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Havia em Clara algo que desagradava a Paul e muita coisa que o excitava. Quando estava perto dela, não se cansava de lhe olhar para a garganta possante ou para a nuca coberta de caracóis loiros e fartos. O seu rosto e os seus braços eram aflorados por uma penugem quase invisível, de que uma vez se apercebera e em que não podia deixar de reparar.
Quando estava no trabalho, e se punha a pintar durante a tarde, ela vinha colocar-se ao seu lado muito quieta e ele sentia a sua presença, embora ela não lhe falasse nem lhe tocasse. Apesar de relativamente afastada, era como se estivesse encostado a ela e sentisse o seu calor. A partir daí, já não conseguia pintar mais. Pousava os pincéis e virava-se para trás, para conversar com ela.
Umas vezes ela elogiava-lhe o trabalho, outras mostrava-se crítica e desagradável.
– Ali pareces-me muito afectado – dizia ela, e ele, reconhecendo que havia alguma verdade na crítica, sentia o sangue borbulhar de raiva.
Ou então:
– Que te parece? – perguntava ele entusiasmado.
– Hum! – dizia ela em dúvida. – Não me agrada muito.
– Porque não compreendes – replicava ele.
– Então para que me pediste a opinião?
– Porque pensava que compreendias.
E ela encolhia os ombros, mostrando desprezo. Ela enlouquecia-o, deixava-o furioso, e ele em resposta insultava-a e passava a uma explicação apaixonada da sua obra, o que muito a divertia e estimulava. Porém, nunca reconhecia que estava errada.
Nestes dez anos em que tinha pertencido ao movimento feminista, tinha adquirido alguma cultura. E, partilhando alguma da paixão de Miriam por se instruir, tinha aprendido sozinha francês e já conseguia ler alguma coisa, embora a custo. Considerava-se uma mulher diferente das outras e, sobretudo, diferente das da sua classe. As raparigas da Espiral eram todas de boas famílias. Tratava-se de um trabalho restrito e especializado, que conferia uma certa distinção. Sentia-se uma certa finura nas salas de trabalho. Mas Clara considerava-se também muito acima das colegas. Todavia, não confidenciava nada disto a Paul. Não era de se dar a conhecer. Mantinha-se envolvida num certo mistério e era tão reservada que ele começou a pensar se ela não teria algo a esconder. A sua vida era um livro aberto à superfície, mas o seu verdadeiro significado estava escondido de toda a gente. E isso excitava-o. Por vezes, apanhava-a a olhar para ele à socapa com um olhar sombrio, quase furtivo e inquiridor, que o deixava inquieto. Os seus olhos encontravam-se muitas vezes, mas nessas alturas os olhos dela estavam, por assim dizer, velados, nada mostrando, e ela apenas sorria para ele docemente. Paul achava-a extraordinariamente provocante, devido aos conhecimentos que parecia possuir e à experiência com que ele não podia rivalizar.
Um dia, encontrou as Lettres de mon moulin em cima da mesa dela.
– Com que então a ler francês! – exclamou.
Clara virou os olhos para ele relutante. Estava a fazer uma meia elástica de seda, em tom rosado, fazendo girar a máquina compassadamente, curvando-se de vez em quando para vigiar o trabalho ou para ajustar as agulhas. Nesses momentos, o seu pescoço magnífico, coberto de penugem e finos caracóis, brilhava em toda a sua brancura, em contraste com a sua tez de lavanda, lustrosa como seda. A máquina deu mais algumas voltas e parou.
– Disseste alguma coisa? – perguntou ela, com um sorriso doce.
Os olhos de Paul brilharam perante a insolência e a indiferença com que ela o tratou.
– Não sabia que lias francês – disse ele, com toda a delicadeza.
– Ah não? – retorquiu ela, com um sorriso vago, carregado de sarcasmo.
– Convencida dum raio! – disse ele, mas não suficientemente alto para que ela ouvisse.
Crispou os lábios e ficou a vê-la. Ela parecia desdenhar do trabalho que mecanicamente produzia. No entanto, a meia que fazia era tão perfeita quanto possível.
– Tu não gostas de trabalhar na Espiral – disse ele.
– Trabalho é trabalho – respondeu ela como se soubesse tudo sobre o assunto. Paul estava perplexo com tanta frieza. Ele tinha de fazer tudo com empolgação. Ela tinha de ser uma pessoa muito especial.
– Há alguma outra coisa que gostasses mais de fazer? – perguntou ele.
Ela riu, com indulgência, e disse:
– É tão pouco provável que eu venha a poder escolher que nunca perdi tempo a pensar nisso.
– Pff! – fez ele, vendo chegada a sua vez de mostrar desprezo. – Só dizes isso porque és orgulhosa de mais para quereres o que não podes ter.
– Estou a ver que me conheces muito bem – respondeu ela friamente.
– Sei que sentes o teu prestígio abalado e que é para ti um insulto permanente teres de trabalhar numa fábrica. – Paul mostrava-se muito zangado e agressivo. Ela limitou-se a afastar-se, com desdém, e ele foi-se embora a assobiar, lançou um piropo a Hilda e ficou a rir e a conversar com ela.
Mais tarde pensou para consigo:
«Porque será que fui tão insolente com a Clara?» Estava aborrecido com o que fizera, mas ao mesmo tempo contente.
«É bem feito... Aquele orgulho dela já cheira mal», pensou ele, agastado.
– Durante vários dias evitou-a. Mas, por fim, teve de ir lá abaixo falar com ela sobre uma encomenda. Apesar da fúria e constrangimento que sentia, a sua expressão era alegre e bem-disposta como sempre.
– Trazes uma flor ao peito – disse-lhe ele. – Julguei que era contra as tuas regras.
– Eu não tenho regras – ripostou ela, levantando suavemente a corola de uma rosa vermelha já muito pisada.
– Não, claro. Mas tens preferências. Seja como for, penso que não é teu hábito usares ao peito flores moribundas, já decapitadas.
Clara deixou cair a rosa com um movimento brusco.
– É uma flor que encontrei na rua.
– Destroços de alguma alma perdida – disse ele. – Se eu fosse a ti, falava com ela... O túmulo e a rosa... Conheces o poema?
– Não – disse ela.
– Pensei que fosses perita em francês – disse ele, trocista. Ela ruborizou-se. Ia dizer uma insolência, mas ele não a deixou.
– Podias aprendê-lo de cor – disse, escarninho – e depois podíamos declamá-lo. Eu era a rosa e tu o túmulo.
– Acho que devias ir aprender boas maneiras – disse ela.
– E vou, quando isso me servir para alguma coisa. – Paul começava a perder a cabeça. – Não quero todas as virtudes só para mim... Além disso, o túmulo assentava-te mesmo bem. Toda a gente gostaria de deitar uma olhadela ao esqueleto.
Desta vez, ele tinha perdido definitivamente a cabeça, ido longe de mais.
– Desculpa – disse ele, dominando-se.
Ela afastou-se, friamente, e ele correu pela escada acima.
– O Paul leva fogo no rabo – disseram as outras raparigas.
De tarde, voltou a descer. Sentia um peso no coração de que queria libertar-se. Pensou fazê-lo oferecendo-lhe chocolates.
– Queres um? – perguntou, solícito. – Comprei uma mão-cheia, para ficar mais doce.
Para seu grande alívio, ela aceitou. Paul sentou-se na mesa de trabalho, ao lado da máquina e pôs-se a enrolar um pedacinho de seda à volta do dedo. Ela gostava dos seus movimentos rápidos e inesperados, de animal jovem. Os pés dele balançavam enquanto pensava. Os bombons estavam espalhados em cima da mesa. Ela continuava curvada sobre a máquina, a coser ritmadamente, baixando-se a certa altura, para verificar a meia que ia saindo por baixo, esticada por um peso. Paul admirou então a curvatura atraente das suas costas e as fitas do avental encaracolando-se ao tocarem o chão.
– Há sempre em ti uma certa expectativa – disse ele. – Faças o que fizeres, nunca pareces estar lá, pareces sempre à espera... como Penélope. – Paul não resistiu a esta ponta de malícia. – Vou passar a chamar-te Penélope.
– Que diferença faz? – disse ela, retirando cuidadosamente uma das agulhas.
– Nenhuma, desde que te agrade... Sim, pareces esquecer que eu sou o teu patrão. Também só agora é que eu reparei.
– O que queres tu dizer com isso? – perguntou ela, com frieza.
– Quero dizer que tenho o direito de mandar em ti.
– Queres queixar-te de alguma coisa?
– Não precisas de ser malcriada – disse ele, zangado.
– Não percebo onde queres chegar – disse ela, e continuou a trabalhar.
– Quero que me trates delicadamente e com respeito.
– Se calhar, queres que eu te trate por senhor! – respondeu ela, serena.
– Isso mesmo. Trata-me por senhor. Acho que vou gostar.
– Então faça favor de voltar para cima, senhor Morel.
Ele fechou a boca e a testa franziu-se-lhe. De súbito, deu um salto em direcção a ela e disse:
– Tu não prestas para nada, sabes? – E foi ter com as outras raparigas.
Paul sentia que estava mais zangado do que devia. Pensou até se não estaria a exagerar. Mas, se estava, tanto melhor. Clara ouviu-o rir com aquele riso que ela detestava, metendo-se com as raparigas da sala ao lado.
Ao fim da tarde, quando passou pela secção depois das raparigas se terem ido embora, viu os seus bombons intactos ao lado da máquina de Clara. Deixou-os ficar. Na manhã seguinte ainda lá estavam e Clara voltara ao trabalho. Mais tarde, Minnie, uma moreninha a quem tratavam por Bichana, chamou-o.
– Então, não há um chocolate para a gente?
– Desculpa, Bichana – disse ele. – Pensei em oferecer-te um, mas depois esqueci-me deles.
– Também acho que te esqueceste – respondeu ela.
– Logo à tarde trago-te outros. Não vais querer estes que ficaram aí esquecidos, pois não?
– Eu cá não sou esquisita – disse ela, a sorrir.
– Nem pensar nisso – disse. – Estão cheios de pó.
Paul acercou-se da mesa de Clara.
– Desculpa ter deixado isto aqui espalhado – disse.
Ela corou até à raiz dos cabelos, e ele apanhou os bombons todos.
– Agora estão sujos – disse ele. – Devias tê-los levado. Não sei porque não levaste. Fazia tenção de te dizer que eram para ti.
Atirou-os para o pátio pela janela. Depois, olhou para ela de soslaio e ela desviou os olhos.
À tarde, Paul comprou outro pacote.
– Tira alguns – disse, oferecendo-os a Clara em primeiro lugar. – Estão fresquinhos.
Ela aceitou um e pô-lo em cima da mesa.
– Tira mais para dar sorte – disse ele.
Ela tirou mais dois e pô-los ao lado do outro. Depois, concentrou-se no trabalho e ele afastou-se.
– Aqui tens, Bichana – disse ele. – Não sejas comilona!
– O quê, são todos para ela? – gritaram as outras, precipitando-se.
– Claro que não – disse ele. As raparigas faziam grande alarido à volta dele. Minnie afastou-se.
– Saiam daí! – gritou ela. – Posso ser eu a primeira a tirar, não posso, Paul?
– Tratem-nos bem – disse ele indo-se embora.
– És um amor – gritaram as raparigas.
– Eu depois mando a conta – respondeu ele.
Paul passou por Clara sem dizer nada. Para ela, era como se os três bombons a queimassem, se lhes tocasse. Foi preciso muita coragem para os meter no bolso do avental.
As raparigas adoravam-no e, ao mesmo tempo, temiam-no. Ele, quando queria, era um amor, mas quando se ofendia tornava-se distante e tratava-as como se não existissem ou não passassem de uns reles carrinhos de linhas. E, se elas lhe respondiam, dizia-lhes simplesmente: «Façam favor de continuar a trabalhar.» E ficava a vigiá-las.
No dia do seu vigésimo terceiro aniversário, a casa andava num rebuliço. Arthur ultimava os preparativos para o casamento, a mãe não andava nada bem, e o pai, cada vez mais velho e coxo devido a vários acidentes, tinha sido remetido para um trabalho inferior. Miriam era a eterna voz da censura. Paul sentia que era sua obrigação comprometer-se, mas não era capaz. Além disso, a família precisava da sua ajuda. Não sabia para que lado se havia de virar. Era o dia dos seus anos, mas não se sentia alegre. Estava até bastante azedo.
Chegou ao trabalho às oito da manhã. A maior parte dos colegas ainda não tinham chegado e as raparigas só pegavam às oito e meia. Quando estava a trocar de casaco, ouviu uma vozinha atrás de si.
– Paul, Paul, preciso de ti.
Era Fanny, a corcunda, que estava ao cimo das escadas, exuberante e misteriosa. Paul olhou-a, perplexo.
– Preciso de ti – disse ela. Ele não entendia.
– Vem cá – disse ela insinuante. – Vem, antes de começares as cartas.
Paul desceu os seis degraus até à sala de acabamentos, pequena e lúgubre. Fanny ia à frente dele: o seu corpete preto era tão curto que terminava logo abaixo dos sovacos; e a saia verde-escura de caxemira parecia demasiado comprida quando ela caminhava com grandes passadas à frente do jovem, elegante e gracioso. Fanny foi para o seu lugar na parte mais estreita da sala, onde uma janela se abria sobre uma paisagem de chaminés. Paul reparou nas mãos esguias e nos pulsos vermelhos e achatados enquanto ela torcia nervosamente o avental branco estendido na mesa à sua frente. Ela hesitava.
– Se calhar pensavas que nos esquecíamos de ti – disse, em tom de censura.
– Porquê? – perguntou ele. Ele próprio se tinha esquecido do aniversário.
– Porquê, diz ele!... Porquê! Ora vê! – E apontou para o calendário. Ele viu então à volta do dia 21 centenas de cruzinhas feitas a lápis de carvão.
– Olha, beijinhos pelo meu aniversário – disse ele, rindo. – Como é que descobriste?
– Querias saber não querias... – disse Fanny, brincalhona e manifestamente satisfeita. – Há uma cruzinha de cada pessoa... excepto de Sua Excelência, a Dona Clara... e duas de algumas de nós. Mas não te vou dizer quantas são as minhas.
– Já sei que és uma lamechas – disse Paul.
– Aí é que tu te enganas – exclamou ela, indignada. – Nunca chegaria a esse ponto. – A voz dela era forte, de contralto.
– Finges que tens o coração duro – disse ele, a rir – mas sabes que és tão sentimental como...
– Antes quero que me chames sentimental do que carne congelada – repontou Fanny. Paul sabia que ela se estava a referir a Clara, e sorriu.
– Também dizes essas coisas horríveis a meu respeito? – perguntou, trocista.
– Não, meu pequenino – respondeu a corcunda, derretendo-se em ternura. Tinha agora trinta e nove anos. – Não, meu pequenino, porque tu não te achas importante como uma estátua de mármore e nós apenas lixo. Eu sou tão boa como tu, não sou, Paul? – A pergunta pareceu deliciá-la.
– Essa agora, ninguém é melhor do que ninguém, não achas? – retorquiu ele.
– Mas eu sou tão boa como tu, não sou, Paul? – insistiu ela, em ar de desafio.
– Claro que és. E se vamos pela bondade, ainda és melhor.
Ela estava com medo do evoluir da situação. Receava ter um dos seus ataques de histerismo.
– Fiz os possíveis para chegar antes das outras... Elas vão dizer que fui muito sabida!... Fecha os olhos...
– E abre a boca, e olha o que Deus te manda – completou ele, juntando o gesto à palavra, à espera de um bombom. Ouviu o farfalhar do avental e um leve tinido metálico.
– Vou abrir os olhos.
E abriu os olhos. Fanny, com o rosto comprido afogueado, e os olhos azuis a cintilar, olhava para ele enlevada. Na mesa, diante dele, estava um monte de tubos de tinta. Paul empalideceu.
– Não, Fanny – disse ele de chofre.
– É de todas nós – respondeu ela, ainda mais depressa.
– Mas é que...
– São dos que tu gastas? – perguntou ela, balançando-se deleitada.
– Meu Deus!... São os melhores do catálogo...
– Mas são dos que gastas...? – exclamou ela.
– Estão na lista que eu fiz, para comprar quando a sorte me batesse à porta. – E mordeu o lábio, emocionado.
Fanny estava comovida. Tinha de mudar de assunto.
– Estavam todas em pulgas para colaborar, todas elas contribuíram; todas excepto a Rainha do Sabá.
A Rainha do Sabá era Clara.
– Ela não quis participar? – perguntou Paul.
– Não lhe demos essa oportunidade... Não lhe dissemos nada... Não a queríamos a pôr e a dispor. Não quisemos que ela participasse.
Paul fartou-se de rir. Estava emocionado. Tinha de voltar para cima. Ela estava muito perto dele. Subitamente, Fanny lançou-lhe os braços à volta do pescoço e beijou-o com convicção.
– Hoje posso dar-te um beijo – disse ela, desculpando-se. – Estavas tão pálido que me doeu o coração.
Paul retribuiu o beijo e saiu. Os braços dela eram tão tragicamente magros que também a ele lhe doeu o coração.
Nesse dia, encontrou Clara quando desceu a escada para ir lavar as mãos, antes de almoço.
– Então hoje almoçaste cá! – exclamou ele. Ela raramente o fazia.
– É verdade... E parece que comi uma prótese ortopédica. Tenho de ir apanhar um pouco de ar, senão vou sentir-me o dia todo como se tivesse comido borracha.
Clara ficou à espera. Ele captou de imediato as suas intenções.
– Vais a algum lado em especial? – perguntou Paul.
Foram juntos até ao castelo. Na rua, ela vestia-se com grande simplicidade, quase com mau gosto. Em casa, parecia sempre melhor. Caminhava ao lado de Paul com passo hesitante, de cabeça baixa e meio de esguelha. Assim, modestamente vestida e macambúzia, não estava de facto no seu melhor. Paul mal reconhecia os traços fortes que pareciam conferir-lhe tanta pujança. Agora parecia quase insignificante, apagando a imponência com a postura, ao furtar-se aos olhares de quem passava.
O parque do castelo estava viçoso e verde. Enquanto subiam a íngreme ladeira, Paul ria e tagarelava, mas ela mantinha-se calada, como se estivesse pensativa. Mal tinham tempo para entrarem no edifício quadrado e atarracado que coroava o cabeço rochoso. Debruçaram-se da muralha onde a vertente descia a pique até ao parque. Lá em baixo, nos buracos escavados na rocha arenosa, os pombos pavoneavam-se e arrulhavam docemente. Mais abaixo, na alameda que se abria no sopé, árvores minúsculas erguiam-se nos seus próprios círculos de sombra, e gente minúscula corria apressada, remetida a uma quase total insignificância.
– Parece que os podemos apanhar como girinos, às mãos-cheias – disse ele.
Ela riu-se e respondeu:
– Tens razão... Não é preciso afastarmo-nos muito para ver as pessoas reduzidas às suas verdadeiras proporções. As árvores parecem muito mais importantes.
– Só no tamanho – disse ele.
Ela deu uma gargalhada cínica.
Para lá da alameda avistavam-se as finas linhas metálicas dos carris, ladeadas a todo o comprimento por minúsculas pilhas de lenha, ao lado das quais se azafamavam fumarentas locomotivas de brinquedo. Mais além, estendia-se a faixa prateada do canal, serpenteando por entre montículos negros. E, mais longe ainda, o casario, muito denso nas zonas ribeirinhas, assemelhava-se a canteiros de ervas negras, ora em longas tiras, ora condensado em tufos, estendendo-se a perder de vista, interrompido aqui e além por plantas mais altas, até onde o rio se perdia num hieróglifo cintilante no horizonte. Os altos penhascos do outro lado do rio pareciam irrisórios. A vastidão dos campos, sombreada de árvores e com lampejos fugazes do dourado das searas, espraiava-se até à cortina de névoa, onde os montes se erguiam azuis no céu cinzento.
– É reconfortante – disse Mrs. Dawes – pensar que a cidade não passa destes limites, que é apenas uma ínfima chaga na paisagem.
– Uma ínfima cicatriz – contrapôs Paul.
Um arrepio sacudiu-a. Detestava a cidade. O seu rosto impassível, pálido e hostil, olhando sem emoção os campos que lhe estavam interditos, fazia lembrar a Paul os amargurados anjos do remorso.
– Mas as cidades não me chocam – disse ele. – São apenas soluções transitórias. Não passam de um espaço grosseiro e tosco por nós engendrado, até chegarmos à sua forma ideal. As cidades vão ficar óptimas.
– Optimismo não te falta! – disse ela, com um sorriso sarcástico.
– Talvez. Mas eu não odeio a cidade. É um esforço desajeitado, nada mais. Ainda não aprendemos a conviver com ela.
– E será que queremos mesmo aprender? – retorquiu Clara.
– És sempre assim? – perguntou ele. – Abominando a carne que te cobre os ossos e as palavras que te saem da boca?
– Só o que contraria a natureza – respondeu ela. – O que é natural é belo.
– E o que é que não é natural?
– Tudo o que é feito pelo homem – disse ela. – Incluindo o próprio homem.
– O homem foi feito pelas mulheres – replicou ele. – A propósito, o Dawes era natural?
Ela corou intensamente, desviando os olhos.
– É melhor não falarmos nisso agora.
– Como queiras... Mas, a mim, ele parece-me natural até de mais: muito próximo da besta original.
– Os animais também se estragam.
– Certíssimo. Onde ele estava bem era no lugar que lhe compete. O que nós estamos é confusos: sete milhões de estádios, do chimpanzé até mim, e depois até aos poetas e aos Cristos. O Dawes é perfeito para a Hilda.
– Vejo que ainda não aprendeste a respeitar os sentimentos das outras pessoas – disse ela, com frieza. Ele riu-se.
– Ralhas comigo... – disse ele, e prosseguiu: – Mas isso que importa! Continuo a pensar da mesma maneira... se falo é porque me interesso. E neste momento estamos os dois «Tão alto, acima do mundo, como querubins no céu profundo»... e, meu Deus, se aquele homem fosse o Dawes, aquela coisinha insignificante lá em baixo... não seria normal achá-lo pequeno de mais para ser discutido?
A santa ignorância com que ele invadia a sua vida privada desarmava-lhe a raiva. Ela sorriu-lhe, interiormente. Paul era um rapaz interessante, mas muito imaturo!
– Daqui a pouco, vejo-me obrigada a chamar-te enfant terrible – disse ela, com um sorriso. Tentava confundi-lo com as palavras.
– Dá-me o nome que quiseres – retorquiu ele. – «Uma rosa teria o mesmo perfume... etc... etc.»
Os pombos, nas bolsas rochosas abertas entre os arbustos suspensos dos penhascos, arrulhavam satisfeitos. Para a esquerda, a imponente igreja de Santa Maria erguia-se para os céus, fazendo companhia ao castelo, sobranceira ao amontoado sórdido da cidade. Mrs. Dawes rasgou um sorriso ao deixar os olhos espraiarem-se pelo campo.
