céu azul iluminava-se e as pedras de granito da calçada brilhavam cintilantes. As lojas de Long Row estavam mergulhadas na penumbra e a sombra enchia-se de cor. No sítio onde os trens puxados a cavalos atravessavam o mercado, erguia-se uma fiada de bancas de fruta, com os frutos luzindo ao sol – maçãs e montes de laranjas avermelhadas, rainhas-cláudias e bananas. Quando mãe e filho passaram, sentiram no ar o odor morno da fruta. A pouco e pouco, os sentimentos de raiva e ignomínia de Paul foram soçobrando.
– Onde havemos de ir almoçar? – perguntou a mãe.
– E se comprássemos qualquer coisa e fôssemos comer para o Arboretum?
– Não. Nada disso.
– Então vamos ao Morley.
– O chá que lá servem é requentado. Não... tu conseguiste o emprego... vamos fazer uma refeição como deve ser.
Aquilo era para eles uma verdadeira extravagância. Paul só tinha ido a uma casa de pasto uma ou duas vezes na vida, e, mesmo assim, só para tomar chá e um pãozinho. A maior parte dos habitantes de Bestwood achavam que a única coisa para que tinham dinheiro quando iam a Nottingham era chá e pão com manteiga, ou, quando muito, carne afiambrada. Uma refeição cozinhada era um autêntico luxo, e Paul sentia-se até culpado. Encontraram um lugar que lhes pareceu bastante acessível. Porém, quando Mrs. Morel consultou a lista, caiu-lhe a alma aos pés, tal era o preço dos pratos. Mandou vir, por isso, empadas de rim e batata, que era o mais barato.
– Não devíamos ter vindo aqui, mãe – disse Paul.
– Deixa lá – respondeu ela. – Nunca mais cá voltamos.
Depois insistiu para que o filho, que era guloso, comesse uma pequena torta de mirtilos.
– Não quero, mãe – disse ele.
– Queres, sim – teimou a mãe. – Claro que queres.
E pôs-se a ver se chamava a criada. Mas a criada andava toda atarefada e Mrs. Morel não a quis importunar nesse momento, pelo que ficaram os dois à espera de que a rapariga se dignasse atendê-los, enquanto ela andava por ali a cirandar, fazendo olhinhos aos clientes.
– Que desavergonhada! – disse Mrs. Morel, virando-se para Paul. – Olha para ela, a servir pudim àquele homem, e ele chegou muito depois de nós.
– Não tem importância, mãe – disse Paul.
Mrs. Morel estava irritada, mas era pobre de mais e a refeição demasiado modesta para ter a coragem de reclamar os seus direitos imediatamente. E, assim, fartaram-se de esperar.
– Vamos embora, mãe? – sugeriu Paul. Mrs. Morel levantou-se. A rapariga ia a passar.
– Trazia-nos uma torta de mirtilos, por favor? – disse Mrs. Morel em voz suficientemente audível.
Mas a rapariga virou-se e olhou para ela com insolência.
– É para já – retorquiu.
– É que já esperámos um bom bocado – disse Mrs. Morel. A rapariga não tardou com a torta. Mrs. Morel pediu a conta secamente.
Paul tinha vontade de se enfiar pelo chão dentro. Pasmava perante a dureza da mãe. Sabia que haviam sido anos e anos de luta que a tinham ensinado a reclamar os seus direitos, por mais insignificantes que fossem, pois ela era tão tímida como ele.
– É a última vez que ali vou para comer seja o que for! – exclamou ela, já na rua, satisfeita por se ver livre daquele pesadelo.
– Vamos dar uma vista de olhos ao Keep’s e ao Boot’s, e a mais um ou dois armazéns, está bem?
Teceram comentários sobre as gravuras expostas para venda, e Mrs. Morel queria por força comprar ao filho um pequeno pincel de pêlo de marta, com que ele andava a sonhar, mas Paul recusou liminarmente mais esta generosidade, e foi esperando por ela estoicamente à porta dos fanqueiros e dos retroseiros, morto de tédio, mas feliz por ver a mãe tão entretida. E o passeio continuou.
– Veja só aquelas uvas pretas! – disse Paul. – Até fazem crescer água na boca... Há anos que ando desejoso de prová-las, mas ainda vou ter de esperar algum tempo para as poder comprar.
A mãe parou deliciada à porta da florista, a aspirar os aromas.
– Oh!... Oh!... Não é simplesmente uma maravilha?
Apesar de a loja estar na penumbra, Paul vislumbrou uma jovem elegante, vestida de preto, a espreitar por detrás do balcão, com ar divertido.
– Estão a olhar para si – disse Paul, tentando arrastar a mãe dali para fora.
– Mas... o que é aquilo? – exclamou ela, recusando-se a sair de onde estava.
– Goivos! – respondeu ele, cheirando o ar apressadamente. – Veja, têm um alguidar cheio.
– Pois têm... vermelhos e brancos!... Esta agora... nunca reparei que os goivos pudessem cheirar assim! – E, para grande alívio do rapaz, a mãe saiu da porta, mas só para se ir pôr diante da montra.
– Paul! – exclamou ela, virando-se para o filho, que tentava esquivar-se ao olhar da tal jovem elegante toda de preto, a empregada da loja. – Paul! Anda ver isto!
Ele aproximou-se relutante.
– Olha aqueles brincos-de-princesa! – disse ela, apontando.
– Humm! – fez ele, mostrando-se interessado. – Parece que as flores vão cair a todo o momento; são tão grandes e tão pesadas.
– E tantas! – exclamou a mãe.
– E já viu a maneira como se inclinam, com os filamentos e os nódulos...?
– Pois é! – disse ela. – São lindas!
– Sempre gostava de saber quem será que as vai comprar? – disse ele.
– Não faço ideia! – respondeu ela. – Nós não somos.
– Na nossa sala morriam logo.
– É, aquele buraco horrível, gélido e sem réstia de sol... mata qualquer planta que lá se ponha... e a cozinha atabafa-as.
Fizeram algumas compras e seguiram para a estação. Olhando ao longo do canal, pelos intervalos sombrios dos edifícios, avistaram o castelo, alcandorado no seu promontório negro coberto de vegetação, miraculosamente iluminado por um sol suave e radioso.
Vai ser tão bom vir dar um passeio à hora do almoço! – disse Paul. – Posso andar por aqui e ver tudo isto. Vou adorar.
– Vais, sim, meu filho – concordou a mãe.
Paul tinha passado uma tarde agradabilíssima em companhia da mãe. Chegaram a casa já a tarde esmorecia, feliz, ardente, e também cansada. Na manhã seguinte, o rapaz preencheu a requisição para o passe de comboio e levou-a à estação. Quando voltou, estava a mãe a começar a lavar o chão. Ele sentou-se com as pernas cruzadas em cima do sofá.
– O homem diz que o passe chega no sábado.
– E quanto custa? – perguntou ela.
– Mais ou menos uma libra e onze xelins.
A mãe continuou a lavar o chão em silêncio.
– Acha caro? – perguntou Paul.
– Não mais do que eu pensava – respondeu ela.
– E eu vou ganhar oito xelins por semana... – disse ele.
A mãe não respondeu, continuando com o seu trabalho. Por fim, disse:
– O William prometeu-me, quando foi para Londres, que me mandava uma libra por mês. E só me mandou dez xelins... por duas vezes. E sei que agora não tinha um tostão, se eu lho pedisse. Não que eu queira o dinheiro dele, mas nesta altura ficava-lhe bem dar uma ajuda para o passe, embora eu não esteja a contar com isso.
– Ele ganha muito bem – disse Paul.
– Cento e trinta libras. Mas os filhos são todos iguais. Uns mãos largas nas promessas, mas quando se trata de as cumprirem... é o que se vê.
– O William gasta mais de cinquenta xelins por semana só com ele – disse Paul.
– E eu mantenho esta casa com menos de trinta – retorquiu a mãe. – E ainda tenho de inventar o dinheiro para os extras. Mas eles, depois de saírem de casa, querem lá saber de ajudar a mãe. Mais depressa o gastava com aquela doidivanas toda aperaltada.
– Ela há-de ter dinheiro, se é assim tão fina – disse Paul.
– Pois havia, mas não tem. Eu já lhe perguntei... E eu sei bem que ele não lhe compra uma pulseira de ouro sem razão. A mim nunca ninguém me comprou uma pulseira de ouro.
– Ora, a mãe também nunca quis nenhuma.
– Lá isso é verdade... Mas, se quisesse, era o mesmo.
– O pai nunca lhe comprou nada?
– Comprou... um cartucho de maçãs... e foi tudo... todo o dinheiro que gastou comigo, antes de nos casarmos.
– Porquê?
– Porque eu era uma parva, e quando ele me dizia: «O que queres qu’eu te compre?», eu respondia: «Nada.» Ele lembrava-se lá de me trazer alguma coisa! E o William só ia comprar uma pulseira de ouro para uma espertalhona cheia de nove horas.
– Aposto que ela já tem muitas – disse o rapaz.
– Tem muitas, dizes tu? Mas ele também tinha de lhe dar uma, para parecer importante. Ele quer lá saber! Eu pude sustentá-lo enquanto ele ganhava uma miséria, mas depois, mal ele se apanha com dinheiro que se veja, e a gente pensa que vai ter um pouco de paz e segurança, ele desanda, e lá começa a luta de novo, sem ter a quem recorrer quando é preciso alguma coisa, sem ninguém que nos estenda a mão.
– A mãe devia pedir-lho.
– E depois ele tinha de o ir pedir emprestado. Isso também eu faço, se tivermos de chegar aí. Tenho a certeza, de que não vou ter de lhe ficar a dever favores. E ele não precisa de me escrever a gabar-lhe os encantos e a falar das óperas a que vão assistir. Nem quero saber. Ele importa-se lá comigo... Eles querem lá saber! Têm a vida deles para viver, fazem o que lhes apetece, e eu... sim... o que represento eu para ele?... Um estorvo nunca hei-de ser, nem lhe hei-de pedir nada... E espero que o teu pai viva muito tempo, e que seja eu a ir à frente, pois é muito triste ter de viver à custa dos filhos.
– Oh, mãe... não tarda, eu começo a ganhar dinheiro, e a mãe pode ficar com tudo, porque eu nunca me hei-de casar.
– Essa já é velha, o William também dizia o mesmo. Dá tempo ao tempo e vais ver como a música é outra.
– Não vai ser, não.
– Então está bem.
E continuou a lavar o chão, em silêncio.
– Que vai fazer? – perguntou Paul.
– Acho que vou ter de meter um vale na Cooperativa... e isso vai sair da minha parte e vou receber menos dividendos. Não me apetecia nada ir lá buscar mais dinheiro outra vez.
O rapaz sentia-se muito infeliz, muito aborrecido. Era ele que precisava do dinheiro, e isso deixava-o amargurado.
– Bem – disse Paul –, em breve serei aumentado, e a mãe pode ficar com o dinheiro todo.
– Tudo isso é muito bonito – disse a mãe. – Mas não é assim que arranjo uma libra e trinta xelins até sábado de manhã.
William fazia progressos com a sua Cigana, como ele lhe chamava. Pedira à rapariga – uma tal Louisa Lily Denys Western – uma fotografia para mandar à mãe. A fotografia chegou: era uma morena bonita, de perfil, com um sorriso afectado, e que bem podia estar completamente nua, pois não se vislumbrava qualquer peça de roupa no retrato, só o colo desnudo.
«Sim senhor», escreveu Mrs. Morel ao filho, «a fotografia da Louie é deveras impressionante e vê-se que deve ser muito atraente. Mas achas, meu filho, que foi sensato e elegante da parte dela dar ao namorado aquela foto para ele mandar à mãe, e pela primeira vez? Tem uns ombros lindos, sem dúvida, como mandaste dizer. Mas eu não estava à espera de os ver tão bem logo da primeira vez...»
Morel encontrou a fotografia na sala, em cima da cómoda, e veio até à cozinha com ela presa entre o polegar e o indicador.
– Quem vem a ser esta? – perguntou ele à mulher.
– É a rapariga com quem o nosso William anda de namoro – respondeu Mrs. Morel.
– Hum! Ganda brasa, pelo menos parece... e num lhá-de fazer bem nenhum... Quem é ela?
– Chama-se Louisa Lily Denys Western.
– Muito prazer! – exclamou o mineiro. – É alguma artista?
– Não, não é. Ele diz que é uma senhora da sociedade.
– Não hajam dúvidas – exclamou o pai, sem tirar os olhos da fotografia. – Com qu’intão uma senhora? E há-de ter muito dinheiro, pra manter as aparências.
– Não tem, não... vive com uma tia velha, que ela detesta, e aceita tudo o que lhe dão.
– Hum! – disse Morel, pousando a fotografia. – Atão ele foi um gand’otário em ter-se metido c’uma tipa dessas.
«Querida Mater», respondeu William. «Lamento que não tenha gostado da fotografia. Nunca me passou pela cabeça, quando lha mandei, que pudesse achá-la pouco decente. Mas já disse à Ciganita que o retrato não correspondia exactamente à sua noção de decoro e decência, e ela vai mandar-lhe outro, que eu espero lhe agrade mais. Ela está sempre a ser fotografada. Na verdade, os fotógrafos estão sempre a pedir-lhe insistentemente para ela se deixar fotografar, absolutamente de graça.»
A nova fotografia acabou por chegar, acompanhada de um bilhete idiota da rapariga. Desta vez, a jovem estava com um ves-tido de noite em cetim preto, de decote quadrado, com mangas curtas e tufadas e folhos de renda preta cobrindo-lhe os braços elegantes.
– Será que só usa vestidos de noite? – disse Mrs. Morel, sarcasticamente. – Tenho a certeza de que eu devia estar impressionada.
– Está a ser antipática, mãe – disse Paul. – Eu acho a primeira fotografia, a dos ombros nus, bem bonita.
– Achas? – disse Mrs. Morel. – Pois olha, eu não.
Na segunda-feira de manhã, o rapaz levantou-se às seis horas, para começar a trabalhar. No bolso do colete levava o passe do comboio que tanta amargura representava. Gostava de olhar para ele, todo às riscas amarelas. A mãe metera-lhe o almoço num cestinho de verga com tampa, e ele saiu de casa quando faltava um quarto para as sete, para apanhar o comboio das sete e um quarto. Mrs. Morel veio despedir-se do filho ao portão.
A manhã estava imaculada. Do grande freixo, pendiam os frutos verdes e delgados – as crianças chamavam-lhes «pombinhos» – cintilando alegremente, soprados pela brisa matinal, suspensos sobre os jardins das vivendas. O vale estava coberto de uma névoa escura, mas brilhante, através da qual luziam as searas já maduras, e em contacto com a qual logo se condensava o vapor que se elevava da mina de Minton. De quando em vez, o vento passava em baforadas. Paul espraiou a vista para lá das altas florestas de Aldersley, onde os campos brilhavam imensos, e nunca o apelo do lar fora tão forte.
– Adeus, mãe – disse ele, sorrindo, mas com a alma entristecida.
– Adeus – respondeu ela, com alegria e ternura na voz.
Mrs. Morel ficou parada na estrada, com o seu avental branco, vendo o filho atravessar os campos. Era um rapaz baixo e robusto, cheio de vida. Ao vê-lo caminhar pelos campos fora, sentiu que ele seria capaz de chegar onde quisesse. Pensou no William. Esse teria saltado a cerca em vez de passar pela cancela. Esse estava em Londres a viver à grande. E agora Paul ia trabalhar para Nottingham. Tinha dois filhos lançados no mundo. Podia pensar em dois lugares, dois grandes centros industriais, e sentir que tinha posto um homem em cada um, e que esses homens seriam capazes de conseguir tudo o que ela ambicionava; provinham dela, eram parte dela, e as suas vitórias seriam também as dela. Durante toda a manhã só pensou em Paul.
Às oito horas, Paul subiu as escadas lúgubres da Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan e deteve-se timidamente junto da primeira prateleira que encontrou cheia de embalagens, à espera de que alguém viesse ao seu encontro. O lugar ainda não tinha acordado. Os balcões estavam cobertos de espessas camadas de poeira. Ainda só tinham chegado dois funcionários. Paul ouvia-os conversar a um canto, enquanto tiravam os casacos e arregaçavam as mangas da camisa. Eram oito e dez. A pontualidade não era evidentemente a preocupação dominante no local. Paul continuou a ouvir as vozes dos dois funcionários. Depois, ouviu alguém tossir e viu no gabinete ao fundo do armazém um empregado já velho e caduco, com um bonezinho redondo de veludo preto bordado a verde e vermelho, a abrir cartas. Paul continuou à espera.
Um dos empregados mais novos dirigiu-se ao velhote e cumprimentou-o efusivamente e em voz muito alta. Estava visto que o velho «chefe» era surdo. A seguir, o jovem voltou para o seu balcão com passo arrogante. A certa altura reparou em Paul.
– Olá! – disse ele. – És o novo rapaz?
– Sou – respondeu Paul.
– Hum! Como te chamas?
– Paul Morel.
– Paul Morel?... Está bem. Vem comigo.
CONTINUA
Quando as crianças já tinham idade suficiente para ficarem sozinhas em casa, Mrs. Morel entrou para o Grémio Feminino. Tratava-se de um pequeno clube de mulheres ligado à Cooperativa de Revenda, que reunia às segundas-feiras à noite numa sala muito comprida por cima da mercearia Bestwood Co-op. Aí, as mulheres discutiam os benefícios de uma política de cooperação e outras questões de importância social. Por vezes, Mrs. Morel tinha de apresentar uma comunicação, e as crianças estranhavam ver a mãe, que passara a vida a fazer a lida da casa, sentar-se agora a escrever, com a rapidez que a caracterizava, a pensar, a consultar livros, e a continuar a escrever. Nessas ocasiões, sentiam por ela o mais profundo respeito.
Mas gostavam do Grémio. Era a única concessão que faziam à mãe de boa vontade – por um lado, por ser uma coisa de que ela tanto gostava, e, por outro, pelas guloseimas que depois lhes trazia. Alguns maridos hostis, que achavam que as mulheres estavam a ficar independentes de mais, chamavam ao Grémio o «clube dos traques-tagarelas», ou seja, o clube da má-língua. A verdade é que, graças ao Grémio, as mulheres podiam olhar para as suas casas, para as condições em que viviam e apontarem o que estava mal. E, assim, os mineiros começavam a descobrir que as suas mulheres lutavam por um novo padrão de vida, o que era para eles bastante desconcertante. Além disso, Mrs. Morel voltava sempre às segundas-feiras à noite carregada de novidades, e as outras crianças gostavam que William estivesse em casa quando a mãe chegava, porque ela lhe contava muitas coisas.
Mais tarde, quando o rapaz tinha treze anos, a mãe arranjou-lhe emprego nos escritórios da Cooperativa. Nessa altura, ele era já um rapaz muito inteligente e franco, de feições duras e os olhos azuis penetrantes de um verdadeiro viking.
– Pra que queres fazer dele um mangas-de-alpaca, num me dizes? – disse Morel. – Tudo o qu’ele vai fazer é gastar as calças no rabo e não ganhar um tostão. Quant’é qu’ele vai ganhar de início?
– O que ele vai ganhar não interessa – disse Mrs. Morel.
– Mas devia interessar! Põe-no mas é na mina ao pé de mim, e ele faz sem custo dez xelins por semana, logo no começo. Mas seis xelins para dar cabo do traseiro sentado num banco é melhor que dez na mina ao pé de mim, eu sei.
– Ele não vai para a mina – disse Mrs. Morel – e não se fala mais nisso.
– Pra mim serviu, mas pra ele não.
– Se a tua mãe te mandou para as minas aos doze anos, isso não quer dizer que eu faça o mesmo ao meu filho.
– Doze anos!... Muito antes disso!
– Fosse quando fosse – disse Mrs. Morel.
Ela tinha um grande orgulho no filho. Ele frequentava a escola nocturna, e aprendeu estenografia, e aos dezasseis anos, já era o melhor estenógrafo e o melhor guarda-livros do escritório, a par de um outro colega. Depois, começou a dar aulas nas escolas nocturnas. Mas era tão vivaço que só o seu bom feitio e o seu tamanho o protegiam.
Todas as coisas que os homens fazem – as coisas decentes – William também fazia. Corria tanto como o vento. Aos doze anos, ganhou o primeiro prémio numa corrida: um tinteiro de vidro, em forma de bigorna, que marcava honrosa presença no louceiro, para orgulho de Mrs. Morel. Fora para ela que ele correra. Voou para casa com a bigorna, ofegante, dizendo:
– Olha, mãe!
Esse foi o primeiro tributo que ele lhe prestou, e ela recebeu-o como uma rainha.
– Que bonito! – exclamou.
Quando iam brincar para perto da cerca da encosta, as crianças das Bottoms costumavam gritar quando William se aproximava:
– Salta, William... Salta!
E ele saltava a sebe, com cerca de cinco pés de altura, sem qualquer dificuldade.
– Caramba! – gritavam os mais pequenos.
Também atirava pedras mais longe do que qualquer outro rapaz de Bestwood. Amigos e rivais, todos tinham inveja das suas façanhas e torciam para que as pedras dele não fossem as que chegavam mais longe, passando para lá da cerca. Mas, à cautela, William gravava-lhes displicentemente as iniciais WM.
Aos dezassete anos, ganhou uma corrida de bicicletas em Ilkeston. Morel, num dos seus alardes de fanfarronice, tinha desafiado todos os campeões que estivessem na taberna a correrem contra o filho, e William sentiu que tinha de honrar as gabarolices do pai. Mas Mrs. Morel não aprovou a ideia.
– Vem ver-me limpar-lhes o sarampo a todos, mãe! – gritou ele, batendo na barriga da perna. Mas Mrs. Morel passou o dia ansiosa e infeliz. Ele podia morrer ou magoar-se, e, além disso, ela tinha a certeza de que o seu coração não tinha resistência para corridas de bicicleta. Não obstante, ele voltou para casa nessa noite trazendo uma pequena secretária de carvalho.
– Aqui tem, mãe! – disse ele. – Não lhe disse que lha trazia?
Mas ela obrigou-o a prometer-lhe que não entrava em mais nenhuma corrida.
William tinha alunos a quem dava aulas de estenografia em casa. Mas era tão impulsivo e irascível, que só os alunos mais aplicados e com mais vocação o aturavam. Sentava-se com eles à mesa da cozinha. A cozinha estava aquecida, iluminada e em silêncio absoluto. As almofadas de chintz vermelho do sofá eram fofas, a toalha vermelha sobre a mesa parecia acolhedora. Geralmente, o aluno, de treze ou catorze anos, sentava-se muito nervoso, enquanto William, rápido e enérgico, lhe corrigia os trabalhos de casa. O professor ia soltando desabafos de impaciência e intolerância. Nisto, voltava-se para o aluno e gritava:
– Meu grande cabeça de burro, fizeste bem a última frase, e agora...
O pobre do aluno assoava-se nervosamente ao lenço vermelho e olhava de soslaio para William. Às vezes, Mrs. Morel estava sentada a coser na cadeira de baloiço. Depois, começava a lição propriamente dita. William, evidenciando cada vez menos paciência, não tardava a explodir:
– Seu parvalhão, seu cabeça de burro, seu idiota chapado, o que é que eu te disse mais de mil vezes...?
– William! William! – exclamava a mãe. – Que vergonha! Não sei como ainda te aturam... Não lhe ligues, Robert, o mal está na falta de paciência dele, não em ti. Tu até és muito rápido. – E Robert olhava para Mrs. Morel envergonhado e agradecido, enquanto William continuava:
– Vá lá... e por amor de Deus não te faças de estúpido. Olha...!
Por fim, Mrs. Morel decidiu não ficar mais em casa quando ele dava as lições, para poupar aos garotos o vexame.
William tinha de entrar no escritório às oito da manhã, e a mãe levantava-se por isso às sete, para lhe preparar as coisas. Ele chegava geralmente atrasado, ou mesmo em cima da hora. Mas não havia nada que o fizesse andar mais depressa. Adorava tomar o pequeno-almoço a sós com a mãe. Quando estava bem-disposto, tagarelava e brincava com ela.
Uma manhã, pediu-lhe uma camisa lavada. Ele estava de pé, em frente à lareira, quando ela lha entregou, sentando-se em seguida a tomar o chá. Ele ergueu no ar repetidamente a camisa de flanela remendada por todos os lados.
– Mãe, o que é isto? – perguntou.
– Uma camisa – respondeu ela, desatando a rir.
– Uma rosa não cheiraria melhor...! – citou ele, de memória, com espirituosidade.
– Pois é... tu dás cabo de tudo... e eu já não tinha mais tecido igual... mas também quem vai notar?
– Tem a certeza de que não se vê?... Cá para mim, vê-se tudo à transparência – disse ele, ainda a torcer o nariz para a camisa.
– Veste-a lá... Olha as horas! – disse ela, sem poder conter o riso, da cadeira de baloiço onde estava sentada a beber o chá. E ele, de pé diante dela, um rapagão alto e espadaúdo, com a camisa de remendos na mão, dizia:
– Oh, minha camisinha de pobre! – disse ele, falando com a dita. – Acho que ninguém te vai cobiçar... um, dois, três... qual destes é o tecido original, mãe?
– Vá, veste a camisa! – ordenou a mãe.
– Imagine que eu tenho um acidente, e vou parar ao hospital, e quando volto a mim vejo quatro enfermeiras a olharem-me para a fralda da camisa... – resmungou ele.
– Só podem estar a dizer que andas com a roupa muito bem tratada – disse a mãe a rir.
Ele vestiu a camisa, e disse ainda, tapando a boca com a mão:
– Nem o rei Salomão em toda a sua glória...
– Não – disse a mãe, continuando a rir –, não creio que houvesse ninguém capaz de dar tantos pontos, nem por Salomão...
William deitou um olho à camisa por cima do ombro, e disse, num lamento:
– És a história da minha desgraça!
Mrs. Morel riu às gargalhadas. A custo, recompôs-se o suficiente para dar uma palmada na mesa e exclamar:
– Toca a vestir, menino! Já é um quarto para as oito.
– Não está à espera que eu tenha pressa de me vestir, para andar por aí todo remendado, pois não, mãe?
– És um tagarela sem juízo! – exclamou ela. – Ainda cais da bicicleta, partes a cabeça...
– Tem razão, se eu morresse ia ter vergonha da camisa que levava – atalhou ele.
Ela saltou da cadeira, pegou na escova e deu-lhe com ela ao de leve na cabeça.
– Vê lá se escovas esse cabelo – ordenou. Separaram-se, reconfortados: ele aquecia-lhe a alma a ela, e ela a ele.
Depois, ele começou a tornar-se ambicioso. Dava todo o dinheiro que ganhava à mãe. Quando recebia catorze xelins, ela deixava-o ficar com dois para os seus gastos, mas ele, como não bebia, começou a achar que estava rico, e só se dava com a burguesia de Bestwood. A pessoa mais importante da cidade era o pastor. Seguiam-se-lhe o gerente do banco, os médicos, depois os comerciantes, e, por fim, as hostes de mineiros. William começou a andar com os filhos do farmacêutico, do mestre-escola e de alguns comerciantes. Ia jogar bilhar para o Mechanics’Hall, e frequentava também os bailes, apesar de a mãe ser contra. Desfrutava de tudo o que Bestwood tinha de bom para lhe oferecer – dos bailaricos de Church Street, a seis dinheiros o ingresso, às provas desportivas e ao bilhar.
– A valsa! – exclamou o pai. – É verdade que tu sabes valsar? Quando eu era mais ágil, também sabia dar as minhas voltinhas.
– Será que sabia? – disse William, meio desconfiado.
– Sabia, sim senhor! – protestou Morel, ferido no seu amor-próprio.
– Então, vá lá... mostre-nos do que é capaz.
Mas Morel tinha vergonha de dançar diante dos filhos.
– Não, isso eu num faço! Estares a desafiar-me é uma parvoíce sem pés nem cabeça, e num vejo o qu’é que ganhas com isso.
– Mas vê que sigo as suas pisadas – retorquiu William.
– Atão inda és mais parvo do qu’eu julgava, s’alguma vez fizeres isso – disse o pai.
– Pronto, não faz mal, se está perro de mais para dançar... – disse o filho.
– Há vinte anos qu’eu num danço – gritou Morel, já alterado.
– E aposto que lhe custou a parar.
Mas William não desistiu. E as raparigas não o largavam.
– ’Póstolo – disse ele ao irmão, depois de um baile, quando já estavam os dois deitados. – ’Póstolo... uma rapariga de cetim branco... tás’ouvir, cetim branco até aos sapatos... vive em Sutton... e tá pelo beicinho! Amanhã vou lá, para m’encontrar com ela.
Daí a duas semanas, Paul perguntou-lhe:
– Então a rapariga do vestido de cetim branco?
– Já não m’interessa, ’Póstolo... Não presta! Mas encontrei uma pérola em Ripley... cheira vagamente a flor de cerejeira... branca como um lírio...
Paul era mimoseado com as mais estonteantes descrições florais das várias raparigas, a maior parte das quais perduravam por menos de quinze dias no coração de William, como um botão de rosa posto ao peito.
Uma vez por outra, lá aparecia uma namorada, preocupada em vir atrás do seu amado. Mrs. Morel encontrou um dia à porta uma rapariga de aspecto estranho, e logo lhe cheirou a esturro.
– Mr. Morel está em casa? – perguntou a donzela, toda sorrisos.
– O meu marido? Está, sim – respondeu Mrs. Morel.
– Eu... Eu queria referir-me a Mr. Morel... filho – repetiu a rapariga, penosamente.
– Qual deles? Há vários...
Nesta altura, a menina loira já gaguejava, muito corada:
– Eu... Eu conheci Mr. Morel... em Ripley. – E apressava-se a dar explicações.
– Ah... num baile!
– Sim, sim.
– Pois eu não gosto das raparigas que o meu filho conhece nos bailes. E ele não está em casa.
Mrs. Morel detestava os bailes duvidosos que o filho frequentava.
– Julgas que não sei das desavergonhadas que por lá andam?
– Pois olhe, mãe, eu não sou nenhum leviano, como pode ver.
– Isso é que eu não sei – dizia a mãe a rir.
– Não está a pensar que eu me vou apaixonar, pois não? Descanse que não vou. É só para me divertir com elas.
– Mas elas é que não querem só divertir-se contigo. E isso não está certo.
– Ora essa, porquê? Não faço tenções de me casar. Não se aflija, Mater. Eu não me caso enquanto não encontrar uma mulher como a senhora... e isso só daqui a muito tempo... E... só me hei-de casar aos trinta, quando já estiver de barriguinha cheia.
– Veremos, meu filho – respondeu a mãe.
Depois, voltou para casa zangado com a mãe por ter sido tão dura para com a rapariga. Era um rapaz despreocupado, mas de olhar apaixonado, que caminhava com grandes passadas, às vezes de sobrolho carregado, e quase sempre com o boné atirado para trás com galhardia. Agora, vinha de sobrolho carregado. Atirou o boné para cima do sofá, apoiou o queixo decidido na palma da mão e olhou zangado para a mãe. Ela era pequena, com o cabelo arrepiado para trás. Tinha um ar de serena autoridade, mas, ao mesmo tempo, de rara afabilidade. Ao ver o filho zangado, o coração apertou-se-lhe.
– Esteve cá ontem alguma senhora à minha procura? – perguntou.
– Uma senhora eu não vi... esteve foi uma rapariga.
– E porque não me disse nada?
– Porque me esqueci.
Ele expeliu o ar com ímpeto.
– Uma rapariga bonita... uma senhora?
– Não olhei para ela.
– Olhos castanhos... grandes?
– Isso mesmo.
Voltou a assoprar.
– E o que lhe disse a mãe?
– Que não estavas em casa.
– E que mais?
– Apenas que não gostava de que raparigas que tinhas visto uma vez viessem aqui a casa à tua procura.
– Bem... não precisava de ter dito isso – replicou ele. – O pai dela tem dinheiro... até têm duas criadas...
– Não vinham com ela... por isso, eu não podia adivinhar.
– Mas porque é que a mãe tinha de ser desagradável? Ela não estava a fazer mal nenhum, ou estava?
– Pensei que fosse uma dessas desavergonhadas.
– Mas não era... Não era... O pai dela...
– Tem dinheiro para duas criadas – atalhou Mrs. Morel.
– Não... É o veterinário de Woodlinton... E, além disso, mãe...
– Ela era uma desavergonhada.
– Não era nada... E era bonita, não era?
– Nem olhei para ela.
– Mas devia ter olhado...
– Mas não olhei, pronto. E olha, meu filho, trata de dizeres às tuas namoradas que, quando vierem atrás de ti, não devem vir perguntar por ti à tua mãe... É isso que tens de dizer a essas desavergonhadas que encontras pelos salões de dança.
– Tenho a certeza de que ela é uma rapariga séria...
– E eu tenho a certeza de que não é.
E assim acabou a discussão. A dança era sempre motivo de conflito entre mãe e filho. A afronta atingiu o auge quando William anunciou que ia a um baile de máscaras em Hucknall Torkard, uma terra mal-afamada. Havia uma fantasia que ele podia alugar, que um dos seus amigos já tinha usado, e lhe assentava que nem uma luva. E o fato de escocês lá foi parar a casa. Mrs. Morel recebeu-o com indiferença e recusou-se a desembrulhá-lo.
– O meu fato já chegou? – gritou William.
– Está um embrulho na sala da frente.
Ele precipitou-se para o fato e cortou o cordel.
– Já imaginou o seu filho assim vestido? – disse entusiasmado, mostrando-lhe o fato.
– Sabes bem que não quero imaginar-te com isso vestido.
Na noite do baile, quando ele veio a casa para se mascarar, Mrs. Morel vestiu o casaco e pôs o chapéu.
– Não fica para me ver vestido, mãe? – perguntou ele.
– Não... Não te quero ver – foi a resposta.
Estava muito pálida, com a expressão dura e fechada. Tinha medo de que o filho seguisse as pisadas do pai. Ele hesitou uns instantes, com o coração suspenso de ansiedade. Depois, viu a boina de escocês cheia de fitas, e agarrou-a, já esquecido da mãe. Mrs. Morel saiu.
Ele nunca se apercebeu de como tinha ficado desapontado. A excitação do momento, vivido em antecipação, era o suficiente para o fazer esquecer. Contudo, o seu maior orgulho era que ela o visse mascarado, e, pela vida fora, era sempre com mágoa que recordava este baile.
Na altura, porém, correu escada acima em grande alvoroço. Paul ajudou-o a vestir-se.
– É um fato de máscara, ’Póstolo – disse ele. – Dá-me cá essas coisas. – Primeiro enfiou um par de calções pretos, muito justos e curtos. Depois, foi mirar-se e remirar-se ao espelho da mãe.
– Estás a ver os meus calções pretos? – disse ele, dando uma volta sobre si mesmo, e acrescentando: – Sabes, ’Póstolo, um verdadeiro escocês não usa calções... cobre a nudez com o kilt. Mas acontece que eu dou saltos muito altos... e... com as senhoras a assistir... bem... já não dava!
O mais pequeno também achava que não, embora o caso não lhe parecesse muito grave.
– Belo par de pernas que aqui estão, ’Póstolo! Belas pernas! Já me ajudaram a ganhar quatro prémios nas corridas e dois nas bicicletas. Nada mau! – E dava palmadas nas coxas jovens e vigorosas. – Só músculo, miúdo!... No entanto, têm um defeito: não consigo juntar os joelhos. Tenho as pernas arqueadas, ’Póstolo. Mas assim ainda são mais fortes... Já o Nicholas Nickleby... esse tinha umas belas pernas e conseguia juntar os joelhos, a julgar pela gravura, e acho que Mr. Good também. Não era Mr. Good que tinha uma «belas pernas muito brancas» n’As Minas de Salomão? Aperta-me isto. Este fato não me assenta nada bem, pois não, ’Póstolo?
– Não – disse Paul, reverente.
– Um verdadeiro escocês – continuou William – tem de dobrar o seu kilt. Quem me dera que este fosse desses... gostava de ser eu a prepará-lo. Estás a ver, ’Póstolo, eu posso usar um kilt porque tenho a medida exacta para ele assentar como deve ser. A ti não te ia ficar bem... és espalmado como uma tampa de cartão. Tens de pedir a Deus que te desenvolva mais essa parte do corpo, senão nunca vais poder vestir um kilt.
Paul não percebia porque é que um dia havia de querer usar um kilt. Baixinho e magro como era, não podia aspirar ao físico e à estatura do irmão.
– Então, que tal ficam os meus joelhos?... Ficam bem, não ficam? Uns valentes joelhos, isso é que eles são... uns valentes joelhos... e as pernas também! Outro dia, os tipos lá do escritório apostaram em como eu andava enchumaçado. E então o Vickers veio de gatas enquanto eu estava a escrever e espetou-me um alfinete. Dei um berro que ia deitando a casa abaixo, e depois dei um pinote e ferrei-lhe um murro na cabeça, estás a ver... quem me dera não ter arrancado aquele bocadinho de pele com a bicicleta.
– Podias pôr um bocadinho do pó cor-de-rosa de lavar os dentes – alvitrou Paul.
– Lá isso podia... diz que é anti-séptico, mas será que resulta? Sabes, eu tenho mesmo pinta de escocês – cabelo louro, olhos azuis e valentia, ’Póstolo, valentia... e arcaboiço a condizer... Se alguma vez me alistasse no exército, havia de ser na Guarda Escocesa. Essa do pó dos dentes é uma ideia porreira...
Quando já estava vestido, um monte de crianças, as de casa e as da vizinhança, vieram admirá-lo. Depois, ele partiu. Divertiu-se à grande e, no entanto, era-lhe doloroso recordá-lo. A mãe mostrou-se indiferente com ele durante um ou dois dias. Mas achava-o tão encantador...! E depois... aquele toque de solidão, a instalar-se outra vez entre ele e ela.
Foi mais ou menos por esta altura que ele começou a estudar. Ele e um amigo começaram a aprender francês, latim e outras coisas. Depressa começou a ficar mais abatido. Depois do escritório, ia para casa de Fred Simpson, e ficavam os dois a estudar até à meia-noite e, às vezes, até à uma. Mrs. Morel protestava, ralhava, implorava-lhe que tivesse mais cuidado com a saúde.
– Quando estamos a estudar – dizia ele – nem dou pelas horas passarem... nenhum de nós dá, até a mãe do Fred gritar lá de baixo que já é muito tarde.
Estas noites de estudo intervalavam com farras e bailaricos. À medida que os anos iam passando, William foi ficando mais magro e a despreocupação fugiu-lhe do olhar.
A mãe, sempre atenta, sempre à espera, sentia um frio na alma ao vê-lo assim. Teria ele forças para «sobreviver»? Um pingo de ansiedade manchava o orgulho que sentia. Tinha esperado por ele tanto tempo que não suportaria o seu fracasso. Na verdade, não sabia o que queria dele, afinal. Talvez quisesse apenas que ele fosse fiel a si próprio, que crescesse e frutificasse tudo o que ela tinha semeado. Queria ver nele a sua própria realização, era tudo. E, com toda a força de que era capaz, tentava mantê-lo forte, equilibrado, com ânimo para seguir em frente. Mas ele vacilava, faltava-lhe lucidez. Havia momentos em que descambava e era igualzinho ao pai, o que lhe enchia o coração de apreensão e desalento.
Ele tivera dúzias de namoricos, mas nada a que se pudesse chamar um caso amoroso. Ela não se importava com os namoricos, desde que não lhe afectassem a carreira, mas receava que ele se deixasse prender por alguma dessas raparigas fúteis e desavergonhadas.
Tinha ele dezanove anos, quando um dia, sem mais nem menos, deixou o escritório da Cooperativa e arranjou um emprego em Nottingham. Este novo lugar rendia-lhe trinta xelins por semana, em vez dos dezoito do anterior. Era na verdade um bom aumento e os pais não cabiam em si de orgulhosos. Todos o elogiavam. Parecia que ia subir na vida num instante. E Mrs. Morel esperava poder, com o auxílio dele, ajudar os filhos mais novos. Annie andava a estudar para professora. Paul, também muito inteligente, ia muito bem nas lições de francês e alemão que o padrinho lhe dava – o pastor, velho amigo de Mrs. Morel. Arthur, um menino mimado e muito bonito, andava ainda na escola primária, mas tinha hipóteses de conseguir uma bolsa para ir para o liceu, em Nottingham.
William conservou-se durante um ano no seu novo emprego em Nottingham. Estudava afincadamente e tornava-se cada vez mais circunspecto. Algo parecia preocupá-lo. No entanto, continuava a ir aos bailes e aos festivais no rio. Não bebia. Todos os irmãos eram abstémios convictos. Chegava a casa muito tarde e estudava até altas horas da noite. A mãe implorava-lhe que tomasse cuidado, que fizesse uma coisa ou outra.
– Dança, se te apetece dançar, meu filho, mas não julgues que podes passar o dia no escritório e depois ires para a paródia, e depois ficares ainda a estudar. Não podes, o corpo não aguenta. Faz uma coisa ou a outra... diverte-te ou estuda latim... mas não tentes fazer as duas.
Depois, ele arranjou um emprego em Londres, a ganhar cento e vinte libras por ano, o que parecia uma soma fabulosa. A mãe nem sabia se havia de rir ou de chorar.
– Querem-me em Lime Street de segunda a oito, mãe – gritou ele, de olhos brilhantes, ao ler a carta. Mrs. Morel sentiu que tudo nela era silêncio. Ele continuou a ler: – «... queira confirmar até à próxima quinta-feira se aceita o lugar... Atentamente...» Eles querem-me lá, mãe, por cento e vinte libras por ano, e nem quiseram falar comigo. Eu não lhe disse que conseguia! Imagine-me só em Londres!... E posso dar-lhe vinte libras por ano, Mater... Vamos ficar afogados em dinheiro.
– Pois vamos, meu filho – respondeu ela, tristemente.
A ele nem lhe ocorreu que a mãe pudesse estar mais magoada com a sua partida do que contente com o seu sucesso. Na verdade, à medida que se aproximava o dia da partida, o coração dela começou a fechar-se e a sucumbir ao desespero. Amava-o tanto. Mais ainda: esperava tanto dele. Quase se podia dizer que vivia através dele. Gostava de lhe fazer as coisas: de lhe fazer uma chávena de chá e de lhe passar a ferro os colarinhos, de que ele tanto se orgulhava. Era para ela uma alegria vê-lo tão vaidoso dos seus colarinhos. Como não havia nenhuma lavandaria perto, costumava passá-los e repassá-los com o seu pequeno ferro de carvão, para os polir, até os pôr a brilhar à simples pressão do braço. E, agora, já não lhe podia fazer isso. Agora, ele ia partir, e era quase como se partisse também do seu coração. E ele parecia não querer deixar ficar nada de si dentro dela. Essa a causa da dor e do desgosto. Ele levava consigo quase tudo.
Uns dias antes da partida – tinha ele acabado de fazer vinte anos – queimou todas as cartas de amor, que estavam guardadas numa caixa em cima do armário da cozinha. Tinha lido extractos de algumas delas para a mãe ouvir, mas a maior parte delas eram demasiado banais.
No sábado de manhã, disse:
– Anda, ’Póstolo, vamos dar uma volta às minhas cartas, e tu podes ficar com os passarinhos e as flores.
Mrs. Morel tinha feito de véspera o trabalho destinado para sábado, pois tinham dado folga a William no último dia. Ela estava até a fazer-lhe um bolo de farinha de arroz, para ele levar. Mas ele não tinha consciência da tristeza que a mãe sentia.
Tirou da caixa a primeira carta. Era cor de malva e estava ornamentada com cardos verdes e púrpura. William cheirou a folha de papel:
– Cheira bem... perfumada...!
E meteu a carta debaixo do nariz de Paul.
– Hum! – disse Paul, inspirando fundo. – Que perfume é este?
– Jockey Club – disse William, embora não fizesse a menor ideia.
– Não podia ser cardo – disse Paul – porque os cardos não têm cheiro.
– Ora oiça esta: «Meu Único Amor»... Safa, Mater.
– Não me interessa ouvir essas baboseiras – disse Mrs. Morel.
– Oiça só esta!.. «Meu único Amor, Como não me disseste o teu primeiro nome, só te posso chamar aquilo que és na realidade. Tenho de te escrever, porque, se o não fizer, acho que a minha cabeça vai rebentar...» Veja só, Mater.
– São mesmo parvas! Têm tão pouca cabeça que não dá nem para rebentar... A adularem-te dessa maneira... Mal sabem elas que estão a arranjar lenha para se queimarem.
– Não é para me adularem. Esta ficou mesmo caidinha por mim.
– E, mesmo que tenha ficado, isso é motivo para se orgulhar? Que parvoíce!
– A mãe não devia dizer que andam a «adulá-lo para arranjar lenha para se queimarem» – interveio Paul.
– Claro, se tu o dizes... – disse a mãe a rir.
– «Fiquei a adorar coisas escocesas desde que te vi com aquele kilt. Ficava-te mesmo mal. Acho que nunca vi ninguém que ficasse tão bonito, com aquele kilt e aquelas meias...» São os meus joelhos... Têm de ser os meus joelhos, Mater. Não me escapa uma.
– Só não te escapam se forem das fáceis.
– Cala a boca, ’Póstolo. É bonita, não é?
Paul gostava de ver os desenhos que decoravam as cartas de amor. William queimou a carta. A seguinte era cor-de-rosa, com um raminho de flor de cerejeira ao canto.
– Flor de cerejeira! – disse Paul, aspirando o perfume. – Que bom... ora cheire, mãe.
A mãe aproximou o nariz pequeno e fino do papel.
– Não me apetece cheirar as parvoíces que elas fazem – disse, aspirando o perfume.
– O pai desta rapariga – disse William – é rico como Cresus. Tem terras que nunca mais acabam... Ela chama-me Lafayette, por eu saber falar francês... «Como vês, já te perdoei.» Esta de ela me perdoar é muito boa... «Falei de ti esta manhã à minha mãe, e ela terá muito prazer em que venhas tomar chá connosco no domingo, mas primeiro precisa do consentimento do meu pai. Espero bem que ele concorde. Logo que saiba, mando-te dizer se sim ou sopas. Se tu no entanto...»
– «Se sim ou...» quê? – atalhou Mrs. Morel.
– «... ou sopas»... é isso mesmo!
– «Se sim ou sopas!» – repetiu Mrs. Morel, trocista. – E eu que a julgava tão fina!
William começou a sentir-se algo desconfortável e pôs de lado esta donzela, dando a Paul o canto com a flor de cerejeira. Continuou a ler excertos das cartas, alguns dos quais deixavam a mãe divertida, outros triste e outros ainda apreensiva.
– Meu filho – disse ela –, elas são muito espertas. Já perceberam que só têm de alimentar a tua vaidade, para tu correres logo atrás delas como um cão a quem fizeram festas na cabeça.
– Ora, elas não podem estar sempre a fazer festas – retorquiu William. – E quando deixam de fazer, eu ponho-me a andar.
– Mas um dia descobres que te prenderam com uma corda que não consegues desatar – respondeu a mãe.
– Isso é que era bom! Eu chego bem para elas, Mater, elas que não se deixem enganar.
– Quem se deixa enganar és tu – disse Mrs. Morel, muito serena.
Não tardou que um monte de papéis retorcidos e tisnados se formasse na lareira, tudo o que restava da colecção de cartas perfumadas, à excepção dos trinta ou quarenta desenhos recortados dos cantos – andorinhas, miosótis e raminhos de hera – que agora pertenciam a Paul. Quanto a William, partiu para Londres, para dar início a uma nova colecção.
IV
A JUVENTUDE DE PAUL
PAUL saía à mãe – era baixo e franzino. O cabelo loiro tornou-se progressivamente arruivado e depois castanho-escuro, enquanto os olhos eram acinzentados. Era uma criança pálida e de poucas falas, com uns olhos que pareciam escutar e um lábio inferior carnudo e descaído.
Geralmente davam-lhe mais idade, pela constante preocupação que mostrava pelo que as outras pessoas sentiam, especialmente a mãe. Quando ela sofria, ele apercebia-se e não tinha paz, sempre de alma atenta às suas mais pequenas reacções.
À medida que crescia, ia-se tornando mais forte. William, devido à diferença de idades, não o queria por companheiro, pelo que só Annie estava com ele o dia inteiro. Annie era uma garota endiabrada, uma maria-rapaz, como a mãe lhe chamava, mas adorava o irmão mais novo, que andava sempre atrás dela. Quando ela fazia corridas com as outras garotas da vizinhança, Paul corria ao lado dela, a apoiá-la, uma vez que ainda não podia participar. Muito calado, passava quase despercebido. Mas a irmã adorava-o e ele fazia-lhe as vontades todas.
Annie tinha uma boneca grande de que muito se ufanava, embora não gostasse tanto dela como do irmão. Um dia, deitou-a no sofá, cobriu-a com uma manta, para ela adormecer, e foi-se embora. Entretanto, Paul pôs-se a saltar em cima do sofá e caiu mesmo em cima da cara da boneca, escondida debaixo da coberta. Annie precipitou-se para o sofá soltando um grito lancinante e sentou-se a chorar, inconsolável. Paul nem se mexeu.
– Não se percebia que a boneca estava ali, mãe; não se percebia – não se cansava ele de repetir, deixando-se ficar sentado muito triste enquanto Annie continuava a chorar. Por fim, o desgosto passou e ela perdoou ao irmão, que estava genuinamente contrito. Porém, um ou dois dias depois Annie ficou chocadíssima.
– Vamos oferecer a Arabella em sacrifício – disse ele. – Vamos queimá-la. – A irmã ficou horrorizada, mas ao mesmo tempo fascinada. Sempre queria ver o que o irmão ia fazer. Ele fez um altar de tijolos, tirou bocadinhos do enchimento do corpo de Arabella, enfiou esses bocadinhos na cara esburacada, deitou-lhe em cima um pouco de parafina e incendiou a boneca. Depois, com perversa satisfação, ficou a ver as gotas de cera derretida a escorrerem pela testa de Arabella, como se fossem suor a pingar sobre a chama. Enquanto a estúpida da boneca esteve a arder, ele rejubilou em silêncio. No fim, esgravatou nas brasas com um pauzinho, pescou os braços e as pernas, todos pretos, e esmagou-os com uma pedra.
– Pronto, este foi o sacrifício da Arabella – anunciou. – E ainda bem que não sobejou nada.
Annie, embora nada dissesse, estava perturbada com a cena. Era como se ele odiasse a boneca intensamente pelo facto de a ter partido.
Todos os irmãos, mas Paul em particular, colocavam-se nitidamente ao lado da mãe contra o pai. Morel continuava a fazer desmandos e a embebedar-se. Havia alturas, às vezes meses a fio, em que transformava a vida de toda a família num inferno. Paul nunca se havia de esquecer de ter vindo para casa, depois de uma reunião religiosa uma segunda-feira à tardinha, e ter encontrado a mãe com um olho negro e todo inchado, o pai de pé junto à lareira, de pernas afastadas e cabisbaixo, e William, que acabara de chegar do trabalho, a olhar enfurecido para o pai. Fez-se silêncio quando os irmãos mais novos entraram, mas nenhum dos adultos olhou para eles.
William estava lívido e de punhos cerrados. Esperou que os mais pequenos se calassem, limitando-se a olhar a cena com indizível raiva infantil, e disse:
– Seu grande cobarde, se eu cá estivesse, não se atrevia a fazer uma coisa destas.
Mas Morel estava ao rubro e voltou-se contra o filho. William era mais alto, mas Morel era mais possante e estava cego de raiva.
– Ah, não? – berrou. – Ah, não atrevia? Se abres mais essa boca, meu menino, assento-te a mão em cima, olá se assento!
E, vergando os joelhos, brandiu o punho ameaçadoramente, animalescamente. William estava lívido de raiva.
– Ah, sim? – disse William, sereno e intrépido. – Pois seria a última vez.
Morel aproximou-se gingão, semivergado, de punho no ar em posição de ataque. William armou também o punho. Os seus olhos azuis fixos no pai tinham o brilho de uma gargalhada. Mais uma palavra e os dois homens engalfinhavam-se. Paul desejava que isso acontecesse. Os três mais novos assistiam sentados no sofá, sem pinga de sangue.
– Acabem já com isso – gritou Mrs. Morel, com dureza. – Por esta noite chega... E tu – disse, virando-se para o marido – pensa nos teus filhos.
Morel virou os olhos para o sofá.
– Pensa nos teus filhos, ess’agora, minha grande cabra – disse ele, acintoso – o qu’é qu’eu fiz òs meus filhos, sempre gostava de saber. Mas eles saem a ti... ensinaste-lhes todas as tuas manhas e truques... criaste-os à tua maneira, foi o que foi.
Ela não respondeu. Ninguém abriu a boca. Passado algum tempo, ele atirou as botas para debaixo da mesa e foi deitar-se.
– Porque é que não me deixou fazer-lhe frente? – disse William, quando o pai já tinha ido para cima. – Ele tinha apanhado, e bem.
– Que bonito... bateres no teu pai – respondeu a mãe.
– Pai! – repetiu William. – Aquilo, meu pai!
– Bom, lá que é... é. Por isso...
– Mas porque é que não me deixa dar-lhe uma ensinadela, não custava nada...
– Que disparate! – gritou Mrs. Morel. – Ainda não chegámos a esse ponto.
– Não – disse o filho. – Ainda é pior... olhe para a sua cara. Porque não me deixou bater-lhe?
– Porque não ia suportar assistir a uma coisa dessas. É melhor que nem te passe pela cabeça – gritou ela, peremptória.
As crianças foram deitar-se muito tristes.
Quando William já era grande, a família mudou-se das Bottoms para uma casa no alto da colina, de onde se alcançava todo o vale, que se estendia por baixo, convexo, como concha de amêijoa ou berbigão. Fronteiro à casa, estava postado um velho freixo de grandes dimensões. Quando o vento oeste soprava forte das bandas do Derbyshire, apanhava em cheio as casas e a árvore não parava de ulular. Morel gostava de a ouvir.
– É como a música – dizia ele. – Ajuda-me a adormecer.
Mas Paul, Arthur e Annie detestavam o zumbido do vento. Para Paul, era quase um gemido demoníaco. Durante o primeiro Inverno que passaram na nova casa, o pai portou-se muito mal. As crianças ficavam a brincar na rua, alcandorada sobre o vale extenso e sombrio, e só voltavam para casa às oito horas, indo directas para a cama. A mãe ficava a costurar no andar de baixo. Todo aquele espaço aberto diante da casa incutia nas crianças uma sensação de vastidão nocturna, de terror. Terror esse que provinha da árvore ululante e da discórdia entre os pais. Paul, mesmo depois de adormecer, tinha um sono sobressaltado e acordava amiúde com os barulhos que vinham de baixo. Acordava e ficava atento. Ouvia então os berros desabridos do pai, que chegara a casa a cair de bêbado, seguidos das respostas aceradas da mãe, e depois os murros do pai em cima da mesa e os seus gritos descontrolados, à medida que ia elevando a voz. E, finalmente, tudo isto era abafado pelos gemidos e os uivos penetrantes do grande freixo agitado pela ventania. As crianças mantinham-se caladas e expectantes, a aguardarem que o vento se calasse, para perceberem o que o pai estava a fazer, não fosse ele bater na mãe outra vez. A escuridão instilava neles sentimentos de horror, violenta tensão e sangue, e adormeciam com o coração apertado de angústia. O vento era cada vez mais assustador. Todas as cordas da grande harpa gemiam, silvavam e uivavam. E, depois, o horror do súbito silêncio: o silêncio total, lá fora e lá em baixo. Que silêncio era aquele?... Um silêncio de sangue? Que teria ele feito?
As crianças mantinham-se deitadas a respirar escuridão. Por fim, ouviam o pai atirar com as botas e subir a escada só de meias. Mesmo assim, ficavam à escuta, até que, se o vento deixava, ouviam a água a sair da torneira para a chaleira, que a mãe já deixava preparada para o dia seguinte, e podiam, finalmente, dormir em paz.
De manhã, acordavam felizes, muito felizes, e brincavam e dançavam à volta do candeeiro solitário, ainda na escuridão, mas guardavam um recanto de ansiedade dentro dos seus corações e uma tristeza nos olhos que conservaram para toda a vida.
Paul odiava o pai. Quando era ainda pequeno, tinha uma religião muito sua.
– Faz com que ele deixe de beber – pedia ele todas as noites.
– Senhor, deixa o meu pai morrer – rezava ele muitas vezes.
– Faz com que ele morra na mina – pedia ele quando, depois do chá, o pai tardava a vir do trabalho.
Esse era outro dos momentos em que a família sofria intensamente. As crianças chegavam da escola e tomavam chá. A enorme chaleira preta fervilhava a um lado do fogão e a terrina do guisado estava no forno, à espera de que Morel chegasse. Era esperado às cinco horas. Porém, durante meses a fio, parava sempre na taberna quando voltava do trabalho e por lá ficava a beber.
Nas noites de Inverno, quando o frio era intenso e anoitecia mais cedo, Mrs. Morel levava para a mesa uma palmatória de latão com uma vela acesa, para poupar o gás. As crianças comiam a sua fatia de pão com manteiga ou com banha e iam brincar para a rua. Mas, se Morel ainda não tinha chegado, eles pensavam duas vezes. Mrs. Morel não suportava imaginá-lo sentado na taberna a beber, todo sujo e ainda com as roupas da mina, depois de um dia de trabalho, e, em vez de vir para casa comer e lavar-se, preferir embebedar-se de estômago vazio. E este seu sentimento comunicava--se aos filhos. Agora, ela já não sofria sozinha: os filhos sofriam com ela.
Paul foi brincar com os outros rapazes. No vale semeado no crepúsculo, cintilavam aglomerados de luzes a marcarem a entrada das minas. Alguns mineiros retardatários subiam desgarrados o carreiro da encosta. Por fim, passou o homem que acendia os lampiões da rua. Mais nenhum mineiro se avistava. A escuridão abateu-se sobre o vale, o trabalho terminara, era a noite que chegava.
