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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHOS E AMANTES
FILHOS E AMANTES

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Era ali, naquele momento, que ela se alimentava de vida para toda uma semana. Ele mandou-a copiar o poema Le Balcon, de Baudelaire e, em seguida, leu-o para ela ouvir. A voz dele era suave e acariciante, mas nos crescendos tornava-se brutal. Paul tinha um modo apaixonado e, ao mesmo tempo, amargurado de arreganhar os lábios e mostrar os dentes sempre que as palavras o levavam ao rubro. E assim fazia agora, fazendo sentir a Miriam que ele a estava a espezinhar. Ela nem se atrevia a olhar para ele, mantendo-se sentada e de cabeça baixa. Não entendia por que razão ele se deixava arrebatar por tão tumultuosas fúrias, e isso deixava-a desfeita. Ainda por cima, nem sequer gostava muito de Baudelaire... nem de Verlaine.


«Olha-a, a cantar pelos campos,

Filha solitária das montanhas...»


Isto sim, alimentava-lhe a alma... tal como a «Linda Inês». E também:


«Caía bela a noite, doce e pura,

Em suspiros sagrados e serenos, como freira...»


Estes versos, sim, eram como ela. E ele, ali à sua frente, arrancando da garganta, em grito rouco:


«Tu te rappelleras la beauté dês caresses.»3


O poema terminou e Paul tirou os pães do forno, metendo-os no alguidar, os queimados no fundo e os bons por cima. A carcaça ressequida continuava na copa embrulhada num pano húmido.

– A Mater não precisa de saber até amanhã de manhã – disse ele. – Já não se vai zangar tanto como esta noite.

Miriam foi à estante e viu as cartas e postais que ele tinha recebido, e quais os livros que lá tinha, e tirou um em que ele se mostrara interessado. Depois, Paul desligou o gás e saíram. Paul nem se preocupou em fechar a porta à chave.

Quando voltou já faltava um quarto para as onze. A mãe estava sentada na cadeira de baloiço e Annie num banquinho junto da lareira, com o cabelo a cair-lhe pelas costas abaixo e os cotovelos apoiados nos joelhos, taciturna. Em cima da mesa, a carcaça da discórdia, já desembrulhada. Paul entrou ofegante. Ninguém abriu a boca. A mãe lia a gazeta local. Ele despiu o casaco e foi sentar-se no sofá. A mãe chegou-se para o lado com brusquidão, deixando-o passar. Ninguém abria a boca. Ele já não sabia como havia de estar. Durante alguns minutos, fingiu ler um bocado do jornal que encontrou em cima da mesa. Mas depois disse:

– Esqueci-me daquele pão no forno, mãe.

Nenhuma das mulheres lhe respondeu.

– Bem – continuou ele –, são só dois dinheiros e meio. Se quiser, eu pago.

Amuado, pôs três moedas em cima da mesa e empurrou-as na direcção da mãe. Ela voltou a cabeça para o outro lado. A boca continuava crispada.

– Pois é – disse Annie –, tu nem fazes ideia de como a mãe se sente mal!

E a rapariga continuou carrancuda a olhar para o lume.

– Sente-se mal porquê? – perguntou Paul, no seu tom autoritário.

– Essa agora – disse Annie. – Viu-se aflita para chegar a casa.

Paul olhou com atenção para a mãe. Parecia de facto doente.

– Viu-se aflita para chegar a casa porquê? – perguntou ele, ainda agreste. A irmã não respondeu.

– Vim encontrá-la aqui sentada, branca como a cera – disse Annie, com lágrimas na voz.

– Diga lá porque foi! – insistiu Paul, já de testa franzida e olhos empolgadamente dilatados.

– Era o suficiente para deixar qualquer pessoa doente – disse Mrs. Morel. – Carregar nos braços com as compras todas... a carne, os legumes e as cortinas...

– Para que carregou com tudo? Não era preciso.

– E então quem é que carregava?

– Mandava a Annie ir buscar a carne.

– Claro que eu tinha ido buscar a carne. Mas como é que eu podia adivinhar? Tu andavas a passear com a Miriam, em vez de estares em casa quando a mãe chegou.

– Mas o que é que lhe aconteceu? – perguntou Paul à mãe.

– Deve ser o coração – respondeu ela. De facto, tinha os lábios azulados.

– E já tinha sentido isso alguma vez?