– Já me sinto melhor.
– Muito obrigado – disse ele. – Grande elogio!
– Vai dar uma volta! – foi a resposta trocista.
– Hum!... Isso é o que se chama dar com uma mão e tirar com a outra... sem tirar nem pôr – disse ele.
Ela riu, divertida.
– Mas afinal o que é que tu tinhas? – perguntou Paul. – Sei que andavas com alguma fisgada, mas, pela tua cara, não consigo adivinhar o quê.
– Acho que não te vou dizer.
– Está bem... que te faça bom proveito – respondeu ele.
Ela corou e mordeu o lábio.
– Não – disse ela. – Foram as raparigas.
– O que é que te fizeram? – perguntou Paul.
– Há uma semana que andam a planear qualquer coisa, e hoje então nem se fala. Todas, sem excepção, me andam a fazer pirraça com um segredo.
– Ah, sim? – disse ele, interessado.
– Eu não ligava – prosseguiu ela, com a voz zangada, esganiçada – se elas não andassem sempre a atirar-me à cara com o tal segredo.
– São mesmo coisas de mulheres – opinou ele.
– É detestável a maneira como me gozam – disse ela, sentida.
Paul mantinha-se em silêncio. Sabia bem por que razão as raparigas andavam a gozar com ela, e tinha pena de ser ele o causador da desavença.
– Elas que guardem os segredos que quiserem – continuou Clara. – Mas podiam evitar vangloriar-se à minha frente e fazerem-me sentir completamente de fora. É... quase insuportável.
Paul quedou-se pensativo durante alguns minutos. Estava muito perturbado.
– Eu conto-te o que se passa – disse ele, por fim, pálido e nervoso. – É que hoje faço anos, e elas, as raparigas todas, ofereceram-me uma magnífica colecção de tintas. Têm ciúmes de ti... percebes...
Paul sentiu-a retrair-se gelidamente ao ouvir a palavra ciúmes.
– ... Só porque te trago um livro de vez em quando – acrescentou, falando devagar. – Como vês... é uma ninharia. Agora, não te aborreças por causa disso, está bem?... Porque... – e riu-se nervosamente – ... bem... que diriam elas se nos vissem agora aqui, apesar da vitória que alcançaram?
Desagradava-lhe profundamente esta alusão canhestra à actual intimidade que os unia. Era quase uma insolência da parte dele. No entanto, ele estava tão calado, que ela lhe perdoou, embora a custo.
As mãos deles apoiavam-se no áspero parapeito de pedra da muralha do castelo. Paul herdara da mãe a elegância de linhas, o que lhe dava umas mãos pequenas e vigorosas. As de Clara era grandes, a condizer com o comprimento dos braços, mas muito brancas e possantes. Paul via-a retratada nelas. «Ela quer que alguém lhe pegue nas mãos... por mais desprezo que mostre por nós», pensava ele. E, ali, apenas via as suas duas mãos, tão quentes e cheias de vida, que pareciam viver só para ela. De repente, Paul ficou muito pensativo, olhando o campo com o olhar sombrio. A interessante variedade de formas desaparecera da paisagem. Tudo o que restava era uma matriz vasta e escura, de tristeza e tragédia, estendendo-se por igual a todas as casas e às várzeas, às pessoas e aos pássaros: apenas os contornos eram diferentes. E agora que as formas pareciam ter-se dissolvido na distância, ficava a massa informe de que toda a paisagem era feita, uma massa escura de luta e sofrimento. A fábrica, as raparigas, a mãe, a igreja imponente elevada aos céus, o aglomerado urbano, tudo se fundia num só espaço compacto, negro, melancólico e sofredor, até ao mais ínfimo alento.
– São as duas horas a bater? – disse Mrs. Dawes surpreendida.
Paul estremeceu e tudo desabrochou de novo em formas e contornos, ganhando a sua individualidade, o dom do esquecimento e a alegria.
Apressaram-se a voltar ao trabalho.
Estava ele atarefadíssimo a despachar as encomendas da tarde, inspeccionando as peças chegadas da secção de Fanny, acabadinhas de engomar e ainda a cheirarem a ferro, quando o carteiro chegou.
– Mr. Paul Morel – disse ele, a sorrir, entregando um embrulho a Paul. – Letra de dama! Não deixe que as raparigas topem.
O carteiro, também ele um «ai-Jesus» das raparigas, gostava de se meter com Paul por causa delas.
O embrulho era um livro de versos, com um bilhetinho que dizia: «Permite-me que te ofereça esta lembrança e assim me sinta menos isolada. Com votos de muitas felicidades. C. D.» Paul corou intensamente.
– Meu Deus... Mrs. Dawes! Ela não tem dinheiro para isto. Meu Deus... mas do que ela se havia de lembrar!
Imediatamente se sentiu profundamente comovido. O calor dela preenchia-lhe a alma. No auge da emoção, sentia-a quase como se ali estivesse, os seus braços, os seus ombros, os seus seios, como se os tocasse, os apalpasse, quase como se os possuísse.
Este gesto de Clara aproximou-os ainda mais. As raparigas começaram a reparar que, quando Paul se cruzava com Mrs. Dawes, os olhos dele tinham um brilho especial ao cumprimentá-la que elas podiam interpretar. Ciente de que ele o fazia inconscientemente, Clara não correspondia, chegando mesmo a virar a cara para o lado quando ele vinha na sua direcção.
À hora de almoço, iam passear juntos com alguma frequência. Tudo às claras, com muita franqueza. Todos pareciam convencidos de que ele não se apercebia dos seus próprios sentimentos, e ninguém os censurava. Paul falava agora com Clara com algum do antigo fervor com que falara com Miriam, mas as conversas interessavam-no menos; preocupava-se menos com as conclusões.
Um dia, em Outubro, foram tomar chá a Lambley. Inesperadamente, pararam no alto da colina. Ele encarrapitou-se num portão quando lá chegou, e ela na cerca. A tarde era toda ela serenidade, apenas ofuscada por uma leve neblina entrecortada de feixes de luz dourada. Mantiveram-se em silêncio.
– Que idade tinhas quando casaste? – perguntou ele, baixinho.
– Vinte e dois anos.
A voz dela era cava, quase submissa. Estava decidida a contar-lhe tudo.
– Então... foi há oito anos.
– Exactamente.
– E quando é que o deixaste?
– Há três anos.
– Cinco anos!... Casaste por amor?
Ela permaneceu em silêncio durante alguns segundos. Depois, disse devagar:
– Julgava que sim... mais ou menos. Não era coisa em que pensasse muito. E ele queria-me. Nessa altura eu era muito recatada.
– E atiraste-te para a frente sem pensar?
– É isso mesmo! É como se tivesse estado a dormir quase toda a vida.
– Como uma sonâmbula?... Mas... Quando é que despertaste?
– Não sei se alguma vez fui mesmo uma sonâmbula, ou se cheguei a despertar desde os meus tempos de menina.
– Foste então adormecendo à medida que te tornavas mulher? Que estranho! E ele não te conseguiu acordar?
– Não... ele não chegou lá... – respondeu ela, monocórdica.
Pássaros castanhos rasaram os silvados onde luziam cachos de rosas, nuas e escarlates.
– Chegou aonde?
– Até mim. Ele nunca se importou realmente comigo.
A tarde estava doce, cálida e velada. Os telhados vermelhos das casas rústicas flamejavam na neblina azulada. Paul adorou aquela tarde. Sentia o que Clara dizia, mas sem compreender.
– Mas porque foi que o deixaste?... Tratava-te mal?
Sacudiu-a um leve estremecimento.
– Ele... ele estava a levar-me à degradação. Queria brutalizar-me porque não conseguia ter-me. E eu sentia vontade de fugir, como se estivesse presa e amarrada. E, além disso, ele era um porco.
– Estou a ver.
Claro que não estava a ver absolutamente nada.
– E ele era sempre porco? – perguntou Paul.
– Mais ou menos – disse ela devagar. – Era como se não conseguisse chegar até mim. E depois tornava-se brutal... Ele era brutal!
– Mas, ao fim e ao cabo, porque foi que o deixaste?
– Porque... porque ele me era infiel...
Ficaram os dois calados durante algum tempo. A mão dela es-tava apoiada no pilar do portão, e ela balançava-se suavemente. Ele pousou a mão dele sobre a dela. Sentia bater desenfreado o coração.
– Mas alguma vez tu... alguma vez tentaste... deste-lhe alguma oportunidade?
– Oportunidade?... Como?
– De se aproximar de ti.
– Eu casei com ele... Eu estava disposta...
Ambos se esforçavam por manter as vozes firmes.
– Estou convencido de que ele te ama – disse Paul.
– Parece que sim – respondeu ela.
Paul queria tirar a mão, mas não era capaz. Ela salvou-o, tirando a dela. Depois de uma pausa, ele recomeçou:
– E deixaste-o, sem te importares com ele?
– Foi ele que me deixou – respondeu ela.
– Se calhar não conseguiu fazer-te entender tudo quanto ele valia?
– Tentou fazer-me entender à bruta.
A conversa tinha-os levado para muito longe. Subitamente, Paul deu um salto.
– Anda – disse ele. – Vamos tomar chá.
Encontraram uma casa de chá, e sentaram-se na sala gélida. Clara serviu o chá, em silêncio. Paul sentiu que ela se lhe escapava outra vez. Quando acabou, Clara pôs-se a olhar pensativa para dentro da chávena, fazendo rodar a aliança no dedo, sem parar. Distraída, tirou a aliança, pô-la de pé em cima da mesa e fê-la girar como um pião. O aro de ouro transformou-se em esfera diáfana e cintilante. A aliança tombou e ficou a saltitar em cima da mesa. Clara fê-la girar repetidamente, uma e outra vez. Paul observava-a, fascinado.
Mas ela era uma mulher casada e ele acreditava na pureza de uma simples amizade. Além disso, considerava as suas intenções perfeitamente respeitáveis. Era apenas uma amizade entre um homem e uma mulher, como a que podia existir entre pessoas civilizadas.
Paul era como tantos outros jovens da sua idade, o sexo era para ele tão complicado que teria negado prontamente que alguma vez tivesse desejado Clara, Miriam ou qualquer outra mulher que conhecesse. O desejo sexual era um sentimento aparte, que não pertencia às mulheres. Paul amava Miriam com a alma. Sentia uma onda de calor ao pensar em Clara, discutia com ela, e conhecia as curvas dos seus seios, do seu pescoço e dos seus ombros, como se tivessem sido moldadas dentro dele. E, no entanto, não se podia dizer que a desejasse. Tê-lo-ia negado com veemência. Julgava-se realmente preso a Miriam. Se de futuro viesse a casar, seria seu dever casar com Miriam. Deu isso mesmo a entender a Clara, que não teceu comentários, deixando-o livre para escolher. Mas, sempre que podia, vinha ter com ela. Depois, começou a escrever com frequência a Miriam e a ir visitá-la de vez em quando. E assim passou o Inverno. Parecia, todavia, menos atormentado. A mãe andava menos preocupada com ele, pensando que o filho se estava a afastar de Miriam.
Miriam sabia agora como era forte a atracção de Clara por ele. Estava contudo confiante em que a melhor faceta de Paul triunfaria. Os seus sentimentos por Mrs. Dawes – ainda por cima uma mulher casada – eram superficiais e passageiros, comparados com o amor que sentia por ela. Tinha a certeza de que voltaria para ela; talvez com alguma da sua anterior frescura de adolescente já perdida, mas curado do desejo pelas coisas de menor valor que as outras mulheres tinham para lhe oferecer. Suportaria tudo isso, se ele lhe fosse interiormente fiel e voltasse para ela.
Paul não se apercebia da bizarria da situação. Miriam era a velha amiga, a antiga namorada, e pertencia a Bestwood, ao seu torrão natal, à sua juventude. Clara era uma amiga recente, e pertencia a Nottingham, à vida vivida, ao mundo. Para ele era tudo muito claro.
Entre ele e Mrs. Dawes houve muitos períodos de frieza, em que se encontravam poucas vezes. Mas reatavam sempre a relação.
– Trataste muito mal o Baxter Dawes? – perguntou-lhe ele. Este ponto parecia preocupá-lo.
– Mal, como?
– Sei lá. Fizeste-lhe coisas horríveis? Alguma coisa que o deixasse de rastos?
– O quê, por exemplo? Diz lá.
– Já disse que não sei.
– Então para que te pões a inventar coisas?
– Porque tenho um pressentimento de que lhe fizeste alguma coisa que o feriu... que lhe feriu muito o orgulho. O que foi que lhe fizeste?
– Se lhe feri o orgulho é porque era um orgulho de bem fraca qualidade.
– Mais fraco do que o teu, suponho... Mas tu mostraste-te superior, sei que o trataste com superioridade... Como me tratas a mim, só que eu não me importo.
– Quando é que eu te tratei com superioridade?
– Neste preciso momento, por exemplo. Mas não faz mal. Estou convencido de que lhe fizeste bastante mal, mais do que ele te fez a ti... pondo-o em cheque e fazendo-o sentir-se humilhado.
– Ele parece muito humilhado, não haja dúvida! – disse ela, com cinismo.
– Fizeste-o sentir que não era ninguém... eu sei – afirmou Paul.
– Como tu és inteligente, meu amigo! – disse ela friamente.
A conversa ficou por ali, mas chegou para manter Clara afastada por algum tempo.
Ela agora só muito raramente via Miriam. A amizade entre as duas mulheres, não tendo terminado, tinha no entanto esfriado consideravelmente.
– Queres ir ao concerto no domingo à tarde? – perguntou-lhe Clara logo a seguir ao Natal.
– Prometi ir a Willey Farm – disse ele.
– Óptimo.
– Não te importas, pois não?
– Porque havia de importar-me? – Foi a resposta, que quase o irritou.
– Sabes – disse ele –, a Miriam e eu representamos muito um para o outro desde os meus dezasseis anos... já lá vão sete...
– É muito tempo – respondeu Clara.
– Pois é. Mas ela... as coisas não andam bem...
– Como assim?
– Ela parece absorver-me completamente, ao ponto de não deixar que um só cabelinho meu caísse e fosse levado pelo vento... ela apanhava-o e guardava-o logo.
– Mas tu gostas de ser protegido.
– Não gosto, não – disse ele. – Não gosto mesmo nada. Quem me dera que entre nós tudo se resumisse a dar e receber, sem excessos de possessividade... como entre nós dois. Quero que uma mulher me proteja, mas não que me meta no bolso.
– Mas, se tu a amas, já não podia ser como nós.
– Sim... Havia de gostar mais dela nesse caso. Ela parece querer-me com tanta força que eu não sou capaz de me entregar.
– Querer-te?
– Ela quer a minha alma. E eu não consigo deixar de me retrair.
– E mesmo assim ama-la?
– Não. Eu não a amo. Nunca sequer a beijei.
– Porquê? – perguntou Clara.
– Não sei.
– Se calhar tens medo – disse ela.
– Não é nada disso. É qualquer coisa cá dentro que se retrai como o diabo... Ela é tão boazinha, e eu não sou nada bonzinho.
– Como é que tu sabes como ela é?
– Sei! Sei que ela aspira a uma espécie de comunhão espiritual.
– Mas como é que sabes o que ela quer?
– Há sete anos que convivo com ela.
– E não descobriste o mais importante!
– O que é que estás para aí a dizer?
– Que ela não quer comunhão espiritual coisa nenhuma. Ela quer-te é a ti.
Paul meditou sobre o assunto. Afinal, talvez estivesse enganado.
– Mas ela parece... – começou ele.
– Nunca tentaste... – respondeu ela.
XI
MIRIAM É POSTA À PROVA
COM A PRIMAVERA, reinstalaram-se a velha loucura e as velhas lutas. Paul sabia agora que tinha de voltar para Miriam. Porquê então a relutância? Tentava convencer-se de que se tratava apenas de um caso de exacerbada virgindade dele e dela, que nenhum conseguia ultrapassar. Podia ter casado com ela; mas os problemas de família dificultavam o passo e, além disso, não fazia tenções de se casar. O casamento era coisa para toda a vida e, lá por se terem tornado amigos inseparáveis, não lhe parecia que fosse inevitável tornarem-se marido e mulher. Não sentia vontade de casar com Miriam. Quem lhe dera sentir. Daria a vida para sentir um desejo ardente de casar com ela, de a possuir. Porque não conseguia então torná-lo explícito? Algum entrave tinha de haver. Mas que entrave? Só podia ter a ver com a escravidão física. Ele temia os contactos físicos. Mas porquê? Ao pé dela sentia-se agrilhoado dentro de si mesmo. Não conseguia alcançá-la. Algo se debatia no seu íntimo, mas ele não conseguia alcançá-la. Porquê, se ela o amava? Clara dissera até que ela o desejava. Porque não era ele então capaz de ir ter com ela, fazer amor com ela, de a beijar? Por que razão, quando durante os passeios ela lhe dava o braço timidamente, ele se sentia prestes a estoirar de brutalidade e repulsa? Ele tinha de ser dela, devia-lhe isso. Ele queria ser dela. Talvez a repulsa e o constrangimento fossem apenas amor no seu primeiro estádio de exarcebada timidez. Não sentia aversão por ela. Não, muito pelo contrário: era um desejo forte em luta com uma timidez e uma virgindade ainda mais fortes. Era como se a virgindade fosse uma força positiva, saindo vitoriosa das batalhas interiores que no íntimo de ambos se travavam. E sentia que com ela esse obstáculo era muito difícil de ultrapassar. No entanto, ela era a pessoa de quem se sentia mais próximo, e só ao lado dela poderia vencer. Logo que tudo se resolvesse, poderiam casar. Devia-lhe isso. Mas não se casaria enquanto não estivesse seguro das suas emoções, isso nunca. Não seria capaz de enfrentar a mãe. Parecia-lhe que sacrificar-se a um casamento contra vontade seria degradante, algo que lhe destruiria a vida, que a aniquilaria. Tinha de tentar dar a Miriam o que estava ao seu alcance.
Paul sentia grande ternura por Miriam. Ela andava sempre triste, perdida em devaneios religiosos e, para ela, ele era quase uma religião. Paul não suportaria desiludi-la. Com força de vontade, tudo acabaria bem.
Paul passou em revista os casos que conhecia. Uma boa porção dos homens mais recomendáveis das suas relações estavam como ele presos à sua própria virgindade, de que não se conseguiam libertar. Eram tão deferentes com as esposas, que preferiam passar sem elas a magoá-las ou tratá-las injustamente. Sendo filhos de mães cujos maridos as haviam violentado brutalmente no seu recato feminino, eles próprios se sentiam demasiado tímidos e inseguros. Ser-lhes-ia mais fácil abdicar de si próprios do que cair em desgraça aos olhos de uma mulher. É que, para eles, cada mulher represen-tava a mãe, cuja imagem tão fortemente marcava a sua personalidade, e preferiam sofrer as agruras do celibato a ferir essa outra pessoa.
Todas as conversas, todas as deambulações abstractas que ocorriam entre ele e Miriam, toda a sua inteligência e capacidade de percepção, mais não eram do que os beijos que deveriam ter tro-cado traduzidos ao nível do consciente, e a fogosidade com que ele deveria tê-la apertado nos braços sublimada no propósito de pensar e filosofar. Mas... Pensamento e percepção o que seriam? Agentes de destruição. Não eram vida, fruição. Eram uma forma de morte: impulso vivo transformado em abstracção. Era altura de parar. Ele e Miriam tinham de pôr cobro a tais abstracções.
Paul voltou para Miriam. Algo nela, quando a olhava, quase lhe fazia vir as lágrimas aos olhos. Um dia, pôs-se de pé atrás dela enquanto ela cantava. Annie acompanhava-a ao piano. Ao cantar, a boca de Miriam era a própria imagem do desespero. Cantava como uma freira, entoando hinos para o céu. Emanava tanta espiritualidade que lembrava a boca e os olhos de um anjo a cantar ao lado de uma Madonna de Botticelli. Mas logo a dor o penetrou, quente como ferro em brasa. Porque teria ele de lhe pedir a outra coisa? Porque lutava o seu sangue contra ela? De bom grado daria a mão direita para poder ter sido sempre gentil e terno com ela, respirado com ela uma atmosfera religiosa de sonho e fantasia. Não era justo magoá-la. Havia nela uma eterna virgindade. E quando pensava na mãe, via os seus grandes olhos castanhos de donzela que apesar dos sete filhos que tivera se mostravam ainda atemorizados e chocados na sua pureza virginal. Eles tinham nascido, não dela, mas à custa dela. Assim sendo, ela jamais poderia deixá-los partir, pois nunca os tinha possuído.
Mrs. Morel voltou a ver o filho ir com frequência encontrar-se com Miriam, o que muito a surpreendeu. Paul não dizia nada à mãe. Não se explicava nem se desculpava. Se voltava tarde para casa e ela o censurava, respondia-lhe, carrancudo e autoritário:
– Venho para casa à hora que me apetecer. Já tenho muito boa idade para isso.
– Mas ela tinha necessidade de te reter até tão tarde?
– Eu é que quis ficar.
– E ela deixou... Mas não faz mal... – rematava a mãe.
Mrs. Morel passou a ir deitar-se, deixando a porta por trancar. Porém, ficava acordada até ele chegar, geralmente muito mais tarde. Tinha um grande desgosto de o filho ter voltado para Miriam, mas reconhecia a inutilidade de qualquer interferência. Agora, ele frequentava Willey Farm como um homem e não como um adolescente, e ela já não tinha autoridade sobre ele. Entre mãe e filho instalou-se uma certa frieza. Raramente Paul contava à mãe alguma coisa. Preterida, ela continuava a cuidar dele, a cozinhar para ele, e a adorar ser sua escrava. Mas o seu rosto fechou-se de novo numa máscara. Nada mais lhe restava na vida além da lida da casa. Para tudo o resto, ele tinha agora Miriam, e ela não lho podia perdoar. Miriam matava no filho toda a sua alegria e afabilidade. Paul tinha sido um rapaz alegre e cheio da mais calorosa afectividade. Mas agora tornara-se mais frio, cada vez mais irritável e taciturno. Fazia-lhe lembrar o William. Mas Paul era pior. Agia com mais determinação e entendimento das coisas. A mãe sabia como ele sofria com a falta de uma mulher e via-o agora procurá-la em Miriam. Se já tinha tomado a decisão, nada no mundo o demoveria. Mrs. Morel sentia-se cansada e começava a pensar em desistir. Chegara ao fim, sentia que não passava de um estorvo.
Paul trilhava com determinação o seu caminho. Tinha mais ou menos ideia de como a mãe se sentia, mas isso apenas lhe endurecia a atitude, tornando-o mais insensível. Porém, era como ser insensível consigo próprio, e isso minava-o por dentro. Mas não desistiu.
Uma noite, estava Paul em Willey Farm sentado na cadeira de baloiço – há várias semanas que reatara com Miriam, mas não tinha ainda tocado no assunto – quando disse, de repente:
– Estou quase com vinte e quatro anos.
Ela, que se tinha mantido pensativa, olhou para ele surpreendida.