Paul correu ansioso para a cozinha. A vela solitária ardia ainda sobre a mesa, o clarão vermelho da fogueira inundava a cozinha, e Mrs. Morel estava sentada e só. A chaleira fumegava no fogão, o prato continuava à espera. Um sentimento de espera perpassava toda a casa, um sentimento de espera pelo homem que estava nesse momento sentado na taberna, a pouco mais de uma milha de casa, já noite escura, com a roupa de trabalho, sem comer, e a beber até cair. Paul apareceu à porta.
– O papá já chegou? – perguntou.
– Bem vês que não – disse Mrs. Morel, aborrecida com a redundância da pergunta.
Depois, o garoto pôs-se a andar de um lado para o outro à volta da mãe. Partilhavam a mesma ansiedade. A certa altura, Mrs. Morel foi lá fora escorrer a água das batatas.
– Estão todas negras, uma porcaria – disse ela. – Quero lá saber. – Não se trocavam muitas palavras. Paul quase odiava a mãe por sofrer daquela maneira quando o pai não vinha para casa.
– Para que se aflige tanto? – disse ele. – Se ele quer ficar por lá a embebedar-se, porque não o deixa?
– Deixá-lo! – ripostou Mrs. Morel. – Essa é boa, «deixá-lo». – Ela sabia que todo o homem que se mete na taberna quando devia voltar para casa sem demora se arruina a si mesmo e à família. As crianças eram ainda muito pequenas e ele era o seu único ganha-pão. William viera trazer-lhe algum alívio, pois, com ele empregado, sempre tinha alguém a quem recorrer se Morel descambasse de vez. Porém, isso em nada alterava a tensão que se respirava na cozinha nestas noites de espera.
Os minutos escoavam-se no bater ritmado do relógio. Às seis horas, a mesa ainda estava posta, o jantar à espera, e a mesma atmosfera de ansiedade e expectativa invadia toda a casa. Paul já não aguentava mais. Não lhe apetecia ir lá para fora brincar. Correu por isso para casa de Mrs. Inger, duas portas mais abaixo, para conversar com ela. Mrs. Inger não tinha filhos. O marido era amigo dela, mas era caixeiro numa loja e chegava muito tarde. Quando ela viu o garoto à porta, chamou-o:
– Vem cá, Paul.
Ficaram os dois a conversar durante um bocado, mas logo Paul se levantou, dizendo:
– Bem, vou andando, para ver se a minha mãe precisa que eu lhe vá fazer algum recado.
Fingia estar muito alegre e não contou à amiga o que o preocupava. Depois, voltou a correr para casa.
Em alturas como esta, Morel chegava sempre mal-humorado, insuportável.
– Lindas horas de voltares para casa – dizia Mrs. Morel.
– Que tens tu co’isso, cas horas a qu’eu venho pra casa? – berrava ele.
E ninguém abria a boca, porque ele era perigoso. Comia o que lhe punham à frente com inultrapassável grosseria e, quando terminava, empurrava tudo o que tinha diante de si para longe, para poder estender os braços por cima da mesa, e, em seguida, adormecia.
Paul odiava por demais o pai. A cabeça do mineiro, pequena e mesquinha, com o cabelo preto empastado de fuligem, repousava sobre os braços nus, e a cara, suja e mal-humorada, de nariz grosso e sobrancelhas finas e insolentes, estava virada para o lado, adormecida – da cerveja, do cansaço e da má índole. Se alguém entrasse de repente ou fizesse o mais pequeno ruído, o homem abria os olhos e berrava:
– Tás aqui, tás a levar um murro, se não paras com essa chinfrineira. Tás’ouvir?
Estas palavras, gritadas selvaticamente e quase sempre dirigidas contra Annie, deixavam toda a família transida de medo.
Ele era mantido fora de todos os assuntos. Ninguém lhe contava nada. Enquanto estavam sozinhos com a mãe, o filhos relatavam-lhe as peripécias do dia, contavam-lhe tudo. Era como se nada realmente acontecesse até contarem à mãe. Mas, mal o pai entrava, fazia-se silêncio. A sua presença era como um travão na engrenagem fluente e feliz da vida doméstica. Ele apercebia-se deste muro de silêncio, do isolamento a que o votavam, de que não era bem-vindo; mas era já demasiado tarde para mudar.
Bem gostaria de que os filhos conversassem com ele, mas eles não conseguiam. Às vezes Mrs. Morel dizia:
– Devias contar ao teu pai.
Paul ganhou um prémio num concurso de jornal e todos ficaram radiantes.
– O melhor é contares ao teu pai quando ele chegar – disse Mrs. Morel. – Sabes bem que ele passa a vida a dizer que nunca lhe contam nada.
– Está bem – concordou Paul. No entanto, quase preferia ter perdido o prémio a ter de contar ao pai.
– Ganhei um prémio num concurso, pai – disse ele.
Morel voltou-se e disse:
– Ah, ganhaste, meu rapaz?... E que concurso era esse?
– Nada de especial... era sobre mulheres famosas.
– E de quanto é esse tal prémio que ganhaste?
– É um livro.
– Ah, é?
– Sobre aves.
– Hum!
E era assim. Não havia conversa possível entre o pai e qualquer dos restantes membros da família. Era como se ele fosse um estranho, tivesse negado o Deus que nele habitava.
Os únicos momentos em que voltava a entrar na vida da família era quando fazia consertos em casa e o trabalho lhe corria de feição. Às vezes, ao fim da tarde, depois de jantar, punha-se a remendar as botas ou a soldar a chaleira ou o cantil. Nessa altura precisava de ajudantes e as crianças rejubilavam. Partilhavam com ele o trabalho, no verdadeiro sentido de construírem realmente qualquer coisa, e aquele sim, era ele outra vez.
Mostrava-se competente e habilidoso, e quando estava de bom humor não parava de cantarolar. Mas atravessava longos períodos, às vezes meses, quase anos até, de contundência e irascibilidade. Depois, de repente, ficava bem-disposto outra vez e era bom vê-lo entrar pela copa dentro com um bocado de ferro incandescente, a gritar:
– Saiam da frente, saiam da frente!
Batia o ferro rubro e maleável na bigorna e moldava-o a gosto. Outras vezes sentava-se a soldar, e as crianças viam cheias de alegria o metal derreter instantaneamente e ser espalhado pelo ferro de soldar, impregnando a casa de um odor a lata quente e a resina queimada, enquanto Morel em silêncio se concentrava no trabalho. Cantava sempre que estava a remendar as botas, ao som das batidas do martelo. E via-se que estava feliz quando punha grandes remendos nas calças de fustão que usava na mina, o que acontecia bastas vezes, pois achava-as muito sujas e muito rijas para ser a mulher a fazê-lo.
Mas o que as crianças mais gostavam era de o verem fazer detonadores. Morel ia buscar ao sótão um molho de palhas de trigo compridas e resistentes. Limpava-as e polia-as à mão até cada uma luzir como uma hastezinha de ouro. Depois, cortava-as em bocados com cerca de seis polegadas, fazendo-lhes, se possível, um talho na ponta. Tinha sempre ao seu lado um canivete primorosamente afiado que cortava uma palha ao meio sem a danificar. Seguidamente, deitava em cima da mesa um montinho de pólvora – uma pilha de grãos pretos sobre o tampo de madeira bem lavada, e ia preparando e aparando as palhas, enquanto Paul e Annie as enchiam e vedavam com um bujão. O que Paul mais gostava era de ver os grãozinhos pretos escorregarem pela calha que ele fazia com a palma da mão e entrarem pela abertura da palhinha, até ela ficar cheia. Nessa altura, vedava a abertura com uma raspa de sabão que arrancava com a unha do polegar do bocado de sabão que tinha a seu lado num pires, e a palha estava pronta.
– Olhe, pai! – dizia ele.
– Isso mesmo, meu amor – respondia Morel, que era particularmente pródigo em elogios para com o seu segundo filho. Paul atirava os detonadores para dentro da lata da pólvora, já pronta para o dia seguinte, quando Morel a levasse para a mina, para com eles provocar uma explosão capaz de fracturar a parede de carvão.
Entretanto, Arthur, ainda muito agarrado ao pai, vinha apoiar-se no braço do cadeirão de Morel e dizia:
– Conte-nos como é lá em baixo na mina, papá.
Era o que Morel mais gostava de fazer.
– Ora bem, lá na mina há um cavalo, a gente chama-lhe Taffy – começava ele – e ele é um gra-a-nde manhoso!
Morel tinha uma maneira pitoresca de contar histórias. Parecia até que a manha do Taffy ganhava vida.
– É um baio – continuava ele – e dos pequenos. Bem, a cert’altura ele entra na galaria com ganda estardalhaço e a gente ouve-o espirrar.
– «Olá, Taff», diz a gente, «pra que tás tu a espirrar? Andaste a cheirar rapé?» E ele vá de espirrar outra vez. Depois vem ter co’a gente e dá-nos co’a cabeça no ombro, o malandreco.
– «Qu’é que tu queres, Taff?», diz a gente.
– E o qu’é qu’ele quer? – perguntava Arthur invariavelmente.
– Quer um bocado de tabaco, meu tontinho.
E a história do Taffy nunca mais acabava, para gáudio da pequenada.
Outras vezes a história mudava.
– Ora ouve esta, meu amor. De quando vou a vestir o casaco, na hora de vir dar ao dente, e dou c’um rato a correr-me pela manga acima. «Eh, lá!», grito eu, mesmo a tempo de lh’agarrar a ponta do rabo.
– E matou-o?
– Matei, pois. São uma praga. Aquilo tá cheio deles.
– E o que é que eles comem?
– Os grãos qu’os cavalos deixam cair... e até nos vêm ao bolso comer o farnel, s’os deixarmos... seja onde for que a gente pendure o casaco... Danados de comilões, isso é qu’eles são...
Estas noites bem passadas só aconteciam quando Morel tinha trabalho para fazer. Depois, ia deitar-se muito cedo, geralmente com as crianças. Não havia nada que o fizesse ficar a pé depois de terminar os consertos e ler por alto os títulos do jornal.
Os filhos sentiam-se seguros quando o pai estava na cama. Por vezes ficavam a conversar em voz baixa depois de se deitarem, e assustavam-se quando luzes de repente se projectavam no tecto, vindas das lanternas dos mineiros que passavam para o turno das nove horas. Ouviam as vozes dos homens e imaginavam-nos a penetrar no vale de breu. Às vezes iam à janela e ficavam a ver as três ou quatro lanternas cada vez mais pequeninas desaparecerem na distância, balançando na escuridão dos prados. E, depois, era tão bom voltarem para a cama e enroscarem-se uns nos outros, no quentinho.
De todos, só Paul era muito frágil, atreito a ataques de bronquite. Os outros eram todos fortes e essa era talvez a outra razão para a diferença que a mãe fazia entre ele e os irmãos. Um dia, Paul chegou adoentado à hora do almoço. A família, porém, não era dada a pieguices.
– O que se passa contigo? – perguntou a mãe, incisiva.
– Nada – respondeu ele.
Mas não quis comer.
– Se não comeres, não voltas para a escola.
– Porquê? – perguntou ele.
– Porque não.
Depois do almoço, ele foi deitar-se no sofá, entre as fofas almofadas de ramagens de que as crianças tanto gostavam, e pareceu adormecer. Nessa tarde, estava Mrs. Morel a passar a ferro quando ouviu os ruídos roucos e entrecortados que o filho fazia ao respirar. De novo a assaltou o antigo sentimento exacerbado de quando ele era bebé e julgava que não ia sobreviver. No entanto, o corpinho dele tinha grande vitalidade. Talvez para ela tivesse sido um alívio se ele tivesse morrido. Sentia sempre a angústia misturar-se ao amor que lhe tinha.
Ele, no seu estado de semiconsciência, apercebia-se vagamente do tinir do ferro no descanso e do seu assentar cavo sobre a tábua de engomar. Uma das vezes, acordando, abriu os olhos e viu a mãe junto à lareira com o ferro quente perto da cara, a escutar por assim dizer o ruído do calor. Ao ver o seu rosto imóvel, a boca crispada de tanto sofrimento, desilusão e abnegação, o nariz ligeiramente à banda e os seus olhos azuis, tão jovens, vivos e ternos, o coração de Paul apertou-se-lhe de amor. Quando ela ficava assim parada, como agora, parecia cheia de vida e de coragem, mas completamente privada dos seus direitos. Ao filho, magoava-o profundamente este pressentimento de ela nunca ter sido feliz, e a sua própria falta de capacidade para a compensar atingia-o como uma espécie de impotência, ao mesmo tempo que determinavam nele uma atitude de paciente tenacidade, em conformidade com as suas ambições pueris.
Ela cuspiu no ferro, e uma bolinha de cuspo enovelou-se e correu pela superfície negra e luzidia. Depois, pondo-se de joelhos, esfregou o ferro vigorosamente no forro de serapilheira do tapete. As chamas da fogueira envolviam-na num clarão cálido e avermelhado. Paul gostava da maneira como ela se baixava e inclinava a cabeça para o lado com movimentos leves e ligeiros. Era sempre com enlevo que a olhava. Nada que fizesse, nenhuma atitude ou movimento, podiam ter defeito para os filhos. A casa estava aquecida e cheirava a roupa quente. Mais tarde, o pároco veio conversar tranquilamente com Mrs. Morel.
Paul caiu à cama com um ataque de bronquite. Não que isso o contrariasse muito: o que tinha de ser tinha muita força e de nada servia revoltar-se. Gostava das noites, depois das oito horas, quando apagavam a luz e ele podia ver as chamas projectarem-se na escuridão das paredes e do tecto e seguir com o olhar as sombras alongadas que o percorriam, até a sala parecer invadida por guerreiros silenciosos, combatendo no silêncio.
Quando se ia deitar, o pai passava primeiro pelo quarto do enfermo. Se alguém estava doente em casa, mostrava-se sempre muito terno, mas a sua entrada não deixava de perturbar a paz que reinava no quarto de Paul.
– Tá a dormir, meu amor? – perguntava Morel, devagarinho.
– Não... A mãe não vem para cima?
– Tá só a acabar de dobrar a roupa. Quer alguma coisa? – Morel só raramente tratava o filho por «você».
– Não, não quero nada... Mas quanto tempo é que demora?
– Já falta pouco, meu tontinho.
O pai hesitava uns segundos frente à lareira. Sentia que o filho não queria a sua presença. Assomava-se então ao cimo das escadas e dizia à mulher:
– Aquela criança tá ansiosa por te ter ó pé... Inda vais ficar aí muito tempo?
– Até acabar o que estou a fazer, santo Deus! Diz-lhe que durma.
– Ela diz qu’o melhor é o meu menino adormecer – disse ele a Paul, de mansinho.
– Mas eu quero que ela venha para cima – insistiu o garoto.
– Ele diz que não dorme enquanto não vieres pra cima – gritou Morel lá para baixo.
– Calma, querido! Já vou. E vê se não gritas dessa maneira. Olha as outras crianças...
Depois, Morel voltou para o quarto de Paul e acocorou-se em frente da lareira. Que bem lhe sabia aquecer-se ao lume.
– Ela diz que já vem.
Parecia querer ficar ali indefinidamente. O garoto já estava febril de irritação. A presença do pai parecia aumentar ainda mais a sua impaciência. Por fim, depois de ficar a olhar para o filho por algum tempo, em silêncio, Morel disse mansamente:
– Boa noite, meu amor.
– Boa noite – respondeu Paul, voltando-se para o outro lado, satisfeito por ficar sozinho.
Paul adorava dormir com a mãe. O sono é ainda mais reparador, apesar de tudo o que dizem os defensores da higiene, quando partilhado com um ente querido. O aconchego, a segurança, a paz de espírito e o conforto que a presença do outro traz, conferem ao sono propriedades curativas. Paul adormecia encostado a ela e melhorava depressa, e ela, sempre atormentada por insónias, mergulhava num sono profundo que parecia renovar-lhe a esperança.
Durante a convalescença, Paul ficava sentado na cama, a ver os cavalos a pastar nos campos circundantes, espalhando o feno pela neve amarelada das pegadas, e a ver os mineiros voltarem para casa, figurinhas negras trilhando lentamente em grupos a alvura dos campos. Depois, vinda da neve, a noite avançava em vapores azulados, quase negros.
Durante a convalescença tudo era maravilhoso. Os flocos de neve caindo de repente na janela detinham-se por um momento, como andorinhas, mas logo desapareciam, e uma gota de água escorria pela vidraça. Os flocos de neve rodopiavam em torno da esquina da casa como pombas esvoaçantes. Do outro lado do vale, o pequeno comboio negro rolava hesitante através da planície toda branca.
Vendo-se tão pobres, as crianças ficavam radiantes quando podiam fazer qualquer coisa que pudesse ajudar os pais economicamente. Annie, Paul e Arthur saíam no Verão logo pela manhã e metiam-se pelo meio da erva molhada, de onde esvoaçavam cotovias, assustadas, à cata de cogumelos, esses corpos nus e de pele tão branca que se escondem dos olhares por entre o verde. Se conseguiam apanhar meia libra, já se davam por muito felizes: era a alegria de encontrarem qualquer coisa, a alegria de receberem qualquer coisa directamente das mãos da natureza e a alegria de poderem contribuir para a economia doméstica.
Mas a colheita mais importante, depois de andarem à procura de ervas aromáticas para as papas, era a das amoras. Mrs. Morel tinha de comprar fruta todos os sábados para os pudins; além disso, gostava muito de amoras. Assim, Paul e Arthur, enquanto houvesse uma amora à vista, esquadrinhavam os silvados, as moitas e as pedreiras abandonadas todos os fins-de-semana. Naquela região de cidades mineiras, as amoras eram relativamente raras. Mas Paul era persistente. Gostava de andar pelos campos entre os silvados, mas não suportava voltar de mãos a abanar. Isso seria desapontá-la, pensava ele, e antes queria morrer.
– Santo Deus! – exclamou a mãe ao vê-los entrar, já tarde, mortos de cansaço e cheios de fome. – Por onde é que vocês andaram?
– Bem – começou Paul –, como aqui não encontrámos nenhuma, fomos até Misk Hills... E veja só, mãe.
Ela espreitou para a cesta.
– E que lindas que são! – exclamou.
– E passa de duas libras... passa de duas libras, não passa, mãe?
A mãe tomou o peso à cesta.
– Passa, sim – respondeu, pouco convicta.
Paul estendeu-lhe um raminho. Trazia-lhe sempre um raminho, o mais bonito que encontrasse.
– Que bonito! – disse ela, com a entoação especial da mulher que recebe um testemunho de amor.
O filho preferia correr os campos o dia inteiro, calcorrear milhas e milhas, a dar-se por vencido e voltar de mãos vazias. Ela nunca o entendeu enquanto ele foi pequeno. Era uma mulher que esperava que os filhos crescessem depressa e se preocupava sobretudo com William.
Mas quando William foi trabalhar para Nottingham, e já não passava tanto tempo em casa, a mãe fez de Paul seu companheiro. Este sentia involuntariamente ciúmes do irmão, e William tinha ciúmes de Paul, mas eram ao mesmo tempo bons amigos.
A relação de Mrs. Morel com o seu segundo filho era mais subtil e tranquila, menos exacerbada talvez do que com o filho mais velho. Estava estabelecido que era Paul quem ia levantar o salário às sextas-feiras à tarde. Os mineiros das cinco minas da zona recebiam à sexta-feira, mas não individualmente. Os salários referentes a cada galeria eram pagos por junto ao capataz, chefe e contratador dos mineiros, e era ele quem fazia a distribuição, na taberna ou na sua própria casa. Para as crianças poderem ir buscar o dinheiro, a escola acabava mais cedo às sextas-feiras. Todos os filhos de Morel, primeiro William, depois Annie e agora Paul, já tinham ido buscar o dinheiro às sextas-feiras à tarde, até chegar a altura de eles próprios começarem a trabalhar. Paul costumava sair de casa às três e meia, com um saquinho de pano no bolso. Por todos os caminhos se viam mulheres, raparigas, crianças e homens a caminho dos escritórios.
Os escritórios eram muito bonitos: num edifício novo de tijolo vermelho, que mais parecia uma mansão, no meio de um jardim muito bem tratado, ao fundo de Greenhill Lane. A sala de espera era no vestíbulo, uma sala comprida e nua com chão de tijoleira azul e um banco a toda a volta, encostado à parede. Era aqui que se sentavam os mineiros, carregados de fuligem. Tinham saído mais cedo da mina. As mulheres e as crianças ficavam geralmente à espera nos arruamentos de gravilha avermelhada. Paul observava sempre com atenção a orla de relva e o grande canteiro onde cresciam amores-perfeitos e miosótis. Aos ouvidos chegava-lhe o som de muitas vozes misturadas. As mulheres exibiam os seus chapéus domingueiros. As raparigas tagarelavam animadas. Os cães corriam para um lado e para o outro. E, em redor, os arbustos erguiam-se verdes e silenciosos.
Nisto, alguém gritava de lá de dentro: «Spinney Park... Spinney Park», e todos os da mina de Spinney Park entravam de tropel. Quando chegava a vez da mina de Bretty, Paul entrava com a multidão. A sala de pagamentos era muito pequena. Um balcão a toda a largura dividia-a ao meio. Atrás do balcão estavam dois homens, Mr. Braithwaite e um empregado, Mr. Winterbottom. Mr. Braithwaite era um homem corpulento, com ar de patriarca austero e uma barbicha branca e rala. Tinha geralmente a boca tapada com um grande lenço de pescoço, em seda, e, mesmo no Verão, havia sempre uma fogueira acesa. Não se via uma janela aberta. Por vezes, no Inverno, o calor até chegava a queimar as gargantas de quem vinha do ar gélido do exterior. Mr. Winterbottom era baixinho, gordo e calvo. Tecia comentários sem o mínimo resquício de imaginação, enquanto o seu chefe não se cansava de proferir patriarcais invectivas contra os mineiros.
A sala estava apinhada de mineiros todos enfarruscados, homens que já tinham ido a casa mudar de roupa, mulheres e uma ou duas crianças, e, geralmente, um cão. Paul era bastante baixo e era por isso sina sua ver-se entalado entre as pernas dos homens, perto do calor sufocante da lareira. Sabia a ordem por que os nomes eram chamados: de acordo com o número da galeria.
– Holliday – chamou a voz metálica de Mr. Braithwaite. Mrs. Holliday avançou em silêncio, recebeu o salário e passou para o outro lado.
– Bower... John Bower.
Um rapaz chegou-se ao balcão. Mr. Braithwaite, uma bisarma irascível, fuzilou-o com o olhar por detrás das lentes.
– John Bower! – voltou ele a chamar.
– Sou eu – disse o rapaz.
– Esta agora..., dantes as ventas eram outras – disse o luzidio Mr. Winterbottom, espreitando por cima do balcão. Os presentes riram-se à socapa, a pensarem no John Bower pai.
– Porque é que o teu pai não veio? – perguntou Mr. Braithwaite, num tom magistral e grandiloquente.
– Não anda bem – respondeu o rapaz, na sua voz aflautada.
– Devias dizer-lhe para largar a bebida – aconselhou o corpulento tesoureiro.
– E depois não te queixes, se ele te ferrar um pontapé – disse uma voz trocista lá de trás.
Todos se riram. O tesoureiro, avantajado e com ares importantes, olhou para a folha que se seguia.
– Fred Pilkington! – chamou, em tom neutro.
Mr. Braithwaite era um importante accionista da firma.
Paul sabia que só faltava um e depois era a vez dele. O coração começou a bater mais depressa. Foi empurrado de encontro à chaminé. Tinha a barriga das pernas a arder, mas não podia furar a barreira humana à sua volta.
– Walter Morel! – soou a voz metálica.
– Aqui – esganiçou-se Paul, da sua pequenez desajeitada.
– Morel... Walter Morel! – repetiu o tesoureiro, de folha de pagamentos na mão, pronto a passar à frente.
Paul foi acometido de convulsões nervosas e não conseguia, ou não queria, gritar. As costas dos homens apagavam-no por completo. Então, Mr. Winterbottom veio em seu auxílio.
– Ele tava aqui... onde tá ele? O miúdo do Morel?
O homem gordo, vermelhusco e calvo perscrutou a sala, assestando os olhos. Nisto, apontou para a chaminé. Os mineiros olharam também e, afastando-se, libertaram o rapaz.
– Aqui tá ele! – disse Mr. Winterbottom. Paul aproximou-se do balcão.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros... Atão, não respondes quando te chamam? – disse Mr. Braithwaite. Pousou um saco com cinco libras em prata com toda a força em cima da folha de pagamentos e, depois, num gesto rápido e delicado, pegou numa pequena pilha de dez libras em ouro e colocou-a ao lado da prata. As moedas de ouro escorregaram sobre o papel como um rio de brilho. O tesoureiro acabou de contar o dinheiro e o rapaz levou tudo a Mr. Winterbottom, no outro extremo do balcão, a quem deviam ser pagas a renda da casa e o aluguer das ferramentas. Aí chegado, novo percalço.
– Dezasseis xelins e seis dinheiros – disse Mr. Winterbottom.
O rapaz estava nervoso de mais para contar o dinheiro, pelo que empurrou algumas moedas de prata e meio soberano na direcção do funcionário.
– Quanto julgas tu que me destes? – perguntou Mr. Winterbottom.
O rapaz fitou-o, sem responder. Não fazia a menor ideia.
– Perdestes a língua?
Paul mordeu o lábio e empurrou mais algumas moedas de prata por cima do balcão.
– Na escola num t’insinaram a contar? – perguntou o homem.
– Só álgibra e franciú – disse um mineiro.
– E a ser sabido – acrescentou outro.
Paul sabia que por sua causa havia gente à espera. Com mãos trémulas, guardou o dinheiro no saco e saiu. Estas ocasiões eram para ele como as penas do Inferno.
Quando se apanhou cá fora, na estrada de Mansfield, sentiu-se infinitamente aliviado. O muro do parque estava coberto de musgo muito verde. Galinhas brancas e douradas debicavam à volta das macieiras de um pomar. Os mineiros serpenteavam rumo a casa. O rapaz seguia rente ao muro, envergonhado. Conhecia muitos dos homens, mas assim, todos sujos, não conseguia identificá-los, o que para ele era uma nova tortura.
Quando chegou à taberna New Inn, em Bretty, o pai ainda não tinha chegado. Mrs. Wharmby, a taberneira, conhecia-o. A avó dele, a mãe de Morel, fora amiga de Mrs. Wharmby.
– O teu pai ainda não chegou – disse ela, naquele tom meio atrevido, meio maternal, de mulher habituada a falar sobretudo com homens feitos. – Senta-te.
Paul sentou-se ao balcão, na beira de um banco alto. Alguns mineiros estavam a um canto a «dividir o bolo» – a distribuir o dinheiro – e outros vinham a entrar. Todos miravam o rapaz, sem dizer palavra. Finalmente, Morel chegou, todo desempenado e com um certo toque de galhardia, apesar da pretidão.
– Olá – disse ele, ternamente, para o filho. – Atão, inda conseguiste chegar primeiro do qu’eu? Queres beber alguma coisa?
Paul, tal como os irmãos, tinha crescido um anti-alcoólico convicto, e para ele era pior beber uma limonada à frente de todos aqueles homens do que tirar um dente.
A taberneira mirou-o dos pés à cabeça, penalizada, mas ao mesmo tempo ofendida com a rigidez moral de que dava mostras. Paul voltou para casa rubro de vergonha. Entrou em silêncio. Sexta-feira era dia de cozer o pão e havia geralmente uma carcaça quentinha à sua espera. A mãe veio dar-lha.
De repente, ele virou-se a ela furioso, de olhos a faiscar.
– Nunca mais entro naquele escritório.
– Porquê, o que é que aconteceu? – perguntou a mãe, surpreendida. Divertia-se imenso com os súbitos ataques de fúria deste filho.
– Nunca mais lá volto – afirmou ele.
– Pronto, está bem. Então, vai dizer isso ao teu pai.
Paul mastigava o pão como se tivesse alguma coisa contra ele.
– Não vou... Não vou mais buscar o dinheiro.
– Então talvez um dos miúdos do Carlin possa ir. Eles haviam de gostar de ficar com os seis dinheiros – disse Mrs. Morel.
Os seis dinheiros era tudo o que Paul recebia. Gastava-os quase todos a comprar presentes de aniversário, é certo, mas eram a sua semanada e prezava-os muito. Porém, disse:
– Pois que fique com eles! Eu não os quero.
– Muito bem – respondeu a mãe. – Mas não precisas de me tratar mal por causa disso.
– Eles são horríveis e ordinários... são horríveis, pronto, e eu não vou lá mais. Mr. Braithwaite pronuncia mal as palavras e Mr. Winterbottom diz «a gente semos».
– E é por isso que não queres lá voltar? – disse a mãe a sorrir.
O rapaz ficou calado. Estava muito pálido, com os olhos pretos e furiosos. A mãe voltou aos seus afazeres sem lhe dar mais importância.
– Eles metem-se todos à minha frente e eu não consigo sair donde estou – disse ele.
– Bem, meu filho, só tens de pedir licença – respondeu ela.
– E depois o Alfred Winterbottom diz, «O qu’é que t’insinam na escola?»
– A ele nunca ensinaram grande coisa – disse Mrs. Morel. – Lá isso é verdade... nem boas maneiras, nem inteligência... a única coisa que tem é manha.
– E vão eles e dizem, «Só álgibra e franciú.» Na escola, não ensinam francês.
– Mas, se ensinassem – disse a mãe, sorrindo – não era preciso ficares tão zangado... Portas-te duma maneira tão infantil, meu filho, quando alguém brinca contigo.
– E depois? – Paul olhou para a mãe quase a chorar, e ainda com mais raiva e ódio do que propriamente ofendido.
– És tão pateta – continuou ela. – Não consegues dizer simplesmente «agora é a minha vez», deixas-te ultrapassar e depois ficas furioso. A culpa é tua.
E, assim, lá o acalmou, embora à sua maneira. A ridícula hiper-sensibilidade dele confrangia-lhe o coração. Outras vezes, a fúria que via nos olhos do filho alertava-a, fazia a sua alma adormecida levantar a cabeça momentaneamente, surpreendida.
– Quanto foi desta vez? – perguntou.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros, e dezasseis xelins e seis dinheiros de retenção – replicou o rapaz. Foi uma boa semana... e só cinco xelins de retenções para o meu pai.
Assim, ela podia calcular quanto o marido tinha ganho, e chamá-lo à pedra se ele lhe desse pouco dinheiro. Morel guardava sempre para si o segredo do montante da semana.
Sexta-feira era a noite de cozer pão e de ir ao mercado. Regra geral, Paul ficava em casa a vigiar o pão. Gostava de ficar a desenhar ou a ler – adorava desenhar. Annie punha-se sempre ao fresco à sexta-feira à noite, e Arthur entretinha-se a brincar na rua, como de costume. Por isso, Paul ficava sozinho.
Mrs. Morel gostava muito de ir à compras. No exíguo terreiro no cimo da colina onde se juntavam as quatro estradas vindas de Nottingham e Derby, Ilkeston e Mansfield, eram montadas muitas barracas. Chegavam breques das aldeias em redor. O mercado enchia-se de mulheres, as ruas ficavam apinhadas de homens. Mrs. Morel costumava discutir com a vendedeira de rendas, simpatizava com o homem da fruta, que era muito falador – mas a mulher, essa era uma desavergonhada, sempre a dar conversa ao peixeiro, que era um patife, mas muito espirituoso – metia na ordem o vendedor de linóleo, mostrava-se distante com o homem do bricabraque, e só entrava na barraca das loiças quando se sentia atraída – ou arrastada – pelas florinhas que decoravam algum prato ou alguma travessa. Mas, sempre que isso acontecia, mostrava-se delicadamente reservada.
– Estava aqui a pensar quanto poderia custar isto – dizia ela.
– Sete dinheiros, por ser para si.
– Obrigada.
Pousava de novo a travessa e ia-se embora. Mas não era capaz de deixar o mercado sem a levar. E lá ia ela outra vez ao sítio onde as loiças estavam expostas pelo chão, e olhava de soslaio para a travessa, furtivamente, fingindo que não estava a olhar.
Era uma mulher franzina, de chapéu e fato preto. O chapéu já tinha quase três anos, para vergonha e desespero de Annie.
– Mãe! – implorava ela. – Não ponhas mais esse chapéu horroroso.
– E queres que eu ponha o quê? – retorquia a mãe, com aspereza. – Acho que está até muito bom.
Começara por ser enfeitado com uma pala, depois seguiram-se flores, e agora estava reduzido a uma rendinha preta e um pouco de azeviche.
– Tem tão mau aspecto – dizia Paul. – Não lhe pode dar um ar um pouco mais moderno?
– Posso é dar-te umas boas palmadas, para não seres atrevido – disse Mrs. Morel, e atava as fitas do chapéu preto debaixo do queixo, com determinação.
Contemplou a travessa uma vez mais. Tanto ela como o oleiro se sentiam pouco à vontade, como se entre eles existisse qualquer desentendimento. De repente, o oleiro exclamou:
– Quer levá-la por cinco dinheiros?
Ela estremeceu. O coração apertou-se-lhe. Mas, depois, baixou-se e pegou na travessa.
– Fico com ela – disse ela.
– Faz-me esse favor, não é? – disse o homem. – O melhor é cuspir-lhe em cima, como se faz quando nos dão uma prenda.
Mrs. Morel deu-lhe os cinco dinheiros com frieza.
– Não acho que ma esteja a dar, percebe – disse ela. – Se não quisesse, não ma deixava levar por cinco dinheiros.
– Neste país de miséria, já nos podemos dar por muito felizes se pudermos dar as nossas coisas – resmungou o homem.
– Pois é, há tempos bons e maus – disse Mrs. Morel.
Mas já tinha perdoado ao oleiro. Agora, eram amigos. Já se atrevia a mexer nas loiças expostas e sentia-se feliz.
Paul estava à espera da mãe. Adorava vê-la entrar em casa. Chegava sempre radiante, triunfante, cansada, carregada de embrulhos, mas rica de espírito. Ele ouvia os seus passinhos leves na entrada e levantava os olhos das pinturas.
– Oh! – suspirava ela, sorrindo-lhe da soleira da porta.
– Ena pá, como vem carregada! – exclamava Paul, pousando o pincel.
– Se venho! – dizia ela, ofegante. – A marota da Annie disse que ia ter comigo. Olha para o peso que eu trago!
Pousou o saco e os pacotes em cima da mesa.
– O pão já está cozido? – perguntou, dirigindo-se para o forno.
– O último está a crescer – respondeu ele. – Não precisa de ir ver, eu não me esqueci dele.
– Ai, aquele oleiro! – disse ela, fechando a porta do forno. – Lembras-te de eu te dizer como ele era antipático. Bom, agora já não acho que seja assim tão mau.
– Ah, não?
O filho não tirava os olhos dela. Mrs. Morel tirou o chapelinho preto.
– Não... Acho que ele acaba por não ganhar nada... bem, passa-se o mesmo com toda a gente, nos tempos que correm... e é isso que o deixa mal-encarado.
– A mim deixava com certeza – disse Paul.
– Bom, e não seria para admirar... E ele deixou-me ficar esta... Por quanto é que achas que ele me deixou ficar isto?
Tirou a travessa do papel que a embrulhava e contemplou-a, satisfeita.
– Mostre lá! – pediu Paul.
E ficaram os dois lado a lado a admirar a travessa.
– Adoro ver estas florinhas a enfeitar as coisas – disse Paul.
– Eu também. E lembrei-me do bule que me compraste...
– Um xelim e três dinheiros – disse Paul.
– Cinco dinheiros!
– Foi muito barata, mãe.
– Pois foi. Pode dizer-se que foi quase roubada. Mas já tinha feito muitas extravagâncias e não tinha dinheiro para mais. E, se ele não quisesse, não precisava de ma vender.
– Lá isso, não, não precisava – disse Paul, e ficaram os dois a consolar-se mutuamente do receio de terem roubado o oleiro.
– Podemos usá-la para pôr fruta cozida – alvitrou Paul.
– Ou leite-creme... ou doce de fruta – acrescentou a mãe.
– Ou rabanetes e alface – continuou ele.
– Não te distraias com o pão – disse a mãe, numa voz transbordante de alegria.
Paul foi espreitar o pão e bateu-lhe ao de leve na parte de baixo.
– Já está cozido – disse, mostrando-o à mãe. Ela bateu-lhe também.
– Pois está – respondeu ela, começando a tirar as compras do saco. – Oh, sou uma gastadora, uma perdulária... Sei que um dia me vai fazer falta.
Paul foi a saltitar para junto da mãe, para ver as últimas extravagâncias. Ela abriu um outro embrulho em papel de jornal e pôs à mostra algumas raízes de amores-perfeitos e boninas carmesim.
– Quatro dinheiros! – lamentou-se.
– Que barato! – exclamou ele.
– Pois é, e logo esta semana que eu estava sem um tostão.
– Mas são lindas! – exclamou ele.
– Então não são! – exclamou ela, dando lugar ao mais genuíno contentamento. – Paul... olha para esta florinha amarela... que bonita, não é... e uma cara que parece de velho!
– E parece mesmo! – exclamou Paul, baixando-se para cheirar. – E que bem que cheira! Mas está um bocado suja.
Correu para a copa, voltou com um pano molhado, e lavou o amor-perfeito com todo o cuidado.
– Agora, olhe para ele, está todo molhado! – disse Paul.
– Pois está! – exclamou ela, a transbordar de felicidade.
As crianças de Scargill Street consideravam-se muito selectas. Ao fundo da rua, onde viviam os Morels, não havia muita gente nova, e, por isso, os que havia eram mais unidos. Rapazes e raparigas brincavam uns com os outros: as raparigas participavam nas lutas e jogos violentos dos rapazes, e os rapazes tomavam parte nas danças de roda e nos jogos de faz-de-conta das raparigas.
Annie, Paul e Arthur gostavam das noites de Inverno, quando não chovia. Deixavam-se ficar dentro de casa até os mineiros terem regressado todos, até ser noite fechada e a rua ficar deserta. Nessa altura, enrolavam um cachecol ao pescoço, pois prescindiam do casacão, tal como os outros filhos dos mineiros, e saíam de casa. A entrada da rua estava completamente às escuras daquele lado e a noite estendia-se vazia, com um pequeno emaranhado de luzinhas lá em baixo, na mina de Minton, e um outro bem mais longe, na direcção oposta, na de Selby. As luzes mais distantes pareciam prolongar as trevas para sempre. As crianças olhavam ansiosas para o lampião solitário postado ao fundo da rua, na extremidade da ladeira da encosta. Se o escasso espaço de luz estava deserto, os dois rapazes ficavam desolados. Encostavam-se ao candeeiro, de mãos nos bolsos e costas viradas à noite, aborrecidíssimos, a olharem para as casas às escuras. Nisto, avistaram um bibe por baixo de um casaquinho curto, e uma rapariga de pernas altas a correr para eles.
– Onde tão o Billy Pillins e a vossa Annie e o Eddie Dakin?
– Não sei.
Mas isso não tinha importância – agora já eram três, e punham-se a correr à volta do poste até os outros aparecerem a gritar. Daí em diante, era brincadeira a valer.
Existia apenas este candeeiro. Para trás dele, só a imensa concha de trevas que parecia conter a noite inteira. À sua frente, um caminho largo e escuro percorria a cumeada. De vez em quando, saía alguém desse caminho e dirigia-se para o vale, pelo carreiro, sendo tragado pela noite a uns escassos dez metros de distância. As crianças continuaram a brincar.
Eram excessivamente unidas devido ao isolamento em que viviam. Mas, se se zangavam, a brincadeira ficava completamente estragada. Arthur era muito susceptível, e Billy Pillins, ou melhor, Philips, era-o ainda mais. Paul tinha de tomar o partido de Arthur, e a Paul juntava-se Alice, enquanto Billy Pillins contava sempre com o apoio de Emmie Limb e Eddie Dakin. Depois, envolviam-se os seis à bulha, odiando-se com toda a fúria do mais genuíno ódio, e corriam para casa apavorados. Paul nunca se havia de esquecer de ter visto uma noite, depois de uma destas assanhadas lutas fratricidas, uma grande lua vermelha elevar-se lentamente no céu por cima da estrada deserta da cumeada, sem vacilar, como pássaro gigantesco; e a imagem bíblica que o assaltou, da lua a transformar-se em sangue. No dia seguinte, apressou-se a ir fazer as pazes com Billy Pillins, e as desenfreadas brincadeiras retomaram o seu curso à luz do candeeiro solitário, rodeadas da mais negra escuridão. Mrs. Morel, ao entrar na sala, ouvia as crianças a cantar ao longe:
«Uso sapatos de couro espanhol,
Meias de seda, para meu deleite;
Anéis nos dedos, que brilham ao sol,
E só tomo banho em tinas de leite.»
Pareciam tão absorvidas no jogo, pelo som das suas vozes que penetrava as trevas, que dir-se-ia o canto de criaturas selvagens. A mãe estremecia e entendia-os quando voltavam às oito horas, afogueados, de olhos brilhantes e língua solta e vibrante.
Todos eles gostavam desta casa de Scargill Street pela sua largueza de horizontes, pela sua abertura sobre a concha de mundo que dominava. Nas noites de Verão, as mulheres vinham arrimar-se à cerca da encosta, a conversar, viradas para poente, vendo o sol apagar-se num lampejo e espraiando o olhar até aos montes do Derbyshire, recortados ao longe num céu de carmim, como a crista negra de uma salamandra.
Neste Verão, as minas não estavam a trabalhar em pleno, especialmente as de carvão mole. Mrs. Dakin, que morava ao lado de Mrs. Morel, costumava ficar a ver os homens subirem a encosta lentamente sempre que se assomava à cerca para sacudir o tapete. Viu logo que eram mineiros e ficou à espera lá em cima, alcandorada na colina, alta, magra, olhar astuto e penetrante, uma quase ameaça para os pobres mineiros que a custo trepavam a ladeira. Eram apenas onze horas. A neblina que, como fino crepe negro, cobre o horizonte das manhãs estivais não se tinha ainda dissipado sobre as colinas frondosas desenhadas à distância. O primeiro homem alcançou a cancela, que chiou à sua passagem.
– O quê, mandaram-no embora? – gritou Mrs. Dakin.
– Mandaram, sim senhora.
– É uma pena deixarem-nos vir embora – disse ela, sarcástica.
– Lá isso é – respondeu o homem.
– E não apetece nada voltar para casa agora – disse ela.
O homem seguiu o seu caminho. Quando Mrs. Dakin atravessava o quintal, de volta a casa, avistou Mrs. Morel, que ia despejar as cinzas da lareira.
– Acho que Minton fechou, Mrs. Morel – gritou ela.
– É uma vergonha! – exclamou Mrs. Morel indignada.
– Pois é... Vi mesmo agora o Jont Hutchly.
– Bem podiam ter poupado as solas dos sapatos – disse Mrs. Morel, e voltaram as duas para casa indignadas.
Os mineiros, de caras quase limpas, voltavam para casa. Morel detestava ter de se vir embora. Adorava as manhãs soalheiras, mas ir para a mina e mandarem-no embora logo a seguir estragava-lhe a boa disposição.
– Santo Deus... já? – exclamou a mulher, vendo-o entrar.
– Qu’hei-d’eu fazer, mulher! – berrou ele.
– E eu não tenho comida que chegue.
– Num faz mal, como o farnel que levei – vociferou ele, pateticamente. Sentia-se envergonhado e irritado.
Os filhos, quando chegaram da escola, estranharam ver o pai a comer as duas grossas fatias de pão com manteiga que tinha levado para a mina, já muito secas e sujas.
– Porque é que o meu pai tem de comer o farnel aqui em casa? – perguntou Arthur.
– Porqu’ela ficava toda zangada s’eu num o comesse – respondeu Morel.
– Lá estás tu com histórias! – exclamou a mulher.
– E achas qu’é pra deitar fora? – disse Morel. – Eu num sou esquisito como vocês, que desperdiçam tudo. Se me cai um bocado de pão na mina, no meio daquela porcaria toda, apanho-o e como-o.
– Os ratos comiam-no – disse Paul – e já não era um desperdício.
– Pão cum manteiga pròs ratos? Nem pensar nisso – disse Morel. – Sujo ou limpo, antes comê-lo eu que deitá-lo fora.
– Podias dá-lo aos ratos e comprares mais com o dinheiro que gastas na cerveja – disse Mrs. Morel.
– Ah, podia...? – exclamou o marido.
O Outono que se seguiu foi de míngua. William tinha acabado de partir para Londres e a mãe sentia a falta do dinheiro que ele lhe costumava entregar. Ainda lhe mandou dez xelins por uma ou duas vezes, mas no início tinha muitas compras a fazer. As suas cartas chegavam com regularidade, uma vez por semana. Escrevia longas cartas à mãe em que lhe contava o que fazia, os amigos que tinha, as lições que trocava com um francês, como gostava de viver em Londres. Para a mãe era como se ele estivesse com ela, como no tempo em que morava em casa. E ele todas as semanas lhe escrevia cartas francas e cheias de espírito. Era nele que ela pensava o dia inteiro, enquanto fazia a limpeza da casa. Ele estava em Londres, ia ter sorte. Era quase como se fosse o seu cavaleiro andante, ostentando as cores dela na batalha.
Vinha agora a casa passar cinco dias pelo Natal. Não havia memória de tantos preparativos. Paul e Arthur correram os campos à procura de azevinho e sempre-viva. Annie fez enfeites de papel recortado à moda antiga, e a despensa estava farta como nunca. Mrs. Morel fez um bolo de natal enorme, magnífico, e sentindo-se uma rainha, mostrou a Paul como se pelavam amêndoas. Ele pelou as oleaginosas com reverência, contando-as, uma a uma, não fosse alguma perder-se. Dizia-se que as claras subiam mais num lugar frio e, por isso, Paul foi para a copa, onde o frio era quase insuportável, batendo-as sem parar e correndo excitadíssimo a mostrar a mãe como as claras cresciam, cada vez mais firmes e nevadas.
– Olhe, mãe... estão óptimas, não estão?
Depois, pôs um bocadinho na ponta do nariz e soprou-o para o ar.
– Então, isso não é para estragar – disse a mãe.
Toda a gente andava excitadíssima. William ia chegar na véspera de Natal. Mrs. Morel passou revista à despensa. Havia um grande bolo de passas e um bolo de farinha de arroz; tartes de geleia e de limão, e duas grandes travessas cheias de empadas de carne. E ainda faltavam umas tartes de amêndoa e de queijo que ela preparava a toda a pressa. A casa estava toda enfeitada. A coroa de azevinho, salpicada de bagas bem vermelhas e pendurada entre grinaldas cintilantes, rodopiava por cima da cabeça de Mrs. Morel enquanto ela recortava a massa das tartes na cozinha. A fogueira, imensa, crepitava. A casa rescendia a bolos e massa folhada. William devia chegar às sete horas, mas o mais provável era atrasar-se. Os irmãos tinham ido ao seu encontro. A mãe ficara sozinha. Mas, por volta de um quarto para as sete, Morel voltou para casa. Marido e mulher nada disseram. Ele sentou-se no cadeirão, ansioso, sem saber o que fazer, e ela continuou com os seus cozinhados. A sua comoção só era traída pelo modo meticuloso como ia fazendo as coisas. E o relógio continuou a bater.
– A que horas disseste qu’ele chegava? – perguntou Morel, pela quinta vez.
– O comboio chega às seis e meia – respondeu ela, enfaticamente.
– Então vai chegar por volta das sete e dez.
– Deus te oiça, mas o comboio vai atrasar-se algumas horas no Midlands – disse ela, aparentando indiferença. Fazia-o, no entanto, com a esperança de acontecer o contrário e ele chegar mais cedo. Morel foi até à porta, para ver se o via. Depois voltou para dentro.
– Credo, homem! – disse ela. – Parece que tens bicho-carpinteiro.
– Em vez de estares pr’aí a falar, num era melhor arranjares-lhe alguma coisa para comer? – disse o marido.
– Tenho muito tempo para isso – respondeu ela.
– Num é o que me parece – contrapôs ele, virando-se amuado na cadeira. Ela começou a limpar a mesa da cozinha. A chaleira já apitava. E eles à espera.
Entretanto, os outros três filhos estavam em Lethley Bridge, uma estação da linha do Midlands, a duas milhas de casa. Esperaram uma hora. Chegou um comboio, e nada. Ao fundo da linha, as luzes verdes e vermelhas acendiam e apagavam. Estava muito escuro e fazia muito frio.
– Vai perguntar-lhe se o comboio de Londres já passou – disse Paul a Annie quando avistaram um homem de boné de pala.
– Não vou nada – disse Annie. – Fica mas é calado, senão ele inda nos manda embora.
Mas Paul estava morto por que o homem soubesse que eles esperavam alguém que vinha de Londres, o que lhes dava uma certa importância. Porém, tinha medo, muito medo, de abordar um desconhecido, e ainda por cima de boné de pala. As crianças nem se atreviam a entrar na sala de espera, com medo de que os mandassem embora, e que alguma coisa acontecesse enquanto não estavam na plataforma. E lá continuaram à espera, no frio e na escuridão.
– Já está hora e meia atrasado – disse Arthur, já a desesperar.
– Bem – disse Annie –, é véspera de Natal.
O silêncio crescia entre eles. O irmão não vinha. Perscrutaram a escuridão ao longo da linha férrea. Lá ao fundo, ficava Londres! Uma lonjura infinita, pensaram. Tudo podia acontecer quando se vinha de Londres. Estavam demasiado preocupados para falarem. Enregelados, tristes e mudos, continuavam encostados uns aos outros na plataforma.
Finalmente, passadas mais de duas horas, avistaram os faróis de uma locomotiva a descrever uma curva na distância. Um bagageiro aproximou-se a correr. As crianças chegaram-se para trás com os corações a galope. Um enorme comboio com destino a Manchester parou. Abriram-se duas portas e, de uma delas, saiu William. Os irmãos atiraram-se a ele. Ele, todo contente, entregou-lhes muitos embrulhos e logo explicou que aquele grande comboio só tinha parado numa estação insignificante como Lethley Bridge por causa dele, já que a paragem não estava programada.
Entretanto, os pais iam ficando cada vez mais preocupados. A mesa estava posta, a costeleta grelhada, tudo estava a postos. Mrs. Morel pôs o seu avental preto. Por baixo, tinha o seu melhor vestido. Depois sentou-se e fingiu concentrar-se na leitura. Os minutos arrastavam-se como uma tortura.
– Hum! – disse Morel. – Já passa hora e meia.
– E aquelas crianças à espera! – disse ela.
– O comboio inda num pode ter chegado – disse ele.
– É o que eu digo. Na véspera de Natal vêm com horas de atraso.
Estavam os dois implicativos de tanta ansiedade. O freixo gemia lá fora fustigado por um vento gélido, implacável. E tanta noite a separar Londres do lar! Mrs. Morel sofria. O tiquetaque do relógio irritava-a sobremaneira. Estava a fazer-se tarde. A espera estava a tornar-se insuportável.
Por fim, o ruído de vozes e de passos na entrada.
– Já chegou! – gritou Morel, saltando da cadeira.
Depois, deu um passo à retaguarda. A mãe correu em direcção à porta e ficou à espera. Seguiu-se um tropel de passos, a porta escancarou-se e William apareceu. Largou no chão o saco de viagem e abraçou-se à mãe.
– Mater! – disse ele.
– Meu filho! – gritou ela.
E, durante não mais de dois segundos, ela abraçou-o e beijou-o. Depois, afastou-se e disse, com a naturalidade possível:
– Mas que grande atraso!
– Foi, não foi? – exclamou ele, voltando-se para o pai.
– Então, pai!
E os dois homens trocaram um aperto de mão.
– Então, meu rapaz!
Os olhos de Morel estavam rasos de lágrimas.
– Távamos a ver que nunca mais chegavas – disse ele.
– Então não havia de chegar! – exclamou William, voltando-se para mãe.
– Estás com óptimo aspecto – disse Mrs. Morel, a rir, toda orgulhosa.
– Claro... – respondeu o filho. – Basta ter voltado para casa.
Era um jovem desempenado, alto, garboso e de olhar intrépido. Olhou em volta, para a sempre-viva e o azevinho, e para as empadas que estavam dentro das forminhas em cima do fogão.
– Graças a Deus que nada mudou, mãe – disse ele, satisfeito. Todos ficaram calados por um momento. De repente, ele deu um salto em frente, tirou uma empadinha do fogão e meteu-a na boca de uma só vez.
– Safa, já alguma vez viram um saco roto como este? – exclamou o pai.
William trazia um nunca mais acabar de presentes para todos. Gastara quanto tinha para os comprar. A casa foi invadida por uma certa atmosfera de luxo e prosperidade. Para a mãe, uma sombrinha com o cabo beige com enfeites dourados. Ela guardou-a para quando morresse, e antes queria perder tudo o que tinha a ficar sem ela. Todos receberam coisas bonitas e, além disso, ele trouxe também montes de guloseimas desconhecidas naquelas paragens: geleias de frutos, ananás cristalizado, coisas que as crianças pensavam que só o esplendor de Londres tornava possíveis. E Paul não se calava de gabar tais guloseimas diante dos amigos.
– Ananás autêntico, às fatias, e transformado em cristal... bem bom!
Todos estavam loucos de felicidade. Não há nada que chegue ao próprio lar, e eles amavam-no com paixão, apesar dos maus bocados lá passados. Chegavam visitas, todos vinham dar-lhe os parabéns. Os vizinhos vinham ver o que Londres tinha feito de William e todos achavam que ele estava «um verdadeiro cavalheiro, e um belo rapaz, isso é que estava!».
Quando ele se foi embora outra vez, os irmãos foram chorar às escondidas para sítios diferentes, Morel foi meter-se na cama abatidíssimo e Mrs. Morel sentia-se como se estivesse drogada, como se os seus sentimentos tivessem paralisado. Amava o filho com verdadeira paixão.
William trabalhava no escritório de um advogado ligado a uma grande companhia de navegação e, em Junho, o chefe proporcionou-lhe uma viagem ao Mediterrâneo num dos barcos da companhia, por um preço irrisório. Mrs. Morel mandou-lhe dizer: «Vai, sim, meu filho. Podes não voltar a ter uma oportunidade como essa, e, para mim, ver-te a navegar no Mediterrâneo é talvez ainda melhor do que ter-te aqui em casa.» Mas William veio passar as duas semanas de férias a casa. Nem o Mediterrâneo, apelando embora a toda a sua ânsia de viajar e ao seu deslumbramento de homem pobre diante da opulência do Sul, podiam mantê-lo longe de casa. E isso era para a mãe compensação bastante para todos os sacrifícios.
V
PAUL ENFRENTA A VIDA
MOREL era um homem negligente, indiferente ao perigo, sofrendo por isso inúmeros acidentes. De tal forma que, quando Mrs. Morel ouvia chiar as rodas de uma carroça de transporte de carvão, estacando à sua porta, corria logo para a janela da sala à espera de ver o marido lá sentado, com o rosto macilento por baixo da camada de fuligem, e o corpo inerte, vítima de qualquer contusão ou outro percalço. Se era ele, saía de casa a correr para o ajudar.
Cerca de um ano após William ter ido para Londres, e logo depois de Paul ter saído da escola, mas quando ainda não tinha arranjado trabalho, estava Mrs. Morel no andar de cima e o filho na cozinha, entretido a pintar – fazia maravilhas com os pincéis – quando bateram à porta. Enfadado, Paul pousou o pincel para ir abrir. Simultaneamente, a mãe abriu a janela e espreitou para a rua.
Era um mineiro, um rapazito, que batia à porta.
– É aqui que mora o Walter Morel? – perguntou.
– É, sim! – respondeu Mrs. Morel. – Aconteceu alguma coisa?
Mas ela já tinha adivinhado.
– O seu marido aleijou-se – disse o rapaz.
– Oh, meu Deus! – exclamou ela. – Quando não acontece nada é que é para admirar. O que foi desta vez?
– Num sei bem, mas foi na perna... Levaram-no prò hospital.
– Valha-me Deus! – exclamou ela. – Ah, este homem... este homem...! Não me dá cinco minutos de descanso, eu morra aqui se não é verdade! O polegar já estava quase bom e agora... Tu viste-o?
– Vi-o lá ’baixo. E vi-os trazerem-no pra cima num elevador... tava branco cum’á cal. E o qu’ele berrou quando o Dr. Fraser o examinou na casa das lanternas... sempre aos berros e a praguejar... e a dizer que queria qu’o trouxessem pra casa... que num ia prò hospital...! E o rapaz calou-se.
– Isso é bem dele... quer vir para casa, para me dar trabalho... Obrigada, meu filho... Que cansada que eu estou de tudo isto... cansada e farta... isso é que eu estou!
Desceu as escadas. Paul tinha recomeçado a pintar, mecanicamente.
– Deve ser grave... para o levarem para o hospital... – continuou ela. – Mas que criatura mais descuidada! Os outros homens não podem ter assim tantos acidentes... É isso, ele queria deitar o trabalho todo para cima das minhas costas... E logo agora, que as coisas estavam finalmente a correr um bocadinho melhor... Vá, deixa isso, agora não há tempo para pinturas... A que horas tenho comboio? Agora vou ter de ir até Kreston... o quarto tem de esperar.
– Eu acabo de o arrumar – disse Paul.
– Não precisas... às sete horas estou de volta, acho eu... E o barulho que ele vai fazer... nem quero pensar... E aqueles calhaus de granito de Tinder Hill... ele bem pode chamar-lhes pedrinhas... os solavancos vão dar cabo dele. Não sei porque não consertam a estrada... naquele estado... e com tanta gente a passar por lá na ambulância... Devia haver aqui um hospital... Já compraram o terreno... e não iam faltar acidentes para o manter a funcionar. Mas não, têm de os levar não sei quantas milhas naquela ambulância ronceira até Nottingham. É uma vergonha! E o estardalhaço que ele vai fazer, já sei como é! Quem terá ido com ele?... O Barker, provavelmente. Coitado, vai desejar estar em qualquer lado menos ali. Mas vai cuidar bem dele, eu sei. E agora sei lá quanto tempo ele vai ficar naquele hospital... e ele que detesta! Enfim, se for só a perna, já não é mau.