– Já... e até mais de uma vez.

– Então porque não me disse, e porque é que não foi ao médico?

Mrs. Morel mexeu-se na cadeira, irritada com a prelecção.

– Tu nunca reparas em nada – disse Annie. – Só pensas em andar com a Miriam.

– Ah, sim? E tu e o Leonard... não é a mesma coisa?

– Eu cheguei a casa faltava um quarto para as dez.

Seguiram-se uns minutos de silêncio.

– Nunca imaginei que ela te deixasse tão distraído, ao ponto de queimares uma fornada inteira de pão – disse Mrs. Morel com azedume.

– A Beatrice também cá estava.

– Acredito. Mas nós sabemos porque é que o pão se queimou.

– E porque foi? – disse ele intempestivo.

– Porque tu estavas todo entretido com a Miriam – replicou Mrs. Morel acalorada.

– Pois fique sabendo que não foi nada por isso! – ripostou ele, sacudido.

Estava desgostoso e infeliz. Pegou no jornal e começou a ler. Annie, com a blusa já desabotoada e duas longas tranças, foi para cima, para a cama, dando-lhe secamente as boas-noites.

Paul continuou a fingir que estava a ler. Por um lado, sabia que a mãe lhe queria pregar um sermão. Mas, por outro, queria saber o que a pusera naquele estado, e estava preocupado. Por isso, em vez de ir a correr para a cama, como era sua vontade, ficou à espera. Sentia-se a tensão no silêncio. O tiquetaque do relógio soava forte.

– O melhor é ires deitar-te antes de o teu pai chegar – disse Mrs. Morel, com rispidez. – E se quiseres comer alguma coisa, tens de ir buscá-la.

– Não quero nada.

A mãe costumava preparar-lhe qualquer coisa para a ceia às sextas-feiras à noite, que era a noite de luxo dos mineiros. Mas ele estava demasiado irritado para ir buscar a ceia à despensa, e ela sentiu-se insultada.

– Se eu quisesse que fosses a Selby numa sexta-feira à noite, já estou a imaginar a cena – disse Mrs. Morel. – Mas quando é ela a vir buscar-te, nem sabes o que é cansaço. E já nem comes nem bebes.

– Não posso deixá-la voltar sozinha.

– Ah, não podes... E então para que é que ela vem?

– Não sou eu que lhe peço.

– Ela não vinha se tu não a quisesses cá...

– E se eu a quiser...? Hem? – repontou ele.

– Nada a opor, se fosse sensato ou razoável. Mas calcorrear milhas e milhas por cima dum lamaçal e voltar à meia-noite, para quem tem de ir logo pela manhã para Nottingham...

– E, se não tivesse de ir, para si era a mesma coisa.

– Pois era, porque isto não faz sentido nenhum. Ela é assim tão fascinante que tenhas de andar atrás dela para todo o lado? – perguntou Mrs. Morel, com acerado sarcasmo, continuando sentada, com cara de poucos amigos, esfregando o cetim preto do avental em movimentos ritmadamente repetidos. Aquele motu-contínuo quase enlouquecia Paul.

– Eu gosto muito dela – disse ele – mas...

– Gostas então dela! – disse Mrs. Morel, no mesmo tom mordaz. – Pois a mim parece-me que não gostas de mais nada nem de mais ninguém. Para ti, agora, não existe mais ninguém: nem eu, nem a Annie... nada.

– Que disparate, mãe... sabe bem que eu não amo a Miriam... eu... posso garantir-lhe que não a amo... ela não anda de braço dado comigo nem nada, porque eu não quero.

– Então porque é que vais a correr tantas vezes para ao pé dela?

– Porque gosto muito de falar com ela... Nunca disse que não gostava. Mas não a amo.

– E não tens mais ninguém com quem falar?

– Não acerca das coisas de que nós falamos. Há muitas coisas por que a mãe não se interessa e que...

– Que coisas...?

Mrs. Morel estava tão exaltada que Paul começou a gaguejar.

– Ora essa... pintura... livros... A mãe, por exemplo, não gosta de Herbert Spencer.

– Não – foi a resposta concisa. – E tu também não vais gostar, quando tiveres a minha idade.

– Está bem, mas gosto agora... e a Miriam também...

– E como é que sabes – atalhou Mrs. Morel em tom de desafio – que eu não gosto. Já experimentaste perguntar-me?