– Sim!... Mas porque dizes isso?
Pairava no ar um não-sei-quê que a atemorizava.
– Sir Thomas More diz que um homem pode casar aos vinte e quatro anos.
Ela riu-se timidamente e disse:
– E é preciso a aprovação de Sir Thomas More?
– Não... Mas é uma boa altura para casar.
– Sim... – disse ela pensativa, à espera.
– Eu não posso casar contigo – disse ele devagar – pelo menos por agora, porque não temos dinheiro... e lá em casa precisam da minha ajuda.
Ela parecia adivinhar o que se seguiria.
– Mas quero casar agora...
– Tu queres casar...? – repetiu ela.
– Uma mulher... Percebes o que quero dizer?
Miriam ficou calada.
– Agora tem de ser – disse ele.
– Sim... – respondeu ela.
– Amas-me?
Ela riu com amargura.
– Para quê tanta vergonha? – disse ele. – Se não sentes vergonha diante do teu Deus, porque hás-de sentir diante das pessoas?
– Não – disse ela, com veemência –, não estou envergonhada.
– Estás sim! – retorquiu ele, com azedume. – E a culpa é minha. Mas já sabes que não consigo ser de outra maneira, não sabes?
– Sei que não fazes por mal.
– Amo-te intensamente... mas falta qualquer coisa.
– Onde? – perguntou ela, olhando-o nos olhos.
– Oh, em mim mesmo! Eu é que devia estar envergonhado... por ser uma espécie de aleijão espiritual. Estou mesmo envergonhado. É uma desgraça. Porquê, diz-me!
– Não sei – respondeu Miriam.
– E eu também não – disse ele. – Não te parece que levámos longe de mais aquilo a que se chama pureza? Não te parece que tantos receios e pruridos são também algo obscenos?
Ela pousou nele os seus olhos escuros, perplexos.
– Tu fugias de tudo e de nada, e eu, levado por ti, retraí-me também... e talvez mais ainda... – disse Paul.
Seguiu-se um longo silêncio.
– Sim – concordou ela –, é como dizes.
– Temos a unir-nos todos estes anos de intimidade. Ao pé de ti sinto-me como se estivesse nu, percebes?
– Acho que sim – respondeu ela.
– E tu, amas-me?
Ela riu-se.
– Não sejas tão amarga – implorou ele.
Ela olhou-o e teve pena: os olhos dele estavam ensombrados pelo sofrimento. Miriam sentiu pena dele: aquele amor distorcido era pior para ele que para ela, que nunca poderia ser completamente feliz. Ele era instável, em constante movimento, sempre à procura de uma saída. Pois que fizesse dela o que quisesse.
– Não – disse ela docemente –, não estou a ser amarga.
Miriam sentia que por ele faria qualquer coisa, sofreria qualquer dor. Pôs-lhe a mão sobre o joelho e ele, chegando-se à frente na cadeira, pegou-lhe na mão e beijou-a. Mas doeu-lhe fazer isso. Era como se se estivesse a pôr de lado. Sentia-se sacrificado à pureza dela, que se lhe afigurava nula de valor. Como podia ele beijar apaixonadamente aquela mão, se ela depois se retirava e, no seu lugar, ficava apenas a dor? Todavia, ele puxou-a lentamente para si e beijou-a.
Conheciam-se bem de mais para fingirem. Enquanto o beijava, ela olhou bem dentro dos seus olhos. Estavam fixos num ponto distante da sala, ardendo em cintilações sombrias que a fascinavam. Permanecia estático. E ela sentia-lhe o coração pulsar pesadamente no peito.
– Em que pensas? – perguntou-lhe.
O brilho esmoreceu nos olhos dele, vacilantes.
– Pensava... o tempo todo... que te amo. Que tenho sido obstinado.
Ela afundou a cabeça no seu peito.
– E que mais? – continuou.
– Mais nada – disse Paul. A sua voz soava firme e a boca beijava-lhe o pescoço.
Miriam levantou a cabeça e fitou os olhos dele com paixão. O fulgor que deles se desprendia parecia lutar, querer fugir do olhar dela, acabando por se apagar. Paul desviou a cabeça para o lado bruscamente. O momento era de angústia.
– Beija-me – suspirou ela.
Ele fechou os olhos e beijou-a, apertando-a cada vez mais no seu abraço.
Quando, de regresso a casa, ela o acompanhou até à estrada, acabou por lhe dizer:
– Estou feliz por ter voltado para ti. Ao pé de ti sinto-me puro... como se não tivesse nada para esconder. Será que vamos ser felizes?
– Vamos sim – murmurou ela, com lágrimas nos olhos.
– Há uma perversidade nas nossas almas – disse ele – que nos faz rejeitar e fugir daquilo que mais queremos. É isso que temos de combater.
– É... – disse ela, sentindo-se atordoada.
Ele beijou-a de novo na escuridão da noite, à beira da estrada, sob os ramos vergados do espinheiro, percorrendo-lhe o rosto com os dedos. Na escuridão, não podendo vê-la, mas apenas senti-la, a paixão avassalou-o e ele apertou-a com força contra si.
– Deixas-me ser teu? – balbuciou a custo, escondendo a cara no pescoço dela.
– Mas não agora – disse Miriam.
Paul sentiu a esperança fugir-lhe e o coração esmorecer; era o desalento a invadi-lo.
– Não – disse ele.
O seu abraço afrouxou.
– Gosto de sentir aqui o teu braço! – disse ela, carregando-lhe no braço que a enlaçava pela cintura. – É tão relaxante.
E ele apertou-a ao fundo das costas, para a ajudar a relaxar.
– Nós pertencemos um ao outro – disse ele.
– Pois pertencemos.
– Então, porque não havemos de pertencer inteiros um ao outro?
– Mas... – gaguejou ela.
– Sei que é pedir muito – disse ele. – Mas realmente não corres grandes riscos... Não como Gretchen. Sabes que podes confiar em mim, não sabes?
– Sei que sim! – Foi a resposta pronta e segura. – Não é isso... Não é nada disso... Mas...
– O que é, então?
Ela escondeu a cara no pescoço dele com um gemido de sofrimento.
– Não sei – gritou.
Parecia vagamente histérica, mas também horrorizada. Paul sentiu definhar o coração.
– Não achas que é feio, pois não? – perguntou ele.
– Não... já não acho. Tu ensinaste-me que não é.
– Tens medo?
Ela fez por se acalmar.
– É isso, o que eu sinto é medo. – Paul beijou-a ternamente.
– Não faz mal – disse. – Será quando quiseres.
Subitamente, ela enlaçou-o com força e o seu corpo crispou-se contra o dele.
– Hei-de ser tua – disse ela, cerrando os dentes.
O coração de Paul bateu de novo, incendiado. Apertou-a ainda mais e a boca dele desceu até ao seu pescoço. Ela não aguentou. Esquivou-se. Ele largou-a.
– Não vais chegar atrasado? – perguntou ela docemente.
Ele suspirou, mal ouvindo o que ela lhe dizia. Ela ficou à espera, ansiando por que ele se fosse embora. Por fim, ele deu-lhe um beijo de fugida e saltou a cerca. Voltando-se, viu o borrão esbranquiçado do rosto dela na escuridão, sob os ramos pendentes do espinheiro. Era tudo o que via dela, apenas uma mancha esbranquiçada.
– Adeus! – disse ela, docemente. Não tinha corpo, só uma voz e um rosto esbatido. Ele voltou-lhe as costas e correu pela estrada fora, cerrando os punhos. Só parou quando chegou ao rebordo do lago e se debruçou sobre as águas negras, semiatordoado.
Miriam regressou a casa pelos prados. Não receava as pessoas, nem o que pudessem dizer. Mas receava o assunto que discutira com ele. Sim, se ele insistisse, deixaria que ele a possuísse. Mas, ao pensar no depois, o seu coração desanimou. Ele ia ficar desiludido, insatisfeito, e acabaria por deixá-la. Mas ele insistia tanto... E, por causa disto, que não lhe parecia assim tão importante, acabaria mal o seu amor. Afinal, ele era apenas como os outros homens, buscava apenas o seu próprio prazer. Ah, mas nele havia algo mais, algo de mais profundo! Algo em que podia confiar, apesar de todos os desejos. Ele dissera que o momento da posse era um momento especial na vida. Todas as emoções fortes estavam nele concentradas. Talvez fosse verdade, e houvesse nele algo de divino. Se assim era, submeter-se-ia religiosamente ao sacrifício. Ele podia possuí-la. Ao pensar nisto, todo o seu corpo se crispou involuntariamente, retesado, como se quisesse fugir de qualquer coisa que não via. Mas a Vida empurrava-a para o portão do sacrifício, e só lhe restava submeter-se. Ele, pelo menos, conseguiria o que queria, e isso era o que ela mais desejava. Pensava e repensava, convencendo-se a aceitá-lo.
Paul cortejava-a agora como um verdadeiro amante. Muitas vezes, quando ele se inflamava de paixão, ela afastava-o, agarrando-lhe a cara com ambas as mãos e olhando-o nos olhos. Mas ele não suportava o seu olhar. Os olhos dela, muito escuros, cheios de amor, sinceros e inquiridores, faziam-no desviar os seus. Ela não lhe permitia nem um breve instante de esquecimento. E de novo ele se torturava, pensando nas suas responsabilidades e nas dela; não se dando tréguas, não se rendendo à fome insaciável e despersonalizadora da paixão; tinha de voltar a ser um ser pensante, determinado. E ela, arrancando-o ao torpor da paixão, chamava-o à pequenez da sua relação pessoal. Era de mais, ele não o suportava. «Deixa-me... Deixa-me!», apetecia-lhe gritar. E ela a querer que ele a olhasse com os olhos cheios de amor. Mas os seus olhos, onde brilhava a chama intensa e impessoal do desejo, não lhe pertenciam.
A quinta estava carregada de cerejas. As cerejeiras por detrás da casa, altas e frondosas, cobriam-se de bolas vermelhas e negras, espreitando por baixo das folhas verde-escuras. Paul e Edgar andavam a apanhar cerejas à tardinha. Tinha feito muito calor e as nuvens começavam agora a movimentar-se no céu, negras e prenunciadoras de calor. Paul trepou aos ramos mais altos, acima dos telhados escarlates dos edifícios. O vento, gemendo persistente, fazia a árvore abanar num balanço subtil e estimulante que lhe alvoroçava o sangue. O jovem, precariamente empoleirado nos ramos mais finos, e entontecido pelos balanços, metia a mão por baixo das ramadas onde se acoitavam as cerejas bem redondas e escarlates, arrancando às mãos-cheias os frutos refrescantes, carnudos e escorregadios. Quando se inclinava, as cerejas roçavam-lhe no pescoço e nas orelhas, e o toque das pontas frias dos seus dedos disparava setas de fogo no seu sangue. Por baixo das folhas, todas as gradações de vermelho, do rubro mais ostensivo ao mais profundo escarlate, brilhavam aos seus olhos sob a folhagem sombria.
Miriam veio até ao jardim.
– Oh! Que maravilha! – ouviu-a Paul dizer, com a voz inebriada.
Olhou para baixo. A cara dela, voltada para ele, irradiava um brilho dourado, muito suave.
– Que alto que tu estás!
A seu lado, nas folhas de ruibarbo, estavam caídos quatro pássaros mortos, trespassados pelos chumbos, quatro larápios apanhados em flagrante. Paul viu alguns caroços descorados, pendentes como esqueletos, com a polpa descarnada. Olhou para baixo outra vez, para Miriam.
– As nuvens estão a arder! – disse ele.
– É magnífico! – gritou ela.
Lá em baixo, ela parecia pequenina, muito doce e muito terna. Ele atirou-lhe um punhado de cerejas. Ela não esperava e assustou-se. Ele riu-se baixinho, chocalhando o riso, e bombardeou-a com mais cerejas. Ela correu a abrigar-se, apanhando algumas pelo caminho. Dois belos pares, bem vermelhinhos, pendurou-os nas orelhas; depois, olhou para cima outra vez.
– Não achas que já chega? – perguntou.
– Talvez. Aqui em cima é como estar a bordo de um navio.
– Vais ficar aí até quando?
– Até o Sol se pôr.
Miriam foi sentar-se no muro, a ver as nuvens douradas esfarraparem-se e deslizarem rumo à noite, ruínas imponentes e rosáceas. O ouro abrasou-se de vermelho, como a dor no auge da intensidade. E logo o escarlate passou a rosa, e o rosa a carmesim, até a paixão esmorecer no céu rapidamente e o mundo inteiro se tornar cinzento-escuro. Paul desceu apressadamente com o cesto carregado, fazendo um rasgão na manga da camisa.
– Que boas que são – disse Miriam apalpando as cerejas.
– Rasguei a manga – foi a resposta.
Ela observou o rasgão em L, e disse:
– Eu trato disso.
Era junto ao ombro. Miriam meteu os dedos no rasgão.
– Que quentinho! – disse ela.
Paul riu-se. Havia na voz dele um requebro novo, estranho, que a fez perder o fôlego.
– Ficamos cá fora?
– Será que não chove?
– Não, vamos dar uma voltinha.
Atravessaram os campos até ao pinhal.
– E se entrássemos lá dentro?
– Queres mesmo?
– Quero.
No pinhal a escuridão era total, e as agulhas aceradas picavam-lhes o rosto. Ela tinha medo. Paul estava esquisito, muito calado.
– Gosto da escuridão – disse ele. – Quem dera que fosse ainda mais fechada... Esta é boa, a escuridão ser fechada...
Ele parecia não dar pela presença dela, enquanto pessoa, pelo menos; para ele, naquele momento, ela era apenas uma mulher. Miriam tinha medo.
Ele parou junto a um pinheiro e tomou-a nos braços. Ela entregou-se-lhe... mas fê-lo como um sacrifício que de certo modo a horrorizava. Aquele homem de voz grossa e ar ausente era para ela um estranho.
Mais tarde começou a chover. O pinheiros exalavam um cheiro intenso. Paul estava deitado no chão, com a cabeça na caruma ressequida, a escutar o som sibilante da chuva, incisivo e persistente. Sentia o coração entristecido, pesado. Percebia agora que ela não tinha estado com ele, que a sua alma se apartara, horrorizada. Era apenas físico o alívio que sentia, nada mais. Com o coração sombrio, triste e a transbordar de ternura, os seus dedos deambulavam pelo rosto dela, penosamente. Ela agora amava-o de novo profundamente. Ele era terno e muito belo.
– Olha a chuva! – disse Paul.
– É... Está a molhar-te?
Miriam passou-lhe as mãos pelo cabelo e pelos ombros, para sentir as gotas de chuva em cima dele. Amava-o afectuosamente. Ali deitado, com a cara na caruma, Paul sentia-se extraordinariamente calmo. Não se importava com as gotas de chuva; de bom grado se deixaria ali ficar até a chuva o ensopar; era como se nada mais contasse, como se a sua vida se desvanecesse num além próximo e admirável. Esta sensação estranha e tão suave de se aproximar da morte era nova para ele.
– Temos de ir andando – disse Miriam.
– Pois temos – disse ele, sem se mexer.
A vida parecia-lhe agora uma sombra, e o dia uma sombra branca. A noite, a morte, o silêncio, a inacção, isso sim, era ser. A vida, a acção, a insistência, eram não-ser. Mas a sensação mais sublime era fundir-se com as trevas e nelas pairar, identificado com o grande Ser.
– A chuva vai molhar-nos todos – disse Miriam.
Ele levantou-se e ajudou-a.
– Que pena! – disse Paul.
– O quê?
– Termos de ir. Sinto-me tão tranquilo.
– Tranquilo? – repetiu ela.
– Mais tranquilo do que já alguma vez me senti.
Caminharam de mãos dadas. Ela apertava-lhe os dedos, vagamente amedrontada. Ele parecia agora muito longe, e ela receava perdê-lo.
– Os pinheiros parecem vultos na escuridão; cada um, apenas uma figura.
Ela tinha medo, mas não dizia nada.
– Ouve o sussurro. É a própria noite a meditar e a dormir. Deve ser isso que se faz quando se morre: dormir e meditar.
Primeiro ela tivera medo do animal que ele encerrava. Agora era do místico. Caminhava ao lado dele, em silêncio. A chuva caía pesadamente sobre as árvores com um som cavo. Chegaram por fim ao telheiro da carroça.
– Vamos parar aqui um bocadinho – disse Paul.
Por todo o lado o som da chuva abafava tudo o mais.
– Sinto-me tão estranho e tão calmo ao mesmo tempo – disse ele. – Em comunhão com todas as outras coisas.
– Pois é – disse ela, condescendente.
Ele parecia de novo não dar pela sua presença, embora lhe apertasse a mão com força.
– Livrarmo-nos da nossa individualidade, que é a nossa vontade, o nosso esforço... viver sem esforço, uma espécie de sono consciente... é algo de muito belo. Penso... que é essa a nossa outra vida... a nossa imortalidade.
– Sim?
– Sim... E que é muito bonito podermos alcançá-la.
– Não costumas pensar assim.
– Pois não.
Pouco depois entraram em casa. Todos os miraram curiosos. Paul conservava ainda o olhar pesado e tranquilo, e a voz serena. Instintivamente, todos o deixaram só.
Por essa altura, a avó de Miriam, que vivia numa casinha modesta em Woodlinton, adoeceu e a rapariga foi tomar conta da casa. Era um lugarzinho encantador. A casa tinha um grande jardim à frente, com altos muros de tijolo cercados de ameixoeiras. Nas traseiras, um outro jardim estava separado dos campos por uma velha cerca, muito alta. Era tudo muito belo. Miriam não tinha muito que fazer, e podia por isso dedicar-se à sua amada leitura e à escrita de textos introspectivos, de que tanto gostava.
Nas férias, e uma vez que já tinha melhorado, a avó foi levada para Derby, para passar um ou dois dias com a filha. Era uma velhinha excêntrica e podia querer vir-se logo embora. Miriam ficou, assim, sozinha em casa da avó, o que também lhe agradava.
Paul ia muitas vezes visitá-la de bicicleta, e passavam geralmente momentos de muita calma e felicidade. Ele não costumava demorar-se muito tempo. Mas, nessa segunda-feira, resolveu passar o dia todo com ela.
O tempo estava magnífico. Despediu-se da mãe e disse-lhe para onde ia. Ela ficaria sozinha o dia inteiro. Isso custava-lhe, mas tinha três dias só para si, para fazer o que lhe apetecesse. E era muito bom correr pelas veredas matinais montado na bicicleta.
Eram onze horas quando chegou junto de Miriam. Ela estava ocupada a fazer o almoço. Assim, corada e atarefada, harmonizava--se perfeitamente com a cozinha. Ele beijou-a e ficou sentado a observá-la. A cozinha era pequena e aconchegada. O sofá estava coberto com uma espécie de capa aos quadrados, em vermelho e azul-pálido, muito velha, muito lavada, mas ainda bonita. Num recanto, sobre uma cantoneira, estava um mocho empalhado metido numa redoma. O sol penetrava através das folhas dos gerânios perfumados que enfeitavam a janela. Ela preparava uma galinha em sua honra. Aquela ia ser a casa deles por um dia, e eram marido e mulher. Ele ajudou-a a bater os ovos e descascou as batatas. Achava que ela lhe dava uma sensação de aconchego de lar, quase tanto como a mãe. E não havia mulher mais bonita do que ela, com os caracóis despretensiosamente soltos e as faces coradas do fogão.
O almoço foi um êxito. Como jovem marido, coube-lhe a tarefa de trinchar a ave. Conversaram animadamente o tempo todo, sem parar. Depois, ele limpou a loiça que ela lavara e foram passear pelos campos. Havia um riacho saltitante que corria para uma poça na base de uma margem muito íngreme. Por lá se detiveram a apanhar malmequeres e grandes miosótis muito azuis. Ela sentou-se na margem com as mãos cheias de flores, na sua maioria íris douradas. Ao chegar a cara aos malmequeres, ficou coberta de um brilho amarelado.
– Como a tua cara brilha! – disse ele. – Pareces uma aparição.
Ela olhou-o intrigada. Ele riu-se, a desculpar-se, pousando as suas mãos nas dela. Depois beijou-lhe os dedos e a cara.
O mundo estava banhado de sol, muito sereno, mas não adormecido, palpitando de expectativa.
– Nunca vi nada mais bonito – disse ele, sempre a apertar a mão dela.
– E a água a cantar enquanto corre... gostas?
Ela olhou para ele cheia de amor. Os seus olhos estavam negros e brilhantes.
– Não achas que está um dia esplêndido? – perguntou ele.
Ela concordou, com um sussurro. Estava feliz e ele sabia-o.
– O dia é nosso... só nós dois – disse ele.
Demoraram-se um pouco mais. Depois, levantaram-se do chão de aromas de tomilho, e ele olhou para ela com simplicidade.
– Vamos para casa? – perguntou.
Voltaram para casa de mãos dadas, em silêncio. As galinhas correram ao encontro dela no carreiro. Ele fechou a porta e ficaram com a casa só para eles.
Paul nunca mais se esqueceu de quando a viu deitada nua na cama, e ele a desabotoar o colarinho. Primeiro viu só a beleza dela, que o cegava. Tinha as ancas mais bonitas que ele já imaginara. E ele de pé, paralisado e mudo, a olhar para ela, sorrindo deslumbrado. Depois, desejou-a e despojou-se de tudo o que vestia. Mas, quando avançava para ela, as suas mãos ergueram-se num movimento de prece, e ele olhou-a e deteve-se. Os seus grandes olhos castanhos vigiavam-no, mudos, resignados, enlevados. Ela estava ali deitada como se pronta a oferecer-se em sacrifício: ali estava o seu corpo para ele tomar. Mas a expressão mais recôndita nos seus olhos, de cordeiro a aguardar a imolação, fê-lo estacar e arrefeceu-lhe o sangue.
– Tens a certeza de que me queres? – perguntou ele, como se uma nuvem fria o ensombrasse.
– Sim, absoluta.
Ela estava muito calma, tranquila. Só sabia que estava a fazer por ele alguma coisa, e isso para ele era quase insuportável. Submetia-se ao sacrifício, porque o amava. E ele tinha de se sacrificar a ela. Por um momento, Paul desejou ser assexuado ou então estar morto. Depois, fechou os olhos e o sangue pulsou de novo com ímpeto no seu corpo.
Por fim amou-a, amou-a com todas as fibras do seu ser. Amou-a, mas queria antes chorar. Havia algo que não aguentava, por amor dela. Ficou com ela até muito tarde. Quando voltava para casa, sentiu que estava finalmente iniciado. Deixara de ser menino. Porquê então esta dor atroz na alma? Porque pensara na morte e lhe parecera a outra vida tão doce e reconfortante?
Passou toda a semana com Miriam e deixou-a exausta com a sua paixão, enquanto ela durou. Teve quase sempre de se esforçar por ignorá-la, e agir pela força bruta dos seus sentimentos. Mas não era sempre que o conseguia e, depois, ficava-lhe aquele sentimento de morte e de fracasso. Para estar realmente em comunhão com ela, tinha de se esquecer de si próprio e do seu desejo. Para a possuir, tinha de se esquecer dela.