Ia falando enquanto se preparava para sair. Despindo o corpete à pressa, baixou-se para a caldeira, enquanto a água corria lentamente para o jarro.
– Era bem melhor se esta caldeira não existisse! – exclamou ela, apertando a asa do jarro com impaciência. Tinha uns braços fortes e bem torneados, surpreendentes numa mulher da sua estatura.
Paul arrumou as suas tralhas, pôs a chaleira ao lume e pôs a mesa.
– Só há um comboio às quatro e vinte – disse ele. – Tem tempo de sobra.
– Não tenho, não! – gritou ela, piscando os olhos e fitando-o por cima da toalha, enquanto limpava a cara.
– Tem, sim... Tem pelo menos de beber uma chávena de chá. Quer que vá consigo até Keston?
– Vires comigo para quê, pode saber-se?... Ora deixa cá ver o que é que eu tenho de lhe levar... Valha-me Deus!... A camisa lavada... e é uma sorte estar lavada... mas ficava melhor se a tivesse posto ao ar... as meias... isso ele não vai querer... e uma toalha, acho eu... e lenços... e que mais?
– Um pente, uma faca, um garfo e uma colher – disse Paul. Já não era a primeira vez que o pai ficava internado no hospital.
– Sabe Deus em que estado ele tinha os pés – continuou Mrs. Morel, penteando o cabelo castanho e muito comprido, fino como seda e já salpicado de fios prateados. – Ele nunca se esquece de se lavar da cintura para cima, mas para baixo acha que já não é preciso. Mas devem apanhar lá muitos como ele.
Paul tinha posto a mesa e preparou duas fatias finas de pão com manteiga para a mãe.
– Aqui tem – disse, pondo uma chávena de chá em frente ao lugar dela.
– Agora não tenho tempo – disse ela, secamente.
– Mas tem de ter... Olhe, já está tudo pronto – insistiu o filho.
Ela acabou por se sentar, bebeu uns golinhos de chá e comeu um pouco de pão em silêncio. Estava a pensar.
Daí a nada, tinha de se ir embora, para percorrer a pé as duas milhas e meia até à estação de Keston. Já tinha metido no saco de rede tudo o que ele precisava. Paul ficou a vê-la subir a estrada, entre as sebes de arbustos, pequenina e franzina, e o seu coração sofria por ela, por vê-la sujeita a mais esta provação. E ela, correndo ligeira de tanta ansiedade, sentia atrás de si o coração do filho a acompanhá-la, a tomar para si a parte possível deste fardo, a dar-lhe forças. E, quando chegou ao hospital, pensou: «Ele vai ficar preocupadíssimo quando eu lhe disser que é assim tão grave... o melhor é ter cuidado.» E, de regresso a casa, sentia que tinha com quem partilhar o fardo.
– É grave? – perguntou Paul, mal a viu entrar.
– Mais ou menos – respondeu ela.
– O quê?
Ela suspirou, sentou-se e desapertou as fitas do chapéu. O filho viu-a levantar o queixo e desatar a laçada com os dedos pequeninos, mas endurecidos pelo trabalho.
– Bem – respondeu ela – não se pode dizer que seja perigoso... mas a enfermeira diz que foi uma pancada horrível. Estás a ver... foi um grande bocado de rocha que lhe caiu em cima da perna... aqui, salvo seja... uma fractura múltipla... e tem bocados de osso a sair para fora...
– Ui, que horror! – exclamaram os filhos.
– E claro que ele diz que vai morrer – continuou Mrs. Morel. – É mesmo dele dizer isso... «Estou arrumado, cachopa!», disse ele, olhando para mim. «Não digas disparates», disse eu. «Não vais morrer de uma perna partida, por pior que esteja»... «Só saio daqui num caixão», queixava-se ele. «Bem!», disse eu, «Se queres que eles te levem a passear ao jardim dentro dum caixão, quando estiveres melhor, é só pedires e eles fazem-te a vontade»... «Se acharmos que lhe vai fazer bem», acrescentou a Irmã. Ela é bem simpática, a Irmã, mas muito rigorosa.
Mrs. Morel tirou o chapéu. Os filhos mantiveram-se em silêncio, expectantes.
– Claro que ele está mal – prosseguiu ela. – E vai levar muito tempo a recompor-se. Foi um acidente muito grave e ele perdeu muito sangue... e, já se vê, a lesão é muito perigosa. Ninguém sabe o tempo que vai levar a sarar. E depois há a febre e a gangrena... se correr mal, ele até pode morrer... Mas lá no hospital... e depois ele tem bom sangue... e boa carnadura... Por isso não vejo razão para que tenha de correr mal... Claro que a ferida é muito grande...
Ela estava lívida, da angústia e da emoção. Os três filhos perceberam que o estado do pai era muito grave e a casa ficou silenciosa, perpassada de ansiedade.
– Mas ele melhora sempre – disse Paul, passado um bocado.
– Foi exactamente o que eu lhe disse – exclamou a mãe.
Todos se moviam de um lado para o outro sem fazerem o menor ruído.
– Ele de facto parecia que estava a morrer – disse Mrs. Morel. – Mas a Irmã diz que é das dores.
Annie foi arrumar o casaco e o chapéu da mãe.
– Ficou a olhar para mim quando eu me vim embora...! Eu disse: «Agora tenho de ir, Walter, por causa do comboio... e das crianças...» E ele ficou a olhar para mim... Custou-me tanto...
Paul pegou outra vez no pincel e continuou a pintar. Arthur foi lá fora buscar mais carvão. Annie ficou sentada, muito triste. E Mrs. Morel continuou imóvel, pensativa, na cadeira de baloiço que o marido lhe fizera, quando esperavam o primeiro filho. Estava triste e com muita pena de ver um homem sofrer tanto. Mas, mesmo assim, no fundo do coração, onde a chama do amor devia arder, tinha um vazio. No momento em que toda a sua compaixão de mulher estava exacerbada ao máximo, em que cuidaria dele dia e noite até cair para o lado, em que, se pudesse, de bom grado tomaria as suas dores, algures, num recôndito da alma, era indiferença que encontrava, por ele e pelo seu sofrimento. A dor que sentia vinha sobretudo desta incapacidade de o amar, mesmo quando ele despertava nela as mais fortes emoções. E assim se deixou ficar, pensativa, por um tempo.
– E nisto – disse ela de repente –, quando já ia a meio do caminho, vi que tinha saído com as botas de andar por casa... olhem para isto... – Era um par de botas velhas de Paul, castanhas e com as biqueiras muito gastas. – Nem sabia onde me havia de meter com a vergonha – acrescentou.
Na manhã seguinte, quando Annie e Arthur estavam na escola, Mrs. Morel conversou mais com Paul enquanto ele andava a ajudá-la a arrumar a casa.
– Encontrei o Barker no hospital. Não parecia muito atrapalhado, coitado. «Então», disse eu, «como correu a viagem?» «Num me pregunte, ’nha senhora!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «Eu sei como ele é.» «Mas foi muito custoso pra ele, Mrs. Morel, iss’é que foi!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «A cada safanão, eu inté pensava qu’o coração m’ia saltar pela boca», disse ele. «E os gritos qu’ele dav’às vezes, ’nha senhora... nem que me paguem uma fortuna, me quero ver noutra igual.» «Entendo perfeitamente», disse eu. «A coisa tá feia a valer», disse ele, «e vai levar muito tempo pra ficar bom.» «Também acho que sim», disse eu. Eu gosto de Mr. Barker... gosto mesmo. É um homem e tanto.
Paul continuava a pintar em silêncio.
– E já se sabe – continuou Mrs. Morel –, para um homem como o teu pai é muito duro estar no hospital. Para ele não há normas nem obrigações. E não deixa que ninguém lhe toque, a não ser que não tenha outro remédio. Quando esmagou os músculos da coxa, e tinha de mudar o penso quatro vezes por dia, ele deixava mais alguém mudar-lho a não ser eu ou a mãe dele?... Nem pensar nisso. Claro que agora vai sofrer no hospital, com todas aquelas enfermeiras... Não me agradou nada ter de o deixar lá ficar. Foi um dó de alma quando tive de lhe dar um beijo e vir-me embora...
Mrs. Morel falava com o filho quase como se estivesse a pensar em voz alta para ele ouvir, e ele colaborava o melhor que podia, partilhando com ela o sofrimento, para a aliviar. Afinal, mesmo sem saber, ela partilhava quase tudo com ele.
Morel passou muito mal. Durante uma semana o seu estado foi crítico. Depois, começou a melhorar e, quando souberam que o mau tempo tinha passado, toda a família respirou de alívio e a vida seguiu feliz.
Não passaram grandes dificuldades enquanto Morel esteve internado. Recebiam catorze xelins por semana da mina, dez da assistência aos enfermos, e cinco do Fundo de Invalidez. Além disso, os capatazes traziam todas as semanas qualquer coisa a Mrs. Morel, cinco ou sete xelins, pelo que ela vivia com bastante desafogo. E enquanto Morel ia melhorando no hospital, em casa a família vivia em paz e alegria. Aos sábados e quartas-feiras, Mrs. Morel ia visitar o marido a Nottingham. No regresso trazia sempre qualquer lembrança para os filhos: um tubo de guache para Paul, outras vezes papel cavalinho; postais para Annie, de que toda a família usufruía durante dois ou três dias antes de a deixarem enviá-los a alguém; ou então uma serra para Arthur, ou um belo bocado de madeira. E depois contava animadamente as suas aventuras nos grandes armazéns. Não tardou que os empregados da loja de gravuras a ficassem a conhecer e soubessem tudo sobre Paul. A rapariga da livraria simpatizava até muito com ela. Mrs. Morel tinha histórias sem fim para contar quando voltava de Nottingham. Ficavam os três sentados até à hora de irem para a cama a ouvirem-na contar histórias, a meterem a sua colherada, a conversarem. Depois, era geralmente Paul quem abafava o borralho.
– Agora, sou o homem da casa – dizia ele à mãe, todo ufano. Descobriram como o lar podia ser um lugar de perfeita tranquilidade e, embora nenhum deles ousasse admitir tal desumanidade, quase lamentaram quando souberam que o pai não tardaria a voltar para casa.
Paul tinha agora catorze anos e andava à procura de um emprego. Era um rapaz baixo e franzino, de cabelo castanho-escuro e olhos azul-claros. O seu rosto já tinha perdido os traços arredondados da infância e parecia-se agora com o de William, mais duro, quase austero, e com extraordinária mobilidade. Em geral, parecia estar sempre atento, cheio de vida e de ternura; umas vezes, o seu sorriso, igualzinho ao da mãe, abria-se pronto e encantador; outras, quando algum obstáculo lhe travava o passo ao espírito, a expressão do seu rosto adquiria fealdade e estupidez. Era um daqueles rapazes que se portam como palhaços desajeitados quando não são compreendidos ou sentem que não lhes dão o justo valor, mas que, com igual rapidez se transformam em criaturas adoráveis à primeira prova de ternura.
O primeiro contacto com as coisas era sempre penoso para ele. Aos sete anos tivera de se sujeitar à tortura de entrar para a escola. Mas depois até gostava. E agora, sentindo que era chegada a hora de enfrentar a vida, atravessava crises de avassaladora timidez. Pintava com bastante talento e inteligência para a sua idade, e sabia um pouco de francês, alemão e matemática, coisas que Mr. Heaton lhe havia ensinado. Como a mãe dizia, não era suficientemente forte para o trabalho manual, e também não se interessava por fazer coisas com as suas próprias mãos, preferindo correr, passear pelos campos, ler ou pintar.
– Que queres ser na vida? – perguntava-lhe a mãe.
Não fazia a menor ideia. Teria gostado de continuar a pintar, mas isso nem lhe passou pela cabeça, pois era impossível. Não havia nada que lhe interessasse muito fazer. Mas agora era urgente que começasse a ganhar dinheiro. E, uma vez que não achava que o seu trabalho valesse muito em termos monetários, e sabia que um homem ganhava em qualquer emprego trinta ou trinta e cinco xelins por semana, respondia invariavelmente:
– Qualquer coisa.
– Isso não é resposta – dizia Mrs. Morel.
Mas era a única resposta verdadeira que ele podia dar. As suas ambições, em termos materiais, eram ganhar tranquilamente os seus trinta ou trinta e cinco xelins por semana algures perto de casa, e depois, quando o pai morresse, ter uma casinha no campo, onde viveria com a mãe feliz para sempre, a pintar e a passear o quanto lhe apetecesse. Por agora, era este o seu programa. Tinha-se porém em grande conta, julgando as outras pessoas em relação a si próprio e classificando-as impiedosamente. Às vezes, pensava que talvez pudesse vir a ser um pintor a sério, mas por enquanto não queria alimentar tal sonho.
– Então tens de procurar nos anúncios do jornal – disse a mãe.
Paul ficou a olhar para ela. Parecia-lhe nova humilhação e mais uma tortura a suportar. Mas não disse nada. Desde manhãzinha só tinha um pensamento a martelar-lhe na cabeça: «Tenho de ir ver os anúncios de empregos.»
Este pensamento ensombrava-lhe a manhã e matava-lhe a alegria de viver. Sentia o coração apertar-se-lhe num nó.
Por fim, às dez horas, lá foi ele. As pessoas consideravam-no um rapaz envergonhado, reservado. Ao subir a rua ensolarada, tinha a sensação de que todos os que encontrava iam pensar: «Lá vai ele para a sala de leitura da Cooperativa, para procurar um emprego no jornal. Não consegue arranjar nada. Acho que está a viver à custa da mãe.» Lá chegado, subiu furtivamente a escadaria de pedra por detrás da loja de tecidos e espreitou para a sala de leitura. Geralmente havia por lá uma ou duas pessoas: velhos desocupados, já sem préstimo, ou mineiros «de baixa». Entrou muito retraído, e ficou deveras aflito quando eles levantaram a cabeça; sentou-se à mesa e fingiu estar a passar os olhos pelas notícias. Sabia no que eles estavam a pensar: «O que fará um miúdo de treze anos numa sala de leitura, agarrado a um jornal?» E isso magoava-o.
Depois, pôs-se a olhar lá para fora, pensativo. E sentia-se já presa do industrialismo. Por cima do velho muro fronteiriço de tijolo vermelho grandes girassóis miravam divertidos as mulheres que passavam apressadas, levando qualquer coisa para o almoço. O vale estava coberto de searas radiantes batidas pelo sol. Lá no meio, duas minas agitavam os seus finos penachos de vapor. Nas encostas distantes avistavam-se as florestas de Aldersley, tão cerradas e fascinantes. E logo o coração lhe esmoreceu. Sentia-se aprisionado. Chegara ao fim a vida em liberdade naquele vale que tanto amava.
A carroça da cerveja vinha de Keston estrada acima, carregada de barris – quatro de cada lado – apertados que nem feijões numa vagem. O carroceiro, encarrapitado no seu trono e oscilando pesadamente no assento, não passou a grande distância dos olhos de Paul. O cabelo do homem, de cabeça pequena e fusiforme, estava quase todo branco, descorado pelo sol, e nos braços grossos e avermelhados, balouçando lassamente sobre o avental de estopa, cintilavam pêlos também brancos. A face afogueada reluzia, quase adormecida de tanto sol. Os cavalos, castanhos e elegantes, seguiam a seu bel-prazer, mostrando serem eles os senhores da situação.
Paul queria ser estúpido. «Quem me dera», pensou de si para si, «ser gordo como ele e passar a vida estirado ao sol como um cão. Quem me dera ser um porco e condutor duma carroça de cerveja.»
Depois, vendo a sala finalmente vazia, copiou rapidamente um anúncio para um bocado de papel, e depois outro, e saiu à socapa, sentindo-se imensamente aliviado. A mãe examinou os anúncios.
– Sim – disse ela. – Podes tentar.
William tinha mandado uma carta admiravelmente redigida em linguagem comercial e Paul copiou-a com algumas alterações. A caligrafia do rapaz era execrável, pelo que William, que fazia tudo bem feito, fervia de impaciência.
O irmão mais velho estava a ficar muito pretensioso, ao descobrir que em Londres se podia dar com homens de uma classe muito superior à dos seus amigos de Bestwood. Alguns dos seus colegas do escritório tinham estudado leis e estavam a fazer uma espécie de estágio. William, dado o seu feitio extrovertido, fazia sempre amigos por onde passava e não tardou que começasse a frequentar a casa de pessoas que, em Bestwood, teriam olhado com desdém para o inacessível gerente do banco local e tratado com indiferença o próprio pastor. Começou, por isso, a achar-se um homem importante e até se admirava da facilidade com que se tinha tornado um cavalheiro.
As cartas que escrevia à mãe ilustravam bem a satisfação que sentia.
«The Myrmidons
Limpsfield
Mater querida,
É uma da manhã. Imagine o seu filho a escrever-lhe sentado numa velha cadeira de carvalho, com um candeeiro eléctrico dos mais modernos à frente dele, em cima da mesa. Vestido a rigor, com os botões de punho que lhe ofereceu quando fez 21 anos e achando-se o melhor do mundo. Só queria que a mãe o pudesse ver. Em comparação, Salomão, em toda a sua glória, deve ter-se sentido mal vestido.
Estou a passar o fim-de-semana com o Loosemore, e aproveitei a oportunidade para lhe escrever. ...»
A mãe ficou contente de o ver tão satisfeito. O seu quarto em Walthamstow era tão deprimente. Mas agora as cartas do filho deixavam transparecer uma súbita febre de viver. Afectado por tantas e tão súbitas mudanças, não tinha os pés assentes na terra, e parecia deixar-se arrastar vertiginosamente pelo turbilhão da sua nova vida. A mãe temia por ele. Sentia que ele se estava a perder. Tinha ido a um baile, ido ao teatro, andado de barco no rio, saído com os amigos; mas ela sabia que, depois, tinha ficado até altas horas acordado no quarto gélido a estudar latim, pois queria subir no escritório e estudar leis o mais depressa possível. Agora, nunca mandava dinheiro à mãe. A sua nova vida levava-lhe o pouco que ganhava. Ela também não queria que ele lho mandasse, excepto às vezes, quando as dificuldades eram maiores e dez xelins teriam sido o suficiente para a tirar de apuros. Mas continuava a sonhar com o que o filho faria com ela a apoiá-lo. Nem por um segundo seria capaz de admitir toda a angústia que passava por causa dele.
Entretanto, William começara a falar muito numa rapariga que tinha conhecido num baile, uma morena muito bonita e muito nova, uma verdadeira senhora, por quem todos os homens andavam perdidos de amor.
«Duvido que te perdesses por ela, meu filho, se não visses todos os outros perdidos também. As multidões fazem-nos sentir seguros e vaidosos. Mas tem cuidado, e pensa como te sentirás quando te vires sozinho e triunfante...»
William ficou ofendido com os reparos da mãe e não desistiu dos seus intentos. Tinha levado a rapariga a dar um passeio no rio: «Se a mãe a visse, ia entender o que eu sinto. Alta, elegante, com uma pele transparente, a mais transparente de todas as peles de azeitona, cabelo negro de azeviche e uns olhos esverdeados tão brilhantes e trocistas como luzes reflectidas à noite sobre as águas. Admito que seja um pouco mordaz enquanto não a conhecer. E, além disso, veste-se como as mulheres mais elegantes de Londres. Devo dizer-lhe que, quando ela passeia em Piccadilly com o seu filho, ele, por mais que se esforce, não aparenta nem metade do orgulho que sente.»
Mrs. Morel lia e perguntava-se no seu íntimo, se o filho não andaria a passear em Piccadilly com uma mulher apenas elegante e bem vestida, em vez de uma mulher de quem se sentisse próximo. Mas felicitou-o, no seu modo reticente. E enquanto estava encostada ao tanque, a mãe, preocupada, pensava no filho. Via-o casado com uma mulher cara e elegante e um pequeno ordenado, levando a vida conforme podia, numa casa feia e acanhada dos subúrbios. «E daí...», pensava ela, «é por certo tolice minha... vontade de arranjar complicações.» No entanto, o seu coração raramente sossegava, não fosse William fazer alguma asneira.
Entretanto, Paul foi chamado para se apresentar numa firma de acessórios ortopédicos, a Thomas Jordan, em Nottingham, Spaniel Row, número 21. Mrs. Morel estava radiante.
– Estás a ver! – exclamou, de olhos brilhantes. – Só escreveste quatro cartas e recebes resposta logo à terceira. Tens sorte, meu filho, como eu sempre disse.
Paul olhou para a perna de pau adornada com meias elásticas e outros acessórios que constituía o logotipo do papel timbrado de Mr. Jordan, e ficou alarmado. Até aí nem sabia que existiam meias elásticas. Parecia-lhe sentir o mundo dos negócios com o seu sistema de regras e valores e a sua impessoalidade, e isso atemorizava-o. Parecia-lhe também monstruoso que se pudesse fazer negócio com pernas de pau.
Numa bela terça-feira, manhã cedo, mãe e filho saíram juntos de casa. Era Agosto e o calor abrasava. Paul caminhava com o coração aperreado. Mil vezes a dor física, por maior que fosse, a este sofrimento irracional de se ver exposto perante estranhos, sujeito a ser aceite ou rejeitado. No entanto, conversava animadamente com a mãe. Jamais lhe confessaria o sofrimento que estas situações lhe causavam e de que ela só em parte suspeitava. Ia alegre como um passarinho. Postou-se diante da bilheteira, em Bestwood, e ficou a ver a mãe tirar o dinheiro para os bilhetes. Ao reparar nas luvas pretas que trazia, quase de criança e já muito velhas, com que retirou algumas moedas da carteira também coçada, o seu coração contraiu-se de dor e amor por ela. Ela estava muito excitada e bem-disposta, e ele sofria antecipadamente, pois sabia que ela se iria pôr a falar em voz alta diante dos outros passageiros.
– Olha para aquela vaca. Parece tola! A andar às voltas como se estivesse no circo.
– Deve ser algum moscardo – disse Paul, quase a bichanar.
– Algum quê? – perguntou ela, desabrida, sem complexos.
Depois, ficaram calados, pensativos. Paul não conseguia deixar de sentir a presença dela à sua frente. Nisto, os olhos de ambos encontraram-se e ela sorriu-lhe – um sorriso único, íntimo, belo e cintilante, cheio de amor. Em seguida, puseram-se a olhar pela vidraça. Mas ela voltou-se para ele de repente e disse, de forma bem audível:
– Sinceramente, acho que vais conseguir. E, se não conseguires, enfim, não te podes queixar só por não teres conseguido o terceiro emprego a que concorreste, pois não? Mas eu acho que consegues. És um rapaz de sorte, embora não a mereças – Assim falava ela, para todos ouvirem!
O comboio transpôs com lentidão as dezasseis milhas que os separavam do destino, e a viagem terminou. Mãe e filho meteram por Station Street com o entusiasmo de amantes a viver uma aventura. Em Carrington Street, pararam para contemplarem do parapeito as barcaças que passavam no canal.
– Parece mesmo Veneza – disse ele, vendo o sol reflectido na água entre os muros altos das fábricas.
– Talvez – respondeu ela, sorrindo. Ficaram deslumbrados com as lojas.
– Estás a ver aquela blusa? – disse ela. – Ficava mesmo bem à nossa Annie. E só custa uma libra, onze xelins e três dinheiros. Não é barato?
– E é toda bordada – disse o filho.
– É verdade.
Tinham ainda muito tempo, e por isso não precisavam de se apressar. Aos seus olhos, a cidade era estranha e fascinante. Mas o rapaz, apreensivo, era como se tivesse um nó no estômago. Apavorava-o a entrevista com Thomas Jordan.
Eram quase onze horas pelo relógio da igreja de São Pedro. Viraram para uma rua estreita que ia dar ao castelo. Era uma rua sombria, de casas velhas, com lojas baixas e soturnas e as portas dos prédios pintadas de verde-escuro, com grandes argolas de latão e degraus amarelo-ocre avançando sobre o passeio; ao lado, uma outra loja, de outros tempos, cuja montra diminuta parecia um olho astuto e semicerrado. Mãe e filho caminhavam devagar, olhando para as portas, à procura do letreiro Thomas Jordan & Filho. Era como caçar em plena coutada. A excitação atingia o auge.
De súbito, avistaram uma entrada ampla e escura, com os nomes de várias firmas afixados na parede e, entre eles, o da Thomas Jordan.
– É aqui – disse Mrs. Morel. – Mas... onde é que será?
Olharam em volta. De um lado, uma fábrica de papel, lúgubre e bizarra; do outro, o Commercial Hotel.
– É ali ao fundo – informou Paul.
Aventuraram-se pela arcada, como se penetrassem na bocarra de um dragão, indo desembocar num pátio amplo, semelhante a um poço, completamente rodeado de edifícios. O chão estava pejado de palha, caixas e cartões. O sol batia em cheio num caixote de onde saíam palhas que se espalhavam pelo chão como fios de ouro. Mas, fora isso, o lugar era escuro como uma mina. Havia várias portas e dois lanços de escadas. Mesmo em frente, numa porta suja e envidraçada, ao cimo da escada, ressaltavam as palavras fatídicas Thomas Jordan & Filho – Acessórios Ortopédicos. Mrs. Morel foi à frente, seguida pelo filho. Ao subir ao patíbulo, Carlos I tê-lo-á feito certamente com o coração mais leve do que Paul Morel ao subir atrás da mãe os degraus imundos que conduziam à tal porta também imunda.
Mrs. Morel empurrou a porta e ficou agradavelmente surpreendida. Diante dela estendia-se um imenso armazém com embalagens de papel pardo espalhadas por todo o lado, e os empregados, de mangas arregaçadas, movimentavam-se de um lado para o outro com um ar perfeitamente descontraído. A luz não feria a vista, as embalagens em papel brilhante tornavam-se luminosas, os balcões eram de madeira escura. A atmosfera era silenciosa e acolhedora. Mrs. Morel deu dois passos em frente e aguardou. Paul colocou-se atrás da mãe. Ela trazia o seu chapéu de domingo, com o véu preto descido sobre a cara, e ele a gola branca larga, que todos os rapazes usavam, e um fato de corte à caçador.
Um dos empregados olhou para eles. Era alto e magro, de rosto miúdo e olhar vivo e atento. Depois, os seus olhos percorreram a sala até à outra extremidade, onde se via um gabinete envidraçado; só então se aproximou. Não disse uma palavra, inclinou-se apenas perante Mrs. Morel, numa atitude prestável e interrogativa.
– Poderei falar com Mr. Jordan? – pediu ela.
– Vou já chamá-lo – respondeu o jovem.
Dirigiu-se ao gabinete envidraçado. Um homem idoso, de suíças brancas e faces coradas levantou os olhos da secretária. Paul achou-o parecido com um lulu da Pomerânia. Depois, o homenzinho atravessou o armazém para vir ao encontro deles. Tinha pernas curtas, era atarracado e envergava um casaco de alpaca. E lá vinha ele, de orelha arrebitada, por assim dizer, com ar resoluto e olho inquiridor.
– Bom dia! – disse, hesitante, dirigindo-se a Mrs. Morel, sem saber se se tratava ou não de uma cliente.
– Bom dia... Vim com o meu filho... Paul Morel... O senhor pediu-lhe que se apresentasse esta manhã.
– Acompanhem-me – disse Mr. Jordan, com uma frieza e desenvoltura que ele acreditava serem apropriadamente empresariais.
Mãe e filho acompanharam o industrial e entraram numa salinha desarrumada, com cadeirões de couro negro e já muito lustroso de tanto ser usado pelos clientes. Em cima da mesa estava uma pilha de fundas para hérnias – umas bandas de couro amarelo, pré-lavado, atadas em molho. Pareciam novinhas em folha. Paul sentiu o cheiro a couro lavado e perguntou-se o que seriam aquelas coisas. Estava tão atordoado que só reparava no aspecto exterior do que o rodeava.
– Sente-se! – disse Mr. Jordan, ríspido, convidando Mrs. Morel a sentar-se numa cadeira de crina. Ela sentou-se à beirinha, numa posição instável. O homenzinho vasculhou então em cima da secretária e pegou numa folha de papel.
– Foste tu que escreveste esta carta? – desferiu ele, intempestivo, colocando diante dos olhos de Paul um papel que ele logo reconheceu como sendo a carta que mandara.
– Fui, sim – respondeu Paul.
De momento, o rapaz era dominado por dois sentimentos: em primeiro lugar, sentia-se culpado por estar a mentir, uma vez que a carta tinha sido escrita por William; e, em segundo, estranhava como a sua carta podia parecer tão diferente na mão avermelhada e sapuda daquele homem de quando estava em cima da mesa da cozinha. Era como se uma parte dele mesmo se tivesse transviado, e desagradava-lhe a maneira como o homem pegava na carta.
– Onde aprendeste a escrever? – disse o velho, com brusquidão.
Paul limitou-se a olhar para ele envergonhado, sem responder.
– Ele escreve muito mal – interrompeu Mrs. Morel, apologética, levantando o véu em seguida. Paul ficou furioso por a mãe não mostrar mais orgulho perante este homem tão comesinho, mas, ao mesmo tempo, adorou ver o seu rosto sem véu.
– E dizes que também sabes francês? – inquiriu o homenzinho, ríspido, como sempre.
– Sim – respondeu Paul.
– Em que escola andaste?
– Na primária.
– E foi lá que aprendeste?
– Não... eu... – o rapaz ruborizou, e não adiantou mais nada.
– Foi o padrinho que lhe deu umas lições – disse Mrs. Morel, quase numa súplica, e com ar distante.
Mr. Jordan hesitou. E, então, mantendo o seu ar agressivo – parecia ter as mãos sempre prontas a agir – tirou do bolso uma outra folha de papel, desdobrou-a ruidosamente e entregou-a a Paul.
– Ora lê lá isto – disse.
Era uma carta em francês, escrita à mão, numa caligrafia estrangeira, esguia e incerta, que o rapaz não conseguia decifrar. Paul ficou parado a olhar para o papel, como se hipnotizado.
– «Monsieur» – começou ele, olhando em seguida muito aflito para Mr. Jordan.
– É a... é a...
Queria dizer «letra», mas já nem esta palavra conseguia pronunciar. Sentindo-se um perfeito idiota, e furioso com Mr. Jordan, voltou-se em desespero para o papel.
– «Exmo. Senhor... Queira fazer o favor de me enviar»... hum... hum... não consigo perceber a... hum... «dois pares... gris fil bas... de meias cinzentas de algodão... hum... hum... sans... sem...» hum... não consigo perceber a... hum... «doigts... dedos»... hum... não consigo perceber a...
Queria dizer «letra», mas a palavra teimava em não sair. Vendo-o atrapalhado, Mr. Jordan tirou-lhe o papel da mão e leu:
– «Queira fazer o favor de me enviar na volta do correio dois pares de meias cinzentas de algodão, sem os dedos dos pés...»
– Bem – atalhou Paul prontamente – doigts quer dizer apenas dedos... duma maneira geral...
O homenzinho olhou para ele. Tanto se lhe dava que doigts quisesse ou não dizer simplesmente dedos, o que ele sabia era que, para os fins em vista, queria dizer dedos dos pés.
– Só dedos, podia ser das mãos; com que então, dedos das mãos numas meias?! – ripostou Mr. Jordan.
– Bem, a palavra francesa quer mesmo dizer só dedos – teimava o rapaz.
Paul detestava aquele homenzinho que tentava fazer dele parvo. E Mr. Jordan olhava para aquele rapaz pálido, estúpido e atrevido à sua frente, sentado, muito calado, com aquele ar reservado dos pobres que têm de depender dos favores de outras pessoas.
– Quando é que ele pode começar a trabalhar? – perguntou o industrial.
– Bem... – disse Mrs. Morel –, quando o senhor desejar. Ele já deixou a escola.
– E vai continuar a viver em Bestwood?
– Sim... mas pode estar... chegar à estação... a um quarto para as oito...
– Hum!
Paul acabou por ser contratado como aspirante, a ganhar oito xelins por semana. O rapaz não abriu mais a boca depois de teimar que doigts era mesmo dedos (das mãos). Saiu atrás da mãe e desceu as escadas. Mrs. Morel olhou para ele com os seus olhos azuis iluminados de amor e contentamento.
– Acho que vais gostar do emprego – vaticinou.
– Doigts quer dizer só dedos, mãe... e com aquela letra... Eu não percebia a letra.
– Não te preocupes, meu filho... Verás que ele é boa pessoa, e, além disso, não vais ter de contactar muito com ele... Não achaste simpático aquele empregado mais novo?... Tenho a certeza de que vais gostar dos teus colegas.
– Mas a mãe não achou Mr. Jordan um homem grosseiro? Será ele o dono daquilo tudo?
– Cá para mim, começou por ser operário e depois singrou na vida – disse Mrs. Morel. – Não deves dar tanta importância às pessoas. Elas não te querem ofender... é a maneira de falarem... estás sempre a pensar que as pessoas te querem ofender... mas olha que não querem.
Estava um dia cheio de sol. No grande largo deserto do mercado, o céu azul iluminava-se e as pedras de granito da calçada brilhavam cintilantes. As lojas de Long Row estavam mergulhadas na penumbra e a sombra enchia-se de cor. No sítio onde os trens puxados a cavalos atravessavam o mercado, erguia-se uma fiada de bancas de fruta, com os frutos luzindo ao sol – maçãs e montes de laranjas avermelhadas, rainhas-cláudias e bananas. Quando mãe e filho passaram, sentiram no ar o odor morno da fruta. A pouco e pouco, os sentimentos de raiva e ignomínia de Paul foram soçobrando.
– Onde havemos de ir almoçar? – perguntou a mãe.
– E se comprássemos qualquer coisa e fôssemos comer para o Arboretum?
– Não. Nada disso.
– Então vamos ao Morley.
– O chá que lá servem é requentado. Não... tu conseguiste o emprego... vamos fazer uma refeição como deve ser.
Aquilo era para eles uma verdadeira extravagância. Paul só tinha ido a uma casa de pasto uma ou duas vezes na vida, e, mesmo assim, só para tomar chá e um pãozinho. A maior parte dos habitantes de Bestwood achavam que a única coisa para que tinham dinheiro quando iam a Nottingham era chá e pão com manteiga, ou, quando muito, carne afiambrada. Uma refeição cozinhada era um autêntico luxo, e Paul sentia-se até culpado. Encontraram um lugar que lhes pareceu bastante acessível. Porém, quando Mrs. Morel consultou a lista, caiu-lhe a alma aos pés, tal era o preço dos pratos. Mandou vir, por isso, empadas de rim e batata, que era o mais barato.
– Não devíamos ter vindo aqui, mãe – disse Paul.
– Deixa lá – respondeu ela. – Nunca mais cá voltamos.
Depois insistiu para que o filho, que era guloso, comesse uma pequena torta de mirtilos.
– Não quero, mãe – disse ele.
– Queres, sim – teimou a mãe. – Claro que queres.
E pôs-se a ver se chamava a criada. Mas a criada andava toda atarefada e Mrs. Morel não a quis importunar nesse momento, pelo que ficaram os dois à espera de que a rapariga se dignasse atendê-los, enquanto ela andava por ali a cirandar, fazendo olhinhos aos clientes.
– Que desavergonhada! – disse Mrs. Morel, virando-se para Paul. – Olha para ela, a servir pudim àquele homem, e ele chegou muito depois de nós.
– Não tem importância, mãe – disse Paul.
Mrs. Morel estava irritada, mas era pobre de mais e a refeição demasiado modesta para ter a coragem de reclamar os seus direitos imediatamente. E, assim, fartaram-se de esperar.
– Vamos embora, mãe? – sugeriu Paul. Mrs. Morel levantou-se. A rapariga ia a passar.
– Trazia-nos uma torta de mirtilos, por favor? – disse Mrs. Morel em voz suficientemente audível.
Mas a rapariga virou-se e olhou para ela com insolência.
– É para já – retorquiu.
– É que já esperámos um bom bocado – disse Mrs. Morel. A rapariga não tardou com a torta. Mrs. Morel pediu a conta secamente.
Paul tinha vontade de se enfiar pelo chão dentro. Pasmava perante a dureza da mãe. Sabia que haviam sido anos e anos de luta que a tinham ensinado a reclamar os seus direitos, por mais insignificantes que fossem, pois ela era tão tímida como ele.
– É a última vez que ali vou para comer seja o que for! – exclamou ela, já na rua, satisfeita por se ver livre daquele pesadelo.
– Vamos dar uma vista de olhos ao Keep’s e ao Boot’s, e a mais um ou dois armazéns, está bem?
Teceram comentários sobre as gravuras expostas para venda, e Mrs. Morel queria por força comprar ao filho um pequeno pincel de pêlo de marta, com que ele andava a sonhar, mas Paul recusou liminarmente mais esta generosidade, e foi esperando por ela estoicamente à porta dos fanqueiros e dos retroseiros, morto de tédio, mas feliz por ver a mãe tão entretida. E o passeio continuou.
– Veja só aquelas uvas pretas! – disse Paul. – Até fazem crescer água na boca... Há anos que ando desejoso de prová-las, mas ainda vou ter de esperar algum tempo para as poder comprar.
A mãe parou deliciada à porta da florista, a aspirar os aromas.
– Oh!... Oh!... Não é simplesmente uma maravilha?
Apesar de a loja estar na penumbra, Paul vislumbrou uma jovem elegante, vestida de preto, a espreitar por detrás do balcão, com ar divertido.
– Estão a olhar para si – disse Paul, tentando arrastar a mãe dali para fora.
– Mas... o que é aquilo? – exclamou ela, recusando-se a sair de onde estava.
– Goivos! – respondeu ele, cheirando o ar apressadamente. – Veja, têm um alguidar cheio.
– Pois têm... vermelhos e brancos!... Esta agora... nunca reparei que os goivos pudessem cheirar assim! – E, para grande alívio do rapaz, a mãe saiu da porta, mas só para se ir pôr diante da montra.
– Paul! – exclamou ela, virando-se para o filho, que tentava esquivar-se ao olhar da tal jovem elegante toda de preto, a empregada da loja. – Paul! Anda ver isto!
Ele aproximou-se relutante.
– Olha aqueles brincos-de-princesa! – disse ela, apontando.
– Humm! – fez ele, mostrando-se interessado. – Parece que as flores vão cair a todo o momento; são tão grandes e tão pesadas.
– E tantas! – exclamou a mãe.
– E já viu a maneira como se inclinam, com os filamentos e os nódulos...?
– Pois é! – disse ela. – São lindas!
– Sempre gostava de saber quem será que as vai comprar? – disse ele.
– Não faço ideia! – respondeu ela. – Nós não somos.
– Na nossa sala morriam logo.
– É, aquele buraco horrível, gélido e sem réstia de sol... mata qualquer planta que lá se ponha... e a cozinha atabafa-as.
Fizeram algumas compras e seguiram para a estação. Olhando ao longo do canal, pelos intervalos sombrios dos edifícios, avistaram o castelo, alcandorado no seu promontório negro coberto de vegetação, miraculosamente iluminado por um sol suave e radioso.
Vai ser tão bom vir dar um passeio à hora do almoço! – disse Paul. – Posso andar por aqui e ver tudo isto. Vou adorar.
– Vais, sim, meu filho – concordou a mãe.
Paul tinha passado uma tarde agradabilíssima em companhia da mãe. Chegaram a casa já a tarde esmorecia, feliz, ardente, e também cansada. Na manhã seguinte, o rapaz preencheu a requisição para o passe de comboio e levou-a à estação. Quando voltou, estava a mãe a começar a lavar o chão. Ele sentou-se com as pernas cruzadas em cima do sofá.
– O homem diz que o passe chega no sábado.
– E quanto custa? – perguntou ela.
– Mais ou menos uma libra e onze xelins.
A mãe continuou a lavar o chão em silêncio.
– Acha caro? – perguntou Paul.
– Não mais do que eu pensava – respondeu ela.
– E eu vou ganhar oito xelins por semana... – disse ele.
A mãe não respondeu, continuando com o seu trabalho. Por fim, disse:
– O William prometeu-me, quando foi para Londres, que me mandava uma libra por mês. E só me mandou dez xelins... por duas vezes. E sei que agora não tinha um tostão, se eu lho pedisse. Não que eu queira o dinheiro dele, mas nesta altura ficava-lhe bem dar uma ajuda para o passe, embora eu não esteja a contar com isso.
– Ele ganha muito bem – disse Paul.
– Cento e trinta libras. Mas os filhos são todos iguais. Uns mãos largas nas promessas, mas quando se trata de as cumprirem... é o que se vê.
– O William gasta mais de cinquenta xelins por semana só com ele – disse Paul.
– E eu mantenho esta casa com menos de trinta – retorquiu a mãe. – E ainda tenho de inventar o dinheiro para os extras. Mas eles, depois de saírem de casa, querem lá saber de ajudar a mãe. Mais depressa o gastava com aquela doidivanas toda aperaltada.
– Ela há-de ter dinheiro, se é assim tão fina – disse Paul.
– Pois havia, mas não tem. Eu já lhe perguntei... E eu sei bem que ele não lhe compra uma pulseira de ouro sem razão. A mim nunca ninguém me comprou uma pulseira de ouro.
– Ora, a mãe também nunca quis nenhuma.
– Lá isso é verdade... Mas, se quisesse, era o mesmo.
– O pai nunca lhe comprou nada?
– Comprou... um cartucho de maçãs... e foi tudo... todo o dinheiro que gastou comigo, antes de nos casarmos.
– Porquê?
– Porque eu era uma parva, e quando ele me dizia: «O que queres qu’eu te compre?», eu respondia: «Nada.» Ele lembrava-se lá de me trazer alguma coisa! E o William só ia comprar uma pulseira de ouro para uma espertalhona cheia de nove horas.
– Aposto que ela já tem muitas – disse o rapaz.
– Tem muitas, dizes tu? Mas ele também tinha de lhe dar uma, para parecer importante. Ele quer lá saber! Eu pude sustentá-lo enquanto ele ganhava uma miséria, mas depois, mal ele se apanha com dinheiro que se veja, e a gente pensa que vai ter um pouco de paz e segurança, ele desanda, e lá começa a luta de novo, sem ter a quem recorrer quando é preciso alguma coisa, sem ninguém que nos estenda a mão.
– A mãe devia pedir-lho.
– E depois ele tinha de o ir pedir emprestado. Isso também eu faço, se tivermos de chegar aí. Tenho a certeza, de que não vou ter de lhe ficar a dever favores. E ele não precisa de me escrever a gabar-lhe os encantos e a falar das óperas a que vão assistir. Nem quero saber. Ele importa-se lá comigo... Eles querem lá saber! Têm a vida deles para viver, fazem o que lhes apetece, e eu... sim... o que represento eu para ele?... Um estorvo nunca hei-de ser, nem lhe hei-de pedir nada... E espero que o teu pai viva muito tempo, e que seja eu a ir à frente, pois é muito triste ter de viver à custa dos filhos.
– Oh, mãe... não tarda, eu começo a ganhar dinheiro, e a mãe pode ficar com tudo, porque eu nunca me hei-de casar.
– Essa já é velha, o William também dizia o mesmo. Dá tempo ao tempo e vais ver como a música é outra.
– Não vai ser, não.
– Então está bem.
E continuou a lavar o chão, em silêncio.
– Que vai fazer? – perguntou Paul.
– Acho que vou ter de meter um vale na Cooperativa... e isso vai sair da minha parte e vou receber menos dividendos. Não me apetecia nada ir lá buscar mais dinheiro outra vez.
O rapaz sentia-se muito infeliz, muito aborrecido. Era ele que precisava do dinheiro, e isso deixava-o amargurado.
– Bem – disse Paul –, em breve serei aumentado, e a mãe pode ficar com o dinheiro todo.
– Tudo isso é muito bonito – disse a mãe. – Mas não é assim que arranjo uma libra e trinta xelins até sábado de manhã.
William fazia progressos com a sua Cigana, como ele lhe chamava. Pedira à rapariga – uma tal Louisa Lily Denys Western – uma fotografia para mandar à mãe. A fotografia chegou: era uma morena bonita, de perfil, com um sorriso afectado, e que bem podia estar completamente nua, pois não se vislumbrava qualquer peça de roupa no retrato, só o colo desnudo.
«Sim senhor», escreveu Mrs. Morel ao filho, «a fotografia da Louie é deveras impressionante e vê-se que deve ser muito atraente. Mas achas, meu filho, que foi sensato e elegante da parte dela dar ao namorado aquela foto para ele mandar à mãe, e pela primeira vez? Tem uns ombros lindos, sem dúvida, como mandaste dizer. Mas eu não estava à espera de os ver tão bem logo da primeira vez...»
Morel encontrou a fotografia na sala, em cima da cómoda, e veio até à cozinha com ela presa entre o polegar e o indicador.
– Quem vem a ser esta? – perguntou ele à mulher.
– É a rapariga com quem o nosso William anda de namoro – respondeu Mrs. Morel.
– Hum! Ganda brasa, pelo menos parece... e num lhá-de fazer bem nenhum... Quem é ela?
– Chama-se Louisa Lily Denys Western.
– Muito prazer! – exclamou o mineiro. – É alguma artista?
– Não, não é. Ele diz que é uma senhora da sociedade.
– Não hajam dúvidas – exclamou o pai, sem tirar os olhos da fotografia. – Com qu’intão uma senhora? E há-de ter muito dinheiro, pra manter as aparências.
– Não tem, não... vive com uma tia velha, que ela detesta, e aceita tudo o que lhe dão.
– Hum! – disse Morel, pousando a fotografia. – Atão ele foi um gand’otário em ter-se metido c’uma tipa dessas.
«Querida Mater», respondeu William. «Lamento que não tenha gostado da fotografia. Nunca me passou pela cabeça, quando lha mandei, que pudesse achá-la pouco decente. Mas já disse à Ciganita que o retrato não correspondia exactamente à sua noção de decoro e decência, e ela vai mandar-lhe outro, que eu espero lhe agrade mais. Ela está sempre a ser fotografada. Na verdade, os fotógrafos estão sempre a pedir-lhe insistentemente para ela se deixar fotografar, absolutamente de graça.»
A nova fotografia acabou por chegar, acompanhada de um bilhete idiota da rapariga. Desta vez, a jovem estava com um ves-tido de noite em cetim preto, de decote quadrado, com mangas curtas e tufadas e folhos de renda preta cobrindo-lhe os braços elegantes.
– Será que só usa vestidos de noite? – disse Mrs. Morel, sarcasticamente. – Tenho a certeza de que eu devia estar impressionada.
– Está a ser antipática, mãe – disse Paul. – Eu acho a primeira fotografia, a dos ombros nus, bem bonita.
– Achas? – disse Mrs. Morel. – Pois olha, eu não.
Na segunda-feira de manhã, o rapaz levantou-se às seis horas, para começar a trabalhar. No bolso do colete levava o passe do comboio que tanta amargura representava. Gostava de olhar para ele, todo às riscas amarelas. A mãe metera-lhe o almoço num cestinho de verga com tampa, e ele saiu de casa quando faltava um quarto para as sete, para apanhar o comboio das sete e um quarto. Mrs. Morel veio despedir-se do filho ao portão.
A manhã estava imaculada. Do grande freixo, pendiam os frutos verdes e delgados – as crianças chamavam-lhes «pombinhos» – cintilando alegremente, soprados pela brisa matinal, suspensos sobre os jardins das vivendas. O vale estava coberto de uma névoa escura, mas brilhante, através da qual luziam as searas já maduras, e em contacto com a qual logo se condensava o vapor que se elevava da mina de Minton. De quando em vez, o vento passava em baforadas. Paul espraiou a vista para lá das altas florestas de Aldersley, onde os campos brilhavam imensos, e nunca o apelo do lar fora tão forte.
– Adeus, mãe – disse ele, sorrindo, mas com a alma entristecida.
– Adeus – respondeu ela, com alegria e ternura na voz.
Mrs. Morel ficou parada na estrada, com o seu avental branco, vendo o filho atravessar os campos. Era um rapaz baixo e robusto, cheio de vida. Ao vê-lo caminhar pelos campos fora, sentiu que ele seria capaz de chegar onde quisesse. Pensou no William. Esse teria saltado a cerca em vez de passar pela cancela. Esse estava em Londres a viver à grande. E agora Paul ia trabalhar para Nottingham. Tinha dois filhos lançados no mundo. Podia pensar em dois lugares, dois grandes centros industriais, e sentir que tinha posto um homem em cada um, e que esses homens seriam capazes de conseguir tudo o que ela ambicionava; provinham dela, eram parte dela, e as suas vitórias seriam também as dela. Durante toda a manhã só pensou em Paul.
Às oito horas, Paul subiu as escadas lúgubres da Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan e deteve-se timidamente junto da primeira prateleira que encontrou cheia de embalagens, à espera de que alguém viesse ao seu encontro. O lugar ainda não tinha acordado. Os balcões estavam cobertos de espessas camadas de poeira. Ainda só tinham chegado dois funcionários. Paul ouvia-os conversar a um canto, enquanto tiravam os casacos e arregaçavam as mangas da camisa. Eram oito e dez. A pontualidade não era evidentemente a preocupação dominante no local. Paul continuou a ouvir as vozes dos dois funcionários. Depois, ouviu alguém tossir e viu no gabinete ao fundo do armazém um empregado já velho e caduco, com um bonezinho redondo de veludo preto bordado a verde e vermelho, a abrir cartas. Paul continuou à espera.
Um dos empregados mais novos dirigiu-se ao velhote e cumprimentou-o efusivamente e em voz muito alta. Estava visto que o velho «chefe» era surdo. A seguir, o jovem voltou para o seu balcão com passo arrogante. A certa altura reparou em Paul.
– Olá! – disse ele. – És o novo rapaz?
– Sou – respondeu Paul.
– Hum! Como te chamas?
– Paul Morel.
– Paul Morel?... Está bem. Vem comigo.
CONTINUA
Quando as crianças já tinham idade suficiente para ficarem sozinhas em casa, Mrs. Morel entrou para o Grémio Feminino. Tratava-se de um pequeno clube de mulheres ligado à Cooperativa de Revenda, que reunia às segundas-feiras à noite numa sala muito comprida por cima da mercearia Bestwood Co-op. Aí, as mulheres discutiam os benefícios de uma política de cooperação e outras questões de importância social. Por vezes, Mrs. Morel tinha de apresentar uma comunicação, e as crianças estranhavam ver a mãe, que passara a vida a fazer a lida da casa, sentar-se agora a escrever, com a rapidez que a caracterizava, a pensar, a consultar livros, e a continuar a escrever. Nessas ocasiões, sentiam por ela o mais profundo respeito.
Mas gostavam do Grémio. Era a única concessão que faziam à mãe de boa vontade – por um lado, por ser uma coisa de que ela tanto gostava, e, por outro, pelas guloseimas que depois lhes trazia. Alguns maridos hostis, que achavam que as mulheres estavam a ficar independentes de mais, chamavam ao Grémio o «clube dos traques-tagarelas», ou seja, o clube da má-língua. A verdade é que, graças ao Grémio, as mulheres podiam olhar para as suas casas, para as condições em que viviam e apontarem o que estava mal. E, assim, os mineiros começavam a descobrir que as suas mulheres lutavam por um novo padrão de vida, o que era para eles bastante desconcertante. Além disso, Mrs. Morel voltava sempre às segundas-feiras à noite carregada de novidades, e as outras crianças gostavam que William estivesse em casa quando a mãe chegava, porque ela lhe contava muitas coisas.
Mais tarde, quando o rapaz tinha treze anos, a mãe arranjou-lhe emprego nos escritórios da Cooperativa. Nessa altura, ele era já um rapaz muito inteligente e franco, de feições duras e os olhos azuis penetrantes de um verdadeiro viking.
– Pra que queres fazer dele um mangas-de-alpaca, num me dizes? – disse Morel. – Tudo o qu’ele vai fazer é gastar as calças no rabo e não ganhar um tostão. Quant’é qu’ele vai ganhar de início?
– O que ele vai ganhar não interessa – disse Mrs. Morel.
– Mas devia interessar! Põe-no mas é na mina ao pé de mim, e ele faz sem custo dez xelins por semana, logo no começo. Mas seis xelins para dar cabo do traseiro sentado num banco é melhor que dez na mina ao pé de mim, eu sei.
– Ele não vai para a mina – disse Mrs. Morel – e não se fala mais nisso.
– Pra mim serviu, mas pra ele não.
– Se a tua mãe te mandou para as minas aos doze anos, isso não quer dizer que eu faça o mesmo ao meu filho.
– Doze anos!... Muito antes disso!
– Fosse quando fosse – disse Mrs. Morel.
Ela tinha um grande orgulho no filho. Ele frequentava a escola nocturna, e aprendeu estenografia, e aos dezasseis anos, já era o melhor estenógrafo e o melhor guarda-livros do escritório, a par de um outro colega. Depois, começou a dar aulas nas escolas nocturnas. Mas era tão vivaço que só o seu bom feitio e o seu tamanho o protegiam.
Todas as coisas que os homens fazem – as coisas decentes – William também fazia. Corria tanto como o vento. Aos doze anos, ganhou o primeiro prémio numa corrida: um tinteiro de vidro, em forma de bigorna, que marcava honrosa presença no louceiro, para orgulho de Mrs. Morel. Fora para ela que ele correra. Voou para casa com a bigorna, ofegante, dizendo:
– Olha, mãe!
Esse foi o primeiro tributo que ele lhe prestou, e ela recebeu-o como uma rainha.
– Que bonito! – exclamou.
Quando iam brincar para perto da cerca da encosta, as crianças das Bottoms costumavam gritar quando William se aproximava:
– Salta, William... Salta!
E ele saltava a sebe, com cerca de cinco pés de altura, sem qualquer dificuldade.
– Caramba! – gritavam os mais pequenos.
Também atirava pedras mais longe do que qualquer outro rapaz de Bestwood. Amigos e rivais, todos tinham inveja das suas façanhas e torciam para que as pedras dele não fossem as que chegavam mais longe, passando para lá da cerca. Mas, à cautela, William gravava-lhes displicentemente as iniciais WM.
Aos dezassete anos, ganhou uma corrida de bicicletas em Ilkeston. Morel, num dos seus alardes de fanfarronice, tinha desafiado todos os campeões que estivessem na taberna a correrem contra o filho, e William sentiu que tinha de honrar as gabarolices do pai. Mas Mrs. Morel não aprovou a ideia.
– Vem ver-me limpar-lhes o sarampo a todos, mãe! – gritou ele, batendo na barriga da perna. Mas Mrs. Morel passou o dia ansiosa e infeliz. Ele podia morrer ou magoar-se, e, além disso, ela tinha a certeza de que o seu coração não tinha resistência para corridas de bicicleta. Não obstante, ele voltou para casa nessa noite trazendo uma pequena secretária de carvalho.
– Aqui tem, mãe! – disse ele. – Não lhe disse que lha trazia?
Mas ela obrigou-o a prometer-lhe que não entrava em mais nenhuma corrida.
William tinha alunos a quem dava aulas de estenografia em casa. Mas era tão impulsivo e irascível, que só os alunos mais aplicados e com mais vocação o aturavam. Sentava-se com eles à mesa da cozinha. A cozinha estava aquecida, iluminada e em silêncio absoluto. As almofadas de chintz vermelho do sofá eram fofas, a toalha vermelha sobre a mesa parecia acolhedora. Geralmente, o aluno, de treze ou catorze anos, sentava-se muito nervoso, enquanto William, rápido e enérgico, lhe corrigia os trabalhos de casa. O professor ia soltando desabafos de impaciência e intolerância. Nisto, voltava-se para o aluno e gritava:
– Meu grande cabeça de burro, fizeste bem a última frase, e agora...
O pobre do aluno assoava-se nervosamente ao lenço vermelho e olhava de soslaio para William. Às vezes, Mrs. Morel estava sentada a coser na cadeira de baloiço. Depois, começava a lição propriamente dita. William, evidenciando cada vez menos paciência, não tardava a explodir:
– Seu parvalhão, seu cabeça de burro, seu idiota chapado, o que é que eu te disse mais de mil vezes...?
– William! William! – exclamava a mãe. – Que vergonha! Não sei como ainda te aturam... Não lhe ligues, Robert, o mal está na falta de paciência dele, não em ti. Tu até és muito rápido. – E Robert olhava para Mrs. Morel envergonhado e agradecido, enquanto William continuava:
– Vá lá... e por amor de Deus não te faças de estúpido. Olha...!
Por fim, Mrs. Morel decidiu não ficar mais em casa quando ele dava as lições, para poupar aos garotos o vexame.
William tinha de entrar no escritório às oito da manhã, e a mãe levantava-se por isso às sete, para lhe preparar as coisas. Ele chegava geralmente atrasado, ou mesmo em cima da hora. Mas não havia nada que o fizesse andar mais depressa. Adorava tomar o pequeno-almoço a sós com a mãe. Quando estava bem-disposto, tagarelava e brincava com ela.
Uma manhã, pediu-lhe uma camisa lavada. Ele estava de pé, em frente à lareira, quando ela lha entregou, sentando-se em seguida a tomar o chá. Ele ergueu no ar repetidamente a camisa de flanela remendada por todos os lados.
– Mãe, o que é isto? – perguntou.
– Uma camisa – respondeu ela, desatando a rir.
– Uma rosa não cheiraria melhor...! – citou ele, de memória, com espirituosidade.
– Pois é... tu dás cabo de tudo... e eu já não tinha mais tecido igual... mas também quem vai notar?
– Tem a certeza de que não se vê?... Cá para mim, vê-se tudo à transparência – disse ele, ainda a torcer o nariz para a camisa.
– Veste-a lá... Olha as horas! – disse ela, sem poder conter o riso, da cadeira de baloiço onde estava sentada a beber o chá. E ele, de pé diante dela, um rapagão alto e espadaúdo, com a camisa de remendos na mão, dizia:
– Oh, minha camisinha de pobre! – disse ele, falando com a dita. – Acho que ninguém te vai cobiçar... um, dois, três... qual destes é o tecido original, mãe?