– Quando venho ter contigo – perguntou ele, de olhos negros envergonhados e sofredores –, tu não me queres realmente, pois não?
– Quero, sim! – respondeu Miriam prontamente.
Ele olhou para ela.
– Não queres, não.
Ela começou a tremer.
– Estás a ver – disse ela, pegando na cara dele e escondendo-a no seu ombro – estás a ver... nesta situação... como é que posso habituar-me a ti?... era fácil se estivéssemos casados.
Ele levantou a cabeça e olhou para ela.
– Queres dizer que agora... que é sempre um choque?
– Sim... e...
– Estás sempre a fugir de mim.
Ela tremia, nervosa.
– Estás a ver – disse ela – não estou acostumada à ideia...
– Nestes últimos dias já tiveste tempo de te acostumar – disse ele.
– Mas toda a minha vida... A minha mãe sempre me disse: «Há uma coisa no casamento que é aterradora, mas que é preciso suportar.» E eu acreditei.
– E ainda acreditas – disse ele.
– Não! – exclamou ela, de chofre. – Acredito, tal como tu, que o amor, mesmo dessa maneira, é o ponto mais alto da existência.
– Mas isso não altera o facto de nunca o desejares.
– Não – disse ela, prendendo-lhe a cabeça entre os braços e embalando-o, desesperada. – Não digas isso! Tu não podes compreender. – Os seus movimentos eram de dor. – Achas que eu não quero os teus filhos?
– Não me queres é a mim.
– Como podes dizer isso? Mas, para ter filhos, temos de casar primeiro...
– Então casemo-nos. Eu quero que tu tenhas os meus filhos.
Ele beijou-lhe a mão, reverente. Ela estava triste e pensativa. Observava-o.
– Somos ainda muito novos – disse ela por fim.
– Vinte e quatro e vinte e três...
– Ainda não – murmurou ela, balançando, em desespero.
– Será quando quiseres – disse ele.
Miriam deixou cair a cabeça, pesarosa. O tom desanimado com que ele dizia estas coisas magoava-a profundamente. Existira sempre esse senão entre eles. Tacitamente, ela aquiescia com o que ele sentia.
Ao cabo de uma semana de amor, Paul disse de súbito à mãe, num domingo à noite, precisamente quando se iam deitar:
– Sabe, mãe, vou passar a ir menos vezes a casa da Miriam.
Mrs. Morel ficou surpreendida, mas não fez perguntas.
– Faz como entenderes.
E ele foi deitar-se. Havia nele, porém, uma serenidade que a trazia intrigada. Mas não era difícil de adivinhar a razão. No entanto, deixá-lo-ia em paz. A precipitação podia estragar as coisas. Observava-o da sua solidão e perguntava-se como tudo acabaria. Andava adoentado e demasiado calado para o gosto dela. E aquela testa que constantemente se franzia e ela tão bem conhecia dos seus tempos de menino e há muitos anos não via. Mas agora voltara ao mesmo, e ela nada podia fazer. Ele tinha de singrar sozinho, traçar o seu próprio caminho.
Paul continuou fiel a Miriam. Amara-a integralmente por um dia, mas nunca mais como dessa vez. O sentimento de fracasso, que a princípio era só uma tristeza, tornava-se cada vez mais forte, até começou a sentir que não podia mais. Apetecia-lhe fugir, ir para o estrangeiro, qualquer coisa. Pouco a pouco deixou de lhe pedir que o aceitasse. Era algo que, em vez de os aproximar, os afastava. Apercebeu-se finalmente, com plena consciência, de que não havia remédio. Não valia sequer a pena tentar: entre eles nunca existiria harmonia.
Durante alguns meses Paul encontrara Clara muito poucas vezes. Apenas alguns curtos passeios de meia hora à hora de almoço. Era para Miriam que ele se guardava. Com Clara, porém, o olhar desanuviava-se-lhe e recuperava a boa disposição. Ela tratava-o com indulgência, como se ele fosse uma criança, e embora ele pensasse não se importar, a verdade é que lá no fundo tal comportamento o irritava.
Por vezes, Miriam perguntava-lhe:
– Que é feito da Clara? Não tem dado notícias.
– Ontem estive com ela uns vinte minutos. Fomos dar uma volta – respondia ele.
– De que falou ela?
– Sei lá. Acho que quem falou mais fui eu, como sempre... Acho que lhe falei da greve e da reacção das trabalhadoras.
– Ah.
E assim Paul se confessava.
Mas, insidiosamente, sem que disso se apercebesse, a atracção que sentia por Clara afastava-o de Miriam, por quem se sentia responsável e a quem sentia pertencer. Julgava no entanto que lhe continuava fiel. Não é fácil a um homem avaliar a força e a intensidade dos seus sentimentos por uma mulher, até fugir com outra.
E, assim, começou a passar mais tempo com os amigos. Havia Jessop, da escola de belas-artes, Swain, que fazia demonstrações de química na universidade, Newton, um professor, para além de Edgar e dos outros irmãos mais novos de Miriam. Desculpando-se com o trabalho, ficava a desenhar e a estudar com Jessop. Ou então, encontrava-se com Swain na universidade e iam os dois para a cidade. Se encontrava Newton no comboio, passava depois por casa dele e iam jogar bilhar para o Moon and Stars. E bastava-lhe desculpar-se perante Miriam com os amigos, para se sentir plenamente justificado. A mãe começou a ficar bem mais aliviada, pois ele contava-lhe sempre onde estivera.
No Verão, Clara levava por vezes um vestido leve de algodão com as mangas largas, e quando levantava as mãos as mangas escorregavam para trás, deixando-lhe a descoberto os braços fortes e bonitos.
– Só meio minuto – gritou Paul. – Não mexas o braço.
Fez esboços da mão e do braço dela, e conseguiu transferir para os desenhos algum do fascínio que o objecto real exercia sobre ele. Um dia, em que Miriam percorria escrupulosamente todos os seus cadernos e papéis, encontrou os desenhos.
– Acho que a Clara tem uns braços tão bonitos – disse ele.
– Pois tem! Quando é que os desenhaste?
– Terça-feira, na oficina. Sabes que tenho lá um cantinho onde posso trabalhar. Geralmente despacho o serviço todo antes de almoço, e depois fico com a tarde livre, e só tenho de ver se está tudo em ordem antes de sair.
– Sim... – disse ela, virando as páginas do caderno dos desenhos.
Miriam irritava-o sobremaneira com frequência. Detestava-a quando ela se deitava por cima das suas coisas a bisbilhotar. Detestava-a quando o analisava exaustivamente, como se ele fosse um interminável relatório psicológico. Detestava-a quando estava com ela, só por ela o ter apanhado, sem contudo o ter apanhado, e começava a torturá-la. Ela tirava-lhe tudo e não lhe dava nada, dizia ele. Não lhe dava, pelo menos, calor humano. Nunca se podia dizer que estivesse realmente viva, a palpitar de vida. Tentar encontrá-la era como tentar encontrar algo que não existe. Ela era apenas a sua consciência, não a sua companheira. Paul odiava-a com violência, e tratava-a cada vez com mais crueldade. As coisas arrastaram-se até ao Verão seguinte. Paul, entretanto, encontrava-se com Clara cada vez mais amiúde.
Por fim, desabafou. Uma noite ficou em casa a trabalhar. Entre ele e a mãe instalara-se abertamente um clima de críticas mútuas e remoques. Mrs. Morel recuperara toda a sua antiga força. Ele não ia continuar ligado a Miriam. Pois muito bem, ela ficaria à espera de que ele dissesse qualquer coisa. Há muito que detectara no filho a tempestade latente que o traria de volta a ela. Naquela noite, a tensão avolumava-se entre os dois. Paul entregava-se frenética e mecanicamente ao seu trabalho, na ânsia de fugir de si próprio. Já era muito tarde. Pela porta aberta entravam fragrâncias de lírios, como quem espreita. De súbito, ele levantou-se e saiu.
A noite estava tão bela que lhe apetecia gritar. Uma lua em crescente, dourada e esmorecida, mergulhava por detrás do sicómoro negro do fundo do jardim, tingindo o céu de tons tristes de púrpura. Mais perto, uma cerca de lírios brancos, indistintos, cruzava o jardim, fazendo palpitar o ar em volta com o perfume, como se estivesse vivo. Paul atravessou o canteiro de cravos, cujo aroma intenso suplantava o perfume pesado dos lírios, e encostou-se à barreira branca de flores, que pendiam soltas, como se arfassem. O perfume inebriou-o. Desceu até ao prado, para ver a lua desaparecer.
Uma codorniz piava em insistentes chamados. A lua mergulhou rapidamente no horizonte, cada vez mais rubra. Atrás dele, as enormes flores inclinavam-se, como se a chamá-lo. E então, de chofre, sentiu um outro perfume, um cheiro cru e rude. Olhando em volta, viu as íris cor de sangue e aflorou-lhes as carnudas gargantas e as mãos negras e vorazes. Pelo menos tinha encontrado qualquer coisa. As flores erguiam-se hirtas na escuridão. O seu perfume era brutal. A lua derramava-se sobre a crista da colina. Por fim, desapareceu. Tudo era escuridão. A codorniz chamava ainda.
Paul partiu um cravo e voltou para dentro de seguida.
– Vá, meu filho – disse a mãe. – Já são horas de ires para a cama.
Ele permaneceu imóvel, com o cravo encostado aos lábios.
– Vou acabar tudo com a Miriam, mãe – disse, com voz serena.
Ela olhou-o por cima dos óculos. Ele devolveu-lhe o olhar, sem pestanejar. A mãe fitou-o por um momento e depois tirou os óculos. Ele estava lívido. Via-se crescer nele o macho, dominador. E ela não queria vê-lo com demasiada clareza.
– Mas eu pensava... – começou Mrs. Morel.
– Bem... – disse Paul – eu não a amo... não quero casar com ela... Por isso, só me resta pôr um ponto final na situação.
– Mas...! – exclamou a mãe, boquiaberta. – Pensava que ultimamente tinhas decidido ficar com ela, e por isso não disse nada.
– Pois tinha... era o que eu queria... mas já não quero. Não adianta. No domingo acabo tudo. É o melhor que tenho a fazer, não acha?
– Tu é que sabes. Sabes bem que há muito tempo que eu te disse precisamente isso.
– Já não aguento mais. No domingo acabo tudo.
– Nesse caso... – disse a mãe – suponho que é o melhor que tens a fazer. Mas ultimamente estava convencida de que tinhas resolvido ficar com ela, e por isso não disse nada; mas devia ter-te dito alguma coisa. Como eu sempre disse, acho que ela não é mulher para ti.
– No domingo acabo tudo – disse Paul, aspirando o cravo. Depois, meteu a flor na boca e, distraidamente, arreganhou os dentes, cravou-os lentamente na corola e trincou um punhado de pétalas. Depois, cuspiu-as para a lareira, deu um beijo à mãe e foi deitar-se.
No domingo partiu para a quinta logo ao começo da tarde. Tinha mandado dizer por carta a Miriam que iriam passear pelos campos até Hucknall. A mãe mostrou-se muito carinhosa com ele, mas Paul não disse nada. Ela porém apercebeu-se do esforço que a decisão implicava, mas a expressão determinada do filho sossegou-a.
– Não te preocupes, meu filho – disse ela. – Vais ver como te sentes melhor depois de tudo terminar.
Paul lançou à mãe um olhar fugaz, misto de surpresa e ressentimento. Não precisava da sua solidariedade.
Miriam veio ao seu encontro ao fundo da vereda. Trazia um vestido novo de musselina estampada, de manga curta. Aquelas mangas curtas e os seus braços morenos e esqueléticos a saírem por baixo, uns braços tão resignados, tão dignos de dó, incomodaram-no tanto que lhe estimularam a crueldade. Ela tinha-se posto fresca e bonita para ele; era como se desabrochasse só para ele. De cada vez que Paul olhava para ela e via aquela jovem já madura, tão bonita, de vestido novo, era tão grande a sua dor que o coração parecia querer rebentar as peias que ele lhe punha. Mas estava decidido e era irrevogável.
Chegados ao monte, sentaram-se no chão e ele deitou-se com a cabeça no colo dela, enquanto ela brincava com os seus cabelos. Miriam sabia que «ele não estava ali», como ela costumava dizer. Muitas vezes o procurava, quando ele estava com ela, e não o encontrava. Mas esta tarde não estava preparada.
Eram quase cinco horas quando ele lhe disse. Estavam sentados na margem de um riacho, onde os bordos de turfa pendiam como lábios sobre a margem cavada de terra amarelada, e Paul esgrava-tava o chão com um pauzinho, como sempre fazia quando se sentia perturbado e cruel.
– Tenho pensado muito – disse-lhe ele. – O melhor é acabarmos.
– Porquê? – exclamou ela, tomada de surpresa.
– Porque não adianta continuar.
– Não adianta porquê?
– Porque não. Eu não me quero casar. E se não nos vamos casar, não adianta continuarmos.
– Mas porque é que só agora dizes isso?
– Porque só agora me decidi.
– Então... e estes últimos meses? E todas as coisas que me disseste?
– Não posso fazer mais nada... não quero continuar.
– Já não queres saber mais de mim?
– Quero acabar... quero que fiques livre de mim, e eu de ti.
– E então os últimos meses?
– Não sei... Não te disse nada que não sentisse...
– Então porquê esta mudança?
– Não mudei... Eu sou o mesmo... Só que agora sei que não vale a pena continuar.
– Ainda não me disseste porque é que não vale a pena.
– Porque eu não quero continuar... e não quero casar contigo.
– Quantas vezes disseste que querias casar comigo e eu não aceitei?!
– Eu sei... Mas agora quero acabar tudo.
Por instantes fez-se silêncio, enquanto ele continuava a espetar o pau na terra raivosamente. Miriam deixou cair a cabeça, pensativa. Ele era uma criança irresponsável. Comportava-se como um bebé que, ao acabar de beber, atira a chávena ao chão e a esmigalha. Miriam olhava para ele com a sensação de poder agarrá-lo e fazê-lo cair em si. Mas sentia-se impotente. E então gritou:
– Uma vez disse que não tinhas mais de catorze anos... mas o que tu tens são quatro!
E ele sempre a esgravatar na terra raivosamente. Ouvindo e calando.
– Pareces mesmo uma criança de quatro anos – repetiu ela, furiosa.
Ele não respondeu, pensando para consigo: «Óptimo, se eu sou uma criança de quatro anos, para que me queres? De outra mãe eu não preciso.» Mas não disse nada, permanecendo em silêncio.
– Já disseste à tua família?
– Disse à minha mãe.
De novo, um prolongado silêncio.
– O que mais queres então? – perguntou ela.
– Essa agora... quero que a gente se separe. Temos vivido colados um ao outro todos estes anos... Está na hora de pararmos. Eu sigo o meu caminho, sem ti, e tu segues o teu, sem mim. E terás uma vida independente, uma vida só tua.
Havia nestas palavras um certo fundo de verdade, que ela, apesar de todo o seu azedume, não podia deixar de registar. Ela reconhecia que sentia por ele uma espécie de servidão irracional, que odiava por não poder controlá-la. Odiara o amor que sentia por ele desde o momento em que se tornara demasiado avassalador. No fundo, odiava-o porque o amava e ele a dominava. Resistira ao seu domínio, lutara para se manter livre, e sabia que estava livre dele, muito mais do que ele dela.
– Mas... – prosseguiu ele – havemos de ser para sempre o reflexo um do outro. Tu fizeste muito por mim, e eu por ti. Chegou a al-tura de cada um viver a sua vida.
– Que pensas fazer? – perguntou Miriam.
– Nada, apenas ser livre – respondeu ele.
Ela, porém, sentia no mais fundo de si mesma que era a influência de Clara que o incitava à libertação. Mas ficou calada.
– E que vou eu dizer à minha mãe? – perguntou Miriam.
– Eu disse à minha que ia acabar tudo... sem rodeios.
– Eu não lhe vou contar nada – disse ela.
– Faz como quiseres – disse ele, franzindo a testa.
Paul sabia que a tinha colocado numa situação difícil, e que nada fazia para a ajudar. E isso irritava-o.
– Diz-lhes que não querias, e continuas a não querer, casar comigo, e que acabaste tudo – disse ele. – Podia ser verdade.
Ela mordeu o dedo, amuada. Passou em retrospectiva todo o tempo de namoro. Sempre soubera que acabariam assim: estava à vista que assim seria. Ia ao encontro dos seus mais negros presságios.
– Sempre assim foi, sempre! – gritou ela. – Sempre uma longa batalha... e tu a tentares libertar-te de mim.
A frase saiu-lhe sem querer, como um relâmpago. O coração dele parou. Era então assim que ela via as coisas?
– Mas houve alguns momentos perfeitos, algumas horas perfeitas, em que estivemos juntos – disse ele, em tom de desculpa.
– Nunca! – gritou ela. – Nunca! Eras sempre tu a tentares livrar-te de mim.
– Nem sempre... a princípio não – desculpou-se ele de novo.
– Sempre... desde o princípio... foi sempre o mesmo.
Miriam terminara, mas tinha dito o bastante. Paul estava sentado, perplexo. Tinha querido dizer, «Foi bom, mas chegou ao fim.» E ela, ela em cujo amor ele tinha acreditado com desprezo de si próprio, negava que o amor deles alguma vez tivesse sido amor. «Será que ele tinha lutado sempre para se libertar dela?» Então tinha sido monstruoso, nunca existira realmente nada entre eles, ele passara a vida a imaginar uma coisa que não existia. E ela sabia-o. Sempre soubera tanto e lhe dissera tão pouco. Ela sempre o soubera. No fundo, sempre o tinha sabido!
Paul sentou-se em silêncio, amargurado. Sentia que se tinha voltado o feitiço contra o feiticeiro. Era ela que tinha brincado com os seus sentimentos, e não ele com os dela. Ela escondera dele recriminações, lisonjeara-o, e desprezara-o. Desprezava-o naquele pre-ciso momento. E tudo isso lhe acicatava a inteligência e a crueldade.
– Deves casar com um homem que te adore – disse ele. – Assim, podes fazer dele o que quiseres. Hás-de encontrar muitos homens que te adorem, se lhes souberes tocar na corda sensível. É com um desses que te deves casar. Esses não se vão querer livrar de ti.
– Obrigada – disse ela. – Mas, por favor, não voltes a dizer-me para casar com outra pessoa. Já uma vez o fizeste.
– Muito bem – disse ele. – Não digo mais nada.
Deixou-se ficar sentado, calado, como se tivesse recebido o golpe em vez de ser ele a desferi-lo. Eram oito anos de amor e amizade, oito anos que eram toda a sua vida, reduzidos a nada.
– Quando é que pensaste nisto? – perguntou ela.
– Tomei a decisão na quinta-feira à noite.
– Eu sabia que estava para acontecer.
Paul sentiu um prazer amargo ao sabê-lo. «Pois muito bem... se ela sabia... então já não é surpresa», pensou.
– Disseste alguma coisa à Clara? – perguntou Miriam.
– Não... mas vou dizer-lhe agora.
Fez-se silêncio.
– Lembras-te das coisas que me disseste há um ano, por esta altura... em casa da minha avó... há um ano não... até mesmo o mês passado?
– Lembro-me – respondeu ele. – Lembro-me perfeitamente! E fui sincero. Não tenho culpa de as coisas terem acabado.
– Acabaram porque tu queres outra coisa.
– Teriam acabado de uma maneira ou de outra. Tu nunca acreditaste em mim.
Miriam soltou uma gargalhada estranha.
Ele continuava sentado, em silêncio. Dominava-o o sentimento de ter sido enganado por ela. Ela desprezara-o quando ele julgava que ela o amava. Ela deixara-o dizer disparates, e não o contradissera. Deixara-o lutar sozinho. Pensar que ela o desprezara enquanto ele pensava que ela o amava era como uma espinha atravessada na garganta. Ela devia ter-lhe dito. Não tinha sido honesta, e ele odiava-a. Durante todos estes anos, a tratá-lo como um herói e a considerá-lo uma criança, um menino tonto. Porque deixara então o menino tonto entregue às suas tontices? O seu coração endureceu, revoltou-se contra ela.
Ela estava sentada, amargurada. Sempre soubera... oh se soubera. Durante todo o tempo que ele não passava com ela, tivera oportunidade de estudá-lo, de ficar a conhecer a sua mesquinhez, a sua maldade e a sua loucura. Pusera até a alma a bom recato. Não estava destroçada, prostrada, nem sequer magoada. Sempre o soubera. Porquê, então, o estranho domínio que ele, ali sentado, ainda exercia sobre ela? Até os seus movimentos a fascinavam, como se estivesse hipnotizada por ele. No entanto, ele era desprezível, falso, irresponsável e mesquinho. Porquê esta servidão? Qual a razão para um simples movimento do seu braço a excitar como nada mais no mundo poderia? Porque estava ela presa assim a ele? Porque seria que ainda agora, se ele olhasse para ela e lhe desse uma ordem, ela teria de obedecer? Satisfazer-lhe-ia os seus mínimos desejos. Mas, uma vez satisfeitos os desejos, sabia que o tinha em seu poder para o levar para onde quisesse. Estava segura de si. Ah, se não fosse esta nova influência! Ele não era um homem, era um bebé, a chorar pela última novidade, e nem toda a tenacidade da sua alma o conseguiria prender. Pois muito bem, que partisse. Mas voltaria para ela quando se cansasse da nova sensação.
Paul esgravatou na terra até deixar Miriam apavorada. Ela levantou-se. Ele atirava torrões de terra para a água.
– Vamos embora e tomamos chá por aqui? – perguntou ele.
– Pode ser – respondeu ela.
Falaram de trivialidades durante o chá. Ele, inspirado talvez pelo salão da casa de chá, discorreu sobre o gosto pela ornamentação e a sua ligação com a estética. Ela manteve-se fria e reservada. Quando regressavam a casa, ela perguntou:
– E não vamos ver-nos mais?
– Não... só muito raramente – respondeu ele.
– Nem escrever? – perguntou ela, em tom quase sarcástico.
– Se quiseres... – respondeu Paul. – Não somos dois estranhos... nunca o seremos, aconteça o que acontecer. Posso escrever-te de vez em quando. Tu faz como quiseres.
– Estou a perceber – disse ela, cortante.
Mas ele tinha chegado ao ponto em que já nada o magoava. Tinha infligido uma grande ruptura na sua vida. Tinha sofrido um grande choque quando ela lhe dissera que o amor deles nada mais fora que conflito. Já nada mais lhe importava. Se alguma vez esse amor tinha sido grandioso, agora que chegara ao fim, não era preciso fazer cenas.
Paul deixou Miriam ao fundo da alameda, e ficou parado, envergonhado e desgostoso, vendo-a afastar-se sozinha rumo a casa, com o seu vestido novo, para ir contar à família, e reflectia sobre o sofrimento que lhe causava.
Numa reacção de recuperação da auto-estima, foi ao Willow Tree tomar uma bebida. Lá, encontrou quatro raparigas que tinham andado a passear e estavam a beber um modesto cálice de porto. Havia bombons espalhados sobre a mesa. Paul sentou-se perto delas com o seu uísque, e percebeu que as raparigas cochichavam e trocavam cotoveladas. A certa altura, uma delas, uma morena magra e atrevida, chegou-se para ele e perguntou:
– Quer um bombom?
As outras desataram a rir com a ousadia.
– Está bem – disse Paul. – Dê-me um dos duros... de noz. Não gosto dos que têm creme.
– Ora aqui tem – disse a rapariga. – Um de amêndoa.
Ela pegou no bombom com o polegar e o indicador, ele abriu a boca, e ela meteu-lho lá dentro, ruborizada.
– Você é uma simpatia, sabia? – disse ele.
– Bem – respondeu ela – achámos que você tinha um ar desamparado, e elas desafiaram-me a oferecer-lhe um bombom.
– Não me importo nada de comer outro... de outro género – disse ele.
E desataram todos a rir.
Eram nove horas, já noite fechada, quando Paul chegou a casa. Entrou sem fazer barulho. A mãe, que estava à espera dele, levantou-se cheia de ansiedade.
– Pronto, já lhe disse – disse Paul.
– Ainda bem! – retorquiu a mãe, parecendo muito aliviada.
Paul pendurou o boné com desalento.
– Disse-lhe que o melhor era acabarmos tudo.
– Fizeste bem, meu filho – disse a mãe. – Agora vai custar-lhe muito, mas com o tempo vai ser melhor para ela. Eu sei que vai. Tu não servias para ela.
Paul sentou-se e disse, sem conseguir conter o riso:
– Fartei-me de rir com umas raparigas, num bar.
A mãe olhou para ele. Já tinha esquecido Miriam. Paul contou à mãe a conversa com as raparigas no Willow Tree. Mrs. Morel continuava a olhar para ele. Aquela alegria parecia-lhe artificial. Por detrás dela escondia-se muito horror, muito sofrimento.
– Vem comer qualquer coisa – disse Mrs. Morel, com muita suavidade.
Mais tarde, ele disse, melancólico:
– Ela nunca pensou que eu ia ser dela, mãe, nem por um instante... Por isso, não está desapontada.
– Receio que ela não tenha ainda perdido as esperanças – disse a mãe.
– Não – disse ele. – Se calhar, não.
– Vais ver que foi melhor acabares tudo.
– Não sei – disse ele, desesperado.
– Bom, agora deixa-a em paz – respondeu a mãe.
Paul assim fez, e Miriam ficou sozinha. Muito poucas pessoas gostavam dela, e ela gostava de muito poucas pessoas. Continuava entregue à sua solidão, sempre à espera.
XII
A PAIXÃO
POUCO A POUCO, ia-se tornando possível a Paul ganhar a vida apenas com a sua arte. Os armazéns Liberty tinham comprado vários dos seus padrões estampados para tecidos, e vendia ainda para mais uma ou duas lojas desenhos para bordados, toalhas de altar e coisas semelhantes. Por enquanto não ganhava muito, mas tinha possibilidades de expandir o negócio. Tinha também conhecido o desenhador de uma firma de porcelanas e estava a começar a aprender a arte do seu novo amigo. Interessava-se muito pelas artes aplicadas e, ao mesmo tempo, continuava a trabalhar nos seus quadros. Adorava pintar grandes figuras, cheias de luminosidade, mas não apenas compostas de luz e sombras difusas, como nos impressionistas. Preferia figuras bem definidas, mas que emanavam uma certa luminosidade, como em Miguel Ângelo. E, depois, inseria estas figuras numa paisagem, na proporção que considerava a ideal. Trabalhava muito de memória, servindo-se de todas as pessoas que conhecia. Acreditava firmemente no seu trabalho, na sua qualidade e no seu real valor. Apesar das crises de depressão, timidez, o que se quiser, acreditava acima de tudo no seu trabalho.
Tinha vinte e quatro anos quando, pela primeira vez, confidenciou:
– Mãe, hei-de vir a ser um pintor de quem toda a gente fala.
Ela fungou, naquele seu jeito peculiar de quem encolhe os ombros razoavelmente satisfeito.
– Muito bem, meu filho. Veremos... – disse ela.
– Vai ver sim, minha pombinha. Vai ver, qualquer dia anda aí toda inchada com o seu filho.
– Para mim está muito bem assim, meu filho – disse ela, com um sorriso.
– Mas vai ter de mudar. Olhe só para si e para a Minnie.
Minnie era a criadita, uma rapariga de catorze anos.
– O que tem a Minnie? – perguntou Mrs. Morel cheia de dignidade.
– Esta manhã, quando a mãe se meteu à chuva para ir lá fora buscar mais carvão, eu bem a ouvi dizer-lhe: «Oh, Mrs. Morel, quem tem de fazer isso sou eu.» É o jeito que a mãe tem para lidar com as criadas...
– Bem... isso era só a rapariga a ser amável – respondeu Mrs. Morel.
– E a mãe logo a desculpá-la: «Ninguém pode fazer duas coisas ao mesmo tempo, pois não?»
– Pois se ela estava mesmo ocupada a lavar a loiça... – replicou Mrs. Morel.
– E que respondeu ela? «Isto podia bem esperar um bocadinho. Olhe para os seus pés, todos molhados!»
– Pois foi... Olha que sabida! – disse Mrs. Morel, a sorrir.
– E fala a mãe em importâncias.
Mrs. Morel fungou ligeiramente.
– As suas criadas iam ser tão boas para si que a mãe nem se atrevia a mexer um dedo com medo de elas irem logo atrás de si.
– A propósito – exclamou a mãe, subitamente. – Ontem também vos ouvi quando estavas no corredor: «Eh, não vá para aí agora», disse a Minnie. «Porquê?», disseste tu. «Acabei mesmo agora de lavar o chão.» E tu respondeste: «Está bem, mas eu não posso saltar daqui para o colchão.» Por isso, diga-me lá vossa excelência que autoridade tem para estar a falar de mim?
– Ah, mas eu sou capaz de me impor e comandar pessoas.
A mãe desatou a rir.
– Eu sou testemunha... – disse ela, trocista.
– Sou capaz, sim, havia de ver – insistiu ele.
– E bem gostava... – disse ela a rir.
– Pois fique sabendo que as minhas raparigas tremem só de ouvir os meus passos. Mas nem o capataz de um milhão de raparigas lhe conseguia levar a melhor.
A mãe limitou-se a rir.
– Então não acha uma maravilha estar sentada na casa de jantar e só ter de tocar a campainha quando quiser alguma coisa...
– Então não acho! – exclamou ela, algo céptica.
– Pois vai achar, verá. Há-de ter uma carpete turca, das autênticas e tudo.
– Muito bem... muito bem, meu filho. Mas, até lá, vou esperando. Além disso, hás-de querê-la para a tua casa.
– Que casa... a minha casa é esta!
– Mas não vai ser sempre.
– Vai ser, sim, digo-lho eu.
– Espera por essa!
– Espero, sim senhora. Vou esperar até a Vénus de Milo vir ao meu encontro.
– E para que querias tu uma mulher como a Vénus de Milo? – E a mãe riu-se.
– Tem razão, ela era capaz de querer alguém mais importante – disse Paul. – Dava um bom par para Mr. Gladstone.
– Imagina só Mr. Gladstone! – e Mrs. Morel deu uma gargalhada. – É tão simpático!
– Era isso... ela tinha de o adorar... ele tinha de ter uma mulher que o adorasse... e a Senhora Dona Vénus de Milo não ia estar pelos ajustes. Eu até era capaz de gostar dela. Mas é muito velha. Enfim, quando ela aparecer, logo veremos.
Paul olhou para a mãe, a rir. O amor que ela sentia pelo filho aquecia-lhe a alma e acendia-lhe as faces. Era como se todo o sol irradiasse dela. E continuou alegremente o seu trabalho. Parecia tão bem quando estava feliz que o filho até esqueceu os seus cabelos brancos.
Nesse ano, a mãe foi com ele passar férias à ilha de Wight. Era uma experiência excitante para ambos, e muito bonita. Mrs. Morel andava transbordante de alegria, deslumbrada. Mas o filho obrigou-a a passear com ele mais do que as forças dela permitiam, e Mrs. Morel teve um desmaio bastante grave, ficando com as faces cor de cinza e os lábios roxos. Para Paul era uma agonia, era como se alguém lhe estivesse a enterrar um punhal no coração. Mas ela melhorou, e ele não pensou mais no assunto. Ficou-lhe no entanto a ansiedade, como uma ferida que não sara.
Depois de deixar Miriam, voltou-se quase de seguida para Clara. Na segunda-feira a seguir ao dia do rompimento, Paul foi à sala dela. Ela levantou os olhos e sorriu. Sem se darem conta, tinham-se tornado muito íntimos, e ela sentiu que uma nova luz irradiava dele.
– Então, Rainha do Sabá! – disse ele, rindo.
– Porque me chamas isso? – perguntou ela.
– Acho que te assenta bem. Trazes um vestido novo.
Ela corou, e perguntou:
– E depois?
– Fica-te bem... um espanto! Eu estava capaz de te desenhar um vestido.
– E como seria?
De pé diante dela, os seus olhos cintilavam enquanto ia explicando. Os olhos dele fixavam-se nos dela. De repente, ele agarrou-a. Ela, surpresa, recuou. Ele puxou-lhe a blusa para baixo, ajustando-a e alisando o tecido sobre os seios.
– É mais assim! – explicou.
Mas estavam ambos afogueados de vergonha, e ele desapareceu em seguida. Tinha-lhe tocado e todo o seu corpo estremecera com a sensação.
Entre eles existia já uma espécie de entendimento secreto. Na noite seguinte, Paul passou com Clara pelo animatógrafo, onde ficaram alguns minutos, a fazer horas para o comboio. Quando lá estavam sentados, ele viu a mão dela perto da sua. Primeiro não se atreveu a tocar-lhe. As imagens dançavam e tremelicavam. Depois, agarrou-lhe na mão. Era grande e firme, e enchia a dele. Manteve-a apertada. Ela não se mexeu, nem deu qualquer sinal. Quando saíram, estava na hora do comboio dele. Paul hesitou.
– Boa noite – disse Clara. Ele disparou pela rua fora.
No dia seguinte, veio de novo conversar com ela, e ela mostrou-se muito arrogante.
– Vamos dar um passeio na segunda-feira? – perguntou ele.
Ela virou-lhe a cara.
– Vais contar à Miriam? – retorquiu ela, sarcástica.
– Acabei tudo com ela – disse ele.
– Quando?
– No domingo passado.
– Zangaram-se?
– Não! Fui eu que quis assim. Disse-lhe sem rodeios que a partir daí me considerava um homem livre.
Clara não respondeu, e ele voltou para o trabalho. Ela era tão calma, e tão extraordinária!
No sábado à noite, ele convidou-a para ir tomar café com ele a um restaurante, depois do trabalho. Ela aceitou, mas mostrou-se muito reservada e distante. Ele dispunha de três quartos de hora até à hora do comboio.
– Podíamos ir dar uma volta – disse ele.
Ela concordou, e foram até ao parque, passando pelo castelo. Paul sentia medo dela. Ela caminhava amuada ao lado dele, e o seu andar era zangado, deixando transparecer uma espécie de relutância ofendida. Ele tinha medo de lhe dar a mão.
– Para que lado queres ir? – perguntou Paul, enquanto caminhavam noite dentro.
– Tanto faz.
– Então vamos subir os degraus.
De repente, deu meia volta. Já tinham passado pelos degraus do parque. Ela ficou estática, ofendida por ele a ter abandonado sem aviso. Ele voltou atrás à procura dela, e ela lá estava, altiva como sempre. De súbito, ele tomou-a nos braços, apertou-a e beijou-a. Depois soltou-a.
– Vamos – disse ela, penitente.
Ela foi com ele. Ele pegou-lhe na mão e beijou-lhe as pontas dos dedos. Caminhavam em silêncio. Quando chegaram à luz, ele largou-lhe a mão. Nenhum disse nada até chegarem à estação. Aí os seus olhos encontraram-se.
– Boa noite – disse ela.
Ele foi para o comboio. O corpo dele agia mecanicamente. As pessoas falavam com ele, e ele ouvia ecos distantes a responder. Estava delirante. Parecia-lhe que iria enlouquecer, se a segunda-feira não chegasse depressa. Na segunda-feira ia vê-la de novo. Todo o seu ser se concentrava nesse dia. Mas o domingo metia-se de permeio, e ele não sabia se iria aguentar estar sem a ver até segunda-feira. E o domingo metia-se de permeio... horas e horas de tensão. Apetecia-lhe bater com a cabeça na portinhola do comboio. Mas ficou quieto, sentado. Bebeu um uísque a caminho de casa, mas sentiu-se ainda pior. Só não podia preocupar a mãe, era tudo. Disfarçou e foi logo para a cama. Sentou-se na cama, todo vestido, com o queixo apoiado nos joelhos, a olhar lá para fora, para a colina distante, pontilhada de luzes. Nem pensava, nem dormia. Estava imóvel, de olhar suspenso. E quando, por fim, o frio o fez voltar a si, descobriu que o relógio tinha parado às duas e meia. Já passava das três. Estava exausto, mas assaltava-o o tormento de saber que era só domingo de manhã. Meteu-se na cama e adormeceu. Depois, passou o dia a andar de bicicleta, até já não poder mais, e depois mal se lembrava por onde tinha andado. Mas o dia seguinte era segunda-feira. Dormiu até às quatro horas e, quando acordou, deixou-se ficar deitado na cama, a pensar. Estava a aproximar-se de si mesmo... podia ver-se bem real algures mais à frente. Ela havia de querer dar um passeio com ele à tarde. À tarde! Pareciam-lhe anos de distância.
Lentamente, as horas foram passando. O pai levantou-se. Paul ouviu-o a traquinar na cozinha, saindo depois para a mina, a arrastar as botas pelo pátio. Os galos ainda cantavam. Na estrada passou uma carroça. A mãe levantou-se. Espevitou o lume. Finalmente chamou-o com doçura. Ele respondeu, como se ainda estivesse a dormir. A sua carapaça estava a portar-se bem.
Dirigiu-se para a estação... só mais uma milha! O comboio aproximava-se de Nottingham... será que ia parar antes dos túneis?... Não tinha importância, havia de chegar antes da hora de almoço. Chegou à Jordan. Ela chegava dentro de meia hora. De qualquer maneira, já vinha a caminho. Ele já tinha acabado as cartas. Ela tinha de estar lá. Talvez não tivesse vindo. Correu pela escada abaixo. Ah, viu-a através da vidraça da porta. Os seus ombros ligeiramente curvados sobre o trabalho fizeram-no sentir que não podia dar nem mais um passo; que não se aguentava de pé. Entrou. Estava pálido, nervoso, desajeitado, gelado. E se ela não o entendesse? Com aquele aspecto, não podia mostrar-lhe quem realmente era.
– E hoje à tarde – disse, titubeante –, queres vir comigo?
– Acho que sim – respondeu ela, num murmúrio.
Ele ficou ali, diante dela, incapaz de dizer uma palavra. Ela escondeu a cara. E de novo ele teve a sensação de estar prestes a perder a consciência. Cerrou os dentes e voltou para o andar de cima. Tinha-se portado correctamente até agora e assim iria continuar. Durante toda a manhã, as coisas pareciam-lhe distantes, como acontece sob o efeito do clorofórmio. Ele próprio parecia esmagado por uma faixa de constrangimento. Mas, depois, via o seu outro eu à distância, a fazer coisas, a apontar coisas num livro de registos, e vigiava atentamente esse seu eu distante, para não o deixar cometer erros.
Mas a dor e a tensão não davam para aguentar por muito mais tempo. Trabalhava sem parar. Mesmo assim, ainda era só meio-dia. Não parava de trabalhar, esforçando-se para dar tudo por tudo, como se estivesse literalmente pregado à secretária. Faltava um quarto para a uma... Podia arrumar as coisas. Depois, correu desenfreado pela escada abaixo.
– Vai ter comigo à fonte, às duas horas – disse ele.
– Só lá posso estar às duas e meia.
– Está bem – concordou Paul.
Ela reparou nos seus olhos negros, tresloucados.
– Vou tentar chegar às duas e um quarto.
E ele teve de se contentar. Foi comer qualquer coisa. Continuava sob os efeitos do clorofórmio, e cada minuto lhe parecia uma eternidade. Andou milhas ao acaso. Depois achou que se ia atrasar. Chegou à fonte às duas e cinco. A tortura lenta do quarto de hora que se seguiu foi indescritível. Era a angústia de fundir o eu vivente com a carapaça. Nisto, avistou-a. Ela viera! E ele estava lá.
– Atrasaste-te – disse Paul.
– Só cinco minutos – respondeu Clara.
– Eu nunca te teria feito esperar – disse ele. E riu-se.
Ela envergava um saia-casaco azul-escuro, e ele admirou-lhe o corpo elegante.
– Queres umas flores? – disse, dirigindo-se à florista mais próxima.
Ela seguiu-o em silêncio. Ele comprou-lhe um raminho de cravos cor de tijolo, quase escarlates. Ela meteu-os na lapela, ruborizando.
– Têm uma cor lindíssima! – disse Paul.
– Preferia uma cor mais suave – disse ela.
Ele riu-se.
– Porquê? Sentes-te como uma mancha de vermelhidão pela rua fora? – disse ele.
Ela caminhava de cabeça baixa, receosa das pessoas que encontravam. Ele olhava para ela pelo canto do olho. Uma penugem aflorava-lhe a face, perto da orelha, e ele queria tocá-la. Aquela opulência que ela tinha, a opulência de uma espiga cheia inclinando-se ao vento, punha-lhe a cabeça a andar à roda. Sentia-se rodopiar pela rua fora, e tudo girava com ele.
Quando se sentaram no eléctrico, ela encostou ao dele o ombro pesado, e ele pegou-lhe na mão, sentindo como se acordasse de uma anestesia e começasse a respirar. A orelha dela, meio oculta por baixo do cabelo louro, estava muito próxima. A tentação de a beijar era quase incontrolável. Mas havia mais gente à volta deles. No entanto nada o impedia de a beijar. Afinal, ele não era ele, era apenas mais um atributo dela, como o sol que a banhava.
Paul desviou rapidamente o olhar. Tinha estado a chover. O monte escarpado do castelo, por detrás da planura da cidade, estava sulcado de chuva. Atravessaram o vasto emaranhado de negros carris do entroncamento do Midlands, e passaram o cercado do gado, que se erguia muito branco. Em seguida, desceram a sórdida Wilford Road.
Ela balançava ligeiramente com os movimentos do eléctrico, encostada a ele, empurrando-o. Ele era um homem vigoroso, esguio, de inesgotável energia. O seu rosto era rude, de feições rudes como os rostos do povo, mas os seus olhos, por baixo das espessas sobrancelhas, eram tão cheios de vida que a fascinavam. Pareciam dançar parados, e estremeciam aos balanços inefáveis do riso. A boca dele parecia pronta a estalar numa gargalhada de triunfo, mas não o fez. Havia nele uma tensão latente. Ela mordeu o lábio, amuada. A mão dele apertava fortemente a sua.
Pagaram os dois meios dinheiros à saída e atravessaram a ponte. O rio Trent levava muita água. Corria vertiginoso, silencioso, sob a ponte, num só corpo, coeso e fluído. Tinha chovido muito. Nas margens brilhavam charcos de água da cheia. O céu estava cinzento, raiado de prata aqui e além. No cemitério de Wilford, as dálias, ensopadas, eram bolas negras e carmim, todas molhadas. Não se via ninguém no caminho que seguia ao longo da margem verdejante, rente aos ulmeiros.
Uma neblina muito ténue pairava sobre as águas negras e cintilantes, as margens e os ulmeiros aspergidos de ouro. O rio, criatura subtil e complexa, deslizava num só corpo, infinitamente silencioso e veloz, revolvendo-se em si mesmo. Clara caminhava sisuda ao lado de Paul.
– Por que razão deixaste a Miriam? – perguntou ela passado um bocado, esganiçando a voz.
Ele franziu a testa.
– Porque me apeteceu.
– Mas porquê?
– Porque não me apetecia continuar a andar com ela. E não queria casar com ela.
Clara ficou calada por uns instantes. Meteram pelo atalho lamacento. Gotas de água pingavam dos ulmeiros.
– Não querias casar com a Miriam, ou pura e simplesmente não querias casar? – perguntou ela.
– As duas coisas – respondeu ele. – As duas coisas! Tiveram de fazer alguma ginástica para chegarem à cerca, devido às poças de água.
– E que disse ela? – perguntou Clara.
– A Miriam? Disse que eu parecia um miúdo de quatro anos e que sempre tinha procurado mantê-la afastada.
Clara ficou pensativa durante algum tempo.
– Mas ainda namoraste com ela bastante tempo? – perguntou.
– Sim.
– E agora não queres mais nada com ela?
– Não. Sei que não adianta. Clara ficou de novo pensativa.
– Não achas que te portaste muito mal com ela? – perguntou Clara.
– Acho! Devia ter acabado tudo há muitos anos. Mas agora também não adiantava continuar. Seria pior a emenda que o soneto.
– Quantos anos tens? – perguntou Clara.
– Vinte e cinco.
– Eu tenho trinta – disse ela.
– Eu sei.
– Estou quase a fazer trinta e um... ou será que já os fiz...?
– Não sei nem quero saber. Que interessa isso?
Chegaram à entrada da mata. O caminho vermelho e molhado, pegajoso devido às folhas caídas, subia pela margem íngreme, entre a relva. Ladeavam-no os ulmeiros, como pilares ao longo de uma nave, fechando em arco e formando um tecto de onde tombavam as folhas mortas. Tudo estava deserto, molhado e em silêncio. Ela trepou para cima da cerca, e ele segurou-lhe as duas mãos.
Ela saltou, o seu peito comprimiu-se contra o dele, e ele abraçou-a e cobriu-lhe a cara de beijos.
Continuaram a subir o trilho vermelho e íngreme, escorregadio. A certa altura, ele retirou a mão e colocou-lha em volta da cintura.
– Assim, a apertares tanto, comprimes-me a veia do braço – disse ela.
Continuaram a andar. As pontas dos dedos dele afloravam o balançar dos seios dela. Tudo estava deserto e em silêncio. Para a esquerda, pedaços de terra vermelha lavrada surgiam entre as arcadas formadas pelos troncos dos ulmeiros e a folhagem. Para a direita, mais abaixo, avistavam-se as copas dos ulmeiros perdidas na distância, e ouvia-se de quando em vez o gorgolejar das águas. Esporadicamente, captavam uma visão fugaz do caudal suave do Trent e das várzeas salpicadas de reses diminutas.
– Não mudou quase nada desde os tempos em que o pequeno Kirke White costumava vir para aqui – disse Paul.