– Vá, veste a camisa! – ordenou a mãe.
– Imagine que eu tenho um acidente, e vou parar ao hospital, e quando volto a mim vejo quatro enfermeiras a olharem-me para a fralda da camisa... – resmungou ele.
– Só podem estar a dizer que andas com a roupa muito bem tratada – disse a mãe a rir.
Ele vestiu a camisa, e disse ainda, tapando a boca com a mão:
– Nem o rei Salomão em toda a sua glória...
– Não – disse a mãe, continuando a rir –, não creio que houvesse ninguém capaz de dar tantos pontos, nem por Salomão...
William deitou um olho à camisa por cima do ombro, e disse, num lamento:
– És a história da minha desgraça!
Mrs. Morel riu às gargalhadas. A custo, recompôs-se o suficiente para dar uma palmada na mesa e exclamar:
– Toca a vestir, menino! Já é um quarto para as oito.
– Não está à espera que eu tenha pressa de me vestir, para andar por aí todo remendado, pois não, mãe?
– És um tagarela sem juízo! – exclamou ela. – Ainda cais da bicicleta, partes a cabeça...
– Tem razão, se eu morresse ia ter vergonha da camisa que levava – atalhou ele.
Ela saltou da cadeira, pegou na escova e deu-lhe com ela ao de leve na cabeça.
– Vê lá se escovas esse cabelo – ordenou. Separaram-se, reconfortados: ele aquecia-lhe a alma a ela, e ela a ele.
Depois, ele começou a tornar-se ambicioso. Dava todo o dinheiro que ganhava à mãe. Quando recebia catorze xelins, ela deixava-o ficar com dois para os seus gastos, mas ele, como não bebia, começou a achar que estava rico, e só se dava com a burguesia de Bestwood. A pessoa mais importante da cidade era o pastor. Seguiam-se-lhe o gerente do banco, os médicos, depois os comerciantes, e, por fim, as hostes de mineiros. William começou a andar com os filhos do farmacêutico, do mestre-escola e de alguns comerciantes. Ia jogar bilhar para o Mechanics’Hall, e frequentava também os bailes, apesar de a mãe ser contra. Desfrutava de tudo o que Bestwood tinha de bom para lhe oferecer – dos bailaricos de Church Street, a seis dinheiros o ingresso, às provas desportivas e ao bilhar.
– A valsa! – exclamou o pai. – É verdade que tu sabes valsar? Quando eu era mais ágil, também sabia dar as minhas voltinhas.
– Será que sabia? – disse William, meio desconfiado.
– Sabia, sim senhor! – protestou Morel, ferido no seu amor-próprio.
– Então, vá lá... mostre-nos do que é capaz.
Mas Morel tinha vergonha de dançar diante dos filhos.
– Não, isso eu num faço! Estares a desafiar-me é uma parvoíce sem pés nem cabeça, e num vejo o qu’é que ganhas com isso.
– Mas vê que sigo as suas pisadas – retorquiu William.
– Atão inda és mais parvo do qu’eu julgava, s’alguma vez fizeres isso – disse o pai.
– Pronto, não faz mal, se está perro de mais para dançar... – disse o filho.
– Há vinte anos qu’eu num danço – gritou Morel, já alterado.
– E aposto que lhe custou a parar.
Mas William não desistiu. E as raparigas não o largavam.
– ’Póstolo – disse ele ao irmão, depois de um baile, quando já estavam os dois deitados. – ’Póstolo... uma rapariga de cetim branco... tás’ouvir, cetim branco até aos sapatos... vive em Sutton... e tá pelo beicinho! Amanhã vou lá, para m’encontrar com ela.
Daí a duas semanas, Paul perguntou-lhe:
– Então a rapariga do vestido de cetim branco?
– Já não m’interessa, ’Póstolo... Não presta! Mas encontrei uma pérola em Ripley... cheira vagamente a flor de cerejeira... branca como um lírio...
Paul era mimoseado com as mais estonteantes descrições florais das várias raparigas, a maior parte das quais perduravam por menos de quinze dias no coração de William, como um botão de rosa posto ao peito.
Uma vez por outra, lá aparecia uma namorada, preocupada em vir atrás do seu amado. Mrs. Morel encontrou um dia à porta uma rapariga de aspecto estranho, e logo lhe cheirou a esturro.
– Mr. Morel está em casa? – perguntou a donzela, toda sorrisos.
– O meu marido? Está, sim – respondeu Mrs. Morel.
– Eu... Eu queria referir-me a Mr. Morel... filho – repetiu a rapariga, penosamente.
– Qual deles? Há vários...
Nesta altura, a menina loira já gaguejava, muito corada:
– Eu... Eu conheci Mr. Morel... em Ripley. – E apressava-se a dar explicações.
– Ah... num baile!
– Sim, sim.
– Pois eu não gosto das raparigas que o meu filho conhece nos bailes. E ele não está em casa.
Mrs. Morel detestava os bailes duvidosos que o filho frequentava.
– Julgas que não sei das desavergonhadas que por lá andam?
– Pois olhe, mãe, eu não sou nenhum leviano, como pode ver.
– Isso é que eu não sei – dizia a mãe a rir.
– Não está a pensar que eu me vou apaixonar, pois não? Descanse que não vou. É só para me divertir com elas.
– Mas elas é que não querem só divertir-se contigo. E isso não está certo.
– Ora essa, porquê? Não faço tenções de me casar. Não se aflija, Mater. Eu não me caso enquanto não encontrar uma mulher como a senhora... e isso só daqui a muito tempo... E... só me hei-de casar aos trinta, quando já estiver de barriguinha cheia.
– Veremos, meu filho – respondeu a mãe.
Depois, voltou para casa zangado com a mãe por ter sido tão dura para com a rapariga. Era um rapaz despreocupado, mas de olhar apaixonado, que caminhava com grandes passadas, às vezes de sobrolho carregado, e quase sempre com o boné atirado para trás com galhardia. Agora, vinha de sobrolho carregado. Atirou o boné para cima do sofá, apoiou o queixo decidido na palma da mão e olhou zangado para a mãe. Ela era pequena, com o cabelo arrepiado para trás. Tinha um ar de serena autoridade, mas, ao mesmo tempo, de rara afabilidade. Ao ver o filho zangado, o coração apertou-se-lhe.
– Esteve cá ontem alguma senhora à minha procura? – perguntou.
– Uma senhora eu não vi... esteve foi uma rapariga.
– E porque não me disse nada?
– Porque me esqueci.
Ele expeliu o ar com ímpeto.
– Uma rapariga bonita... uma senhora?
– Não olhei para ela.
– Olhos castanhos... grandes?
– Isso mesmo.
Voltou a assoprar.
– E o que lhe disse a mãe?
– Que não estavas em casa.
– E que mais?
– Apenas que não gostava de que raparigas que tinhas visto uma vez viessem aqui a casa à tua procura.
– Bem... não precisava de ter dito isso – replicou ele. – O pai dela tem dinheiro... até têm duas criadas...
– Não vinham com ela... por isso, eu não podia adivinhar.
– Mas porque é que a mãe tinha de ser desagradável? Ela não estava a fazer mal nenhum, ou estava?
– Pensei que fosse uma dessas desavergonhadas.
– Mas não era... Não era... O pai dela...
– Tem dinheiro para duas criadas – atalhou Mrs. Morel.
– Não... É o veterinário de Woodlinton... E, além disso, mãe...
– Ela era uma desavergonhada.
– Não era nada... E era bonita, não era?
– Nem olhei para ela.
– Mas devia ter olhado...
– Mas não olhei, pronto. E olha, meu filho, trata de dizeres às tuas namoradas que, quando vierem atrás de ti, não devem vir perguntar por ti à tua mãe... É isso que tens de dizer a essas desavergonhadas que encontras pelos salões de dança.
– Tenho a certeza de que ela é uma rapariga séria...
– E eu tenho a certeza de que não é.
E assim acabou a discussão. A dança era sempre motivo de conflito entre mãe e filho. A afronta atingiu o auge quando William anunciou que ia a um baile de máscaras em Hucknall Torkard, uma terra mal-afamada. Havia uma fantasia que ele podia alugar, que um dos seus amigos já tinha usado, e lhe assentava que nem uma luva. E o fato de escocês lá foi parar a casa. Mrs. Morel recebeu-o com indiferença e recusou-se a desembrulhá-lo.
– O meu fato já chegou? – gritou William.
– Está um embrulho na sala da frente.
Ele precipitou-se para o fato e cortou o cordel.
– Já imaginou o seu filho assim vestido? – disse entusiasmado, mostrando-lhe o fato.
– Sabes bem que não quero imaginar-te com isso vestido.
Na noite do baile, quando ele veio a casa para se mascarar, Mrs. Morel vestiu o casaco e pôs o chapéu.
– Não fica para me ver vestido, mãe? – perguntou ele.
– Não... Não te quero ver – foi a resposta.
Estava muito pálida, com a expressão dura e fechada. Tinha medo de que o filho seguisse as pisadas do pai. Ele hesitou uns instantes, com o coração suspenso de ansiedade. Depois, viu a boina de escocês cheia de fitas, e agarrou-a, já esquecido da mãe. Mrs. Morel saiu.
Ele nunca se apercebeu de como tinha ficado desapontado. A excitação do momento, vivido em antecipação, era o suficiente para o fazer esquecer. Contudo, o seu maior orgulho era que ela o visse mascarado, e, pela vida fora, era sempre com mágoa que recordava este baile.
Na altura, porém, correu escada acima em grande alvoroço. Paul ajudou-o a vestir-se.
– É um fato de máscara, ’Póstolo – disse ele. – Dá-me cá essas coisas. – Primeiro enfiou um par de calções pretos, muito justos e curtos. Depois, foi mirar-se e remirar-se ao espelho da mãe.
– Estás a ver os meus calções pretos? – disse ele, dando uma volta sobre si mesmo, e acrescentando: – Sabes, ’Póstolo, um verdadeiro escocês não usa calções... cobre a nudez com o kilt. Mas acontece que eu dou saltos muito altos... e... com as senhoras a assistir... bem... já não dava!
O mais pequeno também achava que não, embora o caso não lhe parecesse muito grave.
– Belo par de pernas que aqui estão, ’Póstolo! Belas pernas! Já me ajudaram a ganhar quatro prémios nas corridas e dois nas bicicletas. Nada mau! – E dava palmadas nas coxas jovens e vigorosas. – Só músculo, miúdo!... No entanto, têm um defeito: não consigo juntar os joelhos. Tenho as pernas arqueadas, ’Póstolo. Mas assim ainda são mais fortes... Já o Nicholas Nickleby... esse tinha umas belas pernas e conseguia juntar os joelhos, a julgar pela gravura, e acho que Mr. Good também. Não era Mr. Good que tinha uma «belas pernas muito brancas» n’As Minas de Salomão? Aperta-me isto. Este fato não me assenta nada bem, pois não, ’Póstolo?
– Não – disse Paul, reverente.
– Um verdadeiro escocês – continuou William – tem de dobrar o seu kilt. Quem me dera que este fosse desses... gostava de ser eu a prepará-lo. Estás a ver, ’Póstolo, eu posso usar um kilt porque tenho a medida exacta para ele assentar como deve ser. A ti não te ia ficar bem... és espalmado como uma tampa de cartão. Tens de pedir a Deus que te desenvolva mais essa parte do corpo, senão nunca vais poder vestir um kilt.
Paul não percebia porque é que um dia havia de querer usar um kilt. Baixinho e magro como era, não podia aspirar ao físico e à estatura do irmão.
– Então, que tal ficam os meus joelhos?... Ficam bem, não ficam? Uns valentes joelhos, isso é que eles são... uns valentes joelhos... e as pernas também! Outro dia, os tipos lá do escritório apostaram em como eu andava enchumaçado. E então o Vickers veio de gatas enquanto eu estava a escrever e espetou-me um alfinete. Dei um berro que ia deitando a casa abaixo, e depois dei um pinote e ferrei-lhe um murro na cabeça, estás a ver... quem me dera não ter arrancado aquele bocadinho de pele com a bicicleta.
– Podias pôr um bocadinho do pó cor-de-rosa de lavar os dentes – alvitrou Paul.
– Lá isso podia... diz que é anti-séptico, mas será que resulta? Sabes, eu tenho mesmo pinta de escocês – cabelo louro, olhos azuis e valentia, ’Póstolo, valentia... e arcaboiço a condizer... Se alguma vez me alistasse no exército, havia de ser na Guarda Escocesa. Essa do pó dos dentes é uma ideia porreira...
Quando já estava vestido, um monte de crianças, as de casa e as da vizinhança, vieram admirá-lo. Depois, ele partiu. Divertiu-se à grande e, no entanto, era-lhe doloroso recordá-lo. A mãe mostrou-se indiferente com ele durante um ou dois dias. Mas achava-o tão encantador...! E depois... aquele toque de solidão, a instalar-se outra vez entre ele e ela.
Foi mais ou menos por esta altura que ele começou a estudar. Ele e um amigo começaram a aprender francês, latim e outras coisas. Depressa começou a ficar mais abatido. Depois do escritório, ia para casa de Fred Simpson, e ficavam os dois a estudar até à meia-noite e, às vezes, até à uma. Mrs. Morel protestava, ralhava, implorava-lhe que tivesse mais cuidado com a saúde.
– Quando estamos a estudar – dizia ele – nem dou pelas horas passarem... nenhum de nós dá, até a mãe do Fred gritar lá de baixo que já é muito tarde.
Estas noites de estudo intervalavam com farras e bailaricos. À medida que os anos iam passando, William foi ficando mais magro e a despreocupação fugiu-lhe do olhar.
A mãe, sempre atenta, sempre à espera, sentia um frio na alma ao vê-lo assim. Teria ele forças para «sobreviver»? Um pingo de ansiedade manchava o orgulho que sentia. Tinha esperado por ele tanto tempo que não suportaria o seu fracasso. Na verdade, não sabia o que queria dele, afinal. Talvez quisesse apenas que ele fosse fiel a si próprio, que crescesse e frutificasse tudo o que ela tinha semeado. Queria ver nele a sua própria realização, era tudo. E, com toda a força de que era capaz, tentava mantê-lo forte, equilibrado, com ânimo para seguir em frente. Mas ele vacilava, faltava-lhe lucidez. Havia momentos em que descambava e era igualzinho ao pai, o que lhe enchia o coração de apreensão e desalento.
Ele tivera dúzias de namoricos, mas nada a que se pudesse chamar um caso amoroso. Ela não se importava com os namoricos, desde que não lhe afectassem a carreira, mas receava que ele se deixasse prender por alguma dessas raparigas fúteis e desavergonhadas.
Tinha ele dezanove anos, quando um dia, sem mais nem menos, deixou o escritório da Cooperativa e arranjou um emprego em Nottingham. Este novo lugar rendia-lhe trinta xelins por semana, em vez dos dezoito do anterior. Era na verdade um bom aumento e os pais não cabiam em si de orgulhosos. Todos o elogiavam. Parecia que ia subir na vida num instante. E Mrs. Morel esperava poder, com o auxílio dele, ajudar os filhos mais novos. Annie andava a estudar para professora. Paul, também muito inteligente, ia muito bem nas lições de francês e alemão que o padrinho lhe dava – o pastor, velho amigo de Mrs. Morel. Arthur, um menino mimado e muito bonito, andava ainda na escola primária, mas tinha hipóteses de conseguir uma bolsa para ir para o liceu, em Nottingham.
William conservou-se durante um ano no seu novo emprego em Nottingham. Estudava afincadamente e tornava-se cada vez mais circunspecto. Algo parecia preocupá-lo. No entanto, continuava a ir aos bailes e aos festivais no rio. Não bebia. Todos os irmãos eram abstémios convictos. Chegava a casa muito tarde e estudava até altas horas da noite. A mãe implorava-lhe que tomasse cuidado, que fizesse uma coisa ou outra.
– Dança, se te apetece dançar, meu filho, mas não julgues que podes passar o dia no escritório e depois ires para a paródia, e depois ficares ainda a estudar. Não podes, o corpo não aguenta. Faz uma coisa ou a outra... diverte-te ou estuda latim... mas não tentes fazer as duas.
Depois, ele arranjou um emprego em Londres, a ganhar cento e vinte libras por ano, o que parecia uma soma fabulosa. A mãe nem sabia se havia de rir ou de chorar.
– Querem-me em Lime Street de segunda a oito, mãe – gritou ele, de olhos brilhantes, ao ler a carta. Mrs. Morel sentiu que tudo nela era silêncio. Ele continuou a ler: – «... queira confirmar até à próxima quinta-feira se aceita o lugar... Atentamente...» Eles querem-me lá, mãe, por cento e vinte libras por ano, e nem quiseram falar comigo. Eu não lhe disse que conseguia! Imagine-me só em Londres!... E posso dar-lhe vinte libras por ano, Mater... Vamos ficar afogados em dinheiro.
– Pois vamos, meu filho – respondeu ela, tristemente.
A ele nem lhe ocorreu que a mãe pudesse estar mais magoada com a sua partida do que contente com o seu sucesso. Na verdade, à medida que se aproximava o dia da partida, o coração dela começou a fechar-se e a sucumbir ao desespero. Amava-o tanto. Mais ainda: esperava tanto dele. Quase se podia dizer que vivia através dele. Gostava de lhe fazer as coisas: de lhe fazer uma chávena de chá e de lhe passar a ferro os colarinhos, de que ele tanto se orgulhava. Era para ela uma alegria vê-lo tão vaidoso dos seus colarinhos. Como não havia nenhuma lavandaria perto, costumava passá-los e repassá-los com o seu pequeno ferro de carvão, para os polir, até os pôr a brilhar à simples pressão do braço. E, agora, já não lhe podia fazer isso. Agora, ele ia partir, e era quase como se partisse também do seu coração. E ele parecia não querer deixar ficar nada de si dentro dela. Essa a causa da dor e do desgosto. Ele levava consigo quase tudo.
Uns dias antes da partida – tinha ele acabado de fazer vinte anos – queimou todas as cartas de amor, que estavam guardadas numa caixa em cima do armário da cozinha. Tinha lido extractos de algumas delas para a mãe ouvir, mas a maior parte delas eram demasiado banais.
No sábado de manhã, disse:
– Anda, ’Póstolo, vamos dar uma volta às minhas cartas, e tu podes ficar com os passarinhos e as flores.
Mrs. Morel tinha feito de véspera o trabalho destinado para sábado, pois tinham dado folga a William no último dia. Ela estava até a fazer-lhe um bolo de farinha de arroz, para ele levar. Mas ele não tinha consciência da tristeza que a mãe sentia.
Tirou da caixa a primeira carta. Era cor de malva e estava ornamentada com cardos verdes e púrpura. William cheirou a folha de papel:
– Cheira bem... perfumada...!
E meteu a carta debaixo do nariz de Paul.
– Hum! – disse Paul, inspirando fundo. – Que perfume é este?
– Jockey Club – disse William, embora não fizesse a menor ideia.
– Não podia ser cardo – disse Paul – porque os cardos não têm cheiro.
– Ora oiça esta: «Meu Único Amor»... Safa, Mater.
– Não me interessa ouvir essas baboseiras – disse Mrs. Morel.
– Oiça só esta!.. «Meu único Amor, Como não me disseste o teu primeiro nome, só te posso chamar aquilo que és na realidade. Tenho de te escrever, porque, se o não fizer, acho que a minha cabeça vai rebentar...» Veja só, Mater.
– São mesmo parvas! Têm tão pouca cabeça que não dá nem para rebentar... A adularem-te dessa maneira... Mal sabem elas que estão a arranjar lenha para se queimarem.
– Não é para me adularem. Esta ficou mesmo caidinha por mim.
– E, mesmo que tenha ficado, isso é motivo para se orgulhar? Que parvoíce!
– A mãe não devia dizer que andam a «adulá-lo para arranjar lenha para se queimarem» – interveio Paul.
– Claro, se tu o dizes... – disse a mãe a rir.
– «Fiquei a adorar coisas escocesas desde que te vi com aquele kilt. Ficava-te mesmo mal. Acho que nunca vi ninguém que ficasse tão bonito, com aquele kilt e aquelas meias...» São os meus joelhos... Têm de ser os meus joelhos, Mater. Não me escapa uma.
– Só não te escapam se forem das fáceis.
– Cala a boca, ’Póstolo. É bonita, não é?
Paul gostava de ver os desenhos que decoravam as cartas de amor. William queimou a carta. A seguinte era cor-de-rosa, com um raminho de flor de cerejeira ao canto.
– Flor de cerejeira! – disse Paul, aspirando o perfume. – Que bom... ora cheire, mãe.
A mãe aproximou o nariz pequeno e fino do papel.
– Não me apetece cheirar as parvoíces que elas fazem – disse, aspirando o perfume.
– O pai desta rapariga – disse William – é rico como Cresus. Tem terras que nunca mais acabam... Ela chama-me Lafayette, por eu saber falar francês... «Como vês, já te perdoei.» Esta de ela me perdoar é muito boa... «Falei de ti esta manhã à minha mãe, e ela terá muito prazer em que venhas tomar chá connosco no domingo, mas primeiro precisa do consentimento do meu pai. Espero bem que ele concorde. Logo que saiba, mando-te dizer se sim ou sopas. Se tu no entanto...»
– «Se sim ou...» quê? – atalhou Mrs. Morel.
– «... ou sopas»... é isso mesmo!
– «Se sim ou sopas!» – repetiu Mrs. Morel, trocista. – E eu que a julgava tão fina!
William começou a sentir-se algo desconfortável e pôs de lado esta donzela, dando a Paul o canto com a flor de cerejeira. Continuou a ler excertos das cartas, alguns dos quais deixavam a mãe divertida, outros triste e outros ainda apreensiva.
– Meu filho – disse ela –, elas são muito espertas. Já perceberam que só têm de alimentar a tua vaidade, para tu correres logo atrás delas como um cão a quem fizeram festas na cabeça.
– Ora, elas não podem estar sempre a fazer festas – retorquiu William. – E quando deixam de fazer, eu ponho-me a andar.
– Mas um dia descobres que te prenderam com uma corda que não consegues desatar – respondeu a mãe.
– Isso é que era bom! Eu chego bem para elas, Mater, elas que não se deixem enganar.
– Quem se deixa enganar és tu – disse Mrs. Morel, muito serena.
Não tardou que um monte de papéis retorcidos e tisnados se formasse na lareira, tudo o que restava da colecção de cartas perfumadas, à excepção dos trinta ou quarenta desenhos recortados dos cantos – andorinhas, miosótis e raminhos de hera – que agora pertenciam a Paul. Quanto a William, partiu para Londres, para dar início a uma nova colecção.
IV
A JUVENTUDE DE PAUL
PAUL saía à mãe – era baixo e franzino. O cabelo loiro tornou-se progressivamente arruivado e depois castanho-escuro, enquanto os olhos eram acinzentados. Era uma criança pálida e de poucas falas, com uns olhos que pareciam escutar e um lábio inferior carnudo e descaído.
Geralmente davam-lhe mais idade, pela constante preocupação que mostrava pelo que as outras pessoas sentiam, especialmente a mãe. Quando ela sofria, ele apercebia-se e não tinha paz, sempre de alma atenta às suas mais pequenas reacções.
À medida que crescia, ia-se tornando mais forte. William, devido à diferença de idades, não o queria por companheiro, pelo que só Annie estava com ele o dia inteiro. Annie era uma garota endiabrada, uma maria-rapaz, como a mãe lhe chamava, mas adorava o irmão mais novo, que andava sempre atrás dela. Quando ela fazia corridas com as outras garotas da vizinhança, Paul corria ao lado dela, a apoiá-la, uma vez que ainda não podia participar. Muito calado, passava quase despercebido. Mas a irmã adorava-o e ele fazia-lhe as vontades todas.
Annie tinha uma boneca grande de que muito se ufanava, embora não gostasse tanto dela como do irmão. Um dia, deitou-a no sofá, cobriu-a com uma manta, para ela adormecer, e foi-se embora. Entretanto, Paul pôs-se a saltar em cima do sofá e caiu mesmo em cima da cara da boneca, escondida debaixo da coberta. Annie precipitou-se para o sofá soltando um grito lancinante e sentou-se a chorar, inconsolável. Paul nem se mexeu.
– Não se percebia que a boneca estava ali, mãe; não se percebia – não se cansava ele de repetir, deixando-se ficar sentado muito triste enquanto Annie continuava a chorar. Por fim, o desgosto passou e ela perdoou ao irmão, que estava genuinamente contrito. Porém, um ou dois dias depois Annie ficou chocadíssima.
– Vamos oferecer a Arabella em sacrifício – disse ele. – Vamos queimá-la. – A irmã ficou horrorizada, mas ao mesmo tempo fascinada. Sempre queria ver o que o irmão ia fazer. Ele fez um altar de tijolos, tirou bocadinhos do enchimento do corpo de Arabella, enfiou esses bocadinhos na cara esburacada, deitou-lhe em cima um pouco de parafina e incendiou a boneca. Depois, com perversa satisfação, ficou a ver as gotas de cera derretida a escorrerem pela testa de Arabella, como se fossem suor a pingar sobre a chama. Enquanto a estúpida da boneca esteve a arder, ele rejubilou em silêncio. No fim, esgravatou nas brasas com um pauzinho, pescou os braços e as pernas, todos pretos, e esmagou-os com uma pedra.
– Pronto, este foi o sacrifício da Arabella – anunciou. – E ainda bem que não sobejou nada.
Annie, embora nada dissesse, estava perturbada com a cena. Era como se ele odiasse a boneca intensamente pelo facto de a ter partido.
Todos os irmãos, mas Paul em particular, colocavam-se nitidamente ao lado da mãe contra o pai. Morel continuava a fazer desmandos e a embebedar-se. Havia alturas, às vezes meses a fio, em que transformava a vida de toda a família num inferno. Paul nunca se havia de esquecer de ter vindo para casa, depois de uma reunião religiosa uma segunda-feira à tardinha, e ter encontrado a mãe com um olho negro e todo inchado, o pai de pé junto à lareira, de pernas afastadas e cabisbaixo, e William, que acabara de chegar do trabalho, a olhar enfurecido para o pai. Fez-se silêncio quando os irmãos mais novos entraram, mas nenhum dos adultos olhou para eles.
William estava lívido e de punhos cerrados. Esperou que os mais pequenos se calassem, limitando-se a olhar a cena com indizível raiva infantil, e disse:
– Seu grande cobarde, se eu cá estivesse, não se atrevia a fazer uma coisa destas.
Mas Morel estava ao rubro e voltou-se contra o filho. William era mais alto, mas Morel era mais possante e estava cego de raiva.
– Ah, não? – berrou. – Ah, não atrevia? Se abres mais essa boca, meu menino, assento-te a mão em cima, olá se assento!
E, vergando os joelhos, brandiu o punho ameaçadoramente, animalescamente. William estava lívido de raiva.
– Ah, sim? – disse William, sereno e intrépido. – Pois seria a última vez.
Morel aproximou-se gingão, semivergado, de punho no ar em posição de ataque. William armou também o punho. Os seus olhos azuis fixos no pai tinham o brilho de uma gargalhada. Mais uma palavra e os dois homens engalfinhavam-se. Paul desejava que isso acontecesse. Os três mais novos assistiam sentados no sofá, sem pinga de sangue.
– Acabem já com isso – gritou Mrs. Morel, com dureza. – Por esta noite chega... E tu – disse, virando-se para o marido – pensa nos teus filhos.
Morel virou os olhos para o sofá.
– Pensa nos teus filhos, ess’agora, minha grande cabra – disse ele, acintoso – o qu’é qu’eu fiz òs meus filhos, sempre gostava de saber. Mas eles saem a ti... ensinaste-lhes todas as tuas manhas e truques... criaste-os à tua maneira, foi o que foi.
Ela não respondeu. Ninguém abriu a boca. Passado algum tempo, ele atirou as botas para debaixo da mesa e foi deitar-se.
– Porque é que não me deixou fazer-lhe frente? – disse William, quando o pai já tinha ido para cima. – Ele tinha apanhado, e bem.
– Que bonito... bateres no teu pai – respondeu a mãe.
– Pai! – repetiu William. – Aquilo, meu pai!
– Bom, lá que é... é. Por isso...
– Mas porque é que não me deixa dar-lhe uma ensinadela, não custava nada...
– Que disparate! – gritou Mrs. Morel. – Ainda não chegámos a esse ponto.
– Não – disse o filho. – Ainda é pior... olhe para a sua cara. Porque não me deixou bater-lhe?
– Porque não ia suportar assistir a uma coisa dessas. É melhor que nem te passe pela cabeça – gritou ela, peremptória.
As crianças foram deitar-se muito tristes.
Quando William já era grande, a família mudou-se das Bottoms para uma casa no alto da colina, de onde se alcançava todo o vale, que se estendia por baixo, convexo, como concha de amêijoa ou berbigão. Fronteiro à casa, estava postado um velho freixo de grandes dimensões. Quando o vento oeste soprava forte das bandas do Derbyshire, apanhava em cheio as casas e a árvore não parava de ulular. Morel gostava de a ouvir.
– É como a música – dizia ele. – Ajuda-me a adormecer.
Mas Paul, Arthur e Annie detestavam o zumbido do vento. Para Paul, era quase um gemido demoníaco. Durante o primeiro Inverno que passaram na nova casa, o pai portou-se muito mal. As crianças ficavam a brincar na rua, alcandorada sobre o vale extenso e sombrio, e só voltavam para casa às oito horas, indo directas para a cama. A mãe ficava a costurar no andar de baixo. Todo aquele espaço aberto diante da casa incutia nas crianças uma sensação de vastidão nocturna, de terror. Terror esse que provinha da árvore ululante e da discórdia entre os pais. Paul, mesmo depois de adormecer, tinha um sono sobressaltado e acordava amiúde com os barulhos que vinham de baixo. Acordava e ficava atento. Ouvia então os berros desabridos do pai, que chegara a casa a cair de bêbado, seguidos das respostas aceradas da mãe, e depois os murros do pai em cima da mesa e os seus gritos descontrolados, à medida que ia elevando a voz. E, finalmente, tudo isto era abafado pelos gemidos e os uivos penetrantes do grande freixo agitado pela ventania. As crianças mantinham-se caladas e expectantes, a aguardarem que o vento se calasse, para perceberem o que o pai estava a fazer, não fosse ele bater na mãe outra vez. A escuridão instilava neles sentimentos de horror, violenta tensão e sangue, e adormeciam com o coração apertado de angústia. O vento era cada vez mais assustador. Todas as cordas da grande harpa gemiam, silvavam e uivavam. E, depois, o horror do súbito silêncio: o silêncio total, lá fora e lá em baixo. Que silêncio era aquele?... Um silêncio de sangue? Que teria ele feito?
As crianças mantinham-se deitadas a respirar escuridão. Por fim, ouviam o pai atirar com as botas e subir a escada só de meias. Mesmo assim, ficavam à escuta, até que, se o vento deixava, ouviam a água a sair da torneira para a chaleira, que a mãe já deixava preparada para o dia seguinte, e podiam, finalmente, dormir em paz.
De manhã, acordavam felizes, muito felizes, e brincavam e dançavam à volta do candeeiro solitário, ainda na escuridão, mas guardavam um recanto de ansiedade dentro dos seus corações e uma tristeza nos olhos que conservaram para toda a vida.
Paul odiava o pai. Quando era ainda pequeno, tinha uma religião muito sua.
– Faz com que ele deixe de beber – pedia ele todas as noites.
– Senhor, deixa o meu pai morrer – rezava ele muitas vezes.
– Faz com que ele morra na mina – pedia ele quando, depois do chá, o pai tardava a vir do trabalho.
Esse era outro dos momentos em que a família sofria intensamente. As crianças chegavam da escola e tomavam chá. A enorme chaleira preta fervilhava a um lado do fogão e a terrina do guisado estava no forno, à espera de que Morel chegasse. Era esperado às cinco horas. Porém, durante meses a fio, parava sempre na taberna quando voltava do trabalho e por lá ficava a beber.
Nas noites de Inverno, quando o frio era intenso e anoitecia mais cedo, Mrs. Morel levava para a mesa uma palmatória de latão com uma vela acesa, para poupar o gás. As crianças comiam a sua fatia de pão com manteiga ou com banha e iam brincar para a rua. Mas, se Morel ainda não tinha chegado, eles pensavam duas vezes. Mrs. Morel não suportava imaginá-lo sentado na taberna a beber, todo sujo e ainda com as roupas da mina, depois de um dia de trabalho, e, em vez de vir para casa comer e lavar-se, preferir embebedar-se de estômago vazio. E este seu sentimento comunicava--se aos filhos. Agora, ela já não sofria sozinha: os filhos sofriam com ela.
Paul foi brincar com os outros rapazes. No vale semeado no crepúsculo, cintilavam aglomerados de luzes a marcarem a entrada das minas. Alguns mineiros retardatários subiam desgarrados o carreiro da encosta. Por fim, passou o homem que acendia os lampiões da rua. Mais nenhum mineiro se avistava. A escuridão abateu-se sobre o vale, o trabalho terminara, era a noite que chegava.
Paul correu ansioso para a cozinha. A vela solitária ardia ainda sobre a mesa, o clarão vermelho da fogueira inundava a cozinha, e Mrs. Morel estava sentada e só. A chaleira fumegava no fogão, o prato continuava à espera. Um sentimento de espera perpassava toda a casa, um sentimento de espera pelo homem que estava nesse momento sentado na taberna, a pouco mais de uma milha de casa, já noite escura, com a roupa de trabalho, sem comer, e a beber até cair. Paul apareceu à porta.
– O papá já chegou? – perguntou.
– Bem vês que não – disse Mrs. Morel, aborrecida com a redundância da pergunta.
Depois, o garoto pôs-se a andar de um lado para o outro à volta da mãe. Partilhavam a mesma ansiedade. A certa altura, Mrs. Morel foi lá fora escorrer a água das batatas.
– Estão todas negras, uma porcaria – disse ela. – Quero lá saber. – Não se trocavam muitas palavras. Paul quase odiava a mãe por sofrer daquela maneira quando o pai não vinha para casa.
– Para que se aflige tanto? – disse ele. – Se ele quer ficar por lá a embebedar-se, porque não o deixa?
– Deixá-lo! – ripostou Mrs. Morel. – Essa é boa, «deixá-lo». – Ela sabia que todo o homem que se mete na taberna quando devia voltar para casa sem demora se arruina a si mesmo e à família. As crianças eram ainda muito pequenas e ele era o seu único ganha-pão. William viera trazer-lhe algum alívio, pois, com ele empregado, sempre tinha alguém a quem recorrer se Morel descambasse de vez. Porém, isso em nada alterava a tensão que se respirava na cozinha nestas noites de espera.
Os minutos escoavam-se no bater ritmado do relógio. Às seis horas, a mesa ainda estava posta, o jantar à espera, e a mesma atmosfera de ansiedade e expectativa invadia toda a casa. Paul já não aguentava mais. Não lhe apetecia ir lá para fora brincar. Correu por isso para casa de Mrs. Inger, duas portas mais abaixo, para conversar com ela. Mrs. Inger não tinha filhos. O marido era amigo dela, mas era caixeiro numa loja e chegava muito tarde. Quando ela viu o garoto à porta, chamou-o:
– Vem cá, Paul.
Ficaram os dois a conversar durante um bocado, mas logo Paul se levantou, dizendo:
– Bem, vou andando, para ver se a minha mãe precisa que eu lhe vá fazer algum recado.
Fingia estar muito alegre e não contou à amiga o que o preocupava. Depois, voltou a correr para casa.
Em alturas como esta, Morel chegava sempre mal-humorado, insuportável.
– Lindas horas de voltares para casa – dizia Mrs. Morel.
– Que tens tu co’isso, cas horas a qu’eu venho pra casa? – berrava ele.
E ninguém abria a boca, porque ele era perigoso. Comia o que lhe punham à frente com inultrapassável grosseria e, quando terminava, empurrava tudo o que tinha diante de si para longe, para poder estender os braços por cima da mesa, e, em seguida, adormecia.
Paul odiava por demais o pai. A cabeça do mineiro, pequena e mesquinha, com o cabelo preto empastado de fuligem, repousava sobre os braços nus, e a cara, suja e mal-humorada, de nariz grosso e sobrancelhas finas e insolentes, estava virada para o lado, adormecida – da cerveja, do cansaço e da má índole. Se alguém entrasse de repente ou fizesse o mais pequeno ruído, o homem abria os olhos e berrava:
– Tás aqui, tás a levar um murro, se não paras com essa chinfrineira. Tás’ouvir?
Estas palavras, gritadas selvaticamente e quase sempre dirigidas contra Annie, deixavam toda a família transida de medo.
Ele era mantido fora de todos os assuntos. Ninguém lhe contava nada. Enquanto estavam sozinhos com a mãe, o filhos relatavam-lhe as peripécias do dia, contavam-lhe tudo. Era como se nada realmente acontecesse até contarem à mãe. Mas, mal o pai entrava, fazia-se silêncio. A sua presença era como um travão na engrenagem fluente e feliz da vida doméstica. Ele apercebia-se deste muro de silêncio, do isolamento a que o votavam, de que não era bem-vindo; mas era já demasiado tarde para mudar.
Bem gostaria de que os filhos conversassem com ele, mas eles não conseguiam. Às vezes Mrs. Morel dizia:
– Devias contar ao teu pai.
Paul ganhou um prémio num concurso de jornal e todos ficaram radiantes.
– O melhor é contares ao teu pai quando ele chegar – disse Mrs. Morel. – Sabes bem que ele passa a vida a dizer que nunca lhe contam nada.
– Está bem – concordou Paul. No entanto, quase preferia ter perdido o prémio a ter de contar ao pai.
– Ganhei um prémio num concurso, pai – disse ele.
Morel voltou-se e disse:
– Ah, ganhaste, meu rapaz?... E que concurso era esse?
– Nada de especial... era sobre mulheres famosas.
– E de quanto é esse tal prémio que ganhaste?
– É um livro.
– Ah, é?
– Sobre aves.
– Hum!
E era assim. Não havia conversa possível entre o pai e qualquer dos restantes membros da família. Era como se ele fosse um estranho, tivesse negado o Deus que nele habitava.
Os únicos momentos em que voltava a entrar na vida da família era quando fazia consertos em casa e o trabalho lhe corria de feição. Às vezes, ao fim da tarde, depois de jantar, punha-se a remendar as botas ou a soldar a chaleira ou o cantil. Nessa altura precisava de ajudantes e as crianças rejubilavam. Partilhavam com ele o trabalho, no verdadeiro sentido de construírem realmente qualquer coisa, e aquele sim, era ele outra vez.
Mostrava-se competente e habilidoso, e quando estava de bom humor não parava de cantarolar. Mas atravessava longos períodos, às vezes meses, quase anos até, de contundência e irascibilidade. Depois, de repente, ficava bem-disposto outra vez e era bom vê-lo entrar pela copa dentro com um bocado de ferro incandescente, a gritar:
– Saiam da frente, saiam da frente!
Batia o ferro rubro e maleável na bigorna e moldava-o a gosto. Outras vezes sentava-se a soldar, e as crianças viam cheias de alegria o metal derreter instantaneamente e ser espalhado pelo ferro de soldar, impregnando a casa de um odor a lata quente e a resina queimada, enquanto Morel em silêncio se concentrava no trabalho. Cantava sempre que estava a remendar as botas, ao som das batidas do martelo. E via-se que estava feliz quando punha grandes remendos nas calças de fustão que usava na mina, o que acontecia bastas vezes, pois achava-as muito sujas e muito rijas para ser a mulher a fazê-lo.
Mas o que as crianças mais gostavam era de o verem fazer detonadores. Morel ia buscar ao sótão um molho de palhas de trigo compridas e resistentes. Limpava-as e polia-as à mão até cada uma luzir como uma hastezinha de ouro. Depois, cortava-as em bocados com cerca de seis polegadas, fazendo-lhes, se possível, um talho na ponta. Tinha sempre ao seu lado um canivete primorosamente afiado que cortava uma palha ao meio sem a danificar. Seguidamente, deitava em cima da mesa um montinho de pólvora – uma pilha de grãos pretos sobre o tampo de madeira bem lavada, e ia preparando e aparando as palhas, enquanto Paul e Annie as enchiam e vedavam com um bujão. O que Paul mais gostava era de ver os grãozinhos pretos escorregarem pela calha que ele fazia com a palma da mão e entrarem pela abertura da palhinha, até ela ficar cheia. Nessa altura, vedava a abertura com uma raspa de sabão que arrancava com a unha do polegar do bocado de sabão que tinha a seu lado num pires, e a palha estava pronta.
– Olhe, pai! – dizia ele.
– Isso mesmo, meu amor – respondia Morel, que era particularmente pródigo em elogios para com o seu segundo filho. Paul atirava os detonadores para dentro da lata da pólvora, já pronta para o dia seguinte, quando Morel a levasse para a mina, para com eles provocar uma explosão capaz de fracturar a parede de carvão.
Entretanto, Arthur, ainda muito agarrado ao pai, vinha apoiar-se no braço do cadeirão de Morel e dizia:
– Conte-nos como é lá em baixo na mina, papá.
Era o que Morel mais gostava de fazer.
– Ora bem, lá na mina há um cavalo, a gente chama-lhe Taffy – começava ele – e ele é um gra-a-nde manhoso!
Morel tinha uma maneira pitoresca de contar histórias. Parecia até que a manha do Taffy ganhava vida.
– É um baio – continuava ele – e dos pequenos. Bem, a cert’altura ele entra na galaria com ganda estardalhaço e a gente ouve-o espirrar.
– «Olá, Taff», diz a gente, «pra que tás tu a espirrar? Andaste a cheirar rapé?» E ele vá de espirrar outra vez. Depois vem ter co’a gente e dá-nos co’a cabeça no ombro, o malandreco.
– «Qu’é que tu queres, Taff?», diz a gente.
– E o qu’é qu’ele quer? – perguntava Arthur invariavelmente.
– Quer um bocado de tabaco, meu tontinho.
E a história do Taffy nunca mais acabava, para gáudio da pequenada.
Outras vezes a história mudava.
– Ora ouve esta, meu amor. De quando vou a vestir o casaco, na hora de vir dar ao dente, e dou c’um rato a correr-me pela manga acima. «Eh, lá!», grito eu, mesmo a tempo de lh’agarrar a ponta do rabo.
– E matou-o?
– Matei, pois. São uma praga. Aquilo tá cheio deles.
– E o que é que eles comem?
– Os grãos qu’os cavalos deixam cair... e até nos vêm ao bolso comer o farnel, s’os deixarmos... seja onde for que a gente pendure o casaco... Danados de comilões, isso é qu’eles são...
Estas noites bem passadas só aconteciam quando Morel tinha trabalho para fazer. Depois, ia deitar-se muito cedo, geralmente com as crianças. Não havia nada que o fizesse ficar a pé depois de terminar os consertos e ler por alto os títulos do jornal.
Os filhos sentiam-se seguros quando o pai estava na cama. Por vezes ficavam a conversar em voz baixa depois de se deitarem, e assustavam-se quando luzes de repente se projectavam no tecto, vindas das lanternas dos mineiros que passavam para o turno das nove horas. Ouviam as vozes dos homens e imaginavam-nos a penetrar no vale de breu. Às vezes iam à janela e ficavam a ver as três ou quatro lanternas cada vez mais pequeninas desaparecerem na distância, balançando na escuridão dos prados. E, depois, era tão bom voltarem para a cama e enroscarem-se uns nos outros, no quentinho.
De todos, só Paul era muito frágil, atreito a ataques de bronquite. Os outros eram todos fortes e essa era talvez a outra razão para a diferença que a mãe fazia entre ele e os irmãos. Um dia, Paul chegou adoentado à hora do almoço. A família, porém, não era dada a pieguices.
– O que se passa contigo? – perguntou a mãe, incisiva.
– Nada – respondeu ele.
Mas não quis comer.
– Se não comeres, não voltas para a escola.
– Porquê? – perguntou ele.
– Porque não.
Depois do almoço, ele foi deitar-se no sofá, entre as fofas almofadas de ramagens de que as crianças tanto gostavam, e pareceu adormecer. Nessa tarde, estava Mrs. Morel a passar a ferro quando ouviu os ruídos roucos e entrecortados que o filho fazia ao respirar. De novo a assaltou o antigo sentimento exacerbado de quando ele era bebé e julgava que não ia sobreviver. No entanto, o corpinho dele tinha grande vitalidade. Talvez para ela tivesse sido um alívio se ele tivesse morrido. Sentia sempre a angústia misturar-se ao amor que lhe tinha.
Ele, no seu estado de semiconsciência, apercebia-se vagamente do tinir do ferro no descanso e do seu assentar cavo sobre a tábua de engomar. Uma das vezes, acordando, abriu os olhos e viu a mãe junto à lareira com o ferro quente perto da cara, a escutar por assim dizer o ruído do calor. Ao ver o seu rosto imóvel, a boca crispada de tanto sofrimento, desilusão e abnegação, o nariz ligeiramente à banda e os seus olhos azuis, tão jovens, vivos e ternos, o coração de Paul apertou-se-lhe de amor. Quando ela ficava assim parada, como agora, parecia cheia de vida e de coragem, mas completamente privada dos seus direitos. Ao filho, magoava-o profundamente este pressentimento de ela nunca ter sido feliz, e a sua própria falta de capacidade para a compensar atingia-o como uma espécie de impotência, ao mesmo tempo que determinavam nele uma atitude de paciente tenacidade, em conformidade com as suas ambições pueris.
Ela cuspiu no ferro, e uma bolinha de cuspo enovelou-se e correu pela superfície negra e luzidia. Depois, pondo-se de joelhos, esfregou o ferro vigorosamente no forro de serapilheira do tapete. As chamas da fogueira envolviam-na num clarão cálido e avermelhado. Paul gostava da maneira como ela se baixava e inclinava a cabeça para o lado com movimentos leves e ligeiros. Era sempre com enlevo que a olhava. Nada que fizesse, nenhuma atitude ou movimento, podiam ter defeito para os filhos. A casa estava aquecida e cheirava a roupa quente. Mais tarde, o pároco veio conversar tranquilamente com Mrs. Morel.
Paul caiu à cama com um ataque de bronquite. Não que isso o contrariasse muito: o que tinha de ser tinha muita força e de nada servia revoltar-se. Gostava das noites, depois das oito horas, quando apagavam a luz e ele podia ver as chamas projectarem-se na escuridão das paredes e do tecto e seguir com o olhar as sombras alongadas que o percorriam, até a sala parecer invadida por guerreiros silenciosos, combatendo no silêncio.
Quando se ia deitar, o pai passava primeiro pelo quarto do enfermo. Se alguém estava doente em casa, mostrava-se sempre muito terno, mas a sua entrada não deixava de perturbar a paz que reinava no quarto de Paul.
– Tá a dormir, meu amor? – perguntava Morel, devagarinho.
– Não... A mãe não vem para cima?
– Tá só a acabar de dobrar a roupa. Quer alguma coisa? – Morel só raramente tratava o filho por «você».
– Não, não quero nada... Mas quanto tempo é que demora?
– Já falta pouco, meu tontinho.
O pai hesitava uns segundos frente à lareira. Sentia que o filho não queria a sua presença. Assomava-se então ao cimo das escadas e dizia à mulher:
– Aquela criança tá ansiosa por te ter ó pé... Inda vais ficar aí muito tempo?
– Até acabar o que estou a fazer, santo Deus! Diz-lhe que durma.
– Ela diz qu’o melhor é o meu menino adormecer – disse ele a Paul, de mansinho.
– Mas eu quero que ela venha para cima – insistiu o garoto.
– Ele diz que não dorme enquanto não vieres pra cima – gritou Morel lá para baixo.
– Calma, querido! Já vou. E vê se não gritas dessa maneira. Olha as outras crianças...
Depois, Morel voltou para o quarto de Paul e acocorou-se em frente da lareira. Que bem lhe sabia aquecer-se ao lume.
– Ela diz que já vem.
Parecia querer ficar ali indefinidamente. O garoto já estava febril de irritação. A presença do pai parecia aumentar ainda mais a sua impaciência. Por fim, depois de ficar a olhar para o filho por algum tempo, em silêncio, Morel disse mansamente:
– Boa noite, meu amor.
– Boa noite – respondeu Paul, voltando-se para o outro lado, satisfeito por ficar sozinho.
Paul adorava dormir com a mãe. O sono é ainda mais reparador, apesar de tudo o que dizem os defensores da higiene, quando partilhado com um ente querido. O aconchego, a segurança, a paz de espírito e o conforto que a presença do outro traz, conferem ao sono propriedades curativas. Paul adormecia encostado a ela e melhorava depressa, e ela, sempre atormentada por insónias, mergulhava num sono profundo que parecia renovar-lhe a esperança.
Durante a convalescença, Paul ficava sentado na cama, a ver os cavalos a pastar nos campos circundantes, espalhando o feno pela neve amarelada das pegadas, e a ver os mineiros voltarem para casa, figurinhas negras trilhando lentamente em grupos a alvura dos campos. Depois, vinda da neve, a noite avançava em vapores azulados, quase negros.
Durante a convalescença tudo era maravilhoso. Os flocos de neve caindo de repente na janela detinham-se por um momento, como andorinhas, mas logo desapareciam, e uma gota de água escorria pela vidraça. Os flocos de neve rodopiavam em torno da esquina da casa como pombas esvoaçantes. Do outro lado do vale, o pequeno comboio negro rolava hesitante através da planície toda branca.
Vendo-se tão pobres, as crianças ficavam radiantes quando podiam fazer qualquer coisa que pudesse ajudar os pais economicamente. Annie, Paul e Arthur saíam no Verão logo pela manhã e metiam-se pelo meio da erva molhada, de onde esvoaçavam cotovias, assustadas, à cata de cogumelos, esses corpos nus e de pele tão branca que se escondem dos olhares por entre o verde. Se conseguiam apanhar meia libra, já se davam por muito felizes: era a alegria de encontrarem qualquer coisa, a alegria de receberem qualquer coisa directamente das mãos da natureza e a alegria de poderem contribuir para a economia doméstica.
Mas a colheita mais importante, depois de andarem à procura de ervas aromáticas para as papas, era a das amoras. Mrs. Morel tinha de comprar fruta todos os sábados para os pudins; além disso, gostava muito de amoras. Assim, Paul e Arthur, enquanto houvesse uma amora à vista, esquadrinhavam os silvados, as moitas e as pedreiras abandonadas todos os fins-de-semana. Naquela região de cidades mineiras, as amoras eram relativamente raras. Mas Paul era persistente. Gostava de andar pelos campos entre os silvados, mas não suportava voltar de mãos a abanar. Isso seria desapontá-la, pensava ele, e antes queria morrer.
– Santo Deus! – exclamou a mãe ao vê-los entrar, já tarde, mortos de cansaço e cheios de fome. – Por onde é que vocês andaram?
– Bem – começou Paul –, como aqui não encontrámos nenhuma, fomos até Misk Hills... E veja só, mãe.
Ela espreitou para a cesta.
– E que lindas que são! – exclamou.
– E passa de duas libras... passa de duas libras, não passa, mãe?
A mãe tomou o peso à cesta.
– Passa, sim – respondeu, pouco convicta.
Paul estendeu-lhe um raminho. Trazia-lhe sempre um raminho, o mais bonito que encontrasse.
– Que bonito! – disse ela, com a entoação especial da mulher que recebe um testemunho de amor.
O filho preferia correr os campos o dia inteiro, calcorrear milhas e milhas, a dar-se por vencido e voltar de mãos vazias. Ela nunca o entendeu enquanto ele foi pequeno. Era uma mulher que esperava que os filhos crescessem depressa e se preocupava sobretudo com William.
Mas quando William foi trabalhar para Nottingham, e já não passava tanto tempo em casa, a mãe fez de Paul seu companheiro. Este sentia involuntariamente ciúmes do irmão, e William tinha ciúmes de Paul, mas eram ao mesmo tempo bons amigos.
A relação de Mrs. Morel com o seu segundo filho era mais subtil e tranquila, menos exacerbada talvez do que com o filho mais velho. Estava estabelecido que era Paul quem ia levantar o salário às sextas-feiras à tarde. Os mineiros das cinco minas da zona recebiam à sexta-feira, mas não individualmente. Os salários referentes a cada galeria eram pagos por junto ao capataz, chefe e contratador dos mineiros, e era ele quem fazia a distribuição, na taberna ou na sua própria casa. Para as crianças poderem ir buscar o dinheiro, a escola acabava mais cedo às sextas-feiras. Todos os filhos de Morel, primeiro William, depois Annie e agora Paul, já tinham ido buscar o dinheiro às sextas-feiras à tarde, até chegar a altura de eles próprios começarem a trabalhar. Paul costumava sair de casa às três e meia, com um saquinho de pano no bolso. Por todos os caminhos se viam mulheres, raparigas, crianças e homens a caminho dos escritórios.
Os escritórios eram muito bonitos: num edifício novo de tijolo vermelho, que mais parecia uma mansão, no meio de um jardim muito bem tratado, ao fundo de Greenhill Lane. A sala de espera era no vestíbulo, uma sala comprida e nua com chão de tijoleira azul e um banco a toda a volta, encostado à parede. Era aqui que se sentavam os mineiros, carregados de fuligem. Tinham saído mais cedo da mina. As mulheres e as crianças ficavam geralmente à espera nos arruamentos de gravilha avermelhada. Paul observava sempre com atenção a orla de relva e o grande canteiro onde cresciam amores-perfeitos e miosótis. Aos ouvidos chegava-lhe o som de muitas vozes misturadas. As mulheres exibiam os seus chapéus domingueiros. As raparigas tagarelavam animadas. Os cães corriam para um lado e para o outro. E, em redor, os arbustos erguiam-se verdes e silenciosos.
Nisto, alguém gritava de lá de dentro: «Spinney Park... Spinney Park», e todos os da mina de Spinney Park entravam de tropel. Quando chegava a vez da mina de Bretty, Paul entrava com a multidão. A sala de pagamentos era muito pequena. Um balcão a toda a largura dividia-a ao meio. Atrás do balcão estavam dois homens, Mr. Braithwaite e um empregado, Mr. Winterbottom. Mr. Braithwaite era um homem corpulento, com ar de patriarca austero e uma barbicha branca e rala. Tinha geralmente a boca tapada com um grande lenço de pescoço, em seda, e, mesmo no Verão, havia sempre uma fogueira acesa. Não se via uma janela aberta. Por vezes, no Inverno, o calor até chegava a queimar as gargantas de quem vinha do ar gélido do exterior. Mr. Winterbottom era baixinho, gordo e calvo. Tecia comentários sem o mínimo resquício de imaginação, enquanto o seu chefe não se cansava de proferir patriarcais invectivas contra os mineiros.
A sala estava apinhada de mineiros todos enfarruscados, homens que já tinham ido a casa mudar de roupa, mulheres e uma ou duas crianças, e, geralmente, um cão. Paul era bastante baixo e era por isso sina sua ver-se entalado entre as pernas dos homens, perto do calor sufocante da lareira. Sabia a ordem por que os nomes eram chamados: de acordo com o número da galeria.
– Holliday – chamou a voz metálica de Mr. Braithwaite. Mrs. Holliday avançou em silêncio, recebeu o salário e passou para o outro lado.
– Bower... John Bower.
Um rapaz chegou-se ao balcão. Mr. Braithwaite, uma bisarma irascível, fuzilou-o com o olhar por detrás das lentes.
– John Bower! – voltou ele a chamar.
– Sou eu – disse o rapaz.
– Esta agora..., dantes as ventas eram outras – disse o luzidio Mr. Winterbottom, espreitando por cima do balcão. Os presentes riram-se à socapa, a pensarem no John Bower pai.
– Porque é que o teu pai não veio? – perguntou Mr. Braithwaite, num tom magistral e grandiloquente.
– Não anda bem – respondeu o rapaz, na sua voz aflautada.
– Devias dizer-lhe para largar a bebida – aconselhou o corpulento tesoureiro.
– E depois não te queixes, se ele te ferrar um pontapé – disse uma voz trocista lá de trás.
Todos se riram. O tesoureiro, avantajado e com ares importantes, olhou para a folha que se seguia.
– Fred Pilkington! – chamou, em tom neutro.
Mr. Braithwaite era um importante accionista da firma.
Paul sabia que só faltava um e depois era a vez dele. O coração começou a bater mais depressa. Foi empurrado de encontro à chaminé. Tinha a barriga das pernas a arder, mas não podia furar a barreira humana à sua volta.
– Walter Morel! – soou a voz metálica.
– Aqui – esganiçou-se Paul, da sua pequenez desajeitada.
– Morel... Walter Morel! – repetiu o tesoureiro, de folha de pagamentos na mão, pronto a passar à frente.
Paul foi acometido de convulsões nervosas e não conseguia, ou não queria, gritar. As costas dos homens apagavam-no por completo. Então, Mr. Winterbottom veio em seu auxílio.
– Ele tava aqui... onde tá ele? O miúdo do Morel?
O homem gordo, vermelhusco e calvo perscrutou a sala, assestando os olhos. Nisto, apontou para a chaminé. Os mineiros olharam também e, afastando-se, libertaram o rapaz.
– Aqui tá ele! – disse Mr. Winterbottom. Paul aproximou-se do balcão.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros... Atão, não respondes quando te chamam? – disse Mr. Braithwaite. Pousou um saco com cinco libras em prata com toda a força em cima da folha de pagamentos e, depois, num gesto rápido e delicado, pegou numa pequena pilha de dez libras em ouro e colocou-a ao lado da prata. As moedas de ouro escorregaram sobre o papel como um rio de brilho. O tesoureiro acabou de contar o dinheiro e o rapaz levou tudo a Mr. Winterbottom, no outro extremo do balcão, a quem deviam ser pagas a renda da casa e o aluguer das ferramentas. Aí chegado, novo percalço.
– Dezasseis xelins e seis dinheiros – disse Mr. Winterbottom.