Mas o seu olhar estava preso ao pescoço dela, na base da orelha, onde o corado das faces se fundia com o mel claro da tez e com a boca, que se fechava num beicinho de desconsolo. O corpo dela roçava nele ao caminhar, e o corpo dele era uma corda retesada.
A meio da subida, sob a longa arcada de ulmeiros, no ponto mais alto da mata sobranceiro ao rio, a caminhada foi interrompida. Atravessando o relvado, Paul levou Clara para o outro lado, para debaixo das árvores que ladeavam a margem. O maciço de terra vermelha descia abruptamente por entre árvores e arbustos até ao rio que brilhava ou se acoitava negro entre a folhagem. As várzeas, lá muito em baixo, verdejavam. Ficaram os dois encostados um ao outro, calados, receosos, com os corpos tocando-se de alto a baixo. Um súbito rumor das águas elevou-se até eles, vindo do rio.
– Porquê? – perguntou ele daí a algum tempo. – Porque odiavas o Baxter Dawes?
Ela voltou-se para ele com um movimento majestoso, esplêndido. A boca oferecia-se-lhe e a garganta, os olhos estavam semi-cerrados e o peito estremecia como a perguntar por ele. Paul soltou uma gargalhada fresca, fechou os olhos e uniu-se a ela num beijo longo e inteiro. A boca dela fundiu-se na sua, e os seus corpos colaram-se, retesados. Só passados alguns minutos se separaram. Estavam mesmo ao lado do trilho.
– Queres descer até ao rio? – perguntou ele.
Ela olhou para ele, entregando-se nas suas mãos. Ele passou para o outro lado e começou a descer.
– É escorregadio.
– Não faz mal – respondeu ela.
A encosta argilosa descia quase a pique. Ele deixou-se escorregar, passando de um tufo de erva para outro, segurando-se aos arbustos, procurando pequenas plataformas de apoio na base das árvores. Depois esperou por ela, excitado, a rir. Tinha os sapatos cobertos de terra vermelha. Para ela era difícil descer. Ele fez cara feia. Por fim, lá conseguiu agarrar a mão dela e puxá-la para ao pé de si. O monte erguia-se acima das suas cabeças e descia a perder de vista. Ela estava afogueada, e com os olhos cintilantes. Paul olhou para o precipício que se abria diante dele.
– É arriscado – disse ele. – No mínimo, vamos ficar todos sujos. Não será melhor voltarmos para trás?
– Por mim, não – disse ela prontamente.
– Então está bem. Mas olha que eu não te posso ajudar. Só ia atrapalhar. Dá cá esse embrulhinho e as tuas luvas. Coitados dos teus sapatos!
Ficaram parados à beira do declive, sob as árvores.
– Bem, cá vou eu outra vez – disse ele.
E lá foi a escorregar, aos trambolhões, deslizando até à árvore mais próxima, indo de encontro ao tronco com tanta força que quase perdeu a respiração. Ela seguiu-o, cheia de cautelas, agarrando-se aos ramos e às ervas. E lá foram descendo, árvore a árvore, até à margem do rio. Aí, para desespero de Paul, a cheia tinha galgado o carreiro, e a encosta vermelha mergulhava directamente na água. Fincando os calcanhares, conseguiu travar e evitar um banho. Mas o cordel rebentou e o embrulhinho castanho lá foi aos trambolhões até à água, sendo levado suavemente pela corrente. Paul continuava agarrado à sua árvore.
– Bolas! – exclamou ele, danado. Depois desatou a rir. Clara já tinha encetado a perigosa descida.
– Cuidado! – gritou ele, esperando por ela, de costas fincadas na árvore.
– Agora – gritou-lhe ele, abrindo os braços. Ela deixou-se ir. Ele apanhou-a e ficaram os dois agarrados um ao outro a olhar para a bacia de água negra aberta na margem abrupta. O embrulho tinha sido arrastado pela corrente.
– Não faz mal – disse ela.
Paul apertou-a contra si e beijou-a. Apenas tinham espaço para os quatro pés.
– Estamos bem arranjados! – disse ele. – Mas há ali pegadas; se continuarmos, acho que havemos de encontrar o caminho outra vez.
O rio corria caudaloso. Na margem oposta pastavam algumas reses nos devastados socalcos. Do lado direito de Paul e Clara, a escarpa erguia-se a grande altura. Eles continuavam agarrados à árvore sobre a vastidão silenciosa das águas.
– Vamos tentar seguir em frente – disse ele. E lá foram os dois, enterrando-se na lama vermelha, pelo trilho deixado pelas botas cardadas de um homem. Estavam cheios de calor e afogueados, e mal podiam levantar os pés, tanta era a lama nos sapatos. Por fim, encontraram o caminho interrompido. Estava pejado de detritos, mas sempre era mais firme. Rasparam a lama das botas com pauzinhos. Paul sentia o coração bater célere e forte. Lembrava-se de que a seguir à curva havia uma pequena enseada de margens planas. Ele ia à frente e ela atrás dele, em silêncio. Os sapatos e a barra da saia de Clara estavam cobertos de terra vermelha. A certa altura, tiveram de trepar por cima de uma árvore derrubada. Ela deixou-se ficar para trás porque lhe tinha entrado terra para o sapato. Estavam quase a chegar à enseada. O coração de Paul batia forte e cada vez mais depressa.
Subitamente, ao atingirem a enseada, Paul viu dois vultos masculinos de pé, e em silêncio, na beira-rio, e o seu coração deu um salto. Os homens estavam a pescar. Ele voltou-se para trás e levantou a mão para Clara, num gesto de aviso. Ela hesitou e abotoou o casaco. Depois avançaram lado a lado.
Os pescadores voltaram-se, curiosos, observando os dois intrusos que tinham vindo perturbar a sua paz e a sua solidão. Tinham feito uma fogueira, mas estava quase apagada. Permaneceram perfeitamente imóveis. Os homens, de novo absortos na pesca, continuavam de pé sobre a corrente prateada, como estátuas. Clara avançou cabisbaixa, ruborizada; Paul ria-se interiormente. Num ápice ficaram fora do raio de visão dos pescadores, para lá dos salgueiros.
– Era bem feito que se afogassem – disse Paul, em voz baixa.
Clara não respondeu, e lá continuaram, progredindo com esforço pelo carreiro exíguo da borda de água. Nisto, o carreiro desapareceu e, à sua frente, depararam-se com um muro de argila vermelha que descia a pique até ao rio. Paul estacou e soltou uma praga entre dentes.
– É impossível passar – disse Clara.
Ele ficou imóvel, a olhar em volta. Um pouco mais adiante, havia duas ilhotas no meio do rio, cobertas de vimeiros, mas impossíveis de alcançar. A escarpa descia como uma parede, lá do alto, muito acima das suas cabeças. Para trás, a curta distância, estavam os pescadores. Do outro lado do rio, o gado pastava ao longe, em silêncio, na desolação da tarde. Paul voltou a praguejar em surdina, mas com veemência, percorrendo com os olhos a parede abrupta. Será que nada mais lhes restaria do que terem de escalar por ali acima até ao caminho público?
– Espera aí – disse ele. E, colocando os pés de lado e fincando os calcanhares na vertente íngreme de argila vermelha, começou a escalar com agilidade, examinando os troncos das árvores com atenção. Por fim, encontrou o que procurava. As raízes de duas faias plantadas lado a lado na vertente, mais acima, formavam uma espécie de plataforma. Estava coberta de folhas húmidas, mas teria de servir. Os pescadores já estavam suficientemente longe. Paul atirou o impermeável para o chão, e fez sinal a Clara para subir.
Ela, embora a custo, não tardou a juntar-se a ele. Quando chegou, olhou para ele muito séria, emudecida, e encostou a cabeça ao ombro dele. Paul apertou-a contra si e olhou em volta. Estavam a salvo de todos os olhares, excepto dos das vacas que pastavam solitárias na margem oposta. Paul mergulhou a boca no pescoço dela, sentindo o pulsar intenso nos seus lábios. Tudo ficou estático. Na tarde, só eles existiam.
Quando ela se levantou, ele, sempre de olhar pousado no chão, viu subitamente as raízes negras e molhadas das faias salpicadas de uma miríade de pétalas de cravo, escarlates como gotas de sangue. E do peito dela jorravam mais pétalas, vermelhas, às golfadas, escorregando-lhe pelo vestido até aos pés.
– As tuas flores ficaram desfeitas – disse ele.
Ela olhou para ele muito séria, enquanto puxava o cabelo para trás. De repente, ele tocou-lhe a face com as pontas dos dedos.
– Porque estás tão séria? – perguntou, em tom de censura.
Clara dirigiu-lhe um sorriso triste, como se no fundo de si mesma se sentisse solitária. Paul acariciou-lhe o rosto com os dedos e beijou-a.
– Não – disse ele. – Não te preocupes.
Ela apertou-lhe os dedos com força, e riu-se nervosamente. Depois deixou cair a mão. Ele puxou-lhe os cabelos para trás, afagando-lhe as têmporas e beijando-as ao de leve.
– Não tens com o que te preocupar – disse ele, docemente, como se lhe pedisse desculpa.
– Não estou preocupada – respondeu ela, rindo ternamente, resignada.
– Isso é que estás! Mas não te preocupes – implorou-lhe ele, muito terno.
– Não – sossegou-o ela, beijando-o em seguida.
Esperava-os nova escalada a pique até ao topo. Levaram um quarto de hora a subir. Quando pôs pé em relva firme, Paul tirou o boné, limpou o suor da testa e suspirou.
– Estamos de volta à normalidade – disse.
Clara sentou-se na relva, ofegante. Tinha as faces vivamente coradas. Ele beijou-a e ela deixou que a felicidade a invadisse.
– Agora vou limpar-te as botas e pôr-te apresentável para as pessoas de bem.
E, dizendo isto, ele ajoelhou-se ao seu lado, e meteu mãos à obra com um pauzinho e alguns punhados de erva. Ela, enfiando-lhe os dedos pelos cabelos, puxou-lhe a cabeça para si e beijou-a.
– Afinal, o que é que eu estou aqui a fazer? – disse ele, olhando para ela a rir. – A limpar-te os sapatos ou a namorar? Vá, responde lá!
– Conforme o que me apetecer – respondeu ela.
– Pois por agora sou o teu engraxador e mais nada.
Mas ficaram os dois a olhar um para o outro, a rirem-se, recomeçando a beijar-se como quem mordisca.
– T-t-t-t! – fez ele com a língua, exactamente como a mãe. – Ouve bem o que eu te digo. Não se consegue fazer nada com uma mulher por perto.
E retomou a limpeza das botas, cantarolando baixinho. Ela acariciava-lhe o cabelo forte e ele beijava-lhe os dedos, continuando a limpar-lhe as botas. Finalmente, ficaram bastante apresentáveis.
– Pronto, já está. Estás a ver! – disse ele. – Não achas que fui perfeito a devolver-te à respeitabilidade? Levanta-te! Pronto, estás tão irrepreensível como a própria Britannia!
Depois, limpou também as suas próprias botas, embora sem grandes esmeros, lavou as mãos numa poça de água, pôs-se a cantar, e seguiram os dois em direcção à vila de Clifton. Paul sentia-se loucamente apaixonado por Clara: cada movimento seu, cada requebro da sua saia, penetrava-o como seta em brasa e parecia-lhe adorável.
Até a velhinha da casa de chá ficou contagiada pela alegria deles.
– Que pena não terem tido um dia melhor – disse ela, rondando à volta deles.
– De maneira nenhuma – disse Paul. – Estávamos até a comentar como tem sido bom.
A velhinha olhou para ele intrigada. Envolvia-o uma aura de encantamento. Os seus olhos eram escuros e risonhos, e cofiava o bigode com manifesta alegria.
– É mesmo isso que têm estado a dizer? – exclamou, com um brilho renovado nos seus olhos gastos.
– A sério – disse ele, a rir.
– Então, tenho a certeza de que o dia está realmente bom – respondeu ela.
Andava de um lado para o outro, e parecia não querer arredar pé.
– Não sei se também querem rabanetes – disse ela, voltando-se para Clara. – Tenho alguns na horta... e um pepino também.
Clara corou. Estava com um ar muito distinto.
– Acho que quero rabanetes – respondeu. E a velhinha saiu, rejubilante.
– Se ela soubesse – disse Clara, baixinho, para Paul.
– Bom, mas não sabe... e é simpático da nossa parte, de qualquer maneira. Tu estás suficientemente cândida para satisfazeres um arcanjo, e eu pareço perfeitamente inofensivo... por isso... se tu ficas assim tão bonita, e as pessoas que estão ao pé de nós ficam felizes, e tu estás feliz também... ora essa... não os estamos a enganar assim tanto.
E continuaram a comer. Quando iam a sair, a velhinha aproximou-se timidamente com três dálias minúsculas, em botão, catitas como abelhas, salpicadas de vermelho e branco. Parou diante de Clara, manifestamente satisfeita, e disse:
– Não sei se... – com as flores espetadas na mão envelhecida.
– Oh... que bonitas! – exclamou Clara, aceitando as flores.
– Então, são todas para ela? – perguntou Paul, em tom de censura.
– Sim senhor, são todas para ela – respondeu a senhora, radiosa. – Tu já tiveste o teu quinhão.
– Ah, mas eu vou pedir-lhe que me dê uma – disse ele, para a arreliar.
– Nesse caso, ela fará o que quiser – disse a velhinha, a sorrir, com uma pequena vénia deliciosa.
Clara estava muito calada e envergonhada. Quando se puseram de novo em marcha, Paul disse:
– Não te sentes nenhuma criminosa, pois não?
Ela fitou-o com os seus olhos cinzentos, perplexos.
– Criminosa! – disse ela. – Não.
– Mas estás com ar de quem sente que fez alguma coisa errada.
– Não – disse ela. – Vou só a pensar... Se eles soubessem.
– Se soubessem, deixavam de compreender. Assim, compreendem, e agrada-lhes. Que se importam eles! Aqui, só comigo e com as árvores, não te sentes nem um bocadinho errada, pois não?
E, puxando-a pelo braço, virou-a para ele e fitou-a, olhos nos olhos. Algo o preocupava.
– Não somos pecadores, pois não? – disse ele, pouco à vontade, franzindo a testa.
– Não – respondeu ela.
Ele beijou-a, e riu-se.
– Cá para mim, gostas de te sentir um bocadinho culpada – disse ele. – Acho que a Eva também gostou, quando fugiu do Paraíso com o rabinho entre as pernas. E o Adão devia estar furioso, sem perceber por que diabo era preciso fazer tanto estardalhaço só por causa de um bocado de maçã que os pássaros podiam debicar quando quisessem.
Irradiava dela, porém, uma certa aura de tranquilidade que o alegrava. Quando se viu sozinho na carruagem, percebeu que estava tumultuosamente feliz, e as pessoas extraordinariamente simpáticas, e a noite maravilhosa, e que tudo era perfeito.
Mrs. Morel estava sentada a ler quando Paul chegou a casa. A sua saúde não era de momento muito boa. Aflorara-lhe ao rosto aquela palidez de marfim em que ele ainda não tinha reparado e de que nunca mais se esqueceu. Ela não se queixava ao filho do mal-estar que sentia. Certamente não pensava que fosse importante.
– Hoje chegaste tarde! – disse ela, fitando-o.
Tinha os olhos muito brilhantes e a cara irradiava luminosidade. Paul sorriu-lhe.
– Pois cheguei... estive com a Clara em Clifton Grove.
A mãe fitou-o outra vez.
– E as pessoas não se vão pôr a falar? – perguntou.
– Porquê? Todos sabem que ela é sufragista e tudo. E se falarem...?
– Claro que podem não ter feito nada de mal – disse a mãe. – Mas sabes bem como são as pessoas, e se começam a falar dela...
– Bom, quanto a isso, não posso fazer nada. A má-língua deles não há-de ser assim tão poderosa.
– Acho que devias pensar nela.
– Claro que penso! Mas o que é que as pessoas podem dizer?... Que fomos juntos dar um passeio. Acho que a mãe está é com ciúmes.
– Sabes bem que eu até ia gostar, se ela não fosse uma mulher casada.
– Bem, minha querida... ela está separada do marido e faz discursos do alto de estrados... o que só por si já a deixa isolada. Além disso, tanto quanto sei, também não tem muito a perder. Não... para ela a vida não vale nada... e qual é o valor de nada? Vai passear comigo... e passa a ser alguma coisa. Ela tem um preço a pagar, temos os dois. As pessoas têm tanto medo de pagar o seu preço... preferem morrer à míngua.
– Muito bem, meu filho... veremos como tudo isso acaba.
– Muito bem, minha mãe... estou pronto para o que der e vier.
– Isso é o que veremos...
– Ainda por cima, ela é... é tremendamente simpática, mãe... é mesmo! A mãe não a conhece!
– Mas não é o mesmo que casar com ela.
– Talvez seja ainda melhor.
Fez-se silêncio. Paul queria fazer uma pergunta à mãe, mas tinha medo.
– Gostava de a conhecer? – disse, titubeante.
– Sim... – disse Mrs. Morel com indiferença. – Gostava de ver como ela é.
– Ela é simpática, mãe, juro que é! E nada grosseira!
– Nunca insinuei que fosse.
– Mas parece que é o que pensa... que ela não é tão boa como... é melhor que noventa por cento das pessoas, digo-lho eu. Melhor, muito melhor! É justa, honesta, séria... não é de esconder nada, nem de se mostrar superior... Vá lá, mãe, não seja mazinha.
Mrs. Morel corou.
– Não estou a ser mazinha, de maneira nenhuma. Ela pode ser tudo o que dizes... mas...
– A mãe não aprova – rematou ele.
– Esperavas que aprovasse? – retorquiu ela, com frieza.
– Claro que esperava!... Se pensasse bem, ia até ficar contente. – Então, sempre quer conhecê-la?
– Já disse que sim.
– Nesse caso vou trazê-la... quer que a traga cá a casa?
– Faz como quiseres.
– Então vou trazê-la cá a casa... num domingo... para o chá. Se pensar mal dela, não lhe vou perdoar.
A mãe riu-se.
– Como se isso fizesse alguma diferença – disse ela. Paul sabia que tinha vencido.
– Oh, mãe, sinto-me tão bem quando ela está comigo... ela é tão distinta, à sua maneira...
Esporadicamente, Paul ainda acompanhava Miriam e Edgar durante um bocado quando saíam da Capela. Mas não até à quinta. Ela mostrava-se a mesma para com ele, e não se sentia perturbada com a sua presença. Uma tarde, estava sozinha quando ele a acompanhou. Começaram a falar de livros: era um tópico infalível. Mrs. Morel tinha dito que o caso dele com Miriam era como uma fogueira alimentada de livros – quando os livros chegassem ao fim, apagar-se-ia. Miriam, pelo seu lado, gabava-se de o conhecer como um livro aberto, de ser capaz de apontar a qualquer momento para o respectivo capítulo, e até linha. E ele, facilmente convencido, acreditava que Miriam o conhecia melhor do que qualquer outra pessoa, e gostava por isso de falar com ela sobre si próprio, como todo o egoísta simplório. E logo a conversa versou os seus feitos. Era para ele imensamente lisonjeador suscitar tamanho interesse.
– Então que tens feito ultimamente?
– Eu... nada de especial... fiz um esboço de Bestwood visto do jardim, que finalmente está quase perfeito. À centésima tentativa...
E continuaram o seu caminho. A certa altura, ela disse.
– Então, tens saído muito ultimamente?
– Tenho... Fui a Clifton Grove com a Clara na segunda-feira à tarde.
– O tempo não estava nada bom – disse Miriam –, pois não?
– Mas apeteceu-me ir dar uma volta... e o tempo portou-se bem. O Trent vai cheio.
– Foste a Barton? – perguntou ela.
– Não, tomámos chá em Clifton.
– Ah, tomaram? Deve ter sido muito agradável.
– Pois foi! A velhinha era deliciosa... deu-nos várias dálias em botão, lindas que só visto.
Miriam baixou a cabeça, pensativa. Ele não tinha consciência de lhe estar a esconder alguma coisa.
– O que a terá levado a dar as flores?
Ele riu-se.
– Porque gostou de nós... porque estávamos muito alegres, acho eu.
Miriam meteu o dedo na boca.
– Chegaste muito tarde a casa? – perguntou.
Finalmente, ele reagiu ao seu tom de voz.
– Apanhei o comboio das sete e meia.
– Ah!
Continuaram a caminhar em silêncio e ele ia amuado.
– E como está a Clara? – perguntou Miriam.
– Óptima, julgo eu.
– Que bom – disse ela, com laivos de ironia. – A propósito, que é feito do marido dela? Não se ouve falar dele.
– Arranjou outra mulher e está óptimo – respondeu Paul. – Pelo menos acho que sim.
– Estou a ver... não tens a certeza... Não achas que uma situação dessas é difícil para uma mulher?
– Dificílima.
– É tão injusto! – disse Miriam. – O homem faz o que lhe ape-tece...
– E a mulher que faça também... – disse ele.
– Como é que ela pode?!... E, mesmo que faça, já viste em que situação fica!
– E o que é que isso tem?
– O que é que tem?... É impossível!... Tu não entendes o que uma mulher sofre com isso...
– Não, não entendo... Mas se uma mulher não tem mais nada a que se agarrar a não ser a sua boa fama... bem, é tão parca a côdea que até um burro morria à fome.
Perante isto, Miriam compreendeu pelo menos a postura moral de Paul e percebeu que ele agiria em conformidade. Não lhe fazendo perguntas directas, ficou a saber o suficiente.
Num outro dia em que Paul voltou a encontrar Miriam, a conversa encaminhou-se para o casamento, de uma maneira geral, e daí para o casamento de Clara com Baxter Dawes.
– Estás a ver – disse ele –, ela não tinha consciência da tremenda importância do casamento. Pensava que era só a cerimónia... que mais cedo ou mais tarde tinha de acontecer... e o Dawes... bem, muitas mulheres teriam vendido a alma ao diabo para o apanharem... Por isso... porque não ele?... Depois, ela transformou-se na femme incomprise... e começou a tratá-lo mal. Aposto que foi assim.
– E ela deixou-o porque ele não a compreendia?
– Acho que sim. Acho que não podia fazer outra coisa. Não se trata de compreender, nada disso, trata-se de viver. Com ele, ela estava apenas meio viva, o resto estava adormecido, inerte. E a mulher adormecida era a femme incomprise, que tinha de ser acordada.
– Então, e ele?
– Não sei... estou convencido de que ele a ama... à sua maneira, claro. O tipo é parvo.
– É mais ou menos como o teu pai e a tua mãe – disse Miriam.
– Sim, mas a minha mãe, creio eu, foi muito feliz com o meu pai a princípio. Acho que foi mesmo paixão. Por isso é que ela ficou com ele. Afinal, estavam destinados um para o outro.
– Pois é – disse Miriam.
– É o que todos devem sentir, acho eu – prosseguiu ele. – Uma verdadeira labareda de sentimentos pela outra pessoa, uma vez, uma vez só, nem que seja apenas por três meses. Percebes, a minha mãe tem o ar de quem teve tudo o que era necessário para a sua vida e desenvolvimento. Não há nela o menor sinal de esterilidade.