O rapaz estava nervoso de mais para contar o dinheiro, pelo que empurrou algumas moedas de prata e meio soberano na direcção do funcionário.
– Quanto julgas tu que me destes? – perguntou Mr. Winterbottom.
O rapaz fitou-o, sem responder. Não fazia a menor ideia.
– Perdestes a língua?
Paul mordeu o lábio e empurrou mais algumas moedas de prata por cima do balcão.
– Na escola num t’insinaram a contar? – perguntou o homem.
– Só álgibra e franciú – disse um mineiro.
– E a ser sabido – acrescentou outro.
Paul sabia que por sua causa havia gente à espera. Com mãos trémulas, guardou o dinheiro no saco e saiu. Estas ocasiões eram para ele como as penas do Inferno.
Quando se apanhou cá fora, na estrada de Mansfield, sentiu-se infinitamente aliviado. O muro do parque estava coberto de musgo muito verde. Galinhas brancas e douradas debicavam à volta das macieiras de um pomar. Os mineiros serpenteavam rumo a casa. O rapaz seguia rente ao muro, envergonhado. Conhecia muitos dos homens, mas assim, todos sujos, não conseguia identificá-los, o que para ele era uma nova tortura.
Quando chegou à taberna New Inn, em Bretty, o pai ainda não tinha chegado. Mrs. Wharmby, a taberneira, conhecia-o. A avó dele, a mãe de Morel, fora amiga de Mrs. Wharmby.
– O teu pai ainda não chegou – disse ela, naquele tom meio atrevido, meio maternal, de mulher habituada a falar sobretudo com homens feitos. – Senta-te.
Paul sentou-se ao balcão, na beira de um banco alto. Alguns mineiros estavam a um canto a «dividir o bolo» – a distribuir o dinheiro – e outros vinham a entrar. Todos miravam o rapaz, sem dizer palavra. Finalmente, Morel chegou, todo desempenado e com um certo toque de galhardia, apesar da pretidão.
– Olá – disse ele, ternamente, para o filho. – Atão, inda conseguiste chegar primeiro do qu’eu? Queres beber alguma coisa?
Paul, tal como os irmãos, tinha crescido um anti-alcoólico convicto, e para ele era pior beber uma limonada à frente de todos aqueles homens do que tirar um dente.
A taberneira mirou-o dos pés à cabeça, penalizada, mas ao mesmo tempo ofendida com a rigidez moral de que dava mostras. Paul voltou para casa rubro de vergonha. Entrou em silêncio. Sexta-feira era dia de cozer o pão e havia geralmente uma carcaça quentinha à sua espera. A mãe veio dar-lha.
De repente, ele virou-se a ela furioso, de olhos a faiscar.
– Nunca mais entro naquele escritório.
– Porquê, o que é que aconteceu? – perguntou a mãe, surpreendida. Divertia-se imenso com os súbitos ataques de fúria deste filho.
– Nunca mais lá volto – afirmou ele.
– Pronto, está bem. Então, vai dizer isso ao teu pai.
Paul mastigava o pão como se tivesse alguma coisa contra ele.
– Não vou... Não vou mais buscar o dinheiro.
– Então talvez um dos miúdos do Carlin possa ir. Eles haviam de gostar de ficar com os seis dinheiros – disse Mrs. Morel.
Os seis dinheiros era tudo o que Paul recebia. Gastava-os quase todos a comprar presentes de aniversário, é certo, mas eram a sua semanada e prezava-os muito. Porém, disse:
– Pois que fique com eles! Eu não os quero.
– Muito bem – respondeu a mãe. – Mas não precisas de me tratar mal por causa disso.
– Eles são horríveis e ordinários... são horríveis, pronto, e eu não vou lá mais. Mr. Braithwaite pronuncia mal as palavras e Mr. Winterbottom diz «a gente semos».
– E é por isso que não queres lá voltar? – disse a mãe a sorrir.
O rapaz ficou calado. Estava muito pálido, com os olhos pretos e furiosos. A mãe voltou aos seus afazeres sem lhe dar mais importância.
– Eles metem-se todos à minha frente e eu não consigo sair donde estou – disse ele.
– Bem, meu filho, só tens de pedir licença – respondeu ela.
– E depois o Alfred Winterbottom diz, «O qu’é que t’insinam na escola?»
– A ele nunca ensinaram grande coisa – disse Mrs. Morel. – Lá isso é verdade... nem boas maneiras, nem inteligência... a única coisa que tem é manha.
– E vão eles e dizem, «Só álgibra e franciú.» Na escola, não ensinam francês.
– Mas, se ensinassem – disse a mãe, sorrindo – não era preciso ficares tão zangado... Portas-te duma maneira tão infantil, meu filho, quando alguém brinca contigo.
– E depois? – Paul olhou para a mãe quase a chorar, e ainda com mais raiva e ódio do que propriamente ofendido.
– És tão pateta – continuou ela. – Não consegues dizer simplesmente «agora é a minha vez», deixas-te ultrapassar e depois ficas furioso. A culpa é tua.
E, assim, lá o acalmou, embora à sua maneira. A ridícula hiper-sensibilidade dele confrangia-lhe o coração. Outras vezes, a fúria que via nos olhos do filho alertava-a, fazia a sua alma adormecida levantar a cabeça momentaneamente, surpreendida.
– Quanto foi desta vez? – perguntou.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros, e dezasseis xelins e seis dinheiros de retenção – replicou o rapaz. Foi uma boa semana... e só cinco xelins de retenções para o meu pai.
Assim, ela podia calcular quanto o marido tinha ganho, e chamá-lo à pedra se ele lhe desse pouco dinheiro. Morel guardava sempre para si o segredo do montante da semana.
Sexta-feira era a noite de cozer pão e de ir ao mercado. Regra geral, Paul ficava em casa a vigiar o pão. Gostava de ficar a desenhar ou a ler – adorava desenhar. Annie punha-se sempre ao fresco à sexta-feira à noite, e Arthur entretinha-se a brincar na rua, como de costume. Por isso, Paul ficava sozinho.
Mrs. Morel gostava muito de ir à compras. No exíguo terreiro no cimo da colina onde se juntavam as quatro estradas vindas de Nottingham e Derby, Ilkeston e Mansfield, eram montadas muitas barracas. Chegavam breques das aldeias em redor. O mercado enchia-se de mulheres, as ruas ficavam apinhadas de homens. Mrs. Morel costumava discutir com a vendedeira de rendas, simpatizava com o homem da fruta, que era muito falador – mas a mulher, essa era uma desavergonhada, sempre a dar conversa ao peixeiro, que era um patife, mas muito espirituoso – metia na ordem o vendedor de linóleo, mostrava-se distante com o homem do bricabraque, e só entrava na barraca das loiças quando se sentia atraída – ou arrastada – pelas florinhas que decoravam algum prato ou alguma travessa. Mas, sempre que isso acontecia, mostrava-se delicadamente reservada.
– Estava aqui a pensar quanto poderia custar isto – dizia ela.
– Sete dinheiros, por ser para si.
– Obrigada.
Pousava de novo a travessa e ia-se embora. Mas não era capaz de deixar o mercado sem a levar. E lá ia ela outra vez ao sítio onde as loiças estavam expostas pelo chão, e olhava de soslaio para a travessa, furtivamente, fingindo que não estava a olhar.
Era uma mulher franzina, de chapéu e fato preto. O chapéu já tinha quase três anos, para vergonha e desespero de Annie.
– Mãe! – implorava ela. – Não ponhas mais esse chapéu horroroso.
– E queres que eu ponha o quê? – retorquia a mãe, com aspereza. – Acho que está até muito bom.
Começara por ser enfeitado com uma pala, depois seguiram-se flores, e agora estava reduzido a uma rendinha preta e um pouco de azeviche.
– Tem tão mau aspecto – dizia Paul. – Não lhe pode dar um ar um pouco mais moderno?
– Posso é dar-te umas boas palmadas, para não seres atrevido – disse Mrs. Morel, e atava as fitas do chapéu preto debaixo do queixo, com determinação.
Contemplou a travessa uma vez mais. Tanto ela como o oleiro se sentiam pouco à vontade, como se entre eles existisse qualquer desentendimento. De repente, o oleiro exclamou:
– Quer levá-la por cinco dinheiros?
Ela estremeceu. O coração apertou-se-lhe. Mas, depois, baixou-se e pegou na travessa.
– Fico com ela – disse ela.
– Faz-me esse favor, não é? – disse o homem. – O melhor é cuspir-lhe em cima, como se faz quando nos dão uma prenda.
Mrs. Morel deu-lhe os cinco dinheiros com frieza.
– Não acho que ma esteja a dar, percebe – disse ela. – Se não quisesse, não ma deixava levar por cinco dinheiros.
– Neste país de miséria, já nos podemos dar por muito felizes se pudermos dar as nossas coisas – resmungou o homem.
– Pois é, há tempos bons e maus – disse Mrs. Morel.
Mas já tinha perdoado ao oleiro. Agora, eram amigos. Já se atrevia a mexer nas loiças expostas e sentia-se feliz.
Paul estava à espera da mãe. Adorava vê-la entrar em casa. Chegava sempre radiante, triunfante, cansada, carregada de embrulhos, mas rica de espírito. Ele ouvia os seus passinhos leves na entrada e levantava os olhos das pinturas.
– Oh! – suspirava ela, sorrindo-lhe da soleira da porta.
– Ena pá, como vem carregada! – exclamava Paul, pousando o pincel.
– Se venho! – dizia ela, ofegante. – A marota da Annie disse que ia ter comigo. Olha para o peso que eu trago!
Pousou o saco e os pacotes em cima da mesa.
– O pão já está cozido? – perguntou, dirigindo-se para o forno.
– O último está a crescer – respondeu ele. – Não precisa de ir ver, eu não me esqueci dele.
– Ai, aquele oleiro! – disse ela, fechando a porta do forno. – Lembras-te de eu te dizer como ele era antipático. Bom, agora já não acho que seja assim tão mau.
– Ah, não?
O filho não tirava os olhos dela. Mrs. Morel tirou o chapelinho preto.
– Não... Acho que ele acaba por não ganhar nada... bem, passa-se o mesmo com toda a gente, nos tempos que correm... e é isso que o deixa mal-encarado.
– A mim deixava com certeza – disse Paul.
– Bom, e não seria para admirar... E ele deixou-me ficar esta... Por quanto é que achas que ele me deixou ficar isto?
Tirou a travessa do papel que a embrulhava e contemplou-a, satisfeita.
– Mostre lá! – pediu Paul.
E ficaram os dois lado a lado a admirar a travessa.
– Adoro ver estas florinhas a enfeitar as coisas – disse Paul.
– Eu também. E lembrei-me do bule que me compraste...
– Um xelim e três dinheiros – disse Paul.
– Cinco dinheiros!
– Foi muito barata, mãe.
– Pois foi. Pode dizer-se que foi quase roubada. Mas já tinha feito muitas extravagâncias e não tinha dinheiro para mais. E, se ele não quisesse, não precisava de ma vender.
– Lá isso, não, não precisava – disse Paul, e ficaram os dois a consolar-se mutuamente do receio de terem roubado o oleiro.
– Podemos usá-la para pôr fruta cozida – alvitrou Paul.
– Ou leite-creme... ou doce de fruta – acrescentou a mãe.
– Ou rabanetes e alface – continuou ele.
– Não te distraias com o pão – disse a mãe, numa voz transbordante de alegria.
Paul foi espreitar o pão e bateu-lhe ao de leve na parte de baixo.
– Já está cozido – disse, mostrando-o à mãe. Ela bateu-lhe também.
– Pois está – respondeu ela, começando a tirar as compras do saco. – Oh, sou uma gastadora, uma perdulária... Sei que um dia me vai fazer falta.
Paul foi a saltitar para junto da mãe, para ver as últimas extravagâncias. Ela abriu um outro embrulho em papel de jornal e pôs à mostra algumas raízes de amores-perfeitos e boninas carmesim.
– Quatro dinheiros! – lamentou-se.
– Que barato! – exclamou ele.
– Pois é, e logo esta semana que eu estava sem um tostão.
– Mas são lindas! – exclamou ele.
– Então não são! – exclamou ela, dando lugar ao mais genuíno contentamento. – Paul... olha para esta florinha amarela... que bonita, não é... e uma cara que parece de velho!
– E parece mesmo! – exclamou Paul, baixando-se para cheirar. – E que bem que cheira! Mas está um bocado suja.
Correu para a copa, voltou com um pano molhado, e lavou o amor-perfeito com todo o cuidado.
– Agora, olhe para ele, está todo molhado! – disse Paul.
– Pois está! – exclamou ela, a transbordar de felicidade.
As crianças de Scargill Street consideravam-se muito selectas. Ao fundo da rua, onde viviam os Morels, não havia muita gente nova, e, por isso, os que havia eram mais unidos. Rapazes e raparigas brincavam uns com os outros: as raparigas participavam nas lutas e jogos violentos dos rapazes, e os rapazes tomavam parte nas danças de roda e nos jogos de faz-de-conta das raparigas.
Annie, Paul e Arthur gostavam das noites de Inverno, quando não chovia. Deixavam-se ficar dentro de casa até os mineiros terem regressado todos, até ser noite fechada e a rua ficar deserta. Nessa altura, enrolavam um cachecol ao pescoço, pois prescindiam do casacão, tal como os outros filhos dos mineiros, e saíam de casa. A entrada da rua estava completamente às escuras daquele lado e a noite estendia-se vazia, com um pequeno emaranhado de luzinhas lá em baixo, na mina de Minton, e um outro bem mais longe, na direcção oposta, na de Selby. As luzes mais distantes pareciam prolongar as trevas para sempre. As crianças olhavam ansiosas para o lampião solitário postado ao fundo da rua, na extremidade da ladeira da encosta. Se o escasso espaço de luz estava deserto, os dois rapazes ficavam desolados. Encostavam-se ao candeeiro, de mãos nos bolsos e costas viradas à noite, aborrecidíssimos, a olharem para as casas às escuras. Nisto, avistaram um bibe por baixo de um casaquinho curto, e uma rapariga de pernas altas a correr para eles.
– Onde tão o Billy Pillins e a vossa Annie e o Eddie Dakin?
– Não sei.
Mas isso não tinha importância – agora já eram três, e punham-se a correr à volta do poste até os outros aparecerem a gritar. Daí em diante, era brincadeira a valer.
Existia apenas este candeeiro. Para trás dele, só a imensa concha de trevas que parecia conter a noite inteira. À sua frente, um caminho largo e escuro percorria a cumeada. De vez em quando, saía alguém desse caminho e dirigia-se para o vale, pelo carreiro, sendo tragado pela noite a uns escassos dez metros de distância. As crianças continuaram a brincar.
Eram excessivamente unidas devido ao isolamento em que viviam. Mas, se se zangavam, a brincadeira ficava completamente estragada. Arthur era muito susceptível, e Billy Pillins, ou melhor, Philips, era-o ainda mais. Paul tinha de tomar o partido de Arthur, e a Paul juntava-se Alice, enquanto Billy Pillins contava sempre com o apoio de Emmie Limb e Eddie Dakin. Depois, envolviam-se os seis à bulha, odiando-se com toda a fúria do mais genuíno ódio, e corriam para casa apavorados. Paul nunca se havia de esquecer de ter visto uma noite, depois de uma destas assanhadas lutas fratricidas, uma grande lua vermelha elevar-se lentamente no céu por cima da estrada deserta da cumeada, sem vacilar, como pássaro gigantesco; e a imagem bíblica que o assaltou, da lua a transformar-se em sangue. No dia seguinte, apressou-se a ir fazer as pazes com Billy Pillins, e as desenfreadas brincadeiras retomaram o seu curso à luz do candeeiro solitário, rodeadas da mais negra escuridão. Mrs. Morel, ao entrar na sala, ouvia as crianças a cantar ao longe:
«Uso sapatos de couro espanhol,
Meias de seda, para meu deleite;
Anéis nos dedos, que brilham ao sol,
E só tomo banho em tinas de leite.»
Pareciam tão absorvidas no jogo, pelo som das suas vozes que penetrava as trevas, que dir-se-ia o canto de criaturas selvagens. A mãe estremecia e entendia-os quando voltavam às oito horas, afogueados, de olhos brilhantes e língua solta e vibrante.
Todos eles gostavam desta casa de Scargill Street pela sua largueza de horizontes, pela sua abertura sobre a concha de mundo que dominava. Nas noites de Verão, as mulheres vinham arrimar-se à cerca da encosta, a conversar, viradas para poente, vendo o sol apagar-se num lampejo e espraiando o olhar até aos montes do Derbyshire, recortados ao longe num céu de carmim, como a crista negra de uma salamandra.
Neste Verão, as minas não estavam a trabalhar em pleno, especialmente as de carvão mole. Mrs. Dakin, que morava ao lado de Mrs. Morel, costumava ficar a ver os homens subirem a encosta lentamente sempre que se assomava à cerca para sacudir o tapete. Viu logo que eram mineiros e ficou à espera lá em cima, alcandorada na colina, alta, magra, olhar astuto e penetrante, uma quase ameaça para os pobres mineiros que a custo trepavam a ladeira. Eram apenas onze horas. A neblina que, como fino crepe negro, cobre o horizonte das manhãs estivais não se tinha ainda dissipado sobre as colinas frondosas desenhadas à distância. O primeiro homem alcançou a cancela, que chiou à sua passagem.
– O quê, mandaram-no embora? – gritou Mrs. Dakin.
– Mandaram, sim senhora.
– É uma pena deixarem-nos vir embora – disse ela, sarcástica.
– Lá isso é – respondeu o homem.
– E não apetece nada voltar para casa agora – disse ela.
O homem seguiu o seu caminho. Quando Mrs. Dakin atravessava o quintal, de volta a casa, avistou Mrs. Morel, que ia despejar as cinzas da lareira.
– Acho que Minton fechou, Mrs. Morel – gritou ela.
– É uma vergonha! – exclamou Mrs. Morel indignada.
– Pois é... Vi mesmo agora o Jont Hutchly.
– Bem podiam ter poupado as solas dos sapatos – disse Mrs. Morel, e voltaram as duas para casa indignadas.
Os mineiros, de caras quase limpas, voltavam para casa. Morel detestava ter de se vir embora. Adorava as manhãs soalheiras, mas ir para a mina e mandarem-no embora logo a seguir estragava-lhe a boa disposição.
– Santo Deus... já? – exclamou a mulher, vendo-o entrar.
– Qu’hei-d’eu fazer, mulher! – berrou ele.
– E eu não tenho comida que chegue.
– Num faz mal, como o farnel que levei – vociferou ele, pateticamente. Sentia-se envergonhado e irritado.
Os filhos, quando chegaram da escola, estranharam ver o pai a comer as duas grossas fatias de pão com manteiga que tinha levado para a mina, já muito secas e sujas.
– Porque é que o meu pai tem de comer o farnel aqui em casa? – perguntou Arthur.
– Porqu’ela ficava toda zangada s’eu num o comesse – respondeu Morel.
– Lá estás tu com histórias! – exclamou a mulher.
– E achas qu’é pra deitar fora? – disse Morel. – Eu num sou esquisito como vocês, que desperdiçam tudo. Se me cai um bocado de pão na mina, no meio daquela porcaria toda, apanho-o e como-o.
– Os ratos comiam-no – disse Paul – e já não era um desperdício.
– Pão cum manteiga pròs ratos? Nem pensar nisso – disse Morel. – Sujo ou limpo, antes comê-lo eu que deitá-lo fora.
– Podias dá-lo aos ratos e comprares mais com o dinheiro que gastas na cerveja – disse Mrs. Morel.
– Ah, podia...? – exclamou o marido.
O Outono que se seguiu foi de míngua. William tinha acabado de partir para Londres e a mãe sentia a falta do dinheiro que ele lhe costumava entregar. Ainda lhe mandou dez xelins por uma ou duas vezes, mas no início tinha muitas compras a fazer. As suas cartas chegavam com regularidade, uma vez por semana. Escrevia longas cartas à mãe em que lhe contava o que fazia, os amigos que tinha, as lições que trocava com um francês, como gostava de viver em Londres. Para a mãe era como se ele estivesse com ela, como no tempo em que morava em casa. E ele todas as semanas lhe escrevia cartas francas e cheias de espírito. Era nele que ela pensava o dia inteiro, enquanto fazia a limpeza da casa. Ele estava em Londres, ia ter sorte. Era quase como se fosse o seu cavaleiro andante, ostentando as cores dela na batalha.
Vinha agora a casa passar cinco dias pelo Natal. Não havia memória de tantos preparativos. Paul e Arthur correram os campos à procura de azevinho e sempre-viva. Annie fez enfeites de papel recortado à moda antiga, e a despensa estava farta como nunca. Mrs. Morel fez um bolo de natal enorme, magnífico, e sentindo-se uma rainha, mostrou a Paul como se pelavam amêndoas. Ele pelou as oleaginosas com reverência, contando-as, uma a uma, não fosse alguma perder-se. Dizia-se que as claras subiam mais num lugar frio e, por isso, Paul foi para a copa, onde o frio era quase insuportável, batendo-as sem parar e correndo excitadíssimo a mostrar a mãe como as claras cresciam, cada vez mais firmes e nevadas.
– Olhe, mãe... estão óptimas, não estão?
Depois, pôs um bocadinho na ponta do nariz e soprou-o para o ar.
– Então, isso não é para estragar – disse a mãe.
Toda a gente andava excitadíssima. William ia chegar na véspera de Natal. Mrs. Morel passou revista à despensa. Havia um grande bolo de passas e um bolo de farinha de arroz; tartes de geleia e de limão, e duas grandes travessas cheias de empadas de carne. E ainda faltavam umas tartes de amêndoa e de queijo que ela preparava a toda a pressa. A casa estava toda enfeitada. A coroa de azevinho, salpicada de bagas bem vermelhas e pendurada entre grinaldas cintilantes, rodopiava por cima da cabeça de Mrs. Morel enquanto ela recortava a massa das tartes na cozinha. A fogueira, imensa, crepitava. A casa rescendia a bolos e massa folhada. William devia chegar às sete horas, mas o mais provável era atrasar-se. Os irmãos tinham ido ao seu encontro. A mãe ficara sozinha. Mas, por volta de um quarto para as sete, Morel voltou para casa. Marido e mulher nada disseram. Ele sentou-se no cadeirão, ansioso, sem saber o que fazer, e ela continuou com os seus cozinhados. A sua comoção só era traída pelo modo meticuloso como ia fazendo as coisas. E o relógio continuou a bater.
– A que horas disseste qu’ele chegava? – perguntou Morel, pela quinta vez.
– O comboio chega às seis e meia – respondeu ela, enfaticamente.
– Então vai chegar por volta das sete e dez.
– Deus te oiça, mas o comboio vai atrasar-se algumas horas no Midlands – disse ela, aparentando indiferença. Fazia-o, no entanto, com a esperança de acontecer o contrário e ele chegar mais cedo. Morel foi até à porta, para ver se o via. Depois voltou para dentro.
– Credo, homem! – disse ela. – Parece que tens bicho-carpinteiro.
– Em vez de estares pr’aí a falar, num era melhor arranjares-lhe alguma coisa para comer? – disse o marido.
– Tenho muito tempo para isso – respondeu ela.
– Num é o que me parece – contrapôs ele, virando-se amuado na cadeira. Ela começou a limpar a mesa da cozinha. A chaleira já apitava. E eles à espera.
Entretanto, os outros três filhos estavam em Lethley Bridge, uma estação da linha do Midlands, a duas milhas de casa. Esperaram uma hora. Chegou um comboio, e nada. Ao fundo da linha, as luzes verdes e vermelhas acendiam e apagavam. Estava muito escuro e fazia muito frio.
– Vai perguntar-lhe se o comboio de Londres já passou – disse Paul a Annie quando avistaram um homem de boné de pala.
– Não vou nada – disse Annie. – Fica mas é calado, senão ele inda nos manda embora.
Mas Paul estava morto por que o homem soubesse que eles esperavam alguém que vinha de Londres, o que lhes dava uma certa importância. Porém, tinha medo, muito medo, de abordar um desconhecido, e ainda por cima de boné de pala. As crianças nem se atreviam a entrar na sala de espera, com medo de que os mandassem embora, e que alguma coisa acontecesse enquanto não estavam na plataforma. E lá continuaram à espera, no frio e na escuridão.
– Já está hora e meia atrasado – disse Arthur, já a desesperar.
– Bem – disse Annie –, é véspera de Natal.
O silêncio crescia entre eles. O irmão não vinha. Perscrutaram a escuridão ao longo da linha férrea. Lá ao fundo, ficava Londres! Uma lonjura infinita, pensaram. Tudo podia acontecer quando se vinha de Londres. Estavam demasiado preocupados para falarem. Enregelados, tristes e mudos, continuavam encostados uns aos outros na plataforma.
Finalmente, passadas mais de duas horas, avistaram os faróis de uma locomotiva a descrever uma curva na distância. Um bagageiro aproximou-se a correr. As crianças chegaram-se para trás com os corações a galope. Um enorme comboio com destino a Manchester parou. Abriram-se duas portas e, de uma delas, saiu William. Os irmãos atiraram-se a ele. Ele, todo contente, entregou-lhes muitos embrulhos e logo explicou que aquele grande comboio só tinha parado numa estação insignificante como Lethley Bridge por causa dele, já que a paragem não estava programada.
Entretanto, os pais iam ficando cada vez mais preocupados. A mesa estava posta, a costeleta grelhada, tudo estava a postos. Mrs. Morel pôs o seu avental preto. Por baixo, tinha o seu melhor vestido. Depois sentou-se e fingiu concentrar-se na leitura. Os minutos arrastavam-se como uma tortura.
– Hum! – disse Morel. – Já passa hora e meia.
– E aquelas crianças à espera! – disse ela.
– O comboio inda num pode ter chegado – disse ele.
– É o que eu digo. Na véspera de Natal vêm com horas de atraso.
Estavam os dois implicativos de tanta ansiedade. O freixo gemia lá fora fustigado por um vento gélido, implacável. E tanta noite a separar Londres do lar! Mrs. Morel sofria. O tiquetaque do relógio irritava-a sobremaneira. Estava a fazer-se tarde. A espera estava a tornar-se insuportável.
Por fim, o ruído de vozes e de passos na entrada.
– Já chegou! – gritou Morel, saltando da cadeira.
Depois, deu um passo à retaguarda. A mãe correu em direcção à porta e ficou à espera. Seguiu-se um tropel de passos, a porta escancarou-se e William apareceu. Largou no chão o saco de viagem e abraçou-se à mãe.
– Mater! – disse ele.
– Meu filho! – gritou ela.
E, durante não mais de dois segundos, ela abraçou-o e beijou-o. Depois, afastou-se e disse, com a naturalidade possível:
– Mas que grande atraso!
– Foi, não foi? – exclamou ele, voltando-se para o pai.
– Então, pai!
E os dois homens trocaram um aperto de mão.
– Então, meu rapaz!
Os olhos de Morel estavam rasos de lágrimas.
– Távamos a ver que nunca mais chegavas – disse ele.
– Então não havia de chegar! – exclamou William, voltando-se para mãe.
– Estás com óptimo aspecto – disse Mrs. Morel, a rir, toda orgulhosa.
– Claro... – respondeu o filho. – Basta ter voltado para casa.
Era um jovem desempenado, alto, garboso e de olhar intrépido. Olhou em volta, para a sempre-viva e o azevinho, e para as empadas que estavam dentro das forminhas em cima do fogão.
– Graças a Deus que nada mudou, mãe – disse ele, satisfeito. Todos ficaram calados por um momento. De repente, ele deu um salto em frente, tirou uma empadinha do fogão e meteu-a na boca de uma só vez.
– Safa, já alguma vez viram um saco roto como este? – exclamou o pai.
William trazia um nunca mais acabar de presentes para todos. Gastara quanto tinha para os comprar. A casa foi invadida por uma certa atmosfera de luxo e prosperidade. Para a mãe, uma sombrinha com o cabo beige com enfeites dourados. Ela guardou-a para quando morresse, e antes queria perder tudo o que tinha a ficar sem ela. Todos receberam coisas bonitas e, além disso, ele trouxe também montes de guloseimas desconhecidas naquelas paragens: geleias de frutos, ananás cristalizado, coisas que as crianças pensavam que só o esplendor de Londres tornava possíveis. E Paul não se calava de gabar tais guloseimas diante dos amigos.
– Ananás autêntico, às fatias, e transformado em cristal... bem bom!
Todos estavam loucos de felicidade. Não há nada que chegue ao próprio lar, e eles amavam-no com paixão, apesar dos maus bocados lá passados. Chegavam visitas, todos vinham dar-lhe os parabéns. Os vizinhos vinham ver o que Londres tinha feito de William e todos achavam que ele estava «um verdadeiro cavalheiro, e um belo rapaz, isso é que estava!».
Quando ele se foi embora outra vez, os irmãos foram chorar às escondidas para sítios diferentes, Morel foi meter-se na cama abatidíssimo e Mrs. Morel sentia-se como se estivesse drogada, como se os seus sentimentos tivessem paralisado. Amava o filho com verdadeira paixão.
William trabalhava no escritório de um advogado ligado a uma grande companhia de navegação e, em Junho, o chefe proporcionou-lhe uma viagem ao Mediterrâneo num dos barcos da companhia, por um preço irrisório. Mrs. Morel mandou-lhe dizer: «Vai, sim, meu filho. Podes não voltar a ter uma oportunidade como essa, e, para mim, ver-te a navegar no Mediterrâneo é talvez ainda melhor do que ter-te aqui em casa.» Mas William veio passar as duas semanas de férias a casa. Nem o Mediterrâneo, apelando embora a toda a sua ânsia de viajar e ao seu deslumbramento de homem pobre diante da opulência do Sul, podiam mantê-lo longe de casa. E isso era para a mãe compensação bastante para todos os sacrifícios.
V
PAUL ENFRENTA A VIDA
MOREL era um homem negligente, indiferente ao perigo, sofrendo por isso inúmeros acidentes. De tal forma que, quando Mrs. Morel ouvia chiar as rodas de uma carroça de transporte de carvão, estacando à sua porta, corria logo para a janela da sala à espera de ver o marido lá sentado, com o rosto macilento por baixo da camada de fuligem, e o corpo inerte, vítima de qualquer contusão ou outro percalço. Se era ele, saía de casa a correr para o ajudar.
Cerca de um ano após William ter ido para Londres, e logo depois de Paul ter saído da escola, mas quando ainda não tinha arranjado trabalho, estava Mrs. Morel no andar de cima e o filho na cozinha, entretido a pintar – fazia maravilhas com os pincéis – quando bateram à porta. Enfadado, Paul pousou o pincel para ir abrir. Simultaneamente, a mãe abriu a janela e espreitou para a rua.
Era um mineiro, um rapazito, que batia à porta.
– É aqui que mora o Walter Morel? – perguntou.
– É, sim! – respondeu Mrs. Morel. – Aconteceu alguma coisa?
Mas ela já tinha adivinhado.
– O seu marido aleijou-se – disse o rapaz.
– Oh, meu Deus! – exclamou ela. – Quando não acontece nada é que é para admirar. O que foi desta vez?
– Num sei bem, mas foi na perna... Levaram-no prò hospital.
– Valha-me Deus! – exclamou ela. – Ah, este homem... este homem...! Não me dá cinco minutos de descanso, eu morra aqui se não é verdade! O polegar já estava quase bom e agora... Tu viste-o?
– Vi-o lá ’baixo. E vi-os trazerem-no pra cima num elevador... tava branco cum’á cal. E o qu’ele berrou quando o Dr. Fraser o examinou na casa das lanternas... sempre aos berros e a praguejar... e a dizer que queria qu’o trouxessem pra casa... que num ia prò hospital...! E o rapaz calou-se.
– Isso é bem dele... quer vir para casa, para me dar trabalho... Obrigada, meu filho... Que cansada que eu estou de tudo isto... cansada e farta... isso é que eu estou!
Desceu as escadas. Paul tinha recomeçado a pintar, mecanicamente.
– Deve ser grave... para o levarem para o hospital... – continuou ela. – Mas que criatura mais descuidada! Os outros homens não podem ter assim tantos acidentes... É isso, ele queria deitar o trabalho todo para cima das minhas costas... E logo agora, que as coisas estavam finalmente a correr um bocadinho melhor... Vá, deixa isso, agora não há tempo para pinturas... A que horas tenho comboio? Agora vou ter de ir até Kreston... o quarto tem de esperar.
– Eu acabo de o arrumar – disse Paul.
– Não precisas... às sete horas estou de volta, acho eu... E o barulho que ele vai fazer... nem quero pensar... E aqueles calhaus de granito de Tinder Hill... ele bem pode chamar-lhes pedrinhas... os solavancos vão dar cabo dele. Não sei porque não consertam a estrada... naquele estado... e com tanta gente a passar por lá na ambulância... Devia haver aqui um hospital... Já compraram o terreno... e não iam faltar acidentes para o manter a funcionar. Mas não, têm de os levar não sei quantas milhas naquela ambulância ronceira até Nottingham. É uma vergonha! E o estardalhaço que ele vai fazer, já sei como é! Quem terá ido com ele?... O Barker, provavelmente. Coitado, vai desejar estar em qualquer lado menos ali. Mas vai cuidar bem dele, eu sei. E agora sei lá quanto tempo ele vai ficar naquele hospital... e ele que detesta! Enfim, se for só a perna, já não é mau.
Ia falando enquanto se preparava para sair. Despindo o corpete à pressa, baixou-se para a caldeira, enquanto a água corria lentamente para o jarro.
– Era bem melhor se esta caldeira não existisse! – exclamou ela, apertando a asa do jarro com impaciência. Tinha uns braços fortes e bem torneados, surpreendentes numa mulher da sua estatura.
Paul arrumou as suas tralhas, pôs a chaleira ao lume e pôs a mesa.
– Só há um comboio às quatro e vinte – disse ele. – Tem tempo de sobra.
– Não tenho, não! – gritou ela, piscando os olhos e fitando-o por cima da toalha, enquanto limpava a cara.
– Tem, sim... Tem pelo menos de beber uma chávena de chá. Quer que vá consigo até Keston?
– Vires comigo para quê, pode saber-se?... Ora deixa cá ver o que é que eu tenho de lhe levar... Valha-me Deus!... A camisa lavada... e é uma sorte estar lavada... mas ficava melhor se a tivesse posto ao ar... as meias... isso ele não vai querer... e uma toalha, acho eu... e lenços... e que mais?
– Um pente, uma faca, um garfo e uma colher – disse Paul. Já não era a primeira vez que o pai ficava internado no hospital.
– Sabe Deus em que estado ele tinha os pés – continuou Mrs. Morel, penteando o cabelo castanho e muito comprido, fino como seda e já salpicado de fios prateados. – Ele nunca se esquece de se lavar da cintura para cima, mas para baixo acha que já não é preciso. Mas devem apanhar lá muitos como ele.
Paul tinha posto a mesa e preparou duas fatias finas de pão com manteiga para a mãe.
– Aqui tem – disse, pondo uma chávena de chá em frente ao lugar dela.
– Agora não tenho tempo – disse ela, secamente.
– Mas tem de ter... Olhe, já está tudo pronto – insistiu o filho.
Ela acabou por se sentar, bebeu uns golinhos de chá e comeu um pouco de pão em silêncio. Estava a pensar.
Daí a nada, tinha de se ir embora, para percorrer a pé as duas milhas e meia até à estação de Keston. Já tinha metido no saco de rede tudo o que ele precisava. Paul ficou a vê-la subir a estrada, entre as sebes de arbustos, pequenina e franzina, e o seu coração sofria por ela, por vê-la sujeita a mais esta provação. E ela, correndo ligeira de tanta ansiedade, sentia atrás de si o coração do filho a acompanhá-la, a tomar para si a parte possível deste fardo, a dar-lhe forças. E, quando chegou ao hospital, pensou: «Ele vai ficar preocupadíssimo quando eu lhe disser que é assim tão grave... o melhor é ter cuidado.» E, de regresso a casa, sentia que tinha com quem partilhar o fardo.
– É grave? – perguntou Paul, mal a viu entrar.
– Mais ou menos – respondeu ela.
– O quê?
Ela suspirou, sentou-se e desapertou as fitas do chapéu. O filho viu-a levantar o queixo e desatar a laçada com os dedos pequeninos, mas endurecidos pelo trabalho.
– Bem – respondeu ela – não se pode dizer que seja perigoso... mas a enfermeira diz que foi uma pancada horrível. Estás a ver... foi um grande bocado de rocha que lhe caiu em cima da perna... aqui, salvo seja... uma fractura múltipla... e tem bocados de osso a sair para fora...
– Ui, que horror! – exclamaram os filhos.
– E claro que ele diz que vai morrer – continuou Mrs. Morel. – É mesmo dele dizer isso... «Estou arrumado, cachopa!», disse ele, olhando para mim. «Não digas disparates», disse eu. «Não vais morrer de uma perna partida, por pior que esteja»... «Só saio daqui num caixão», queixava-se ele. «Bem!», disse eu, «Se queres que eles te levem a passear ao jardim dentro dum caixão, quando estiveres melhor, é só pedires e eles fazem-te a vontade»... «Se acharmos que lhe vai fazer bem», acrescentou a Irmã. Ela é bem simpática, a Irmã, mas muito rigorosa.
Mrs. Morel tirou o chapéu. Os filhos mantiveram-se em silêncio, expectantes.
– Claro que ele está mal – prosseguiu ela. – E vai levar muito tempo a recompor-se. Foi um acidente muito grave e ele perdeu muito sangue... e, já se vê, a lesão é muito perigosa. Ninguém sabe o tempo que vai levar a sarar. E depois há a febre e a gangrena... se correr mal, ele até pode morrer... Mas lá no hospital... e depois ele tem bom sangue... e boa carnadura... Por isso não vejo razão para que tenha de correr mal... Claro que a ferida é muito grande...
Ela estava lívida, da angústia e da emoção. Os três filhos perceberam que o estado do pai era muito grave e a casa ficou silenciosa, perpassada de ansiedade.
– Mas ele melhora sempre – disse Paul, passado um bocado.
– Foi exactamente o que eu lhe disse – exclamou a mãe.
Todos se moviam de um lado para o outro sem fazerem o menor ruído.
– Ele de facto parecia que estava a morrer – disse Mrs. Morel. – Mas a Irmã diz que é das dores.
Annie foi arrumar o casaco e o chapéu da mãe.
– Ficou a olhar para mim quando eu me vim embora...! Eu disse: «Agora tenho de ir, Walter, por causa do comboio... e das crianças...» E ele ficou a olhar para mim... Custou-me tanto...
Paul pegou outra vez no pincel e continuou a pintar. Arthur foi lá fora buscar mais carvão. Annie ficou sentada, muito triste. E Mrs. Morel continuou imóvel, pensativa, na cadeira de baloiço que o marido lhe fizera, quando esperavam o primeiro filho. Estava triste e com muita pena de ver um homem sofrer tanto. Mas, mesmo assim, no fundo do coração, onde a chama do amor devia arder, tinha um vazio. No momento em que toda a sua compaixão de mulher estava exacerbada ao máximo, em que cuidaria dele dia e noite até cair para o lado, em que, se pudesse, de bom grado tomaria as suas dores, algures, num recôndito da alma, era indiferença que encontrava, por ele e pelo seu sofrimento. A dor que sentia vinha sobretudo desta incapacidade de o amar, mesmo quando ele despertava nela as mais fortes emoções. E assim se deixou ficar, pensativa, por um tempo.
– E nisto – disse ela de repente –, quando já ia a meio do caminho, vi que tinha saído com as botas de andar por casa... olhem para isto... – Era um par de botas velhas de Paul, castanhas e com as biqueiras muito gastas. – Nem sabia onde me havia de meter com a vergonha – acrescentou.
Na manhã seguinte, quando Annie e Arthur estavam na escola, Mrs. Morel conversou mais com Paul enquanto ele andava a ajudá-la a arrumar a casa.
– Encontrei o Barker no hospital. Não parecia muito atrapalhado, coitado. «Então», disse eu, «como correu a viagem?» «Num me pregunte, ’nha senhora!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «Eu sei como ele é.» «Mas foi muito custoso pra ele, Mrs. Morel, iss’é que foi!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «A cada safanão, eu inté pensava qu’o coração m’ia saltar pela boca», disse ele. «E os gritos qu’ele dav’às vezes, ’nha senhora... nem que me paguem uma fortuna, me quero ver noutra igual.» «Entendo perfeitamente», disse eu. «A coisa tá feia a valer», disse ele, «e vai levar muito tempo pra ficar bom.» «Também acho que sim», disse eu. Eu gosto de Mr. Barker... gosto mesmo. É um homem e tanto.
Paul continuava a pintar em silêncio.
– E já se sabe – continuou Mrs. Morel –, para um homem como o teu pai é muito duro estar no hospital. Para ele não há normas nem obrigações. E não deixa que ninguém lhe toque, a não ser que não tenha outro remédio. Quando esmagou os músculos da coxa, e tinha de mudar o penso quatro vezes por dia, ele deixava mais alguém mudar-lho a não ser eu ou a mãe dele?... Nem pensar nisso. Claro que agora vai sofrer no hospital, com todas aquelas enfermeiras... Não me agradou nada ter de o deixar lá ficar. Foi um dó de alma quando tive de lhe dar um beijo e vir-me embora...
Mrs. Morel falava com o filho quase como se estivesse a pensar em voz alta para ele ouvir, e ele colaborava o melhor que podia, partilhando com ela o sofrimento, para a aliviar. Afinal, mesmo sem saber, ela partilhava quase tudo com ele.
Morel passou muito mal. Durante uma semana o seu estado foi crítico. Depois, começou a melhorar e, quando souberam que o mau tempo tinha passado, toda a família respirou de alívio e a vida seguiu feliz.
Não passaram grandes dificuldades enquanto Morel esteve internado. Recebiam catorze xelins por semana da mina, dez da assistência aos enfermos, e cinco do Fundo de Invalidez. Além disso, os capatazes traziam todas as semanas qualquer coisa a Mrs. Morel, cinco ou sete xelins, pelo que ela vivia com bastante desafogo. E enquanto Morel ia melhorando no hospital, em casa a família vivia em paz e alegria. Aos sábados e quartas-feiras, Mrs. Morel ia visitar o marido a Nottingham. No regresso trazia sempre qualquer lembrança para os filhos: um tubo de guache para Paul, outras vezes papel cavalinho; postais para Annie, de que toda a família usufruía durante dois ou três dias antes de a deixarem enviá-los a alguém; ou então uma serra para Arthur, ou um belo bocado de madeira. E depois contava animadamente as suas aventuras nos grandes armazéns. Não tardou que os empregados da loja de gravuras a ficassem a conhecer e soubessem tudo sobre Paul. A rapariga da livraria simpatizava até muito com ela. Mrs. Morel tinha histórias sem fim para contar quando voltava de Nottingham. Ficavam os três sentados até à hora de irem para a cama a ouvirem-na contar histórias, a meterem a sua colherada, a conversarem. Depois, era geralmente Paul quem abafava o borralho.
– Agora, sou o homem da casa – dizia ele à mãe, todo ufano. Descobriram como o lar podia ser um lugar de perfeita tranquilidade e, embora nenhum deles ousasse admitir tal desumanidade, quase lamentaram quando souberam que o pai não tardaria a voltar para casa.
Paul tinha agora catorze anos e andava à procura de um emprego. Era um rapaz baixo e franzino, de cabelo castanho-escuro e olhos azul-claros. O seu rosto já tinha perdido os traços arredondados da infância e parecia-se agora com o de William, mais duro, quase austero, e com extraordinária mobilidade. Em geral, parecia estar sempre atento, cheio de vida e de ternura; umas vezes, o seu sorriso, igualzinho ao da mãe, abria-se pronto e encantador; outras, quando algum obstáculo lhe travava o passo ao espírito, a expressão do seu rosto adquiria fealdade e estupidez. Era um daqueles rapazes que se portam como palhaços desajeitados quando não são compreendidos ou sentem que não lhes dão o justo valor, mas que, com igual rapidez se transformam em criaturas adoráveis à primeira prova de ternura.
O primeiro contacto com as coisas era sempre penoso para ele. Aos sete anos tivera de se sujeitar à tortura de entrar para a escola. Mas depois até gostava. E agora, sentindo que era chegada a hora de enfrentar a vida, atravessava crises de avassaladora timidez. Pintava com bastante talento e inteligência para a sua idade, e sabia um pouco de francês, alemão e matemática, coisas que Mr. Heaton lhe havia ensinado. Como a mãe dizia, não era suficientemente forte para o trabalho manual, e também não se interessava por fazer coisas com as suas próprias mãos, preferindo correr, passear pelos campos, ler ou pintar.
– Que queres ser na vida? – perguntava-lhe a mãe.
Não fazia a menor ideia. Teria gostado de continuar a pintar, mas isso nem lhe passou pela cabeça, pois era impossível. Não havia nada que lhe interessasse muito fazer. Mas agora era urgente que começasse a ganhar dinheiro. E, uma vez que não achava que o seu trabalho valesse muito em termos monetários, e sabia que um homem ganhava em qualquer emprego trinta ou trinta e cinco xelins por semana, respondia invariavelmente:
– Qualquer coisa.
– Isso não é resposta – dizia Mrs. Morel.
Mas era a única resposta verdadeira que ele podia dar. As suas ambições, em termos materiais, eram ganhar tranquilamente os seus trinta ou trinta e cinco xelins por semana algures perto de casa, e depois, quando o pai morresse, ter uma casinha no campo, onde viveria com a mãe feliz para sempre, a pintar e a passear o quanto lhe apetecesse. Por agora, era este o seu programa. Tinha-se porém em grande conta, julgando as outras pessoas em relação a si próprio e classificando-as impiedosamente. Às vezes, pensava que talvez pudesse vir a ser um pintor a sério, mas por enquanto não queria alimentar tal sonho.
– Então tens de procurar nos anúncios do jornal – disse a mãe.
Paul ficou a olhar para ela. Parecia-lhe nova humilhação e mais uma tortura a suportar. Mas não disse nada. Desde manhãzinha só tinha um pensamento a martelar-lhe na cabeça: «Tenho de ir ver os anúncios de empregos.»
Este pensamento ensombrava-lhe a manhã e matava-lhe a alegria de viver. Sentia o coração apertar-se-lhe num nó.
Por fim, às dez horas, lá foi ele. As pessoas consideravam-no um rapaz envergonhado, reservado. Ao subir a rua ensolarada, tinha a sensação de que todos os que encontrava iam pensar: «Lá vai ele para a sala de leitura da Cooperativa, para procurar um emprego no jornal. Não consegue arranjar nada. Acho que está a viver à custa da mãe.» Lá chegado, subiu furtivamente a escadaria de pedra por detrás da loja de tecidos e espreitou para a sala de leitura. Geralmente havia por lá uma ou duas pessoas: velhos desocupados, já sem préstimo, ou mineiros «de baixa». Entrou muito retraído, e ficou deveras aflito quando eles levantaram a cabeça; sentou-se à mesa e fingiu estar a passar os olhos pelas notícias. Sabia no que eles estavam a pensar: «O que fará um miúdo de treze anos numa sala de leitura, agarrado a um jornal?» E isso magoava-o.
Depois, pôs-se a olhar lá para fora, pensativo. E sentia-se já presa do industrialismo. Por cima do velho muro fronteiriço de tijolo vermelho grandes girassóis miravam divertidos as mulheres que passavam apressadas, levando qualquer coisa para o almoço. O vale estava coberto de searas radiantes batidas pelo sol. Lá no meio, duas minas agitavam os seus finos penachos de vapor. Nas encostas distantes avistavam-se as florestas de Aldersley, tão cerradas e fascinantes. E logo o coração lhe esmoreceu. Sentia-se aprisionado. Chegara ao fim a vida em liberdade naquele vale que tanto amava.
A carroça da cerveja vinha de Keston estrada acima, carregada de barris – quatro de cada lado – apertados que nem feijões numa vagem. O carroceiro, encarrapitado no seu trono e oscilando pesadamente no assento, não passou a grande distância dos olhos de Paul. O cabelo do homem, de cabeça pequena e fusiforme, estava quase todo branco, descorado pelo sol, e nos braços grossos e avermelhados, balouçando lassamente sobre o avental de estopa, cintilavam pêlos também brancos. A face afogueada reluzia, quase adormecida de tanto sol. Os cavalos, castanhos e elegantes, seguiam a seu bel-prazer, mostrando serem eles os senhores da situação.
Paul queria ser estúpido. «Quem me dera», pensou de si para si, «ser gordo como ele e passar a vida estirado ao sol como um cão. Quem me dera ser um porco e condutor duma carroça de cerveja.»
Depois, vendo a sala finalmente vazia, copiou rapidamente um anúncio para um bocado de papel, e depois outro, e saiu à socapa, sentindo-se imensamente aliviado. A mãe examinou os anúncios.
– Sim – disse ela. – Podes tentar.
William tinha mandado uma carta admiravelmente redigida em linguagem comercial e Paul copiou-a com algumas alterações. A caligrafia do rapaz era execrável, pelo que William, que fazia tudo bem feito, fervia de impaciência.
O irmão mais velho estava a ficar muito pretensioso, ao descobrir que em Londres se podia dar com homens de uma classe muito superior à dos seus amigos de Bestwood. Alguns dos seus colegas do escritório tinham estudado leis e estavam a fazer uma espécie de estágio. William, dado o seu feitio extrovertido, fazia sempre amigos por onde passava e não tardou que começasse a frequentar a casa de pessoas que, em Bestwood, teriam olhado com desdém para o inacessível gerente do banco local e tratado com indiferença o próprio pastor. Começou, por isso, a achar-se um homem importante e até se admirava da facilidade com que se tinha tornado um cavalheiro.
As cartas que escrevia à mãe ilustravam bem a satisfação que sentia.
«The Myrmidons
Limpsfield
Mater querida,
É uma da manhã. Imagine o seu filho a escrever-lhe sentado numa velha cadeira de carvalho, com um candeeiro eléctrico dos mais modernos à frente dele, em cima da mesa. Vestido a rigor, com os botões de punho que lhe ofereceu quando fez 21 anos e achando-se o melhor do mundo. Só queria que a mãe o pudesse ver. Em comparação, Salomão, em toda a sua glória, deve ter-se sentido mal vestido.
Estou a passar o fim-de-semana com o Loosemore, e aproveitei a oportunidade para lhe escrever. ...»
A mãe ficou contente de o ver tão satisfeito. O seu quarto em Walthamstow era tão deprimente. Mas agora as cartas do filho deixavam transparecer uma súbita febre de viver. Afectado por tantas e tão súbitas mudanças, não tinha os pés assentes na terra, e parecia deixar-se arrastar vertiginosamente pelo turbilhão da sua nova vida. A mãe temia por ele. Sentia que ele se estava a perder. Tinha ido a um baile, ido ao teatro, andado de barco no rio, saído com os amigos; mas ela sabia que, depois, tinha ficado até altas horas acordado no quarto gélido a estudar latim, pois queria subir no escritório e estudar leis o mais depressa possível. Agora, nunca mandava dinheiro à mãe. A sua nova vida levava-lhe o pouco que ganhava. Ela também não queria que ele lho mandasse, excepto às vezes, quando as dificuldades eram maiores e dez xelins teriam sido o suficiente para a tirar de apuros. Mas continuava a sonhar com o que o filho faria com ela a apoiá-lo. Nem por um segundo seria capaz de admitir toda a angústia que passava por causa dele.
Entretanto, William começara a falar muito numa rapariga que tinha conhecido num baile, uma morena muito bonita e muito nova, uma verdadeira senhora, por quem todos os homens andavam perdidos de amor.
«Duvido que te perdesses por ela, meu filho, se não visses todos os outros perdidos também. As multidões fazem-nos sentir seguros e vaidosos. Mas tem cuidado, e pensa como te sentirás quando te vires sozinho e triunfante...»
William ficou ofendido com os reparos da mãe e não desistiu dos seus intentos. Tinha levado a rapariga a dar um passeio no rio: «Se a mãe a visse, ia entender o que eu sinto. Alta, elegante, com uma pele transparente, a mais transparente de todas as peles de azeitona, cabelo negro de azeviche e uns olhos esverdeados tão brilhantes e trocistas como luzes reflectidas à noite sobre as águas. Admito que seja um pouco mordaz enquanto não a conhecer. E, além disso, veste-se como as mulheres mais elegantes de Londres. Devo dizer-lhe que, quando ela passeia em Piccadilly com o seu filho, ele, por mais que se esforce, não aparenta nem metade do orgulho que sente.»
Mrs. Morel lia e perguntava-se no seu íntimo, se o filho não andaria a passear em Piccadilly com uma mulher apenas elegante e bem vestida, em vez de uma mulher de quem se sentisse próximo. Mas felicitou-o, no seu modo reticente. E enquanto estava encostada ao tanque, a mãe, preocupada, pensava no filho. Via-o casado com uma mulher cara e elegante e um pequeno ordenado, levando a vida conforme podia, numa casa feia e acanhada dos subúrbios. «E daí...», pensava ela, «é por certo tolice minha... vontade de arranjar complicações.» No entanto, o seu coração raramente sossegava, não fosse William fazer alguma asneira.
Entretanto, Paul foi chamado para se apresentar numa firma de acessórios ortopédicos, a Thomas Jordan, em Nottingham, Spaniel Row, número 21. Mrs. Morel estava radiante.
– Estás a ver! – exclamou, de olhos brilhantes. – Só escreveste quatro cartas e recebes resposta logo à terceira. Tens sorte, meu filho, como eu sempre disse.
Paul olhou para a perna de pau adornada com meias elásticas e outros acessórios que constituía o logotipo do papel timbrado de Mr. Jordan, e ficou alarmado. Até aí nem sabia que existiam meias elásticas. Parecia-lhe sentir o mundo dos negócios com o seu sistema de regras e valores e a sua impessoalidade, e isso atemorizava-o. Parecia-lhe também monstruoso que se pudesse fazer negócio com pernas de pau.
Numa bela terça-feira, manhã cedo, mãe e filho saíram juntos de casa. Era Agosto e o calor abrasava. Paul caminhava com o coração aperreado. Mil vezes a dor física, por maior que fosse, a este sofrimento irracional de se ver exposto perante estranhos, sujeito a ser aceite ou rejeitado. No entanto, conversava animadamente com a mãe. Jamais lhe confessaria o sofrimento que estas situações lhe causavam e de que ela só em parte suspeitava. Ia alegre como um passarinho. Postou-se diante da bilheteira, em Bestwood, e ficou a ver a mãe tirar o dinheiro para os bilhetes. Ao reparar nas luvas pretas que trazia, quase de criança e já muito velhas, com que retirou algumas moedas da carteira também coçada, o seu coração contraiu-se de dor e amor por ela. Ela estava muito excitada e bem-disposta, e ele sofria antecipadamente, pois sabia que ela se iria pôr a falar em voz alta diante dos outros passageiros.
– Olha para aquela vaca. Parece tola! A andar às voltas como se estivesse no circo.
– Deve ser algum moscardo – disse Paul, quase a bichanar.
– Algum quê? – perguntou ela, desabrida, sem complexos.
Depois, ficaram calados, pensativos. Paul não conseguia deixar de sentir a presença dela à sua frente. Nisto, os olhos de ambos encontraram-se e ela sorriu-lhe – um sorriso único, íntimo, belo e cintilante, cheio de amor. Em seguida, puseram-se a olhar pela vidraça. Mas ela voltou-se para ele de repente e disse, de forma bem audível:
– Sinceramente, acho que vais conseguir. E, se não conseguires, enfim, não te podes queixar só por não teres conseguido o terceiro emprego a que concorreste, pois não? Mas eu acho que consegues. És um rapaz de sorte, embora não a mereças – Assim falava ela, para todos ouvirem!
O comboio transpôs com lentidão as dezasseis milhas que os separavam do destino, e a viagem terminou. Mãe e filho meteram por Station Street com o entusiasmo de amantes a viver uma aventura. Em Carrington Street, pararam para contemplarem do parapeito as barcaças que passavam no canal.
– Parece mesmo Veneza – disse ele, vendo o sol reflectido na água entre os muros altos das fábricas.
– Talvez – respondeu ela, sorrindo. Ficaram deslumbrados com as lojas.
– Estás a ver aquela blusa? – disse ela. – Ficava mesmo bem à nossa Annie. E só custa uma libra, onze xelins e três dinheiros. Não é barato?
– E é toda bordada – disse o filho.
– É verdade.
Tinham ainda muito tempo, e por isso não precisavam de se apressar. Aos seus olhos, a cidade era estranha e fascinante. Mas o rapaz, apreensivo, era como se tivesse um nó no estômago. Apavorava-o a entrevista com Thomas Jordan.
Eram quase onze horas pelo relógio da igreja de São Pedro. Viraram para uma rua estreita que ia dar ao castelo. Era uma rua sombria, de casas velhas, com lojas baixas e soturnas e as portas dos prédios pintadas de verde-escuro, com grandes argolas de latão e degraus amarelo-ocre avançando sobre o passeio; ao lado, uma outra loja, de outros tempos, cuja montra diminuta parecia um olho astuto e semicerrado. Mãe e filho caminhavam devagar, olhando para as portas, à procura do letreiro Thomas Jordan & Filho. Era como caçar em plena coutada. A excitação atingia o auge.
De súbito, avistaram uma entrada ampla e escura, com os nomes de várias firmas afixados na parede e, entre eles, o da Thomas Jordan.
– É aqui – disse Mrs. Morel. – Mas... onde é que será?
Olharam em volta. De um lado, uma fábrica de papel, lúgubre e bizarra; do outro, o Commercial Hotel.
– É ali ao fundo – informou Paul.
Aventuraram-se pela arcada, como se penetrassem na bocarra de um dragão, indo desembocar num pátio amplo, semelhante a um poço, completamente rodeado de edifícios. O chão estava pejado de palha, caixas e cartões. O sol batia em cheio num caixote de onde saíam palhas que se espalhavam pelo chão como fios de ouro. Mas, fora isso, o lugar era escuro como uma mina. Havia várias portas e dois lanços de escadas. Mesmo em frente, numa porta suja e envidraçada, ao cimo da escada, ressaltavam as palavras fatídicas Thomas Jordan & Filho – Acessórios Ortopédicos. Mrs. Morel foi à frente, seguida pelo filho. Ao subir ao patíbulo, Carlos I tê-lo-á feito certamente com o coração mais leve do que Paul Morel ao subir atrás da mãe os degraus imundos que conduziam à tal porta também imunda.
Mrs. Morel empurrou a porta e ficou agradavelmente surpreendida. Diante dela estendia-se um imenso armazém com embalagens de papel pardo espalhadas por todo o lado, e os empregados, de mangas arregaçadas, movimentavam-se de um lado para o outro com um ar perfeitamente descontraído. A luz não feria a vista, as embalagens em papel brilhante tornavam-se luminosas, os balcões eram de madeira escura. A atmosfera era silenciosa e acolhedora. Mrs. Morel deu dois passos em frente e aguardou. Paul colocou-se atrás da mãe. Ela trazia o seu chapéu de domingo, com o véu preto descido sobre a cara, e ele a gola branca larga, que todos os rapazes usavam, e um fato de corte à caçador.
Um dos empregados olhou para eles. Era alto e magro, de rosto miúdo e olhar vivo e atento. Depois, os seus olhos percorreram a sala até à outra extremidade, onde se via um gabinete envidraçado; só então se aproximou. Não disse uma palavra, inclinou-se apenas perante Mrs. Morel, numa atitude prestável e interrogativa.
– Poderei falar com Mr. Jordan? – pediu ela.
– Vou já chamá-lo – respondeu o jovem.
Dirigiu-se ao gabinete envidraçado. Um homem idoso, de suíças brancas e faces coradas levantou os olhos da secretária. Paul achou-o parecido com um lulu da Pomerânia. Depois, o homenzinho atravessou o armazém para vir ao encontro deles. Tinha pernas curtas, era atarracado e envergava um casaco de alpaca. E lá vinha ele, de orelha arrebitada, por assim dizer, com ar resoluto e olho inquiridor.
– Bom dia! – disse, hesitante, dirigindo-se a Mrs. Morel, sem saber se se tratava ou não de uma cliente.
– Bom dia... Vim com o meu filho... Paul Morel... O senhor pediu-lhe que se apresentasse esta manhã.
– Acompanhem-me – disse Mr. Jordan, com uma frieza e desenvoltura que ele acreditava serem apropriadamente empresariais.
Mãe e filho acompanharam o industrial e entraram numa salinha desarrumada, com cadeirões de couro negro e já muito lustroso de tanto ser usado pelos clientes. Em cima da mesa estava uma pilha de fundas para hérnias – umas bandas de couro amarelo, pré-lavado, atadas em molho. Pareciam novinhas em folha. Paul sentiu o cheiro a couro lavado e perguntou-se o que seriam aquelas coisas. Estava tão atordoado que só reparava no aspecto exterior do que o rodeava.
– Sente-se! – disse Mr. Jordan, ríspido, convidando Mrs. Morel a sentar-se numa cadeira de crina. Ela sentou-se à beirinha, numa posição instável. O homenzinho vasculhou então em cima da secretária e pegou numa folha de papel.
– Foste tu que escreveste esta carta? – desferiu ele, intempestivo, colocando diante dos olhos de Paul um papel que ele logo reconheceu como sendo a carta que mandara.
– Fui, sim – respondeu Paul.
De momento, o rapaz era dominado por dois sentimentos: em primeiro lugar, sentia-se culpado por estar a mentir, uma vez que a carta tinha sido escrita por William; e, em segundo, estranhava como a sua carta podia parecer tão diferente na mão avermelhada e sapuda daquele homem de quando estava em cima da mesa da cozinha. Era como se uma parte dele mesmo se tivesse transviado, e desagradava-lhe a maneira como o homem pegava na carta.
– Onde aprendeste a escrever? – disse o velho, com brusquidão.
Paul limitou-se a olhar para ele envergonhado, sem responder.
– Ele escreve muito mal – interrompeu Mrs. Morel, apologética, levantando o véu em seguida. Paul ficou furioso por a mãe não mostrar mais orgulho perante este homem tão comesinho, mas, ao mesmo tempo, adorou ver o seu rosto sem véu.
– E dizes que também sabes francês? – inquiriu o homenzinho, ríspido, como sempre.
– Sim – respondeu Paul.
– Em que escola andaste?
– Na primária.
– E foi lá que aprendeste?
– Não... eu... – o rapaz ruborizou, e não adiantou mais nada.
– Foi o padrinho que lhe deu umas lições – disse Mrs. Morel, quase numa súplica, e com ar distante.
Mr. Jordan hesitou. E, então, mantendo o seu ar agressivo – parecia ter as mãos sempre prontas a agir – tirou do bolso uma outra folha de papel, desdobrou-a ruidosamente e entregou-a a Paul.
– Ora lê lá isto – disse.
Era uma carta em francês, escrita à mão, numa caligrafia estrangeira, esguia e incerta, que o rapaz não conseguia decifrar. Paul ficou parado a olhar para o papel, como se hipnotizado.
– «Monsieur» – começou ele, olhando em seguida muito aflito para Mr. Jordan.
– É a... é a...
Queria dizer «letra», mas já nem esta palavra conseguia pronunciar. Sentindo-se um perfeito idiota, e furioso com Mr. Jordan, voltou-se em desespero para o papel.
– «Exmo. Senhor... Queira fazer o favor de me enviar»... hum... hum... não consigo perceber a... hum... «dois pares... gris fil bas... de meias cinzentas de algodão... hum... hum... sans... sem...» hum... não consigo perceber a... hum... «doigts... dedos»... hum... não consigo perceber a...
Queria dizer «letra», mas a palavra teimava em não sair. Vendo-o atrapalhado, Mr. Jordan tirou-lhe o papel da mão e leu:
– «Queira fazer o favor de me enviar na volta do correio dois pares de meias cinzentas de algodão, sem os dedos dos pés...»
– Bem – atalhou Paul prontamente – doigts quer dizer apenas dedos... duma maneira geral...
O homenzinho olhou para ele. Tanto se lhe dava que doigts quisesse ou não dizer simplesmente dedos, o que ele sabia era que, para os fins em vista, queria dizer dedos dos pés.
– Só dedos, podia ser das mãos; com que então, dedos das mãos numas meias?! – ripostou Mr. Jordan.
– Bem, a palavra francesa quer mesmo dizer só dedos – teimava o rapaz.
Paul detestava aquele homenzinho que tentava fazer dele parvo. E Mr. Jordan olhava para aquele rapaz pálido, estúpido e atrevido à sua frente, sentado, muito calado, com aquele ar reservado dos pobres que têm de depender dos favores de outras pessoas.
– Quando é que ele pode começar a trabalhar? – perguntou o industrial.
– Bem... – disse Mrs. Morel –, quando o senhor desejar. Ele já deixou a escola.
– E vai continuar a viver em Bestwood?
– Sim... mas pode estar... chegar à estação... a um quarto para as oito...
– Hum!
Paul acabou por ser contratado como aspirante, a ganhar oito xelins por semana. O rapaz não abriu mais a boca depois de teimar que doigts era mesmo dedos (das mãos). Saiu atrás da mãe e desceu as escadas. Mrs. Morel olhou para ele com os seus olhos azuis iluminados de amor e contentamento.
– Acho que vais gostar do emprego – vaticinou.
– Doigts quer dizer só dedos, mãe... e com aquela letra... Eu não percebia a letra.
– Não te preocupes, meu filho... Verás que ele é boa pessoa, e, além disso, não vais ter de contactar muito com ele... Não achaste simpático aquele empregado mais novo?... Tenho a certeza de que vais gostar dos teus colegas.
– Mas a mãe não achou Mr. Jordan um homem grosseiro? Será ele o dono daquilo tudo?
– Cá para mim, começou por ser operário e depois singrou na vida – disse Mrs. Morel. – Não deves dar tanta importância às pessoas. Elas não te querem ofender... é a maneira de falarem... estás sempre a pensar que as pessoas te querem ofender... mas olha que não querem.
Estava um dia cheio de sol. No grande largo deserto do mercado, o céu azul iluminava-se e as pedras de granito da calçada brilhavam cintilantes. As lojas de Long Row estavam mergulhadas na penumbra e a sombra enchia-se de cor. No sítio onde os trens puxados a cavalos atravessavam o mercado, erguia-se uma fiada de bancas de fruta, com os frutos luzindo ao sol – maçãs e montes de laranjas avermelhadas, rainhas-cláudias e bananas. Quando mãe e filho passaram, sentiram no ar o odor morno da fruta. A pouco e pouco, os sentimentos de raiva e ignomínia de Paul foram soçobrando.
– Onde havemos de ir almoçar? – perguntou a mãe.
– E se comprássemos qualquer coisa e fôssemos comer para o Arboretum?
– Não. Nada disso.
– Então vamos ao Morley.
– O chá que lá servem é requentado. Não... tu conseguiste o emprego... vamos fazer uma refeição como deve ser.
Aquilo era para eles uma verdadeira extravagância. Paul só tinha ido a uma casa de pasto uma ou duas vezes na vida, e, mesmo assim, só para tomar chá e um pãozinho. A maior parte dos habitantes de Bestwood achavam que a única coisa para que tinham dinheiro quando iam a Nottingham era chá e pão com manteiga, ou, quando muito, carne afiambrada. Uma refeição cozinhada era um autêntico luxo, e Paul sentia-se até culpado. Encontraram um lugar que lhes pareceu bastante acessível. Porém, quando Mrs. Morel consultou a lista, caiu-lhe a alma aos pés, tal era o preço dos pratos. Mandou vir, por isso, empadas de rim e batata, que era o mais barato.
– Não devíamos ter vindo aqui, mãe – disse Paul.
– Deixa lá – respondeu ela. – Nunca mais cá voltamos.
Depois insistiu para que o filho, que era guloso, comesse uma pequena torta de mirtilos.
– Não quero, mãe – disse ele.
– Queres, sim – teimou a mãe. – Claro que queres.
E pôs-se a ver se chamava a criada. Mas a criada andava toda atarefada e Mrs. Morel não a quis importunar nesse momento, pelo que ficaram os dois à espera de que a rapariga se dignasse atendê-los, enquanto ela andava por ali a cirandar, fazendo olhinhos aos clientes.
– Que desavergonhada! – disse Mrs. Morel, virando-se para Paul. – Olha para ela, a servir pudim àquele homem, e ele chegou muito depois de nós.
– Não tem importância, mãe – disse Paul.
Mrs. Morel estava irritada, mas era pobre de mais e a refeição demasiado modesta para ter a coragem de reclamar os seus direitos imediatamente. E, assim, fartaram-se de esperar.
– Vamos embora, mãe? – sugeriu Paul. Mrs. Morel levantou-se. A rapariga ia a passar.
– Trazia-nos uma torta de mirtilos, por favor? – disse Mrs. Morel em voz suficientemente audível.
Mas a rapariga virou-se e olhou para ela com insolência.
– É para já – retorquiu.
– É que já esperámos um bom bocado – disse Mrs. Morel. A rapariga não tardou com a torta. Mrs. Morel pediu a conta secamente.
Paul tinha vontade de se enfiar pelo chão dentro. Pasmava perante a dureza da mãe. Sabia que haviam sido anos e anos de luta que a tinham ensinado a reclamar os seus direitos, por mais insignificantes que fossem, pois ela era tão tímida como ele.
– É a última vez que ali vou para comer seja o que for! – exclamou ela, já na rua, satisfeita por se ver livre daquele pesadelo.
– Vamos dar uma vista de olhos ao Keep’s e ao Boot’s, e a mais um ou dois armazéns, está bem?
Teceram comentários sobre as gravuras expostas para venda, e Mrs. Morel queria por força comprar ao filho um pequeno pincel de pêlo de marta, com que ele andava a sonhar, mas Paul recusou liminarmente mais esta generosidade, e foi esperando por ela estoicamente à porta dos fanqueiros e dos retroseiros, morto de tédio, mas feliz por ver a mãe tão entretida. E o passeio continuou.
– Veja só aquelas uvas pretas! – disse Paul. – Até fazem crescer água na boca... Há anos que ando desejoso de prová-las, mas ainda vou ter de esperar algum tempo para as poder comprar.
A mãe parou deliciada à porta da florista, a aspirar os aromas.
– Oh!... Oh!... Não é simplesmente uma maravilha?
Apesar de a loja estar na penumbra, Paul vislumbrou uma jovem elegante, vestida de preto, a espreitar por detrás do balcão, com ar divertido.
– Estão a olhar para si – disse Paul, tentando arrastar a mãe dali para fora.
– Mas... o que é aquilo? – exclamou ela, recusando-se a sair de onde estava.
– Goivos! – respondeu ele, cheirando o ar apressadamente. – Veja, têm um alguidar cheio.
– Pois têm... vermelhos e brancos!... Esta agora... nunca reparei que os goivos pudessem cheirar assim! – E, para grande alívio do rapaz, a mãe saiu da porta, mas só para se ir pôr diante da montra.
– Paul! – exclamou ela, virando-se para o filho, que tentava esquivar-se ao olhar da tal jovem elegante toda de preto, a empregada da loja. – Paul! Anda ver isto!
Ele aproximou-se relutante.
– Olha aqueles brincos-de-princesa! – disse ela, apontando.
– Humm! – fez ele, mostrando-se interessado. – Parece que as flores vão cair a todo o momento; são tão grandes e tão pesadas.
– E tantas! – exclamou a mãe.
– E já viu a maneira como se inclinam, com os filamentos e os nódulos...?
– Pois é! – disse ela. – São lindas!
– Sempre gostava de saber quem será que as vai comprar? – disse ele.
– Não faço ideia! – respondeu ela. – Nós não somos.
– Na nossa sala morriam logo.
– É, aquele buraco horrível, gélido e sem réstia de sol... mata qualquer planta que lá se ponha... e a cozinha atabafa-as.
Fizeram algumas compras e seguiram para a estação. Olhando ao longo do canal, pelos intervalos sombrios dos edifícios, avistaram o castelo, alcandorado no seu promontório negro coberto de vegetação, miraculosamente iluminado por um sol suave e radioso.
Vai ser tão bom vir dar um passeio à hora do almoço! – disse Paul. – Posso andar por aqui e ver tudo isto. Vou adorar.
– Vais, sim, meu filho – concordou a mãe.
Paul tinha passado uma tarde agradabilíssima em companhia da mãe. Chegaram a casa já a tarde esmorecia, feliz, ardente, e também cansada. Na manhã seguinte, o rapaz preencheu a requisição para o passe de comboio e levou-a à estação. Quando voltou, estava a mãe a começar a lavar o chão. Ele sentou-se com as pernas cruzadas em cima do sofá.
– O homem diz que o passe chega no sábado.
– E quanto custa? – perguntou ela.
– Mais ou menos uma libra e onze xelins.
A mãe continuou a lavar o chão em silêncio.
– Acha caro? – perguntou Paul.
– Não mais do que eu pensava – respondeu ela.
– E eu vou ganhar oito xelins por semana... – disse ele.
A mãe não respondeu, continuando com o seu trabalho. Por fim, disse:
– O William prometeu-me, quando foi para Londres, que me mandava uma libra por mês. E só me mandou dez xelins... por duas vezes. E sei que agora não tinha um tostão, se eu lho pedisse. Não que eu queira o dinheiro dele, mas nesta altura ficava-lhe bem dar uma ajuda para o passe, embora eu não esteja a contar com isso.
– Ele ganha muito bem – disse Paul.
– Cento e trinta libras. Mas os filhos são todos iguais. Uns mãos largas nas promessas, mas quando se trata de as cumprirem... é o que se vê.
– O William gasta mais de cinquenta xelins por semana só com ele – disse Paul.
– E eu mantenho esta casa com menos de trinta – retorquiu a mãe. – E ainda tenho de inventar o dinheiro para os extras. Mas eles, depois de saírem de casa, querem lá saber de ajudar a mãe. Mais depressa o gastava com aquela doidivanas toda aperaltada.
– Ela há-de ter dinheiro, se é assim tão fina – disse Paul.
– Pois havia, mas não tem. Eu já lhe perguntei... E eu sei bem que ele não lhe compra uma pulseira de ouro sem razão. A mim nunca ninguém me comprou uma pulseira de ouro.
– Ora, a mãe também nunca quis nenhuma.
– Lá isso é verdade... Mas, se quisesse, era o mesmo.
– O pai nunca lhe comprou nada?
– Comprou... um cartucho de maçãs... e foi tudo... todo o dinheiro que gastou comigo, antes de nos casarmos.
– Porquê?
– Porque eu era uma parva, e quando ele me dizia: «O que queres qu’eu te compre?», eu respondia: «Nada.» Ele lembrava-se lá de me trazer alguma coisa! E o William só ia comprar uma pulseira de ouro para uma espertalhona cheia de nove horas.
– Aposto que ela já tem muitas – disse o rapaz.
– Tem muitas, dizes tu? Mas ele também tinha de lhe dar uma, para parecer importante. Ele quer lá saber! Eu pude sustentá-lo enquanto ele ganhava uma miséria, mas depois, mal ele se apanha com dinheiro que se veja, e a gente pensa que vai ter um pouco de paz e segurança, ele desanda, e lá começa a luta de novo, sem ter a quem recorrer quando é preciso alguma coisa, sem ninguém que nos estenda a mão.
– A mãe devia pedir-lho.
– E depois ele tinha de o ir pedir emprestado. Isso também eu faço, se tivermos de chegar aí. Tenho a certeza, de que não vou ter de lhe ficar a dever favores. E ele não precisa de me escrever a gabar-lhe os encantos e a falar das óperas a que vão assistir. Nem quero saber. Ele importa-se lá comigo... Eles querem lá saber! Têm a vida deles para viver, fazem o que lhes apetece, e eu... sim... o que represento eu para ele?... Um estorvo nunca hei-de ser, nem lhe hei-de pedir nada... E espero que o teu pai viva muito tempo, e que seja eu a ir à frente, pois é muito triste ter de viver à custa dos filhos.
– Oh, mãe... não tarda, eu começo a ganhar dinheiro, e a mãe pode ficar com tudo, porque eu nunca me hei-de casar.
– Essa já é velha, o William também dizia o mesmo. Dá tempo ao tempo e vais ver como a música é outra.
– Não vai ser, não.
– Então está bem.
E continuou a lavar o chão, em silêncio.
– Que vai fazer? – perguntou Paul.
– Acho que vou ter de meter um vale na Cooperativa... e isso vai sair da minha parte e vou receber menos dividendos. Não me apetecia nada ir lá buscar mais dinheiro outra vez.
O rapaz sentia-se muito infeliz, muito aborrecido. Era ele que precisava do dinheiro, e isso deixava-o amargurado.
– Bem – disse Paul –, em breve serei aumentado, e a mãe pode ficar com o dinheiro todo.
– Tudo isso é muito bonito – disse a mãe. – Mas não é assim que arranjo uma libra e trinta xelins até sábado de manhã.
William fazia progressos com a sua Cigana, como ele lhe chamava. Pedira à rapariga – uma tal Louisa Lily Denys Western – uma fotografia para mandar à mãe. A fotografia chegou: era uma morena bonita, de perfil, com um sorriso afectado, e que bem podia estar completamente nua, pois não se vislumbrava qualquer peça de roupa no retrato, só o colo desnudo.
«Sim senhor», escreveu Mrs. Morel ao filho, «a fotografia da Louie é deveras impressionante e vê-se que deve ser muito atraente. Mas achas, meu filho, que foi sensato e elegante da parte dela dar ao namorado aquela foto para ele mandar à mãe, e pela primeira vez? Tem uns ombros lindos, sem dúvida, como mandaste dizer. Mas eu não estava à espera de os ver tão bem logo da primeira vez...»
Morel encontrou a fotografia na sala, em cima da cómoda, e veio até à cozinha com ela presa entre o polegar e o indicador.
– Quem vem a ser esta? – perguntou ele à mulher.
– É a rapariga com quem o nosso William anda de namoro – respondeu Mrs. Morel.
– Hum! Ganda brasa, pelo menos parece... e num lhá-de fazer bem nenhum... Quem é ela?
– Chama-se Louisa Lily Denys Western.
– Muito prazer! – exclamou o mineiro. – É alguma artista?
– Não, não é. Ele diz que é uma senhora da sociedade.
– Não hajam dúvidas – exclamou o pai, sem tirar os olhos da fotografia. – Com qu’intão uma senhora? E há-de ter muito dinheiro, pra manter as aparências.
– Não tem, não... vive com uma tia velha, que ela detesta, e aceita tudo o que lhe dão.
– Hum! – disse Morel, pousando a fotografia. – Atão ele foi um gand’otário em ter-se metido c’uma tipa dessas.
«Querida Mater», respondeu William. «Lamento que não tenha gostado da fotografia. Nunca me passou pela cabeça, quando lha mandei, que pudesse achá-la pouco decente. Mas já disse à Ciganita que o retrato não correspondia exactamente à sua noção de decoro e decência, e ela vai mandar-lhe outro, que eu espero lhe agrade mais. Ela está sempre a ser fotografada. Na verdade, os fotógrafos estão sempre a pedir-lhe insistentemente para ela se deixar fotografar, absolutamente de graça.»
A nova fotografia acabou por chegar, acompanhada de um bilhete idiota da rapariga. Desta vez, a jovem estava com um ves-tido de noite em cetim preto, de decote quadrado, com mangas curtas e tufadas e folhos de renda preta cobrindo-lhe os braços elegantes.
– Será que só usa vestidos de noite? – disse Mrs. Morel, sarcasticamente. – Tenho a certeza de que eu devia estar impressionada.
– Está a ser antipática, mãe – disse Paul. – Eu acho a primeira fotografia, a dos ombros nus, bem bonita.
– Achas? – disse Mrs. Morel. – Pois olha, eu não.
Na segunda-feira de manhã, o rapaz levantou-se às seis horas, para começar a trabalhar. No bolso do colete levava o passe do comboio que tanta amargura representava. Gostava de olhar para ele, todo às riscas amarelas. A mãe metera-lhe o almoço num cestinho de verga com tampa, e ele saiu de casa quando faltava um quarto para as sete, para apanhar o comboio das sete e um quarto. Mrs. Morel veio despedir-se do filho ao portão.
A manhã estava imaculada. Do grande freixo, pendiam os frutos verdes e delgados – as crianças chamavam-lhes «pombinhos» – cintilando alegremente, soprados pela brisa matinal, suspensos sobre os jardins das vivendas. O vale estava coberto de uma névoa escura, mas brilhante, através da qual luziam as searas já maduras, e em contacto com a qual logo se condensava o vapor que se elevava da mina de Minton. De quando em vez, o vento passava em baforadas. Paul espraiou a vista para lá das altas florestas de Aldersley, onde os campos brilhavam imensos, e nunca o apelo do lar fora tão forte.
– Adeus, mãe – disse ele, sorrindo, mas com a alma entristecida.
– Adeus – respondeu ela, com alegria e ternura na voz.
Mrs. Morel ficou parada na estrada, com o seu avental branco, vendo o filho atravessar os campos. Era um rapaz baixo e robusto, cheio de vida. Ao vê-lo caminhar pelos campos fora, sentiu que ele seria capaz de chegar onde quisesse. Pensou no William. Esse teria saltado a cerca em vez de passar pela cancela. Esse estava em Londres a viver à grande. E agora Paul ia trabalhar para Nottingham. Tinha dois filhos lançados no mundo. Podia pensar em dois lugares, dois grandes centros industriais, e sentir que tinha posto um homem em cada um, e que esses homens seriam capazes de conseguir tudo o que ela ambicionava; provinham dela, eram parte dela, e as suas vitórias seriam também as dela. Durante toda a manhã só pensou em Paul.
Às oito horas, Paul subiu as escadas lúgubres da Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan e deteve-se timidamente junto da primeira prateleira que encontrou cheia de embalagens, à espera de que alguém viesse ao seu encontro. O lugar ainda não tinha acordado. Os balcões estavam cobertos de espessas camadas de poeira. Ainda só tinham chegado dois funcionários. Paul ouvia-os conversar a um canto, enquanto tiravam os casacos e arregaçavam as mangas da camisa. Eram oito e dez. A pontualidade não era evidentemente a preocupação dominante no local. Paul continuou a ouvir as vozes dos dois funcionários. Depois, ouviu alguém tossir e viu no gabinete ao fundo do armazém um empregado já velho e caduco, com um bonezinho redondo de veludo preto bordado a verde e vermelho, a abrir cartas. Paul continuou à espera.
Um dos empregados mais novos dirigiu-se ao velhote e cumprimentou-o efusivamente e em voz muito alta. Estava visto que o velho «chefe» era surdo. A seguir, o jovem voltou para o seu balcão com passo arrogante. A certa altura reparou em Paul.
– Olá! – disse ele. – És o novo rapaz?
– Sou – respondeu Paul.
– Hum! Como te chamas?
– Paul Morel.
– Paul Morel?... Está bem. Vem comigo.
CONTINUA
Quando as crianças já tinham idade suficiente para ficarem sozinhas em casa, Mrs. Morel entrou para o Grémio Feminino. Tratava-se de um pequeno clube de mulheres ligado à Cooperativa de Revenda, que reunia às segundas-feiras à noite numa sala muito comprida por cima da mercearia Bestwood Co-op. Aí, as mulheres discutiam os benefícios de uma política de cooperação e outras questões de importância social. Por vezes, Mrs. Morel tinha de apresentar uma comunicação, e as crianças estranhavam ver a mãe, que passara a vida a fazer a lida da casa, sentar-se agora a escrever, com a rapidez que a caracterizava, a pensar, a consultar livros, e a continuar a escrever. Nessas ocasiões, sentiam por ela o mais profundo respeito.
Mas gostavam do Grémio. Era a única concessão que faziam à mãe de boa vontade – por um lado, por ser uma coisa de que ela tanto gostava, e, por outro, pelas guloseimas que depois lhes trazia. Alguns maridos hostis, que achavam que as mulheres estavam a ficar independentes de mais, chamavam ao Grémio o «clube dos traques-tagarelas», ou seja, o clube da má-língua. A verdade é que, graças ao Grémio, as mulheres podiam olhar para as suas casas, para as condições em que viviam e apontarem o que estava mal. E, assim, os mineiros começavam a descobrir que as suas mulheres lutavam por um novo padrão de vida, o que era para eles bastante desconcertante. Além disso, Mrs. Morel voltava sempre às segundas-feiras à noite carregada de novidades, e as outras crianças gostavam que William estivesse em casa quando a mãe chegava, porque ela lhe contava muitas coisas.
Mais tarde, quando o rapaz tinha treze anos, a mãe arranjou-lhe emprego nos escritórios da Cooperativa. Nessa altura, ele era já um rapaz muito inteligente e franco, de feições duras e os olhos azuis penetrantes de um verdadeiro viking.
– Pra que queres fazer dele um mangas-de-alpaca, num me dizes? – disse Morel. – Tudo o qu’ele vai fazer é gastar as calças no rabo e não ganhar um tostão. Quant’é qu’ele vai ganhar de início?
– O que ele vai ganhar não interessa – disse Mrs. Morel.
– Mas devia interessar! Põe-no mas é na mina ao pé de mim, e ele faz sem custo dez xelins por semana, logo no começo. Mas seis xelins para dar cabo do traseiro sentado num banco é melhor que dez na mina ao pé de mim, eu sei.
– Ele não vai para a mina – disse Mrs. Morel – e não se fala mais nisso.
– Pra mim serviu, mas pra ele não.
– Se a tua mãe te mandou para as minas aos doze anos, isso não quer dizer que eu faça o mesmo ao meu filho.
– Doze anos!... Muito antes disso!
– Fosse quando fosse – disse Mrs. Morel.
Ela tinha um grande orgulho no filho. Ele frequentava a escola nocturna, e aprendeu estenografia, e aos dezasseis anos, já era o melhor estenógrafo e o melhor guarda-livros do escritório, a par de um outro colega. Depois, começou a dar aulas nas escolas nocturnas. Mas era tão vivaço que só o seu bom feitio e o seu tamanho o protegiam.
Todas as coisas que os homens fazem – as coisas decentes – William também fazia. Corria tanto como o vento. Aos doze anos, ganhou o primeiro prémio numa corrida: um tinteiro de vidro, em forma de bigorna, que marcava honrosa presença no louceiro, para orgulho de Mrs. Morel. Fora para ela que ele correra. Voou para casa com a bigorna, ofegante, dizendo:
– Olha, mãe!
Esse foi o primeiro tributo que ele lhe prestou, e ela recebeu-o como uma rainha.
– Que bonito! – exclamou.
Quando iam brincar para perto da cerca da encosta, as crianças das Bottoms costumavam gritar quando William se aproximava:
– Salta, William... Salta!
E ele saltava a sebe, com cerca de cinco pés de altura, sem qualquer dificuldade.
– Caramba! – gritavam os mais pequenos.
Também atirava pedras mais longe do que qualquer outro rapaz de Bestwood. Amigos e rivais, todos tinham inveja das suas façanhas e torciam para que as pedras dele não fossem as que chegavam mais longe, passando para lá da cerca. Mas, à cautela, William gravava-lhes displicentemente as iniciais WM.
Aos dezassete anos, ganhou uma corrida de bicicletas em Ilkeston. Morel, num dos seus alardes de fanfarronice, tinha desafiado todos os campeões que estivessem na taberna a correrem contra o filho, e William sentiu que tinha de honrar as gabarolices do pai. Mas Mrs. Morel não aprovou a ideia.
– Vem ver-me limpar-lhes o sarampo a todos, mãe! – gritou ele, batendo na barriga da perna. Mas Mrs. Morel passou o dia ansiosa e infeliz. Ele podia morrer ou magoar-se, e, além disso, ela tinha a certeza de que o seu coração não tinha resistência para corridas de bicicleta. Não obstante, ele voltou para casa nessa noite trazendo uma pequena secretária de carvalho.
– Aqui tem, mãe! – disse ele. – Não lhe disse que lha trazia?
Mas ela obrigou-o a prometer-lhe que não entrava em mais nenhuma corrida.
William tinha alunos a quem dava aulas de estenografia em casa. Mas era tão impulsivo e irascível, que só os alunos mais aplicados e com mais vocação o aturavam. Sentava-se com eles à mesa da cozinha. A cozinha estava aquecida, iluminada e em silêncio absoluto. As almofadas de chintz vermelho do sofá eram fofas, a toalha vermelha sobre a mesa parecia acolhedora. Geralmente, o aluno, de treze ou catorze anos, sentava-se muito nervoso, enquanto William, rápido e enérgico, lhe corrigia os trabalhos de casa. O professor ia soltando desabafos de impaciência e intolerância. Nisto, voltava-se para o aluno e gritava:
– Meu grande cabeça de burro, fizeste bem a última frase, e agora...
O pobre do aluno assoava-se nervosamente ao lenço vermelho e olhava de soslaio para William. Às vezes, Mrs. Morel estava sentada a coser na cadeira de baloiço. Depois, começava a lição propriamente dita. William, evidenciando cada vez menos paciência, não tardava a explodir:
– Seu parvalhão, seu cabeça de burro, seu idiota chapado, o que é que eu te disse mais de mil vezes...?
– William! William! – exclamava a mãe. – Que vergonha! Não sei como ainda te aturam... Não lhe ligues, Robert, o mal está na falta de paciência dele, não em ti. Tu até és muito rápido. – E Robert olhava para Mrs. Morel envergonhado e agradecido, enquanto William continuava:
– Vá lá... e por amor de Deus não te faças de estúpido. Olha...!
Por fim, Mrs. Morel decidiu não ficar mais em casa quando ele dava as lições, para poupar aos garotos o vexame.
William tinha de entrar no escritório às oito da manhã, e a mãe levantava-se por isso às sete, para lhe preparar as coisas. Ele chegava geralmente atrasado, ou mesmo em cima da hora. Mas não havia nada que o fizesse andar mais depressa. Adorava tomar o pequeno-almoço a sós com a mãe. Quando estava bem-disposto, tagarelava e brincava com ela.
Uma manhã, pediu-lhe uma camisa lavada. Ele estava de pé, em frente à lareira, quando ela lha entregou, sentando-se em seguida a tomar o chá. Ele ergueu no ar repetidamente a camisa de flanela remendada por todos os lados.
– Mãe, o que é isto? – perguntou.
– Uma camisa – respondeu ela, desatando a rir.
– Uma rosa não cheiraria melhor...! – citou ele, de memória, com espirituosidade.
– Pois é... tu dás cabo de tudo... e eu já não tinha mais tecido igual... mas também quem vai notar?
– Tem a certeza de que não se vê?... Cá para mim, vê-se tudo à transparência – disse ele, ainda a torcer o nariz para a camisa.
– Veste-a lá... Olha as horas! – disse ela, sem poder conter o riso, da cadeira de baloiço onde estava sentada a beber o chá. E ele, de pé diante dela, um rapagão alto e espadaúdo, com a camisa de remendos na mão, dizia:
– Oh, minha camisinha de pobre! – disse ele, falando com a dita. – Acho que ninguém te vai cobiçar... um, dois, três... qual destes é o tecido original, mãe?
– Vá, veste a camisa! – ordenou a mãe.
– Imagine que eu tenho um acidente, e vou parar ao hospital, e quando volto a mim vejo quatro enfermeiras a olharem-me para a fralda da camisa... – resmungou ele.
– Só podem estar a dizer que andas com a roupa muito bem tratada – disse a mãe a rir.
Ele vestiu a camisa, e disse ainda, tapando a boca com a mão:
– Nem o rei Salomão em toda a sua glória...
– Não – disse a mãe, continuando a rir –, não creio que houvesse ninguém capaz de dar tantos pontos, nem por Salomão...
William deitou um olho à camisa por cima do ombro, e disse, num lamento:
– És a história da minha desgraça!
Mrs. Morel riu às gargalhadas. A custo, recompôs-se o suficiente para dar uma palmada na mesa e exclamar:
– Toca a vestir, menino! Já é um quarto para as oito.
– Não está à espera que eu tenha pressa de me vestir, para andar por aí todo remendado, pois não, mãe?
– És um tagarela sem juízo! – exclamou ela. – Ainda cais da bicicleta, partes a cabeça...
– Tem razão, se eu morresse ia ter vergonha da camisa que levava – atalhou ele.
Ela saltou da cadeira, pegou na escova e deu-lhe com ela ao de leve na cabeça.
– Vê lá se escovas esse cabelo – ordenou. Separaram-se, reconfortados: ele aquecia-lhe a alma a ela, e ela a ele.
Depois, ele começou a tornar-se ambicioso. Dava todo o dinheiro que ganhava à mãe. Quando recebia catorze xelins, ela deixava-o ficar com dois para os seus gastos, mas ele, como não bebia, começou a achar que estava rico, e só se dava com a burguesia de Bestwood. A pessoa mais importante da cidade era o pastor. Seguiam-se-lhe o gerente do banco, os médicos, depois os comerciantes, e, por fim, as hostes de mineiros. William começou a andar com os filhos do farmacêutico, do mestre-escola e de alguns comerciantes. Ia jogar bilhar para o Mechanics’Hall, e frequentava também os bailes, apesar de a mãe ser contra. Desfrutava de tudo o que Bestwood tinha de bom para lhe oferecer – dos bailaricos de Church Street, a seis dinheiros o ingresso, às provas desportivas e ao bilhar.
– A valsa! – exclamou o pai. – É verdade que tu sabes valsar? Quando eu era mais ágil, também sabia dar as minhas voltinhas.
– Será que sabia? – disse William, meio desconfiado.
– Sabia, sim senhor! – protestou Morel, ferido no seu amor-próprio.
– Então, vá lá... mostre-nos do que é capaz.
Mas Morel tinha vergonha de dançar diante dos filhos.
– Não, isso eu num faço! Estares a desafiar-me é uma parvoíce sem pés nem cabeça, e num vejo o qu’é que ganhas com isso.
– Mas vê que sigo as suas pisadas – retorquiu William.
– Atão inda és mais parvo do qu’eu julgava, s’alguma vez fizeres isso – disse o pai.
– Pronto, não faz mal, se está perro de mais para dançar... – disse o filho.
– Há vinte anos qu’eu num danço – gritou Morel, já alterado.
– E aposto que lhe custou a parar.
Mas William não desistiu. E as raparigas não o largavam.
– ’Póstolo – disse ele ao irmão, depois de um baile, quando já estavam os dois deitados. – ’Póstolo... uma rapariga de cetim branco... tás’ouvir, cetim branco até aos sapatos... vive em Sutton... e tá pelo beicinho! Amanhã vou lá, para m’encontrar com ela.
Daí a duas semanas, Paul perguntou-lhe:
– Então a rapariga do vestido de cetim branco?
– Já não m’interessa, ’Póstolo... Não presta! Mas encontrei uma pérola em Ripley... cheira vagamente a flor de cerejeira... branca como um lírio...
Paul era mimoseado com as mais estonteantes descrições florais das várias raparigas, a maior parte das quais perduravam por menos de quinze dias no coração de William, como um botão de rosa posto ao peito.
Uma vez por outra, lá aparecia uma namorada, preocupada em vir atrás do seu amado. Mrs. Morel encontrou um dia à porta uma rapariga de aspecto estranho, e logo lhe cheirou a esturro.
– Mr. Morel está em casa? – perguntou a donzela, toda sorrisos.
– O meu marido? Está, sim – respondeu Mrs. Morel.
– Eu... Eu queria referir-me a Mr. Morel... filho – repetiu a rapariga, penosamente.
– Qual deles? Há vários...
Nesta altura, a menina loira já gaguejava, muito corada:
– Eu... Eu conheci Mr. Morel... em Ripley. – E apressava-se a dar explicações.
– Ah... num baile!
– Sim, sim.
– Pois eu não gosto das raparigas que o meu filho conhece nos bailes. E ele não está em casa.
Mrs. Morel detestava os bailes duvidosos que o filho frequentava.
– Julgas que não sei das desavergonhadas que por lá andam?
– Pois olhe, mãe, eu não sou nenhum leviano, como pode ver.
– Isso é que eu não sei – dizia a mãe a rir.
– Não está a pensar que eu me vou apaixonar, pois não? Descanse que não vou. É só para me divertir com elas.
– Mas elas é que não querem só divertir-se contigo. E isso não está certo.
– Ora essa, porquê? Não faço tenções de me casar. Não se aflija, Mater. Eu não me caso enquanto não encontrar uma mulher como a senhora... e isso só daqui a muito tempo... E... só me hei-de casar aos trinta, quando já estiver de barriguinha cheia.
– Veremos, meu filho – respondeu a mãe.
Depois, voltou para casa zangado com a mãe por ter sido tão dura para com a rapariga. Era um rapaz despreocupado, mas de olhar apaixonado, que caminhava com grandes passadas, às vezes de sobrolho carregado, e quase sempre com o boné atirado para trás com galhardia. Agora, vinha de sobrolho carregado. Atirou o boné para cima do sofá, apoiou o queixo decidido na palma da mão e olhou zangado para a mãe. Ela era pequena, com o cabelo arrepiado para trás. Tinha um ar de serena autoridade, mas, ao mesmo tempo, de rara afabilidade. Ao ver o filho zangado, o coração apertou-se-lhe.
– Esteve cá ontem alguma senhora à minha procura? – perguntou.
– Uma senhora eu não vi... esteve foi uma rapariga.
– E porque não me disse nada?
– Porque me esqueci.
Ele expeliu o ar com ímpeto.
– Uma rapariga bonita... uma senhora?
– Não olhei para ela.
– Olhos castanhos... grandes?
– Isso mesmo.
Voltou a assoprar.
– E o que lhe disse a mãe?
– Que não estavas em casa.
– E que mais?
– Apenas que não gostava de que raparigas que tinhas visto uma vez viessem aqui a casa à tua procura.
– Bem... não precisava de ter dito isso – replicou ele. – O pai dela tem dinheiro... até têm duas criadas...
– Não vinham com ela... por isso, eu não podia adivinhar.
– Mas porque é que a mãe tinha de ser desagradável? Ela não estava a fazer mal nenhum, ou estava?
– Pensei que fosse uma dessas desavergonhadas.
– Mas não era... Não era... O pai dela...
– Tem dinheiro para duas criadas – atalhou Mrs. Morel.
– Não... É o veterinário de Woodlinton... E, além disso, mãe...
– Ela era uma desavergonhada.
– Não era nada... E era bonita, não era?
– Nem olhei para ela.
– Mas devia ter olhado...
– Mas não olhei, pronto. E olha, meu filho, trata de dizeres às tuas namoradas que, quando vierem atrás de ti, não devem vir perguntar por ti à tua mãe... É isso que tens de dizer a essas desavergonhadas que encontras pelos salões de dança.
– Tenho a certeza de que ela é uma rapariga séria...
– E eu tenho a certeza de que não é.
E assim acabou a discussão. A dança era sempre motivo de conflito entre mãe e filho. A afronta atingiu o auge quando William anunciou que ia a um baile de máscaras em Hucknall Torkard, uma terra mal-afamada. Havia uma fantasia que ele podia alugar, que um dos seus amigos já tinha usado, e lhe assentava que nem uma luva. E o fato de escocês lá foi parar a casa. Mrs. Morel recebeu-o com indiferença e recusou-se a desembrulhá-lo.
– O meu fato já chegou? – gritou William.
– Está um embrulho na sala da frente.
Ele precipitou-se para o fato e cortou o cordel.
– Já imaginou o seu filho assim vestido? – disse entusiasmado, mostrando-lhe o fato.
– Sabes bem que não quero imaginar-te com isso vestido.
Na noite do baile, quando ele veio a casa para se mascarar, Mrs. Morel vestiu o casaco e pôs o chapéu.
– Não fica para me ver vestido, mãe? – perguntou ele.
– Não... Não te quero ver – foi a resposta.
Estava muito pálida, com a expressão dura e fechada. Tinha medo de que o filho seguisse as pisadas do pai. Ele hesitou uns instantes, com o coração suspenso de ansiedade. Depois, viu a boina de escocês cheia de fitas, e agarrou-a, já esquecido da mãe. Mrs. Morel saiu.
Ele nunca se apercebeu de como tinha ficado desapontado. A excitação do momento, vivido em antecipação, era o suficiente para o fazer esquecer. Contudo, o seu maior orgulho era que ela o visse mascarado, e, pela vida fora, era sempre com mágoa que recordava este baile.
Na altura, porém, correu escada acima em grande alvoroço. Paul ajudou-o a vestir-se.
– É um fato de máscara, ’Póstolo – disse ele. – Dá-me cá essas coisas. – Primeiro enfiou um par de calções pretos, muito justos e curtos. Depois, foi mirar-se e remirar-se ao espelho da mãe.
– Estás a ver os meus calções pretos? – disse ele, dando uma volta sobre si mesmo, e acrescentando: – Sabes, ’Póstolo, um verdadeiro escocês não usa calções... cobre a nudez com o kilt. Mas acontece que eu dou saltos muito altos... e... com as senhoras a assistir... bem... já não dava!
O mais pequeno também achava que não, embora o caso não lhe parecesse muito grave.
– Belo par de pernas que aqui estão, ’Póstolo! Belas pernas! Já me ajudaram a ganhar quatro prémios nas corridas e dois nas bicicletas. Nada mau! – E dava palmadas nas coxas jovens e vigorosas. – Só músculo, miúdo!... No entanto, têm um defeito: não consigo juntar os joelhos. Tenho as pernas arqueadas, ’Póstolo. Mas assim ainda são mais fortes... Já o Nicholas Nickleby... esse tinha umas belas pernas e conseguia juntar os joelhos, a julgar pela gravura, e acho que Mr. Good também. Não era Mr. Good que tinha uma «belas pernas muito brancas» n’As Minas de Salomão? Aperta-me isto. Este fato não me assenta nada bem, pois não, ’Póstolo?
– Não – disse Paul, reverente.
– Um verdadeiro escocês – continuou William – tem de dobrar o seu kilt. Quem me dera que este fosse desses... gostava de ser eu a prepará-lo. Estás a ver, ’Póstolo, eu posso usar um kilt porque tenho a medida exacta para ele assentar como deve ser. A ti não te ia ficar bem... és espalmado como uma tampa de cartão. Tens de pedir a Deus que te desenvolva mais essa parte do corpo, senão nunca vais poder vestir um kilt.
Paul não percebia porque é que um dia havia de querer usar um kilt. Baixinho e magro como era, não podia aspirar ao físico e à estatura do irmão.
– Então, que tal ficam os meus joelhos?... Ficam bem, não ficam? Uns valentes joelhos, isso é que eles são... uns valentes joelhos... e as pernas também! Outro dia, os tipos lá do escritório apostaram em como eu andava enchumaçado. E então o Vickers veio de gatas enquanto eu estava a escrever e espetou-me um alfinete. Dei um berro que ia deitando a casa abaixo, e depois dei um pinote e ferrei-lhe um murro na cabeça, estás a ver... quem me dera não ter arrancado aquele bocadinho de pele com a bicicleta.
– Podias pôr um bocadinho do pó cor-de-rosa de lavar os dentes – alvitrou Paul.
– Lá isso podia... diz que é anti-séptico, mas será que resulta? Sabes, eu tenho mesmo pinta de escocês – cabelo louro, olhos azuis e valentia, ’Póstolo, valentia... e arcaboiço a condizer... Se alguma vez me alistasse no exército, havia de ser na Guarda Escocesa. Essa do pó dos dentes é uma ideia porreira...
Quando já estava vestido, um monte de crianças, as de casa e as da vizinhança, vieram admirá-lo. Depois, ele partiu. Divertiu-se à grande e, no entanto, era-lhe doloroso recordá-lo. A mãe mostrou-se indiferente com ele durante um ou dois dias. Mas achava-o tão encantador...! E depois... aquele toque de solidão, a instalar-se outra vez entre ele e ela.
Foi mais ou menos por esta altura que ele começou a estudar. Ele e um amigo começaram a aprender francês, latim e outras coisas. Depressa começou a ficar mais abatido. Depois do escritório, ia para casa de Fred Simpson, e ficavam os dois a estudar até à meia-noite e, às vezes, até à uma. Mrs. Morel protestava, ralhava, implorava-lhe que tivesse mais cuidado com a saúde.
– Quando estamos a estudar – dizia ele – nem dou pelas horas passarem... nenhum de nós dá, até a mãe do Fred gritar lá de baixo que já é muito tarde.
Estas noites de estudo intervalavam com farras e bailaricos. À medida que os anos iam passando, William foi ficando mais magro e a despreocupação fugiu-lhe do olhar.
A mãe, sempre atenta, sempre à espera, sentia um frio na alma ao vê-lo assim. Teria ele forças para «sobreviver»? Um pingo de ansiedade manchava o orgulho que sentia. Tinha esperado por ele tanto tempo que não suportaria o seu fracasso. Na verdade, não sabia o que queria dele, afinal. Talvez quisesse apenas que ele fosse fiel a si próprio, que crescesse e frutificasse tudo o que ela tinha semeado. Queria ver nele a sua própria realização, era tudo. E, com toda a força de que era capaz, tentava mantê-lo forte, equilibrado, com ânimo para seguir em frente. Mas ele vacilava, faltava-lhe lucidez. Havia momentos em que descambava e era igualzinho ao pai, o que lhe enchia o coração de apreensão e desalento.
Ele tivera dúzias de namoricos, mas nada a que se pudesse chamar um caso amoroso. Ela não se importava com os namoricos, desde que não lhe afectassem a carreira, mas receava que ele se deixasse prender por alguma dessas raparigas fúteis e desavergonhadas.
Tinha ele dezanove anos, quando um dia, sem mais nem menos, deixou o escritório da Cooperativa e arranjou um emprego em Nottingham. Este novo lugar rendia-lhe trinta xelins por semana, em vez dos dezoito do anterior. Era na verdade um bom aumento e os pais não cabiam em si de orgulhosos. Todos o elogiavam. Parecia que ia subir na vida num instante. E Mrs. Morel esperava poder, com o auxílio dele, ajudar os filhos mais novos. Annie andava a estudar para professora. Paul, também muito inteligente, ia muito bem nas lições de francês e alemão que o padrinho lhe dava – o pastor, velho amigo de Mrs. Morel. Arthur, um menino mimado e muito bonito, andava ainda na escola primária, mas tinha hipóteses de conseguir uma bolsa para ir para o liceu, em Nottingham.
William conservou-se durante um ano no seu novo emprego em Nottingham. Estudava afincadamente e tornava-se cada vez mais circunspecto. Algo parecia preocupá-lo. No entanto, continuava a ir aos bailes e aos festivais no rio. Não bebia. Todos os irmãos eram abstémios convictos. Chegava a casa muito tarde e estudava até altas horas da noite. A mãe implorava-lhe que tomasse cuidado, que fizesse uma coisa ou outra.
– Dança, se te apetece dançar, meu filho, mas não julgues que podes passar o dia no escritório e depois ires para a paródia, e depois ficares ainda a estudar. Não podes, o corpo não aguenta. Faz uma coisa ou a outra... diverte-te ou estuda latim... mas não tentes fazer as duas.
Depois, ele arranjou um emprego em Londres, a ganhar cento e vinte libras por ano, o que parecia uma soma fabulosa. A mãe nem sabia se havia de rir ou de chorar.
– Querem-me em Lime Street de segunda a oito, mãe – gritou ele, de olhos brilhantes, ao ler a carta. Mrs. Morel sentiu que tudo nela era silêncio. Ele continuou a ler: – «... queira confirmar até à próxima quinta-feira se aceita o lugar... Atentamente...» Eles querem-me lá, mãe, por cento e vinte libras por ano, e nem quiseram falar comigo. Eu não lhe disse que conseguia! Imagine-me só em Londres!... E posso dar-lhe vinte libras por ano, Mater... Vamos ficar afogados em dinheiro.
– Pois vamos, meu filho – respondeu ela, tristemente.
A ele nem lhe ocorreu que a mãe pudesse estar mais magoada com a sua partida do que contente com o seu sucesso. Na verdade, à medida que se aproximava o dia da partida, o coração dela começou a fechar-se e a sucumbir ao desespero. Amava-o tanto. Mais ainda: esperava tanto dele. Quase se podia dizer que vivia através dele. Gostava de lhe fazer as coisas: de lhe fazer uma chávena de chá e de lhe passar a ferro os colarinhos, de que ele tanto se orgulhava. Era para ela uma alegria vê-lo tão vaidoso dos seus colarinhos. Como não havia nenhuma lavandaria perto, costumava passá-los e repassá-los com o seu pequeno ferro de carvão, para os polir, até os pôr a brilhar à simples pressão do braço. E, agora, já não lhe podia fazer isso. Agora, ele ia partir, e era quase como se partisse também do seu coração. E ele parecia não querer deixar ficar nada de si dentro dela. Essa a causa da dor e do desgosto. Ele levava consigo quase tudo.
Uns dias antes da partida – tinha ele acabado de fazer vinte anos – queimou todas as cartas de amor, que estavam guardadas numa caixa em cima do armário da cozinha. Tinha lido extractos de algumas delas para a mãe ouvir, mas a maior parte delas eram demasiado banais.
No sábado de manhã, disse:
– Anda, ’Póstolo, vamos dar uma volta às minhas cartas, e tu podes ficar com os passarinhos e as flores.
Mrs. Morel tinha feito de véspera o trabalho destinado para sábado, pois tinham dado folga a William no último dia. Ela estava até a fazer-lhe um bolo de farinha de arroz, para ele levar. Mas ele não tinha consciência da tristeza que a mãe sentia.
Tirou da caixa a primeira carta. Era cor de malva e estava ornamentada com cardos verdes e púrpura. William cheirou a folha de papel:
– Cheira bem... perfumada...!
E meteu a carta debaixo do nariz de Paul.
– Hum! – disse Paul, inspirando fundo. – Que perfume é este?
– Jockey Club – disse William, embora não fizesse a menor ideia.
– Não podia ser cardo – disse Paul – porque os cardos não têm cheiro.
– Ora oiça esta: «Meu Único Amor»... Safa, Mater.
– Não me interessa ouvir essas baboseiras – disse Mrs. Morel.
– Oiça só esta!.. «Meu único Amor, Como não me disseste o teu primeiro nome, só te posso chamar aquilo que és na realidade. Tenho de te escrever, porque, se o não fizer, acho que a minha cabeça vai rebentar...» Veja só, Mater.
– São mesmo parvas! Têm tão pouca cabeça que não dá nem para rebentar... A adularem-te dessa maneira... Mal sabem elas que estão a arranjar lenha para se queimarem.
– Não é para me adularem. Esta ficou mesmo caidinha por mim.
– E, mesmo que tenha ficado, isso é motivo para se orgulhar? Que parvoíce!
– A mãe não devia dizer que andam a «adulá-lo para arranjar lenha para se queimarem» – interveio Paul.
– Claro, se tu o dizes... – disse a mãe a rir.
– «Fiquei a adorar coisas escocesas desde que te vi com aquele kilt. Ficava-te mesmo mal. Acho que nunca vi ninguém que ficasse tão bonito, com aquele kilt e aquelas meias...» São os meus joelhos... Têm de ser os meus joelhos, Mater. Não me escapa uma.
– Só não te escapam se forem das fáceis.
– Cala a boca, ’Póstolo. É bonita, não é?
Paul gostava de ver os desenhos que decoravam as cartas de amor. William queimou a carta. A seguinte era cor-de-rosa, com um raminho de flor de cerejeira ao canto.
– Flor de cerejeira! – disse Paul, aspirando o perfume. – Que bom... ora cheire, mãe.
A mãe aproximou o nariz pequeno e fino do papel.
– Não me apetece cheirar as parvoíces que elas fazem – disse, aspirando o perfume.
– O pai desta rapariga – disse William – é rico como Cresus. Tem terras que nunca mais acabam... Ela chama-me Lafayette, por eu saber falar francês... «Como vês, já te perdoei.» Esta de ela me perdoar é muito boa... «Falei de ti esta manhã à minha mãe, e ela terá muito prazer em que venhas tomar chá connosco no domingo, mas primeiro precisa do consentimento do meu pai. Espero bem que ele concorde. Logo que saiba, mando-te dizer se sim ou sopas. Se tu no entanto...»
– «Se sim ou...» quê? – atalhou Mrs. Morel.
– «... ou sopas»... é isso mesmo!
– «Se sim ou sopas!» – repetiu Mrs. Morel, trocista. – E eu que a julgava tão fina!
William começou a sentir-se algo desconfortável e pôs de lado esta donzela, dando a Paul o canto com a flor de cerejeira. Continuou a ler excertos das cartas, alguns dos quais deixavam a mãe divertida, outros triste e outros ainda apreensiva.
– Meu filho – disse ela –, elas são muito espertas. Já perceberam que só têm de alimentar a tua vaidade, para tu correres logo atrás delas como um cão a quem fizeram festas na cabeça.
– Ora, elas não podem estar sempre a fazer festas – retorquiu William. – E quando deixam de fazer, eu ponho-me a andar.
– Mas um dia descobres que te prenderam com uma corda que não consegues desatar – respondeu a mãe.
– Isso é que era bom! Eu chego bem para elas, Mater, elas que não se deixem enganar.
– Quem se deixa enganar és tu – disse Mrs. Morel, muito serena.
Não tardou que um monte de papéis retorcidos e tisnados se formasse na lareira, tudo o que restava da colecção de cartas perfumadas, à excepção dos trinta ou quarenta desenhos recortados dos cantos – andorinhas, miosótis e raminhos de hera – que agora pertenciam a Paul. Quanto a William, partiu para Londres, para dar início a uma nova colecção.
IV
A JUVENTUDE DE PAUL
PAUL saía à mãe – era baixo e franzino. O cabelo loiro tornou-se progressivamente arruivado e depois castanho-escuro, enquanto os olhos eram acinzentados. Era uma criança pálida e de poucas falas, com uns olhos que pareciam escutar e um lábio inferior carnudo e descaído.
Geralmente davam-lhe mais idade, pela constante preocupação que mostrava pelo que as outras pessoas sentiam, especialmente a mãe. Quando ela sofria, ele apercebia-se e não tinha paz, sempre de alma atenta às suas mais pequenas reacções.
À medida que crescia, ia-se tornando mais forte. William, devido à diferença de idades, não o queria por companheiro, pelo que só Annie estava com ele o dia inteiro. Annie era uma garota endiabrada, uma maria-rapaz, como a mãe lhe chamava, mas adorava o irmão mais novo, que andava sempre atrás dela. Quando ela fazia corridas com as outras garotas da vizinhança, Paul corria ao lado dela, a apoiá-la, uma vez que ainda não podia participar. Muito calado, passava quase despercebido. Mas a irmã adorava-o e ele fazia-lhe as vontades todas.
Annie tinha uma boneca grande de que muito se ufanava, embora não gostasse tanto dela como do irmão. Um dia, deitou-a no sofá, cobriu-a com uma manta, para ela adormecer, e foi-se embora. Entretanto, Paul pôs-se a saltar em cima do sofá e caiu mesmo em cima da cara da boneca, escondida debaixo da coberta. Annie precipitou-se para o sofá soltando um grito lancinante e sentou-se a chorar, inconsolável. Paul nem se mexeu.
– Não se percebia que a boneca estava ali, mãe; não se percebia – não se cansava ele de repetir, deixando-se ficar sentado muito triste enquanto Annie continuava a chorar. Por fim, o desgosto passou e ela perdoou ao irmão, que estava genuinamente contrito. Porém, um ou dois dias depois Annie ficou chocadíssima.
– Vamos oferecer a Arabella em sacrifício – disse ele. – Vamos queimá-la. – A irmã ficou horrorizada, mas ao mesmo tempo fascinada. Sempre queria ver o que o irmão ia fazer. Ele fez um altar de tijolos, tirou bocadinhos do enchimento do corpo de Arabella, enfiou esses bocadinhos na cara esburacada, deitou-lhe em cima um pouco de parafina e incendiou a boneca. Depois, com perversa satisfação, ficou a ver as gotas de cera derretida a escorrerem pela testa de Arabella, como se fossem suor a pingar sobre a chama. Enquanto a estúpida da boneca esteve a arder, ele rejubilou em silêncio. No fim, esgravatou nas brasas com um pauzinho, pescou os braços e as pernas, todos pretos, e esmagou-os com uma pedra.