– Pois não – disse Miriam.
– Com o meu pai, a princípio, acho que as coisas foram mesmo a sério. Ela sabe... já passou por isso. Sente-se isso nela, e nele, e em milhares de pessoas com quem nos cruzamos todos os dias. E, quando isso nos acontece uma vez, pode-se continuar para onde se quiser e amadurecer. – E achas que a tua mãe e o teu pai sentiram isso?
– Acho... e, lá no fundo, ela está-lhe agradecida por lhe ter proporcionado essa experiência, mesmo agora, que estão tão distantes um do outro.
– E achas que a Clara nunca o sentiu?
– Tenho a certeza de que não.
Miriam meditou nesta resposta. Apercebeu-se do que ele procurava: uma espécie de baptismo de fogo da paixão, era o que ela pensava. E percebeu que ele não ficaria satisfeito enquanto não o conseguisse. Talvez isso fosse essencial para ele, como o é para alguns homens cometerem toda a sorte de loucuras. E depois, quando estivesse saciado, deixaria de fervilhar de inquietação e poderia então assentar e entregar a sua vida nas mãos dela. Pois muito bem, se ele tinha de ir, que fosse e tivesse a sua conta... algo de grande e intenso, como ele dizia. De qualquer maneira, mal o alcançasse, deixaria de o querer: era o que dizia a si próprio. Havia de querer a outra coisa que ela lhe podia dar. Havia de querer ser possuído, para poder trabalhar. A ela parecia-lhe cruel deixá-lo ir, mas, se o deixava ir à taberna beber uma cerveja, também o podia deixar ir ter com Clara... Desde que isso fosse qualquer coisa que lhe saciasse o desejo e o deixasse livre para ela o possuir.
– Já falaste com a tua mãe sobre a Clara? – perguntou Miriam.
Sabia que isto seria um teste à seriedade dos seus sentimentos para com a outra mulher. Se ele tivesse contado à mãe, ficava a saber que era algo de vital que o empurrava para Clara e não apenas o prazer que qualquer homem procura numa prostituta.
– Já – disse ele. – E vem tomar chá connosco no domingo.
– A tua casa?
– Sim, sim. Quero que a Mater a conheça.
– Ah!
Fez-se silêncio. As coisas estavam a ir mais depressa do que ela imaginava. Sentiu-se subitamente amargurada por ele a ter deixado tão depressa e tão completamente. Iria Clara ser bem aceite pela família dele, que tão hostil se tinha mostrado consigo própria?
– Sou capaz de passar por lá a caminho da capela – disse Miriam. – Há imenso tempo que não vejo a Clara.
– Boa ideia – disse ele, estupefacto e inconscientemente agastado.
No domingo à tarde, Paul foi esperar Clara à estação de Keston. Enquanto aguardava na plataforma, tentou ver se era capaz de ter premonições.
– Será que sinto que ela vem – disse de si para si, e procurou tirar a prova. Sentia o coração estranho e aperreado. Era como um pressentimento. Depois, teve a antevisão de que ela não vinha! Ela não vinha e, em vez de ir passear com ela pelos campos, como tinha imaginado, teria de ir sozinho. O comboio estava atrasado. Ia ser uma tarde desperdiçada, e a noite também. Estava furioso com ela por nunca mais chegar. Para que tinha feito promessas, se não era capaz de as cumprir? Talvez tivesse perdido o comboio. Ele estava constantemente a perder o comboio, mas isso não era razão para ela perder precisamente este. Paul estava zangado com ela, furioso.
Nisto, viu o comboio a aproximar-se, saindo da curva. Ali estava ele, finalmente, mas claro que ela não tinha vindo. A locomotiva verde silvou rente à plataforma, e as carruagens pararam. As portas abriram-se. Não, ela não tinha vindo!... Não!... Ah, sim, lá estava ela, com um enorme chapéu preto! Apressou-se a ir ao seu encontro.
– Julguei que não viesses – disse ele.
Ela riu-se, quase sem fôlego, e estendeu-lhe a mão. Os olhos de ambos encontraram-se. Ele levou-a rapidamente até ao extremo da plataforma, falando sem parar para esconder o seu nervosismo. Clara estava linda. Tinha no chapéu grandes rosas de seda, em tons de ouro velho, e o saia-casaco de fazenda escura assentava-lhe às mil maravilhas no peito e nos ombros. A presença dela ao seu lado aumentava-lhe o orgulho. Paul sentia que os funcionários da estação, que o conheciam, a olhavam com respeito e admiração.
– Estava convencido de que não vinhas – disse ele de novo, rindo nervosamente.
Ela riu-se também, quase soltando um gritinho.
– E eu vinha no comboio a pensar no que faria se tu não estivesses à minha espera! – disse ela.
Ele agarrou-lhe impulsivamente na mão, e seguiram juntos pelo caminho estreito. Tomaram a estrada para Nuttall, por Reckoning House Farm. Estava um dia ameno de céu azul. Por todo o lado se viam folhas caídas, amarelecidas. Os silvados rentes ao bosque enchiam-se de bagas escarlates. Paul colheu algumas para ela se enfeitar.
– Embora, na verdade, me devesses ter dito para eu não as apanhar por causa dos pássaros – disse ele, enquanto as espetava na banda do casaco dela. – Mas, nestas paragens, onde há tanto por onde debicar, eles não ligam muito a estas bagas. Muitas vezes vêem-se as bagas já podres nos silvados quando chega a Primavera.
E ele não se cansava de tagarelar, sem prestar atenção ao que dizia, sabendo apenas que estava a pôr as bagas no casaco dela, e que a tinha ali à sua frente, pacientemente. Clara observava as mãos dele, tão rápidas, tão cheias de vida, e era como se não tivesse visto nada até àquele momento: até ali, tudo tinha sido indistinto.
Aproximaram-se da mina. Erguia-se negra e estática no meio das searas, com o imenso aterro de escória nascendo quase nas searas de aveia.
– Que pena haver aqui uma mina neste sítio tão bonito – disse Clara.
– Achas? – retorquiu ele. – Sabes, estou tão habituado que já nem dou por ela... Não, não é isso... gosto mesmo de ver as minas por aqui e por ali. Gosto das filas de vagões e das torres, e do vapor durante o dia e da iluminação à noite... Quando era miúdo, julgava sempre que qualquer coluna de fumo durante o dia e qualquer fogueira à noite era uma mina, com o vapor a sair, e as luzes e a orla incandescente... e pensava que Deus estava sempre no topo da mina.
À medida que se aproximavam de casa dele, ela caminhava em silêncio, parecendo relutante. Ele apertou-lhe os dedos entre os seus. Ela corou, mas não disse nada.
– Não queres ir para minha casa? – perguntou ele.
– Quero, sim – respondeu ela.
Nem lhe passou pela cabeça que ela se ia sentir numa posição difícil e embaraçosa em casa dele. Para ele, era como se fosse apresentar à mãe um dos seus amigos... só que mais bonita.
Os Morels moravam numa rua feia e íngreme na encosta. A rua propriamente dita era horrorosa. Mas a casa onde eles moravam era das melhores. Era uma casa velha e geminada, de tijolo escuro e com uma ampla janela abaulada. Mas o seu ar era sombrio. Porém, quando Paul abriu a porta do jardim, tudo mudou. A tarde soalheira assentara lá seus arraiais, até parecia uma outra terra. O carreiro estava ladeado de atanásias e pequenos arbustos. Em frente da janela estendia-se um relvado ensolarado, debruado de lilases já murchos. E o jardim continuava a perder de vista, entre montes anárquicos de crisântemos iluminados de sol, até ao sicómoro e ao campo, avistando-se ao longe algumas casinhas de telhado vermelho na encosta, brilhando na tarde outonal.
Mrs. Morel estava sentada na sua cadeira de baloiço, e envergava a blusa de seda preta. O cabelo grisalho acastanhado estava puxado para trás, deixando-lhe a descoberto a testa e as têmporas elevadas, e as suas faces eram pálidas. Clara, aflitíssima, seguiu Paul até à cozinha. Mrs. Morel levantou-se. Clara achou-a uma verdadeira senhora, embora bastante rígida. A jovem estava muito nervosa. O seu olhar dir-se-ia triste, quase resignado.
– Mãe... a Clara – disse Paul.
Mrs. Morel estendeu-lhe a mão e sorriu.
– Ele falou-me muito de si – disse ela.
O sangue aflorou às faces de Clara.
– Espero que não se tenha importado de eu vir – disse, hesitante.
– Fiquei contente quando ele disse que a ia trazer – respondeu Mrs. Morel.
Paul, vigilante, sentiu o coração apertar-se-lhe de sofrimento. Como a mãe parecia pequena, pálida e cansada ao lado da luxuriante Clara.
– Está um dia tão bonito, mãe! – disse ele. – E vimos um gaio.
A mãe olhou para ele. O filho tinha-se voltado para ela, e ela pensou como ele estava um homem bonito com o fato escuro de bom corte. Estava pálido e distraído. Seria difícil a qualquer mulher conservá-lo. O coração de Mrs. Morel exultava. Depois sentiu pena de Clara.
– Talvez queira deixar as suas coisas na sala – disse Mrs. Morel afavelmente à jovem.
– Ah, obrigada – respondeu Clara.
– Vem comigo – disse Paul e foi à frente dela até à salinha da frente, com o velho piano, a mobília de mogno, o fogão de sala – de mármore amarelado. O lume estava aceso. A sala estava repleta de livros e pranchas de desenho.
– Eu deixo as minhas coisas espalhadas por aí – disse ele. – É muito mais prático.
Clara gostou de ver toda aquela sua parafernália de artista, e ainda os livros e as fotografias. Não tardou que ele lhe começasse a dizer: este era o William, e esta era a namorada do William, de vestido de noite; esta era a Annie e o marido, e este era o Arthur, com a mulher e o bebé. Ela sentia-se como se estivesse a entrar para a família. Ele mostrou-lhe fotografias, livros e esboços, e conversaram durante algum tempo. Depois voltaram para a cozinha. Mrs. Morel pôs o seu livro de lado. Clara vestia uma blusa de fino chiffon de seda, às riscas fininhas pretas e brancas. O cabelo estava penteado com simplicidade, todo apanhado ao alto da cabeça. O seu ar era digno e reservado.
– Foi então morar para Sneinton Boulevard? – disse Mrs. Morel. – Quando eu era rapariga... rapariga, que digo eu!... quando eu era ainda uma mulher bastante nova, nós morámos em Minerva Terrace.
– Ah, sim? – disse Clara. – Um amigo meu mora no número 6.
E assim estava iniciada a conversa. Falaram de Nottingham e das pessoas de Nottingham. Era assunto que interessava a ambas. Clara estava ainda bastante nervosa, e Mrs. Morel continuava algo agarrada à sua dignidade, articulando as palavras de forma bem clara e precisa. Mas Paul via que iam dar-se bem.
Mrs. Morel media forças com a mulher mais nova, e facilmente descobriu ser a mais forte. A atitude de Clara era deferente. Ciente da consideração surpreendente que Paul tinha pela mãe, receara o encontro, esperando ir conhecer uma mulher bastante dura e fria. E foi com surpresa que encontrou esta mulher frágil e interessada, que se expressava com tanto desembaraço. E depois sentiu, como sentia com Paul, que jamais se atravessaria no caminho de Mrs. Morel. Havia nela qualquer coisa de tão duro e definitivo como se nunca na vida tivesse tido uma contrariedade.
A certa altura apareceu Morel, a bocejar, ainda estremunhado da sesta. Trazia o colete desabotoado, e entrou a arrastar os pés calçados só com as meias e a coçar a cabeça. Era uma visão insólita.
– Esta é Mrs. Dawes, pai – disse Paul.
Morel ganhou compostura e Clara reconheceu a maneira de Paul se curvar ao apertar a mão.
– Ah, sim! – exclamou Morel. – Tenho muito prazer em conhecê-la, tenho sim senhora, pode estar certa. Mas não se incomode... não... não! Ponha-se à vontade, e seja bem-vinda.
Clara estava perplexa com esta torrente de hospitalidade do velho mineiro. Mostrava-se tão cortês, tão galante! Achava-o encantador.
– Veio de muito longe? – perguntou Morel.
– Só de Nottingham – disse ela.
– De Nottingham. Então teve uma belo dia para viajar.
Depois, Morel foi à copa lavar as mãos e a cara e, força do hábito, veio secar-se para junto da lareira com a toalha.
Durante o chá, Clara testemunhou o requinte e o sangue-frio da família. Mrs. Morel estava perfeitamente à vontade. Servia o chá e dava atenção a cada pessoa instintivamente, sem parar de conversar. A mesa era oval e muito grande e o serviço de porcelana azul-escuro com motivos de salgueiros condizia às mil maravilhas com a toalha cintilante. Havia também uma jarrinha com pequenos crisântemos amarelos. Clara sentia que fechava o círculo, o que lhe dava muito prazer. Mas temia grandemente o exacerbado sentido de posse dos Morels, incluindo o pai. Adoptou atitude semelhante e estabeleceu-se um equilíbrio. O ambiente era calmo, desanuviado, cada um igual a si próprio, em harmonia. Clara sentia-se bem, mas o medo espreitava-lhe no íntimo.
Paul levantou a mesa enquanto a mãe conversava com Clara, que não pôde deixar de reparar no seu corpo ágil e vigoroso girando de um lado para o outro, como se impelido por uma rajada de vento, folha que inesperadamente levanta voo. E todo o seu ser levantava voo com ele. Pela maneira como se inclinava para a frente, fazendo por se mostrar atenta, Mrs. Morel percebia que, enquanto falava, a atenção dela estava presa algures, noutro lugar. E de novo a mulher mais velha sentiu pena dela.
Quando acabou de levantar a mesa, Paul foi até ao jardim, deixando as duas mulheres conversar à vontade. O sol, filtrado pela neblina, iluminava uma tarde serena e doce. Clara ficou a vê-lo da janela, deambulando entre os crisântemos. Era como se algo quase tangível a ligasse a ele. Porém, ele parecia tão livre nos seus movimentos graciosos e indolentes, tão liberto enquanto atava os pesados ramos floridos às estacas, que só lhe apetecia gritar contra a sua impotência.
Mrs. Morel levantou-se.
– Tem de deixar-me ajudá-la a lavar a loiça – disse Clara.
– E tão pouca coisa... não demora nada – disse a outra.
Clara limpou então a loiça, e estava muito contente por se dar tão bem com a mãe dele. Era, porém, uma tortura não poder ir atrás dele até ao jardim. Por fim ganhou coragem e foi. Era como se lhe tivessem cortado as grilhetas.
A tarde descia dourada sobre as colinas do Derbyshire. Ele estava do outro lado, no outro jardim, junto a um tufo de malmequeres, vendo as últimas abelhas entrarem para o cortiço. Ao senti-la aproximar-se, Paul virou-se para ela com um movimento ágil, e disse:
– Fim da corrida para estas camaradas.
Clara estava perto dele. Para lá do muro baixo de tijolo vermelho, estendia-se o campo e ao longe as colinas, cobertas de ouro e neblina.
Nessa altura, Miriam transpôs a cancela do jardim. Viu Clara aproximar-se dele, viu Paul virar-se e viu-os parados, encostados um ao outro. Algo no isolamento perfeito dos dois juntos lhe dizia que já o tinham feito, que já estavam casados, como ela dizia. Avançou muito devagar pelo longo carreiro do jardim, coberto de cinzas.
Clara tinha arrancado um botão de uma espiga de malva-rosa, e aprestava-se a parti-la para recolher as sementes. Por cima da sua cabeça curvada, as flores cor-de-rosa mantinham-se vigilantes, como se a protegê-la. As últimas abelhas desciam para a colmeia.
– Conta o teu dinheiro – disse Paul, a rir, enquanto ela ia separando as sementes achatadas, uma a uma. Clara olhou para Paul.
– Estou rica – disse ela, sorrindo.
– Quanto tens?... Safa!... – e Paul estalou os dedos. – Posso transformá-las em ouro?
– Receio bem que não – disse ela, com uma gargalhada.
Olharam-se olhos nos olhos, e riram. Nesse momento aperceberam-se da presença de Miriam. Foi como se o encanto se quebrasse e tudo se transformasse.
– Olá, Miriam! – exclamou ele. – Bem disseste que vinhas!
– Claro, tinhas-te esquecido?
Miriam apertou a mão de Clara e disse:
– É estranho encontrar-te aqui.
– Pois é – disse a outra. – Também me parece estranho estar aqui.
Seguiram-se momentos de hesitação.
– É bonito, não é... – disse Miriam.
– Eu gosto muito – retorquiu Clara.
E Miriam percebeu que Clara tinha sido aceite como ela nunca o fora.
– Vieste sozinha? – perguntou Paul.
– Vim! Fui tomar chá a casa da Agatha. A seguir vamos para a Capela. Só passei por cá de fugida, para ver a Clara.
– Devias ter vindo para o chá – disse ele.
Miriam soltou uma risadinha breve e Clara afastou-se, impaciente.
– Gostas dos crisântemos? – perguntou Paul.
– Gosto... são muito requintados – respondeu Miriam.
– De quais gostas mais? – perguntou ele.
– Não sei... dos cor de bronze, acho eu.
– Creio que ainda não conheces as espécies todas. Vem cá ver. Vem ver quais são os teus preferidos, Clara.
Paul levou as duas mulheres até ao seu jardim, onde os maciços emaranhados de flores de todas as cores se espalhavam ao longo do carreiro que ia desembocar nos campos. Tanto quanto se apercebia, a situação não o deixava constrangido.
– Olha, Miriam... estes são os brancos que vieram do teu jardim. Ficam tão bonitos aqui, não achas?
– Não – disse Miriam.
– Eles são ousados, mas tu és tão precavida. As coisas crescem fortes e tenras e depois morrem. Destes amarelos gosto muito. Queres levar alguns?
Enquanto passeavam no jardim, os sinos da igreja começaram a repicar, ecoando pela cidade e pelos campos. Miriam olhou para a torre sineira, destacando-se altiva entre os telhados, e lembrou-se dos esboços que ele lhe levara. Nessa altura tudo era bem diferente. Pediu-lhe um livro para ler. Ele foi buscá-lo a correr.
– O quê... aquela é a Miriam? – perguntou a mãe friamente.
– É... Disse que passava por cá para ver a Clara.
– Então contaste-lhe? – foi a resposta sarcástica.
– Claro, porque não havia de contar?
– Sim... porque não? – disse Mrs. Morel, retomando a sua leitura. Paul tentou esquivar-se à ironia da mãe, e franziu o sobrolho irritado, pensando: «Porque não hei-de poder fazer o que me apetece?»
– Ainda não tinhas encontrado antes Mrs. Morel – dizia Miriam a Clara.
– Não... mas ela é tão simpática.
– Pois é... – disse Miriam, baixando a cabeça. – Em certos aspectos é tão requintada.
– Também acho.
– O Paul já te tinha falado muito dela?
– Já tinha falado bastante.
– Ah!
Fez-se silêncio até ele voltar com o livro.
– Quando o queres de volta? – perguntou Miriam.
– Quando quiseres – respondeu Paul.
Clara deu meia volta e encaminhou-se para casa, enquanto Paul acompanhava Miriam ao portão.
– Quando é que apareces em Willey Farm? – perguntou Miriam.
– Não sei – respondeu Clara.
– A minha mãe pediu-me para te dizer que terá muito prazer em ver-te quando quiseres ir visitar-nos.
– Obrigada... Claro que quero ir... mas não posso dizer quando.
– Muito bem! – exclamou Miriam, com bastante secura, afastando-se.
Desceu o carreiro, com a boca encostada às flores que ele lhe dera.
– Tens a certeza de que não queres entrar? – disse ele.
– Não, obrigada.
– Nós vamos à Capela.
– Ah!... Então vemo-nos lá! – Miriam estava muito azeda.
– Pois é.
Separaram-se. Ele sentia-se culpado perante ela. Ela estava ofendida e desprezava-o. Ele ainda lhe pertencia, pensava ela. No entanto, podia ficar com Clara, levá-la para casa, sentar-se com ela ao lado da mãe na igreja, dar-lhe o mesmo livro de orações que lhe tinha dado a ela há alguns anos. Miriam ouviu-o correr para casa.
Mas Paul não entrou imediatamente. Detendo-se no relvado, ouviu a voz da mãe e depois a resposta de Clara:
– O que eu mais detesto na Miriam é aquela fidelidade canina.
– Pois é – atalhou a mãe. – É isso! E isso não te faz odiá-la agora?
O coração dele enfureceu-se e ficou furioso com elas por estarem a falar da rapariga. Com que direito o faziam? Mas algo nas suas palavras lhe acendeu uma chama de ódio contra Miriam. Depois o seu próprio coração se rebelou em fúria contra o facto de Clara se dar a liberdade de falar assim de Miriam. Afinal, no tocante a bondade, ela era a melhor das duas, disso não tinha quaisquer dúvidas. Por fim, entrou. A mãe parecia excitada. Batia ritmadamente com a mão no braço do sofá, como fazem as mulheres quando caminham para a velhice. Paul não conseguia suportar esse motu-contínuo. Fez-se silêncio. Então, Paul começou a falar.
Na capela, Miriam viu-o procurar a página do livro de salmos para Clara, exactamente como fazia com ela. E, durante o sermão, Paul via a rapariga do outro lado da capela, com o chapéu a sombrear-lhe a cara. Em que pensaria ela, ao ver Clara ao lado dele? Não perdeu tempo a tentar adivinhar. Sentiu que tinha sido cruel com Miriam.
Depois de sair da capela, foi até Pentrich com Clara. Estava uma noite cerrada de Outono. Tinham-se despedido de Miriam, e Paul sentiu remorsos por deixar a rapariga ir sozinha. «É bem feito» disse depois para consigo, e quase sentiu prazer ao passar diante dos olhos dela com outra mulher bonita.
A escuridão impregnava-se de um cheiro a folhas húmidas. A mão de Clara estava quente e inerte dentro da sua, à medida que caminhavam. Paul enfrentava um renhido conflito interior. A batalha que se travava no seu íntimo enfurecia-o e deixava-o ao mesmo tempo desesperado.
Na subida para Pentrich, Clara encostou-se a Paul e ele passou-lhe o braço pela cintura. Os movimentos vigorosos do corpo dela sob o seu braço, ao caminhar, fizeram abrandar no peito de Paul o constrangimento que sentia por causa de Miriam. Uma onda de sangue quente invadiu-o e apertou Clara contra si cada vez mais.
E então:
– Vais continuar ligado à Miriam – disse Clara.
– Só para conversar. Aliás, nunca existiu realmente muito mais que mera conversa entre nós – disse ele, num tom amargo.
– A tua mãe não gosta dela – disse Clara.
– Não... senão talvez eu já tivesse casado com ela... Mas tudo isso já lá vai... a sério.