– Pronto, este foi o sacrifício da Arabella – anunciou. – E ainda bem que não sobejou nada.
Annie, embora nada dissesse, estava perturbada com a cena. Era como se ele odiasse a boneca intensamente pelo facto de a ter partido.
Todos os irmãos, mas Paul em particular, colocavam-se nitidamente ao lado da mãe contra o pai. Morel continuava a fazer desmandos e a embebedar-se. Havia alturas, às vezes meses a fio, em que transformava a vida de toda a família num inferno. Paul nunca se havia de esquecer de ter vindo para casa, depois de uma reunião religiosa uma segunda-feira à tardinha, e ter encontrado a mãe com um olho negro e todo inchado, o pai de pé junto à lareira, de pernas afastadas e cabisbaixo, e William, que acabara de chegar do trabalho, a olhar enfurecido para o pai. Fez-se silêncio quando os irmãos mais novos entraram, mas nenhum dos adultos olhou para eles.
William estava lívido e de punhos cerrados. Esperou que os mais pequenos se calassem, limitando-se a olhar a cena com indizível raiva infantil, e disse:
– Seu grande cobarde, se eu cá estivesse, não se atrevia a fazer uma coisa destas.
Mas Morel estava ao rubro e voltou-se contra o filho. William era mais alto, mas Morel era mais possante e estava cego de raiva.
– Ah, não? – berrou. – Ah, não atrevia? Se abres mais essa boca, meu menino, assento-te a mão em cima, olá se assento!
E, vergando os joelhos, brandiu o punho ameaçadoramente, animalescamente. William estava lívido de raiva.
– Ah, sim? – disse William, sereno e intrépido. – Pois seria a última vez.
Morel aproximou-se gingão, semivergado, de punho no ar em posição de ataque. William armou também o punho. Os seus olhos azuis fixos no pai tinham o brilho de uma gargalhada. Mais uma palavra e os dois homens engalfinhavam-se. Paul desejava que isso acontecesse. Os três mais novos assistiam sentados no sofá, sem pinga de sangue.
– Acabem já com isso – gritou Mrs. Morel, com dureza. – Por esta noite chega... E tu – disse, virando-se para o marido – pensa nos teus filhos.
Morel virou os olhos para o sofá.
– Pensa nos teus filhos, ess’agora, minha grande cabra – disse ele, acintoso – o qu’é qu’eu fiz òs meus filhos, sempre gostava de saber. Mas eles saem a ti... ensinaste-lhes todas as tuas manhas e truques... criaste-os à tua maneira, foi o que foi.
Ela não respondeu. Ninguém abriu a boca. Passado algum tempo, ele atirou as botas para debaixo da mesa e foi deitar-se.
– Porque é que não me deixou fazer-lhe frente? – disse William, quando o pai já tinha ido para cima. – Ele tinha apanhado, e bem.
– Que bonito... bateres no teu pai – respondeu a mãe.
– Pai! – repetiu William. – Aquilo, meu pai!
– Bom, lá que é... é. Por isso...
– Mas porque é que não me deixa dar-lhe uma ensinadela, não custava nada...
– Que disparate! – gritou Mrs. Morel. – Ainda não chegámos a esse ponto.
– Não – disse o filho. – Ainda é pior... olhe para a sua cara. Porque não me deixou bater-lhe?
– Porque não ia suportar assistir a uma coisa dessas. É melhor que nem te passe pela cabeça – gritou ela, peremptória.
As crianças foram deitar-se muito tristes.
Quando William já era grande, a família mudou-se das Bottoms para uma casa no alto da colina, de onde se alcançava todo o vale, que se estendia por baixo, convexo, como concha de amêijoa ou berbigão. Fronteiro à casa, estava postado um velho freixo de grandes dimensões. Quando o vento oeste soprava forte das bandas do Derbyshire, apanhava em cheio as casas e a árvore não parava de ulular. Morel gostava de a ouvir.
– É como a música – dizia ele. – Ajuda-me a adormecer.
Mas Paul, Arthur e Annie detestavam o zumbido do vento. Para Paul, era quase um gemido demoníaco. Durante o primeiro Inverno que passaram na nova casa, o pai portou-se muito mal. As crianças ficavam a brincar na rua, alcandorada sobre o vale extenso e sombrio, e só voltavam para casa às oito horas, indo directas para a cama. A mãe ficava a costurar no andar de baixo. Todo aquele espaço aberto diante da casa incutia nas crianças uma sensação de vastidão nocturna, de terror. Terror esse que provinha da árvore ululante e da discórdia entre os pais. Paul, mesmo depois de adormecer, tinha um sono sobressaltado e acordava amiúde com os barulhos que vinham de baixo. Acordava e ficava atento. Ouvia então os berros desabridos do pai, que chegara a casa a cair de bêbado, seguidos das respostas aceradas da mãe, e depois os murros do pai em cima da mesa e os seus gritos descontrolados, à medida que ia elevando a voz. E, finalmente, tudo isto era abafado pelos gemidos e os uivos penetrantes do grande freixo agitado pela ventania. As crianças mantinham-se caladas e expectantes, a aguardarem que o vento se calasse, para perceberem o que o pai estava a fazer, não fosse ele bater na mãe outra vez. A escuridão instilava neles sentimentos de horror, violenta tensão e sangue, e adormeciam com o coração apertado de angústia. O vento era cada vez mais assustador. Todas as cordas da grande harpa gemiam, silvavam e uivavam. E, depois, o horror do súbito silêncio: o silêncio total, lá fora e lá em baixo. Que silêncio era aquele?... Um silêncio de sangue? Que teria ele feito?
As crianças mantinham-se deitadas a respirar escuridão. Por fim, ouviam o pai atirar com as botas e subir a escada só de meias. Mesmo assim, ficavam à escuta, até que, se o vento deixava, ouviam a água a sair da torneira para a chaleira, que a mãe já deixava preparada para o dia seguinte, e podiam, finalmente, dormir em paz.
De manhã, acordavam felizes, muito felizes, e brincavam e dançavam à volta do candeeiro solitário, ainda na escuridão, mas guardavam um recanto de ansiedade dentro dos seus corações e uma tristeza nos olhos que conservaram para toda a vida.
Paul odiava o pai. Quando era ainda pequeno, tinha uma religião muito sua.
– Faz com que ele deixe de beber – pedia ele todas as noites.
– Senhor, deixa o meu pai morrer – rezava ele muitas vezes.
– Faz com que ele morra na mina – pedia ele quando, depois do chá, o pai tardava a vir do trabalho.
Esse era outro dos momentos em que a família sofria intensamente. As crianças chegavam da escola e tomavam chá. A enorme chaleira preta fervilhava a um lado do fogão e a terrina do guisado estava no forno, à espera de que Morel chegasse. Era esperado às cinco horas. Porém, durante meses a fio, parava sempre na taberna quando voltava do trabalho e por lá ficava a beber.
Nas noites de Inverno, quando o frio era intenso e anoitecia mais cedo, Mrs. Morel levava para a mesa uma palmatória de latão com uma vela acesa, para poupar o gás. As crianças comiam a sua fatia de pão com manteiga ou com banha e iam brincar para a rua. Mas, se Morel ainda não tinha chegado, eles pensavam duas vezes. Mrs. Morel não suportava imaginá-lo sentado na taberna a beber, todo sujo e ainda com as roupas da mina, depois de um dia de trabalho, e, em vez de vir para casa comer e lavar-se, preferir embebedar-se de estômago vazio. E este seu sentimento comunicava--se aos filhos. Agora, ela já não sofria sozinha: os filhos sofriam com ela.
Paul foi brincar com os outros rapazes. No vale semeado no crepúsculo, cintilavam aglomerados de luzes a marcarem a entrada das minas. Alguns mineiros retardatários subiam desgarrados o carreiro da encosta. Por fim, passou o homem que acendia os lampiões da rua. Mais nenhum mineiro se avistava. A escuridão abateu-se sobre o vale, o trabalho terminara, era a noite que chegava.
Paul correu ansioso para a cozinha. A vela solitária ardia ainda sobre a mesa, o clarão vermelho da fogueira inundava a cozinha, e Mrs. Morel estava sentada e só. A chaleira fumegava no fogão, o prato continuava à espera. Um sentimento de espera perpassava toda a casa, um sentimento de espera pelo homem que estava nesse momento sentado na taberna, a pouco mais de uma milha de casa, já noite escura, com a roupa de trabalho, sem comer, e a beber até cair. Paul apareceu à porta.
– O papá já chegou? – perguntou.
– Bem vês que não – disse Mrs. Morel, aborrecida com a redundância da pergunta.
Depois, o garoto pôs-se a andar de um lado para o outro à volta da mãe. Partilhavam a mesma ansiedade. A certa altura, Mrs. Morel foi lá fora escorrer a água das batatas.
– Estão todas negras, uma porcaria – disse ela. – Quero lá saber. – Não se trocavam muitas palavras. Paul quase odiava a mãe por sofrer daquela maneira quando o pai não vinha para casa.
– Para que se aflige tanto? – disse ele. – Se ele quer ficar por lá a embebedar-se, porque não o deixa?
– Deixá-lo! – ripostou Mrs. Morel. – Essa é boa, «deixá-lo». – Ela sabia que todo o homem que se mete na taberna quando devia voltar para casa sem demora se arruina a si mesmo e à família. As crianças eram ainda muito pequenas e ele era o seu único ganha-pão. William viera trazer-lhe algum alívio, pois, com ele empregado, sempre tinha alguém a quem recorrer se Morel descambasse de vez. Porém, isso em nada alterava a tensão que se respirava na cozinha nestas noites de espera.
Os minutos escoavam-se no bater ritmado do relógio. Às seis horas, a mesa ainda estava posta, o jantar à espera, e a mesma atmosfera de ansiedade e expectativa invadia toda a casa. Paul já não aguentava mais. Não lhe apetecia ir lá para fora brincar. Correu por isso para casa de Mrs. Inger, duas portas mais abaixo, para conversar com ela. Mrs. Inger não tinha filhos. O marido era amigo dela, mas era caixeiro numa loja e chegava muito tarde. Quando ela viu o garoto à porta, chamou-o:
– Vem cá, Paul.
Ficaram os dois a conversar durante um bocado, mas logo Paul se levantou, dizendo:
– Bem, vou andando, para ver se a minha mãe precisa que eu lhe vá fazer algum recado.
Fingia estar muito alegre e não contou à amiga o que o preocupava. Depois, voltou a correr para casa.
Em alturas como esta, Morel chegava sempre mal-humorado, insuportável.
– Lindas horas de voltares para casa – dizia Mrs. Morel.
– Que tens tu co’isso, cas horas a qu’eu venho pra casa? – berrava ele.
E ninguém abria a boca, porque ele era perigoso. Comia o que lhe punham à frente com inultrapassável grosseria e, quando terminava, empurrava tudo o que tinha diante de si para longe, para poder estender os braços por cima da mesa, e, em seguida, adormecia.
Paul odiava por demais o pai. A cabeça do mineiro, pequena e mesquinha, com o cabelo preto empastado de fuligem, repousava sobre os braços nus, e a cara, suja e mal-humorada, de nariz grosso e sobrancelhas finas e insolentes, estava virada para o lado, adormecida – da cerveja, do cansaço e da má índole. Se alguém entrasse de repente ou fizesse o mais pequeno ruído, o homem abria os olhos e berrava:
– Tás aqui, tás a levar um murro, se não paras com essa chinfrineira. Tás’ouvir?
Estas palavras, gritadas selvaticamente e quase sempre dirigidas contra Annie, deixavam toda a família transida de medo.
Ele era mantido fora de todos os assuntos. Ninguém lhe contava nada. Enquanto estavam sozinhos com a mãe, o filhos relatavam-lhe as peripécias do dia, contavam-lhe tudo. Era como se nada realmente acontecesse até contarem à mãe. Mas, mal o pai entrava, fazia-se silêncio. A sua presença era como um travão na engrenagem fluente e feliz da vida doméstica. Ele apercebia-se deste muro de silêncio, do isolamento a que o votavam, de que não era bem-vindo; mas era já demasiado tarde para mudar.
Bem gostaria de que os filhos conversassem com ele, mas eles não conseguiam. Às vezes Mrs. Morel dizia:
– Devias contar ao teu pai.
Paul ganhou um prémio num concurso de jornal e todos ficaram radiantes.
– O melhor é contares ao teu pai quando ele chegar – disse Mrs. Morel. – Sabes bem que ele passa a vida a dizer que nunca lhe contam nada.
– Está bem – concordou Paul. No entanto, quase preferia ter perdido o prémio a ter de contar ao pai.
– Ganhei um prémio num concurso, pai – disse ele.
Morel voltou-se e disse:
– Ah, ganhaste, meu rapaz?... E que concurso era esse?
– Nada de especial... era sobre mulheres famosas.
– E de quanto é esse tal prémio que ganhaste?
– É um livro.
– Ah, é?
– Sobre aves.
– Hum!
E era assim. Não havia conversa possível entre o pai e qualquer dos restantes membros da família. Era como se ele fosse um estranho, tivesse negado o Deus que nele habitava.
Os únicos momentos em que voltava a entrar na vida da família era quando fazia consertos em casa e o trabalho lhe corria de feição. Às vezes, ao fim da tarde, depois de jantar, punha-se a remendar as botas ou a soldar a chaleira ou o cantil. Nessa altura precisava de ajudantes e as crianças rejubilavam. Partilhavam com ele o trabalho, no verdadeiro sentido de construírem realmente qualquer coisa, e aquele sim, era ele outra vez.
Mostrava-se competente e habilidoso, e quando estava de bom humor não parava de cantarolar. Mas atravessava longos períodos, às vezes meses, quase anos até, de contundência e irascibilidade. Depois, de repente, ficava bem-disposto outra vez e era bom vê-lo entrar pela copa dentro com um bocado de ferro incandescente, a gritar:
– Saiam da frente, saiam da frente!
Batia o ferro rubro e maleável na bigorna e moldava-o a gosto. Outras vezes sentava-se a soldar, e as crianças viam cheias de alegria o metal derreter instantaneamente e ser espalhado pelo ferro de soldar, impregnando a casa de um odor a lata quente e a resina queimada, enquanto Morel em silêncio se concentrava no trabalho. Cantava sempre que estava a remendar as botas, ao som das batidas do martelo. E via-se que estava feliz quando punha grandes remendos nas calças de fustão que usava na mina, o que acontecia bastas vezes, pois achava-as muito sujas e muito rijas para ser a mulher a fazê-lo.
Mas o que as crianças mais gostavam era de o verem fazer detonadores. Morel ia buscar ao sótão um molho de palhas de trigo compridas e resistentes. Limpava-as e polia-as à mão até cada uma luzir como uma hastezinha de ouro. Depois, cortava-as em bocados com cerca de seis polegadas, fazendo-lhes, se possível, um talho na ponta. Tinha sempre ao seu lado um canivete primorosamente afiado que cortava uma palha ao meio sem a danificar. Seguidamente, deitava em cima da mesa um montinho de pólvora – uma pilha de grãos pretos sobre o tampo de madeira bem lavada, e ia preparando e aparando as palhas, enquanto Paul e Annie as enchiam e vedavam com um bujão. O que Paul mais gostava era de ver os grãozinhos pretos escorregarem pela calha que ele fazia com a palma da mão e entrarem pela abertura da palhinha, até ela ficar cheia. Nessa altura, vedava a abertura com uma raspa de sabão que arrancava com a unha do polegar do bocado de sabão que tinha a seu lado num pires, e a palha estava pronta.
– Olhe, pai! – dizia ele.
– Isso mesmo, meu amor – respondia Morel, que era particularmente pródigo em elogios para com o seu segundo filho. Paul atirava os detonadores para dentro da lata da pólvora, já pronta para o dia seguinte, quando Morel a levasse para a mina, para com eles provocar uma explosão capaz de fracturar a parede de carvão.
Entretanto, Arthur, ainda muito agarrado ao pai, vinha apoiar-se no braço do cadeirão de Morel e dizia:
– Conte-nos como é lá em baixo na mina, papá.
Era o que Morel mais gostava de fazer.
– Ora bem, lá na mina há um cavalo, a gente chama-lhe Taffy – começava ele – e ele é um gra-a-nde manhoso!
Morel tinha uma maneira pitoresca de contar histórias. Parecia até que a manha do Taffy ganhava vida.
– É um baio – continuava ele – e dos pequenos. Bem, a cert’altura ele entra na galaria com ganda estardalhaço e a gente ouve-o espirrar.
– «Olá, Taff», diz a gente, «pra que tás tu a espirrar? Andaste a cheirar rapé?» E ele vá de espirrar outra vez. Depois vem ter co’a gente e dá-nos co’a cabeça no ombro, o malandreco.
– «Qu’é que tu queres, Taff?», diz a gente.
– E o qu’é qu’ele quer? – perguntava Arthur invariavelmente.
– Quer um bocado de tabaco, meu tontinho.
E a história do Taffy nunca mais acabava, para gáudio da pequenada.
Outras vezes a história mudava.
– Ora ouve esta, meu amor. De quando vou a vestir o casaco, na hora de vir dar ao dente, e dou c’um rato a correr-me pela manga acima. «Eh, lá!», grito eu, mesmo a tempo de lh’agarrar a ponta do rabo.
– E matou-o?
– Matei, pois. São uma praga. Aquilo tá cheio deles.
– E o que é que eles comem?
– Os grãos qu’os cavalos deixam cair... e até nos vêm ao bolso comer o farnel, s’os deixarmos... seja onde for que a gente pendure o casaco... Danados de comilões, isso é qu’eles são...
Estas noites bem passadas só aconteciam quando Morel tinha trabalho para fazer. Depois, ia deitar-se muito cedo, geralmente com as crianças. Não havia nada que o fizesse ficar a pé depois de terminar os consertos e ler por alto os títulos do jornal.
Os filhos sentiam-se seguros quando o pai estava na cama. Por vezes ficavam a conversar em voz baixa depois de se deitarem, e assustavam-se quando luzes de repente se projectavam no tecto, vindas das lanternas dos mineiros que passavam para o turno das nove horas. Ouviam as vozes dos homens e imaginavam-nos a penetrar no vale de breu. Às vezes iam à janela e ficavam a ver as três ou quatro lanternas cada vez mais pequeninas desaparecerem na distância, balançando na escuridão dos prados. E, depois, era tão bom voltarem para a cama e enroscarem-se uns nos outros, no quentinho.
De todos, só Paul era muito frágil, atreito a ataques de bronquite. Os outros eram todos fortes e essa era talvez a outra razão para a diferença que a mãe fazia entre ele e os irmãos. Um dia, Paul chegou adoentado à hora do almoço. A família, porém, não era dada a pieguices.
– O que se passa contigo? – perguntou a mãe, incisiva.
– Nada – respondeu ele.
Mas não quis comer.
– Se não comeres, não voltas para a escola.
– Porquê? – perguntou ele.
– Porque não.
Depois do almoço, ele foi deitar-se no sofá, entre as fofas almofadas de ramagens de que as crianças tanto gostavam, e pareceu adormecer. Nessa tarde, estava Mrs. Morel a passar a ferro quando ouviu os ruídos roucos e entrecortados que o filho fazia ao respirar. De novo a assaltou o antigo sentimento exacerbado de quando ele era bebé e julgava que não ia sobreviver. No entanto, o corpinho dele tinha grande vitalidade. Talvez para ela tivesse sido um alívio se ele tivesse morrido. Sentia sempre a angústia misturar-se ao amor que lhe tinha.
Ele, no seu estado de semiconsciência, apercebia-se vagamente do tinir do ferro no descanso e do seu assentar cavo sobre a tábua de engomar. Uma das vezes, acordando, abriu os olhos e viu a mãe junto à lareira com o ferro quente perto da cara, a escutar por assim dizer o ruído do calor. Ao ver o seu rosto imóvel, a boca crispada de tanto sofrimento, desilusão e abnegação, o nariz ligeiramente à banda e os seus olhos azuis, tão jovens, vivos e ternos, o coração de Paul apertou-se-lhe de amor. Quando ela ficava assim parada, como agora, parecia cheia de vida e de coragem, mas completamente privada dos seus direitos. Ao filho, magoava-o profundamente este pressentimento de ela nunca ter sido feliz, e a sua própria falta de capacidade para a compensar atingia-o como uma espécie de impotência, ao mesmo tempo que determinavam nele uma atitude de paciente tenacidade, em conformidade com as suas ambições pueris.
Ela cuspiu no ferro, e uma bolinha de cuspo enovelou-se e correu pela superfície negra e luzidia. Depois, pondo-se de joelhos, esfregou o ferro vigorosamente no forro de serapilheira do tapete. As chamas da fogueira envolviam-na num clarão cálido e avermelhado. Paul gostava da maneira como ela se baixava e inclinava a cabeça para o lado com movimentos leves e ligeiros. Era sempre com enlevo que a olhava. Nada que fizesse, nenhuma atitude ou movimento, podiam ter defeito para os filhos. A casa estava aquecida e cheirava a roupa quente. Mais tarde, o pároco veio conversar tranquilamente com Mrs. Morel.
Paul caiu à cama com um ataque de bronquite. Não que isso o contrariasse muito: o que tinha de ser tinha muita força e de nada servia revoltar-se. Gostava das noites, depois das oito horas, quando apagavam a luz e ele podia ver as chamas projectarem-se na escuridão das paredes e do tecto e seguir com o olhar as sombras alongadas que o percorriam, até a sala parecer invadida por guerreiros silenciosos, combatendo no silêncio.
Quando se ia deitar, o pai passava primeiro pelo quarto do enfermo. Se alguém estava doente em casa, mostrava-se sempre muito terno, mas a sua entrada não deixava de perturbar a paz que reinava no quarto de Paul.
– Tá a dormir, meu amor? – perguntava Morel, devagarinho.
– Não... A mãe não vem para cima?
– Tá só a acabar de dobrar a roupa. Quer alguma coisa? – Morel só raramente tratava o filho por «você».
– Não, não quero nada... Mas quanto tempo é que demora?
– Já falta pouco, meu tontinho.
O pai hesitava uns segundos frente à lareira. Sentia que o filho não queria a sua presença. Assomava-se então ao cimo das escadas e dizia à mulher:
– Aquela criança tá ansiosa por te ter ó pé... Inda vais ficar aí muito tempo?
– Até acabar o que estou a fazer, santo Deus! Diz-lhe que durma.
– Ela diz qu’o melhor é o meu menino adormecer – disse ele a Paul, de mansinho.
– Mas eu quero que ela venha para cima – insistiu o garoto.
– Ele diz que não dorme enquanto não vieres pra cima – gritou Morel lá para baixo.
– Calma, querido! Já vou. E vê se não gritas dessa maneira. Olha as outras crianças...
Depois, Morel voltou para o quarto de Paul e acocorou-se em frente da lareira. Que bem lhe sabia aquecer-se ao lume.
– Ela diz que já vem.
Parecia querer ficar ali indefinidamente. O garoto já estava febril de irritação. A presença do pai parecia aumentar ainda mais a sua impaciência. Por fim, depois de ficar a olhar para o filho por algum tempo, em silêncio, Morel disse mansamente:
– Boa noite, meu amor.
– Boa noite – respondeu Paul, voltando-se para o outro lado, satisfeito por ficar sozinho.
Paul adorava dormir com a mãe. O sono é ainda mais reparador, apesar de tudo o que dizem os defensores da higiene, quando partilhado com um ente querido. O aconchego, a segurança, a paz de espírito e o conforto que a presença do outro traz, conferem ao sono propriedades curativas. Paul adormecia encostado a ela e melhorava depressa, e ela, sempre atormentada por insónias, mergulhava num sono profundo que parecia renovar-lhe a esperança.
Durante a convalescença, Paul ficava sentado na cama, a ver os cavalos a pastar nos campos circundantes, espalhando o feno pela neve amarelada das pegadas, e a ver os mineiros voltarem para casa, figurinhas negras trilhando lentamente em grupos a alvura dos campos. Depois, vinda da neve, a noite avançava em vapores azulados, quase negros.
Durante a convalescença tudo era maravilhoso. Os flocos de neve caindo de repente na janela detinham-se por um momento, como andorinhas, mas logo desapareciam, e uma gota de água escorria pela vidraça. Os flocos de neve rodopiavam em torno da esquina da casa como pombas esvoaçantes. Do outro lado do vale, o pequeno comboio negro rolava hesitante através da planície toda branca.
Vendo-se tão pobres, as crianças ficavam radiantes quando podiam fazer qualquer coisa que pudesse ajudar os pais economicamente. Annie, Paul e Arthur saíam no Verão logo pela manhã e metiam-se pelo meio da erva molhada, de onde esvoaçavam cotovias, assustadas, à cata de cogumelos, esses corpos nus e de pele tão branca que se escondem dos olhares por entre o verde. Se conseguiam apanhar meia libra, já se davam por muito felizes: era a alegria de encontrarem qualquer coisa, a alegria de receberem qualquer coisa directamente das mãos da natureza e a alegria de poderem contribuir para a economia doméstica.
Mas a colheita mais importante, depois de andarem à procura de ervas aromáticas para as papas, era a das amoras. Mrs. Morel tinha de comprar fruta todos os sábados para os pudins; além disso, gostava muito de amoras. Assim, Paul e Arthur, enquanto houvesse uma amora à vista, esquadrinhavam os silvados, as moitas e as pedreiras abandonadas todos os fins-de-semana. Naquela região de cidades mineiras, as amoras eram relativamente raras. Mas Paul era persistente. Gostava de andar pelos campos entre os silvados, mas não suportava voltar de mãos a abanar. Isso seria desapontá-la, pensava ele, e antes queria morrer.
– Santo Deus! – exclamou a mãe ao vê-los entrar, já tarde, mortos de cansaço e cheios de fome. – Por onde é que vocês andaram?
– Bem – começou Paul –, como aqui não encontrámos nenhuma, fomos até Misk Hills... E veja só, mãe.
Ela espreitou para a cesta.
– E que lindas que são! – exclamou.
– E passa de duas libras... passa de duas libras, não passa, mãe?
A mãe tomou o peso à cesta.
– Passa, sim – respondeu, pouco convicta.
Paul estendeu-lhe um raminho. Trazia-lhe sempre um raminho, o mais bonito que encontrasse.
– Que bonito! – disse ela, com a entoação especial da mulher que recebe um testemunho de amor.
O filho preferia correr os campos o dia inteiro, calcorrear milhas e milhas, a dar-se por vencido e voltar de mãos vazias. Ela nunca o entendeu enquanto ele foi pequeno. Era uma mulher que esperava que os filhos crescessem depressa e se preocupava sobretudo com William.
Mas quando William foi trabalhar para Nottingham, e já não passava tanto tempo em casa, a mãe fez de Paul seu companheiro. Este sentia involuntariamente ciúmes do irmão, e William tinha ciúmes de Paul, mas eram ao mesmo tempo bons amigos.
A relação de Mrs. Morel com o seu segundo filho era mais subtil e tranquila, menos exacerbada talvez do que com o filho mais velho. Estava estabelecido que era Paul quem ia levantar o salário às sextas-feiras à tarde. Os mineiros das cinco minas da zona recebiam à sexta-feira, mas não individualmente. Os salários referentes a cada galeria eram pagos por junto ao capataz, chefe e contratador dos mineiros, e era ele quem fazia a distribuição, na taberna ou na sua própria casa. Para as crianças poderem ir buscar o dinheiro, a escola acabava mais cedo às sextas-feiras. Todos os filhos de Morel, primeiro William, depois Annie e agora Paul, já tinham ido buscar o dinheiro às sextas-feiras à tarde, até chegar a altura de eles próprios começarem a trabalhar. Paul costumava sair de casa às três e meia, com um saquinho de pano no bolso. Por todos os caminhos se viam mulheres, raparigas, crianças e homens a caminho dos escritórios.
Os escritórios eram muito bonitos: num edifício novo de tijolo vermelho, que mais parecia uma mansão, no meio de um jardim muito bem tratado, ao fundo de Greenhill Lane. A sala de espera era no vestíbulo, uma sala comprida e nua com chão de tijoleira azul e um banco a toda a volta, encostado à parede. Era aqui que se sentavam os mineiros, carregados de fuligem. Tinham saído mais cedo da mina. As mulheres e as crianças ficavam geralmente à espera nos arruamentos de gravilha avermelhada. Paul observava sempre com atenção a orla de relva e o grande canteiro onde cresciam amores-perfeitos e miosótis. Aos ouvidos chegava-lhe o som de muitas vozes misturadas. As mulheres exibiam os seus chapéus domingueiros. As raparigas tagarelavam animadas. Os cães corriam para um lado e para o outro. E, em redor, os arbustos erguiam-se verdes e silenciosos.
Nisto, alguém gritava de lá de dentro: «Spinney Park... Spinney Park», e todos os da mina de Spinney Park entravam de tropel. Quando chegava a vez da mina de Bretty, Paul entrava com a multidão. A sala de pagamentos era muito pequena. Um balcão a toda a largura dividia-a ao meio. Atrás do balcão estavam dois homens, Mr. Braithwaite e um empregado, Mr. Winterbottom. Mr. Braithwaite era um homem corpulento, com ar de patriarca austero e uma barbicha branca e rala. Tinha geralmente a boca tapada com um grande lenço de pescoço, em seda, e, mesmo no Verão, havia sempre uma fogueira acesa. Não se via uma janela aberta. Por vezes, no Inverno, o calor até chegava a queimar as gargantas de quem vinha do ar gélido do exterior. Mr. Winterbottom era baixinho, gordo e calvo. Tecia comentários sem o mínimo resquício de imaginação, enquanto o seu chefe não se cansava de proferir patriarcais invectivas contra os mineiros.
A sala estava apinhada de mineiros todos enfarruscados, homens que já tinham ido a casa mudar de roupa, mulheres e uma ou duas crianças, e, geralmente, um cão. Paul era bastante baixo e era por isso sina sua ver-se entalado entre as pernas dos homens, perto do calor sufocante da lareira. Sabia a ordem por que os nomes eram chamados: de acordo com o número da galeria.
– Holliday – chamou a voz metálica de Mr. Braithwaite. Mrs. Holliday avançou em silêncio, recebeu o salário e passou para o outro lado.
– Bower... John Bower.
Um rapaz chegou-se ao balcão. Mr. Braithwaite, uma bisarma irascível, fuzilou-o com o olhar por detrás das lentes.
– John Bower! – voltou ele a chamar.
– Sou eu – disse o rapaz.
– Esta agora..., dantes as ventas eram outras – disse o luzidio Mr. Winterbottom, espreitando por cima do balcão. Os presentes riram-se à socapa, a pensarem no John Bower pai.
– Porque é que o teu pai não veio? – perguntou Mr. Braithwaite, num tom magistral e grandiloquente.
– Não anda bem – respondeu o rapaz, na sua voz aflautada.
– Devias dizer-lhe para largar a bebida – aconselhou o corpulento tesoureiro.
– E depois não te queixes, se ele te ferrar um pontapé – disse uma voz trocista lá de trás.
Todos se riram. O tesoureiro, avantajado e com ares importantes, olhou para a folha que se seguia.
– Fred Pilkington! – chamou, em tom neutro.
Mr. Braithwaite era um importante accionista da firma.
Paul sabia que só faltava um e depois era a vez dele. O coração começou a bater mais depressa. Foi empurrado de encontro à chaminé. Tinha a barriga das pernas a arder, mas não podia furar a barreira humana à sua volta.
– Walter Morel! – soou a voz metálica.
– Aqui – esganiçou-se Paul, da sua pequenez desajeitada.
– Morel... Walter Morel! – repetiu o tesoureiro, de folha de pagamentos na mão, pronto a passar à frente.
Paul foi acometido de convulsões nervosas e não conseguia, ou não queria, gritar. As costas dos homens apagavam-no por completo. Então, Mr. Winterbottom veio em seu auxílio.
– Ele tava aqui... onde tá ele? O miúdo do Morel?
O homem gordo, vermelhusco e calvo perscrutou a sala, assestando os olhos. Nisto, apontou para a chaminé. Os mineiros olharam também e, afastando-se, libertaram o rapaz.
– Aqui tá ele! – disse Mr. Winterbottom. Paul aproximou-se do balcão.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros... Atão, não respondes quando te chamam? – disse Mr. Braithwaite. Pousou um saco com cinco libras em prata com toda a força em cima da folha de pagamentos e, depois, num gesto rápido e delicado, pegou numa pequena pilha de dez libras em ouro e colocou-a ao lado da prata. As moedas de ouro escorregaram sobre o papel como um rio de brilho. O tesoureiro acabou de contar o dinheiro e o rapaz levou tudo a Mr. Winterbottom, no outro extremo do balcão, a quem deviam ser pagas a renda da casa e o aluguer das ferramentas. Aí chegado, novo percalço.
– Dezasseis xelins e seis dinheiros – disse Mr. Winterbottom.
O rapaz estava nervoso de mais para contar o dinheiro, pelo que empurrou algumas moedas de prata e meio soberano na direcção do funcionário.
– Quanto julgas tu que me destes? – perguntou Mr. Winterbottom.
O rapaz fitou-o, sem responder. Não fazia a menor ideia.
– Perdestes a língua?
Paul mordeu o lábio e empurrou mais algumas moedas de prata por cima do balcão.
– Na escola num t’insinaram a contar? – perguntou o homem.
– Só álgibra e franciú – disse um mineiro.
– E a ser sabido – acrescentou outro.
Paul sabia que por sua causa havia gente à espera. Com mãos trémulas, guardou o dinheiro no saco e saiu. Estas ocasiões eram para ele como as penas do Inferno.
Quando se apanhou cá fora, na estrada de Mansfield, sentiu-se infinitamente aliviado. O muro do parque estava coberto de musgo muito verde. Galinhas brancas e douradas debicavam à volta das macieiras de um pomar. Os mineiros serpenteavam rumo a casa. O rapaz seguia rente ao muro, envergonhado. Conhecia muitos dos homens, mas assim, todos sujos, não conseguia identificá-los, o que para ele era uma nova tortura.
Quando chegou à taberna New Inn, em Bretty, o pai ainda não tinha chegado. Mrs. Wharmby, a taberneira, conhecia-o. A avó dele, a mãe de Morel, fora amiga de Mrs. Wharmby.
– O teu pai ainda não chegou – disse ela, naquele tom meio atrevido, meio maternal, de mulher habituada a falar sobretudo com homens feitos. – Senta-te.
Paul sentou-se ao balcão, na beira de um banco alto. Alguns mineiros estavam a um canto a «dividir o bolo» – a distribuir o dinheiro – e outros vinham a entrar. Todos miravam o rapaz, sem dizer palavra. Finalmente, Morel chegou, todo desempenado e com um certo toque de galhardia, apesar da pretidão.
– Olá – disse ele, ternamente, para o filho. – Atão, inda conseguiste chegar primeiro do qu’eu? Queres beber alguma coisa?
Paul, tal como os irmãos, tinha crescido um anti-alcoólico convicto, e para ele era pior beber uma limonada à frente de todos aqueles homens do que tirar um dente.
A taberneira mirou-o dos pés à cabeça, penalizada, mas ao mesmo tempo ofendida com a rigidez moral de que dava mostras. Paul voltou para casa rubro de vergonha. Entrou em silêncio. Sexta-feira era dia de cozer o pão e havia geralmente uma carcaça quentinha à sua espera. A mãe veio dar-lha.
De repente, ele virou-se a ela furioso, de olhos a faiscar.
– Nunca mais entro naquele escritório.
– Porquê, o que é que aconteceu? – perguntou a mãe, surpreendida. Divertia-se imenso com os súbitos ataques de fúria deste filho.
– Nunca mais lá volto – afirmou ele.
– Pronto, está bem. Então, vai dizer isso ao teu pai.
Paul mastigava o pão como se tivesse alguma coisa contra ele.
– Não vou... Não vou mais buscar o dinheiro.
– Então talvez um dos miúdos do Carlin possa ir. Eles haviam de gostar de ficar com os seis dinheiros – disse Mrs. Morel.
Os seis dinheiros era tudo o que Paul recebia. Gastava-os quase todos a comprar presentes de aniversário, é certo, mas eram a sua semanada e prezava-os muito. Porém, disse:
– Pois que fique com eles! Eu não os quero.
– Muito bem – respondeu a mãe. – Mas não precisas de me tratar mal por causa disso.
– Eles são horríveis e ordinários... são horríveis, pronto, e eu não vou lá mais. Mr. Braithwaite pronuncia mal as palavras e Mr. Winterbottom diz «a gente semos».
– E é por isso que não queres lá voltar? – disse a mãe a sorrir.
O rapaz ficou calado. Estava muito pálido, com os olhos pretos e furiosos. A mãe voltou aos seus afazeres sem lhe dar mais importância.
– Eles metem-se todos à minha frente e eu não consigo sair donde estou – disse ele.
– Bem, meu filho, só tens de pedir licença – respondeu ela.
– E depois o Alfred Winterbottom diz, «O qu’é que t’insinam na escola?»
– A ele nunca ensinaram grande coisa – disse Mrs. Morel. – Lá isso é verdade... nem boas maneiras, nem inteligência... a única coisa que tem é manha.
– E vão eles e dizem, «Só álgibra e franciú.» Na escola, não ensinam francês.
– Mas, se ensinassem – disse a mãe, sorrindo – não era preciso ficares tão zangado... Portas-te duma maneira tão infantil, meu filho, quando alguém brinca contigo.
– E depois? – Paul olhou para a mãe quase a chorar, e ainda com mais raiva e ódio do que propriamente ofendido.
– És tão pateta – continuou ela. – Não consegues dizer simplesmente «agora é a minha vez», deixas-te ultrapassar e depois ficas furioso. A culpa é tua.
E, assim, lá o acalmou, embora à sua maneira. A ridícula hiper-sensibilidade dele confrangia-lhe o coração. Outras vezes, a fúria que via nos olhos do filho alertava-a, fazia a sua alma adormecida levantar a cabeça momentaneamente, surpreendida.
– Quanto foi desta vez? – perguntou.
– Dezassete libras, onze xelins e cinco dinheiros, e dezasseis xelins e seis dinheiros de retenção – replicou o rapaz. Foi uma boa semana... e só cinco xelins de retenções para o meu pai.
Assim, ela podia calcular quanto o marido tinha ganho, e chamá-lo à pedra se ele lhe desse pouco dinheiro. Morel guardava sempre para si o segredo do montante da semana.
Sexta-feira era a noite de cozer pão e de ir ao mercado. Regra geral, Paul ficava em casa a vigiar o pão. Gostava de ficar a desenhar ou a ler – adorava desenhar. Annie punha-se sempre ao fresco à sexta-feira à noite, e Arthur entretinha-se a brincar na rua, como de costume. Por isso, Paul ficava sozinho.
Mrs. Morel gostava muito de ir à compras. No exíguo terreiro no cimo da colina onde se juntavam as quatro estradas vindas de Nottingham e Derby, Ilkeston e Mansfield, eram montadas muitas barracas. Chegavam breques das aldeias em redor. O mercado enchia-se de mulheres, as ruas ficavam apinhadas de homens. Mrs. Morel costumava discutir com a vendedeira de rendas, simpatizava com o homem da fruta, que era muito falador – mas a mulher, essa era uma desavergonhada, sempre a dar conversa ao peixeiro, que era um patife, mas muito espirituoso – metia na ordem o vendedor de linóleo, mostrava-se distante com o homem do bricabraque, e só entrava na barraca das loiças quando se sentia atraída – ou arrastada – pelas florinhas que decoravam algum prato ou alguma travessa. Mas, sempre que isso acontecia, mostrava-se delicadamente reservada.
– Estava aqui a pensar quanto poderia custar isto – dizia ela.
– Sete dinheiros, por ser para si.
– Obrigada.
Pousava de novo a travessa e ia-se embora. Mas não era capaz de deixar o mercado sem a levar. E lá ia ela outra vez ao sítio onde as loiças estavam expostas pelo chão, e olhava de soslaio para a travessa, furtivamente, fingindo que não estava a olhar.
Era uma mulher franzina, de chapéu e fato preto. O chapéu já tinha quase três anos, para vergonha e desespero de Annie.
– Mãe! – implorava ela. – Não ponhas mais esse chapéu horroroso.
– E queres que eu ponha o quê? – retorquia a mãe, com aspereza. – Acho que está até muito bom.
Começara por ser enfeitado com uma pala, depois seguiram-se flores, e agora estava reduzido a uma rendinha preta e um pouco de azeviche.
– Tem tão mau aspecto – dizia Paul. – Não lhe pode dar um ar um pouco mais moderno?
– Posso é dar-te umas boas palmadas, para não seres atrevido – disse Mrs. Morel, e atava as fitas do chapéu preto debaixo do queixo, com determinação.
Contemplou a travessa uma vez mais. Tanto ela como o oleiro se sentiam pouco à vontade, como se entre eles existisse qualquer desentendimento. De repente, o oleiro exclamou:
– Quer levá-la por cinco dinheiros?
Ela estremeceu. O coração apertou-se-lhe. Mas, depois, baixou-se e pegou na travessa.
– Fico com ela – disse ela.
– Faz-me esse favor, não é? – disse o homem. – O melhor é cuspir-lhe em cima, como se faz quando nos dão uma prenda.
Mrs. Morel deu-lhe os cinco dinheiros com frieza.
– Não acho que ma esteja a dar, percebe – disse ela. – Se não quisesse, não ma deixava levar por cinco dinheiros.
– Neste país de miséria, já nos podemos dar por muito felizes se pudermos dar as nossas coisas – resmungou o homem.
– Pois é, há tempos bons e maus – disse Mrs. Morel.
Mas já tinha perdoado ao oleiro. Agora, eram amigos. Já se atrevia a mexer nas loiças expostas e sentia-se feliz.
Paul estava à espera da mãe. Adorava vê-la entrar em casa. Chegava sempre radiante, triunfante, cansada, carregada de embrulhos, mas rica de espírito. Ele ouvia os seus passinhos leves na entrada e levantava os olhos das pinturas.
– Oh! – suspirava ela, sorrindo-lhe da soleira da porta.
– Ena pá, como vem carregada! – exclamava Paul, pousando o pincel.
– Se venho! – dizia ela, ofegante. – A marota da Annie disse que ia ter comigo. Olha para o peso que eu trago!
Pousou o saco e os pacotes em cima da mesa.
– O pão já está cozido? – perguntou, dirigindo-se para o forno.
– O último está a crescer – respondeu ele. – Não precisa de ir ver, eu não me esqueci dele.
– Ai, aquele oleiro! – disse ela, fechando a porta do forno. – Lembras-te de eu te dizer como ele era antipático. Bom, agora já não acho que seja assim tão mau.
– Ah, não?
O filho não tirava os olhos dela. Mrs. Morel tirou o chapelinho preto.
– Não... Acho que ele acaba por não ganhar nada... bem, passa-se o mesmo com toda a gente, nos tempos que correm... e é isso que o deixa mal-encarado.
– A mim deixava com certeza – disse Paul.
– Bom, e não seria para admirar... E ele deixou-me ficar esta... Por quanto é que achas que ele me deixou ficar isto?
Tirou a travessa do papel que a embrulhava e contemplou-a, satisfeita.
– Mostre lá! – pediu Paul.
E ficaram os dois lado a lado a admirar a travessa.
– Adoro ver estas florinhas a enfeitar as coisas – disse Paul.
– Eu também. E lembrei-me do bule que me compraste...
– Um xelim e três dinheiros – disse Paul.
– Cinco dinheiros!
– Foi muito barata, mãe.
– Pois foi. Pode dizer-se que foi quase roubada. Mas já tinha feito muitas extravagâncias e não tinha dinheiro para mais. E, se ele não quisesse, não precisava de ma vender.
– Lá isso, não, não precisava – disse Paul, e ficaram os dois a consolar-se mutuamente do receio de terem roubado o oleiro.
– Podemos usá-la para pôr fruta cozida – alvitrou Paul.
– Ou leite-creme... ou doce de fruta – acrescentou a mãe.
– Ou rabanetes e alface – continuou ele.
– Não te distraias com o pão – disse a mãe, numa voz transbordante de alegria.
Paul foi espreitar o pão e bateu-lhe ao de leve na parte de baixo.
– Já está cozido – disse, mostrando-o à mãe. Ela bateu-lhe também.
– Pois está – respondeu ela, começando a tirar as compras do saco. – Oh, sou uma gastadora, uma perdulária... Sei que um dia me vai fazer falta.
Paul foi a saltitar para junto da mãe, para ver as últimas extravagâncias. Ela abriu um outro embrulho em papel de jornal e pôs à mostra algumas raízes de amores-perfeitos e boninas carmesim.
– Quatro dinheiros! – lamentou-se.
– Que barato! – exclamou ele.
– Pois é, e logo esta semana que eu estava sem um tostão.
– Mas são lindas! – exclamou ele.
– Então não são! – exclamou ela, dando lugar ao mais genuíno contentamento. – Paul... olha para esta florinha amarela... que bonita, não é... e uma cara que parece de velho!
– E parece mesmo! – exclamou Paul, baixando-se para cheirar. – E que bem que cheira! Mas está um bocado suja.
Correu para a copa, voltou com um pano molhado, e lavou o amor-perfeito com todo o cuidado.
– Agora, olhe para ele, está todo molhado! – disse Paul.
– Pois está! – exclamou ela, a transbordar de felicidade.
As crianças de Scargill Street consideravam-se muito selectas. Ao fundo da rua, onde viviam os Morels, não havia muita gente nova, e, por isso, os que havia eram mais unidos. Rapazes e raparigas brincavam uns com os outros: as raparigas participavam nas lutas e jogos violentos dos rapazes, e os rapazes tomavam parte nas danças de roda e nos jogos de faz-de-conta das raparigas.
Annie, Paul e Arthur gostavam das noites de Inverno, quando não chovia. Deixavam-se ficar dentro de casa até os mineiros terem regressado todos, até ser noite fechada e a rua ficar deserta. Nessa altura, enrolavam um cachecol ao pescoço, pois prescindiam do casacão, tal como os outros filhos dos mineiros, e saíam de casa. A entrada da rua estava completamente às escuras daquele lado e a noite estendia-se vazia, com um pequeno emaranhado de luzinhas lá em baixo, na mina de Minton, e um outro bem mais longe, na direcção oposta, na de Selby. As luzes mais distantes pareciam prolongar as trevas para sempre. As crianças olhavam ansiosas para o lampião solitário postado ao fundo da rua, na extremidade da ladeira da encosta. Se o escasso espaço de luz estava deserto, os dois rapazes ficavam desolados. Encostavam-se ao candeeiro, de mãos nos bolsos e costas viradas à noite, aborrecidíssimos, a olharem para as casas às escuras. Nisto, avistaram um bibe por baixo de um casaquinho curto, e uma rapariga de pernas altas a correr para eles.
– Onde tão o Billy Pillins e a vossa Annie e o Eddie Dakin?
– Não sei.
Mas isso não tinha importância – agora já eram três, e punham-se a correr à volta do poste até os outros aparecerem a gritar. Daí em diante, era brincadeira a valer.
Existia apenas este candeeiro. Para trás dele, só a imensa concha de trevas que parecia conter a noite inteira. À sua frente, um caminho largo e escuro percorria a cumeada. De vez em quando, saía alguém desse caminho e dirigia-se para o vale, pelo carreiro, sendo tragado pela noite a uns escassos dez metros de distância. As crianças continuaram a brincar.
Eram excessivamente unidas devido ao isolamento em que viviam. Mas, se se zangavam, a brincadeira ficava completamente estragada. Arthur era muito susceptível, e Billy Pillins, ou melhor, Philips, era-o ainda mais. Paul tinha de tomar o partido de Arthur, e a Paul juntava-se Alice, enquanto Billy Pillins contava sempre com o apoio de Emmie Limb e Eddie Dakin. Depois, envolviam-se os seis à bulha, odiando-se com toda a fúria do mais genuíno ódio, e corriam para casa apavorados. Paul nunca se havia de esquecer de ter visto uma noite, depois de uma destas assanhadas lutas fratricidas, uma grande lua vermelha elevar-se lentamente no céu por cima da estrada deserta da cumeada, sem vacilar, como pássaro gigantesco; e a imagem bíblica que o assaltou, da lua a transformar-se em sangue. No dia seguinte, apressou-se a ir fazer as pazes com Billy Pillins, e as desenfreadas brincadeiras retomaram o seu curso à luz do candeeiro solitário, rodeadas da mais negra escuridão. Mrs. Morel, ao entrar na sala, ouvia as crianças a cantar ao longe:
«Uso sapatos de couro espanhol,
Meias de seda, para meu deleite;
Anéis nos dedos, que brilham ao sol,
E só tomo banho em tinas de leite.»
Pareciam tão absorvidas no jogo, pelo som das suas vozes que penetrava as trevas, que dir-se-ia o canto de criaturas selvagens. A mãe estremecia e entendia-os quando voltavam às oito horas, afogueados, de olhos brilhantes e língua solta e vibrante.
Todos eles gostavam desta casa de Scargill Street pela sua largueza de horizontes, pela sua abertura sobre a concha de mundo que dominava. Nas noites de Verão, as mulheres vinham arrimar-se à cerca da encosta, a conversar, viradas para poente, vendo o sol apagar-se num lampejo e espraiando o olhar até aos montes do Derbyshire, recortados ao longe num céu de carmim, como a crista negra de uma salamandra.
Neste Verão, as minas não estavam a trabalhar em pleno, especialmente as de carvão mole. Mrs. Dakin, que morava ao lado de Mrs. Morel, costumava ficar a ver os homens subirem a encosta lentamente sempre que se assomava à cerca para sacudir o tapete. Viu logo que eram mineiros e ficou à espera lá em cima, alcandorada na colina, alta, magra, olhar astuto e penetrante, uma quase ameaça para os pobres mineiros que a custo trepavam a ladeira. Eram apenas onze horas. A neblina que, como fino crepe negro, cobre o horizonte das manhãs estivais não se tinha ainda dissipado sobre as colinas frondosas desenhadas à distância. O primeiro homem alcançou a cancela, que chiou à sua passagem.
– O quê, mandaram-no embora? – gritou Mrs. Dakin.
– Mandaram, sim senhora.
– É uma pena deixarem-nos vir embora – disse ela, sarcástica.
– Lá isso é – respondeu o homem.
– E não apetece nada voltar para casa agora – disse ela.
O homem seguiu o seu caminho. Quando Mrs. Dakin atravessava o quintal, de volta a casa, avistou Mrs. Morel, que ia despejar as cinzas da lareira.
– Acho que Minton fechou, Mrs. Morel – gritou ela.
– É uma vergonha! – exclamou Mrs. Morel indignada.
– Pois é... Vi mesmo agora o Jont Hutchly.
– Bem podiam ter poupado as solas dos sapatos – disse Mrs. Morel, e voltaram as duas para casa indignadas.
Os mineiros, de caras quase limpas, voltavam para casa. Morel detestava ter de se vir embora. Adorava as manhãs soalheiras, mas ir para a mina e mandarem-no embora logo a seguir estragava-lhe a boa disposição.
– Santo Deus... já? – exclamou a mulher, vendo-o entrar.
– Qu’hei-d’eu fazer, mulher! – berrou ele.
– E eu não tenho comida que chegue.
– Num faz mal, como o farnel que levei – vociferou ele, pateticamente. Sentia-se envergonhado e irritado.
Os filhos, quando chegaram da escola, estranharam ver o pai a comer as duas grossas fatias de pão com manteiga que tinha levado para a mina, já muito secas e sujas.
– Porque é que o meu pai tem de comer o farnel aqui em casa? – perguntou Arthur.
– Porqu’ela ficava toda zangada s’eu num o comesse – respondeu Morel.
– Lá estás tu com histórias! – exclamou a mulher.
– E achas qu’é pra deitar fora? – disse Morel. – Eu num sou esquisito como vocês, que desperdiçam tudo. Se me cai um bocado de pão na mina, no meio daquela porcaria toda, apanho-o e como-o.
– Os ratos comiam-no – disse Paul – e já não era um desperdício.
– Pão cum manteiga pròs ratos? Nem pensar nisso – disse Morel. – Sujo ou limpo, antes comê-lo eu que deitá-lo fora.
– Podias dá-lo aos ratos e comprares mais com o dinheiro que gastas na cerveja – disse Mrs. Morel.
– Ah, podia...? – exclamou o marido.
O Outono que se seguiu foi de míngua. William tinha acabado de partir para Londres e a mãe sentia a falta do dinheiro que ele lhe costumava entregar. Ainda lhe mandou dez xelins por uma ou duas vezes, mas no início tinha muitas compras a fazer. As suas cartas chegavam com regularidade, uma vez por semana. Escrevia longas cartas à mãe em que lhe contava o que fazia, os amigos que tinha, as lições que trocava com um francês, como gostava de viver em Londres. Para a mãe era como se ele estivesse com ela, como no tempo em que morava em casa. E ele todas as semanas lhe escrevia cartas francas e cheias de espírito. Era nele que ela pensava o dia inteiro, enquanto fazia a limpeza da casa. Ele estava em Londres, ia ter sorte. Era quase como se fosse o seu cavaleiro andante, ostentando as cores dela na batalha.
Vinha agora a casa passar cinco dias pelo Natal. Não havia memória de tantos preparativos. Paul e Arthur correram os campos à procura de azevinho e sempre-viva. Annie fez enfeites de papel recortado à moda antiga, e a despensa estava farta como nunca. Mrs. Morel fez um bolo de natal enorme, magnífico, e sentindo-se uma rainha, mostrou a Paul como se pelavam amêndoas. Ele pelou as oleaginosas com reverência, contando-as, uma a uma, não fosse alguma perder-se. Dizia-se que as claras subiam mais num lugar frio e, por isso, Paul foi para a copa, onde o frio era quase insuportável, batendo-as sem parar e correndo excitadíssimo a mostrar a mãe como as claras cresciam, cada vez mais firmes e nevadas.
– Olhe, mãe... estão óptimas, não estão?
Depois, pôs um bocadinho na ponta do nariz e soprou-o para o ar.
– Então, isso não é para estragar – disse a mãe.
Toda a gente andava excitadíssima. William ia chegar na véspera de Natal. Mrs. Morel passou revista à despensa. Havia um grande bolo de passas e um bolo de farinha de arroz; tartes de geleia e de limão, e duas grandes travessas cheias de empadas de carne. E ainda faltavam umas tartes de amêndoa e de queijo que ela preparava a toda a pressa. A casa estava toda enfeitada. A coroa de azevinho, salpicada de bagas bem vermelhas e pendurada entre grinaldas cintilantes, rodopiava por cima da cabeça de Mrs. Morel enquanto ela recortava a massa das tartes na cozinha. A fogueira, imensa, crepitava. A casa rescendia a bolos e massa folhada. William devia chegar às sete horas, mas o mais provável era atrasar-se. Os irmãos tinham ido ao seu encontro. A mãe ficara sozinha. Mas, por volta de um quarto para as sete, Morel voltou para casa. Marido e mulher nada disseram. Ele sentou-se no cadeirão, ansioso, sem saber o que fazer, e ela continuou com os seus cozinhados. A sua comoção só era traída pelo modo meticuloso como ia fazendo as coisas. E o relógio continuou a bater.
– A que horas disseste qu’ele chegava? – perguntou Morel, pela quinta vez.
– O comboio chega às seis e meia – respondeu ela, enfaticamente.
– Então vai chegar por volta das sete e dez.
– Deus te oiça, mas o comboio vai atrasar-se algumas horas no Midlands – disse ela, aparentando indiferença. Fazia-o, no entanto, com a esperança de acontecer o contrário e ele chegar mais cedo. Morel foi até à porta, para ver se o via. Depois voltou para dentro.
– Credo, homem! – disse ela. – Parece que tens bicho-carpinteiro.
– Em vez de estares pr’aí a falar, num era melhor arranjares-lhe alguma coisa para comer? – disse o marido.
– Tenho muito tempo para isso – respondeu ela.
– Num é o que me parece – contrapôs ele, virando-se amuado na cadeira. Ela começou a limpar a mesa da cozinha. A chaleira já apitava. E eles à espera.
Entretanto, os outros três filhos estavam em Lethley Bridge, uma estação da linha do Midlands, a duas milhas de casa. Esperaram uma hora. Chegou um comboio, e nada. Ao fundo da linha, as luzes verdes e vermelhas acendiam e apagavam. Estava muito escuro e fazia muito frio.
– Vai perguntar-lhe se o comboio de Londres já passou – disse Paul a Annie quando avistaram um homem de boné de pala.
– Não vou nada – disse Annie. – Fica mas é calado, senão ele inda nos manda embora.
Mas Paul estava morto por que o homem soubesse que eles esperavam alguém que vinha de Londres, o que lhes dava uma certa importância. Porém, tinha medo, muito medo, de abordar um desconhecido, e ainda por cima de boné de pala. As crianças nem se atreviam a entrar na sala de espera, com medo de que os mandassem embora, e que alguma coisa acontecesse enquanto não estavam na plataforma. E lá continuaram à espera, no frio e na escuridão.
– Já está hora e meia atrasado – disse Arthur, já a desesperar.
– Bem – disse Annie –, é véspera de Natal.
O silêncio crescia entre eles. O irmão não vinha. Perscrutaram a escuridão ao longo da linha férrea. Lá ao fundo, ficava Londres! Uma lonjura infinita, pensaram. Tudo podia acontecer quando se vinha de Londres. Estavam demasiado preocupados para falarem. Enregelados, tristes e mudos, continuavam encostados uns aos outros na plataforma.
Finalmente, passadas mais de duas horas, avistaram os faróis de uma locomotiva a descrever uma curva na distância. Um bagageiro aproximou-se a correr. As crianças chegaram-se para trás com os corações a galope. Um enorme comboio com destino a Manchester parou. Abriram-se duas portas e, de uma delas, saiu William. Os irmãos atiraram-se a ele. Ele, todo contente, entregou-lhes muitos embrulhos e logo explicou que aquele grande comboio só tinha parado numa estação insignificante como Lethley Bridge por causa dele, já que a paragem não estava programada.
Entretanto, os pais iam ficando cada vez mais preocupados. A mesa estava posta, a costeleta grelhada, tudo estava a postos. Mrs. Morel pôs o seu avental preto. Por baixo, tinha o seu melhor vestido. Depois sentou-se e fingiu concentrar-se na leitura. Os minutos arrastavam-se como uma tortura.
– Hum! – disse Morel. – Já passa hora e meia.
– E aquelas crianças à espera! – disse ela.
– O comboio inda num pode ter chegado – disse ele.
– É o que eu digo. Na véspera de Natal vêm com horas de atraso.
Estavam os dois implicativos de tanta ansiedade. O freixo gemia lá fora fustigado por um vento gélido, implacável. E tanta noite a separar Londres do lar! Mrs. Morel sofria. O tiquetaque do relógio irritava-a sobremaneira. Estava a fazer-se tarde. A espera estava a tornar-se insuportável.
Por fim, o ruído de vozes e de passos na entrada.
– Já chegou! – gritou Morel, saltando da cadeira.
Depois, deu um passo à retaguarda. A mãe correu em direcção à porta e ficou à espera. Seguiu-se um tropel de passos, a porta escancarou-se e William apareceu. Largou no chão o saco de viagem e abraçou-se à mãe.
– Mater! – disse ele.
– Meu filho! – gritou ela.
E, durante não mais de dois segundos, ela abraçou-o e beijou-o. Depois, afastou-se e disse, com a naturalidade possível:
– Mas que grande atraso!
– Foi, não foi? – exclamou ele, voltando-se para o pai.
– Então, pai!
E os dois homens trocaram um aperto de mão.
– Então, meu rapaz!
Os olhos de Morel estavam rasos de lágrimas.
– Távamos a ver que nunca mais chegavas – disse ele.
– Então não havia de chegar! – exclamou William, voltando-se para mãe.
– Estás com óptimo aspecto – disse Mrs. Morel, a rir, toda orgulhosa.
– Claro... – respondeu o filho. – Basta ter voltado para casa.
Era um jovem desempenado, alto, garboso e de olhar intrépido. Olhou em volta, para a sempre-viva e o azevinho, e para as empadas que estavam dentro das forminhas em cima do fogão.
– Graças a Deus que nada mudou, mãe – disse ele, satisfeito. Todos ficaram calados por um momento. De repente, ele deu um salto em frente, tirou uma empadinha do fogão e meteu-a na boca de uma só vez.
– Safa, já alguma vez viram um saco roto como este? – exclamou o pai.
William trazia um nunca mais acabar de presentes para todos. Gastara quanto tinha para os comprar. A casa foi invadida por uma certa atmosfera de luxo e prosperidade. Para a mãe, uma sombrinha com o cabo beige com enfeites dourados. Ela guardou-a para quando morresse, e antes queria perder tudo o que tinha a ficar sem ela. Todos receberam coisas bonitas e, além disso, ele trouxe também montes de guloseimas desconhecidas naquelas paragens: geleias de frutos, ananás cristalizado, coisas que as crianças pensavam que só o esplendor de Londres tornava possíveis. E Paul não se calava de gabar tais guloseimas diante dos amigos.
– Ananás autêntico, às fatias, e transformado em cristal... bem bom!
Todos estavam loucos de felicidade. Não há nada que chegue ao próprio lar, e eles amavam-no com paixão, apesar dos maus bocados lá passados. Chegavam visitas, todos vinham dar-lhe os parabéns. Os vizinhos vinham ver o que Londres tinha feito de William e todos achavam que ele estava «um verdadeiro cavalheiro, e um belo rapaz, isso é que estava!».
Quando ele se foi embora outra vez, os irmãos foram chorar às escondidas para sítios diferentes, Morel foi meter-se na cama abatidíssimo e Mrs. Morel sentia-se como se estivesse drogada, como se os seus sentimentos tivessem paralisado. Amava o filho com verdadeira paixão.
William trabalhava no escritório de um advogado ligado a uma grande companhia de navegação e, em Junho, o chefe proporcionou-lhe uma viagem ao Mediterrâneo num dos barcos da companhia, por um preço irrisório. Mrs. Morel mandou-lhe dizer: «Vai, sim, meu filho. Podes não voltar a ter uma oportunidade como essa, e, para mim, ver-te a navegar no Mediterrâneo é talvez ainda melhor do que ter-te aqui em casa.» Mas William veio passar as duas semanas de férias a casa. Nem o Mediterrâneo, apelando embora a toda a sua ânsia de viajar e ao seu deslumbramento de homem pobre diante da opulência do Sul, podiam mantê-lo longe de casa. E isso era para a mãe compensação bastante para todos os sacrifícios.
V
PAUL ENFRENTA A VIDA
MOREL era um homem negligente, indiferente ao perigo, sofrendo por isso inúmeros acidentes. De tal forma que, quando Mrs. Morel ouvia chiar as rodas de uma carroça de transporte de carvão, estacando à sua porta, corria logo para a janela da sala à espera de ver o marido lá sentado, com o rosto macilento por baixo da camada de fuligem, e o corpo inerte, vítima de qualquer contusão ou outro percalço. Se era ele, saía de casa a correr para o ajudar.
Cerca de um ano após William ter ido para Londres, e logo depois de Paul ter saído da escola, mas quando ainda não tinha arranjado trabalho, estava Mrs. Morel no andar de cima e o filho na cozinha, entretido a pintar – fazia maravilhas com os pincéis – quando bateram à porta. Enfadado, Paul pousou o pincel para ir abrir. Simultaneamente, a mãe abriu a janela e espreitou para a rua.
Era um mineiro, um rapazito, que batia à porta.
– É aqui que mora o Walter Morel? – perguntou.
– É, sim! – respondeu Mrs. Morel. – Aconteceu alguma coisa?
Mas ela já tinha adivinhado.
– O seu marido aleijou-se – disse o rapaz.
– Oh, meu Deus! – exclamou ela. – Quando não acontece nada é que é para admirar. O que foi desta vez?
– Num sei bem, mas foi na perna... Levaram-no prò hospital.
– Valha-me Deus! – exclamou ela. – Ah, este homem... este homem...! Não me dá cinco minutos de descanso, eu morra aqui se não é verdade! O polegar já estava quase bom e agora... Tu viste-o?
– Vi-o lá ’baixo. E vi-os trazerem-no pra cima num elevador... tava branco cum’á cal. E o qu’ele berrou quando o Dr. Fraser o examinou na casa das lanternas... sempre aos berros e a praguejar... e a dizer que queria qu’o trouxessem pra casa... que num ia prò hospital...! E o rapaz calou-se.
– Isso é bem dele... quer vir para casa, para me dar trabalho... Obrigada, meu filho... Que cansada que eu estou de tudo isto... cansada e farta... isso é que eu estou!
Desceu as escadas. Paul tinha recomeçado a pintar, mecanicamente.
– Deve ser grave... para o levarem para o hospital... – continuou ela. – Mas que criatura mais descuidada! Os outros homens não podem ter assim tantos acidentes... É isso, ele queria deitar o trabalho todo para cima das minhas costas... E logo agora, que as coisas estavam finalmente a correr um bocadinho melhor... Vá, deixa isso, agora não há tempo para pinturas... A que horas tenho comboio? Agora vou ter de ir até Kreston... o quarto tem de esperar.
– Eu acabo de o arrumar – disse Paul.
– Não precisas... às sete horas estou de volta, acho eu... E o barulho que ele vai fazer... nem quero pensar... E aqueles calhaus de granito de Tinder Hill... ele bem pode chamar-lhes pedrinhas... os solavancos vão dar cabo dele. Não sei porque não consertam a estrada... naquele estado... e com tanta gente a passar por lá na ambulância... Devia haver aqui um hospital... Já compraram o terreno... e não iam faltar acidentes para o manter a funcionar. Mas não, têm de os levar não sei quantas milhas naquela ambulância ronceira até Nottingham. É uma vergonha! E o estardalhaço que ele vai fazer, já sei como é! Quem terá ido com ele?... O Barker, provavelmente. Coitado, vai desejar estar em qualquer lado menos ali. Mas vai cuidar bem dele, eu sei. E agora sei lá quanto tempo ele vai ficar naquele hospital... e ele que detesta! Enfim, se for só a perna, já não é mau.
Ia falando enquanto se preparava para sair. Despindo o corpete à pressa, baixou-se para a caldeira, enquanto a água corria lentamente para o jarro.
– Era bem melhor se esta caldeira não existisse! – exclamou ela, apertando a asa do jarro com impaciência. Tinha uns braços fortes e bem torneados, surpreendentes numa mulher da sua estatura.
Paul arrumou as suas tralhas, pôs a chaleira ao lume e pôs a mesa.
– Só há um comboio às quatro e vinte – disse ele. – Tem tempo de sobra.
– Não tenho, não! – gritou ela, piscando os olhos e fitando-o por cima da toalha, enquanto limpava a cara.
– Tem, sim... Tem pelo menos de beber uma chávena de chá. Quer que vá consigo até Keston?
– Vires comigo para quê, pode saber-se?... Ora deixa cá ver o que é que eu tenho de lhe levar... Valha-me Deus!... A camisa lavada... e é uma sorte estar lavada... mas ficava melhor se a tivesse posto ao ar... as meias... isso ele não vai querer... e uma toalha, acho eu... e lenços... e que mais?
– Um pente, uma faca, um garfo e uma colher – disse Paul. Já não era a primeira vez que o pai ficava internado no hospital.
– Sabe Deus em que estado ele tinha os pés – continuou Mrs. Morel, penteando o cabelo castanho e muito comprido, fino como seda e já salpicado de fios prateados. – Ele nunca se esquece de se lavar da cintura para cima, mas para baixo acha que já não é preciso. Mas devem apanhar lá muitos como ele.
Paul tinha posto a mesa e preparou duas fatias finas de pão com manteiga para a mãe.
– Aqui tem – disse, pondo uma chávena de chá em frente ao lugar dela.
– Agora não tenho tempo – disse ela, secamente.
– Mas tem de ter... Olhe, já está tudo pronto – insistiu o filho.
Ela acabou por se sentar, bebeu uns golinhos de chá e comeu um pouco de pão em silêncio. Estava a pensar.
Daí a nada, tinha de se ir embora, para percorrer a pé as duas milhas e meia até à estação de Keston. Já tinha metido no saco de rede tudo o que ele precisava. Paul ficou a vê-la subir a estrada, entre as sebes de arbustos, pequenina e franzina, e o seu coração sofria por ela, por vê-la sujeita a mais esta provação. E ela, correndo ligeira de tanta ansiedade, sentia atrás de si o coração do filho a acompanhá-la, a tomar para si a parte possível deste fardo, a dar-lhe forças. E, quando chegou ao hospital, pensou: «Ele vai ficar preocupadíssimo quando eu lhe disser que é assim tão grave... o melhor é ter cuidado.» E, de regresso a casa, sentia que tinha com quem partilhar o fardo.
– É grave? – perguntou Paul, mal a viu entrar.
– Mais ou menos – respondeu ela.
– O quê?
Ela suspirou, sentou-se e desapertou as fitas do chapéu. O filho viu-a levantar o queixo e desatar a laçada com os dedos pequeninos, mas endurecidos pelo trabalho.
– Bem – respondeu ela – não se pode dizer que seja perigoso... mas a enfermeira diz que foi uma pancada horrível. Estás a ver... foi um grande bocado de rocha que lhe caiu em cima da perna... aqui, salvo seja... uma fractura múltipla... e tem bocados de osso a sair para fora...
– Ui, que horror! – exclamaram os filhos.
– E claro que ele diz que vai morrer – continuou Mrs. Morel. – É mesmo dele dizer isso... «Estou arrumado, cachopa!», disse ele, olhando para mim. «Não digas disparates», disse eu. «Não vais morrer de uma perna partida, por pior que esteja»... «Só saio daqui num caixão», queixava-se ele. «Bem!», disse eu, «Se queres que eles te levem a passear ao jardim dentro dum caixão, quando estiveres melhor, é só pedires e eles fazem-te a vontade»... «Se acharmos que lhe vai fazer bem», acrescentou a Irmã. Ela é bem simpática, a Irmã, mas muito rigorosa.
Mrs. Morel tirou o chapéu. Os filhos mantiveram-se em silêncio, expectantes.
– Claro que ele está mal – prosseguiu ela. – E vai levar muito tempo a recompor-se. Foi um acidente muito grave e ele perdeu muito sangue... e, já se vê, a lesão é muito perigosa. Ninguém sabe o tempo que vai levar a sarar. E depois há a febre e a gangrena... se correr mal, ele até pode morrer... Mas lá no hospital... e depois ele tem bom sangue... e boa carnadura... Por isso não vejo razão para que tenha de correr mal... Claro que a ferida é muito grande...
Ela estava lívida, da angústia e da emoção. Os três filhos perceberam que o estado do pai era muito grave e a casa ficou silenciosa, perpassada de ansiedade.
– Mas ele melhora sempre – disse Paul, passado um bocado.
– Foi exactamente o que eu lhe disse – exclamou a mãe.
Todos se moviam de um lado para o outro sem fazerem o menor ruído.
– Ele de facto parecia que estava a morrer – disse Mrs. Morel. – Mas a Irmã diz que é das dores.
Annie foi arrumar o casaco e o chapéu da mãe.
– Ficou a olhar para mim quando eu me vim embora...! Eu disse: «Agora tenho de ir, Walter, por causa do comboio... e das crianças...» E ele ficou a olhar para mim... Custou-me tanto...
Paul pegou outra vez no pincel e continuou a pintar. Arthur foi lá fora buscar mais carvão. Annie ficou sentada, muito triste. E Mrs. Morel continuou imóvel, pensativa, na cadeira de baloiço que o marido lhe fizera, quando esperavam o primeiro filho. Estava triste e com muita pena de ver um homem sofrer tanto. Mas, mesmo assim, no fundo do coração, onde a chama do amor devia arder, tinha um vazio. No momento em que toda a sua compaixão de mulher estava exacerbada ao máximo, em que cuidaria dele dia e noite até cair para o lado, em que, se pudesse, de bom grado tomaria as suas dores, algures, num recôndito da alma, era indiferença que encontrava, por ele e pelo seu sofrimento. A dor que sentia vinha sobretudo desta incapacidade de o amar, mesmo quando ele despertava nela as mais fortes emoções. E assim se deixou ficar, pensativa, por um tempo.
– E nisto – disse ela de repente –, quando já ia a meio do caminho, vi que tinha saído com as botas de andar por casa... olhem para isto... – Era um par de botas velhas de Paul, castanhas e com as biqueiras muito gastas. – Nem sabia onde me havia de meter com a vergonha – acrescentou.
Na manhã seguinte, quando Annie e Arthur estavam na escola, Mrs. Morel conversou mais com Paul enquanto ele andava a ajudá-la a arrumar a casa.
– Encontrei o Barker no hospital. Não parecia muito atrapalhado, coitado. «Então», disse eu, «como correu a viagem?» «Num me pregunte, ’nha senhora!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «Eu sei como ele é.» «Mas foi muito custoso pra ele, Mrs. Morel, iss’é que foi!», disse ele. «Eu sei», disse eu. «A cada safanão, eu inté pensava qu’o coração m’ia saltar pela boca», disse ele. «E os gritos qu’ele dav’às vezes, ’nha senhora... nem que me paguem uma fortuna, me quero ver noutra igual.» «Entendo perfeitamente», disse eu. «A coisa tá feia a valer», disse ele, «e vai levar muito tempo pra ficar bom.» «Também acho que sim», disse eu. Eu gosto de Mr. Barker... gosto mesmo. É um homem e tanto.
Paul continuava a pintar em silêncio.
– E já se sabe – continuou Mrs. Morel –, para um homem como o teu pai é muito duro estar no hospital. Para ele não há normas nem obrigações. E não deixa que ninguém lhe toque, a não ser que não tenha outro remédio. Quando esmagou os músculos da coxa, e tinha de mudar o penso quatro vezes por dia, ele deixava mais alguém mudar-lho a não ser eu ou a mãe dele?... Nem pensar nisso. Claro que agora vai sofrer no hospital, com todas aquelas enfermeiras... Não me agradou nada ter de o deixar lá ficar. Foi um dó de alma quando tive de lhe dar um beijo e vir-me embora...
Mrs. Morel falava com o filho quase como se estivesse a pensar em voz alta para ele ouvir, e ele colaborava o melhor que podia, partilhando com ela o sofrimento, para a aliviar. Afinal, mesmo sem saber, ela partilhava quase tudo com ele.
Morel passou muito mal. Durante uma semana o seu estado foi crítico. Depois, começou a melhorar e, quando souberam que o mau tempo tinha passado, toda a família respirou de alívio e a vida seguiu feliz.
Não passaram grandes dificuldades enquanto Morel esteve internado. Recebiam catorze xelins por semana da mina, dez da assistência aos enfermos, e cinco do Fundo de Invalidez. Além disso, os capatazes traziam todas as semanas qualquer coisa a Mrs. Morel, cinco ou sete xelins, pelo que ela vivia com bastante desafogo. E enquanto Morel ia melhorando no hospital, em casa a família vivia em paz e alegria. Aos sábados e quartas-feiras, Mrs. Morel ia visitar o marido a Nottingham. No regresso trazia sempre qualquer lembrança para os filhos: um tubo de guache para Paul, outras vezes papel cavalinho; postais para Annie, de que toda a família usufruía durante dois ou três dias antes de a deixarem enviá-los a alguém; ou então uma serra para Arthur, ou um belo bocado de madeira. E depois contava animadamente as suas aventuras nos grandes armazéns. Não tardou que os empregados da loja de gravuras a ficassem a conhecer e soubessem tudo sobre Paul. A rapariga da livraria simpatizava até muito com ela. Mrs. Morel tinha histórias sem fim para contar quando voltava de Nottingham. Ficavam os três sentados até à hora de irem para a cama a ouvirem-na contar histórias, a meterem a sua colherada, a conversarem. Depois, era geralmente Paul quem abafava o borralho.
– Agora, sou o homem da casa – dizia ele à mãe, todo ufano. Descobriram como o lar podia ser um lugar de perfeita tranquilidade e, embora nenhum deles ousasse admitir tal desumanidade, quase lamentaram quando souberam que o pai não tardaria a voltar para casa.
Paul tinha agora catorze anos e andava à procura de um emprego. Era um rapaz baixo e franzino, de cabelo castanho-escuro e olhos azul-claros. O seu rosto já tinha perdido os traços arredondados da infância e parecia-se agora com o de William, mais duro, quase austero, e com extraordinária mobilidade. Em geral, parecia estar sempre atento, cheio de vida e de ternura; umas vezes, o seu sorriso, igualzinho ao da mãe, abria-se pronto e encantador; outras, quando algum obstáculo lhe travava o passo ao espírito, a expressão do seu rosto adquiria fealdade e estupidez. Era um daqueles rapazes que se portam como palhaços desajeitados quando não são compreendidos ou sentem que não lhes dão o justo valor, mas que, com igual rapidez se transformam em criaturas adoráveis à primeira prova de ternura.
O primeiro contacto com as coisas era sempre penoso para ele. Aos sete anos tivera de se sujeitar à tortura de entrar para a escola. Mas depois até gostava. E agora, sentindo que era chegada a hora de enfrentar a vida, atravessava crises de avassaladora timidez. Pintava com bastante talento e inteligência para a sua idade, e sabia um pouco de francês, alemão e matemática, coisas que Mr. Heaton lhe havia ensinado. Como a mãe dizia, não era suficientemente forte para o trabalho manual, e também não se interessava por fazer coisas com as suas próprias mãos, preferindo correr, passear pelos campos, ler ou pintar.
– Que queres ser na vida? – perguntava-lhe a mãe.
Não fazia a menor ideia. Teria gostado de continuar a pintar, mas isso nem lhe passou pela cabeça, pois era impossível. Não havia nada que lhe interessasse muito fazer. Mas agora era urgente que começasse a ganhar dinheiro. E, uma vez que não achava que o seu trabalho valesse muito em termos monetários, e sabia que um homem ganhava em qualquer emprego trinta ou trinta e cinco xelins por semana, respondia invariavelmente:
– Qualquer coisa.
– Isso não é resposta – dizia Mrs. Morel.
Mas era a única resposta verdadeira que ele podia dar. As suas ambições, em termos materiais, eram ganhar tranquilamente os seus trinta ou trinta e cinco xelins por semana algures perto de casa, e depois, quando o pai morresse, ter uma casinha no campo, onde viveria com a mãe feliz para sempre, a pintar e a passear o quanto lhe apetecesse. Por agora, era este o seu programa. Tinha-se porém em grande conta, julgando as outras pessoas em relação a si próprio e classificando-as impiedosamente. Às vezes, pensava que talvez pudesse vir a ser um pintor a sério, mas por enquanto não queria alimentar tal sonho.
– Então tens de procurar nos anúncios do jornal – disse a mãe.
Paul ficou a olhar para ela. Parecia-lhe nova humilhação e mais uma tortura a suportar. Mas não disse nada. Desde manhãzinha só tinha um pensamento a martelar-lhe na cabeça: «Tenho de ir ver os anúncios de empregos.»
Este pensamento ensombrava-lhe a manhã e matava-lhe a alegria de viver. Sentia o coração apertar-se-lhe num nó.
Por fim, às dez horas, lá foi ele. As pessoas consideravam-no um rapaz envergonhado, reservado. Ao subir a rua ensolarada, tinha a sensação de que todos os que encontrava iam pensar: «Lá vai ele para a sala de leitura da Cooperativa, para procurar um emprego no jornal. Não consegue arranjar nada. Acho que está a viver à custa da mãe.» Lá chegado, subiu furtivamente a escadaria de pedra por detrás da loja de tecidos e espreitou para a sala de leitura. Geralmente havia por lá uma ou duas pessoas: velhos desocupados, já sem préstimo, ou mineiros «de baixa». Entrou muito retraído, e ficou deveras aflito quando eles levantaram a cabeça; sentou-se à mesa e fingiu estar a passar os olhos pelas notícias. Sabia no que eles estavam a pensar: «O que fará um miúdo de treze anos numa sala de leitura, agarrado a um jornal?» E isso magoava-o.
Depois, pôs-se a olhar lá para fora, pensativo. E sentia-se já presa do industrialismo. Por cima do velho muro fronteiriço de tijolo vermelho grandes girassóis miravam divertidos as mulheres que passavam apressadas, levando qualquer coisa para o almoço. O vale estava coberto de searas radiantes batidas pelo sol. Lá no meio, duas minas agitavam os seus finos penachos de vapor. Nas encostas distantes avistavam-se as florestas de Aldersley, tão cerradas e fascinantes. E logo o coração lhe esmoreceu. Sentia-se aprisionado. Chegara ao fim a vida em liberdade naquele vale que tanto amava.
A carroça da cerveja vinha de Keston estrada acima, carregada de barris – quatro de cada lado – apertados que nem feijões numa vagem. O carroceiro, encarrapitado no seu trono e oscilando pesadamente no assento, não passou a grande distância dos olhos de Paul. O cabelo do homem, de cabeça pequena e fusiforme, estava quase todo branco, descorado pelo sol, e nos braços grossos e avermelhados, balouçando lassamente sobre o avental de estopa, cintilavam pêlos também brancos. A face afogueada reluzia, quase adormecida de tanto sol. Os cavalos, castanhos e elegantes, seguiam a seu bel-prazer, mostrando serem eles os senhores da situação.
Paul queria ser estúpido. «Quem me dera», pensou de si para si, «ser gordo como ele e passar a vida estirado ao sol como um cão. Quem me dera ser um porco e condutor duma carroça de cerveja.»
Depois, vendo a sala finalmente vazia, copiou rapidamente um anúncio para um bocado de papel, e depois outro, e saiu à socapa, sentindo-se imensamente aliviado. A mãe examinou os anúncios.
– Sim – disse ela. – Podes tentar.
William tinha mandado uma carta admiravelmente redigida em linguagem comercial e Paul copiou-a com algumas alterações. A caligrafia do rapaz era execrável, pelo que William, que fazia tudo bem feito, fervia de impaciência.
O irmão mais velho estava a ficar muito pretensioso, ao descobrir que em Londres se podia dar com homens de uma classe muito superior à dos seus amigos de Bestwood. Alguns dos seus colegas do escritório tinham estudado leis e estavam a fazer uma espécie de estágio. William, dado o seu feitio extrovertido, fazia sempre amigos por onde passava e não tardou que começasse a frequentar a casa de pessoas que, em Bestwood, teriam olhado com desdém para o inacessível gerente do banco local e tratado com indiferença o próprio pastor. Começou, por isso, a achar-se um homem importante e até se admirava da facilidade com que se tinha tornado um cavalheiro.
As cartas que escrevia à mãe ilustravam bem a satisfação que sentia.
«The Myrmidons
Limpsfield
Mater querida,
É uma da manhã. Imagine o seu filho a escrever-lhe sentado numa velha cadeira de carvalho, com um candeeiro eléctrico dos mais modernos à frente dele, em cima da mesa. Vestido a rigor, com os botões de punho que lhe ofereceu quando fez 21 anos e achando-se o melhor do mundo. Só queria que a mãe o pudesse ver. Em comparação, Salomão, em toda a sua glória, deve ter-se sentido mal vestido.
Estou a passar o fim-de-semana com o Loosemore, e aproveitei a oportunidade para lhe escrever. ...»
A mãe ficou contente de o ver tão satisfeito. O seu quarto em Walthamstow era tão deprimente. Mas agora as cartas do filho deixavam transparecer uma súbita febre de viver. Afectado por tantas e tão súbitas mudanças, não tinha os pés assentes na terra, e parecia deixar-se arrastar vertiginosamente pelo turbilhão da sua nova vida. A mãe temia por ele. Sentia que ele se estava a perder. Tinha ido a um baile, ido ao teatro, andado de barco no rio, saído com os amigos; mas ela sabia que, depois, tinha ficado até altas horas acordado no quarto gélido a estudar latim, pois queria subir no escritório e estudar leis o mais depressa possível. Agora, nunca mandava dinheiro à mãe. A sua nova vida levava-lhe o pouco que ganhava. Ela também não queria que ele lho mandasse, excepto às vezes, quando as dificuldades eram maiores e dez xelins teriam sido o suficiente para a tirar de apuros. Mas continuava a sonhar com o que o filho faria com ela a apoiá-lo. Nem por um segundo seria capaz de admitir toda a angústia que passava por causa dele.
Entretanto, William começara a falar muito numa rapariga que tinha conhecido num baile, uma morena muito bonita e muito nova, uma verdadeira senhora, por quem todos os homens andavam perdidos de amor.
«Duvido que te perdesses por ela, meu filho, se não visses todos os outros perdidos também. As multidões fazem-nos sentir seguros e vaidosos. Mas tem cuidado, e pensa como te sentirás quando te vires sozinho e triunfante...»
William ficou ofendido com os reparos da mãe e não desistiu dos seus intentos. Tinha levado a rapariga a dar um passeio no rio: «Se a mãe a visse, ia entender o que eu sinto. Alta, elegante, com uma pele transparente, a mais transparente de todas as peles de azeitona, cabelo negro de azeviche e uns olhos esverdeados tão brilhantes e trocistas como luzes reflectidas à noite sobre as águas. Admito que seja um pouco mordaz enquanto não a conhecer. E, além disso, veste-se como as mulheres mais elegantes de Londres. Devo dizer-lhe que, quando ela passeia em Piccadilly com o seu filho, ele, por mais que se esforce, não aparenta nem metade do orgulho que sente.»
Mrs. Morel lia e perguntava-se no seu íntimo, se o filho não andaria a passear em Piccadilly com uma mulher apenas elegante e bem vestida, em vez de uma mulher de quem se sentisse próximo. Mas felicitou-o, no seu modo reticente. E enquanto estava encostada ao tanque, a mãe, preocupada, pensava no filho. Via-o casado com uma mulher cara e elegante e um pequeno ordenado, levando a vida conforme podia, numa casa feia e acanhada dos subúrbios. «E daí...», pensava ela, «é por certo tolice minha... vontade de arranjar complicações.» No entanto, o seu coração raramente sossegava, não fosse William fazer alguma asneira.
Entretanto, Paul foi chamado para se apresentar numa firma de acessórios ortopédicos, a Thomas Jordan, em Nottingham, Spaniel Row, número 21. Mrs. Morel estava radiante.
– Estás a ver! – exclamou, de olhos brilhantes. – Só escreveste quatro cartas e recebes resposta logo à terceira. Tens sorte, meu filho, como eu sempre disse.
Paul olhou para a perna de pau adornada com meias elásticas e outros acessórios que constituía o logotipo do papel timbrado de Mr. Jordan, e ficou alarmado. Até aí nem sabia que existiam meias elásticas. Parecia-lhe sentir o mundo dos negócios com o seu sistema de regras e valores e a sua impessoalidade, e isso atemorizava-o. Parecia-lhe também monstruoso que se pudesse fazer negócio com pernas de pau.
Numa bela terça-feira, manhã cedo, mãe e filho saíram juntos de casa. Era Agosto e o calor abrasava. Paul caminhava com o coração aperreado. Mil vezes a dor física, por maior que fosse, a este sofrimento irracional de se ver exposto perante estranhos, sujeito a ser aceite ou rejeitado. No entanto, conversava animadamente com a mãe. Jamais lhe confessaria o sofrimento que estas situações lhe causavam e de que ela só em parte suspeitava. Ia alegre como um passarinho. Postou-se diante da bilheteira, em Bestwood, e ficou a ver a mãe tirar o dinheiro para os bilhetes. Ao reparar nas luvas pretas que trazia, quase de criança e já muito velhas, com que retirou algumas moedas da carteira também coçada, o seu coração contraiu-se de dor e amor por ela. Ela estava muito excitada e bem-disposta, e ele sofria antecipadamente, pois sabia que ela se iria pôr a falar em voz alta diante dos outros passageiros.
– Olha para aquela vaca. Parece tola! A andar às voltas como se estivesse no circo.
– Deve ser algum moscardo – disse Paul, quase a bichanar.
– Algum quê? – perguntou ela, desabrida, sem complexos.
Depois, ficaram calados, pensativos. Paul não conseguia deixar de sentir a presença dela à sua frente. Nisto, os olhos de ambos encontraram-se e ela sorriu-lhe – um sorriso único, íntimo, belo e cintilante, cheio de amor. Em seguida, puseram-se a olhar pela vidraça. Mas ela voltou-se para ele de repente e disse, de forma bem audível:
– Sinceramente, acho que vais conseguir. E, se não conseguires, enfim, não te podes queixar só por não teres conseguido o terceiro emprego a que concorreste, pois não? Mas eu acho que consegues. És um rapaz de sorte, embora não a mereças – Assim falava ela, para todos ouvirem!
O comboio transpôs com lentidão as dezasseis milhas que os separavam do destino, e a viagem terminou. Mãe e filho meteram por Station Street com o entusiasmo de amantes a viver uma aventura. Em Carrington Street, pararam para contemplarem do parapeito as barcaças que passavam no canal.
– Parece mesmo Veneza – disse ele, vendo o sol reflectido na água entre os muros altos das fábricas.
– Talvez – respondeu ela, sorrindo. Ficaram deslumbrados com as lojas.
– Estás a ver aquela blusa? – disse ela. – Ficava mesmo bem à nossa Annie. E só custa uma libra, onze xelins e três dinheiros. Não é barato?
– E é toda bordada – disse o filho.
– É verdade.
Tinham ainda muito tempo, e por isso não precisavam de se apressar. Aos seus olhos, a cidade era estranha e fascinante. Mas o rapaz, apreensivo, era como se tivesse um nó no estômago. Apavorava-o a entrevista com Thomas Jordan.
Eram quase onze horas pelo relógio da igreja de São Pedro. Viraram para uma rua estreita que ia dar ao castelo. Era uma rua sombria, de casas velhas, com lojas baixas e soturnas e as portas dos prédios pintadas de verde-escuro, com grandes argolas de latão e degraus amarelo-ocre avançando sobre o passeio; ao lado, uma outra loja, de outros tempos, cuja montra diminuta parecia um olho astuto e semicerrado. Mãe e filho caminhavam devagar, olhando para as portas, à procura do letreiro Thomas Jordan & Filho. Era como caçar em plena coutada. A excitação atingia o auge.
De súbito, avistaram uma entrada ampla e escura, com os nomes de várias firmas afixados na parede e, entre eles, o da Thomas Jordan.
– É aqui – disse Mrs. Morel. – Mas... onde é que será?
Olharam em volta. De um lado, uma fábrica de papel, lúgubre e bizarra; do outro, o Commercial Hotel.
– É ali ao fundo – informou Paul.
Aventuraram-se pela arcada, como se penetrassem na bocarra de um dragão, indo desembocar num pátio amplo, semelhante a um poço, completamente rodeado de edifícios. O chão estava pejado de palha, caixas e cartões. O sol batia em cheio num caixote de onde saíam palhas que se espalhavam pelo chão como fios de ouro. Mas, fora isso, o lugar era escuro como uma mina. Havia várias portas e dois lanços de escadas. Mesmo em frente, numa porta suja e envidraçada, ao cimo da escada, ressaltavam as palavras fatídicas Thomas Jordan & Filho – Acessórios Ortopédicos. Mrs. Morel foi à frente, seguida pelo filho. Ao subir ao patíbulo, Carlos I tê-lo-á feito certamente com o coração mais leve do que Paul Morel ao subir atrás da mãe os degraus imundos que conduziam à tal porta também imunda.
Mrs. Morel empurrou a porta e ficou agradavelmente surpreendida. Diante dela estendia-se um imenso armazém com embalagens de papel pardo espalhadas por todo o lado, e os empregados, de mangas arregaçadas, movimentavam-se de um lado para o outro com um ar perfeitamente descontraído. A luz não feria a vista, as embalagens em papel brilhante tornavam-se luminosas, os balcões eram de madeira escura. A atmosfera era silenciosa e acolhedora. Mrs. Morel deu dois passos em frente e aguardou. Paul colocou-se atrás da mãe. Ela trazia o seu chapéu de domingo, com o véu preto descido sobre a cara, e ele a gola branca larga, que todos os rapazes usavam, e um fato de corte à caçador.
Um dos empregados olhou para eles. Era alto e magro, de rosto miúdo e olhar vivo e atento. Depois, os seus olhos percorreram a sala até à outra extremidade, onde se via um gabinete envidraçado; só então se aproximou. Não disse uma palavra, inclinou-se apenas perante Mrs. Morel, numa atitude prestável e interrogativa.
– Poderei falar com Mr. Jordan? – pediu ela.
– Vou já chamá-lo – respondeu o jovem.
Dirigiu-se ao gabinete envidraçado. Um homem idoso, de suíças brancas e faces coradas levantou os olhos da secretária. Paul achou-o parecido com um lulu da Pomerânia. Depois, o homenzinho atravessou o armazém para vir ao encontro deles. Tinha pernas curtas, era atarracado e envergava um casaco de alpaca. E lá vinha ele, de orelha arrebitada, por assim dizer, com ar resoluto e olho inquiridor.
– Bom dia! – disse, hesitante, dirigindo-se a Mrs. Morel, sem saber se se tratava ou não de uma cliente.
– Bom dia... Vim com o meu filho... Paul Morel... O senhor pediu-lhe que se apresentasse esta manhã.
– Acompanhem-me – disse Mr. Jordan, com uma frieza e desenvoltura que ele acreditava serem apropriadamente empresariais.
Mãe e filho acompanharam o industrial e entraram numa salinha desarrumada, com cadeirões de couro negro e já muito lustroso de tanto ser usado pelos clientes. Em cima da mesa estava uma pilha de fundas para hérnias – umas bandas de couro amarelo, pré-lavado, atadas em molho. Pareciam novinhas em folha. Paul sentiu o cheiro a couro lavado e perguntou-se o que seriam aquelas coisas. Estava tão atordoado que só reparava no aspecto exterior do que o rodeava.
– Sente-se! – disse Mr. Jordan, ríspido, convidando Mrs. Morel a sentar-se numa cadeira de crina. Ela sentou-se à beirinha, numa posição instável. O homenzinho vasculhou então em cima da secretária e pegou numa folha de papel.
– Foste tu que escreveste esta carta? – desferiu ele, intempestivo, colocando diante dos olhos de Paul um papel que ele logo reconheceu como sendo a carta que mandara.
– Fui, sim – respondeu Paul.
De momento, o rapaz era dominado por dois sentimentos: em primeiro lugar, sentia-se culpado por estar a mentir, uma vez que a carta tinha sido escrita por William; e, em segundo, estranhava como a sua carta podia parecer tão diferente na mão avermelhada e sapuda daquele homem de quando estava em cima da mesa da cozinha. Era como se uma parte dele mesmo se tivesse transviado, e desagradava-lhe a maneira como o homem pegava na carta.
– Onde aprendeste a escrever? – disse o velho, com brusquidão.
Paul limitou-se a olhar para ele envergonhado, sem responder.
– Ele escreve muito mal – interrompeu Mrs. Morel, apologética, levantando o véu em seguida. Paul ficou furioso por a mãe não mostrar mais orgulho perante este homem tão comesinho, mas, ao mesmo tempo, adorou ver o seu rosto sem véu.
– E dizes que também sabes francês? – inquiriu o homenzinho, ríspido, como sempre.
– Sim – respondeu Paul.
– Em que escola andaste?
– Na primária.
– E foi lá que aprendeste?
– Não... eu... – o rapaz ruborizou, e não adiantou mais nada.
– Foi o padrinho que lhe deu umas lições – disse Mrs. Morel, quase numa súplica, e com ar distante.
Mr. Jordan hesitou. E, então, mantendo o seu ar agressivo – parecia ter as mãos sempre prontas a agir – tirou do bolso uma outra folha de papel, desdobrou-a ruidosamente e entregou-a a Paul.
– Ora lê lá isto – disse.
Era uma carta em francês, escrita à mão, numa caligrafia estrangeira, esguia e incerta, que o rapaz não conseguia decifrar. Paul ficou parado a olhar para o papel, como se hipnotizado.
– «Monsieur» – começou ele, olhando em seguida muito aflito para Mr. Jordan.
– É a... é a...
Queria dizer «letra», mas já nem esta palavra conseguia pronunciar. Sentindo-se um perfeito idiota, e furioso com Mr. Jordan, voltou-se em desespero para o papel.
– «Exmo. Senhor... Queira fazer o favor de me enviar»... hum... hum... não consigo perceber a... hum... «dois pares... gris fil bas... de meias cinzentas de algodão... hum... hum... sans... sem...» hum... não consigo perceber a... hum... «doigts... dedos»... hum... não consigo perceber a...
Queria dizer «letra», mas a palavra teimava em não sair. Vendo-o atrapalhado, Mr. Jordan tirou-lhe o papel da mão e leu:
– «Queira fazer o favor de me enviar na volta do correio dois pares de meias cinzentas de algodão, sem os dedos dos pés...»
– Bem – atalhou Paul prontamente – doigts quer dizer apenas dedos... duma maneira geral...
O homenzinho olhou para ele. Tanto se lhe dava que doigts quisesse ou não dizer simplesmente dedos, o que ele sabia era que, para os fins em vista, queria dizer dedos dos pés.
– Só dedos, podia ser das mãos; com que então, dedos das mãos numas meias?! – ripostou Mr. Jordan.
– Bem, a palavra francesa quer mesmo dizer só dedos – teimava o rapaz.
Paul detestava aquele homenzinho que tentava fazer dele parvo. E Mr. Jordan olhava para aquele rapaz pálido, estúpido e atrevido à sua frente, sentado, muito calado, com aquele ar reservado dos pobres que têm de depender dos favores de outras pessoas.
– Quando é que ele pode começar a trabalhar? – perguntou o industrial.
– Bem... – disse Mrs. Morel –, quando o senhor desejar. Ele já deixou a escola.
– E vai continuar a viver em Bestwood?
– Sim... mas pode estar... chegar à estação... a um quarto para as oito...
– Hum!
Paul acabou por ser contratado como aspirante, a ganhar oito xelins por semana. O rapaz não abriu mais a boca depois de teimar que doigts era mesmo dedos (das mãos). Saiu atrás da mãe e desceu as escadas. Mrs. Morel olhou para ele com os seus olhos azuis iluminados de amor e contentamento.
– Acho que vais gostar do emprego – vaticinou.
– Doigts quer dizer só dedos, mãe... e com aquela letra... Eu não percebia a letra.
– Não te preocupes, meu filho... Verás que ele é boa pessoa, e, além disso, não vais ter de contactar muito com ele... Não achaste simpático aquele empregado mais novo?... Tenho a certeza de que vais gostar dos teus colegas.
– Mas a mãe não achou Mr. Jordan um homem grosseiro? Será ele o dono daquilo tudo?
– Cá para mim, começou por ser operário e depois singrou na vida – disse Mrs. Morel. – Não deves dar tanta importância às pessoas. Elas não te querem ofender... é a maneira de falarem... estás sempre a pensar que as pessoas te querem ofender... mas olha que não querem.
Estava um dia cheio de sol. No grande largo deserto do mercado, o céu azul iluminava-se e as pedras de granito da calçada brilhavam cintilantes. As lojas de Long Row estavam mergulhadas na penumbra e a sombra enchia-se de cor. No sítio onde os trens puxados a cavalos atravessavam o mercado, erguia-se uma fiada de bancas de fruta, com os frutos luzindo ao sol – maçãs e montes de laranjas avermelhadas, rainhas-cláudias e bananas. Quando mãe e filho passaram, sentiram no ar o odor morno da fruta. A pouco e pouco, os sentimentos de raiva e ignomínia de Paul foram soçobrando.
– Onde havemos de ir almoçar? – perguntou a mãe.
– E se comprássemos qualquer coisa e fôssemos comer para o Arboretum?
– Não. Nada disso.
– Então vamos ao Morley.
– O chá que lá servem é requentado. Não... tu conseguiste o emprego... vamos fazer uma refeição como deve ser.
Aquilo era para eles uma verdadeira extravagância. Paul só tinha ido a uma casa de pasto uma ou duas vezes na vida, e, mesmo assim, só para tomar chá e um pãozinho. A maior parte dos habitantes de Bestwood achavam que a única coisa para que tinham dinheiro quando iam a Nottingham era chá e pão com manteiga, ou, quando muito, carne afiambrada. Uma refeição cozinhada era um autêntico luxo, e Paul sentia-se até culpado. Encontraram um lugar que lhes pareceu bastante acessível. Porém, quando Mrs. Morel consultou a lista, caiu-lhe a alma aos pés, tal era o preço dos pratos. Mandou vir, por isso, empadas de rim e batata, que era o mais barato.
– Não devíamos ter vindo aqui, mãe – disse Paul.
– Deixa lá – respondeu ela. – Nunca mais cá voltamos.
Depois insistiu para que o filho, que era guloso, comesse uma pequena torta de mirtilos.
– Não quero, mãe – disse ele.
– Queres, sim – teimou a mãe. – Claro que queres.
E pôs-se a ver se chamava a criada. Mas a criada andava toda atarefada e Mrs. Morel não a quis importunar nesse momento, pelo que ficaram os dois à espera de que a rapariga se dignasse atendê-los, enquanto ela andava por ali a cirandar, fazendo olhinhos aos clientes.
– Que desavergonhada! – disse Mrs. Morel, virando-se para Paul. – Olha para ela, a servir pudim àquele homem, e ele chegou muito depois de nós.
– Não tem importância, mãe – disse Paul.
Mrs. Morel estava irritada, mas era pobre de mais e a refeição demasiado modesta para ter a coragem de reclamar os seus direitos imediatamente. E, assim, fartaram-se de esperar.
– Vamos embora, mãe? – sugeriu Paul. Mrs. Morel levantou-se. A rapariga ia a passar.
– Trazia-nos uma torta de mirtilos, por favor? – disse Mrs. Morel em voz suficientemente audível.
Mas a rapariga virou-se e olhou para ela com insolência.
– É para já – retorquiu.
– É que já esperámos um bom bocado – disse Mrs. Morel. A rapariga não tardou com a torta. Mrs. Morel pediu a conta secamente.
Paul tinha vontade de se enfiar pelo chão dentro. Pasmava perante a dureza da mãe. Sabia que haviam sido anos e anos de luta que a tinham ensinado a reclamar os seus direitos, por mais insignificantes que fossem, pois ela era tão tímida como ele.
– É a última vez que ali vou para comer seja o que for! – exclamou ela, já na rua, satisfeita por se ver livre daquele pesadelo.
– Vamos dar uma vista de olhos ao Keep’s e ao Boot’s, e a mais um ou dois armazéns, está bem?
Teceram comentários sobre as gravuras expostas para venda, e Mrs. Morel queria por força comprar ao filho um pequeno pincel de pêlo de marta, com que ele andava a sonhar, mas Paul recusou liminarmente mais esta generosidade, e foi esperando por ela estoicamente à porta dos fanqueiros e dos retroseiros, morto de tédio, mas feliz por ver a mãe tão entretida. E o passeio continuou.
– Veja só aquelas uvas pretas! – disse Paul. – Até fazem crescer água na boca... Há anos que ando desejoso de prová-las, mas ainda vou ter de esperar algum tempo para as poder comprar.
A mãe parou deliciada à porta da florista, a aspirar os aromas.
– Oh!... Oh!... Não é simplesmente uma maravilha?
Apesar de a loja estar na penumbra, Paul vislumbrou uma jovem elegante, vestida de preto, a espreitar por detrás do balcão, com ar divertido.
– Estão a olhar para si – disse Paul, tentando arrastar a mãe dali para fora.
– Mas... o que é aquilo? – exclamou ela, recusando-se a sair de onde estava.
– Goivos! – respondeu ele, cheirando o ar apressadamente. – Veja, têm um alguidar cheio.
– Pois têm... vermelhos e brancos!... Esta agora... nunca reparei que os goivos pudessem cheirar assim! – E, para grande alívio do rapaz, a mãe saiu da porta, mas só para se ir pôr diante da montra.
– Paul! – exclamou ela, virando-se para o filho, que tentava esquivar-se ao olhar da tal jovem elegante toda de preto, a empregada da loja. – Paul! Anda ver isto!
Ele aproximou-se relutante.
– Olha aqueles brincos-de-princesa! – disse ela, apontando.
– Humm! – fez ele, mostrando-se interessado. – Parece que as flores vão cair a todo o momento; são tão grandes e tão pesadas.
– E tantas! – exclamou a mãe.
– E já viu a maneira como se inclinam, com os filamentos e os nódulos...?
– Pois é! – disse ela. – São lindas!
– Sempre gostava de saber quem será que as vai comprar? – disse ele.
– Não faço ideia! – respondeu ela. – Nós não somos.
– Na nossa sala morriam logo.
– É, aquele buraco horrível, gélido e sem réstia de sol... mata qualquer planta que lá se ponha... e a cozinha atabafa-as.
Fizeram algumas compras e seguiram para a estação. Olhando ao longo do canal, pelos intervalos sombrios dos edifícios, avistaram o castelo, alcandorado no seu promontório negro coberto de vegetação, miraculosamente iluminado por um sol suave e radioso.
Vai ser tão bom vir dar um passeio à hora do almoço! – disse Paul. – Posso andar por aqui e ver tudo isto. Vou adorar.
– Vais, sim, meu filho – concordou a mãe.
Paul tinha passado uma tarde agradabilíssima em companhia da mãe. Chegaram a casa já a tarde esmorecia, feliz, ardente, e também cansada. Na manhã seguinte, o rapaz preencheu a requisição para o passe de comboio e levou-a à estação. Quando voltou, estava a mãe a começar a lavar o chão. Ele sentou-se com as pernas cruzadas em cima do sofá.
– O homem diz que o passe chega no sábado.
– E quanto custa? – perguntou ela.
– Mais ou menos uma libra e onze xelins.
A mãe continuou a lavar o chão em silêncio.
– Acha caro? – perguntou Paul.
– Não mais do que eu pensava – respondeu ela.
– E eu vou ganhar oito xelins por semana... – disse ele.
A mãe não respondeu, continuando com o seu trabalho. Por fim, disse:
– O William prometeu-me, quando foi para Londres, que me mandava uma libra por mês. E só me mandou dez xelins... por duas vezes. E sei que agora não tinha um tostão, se eu lho pedisse. Não que eu queira o dinheiro dele, mas nesta altura ficava-lhe bem dar uma ajuda para o passe, embora eu não esteja a contar com isso.
– Ele ganha muito bem – disse Paul.
– Cento e trinta libras. Mas os filhos são todos iguais. Uns mãos largas nas promessas, mas quando se trata de as cumprirem... é o que se vê.
– O William gasta mais de cinquenta xelins por semana só com ele – disse Paul.
– E eu mantenho esta casa com menos de trinta – retorquiu a mãe. – E ainda tenho de inventar o dinheiro para os extras. Mas eles, depois de saírem de casa, querem lá saber de ajudar a mãe. Mais depressa o gastava com aquela doidivanas toda aperaltada.
– Ela há-de ter dinheiro, se é assim tão fina – disse Paul.
– Pois havia, mas não tem. Eu já lhe perguntei... E eu sei bem que ele não lhe compra uma pulseira de ouro sem razão. A mim nunca ninguém me comprou uma pulseira de ouro.
– Ora, a mãe também nunca quis nenhuma.
– Lá isso é verdade... Mas, se quisesse, era o mesmo.
– O pai nunca lhe comprou nada?
– Comprou... um cartucho de maçãs... e foi tudo... todo o dinheiro que gastou comigo, antes de nos casarmos.
– Porquê?
– Porque eu era uma parva, e quando ele me dizia: «O que queres qu’eu te compre?», eu respondia: «Nada.» Ele lembrava-se lá de me trazer alguma coisa! E o William só ia comprar uma pulseira de ouro para uma espertalhona cheia de nove horas.
– Aposto que ela já tem muitas – disse o rapaz.
– Tem muitas, dizes tu? Mas ele também tinha de lhe dar uma, para parecer importante. Ele quer lá saber! Eu pude sustentá-lo enquanto ele ganhava uma miséria, mas depois, mal ele se apanha com dinheiro que se veja, e a gente pensa que vai ter um pouco de paz e segurança, ele desanda, e lá começa a luta de novo, sem ter a quem recorrer quando é preciso alguma coisa, sem ninguém que nos estenda a mão.
– A mãe devia pedir-lho.
– E depois ele tinha de o ir pedir emprestado. Isso também eu faço, se tivermos de chegar aí. Tenho a certeza, de que não vou ter de lhe ficar a dever favores. E ele não precisa de me escrever a gabar-lhe os encantos e a falar das óperas a que vão assistir. Nem quero saber. Ele importa-se lá comigo... Eles querem lá saber! Têm a vida deles para viver, fazem o que lhes apetece, e eu... sim... o que represento eu para ele?... Um estorvo nunca hei-de ser, nem lhe hei-de pedir nada... E espero que o teu pai viva muito tempo, e que seja eu a ir à frente, pois é muito triste ter de viver à custa dos filhos.
– Oh, mãe... não tarda, eu começo a ganhar dinheiro, e a mãe pode ficar com tudo, porque eu nunca me hei-de casar.
– Essa já é velha, o William também dizia o mesmo. Dá tempo ao tempo e vais ver como a música é outra.
– Não vai ser, não.
– Então está bem.
E continuou a lavar o chão, em silêncio.
– Que vai fazer? – perguntou Paul.
– Acho que vou ter de meter um vale na Cooperativa... e isso vai sair da minha parte e vou receber menos dividendos. Não me apetecia nada ir lá buscar mais dinheiro outra vez.
O rapaz sentia-se muito infeliz, muito aborrecido. Era ele que precisava do dinheiro, e isso deixava-o amargurado.
– Bem – disse Paul –, em breve serei aumentado, e a mãe pode ficar com o dinheiro todo.
– Tudo isso é muito bonito – disse a mãe. – Mas não é assim que arranjo uma libra e trinta xelins até sábado de manhã.
William fazia progressos com a sua Cigana, como ele lhe chamava. Pedira à rapariga – uma tal Louisa Lily Denys Western – uma fotografia para mandar à mãe. A fotografia chegou: era uma morena bonita, de perfil, com um sorriso afectado, e que bem podia estar completamente nua, pois não se vislumbrava qualquer peça de roupa no retrato, só o colo desnudo.
«Sim senhor», escreveu Mrs. Morel ao filho, «a fotografia da Louie é deveras impressionante e vê-se que deve ser muito atraente. Mas achas, meu filho, que foi sensato e elegante da parte dela dar ao namorado aquela foto para ele mandar à mãe, e pela primeira vez? Tem uns ombros lindos, sem dúvida, como mandaste dizer. Mas eu não estava à espera de os ver tão bem logo da primeira vez...»
Morel encontrou a fotografia na sala, em cima da cómoda, e veio até à cozinha com ela presa entre o polegar e o indicador.
– Quem vem a ser esta? – perguntou ele à mulher.
– É a rapariga com quem o nosso William anda de namoro – respondeu Mrs. Morel.
– Hum! Ganda brasa, pelo menos parece... e num lhá-de fazer bem nenhum... Quem é ela?
– Chama-se Louisa Lily Denys Western.
– Muito prazer! – exclamou o mineiro. – É alguma artista?
– Não, não é. Ele diz que é uma senhora da sociedade.
– Não hajam dúvidas – exclamou o pai, sem tirar os olhos da fotografia. – Com qu’intão uma senhora? E há-de ter muito dinheiro, pra manter as aparências.
– Não tem, não... vive com uma tia velha, que ela detesta, e aceita tudo o que lhe dão.
– Hum! – disse Morel, pousando a fotografia. – Atão ele foi um gand’otário em ter-se metido c’uma tipa dessas.
«Querida Mater», respondeu William. «Lamento que não tenha gostado da fotografia. Nunca me passou pela cabeça, quando lha mandei, que pudesse achá-la pouco decente. Mas já disse à Ciganita que o retrato não correspondia exactamente à sua noção de decoro e decência, e ela vai mandar-lhe outro, que eu espero lhe agrade mais. Ela está sempre a ser fotografada. Na verdade, os fotógrafos estão sempre a pedir-lhe insistentemente para ela se deixar fotografar, absolutamente de graça.»
A nova fotografia acabou por chegar, acompanhada de um bilhete idiota da rapariga. Desta vez, a jovem estava com um ves-tido de noite em cetim preto, de decote quadrado, com mangas curtas e tufadas e folhos de renda preta cobrindo-lhe os braços elegantes.
– Será que só usa vestidos de noite? – disse Mrs. Morel, sarcasticamente. – Tenho a certeza de que eu devia estar impressionada.
– Está a ser antipática, mãe – disse Paul. – Eu acho a primeira fotografia, a dos ombros nus, bem bonita.
– Achas? – disse Mrs. Morel. – Pois olha, eu não.
Na segunda-feira de manhã, o rapaz levantou-se às seis horas, para começar a trabalhar. No bolso do colete levava o passe do comboio que tanta amargura representava. Gostava de olhar para ele, todo às riscas amarelas. A mãe metera-lhe o almoço num cestinho de verga com tampa, e ele saiu de casa quando faltava um quarto para as sete, para apanhar o comboio das sete e um quarto. Mrs. Morel veio despedir-se do filho ao portão.
A manhã estava imaculada. Do grande freixo, pendiam os frutos verdes e delgados – as crianças chamavam-lhes «pombinhos» – cintilando alegremente, soprados pela brisa matinal, suspensos sobre os jardins das vivendas. O vale estava coberto de uma névoa escura, mas brilhante, através da qual luziam as searas já maduras, e em contacto com a qual logo se condensava o vapor que se elevava da mina de Minton. De quando em vez, o vento passava em baforadas. Paul espraiou a vista para lá das altas florestas de Aldersley, onde os campos brilhavam imensos, e nunca o apelo do lar fora tão forte.
– Adeus, mãe – disse ele, sorrindo, mas com a alma entristecida.
– Adeus – respondeu ela, com alegria e ternura na voz.
Mrs. Morel ficou parada na estrada, com o seu avental branco, vendo o filho atravessar os campos. Era um rapaz baixo e robusto, cheio de vida. Ao vê-lo caminhar pelos campos fora, sentiu que ele seria capaz de chegar onde quisesse. Pensou no William. Esse teria saltado a cerca em vez de passar pela cancela. Esse estava em Londres a viver à grande. E agora Paul ia trabalhar para Nottingham. Tinha dois filhos lançados no mundo. Podia pensar em dois lugares, dois grandes centros industriais, e sentir que tinha posto um homem em cada um, e que esses homens seriam capazes de conseguir tudo o que ela ambicionava; provinham dela, eram parte dela, e as suas vitórias seriam também as dela. Durante toda a manhã só pensou em Paul.
Às oito horas, Paul subiu as escadas lúgubres da Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan e deteve-se timidamente junto da primeira prateleira que encontrou cheia de embalagens, à espera de que alguém viesse ao seu encontro. O lugar ainda não tinha acordado. Os balcões estavam cobertos de espessas camadas de poeira. Ainda só tinham chegado dois funcionários. Paul ouvia-os conversar a um canto, enquanto tiravam os casacos e arregaçavam as mangas da camisa. Eram oito e dez. A pontualidade não era evidentemente a preocupação dominante no local. Paul continuou a ouvir as vozes dos dois funcionários. Depois, ouviu alguém tossir e viu no gabinete ao fundo do armazém um empregado já velho e caduco, com um bonezinho redondo de veludo preto bordado a verde e vermelho, a abrir cartas. Paul continuou à espera.
Um dos empregados mais novos dirigiu-se ao velhote e cumprimentou-o efusivamente e em voz muito alta. Estava visto que o velho «chefe» era surdo. A seguir, o jovem voltou para o seu balcão com passo arrogante. A certa altura reparou em Paul.
– Olá! – disse ele. – És o novo rapaz?
– Sou – respondeu Paul.
– Hum! Como te chamas?
– Paul Morel.
– Paul Morel?... Está bem. Vem comigo.
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