De súbito, a voz dele tornou-se exacerbada, carregada de ódio:
– Se eu estivesse com ela agora... estávamos com certeza a falar do «Mistério Cristão» ou coisa parecida. Graças a Deus que não estou.
Caminharam em silêncio por algum tempo.
– Mas vê-se que tu não és capaz de ficar sem ela – disse Clara.
– Não se trata de ficar sem ou ficar com – disse ele.
– Para ela trata-se.
– Não entendo por que razão ela e eu não podemos continuar a ser amigos enquanto vivermos – disse Paul. – Mas só amigos.
Clara afastou-se, fugindo ao contacto com o seu corpo.
– Porque te afastas de mim? – perguntou ele.
Ela não respondeu, mas afastou-se ainda mais.
– Porque queres caminhar sozinha?
De novo a resposta não chegou. Clara caminhava cabisbaixa, ofendida.
– Já sei... foi por eu ter dito que continuaria a ser amigo da Miriam! – exclamou Paul.
Mas ela não respondeu.
– Já te disse que entre nós existem apenas as palavras – insistiu ele, tentando abraçá-la de novo. Ela resistiu. De repente ele meteu-se à frente dela, barrando-lhe o caminho.
– Bolas! – disse ele. – O que é que queres agora?
– O melhor é ires a correr atrás da Miriam – disse Clara, trocista.
Paul sentiu o sangue a ferver. Estacou, de dentes arreganhados. Ela continuava cabisbaixa, amuada. O caminho era escuro, solitário. Ele tomou-a de súbito nos braços, esticou-se para a frente e aflorou-lhe o rosto com a boca, num beijo de raiva. Ela desviou-se assustada, tentando evitá-lo a todo o custo. Mas ele tinha-a bem segura. Agressiva e determinada, a boca dele avançou para ela. Os seios dela doíam-lhe contra o muro do peito dele. Dominada, abandonou-se nos seus braços e ele beijou-a, beijou-a sem parar.
Paul ouviu passos a descer a encosta.
– Levanta-te... levanta-te! – disse ele, com premência, puxando-lhe o braço até a magoar. Se ele a tivesse largado, ela teria caído por terra outra vez. Clara suspirou e continuou a caminhar ao lado dele, atordoada, os dois em silêncio.
– Vamos atravessar os campos – sugeriu ele, e foi então que ela despertou.
Deixou que ele a ajudasse a saltar a cerca e atravessou em silêncio o primeiro campo negro. Aquele era o caminho para Nottingham e para a estação, isso ela sabia-o.
Paul parecia perscrutar o terreno em redor. Alcançaram o cimo duma colina onde se erguiam negras as ruínas de um velho moinho de vento. Aí chegados, ele parou e ficaram os dois lá em cima, em plenas trevas, contemplando as luzes que salpicavam a noite à sua frente, como punhados de pontos cintilantes – vilas e aldeias espalhadas mais acima e mais abaixo na escuridão, por aqui e por ali.
– É como caminhar entre as estrelas – disse ele, com uma gargalhada trémula.
Depois tomou-a nos braços e apertou-a num longo beijo. Ela desviou a boca para o lado, para perguntar baixinho, mas com determinação:
– Que horas são?
– Que importa? – disse ele, com voz cálida, suplicante.
– Importa sim, tenho de ir.
– Ainda é cedo – disse ele.
– Que horas são? – insistiu ela.
A noite estendia-se a toda a volta, muito negra, sarapintada e pontilhada de luzes.
– Não sei.
Ela meteu-lhe a mão no peito à procura do relógio, e ele sentiu as articulações desfazerem-se em fogo. Ela meteu a mão em seguida no bolso do colete, e o peito dele arfava. Na escuridão, Clara conseguia ver o mostrador redondo e pálido do relógio, mas não as horas. Aproximou-se mais. Ele arfava, ansioso por tomá-la de novo nos braços.
– Não vejo nada – disse ela.
– Não te preocupes.
– Tenho de ir – disse ela, afastando-se.
– Espera... eu vejo... – mas também ele não conseguiu ver nada. – Vou acender um fósforo.
No seu íntimo, Paul desejava secretamente que já fosse tarde de mais para ela apanhar o comboio. Clara viu o fósforo brilhante das mãos dele, em concha, protegendo a chama, e a cara dele iluminar-se, e os olhos dele fixos no mostrador do relógio. Mas, instantaneamente, tudo ficou negro outra vez. Tudo negro diante dos seus olhos, excepto o fósforo incandescente jazendo aos seus pés. Onde é que ele estava?
– O que foi? – perguntou ela a medo.
– Não vais conseguir – respondeu a voz dele da escuridão.
Seguiu-se uma pausa. Ela sentiu-se em poder dele. A voz dele vibrara metálica e isso assustava-a.
– Que horas são? – perguntou ela, serena, firme, rendida.
– Dois minutos para as nove – respondeu ele, dizendo-lhe a verdade, a muito custo.
– Achas que consigo pôr-me daqui na estação em catorze minutos?
– Não... no entanto...
Clara distinguia de novo o vulto dele, a dois passos dela, todo negro. Só lhe apetecia fugir.
– Não será mesmo possível? – perguntou ela, aflita.
– Se te apressares – disse ele, bruscamente. – Mas... para quê tanta pressa, Clara?... São só sete milhas até ao trólei... eu acompanho-te.
– Não... quero apanhar o comboio.
Subitamente a voz dele transformou-se.
– Muito bem – disse Paul, secamente, com dureza até. – Então vem daí.
E mergulhou com ela na escuridão. Ela corria atrás dele, com vontade de gritar. Paul estava agora a ser muito duro e cruel com ela. E ela sempre atrás dele, galgando os campos negros e duros, já sem fôlego, prestes a desfalecer. Mas a dupla fiada de luzes da estação estava cada vez mais próxima. Subitamente:
– Lá vem ele! – gritou Paul, desatando em desenfreada correria.
Ouviu-se um ruído metálico e distante. Ao longe, para a direita, o comboio cruzava a noite como uma lagarta luminosa. O ruído cessou.
– Está parado no viaduto... vais conseguir.
Clara deu uma última corrida, já completamente exausta, e deixou-se cair finalmente no banco do comboio. O apito soou. Ele desaparecera. Desaparecera!... E ela ia numa carruagem cheia de gente. A crueldade da situação tocava-a no mais fundo da alma.
Paul deu meia volta e mergulhou na escuridão rumo a casa. Antes mesmo de ter tempo para pensar, já se encontrava em casa, na cozinha, muito pálido e com uns olhos negros e temíveis, como se estivesse embriagado. A mãe olhou para ele.
– Sim, senhor, tens as botas num lindo estado.
Ele olhou para os pés. Depois despiu o casaco. A mãe perguntava-se se ele não estaria bêbado.
– Ela sempre apanhou o comboio? – perguntou.
– Apanhou.
– Espero que os pés dela não estivessem tão enlameados como os teus... não sei por que diabo de caminho a levaste!
Ele ficou imóvel e calado por algum tempo.
– Gostou dela? – perguntou Paul, finalmente, de mau humor.
– Sim... gostei dela... Mas vais-te cansar dela, meu filho, sabes bem que vais.
Ele não respondeu. A mãe reparou como lhe custava respirar.
– Vieste a correr? – perguntou.
– Tivemos de correr para apanhar o comboio.
– Vê lá se te recompões. É melhor beberes um copo de leite quente.
Melhor estimulante não havia. Mas ele recusou, e foi para a cama. E aí ficou, de cara enfiada na coberta, vertendo lágrimas de raiva e dor. Era uma dor física que o fazia morder os lábios até sangrarem, e o caos interior que o afligia deixava-o incapaz de pensar ou até mesmo de sentir.
– É assim que ela me agradece, não é – repetia ele, sem cessar, amachucando a cara na coberta, sentindo crescer o ódio por ela. E de novo recapitulou a cena e voltou a odiá-la.
No dia seguinte, era notório nele um inesperado desprendimento. Clara mostrava-se gentil, meiga até, mas ele tratava-a com frieza, até com uma ponta de desprezo. Ela suspirava e continuava gentil. Até que ele caiu em si.
Uma noite dessa semana, Sarah Bernhardt vinha ao Royal Theatre de Nottingham representar La Dame aux Camélias. Paul queria ver a velha actriz, tão afamada, e convidou Clara para o acompanhar. Depois, pediu à mãe que deixasse a chave na janela, para poder entrar quando voltasse.
– Queres que reserve os lugares? – perguntou ele a Clara.
– Sim, e veste-te a rigor, está bem? Nunca te vi de smoking.
– Meu Deus, Clara, já me imaginaste de smoking no teatro? – recalcitrou ele.
– Preferes então não o levar? – disse ela.
– Se queres mesmo que eu o leve... Mas vou fazer figura de parvo.
Clara riu-se.
– Então faz lá figura de parvo por mim, só desta vez... está bem?
O pedido pôs-lhe o sangue em alvoroço.
– Acho que não tenho outro remédio.
– Para que levas essa mala? – perguntou a mãe.
Paul corou desmedidamente.
– Foi a Clara que me pediu – disse ele.
– Para que lugar vão?
– Balcão... três xelins e seis pence, cada bilhete.
– Sim, senhor! – exclamou a mãe, sarcástica.
– É só uma vez sem exemplo – disse ele.
Trocou de roupa na Jordan, vestiu por cima o sobretudo e o boné e foi encontrar-se com Clara num café. Ela estava com uma das suas amigas sufragistas. Trazia um casaco comprido já velho, que não lhe ficava nada bem, e uma écharpe pela cabeça, que ele detestou. Seguiram os três juntos para o teatro.
Clara despiu o casaco a meio da escadaria, e Paul descobriu que ela trazia por baixo algo que se diria ser apenas meio vestido de noite, já que que lhe deixava a descoberto os braços, o colo e parte do peito. O cabelo estava penteado à moda. O vestido, um modelo muito simples de crepe verde, ficava-lhe a matar. Tinha o ar de uma grande senhora, pensou ele. Adivinhava-lhe as formas sob o ves-tido, como se o tecido estivesse colado ao corpo. Ao olhar para ela, sentia quase palpável a firmeza e suavidade daquele corpo esplêndido. Crispou as mãos.
Teria de passar a noite inteira encostado ao seu braço belíssimo e nu, olhando a sua garganta opulenta projectada do peito opulento, e os seios por baixo do tecido verde, e a curva das suas coxas desenhadas na saia justa. Algo o fazia odiá-la por lhe infligir tal suplício de proximidade. Mas, depois, amava-a quando ela meneava a cabeça e olhava em frente, com o lábio estendido em pose compenetrada, pensativa e imóvel, como se rendida a um destino demasiado poderoso. Nada podia fazer... estava nas mãos de algo mais forte do que ela. O seu ar eterno de esfinge pensativa deixava-o louco de vontade de a beijar. Deixou cair o programa ao chão e baixou-se para o apanhar, a fim de lhe poder beijar a mão e o pulso. A beleza dela era para ele uma tortura. Ela continuou imóvel, sentada. Só quando as luzes se apagaram ela se deixou escorregar um pouco na cadeira para o lado dele, e ele lhe acariciou a mão e o braço com as pontas dos dedos. Sentia-lhe o perfume ténue, natural, que o deixava louco, esfomeado. E o seu sangue não parava de fluir em avassaladoras vagas de calor, matando-lhe por momentos a consciência.
A peça desenrolava-se. Ele assistia à distância, de algures muito longe, não sabia donde, algures muito longe dentro dele. Ele era os braços brancos e possantes de Clara, a sua garganta, o seu colo ofegante. Tudo isso lhe parecia ser ele mesmo. E a peça desenrolava-se muito longe, e também com isso ele se identificava. Nada era ele próprio. Os olhos cinzento-escuros de Clara, o seu colo projectando-se para ele, o braço que apertava entre as mãos, eram tudo o que existia. E ele sentia-se pequeno e frágil perante a força dominadora da presença dela.
Nos intervalos, quando as luzes se acendiam, o seu sofrimento era atroz. Queria fugir para qualquer lado, desde que voltasse à escuridão. Aturdido, saía para ir tomar uma bebida. Depois as luzes apagavam-se e a presença majestosa, estranha e insana de Clara e da tragédia dominavam-no outra vez.
A peça continuava e ele continuava obcecado pela vontade de beijar aquela veiazinha azul que se anichava na curva do braço dela. Podia até senti-la latejar. Era como se toda a sua vida se quedasse suspensa até depor nela os lábios. Era algo que tinha de ser feito. E as outras pessoas? Por fim, curvou-se subitamente para a frente e tocou-lhe com os lábios. O bigode roçou na carne sensível. Clara estremeceu e retirou o braço.
Quando tudo terminou e as luzes se acenderam e todos aplaudiam, Paul voltou a si e olhou para o relógio. O comboio já tinha partido.
– Vou ter de voltar a pé para casa!
Clara fitou-o.
– É muito tarde? – perguntou ela.
Ele confirmou com um aceno de cabeça e ajudou-a a vestir o casaco.
– Amo-te. Ficas lindíssima com esse vestido – segredou-lhe por cima do ombro, na torrente da multidão apressada. Ela continuou calada. Saíram juntos do teatro. Paul viu os táxis à espera e as pessoas que passavam. Pareceu-lhe ver um par de olhos castanhos cheios de ódio, mas não tinha a certeza. Ele e Clara viraram para o outro lado, tomando o caminho da estação.
O comboio já tinha partido. Teria de percorrer a pé as dez milhas que o separavam de casa.
– Não faz mal – disse ele. – Até me vai saber bem.
– Não queres passar a noite lá em casa? – sugeriu ela, corando. – Eu posso dormir com a minha mãe...
Ele fitou-a. Os seus olhos encontraram-se.
– O que é que a tua mãe irá dizer? – perguntou ele.
– Ela não se importa.
– Tens a certeza?
– Absoluta!
– Então... possso ir?
– Se quiseres.
– Aceito!
E seguiram juntos. Apanharam um eléctrico na primeira paragem que encontraram. O vento fresco fustigava-lhes o rosto. A cidade estava mergulhada nas trevas, e o eléctrico balançava, correndo veloz. Paul ia sentado com a mão dela apertada na sua.
– A tua mãe já se terá deitado? – perguntou.
– Talvez... espero que não.
Percorreram apressados a ruela escura e silenciosa, onde não se via mais ninguém. Clara entrou rapidamente para dentro de casa. Paul hesitou.
– Entra – disse ela.
Ele subiu o degrau e entrou para a sala. A mãe assomou-se à porta do corredor, obesa e hostil.
– Quem está aí contigo? – perguntou.
– É Mr. Morel... perdeu o comboio. Achei que podíamos albergá-lo por esta noite e poupar-lhe uma caminhada de dez milhas.
– Hum! – exclamou Mrs. Radford. – Isso é lá contigo! Se o convidaste, atão pela minha parte é muito bem-vindo. Faz tu as honras da casa.
– Se não gosta da minha presença, volto pelo mesmo caminho – disse Paul.
– Ná... ná, num é preciso! Vamos lá pra dentro... Não sei se lh’agrada a ceia que eu fiz prà Clara? – Tratava-se de um pequeno prato com batatas fritas e uma fatia frita de toucinho entremeado. A mesa estava posta à pressa, para uma pessoa.
– Há mais toucinho, se quiser – continuou Mrs. Radford. – Mais batatas fritas é que não.
– É uma vergonha estar a dar-lhe tanto trabalho – disse Paul.
– Ora, ora, não se ponha com desculpas, isso não é cá pra mim! Tamém a levou ò teatro, num levou...? – Havia sarcasmo nesta última interrogação.
– Bem...! – disse Paul, rindo contrafeito.
– Bem... afinal o qu’é que vale um nico de toucinho? Ponha-se à vontade.
A mulher, imensa e empertigada, tentava avaliar a situação, enquanto cirandava à volta do aparador. Clara pegou no casaco dele. A cozinha estava muito quente e a luz do candeeiro era aconchegante.
– Por todos os santos! – exclamou Mrs. Radford. – Mas que lindo par que vocês fazem, sim senhor! Porquê todo esse luxo?
– Pode crer que nem nós sabemos – disse Paul, no papel de vítima.
– Se vocês continuam a apinocar-se dessa maneira, nesta casa não vai haver lugar para dois janotas assim – disse ela, metendo-se com eles. Esta tinha sido forte.
Paul, de smoking, e Clara, de vestido verde e braços nus, ficaram atrapalhados. Sentiam que tinham de se proteger um ao outro naquela cozinha exígua.
– Olhem-me só pra esta flor de formosura! – continuou Mrs. Radford, apontando para Clara. – O que lhe terá dado para se vestir assim?
Paul olhou para Clara. Estava ruborizada e com o pescoço afogueado. Seguiu-se uma pausa.
– Gosta de nos ver assim, não gosta? – perguntou Paul. A mãe de Clara tinha-os na mão. O coração dele batia forte, aperreado de ansiedade, mas ele ia enfrentá-la.
– Eu? Gostar de vos ver assim...?! – exclamou a mulher. – Pra qu’é qu’eu havia de querer vê-la fazer tristes figuras?
– Já vimos muita gente fazer pior figura – replicou Paul. Clara estava sob a sua protecção.
– Tá bem... E quando é qu’isso foi? – soou sarcástico o remoque.
– Quando as pessoas se armam em más – repontou ele.
Mrs. Radford, descomunal e ameaçadora, ficou suspensa diante da lareira, de garfo na mão.
– São parvos, tanto uns como os outros – respondeu ela passados alguns instantes, voltando-se para o grelhador.
– Nada disso – disse Paul, aguerrido. – As pessoas devem parecer o melhor possível.
– E chama àquilo parecer bem?! – exclamou a mãe, espetando na direcção de Clara um garfo carregado de desprezo. – Aquilo, aquilo é o mesmo que nem estar vestida.
– Aposto que o que a faz falar é mas é a inveja de já não poder saracotear-se assim – disse ele, a rir.
– Quem, eu? Eu podia ter saído de vestido de noite com quem quisesse, se me tivesse apetecido – foi a resposta afiada.
– E então porque não lhe apeteceu? – perguntou ele, pertinentemente. – Ou será que apeteceu?
Seguiu-se uma longa pausa. Mrs. Radford ajeitou o toucinho em cima da grelha. O coração de Paul batia célere, temendo tê-la ofendido.
– Eu! – exclamou ela por fim. – Não, nunca me apeteceu! E quando andava a servir, sabia logo, quando alguma das outras criadas ia para a rua de ombros ao léu, de que tipo é que ela era, e que ia saracotear-se para algum baile de meia-tigela.
– E a senhora era boa de mais para ir a bailes de meia-tigela, claro? – disse Paul.
Clara estava sentada, de cabeça baixa. Os seus olhos eram profundos e cintilantes. Mrs. Radford tirou a grelha do lume, foi para junto de Paul e começou a pôr-lhe no prato bocados de toucinho.
– Aqui está um bem tostadinho! – disse ela.
– Não me dê o melhor – disse ele.
– Ela já está de barriguinha cheia – foi a resposta.
Havia uma espécie de tolerância displicente no tom de voz da mulher, que mostrava a Paul como ela amansara.
– Come também! – disse ele a Clara.
Ela levantou para ele uns olhos cinzentos humilhados, solitários.
– Não, obrigada! – disse ela.
– E porque não? – insistiu ele, com ternura.
O sangue latejava-lhe nas veias como fogo. Mrs. Radford sentou- -se outra vez, descomunal, imponente e sobranceira. Paul esqueceu-se de Clara por completo, para dar atenção à mãe.
– Dizem que a Sarah Bernhardt tem cinquenta anos – disse ele.
– Cinquenta!... Já passou dos sessenta! – foi a resposta acerada.
– Bem – disse ele – ninguém diria! Ainda agora é de gritos.
– Havia de ser bonito, eu a pôr-me aos gritos por causa daquele traste velho – disse Mrs. Radford. – Já vai sendo altura dela se portar como uma avó, e não como uma catamarã qualquer, os guinchos... – Paul desatou a rir.
– O catamarã é um barco que se usa na Malásia – disse ele.
– E é uma palavra que eu uso – replicou ela.
– A minha mãe às vezes é assim... e não adianta eu chamar-lhe a atenção – disse ele.
– Estou a ver qu’ela já lhe sabe dar um puxão de orelhas – disse Mrs. Radford, bem-humorada.
– Isso queria ela... e diz que um dia vai dar... e eu vou buscar-lhe um banquinho para ela se encarrapitar...
– Isso é o pior que a minha mãe tem – disse Clara. – Nunca precisa dum banquinho para nada.
– Mas a maior parte das vezes não consegue chegar a essa senhora nem com uma vara bem comprida – retorquiu Mrs. Radford, voltando-se para Paul.
– Cá pra mim, ela não gosta que lhe cheguem com uma vara – disse ele, a rir. – Eu cá não gostava.
– Pois uma rachadela na cabeça só vos ia fazer bem – disse a mãe, com uma gargalhada.
– Porque é que nos quer castigar? – disse ele. – Eu cá não lhe roubei nada.
– Nem eu deixava – respondeu a mulher a rir.
Em breve terminaram a ceia. Mrs. Radford mantinha-se vigilante na sua cadeira. Paul acendeu um cigarro. Clara foi ao andar de cima, voltando com um pijama que estendeu sobre o guarda-fogo, para arejar e aquecer.
– Olha, já me tinha esquecido completamente deles – disse Mrs. Radford. – Onde é que os foste desencantar?
– A uma das minhas gavetas.
– Hum!... Compraste-o para o Baxter e ele nunca o quis usar, lembras-te? – e riu-se. – Dizia que dormia bem sem calças. – E depois, voltando-se para Paul, confidenciou-lhe: – Era uma coisa qu’ele detestava... as calças do pijama.
O jovem estava sentado a fazer anéis de fumo.
– Bem, cada qual tem os seus gostos – disse, a rir. Seguiu-se uma pequena discussão sobre os méritos do pijama.
– A minha mãe gosta de me ver de pijama – disse Paul. – Diz que pareço mesmo um Pierrot.
– Estas devem servir-lhe – disse Mrs. Radford.
Daí a pouco, Paul olhou de relance para o pequeno relógio colocado sobre a chaminé. Era meia-noite e um quarto.
– Tem graça – disse ele. – Depois do teatro levo horas para adormecer.
– Mas já vão sendo horas – disse Mrs. Radford, levantando a mesa.
– Estás cansada? – perguntou ele a Clara.
– Nem um pouco – respondeu ela, esquivando-se ao olhar dele.
– Apetece-te jogar cribbage? – disse ele.
– Já me esqueci.
– Não faz mal... eu ensino-te outra vez... Podemos jogar, Mrs. Radford? – perguntou Paul.
– Façam como quiserem – disse ela. – Mas já é muito tarde.
– Um joguinho ou dois vão pôr-nos a dormir – respondeu ele.
Clara foi buscar as cartas e sentou-se a dar voltas à aliança enquanto ele as baralhava. Mrs. Radford lavava a loiça na copa. À medida que se ia fazendo tarde, Paul sentia a tensão crescer.
– Quinze dois, quinze quatro, quinze seis, e dois são oito...!
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