– Mas eu sei que não gosta, mãe, sabe bem que não lhe interessa discutir se um quadro é ou não decorativo... é-lhe indiferente qual o seu estilo.

– Como sabes que não me interessa... já experimentaste perguntar-me? Alguma vez conversas comigo sobre essas coisas, só para experimentar?

– Mas a mãe sabe bem que para si isso não conta, sabe bem que não.

– Então o que é, diz lá... o que é que conta para mim? – desferiu ela.

Paul franziu a testa, magoado.

– A senhora é velha, mãe, e nós somos novos.

O que ele queria dizer era que os interesses da idade dela não eram idênticos aos da sua. Mas mal acabou a frase percebeu que tinha dito o que não devia.

– Sim, sei muito bem... sou uma velha! E por isso mesmo devo manter-me afastada... já não tenho nada a ver contigo. Tu só me queres para te servir de criada... o resto é com a Miriam.

Ele já não aguentava mais. Instintivamente, apercebeu-se de que ele era toda a vida dela. E, bem vistas as coisas, ela era para ele a coisa mais importante, a única verdade suprema.

– Sabe bem que não é assim, mãe... sabe bem que não é.

O grito dele comoveu-a.

– Pois olha que parece mesmo – disse ela, deixando de certa forma de lado o desespero.

– Não, mãe... na verdade, eu não a amo. Converso com ela... mas é para a nossa casa, para ao pé de si que eu quero vir.

Paul, já sem o colarinho e a gravata, levantou-se para se ir deitar. Quando ia a dar um beijo à mãe, ela passou-lhe os braços em volta do pescoço, escondeu a cara no seu ombro e pôs-se a choramingar, com uma voz dorida, tão pouco habitual nela que o fez crispar-se de agonia.

– Eu já não aguento mais. Uma outra mulher talvez... mas ela não... ela não me daria espaço algum... nem um bocadinho...

E imediatamente sentiu que odiava Miriam amargamente.

– E eu nunca... tu sabes, Paul... eu nunca tive um marido... não um de verdade...

Ele acariciou-lhe os cabelos e os seus lábios afloraram o pescoço dela.

– E ela esforça-se tanto para te afastar de mim... ela não é como as outras raparigas.

– Bem, mãe, eu não a amo – murmurou ele, baixando a cabeça e escondendo os olhos no ombro dela, muito infeliz. A mãe deu-lhe um beijo ardente e longo.

– Meu filho! – disse, com a voz trémula de amor. E ele, sem se aperceber, acariciou-lhe suavemente o rosto.

– Pronto – disse a mãe. – Agora vai deitar-te. Senão amanhã de manhã acordas muito cansado.

Enquanto falava, Mrs. Morel sentiu o marido entrar.

– Vem aí o teu pai... vá, já para a cama... – Subitamente, olhou para o filho quase a medo. – Talvez eu esteja a ser egoísta. Se a queres, meu filho, fica com ela.

A mãe estava a comportar-se de uma forma muito estranha, pensou Paul, beijando-a, ainda a tremer.

– Oh, mãe! – disse ele meigamente.

Morel entrou aos tropeções. Trazia o chapéu tombado sobre o canto do olho. Ao transpor a porta, perdeu o equilíbrio. – Outra vez a fazeres das tuas? – disse ele, acintosamente.

As emoções de Mrs. Morel transformaram-se instantaneamente em ódio por aquele bêbado que viera intrometer-se tão intempestivamente.

– Pelo menos, ele está sóbrio – disse ela.

– Hum... hum...! Hum... hum! – fez ele, cinicamente.

Foi ao corredor e pendurou o chapéu e o casaco. Em seguida, ouviram-no descer os três degraus da despensa. Quando voltou trazia na mão uma fatia de empadão de carne de porco. Era o que Mrs. Morel tinha comprado para o filho.

– Isso não é para ti. Se não me podes dar mais de vinte e cinco xelins, certamente não te vou comprar empadão de carne de porco, para tu te regalares depois de teres enchido a barriga de cerveja.

– O quê?... O quê? – rosnou Morel, a cambalear e, num repente, atirou o empadão para a lareira, num acesso de mau génio e mesquinhez.

Paul pôs-se de pé num salto.

– Deite fora o que é seu! – gritou.

– O quê?... O quê? – berrou Morel de imediato, dando um salto atrás e cerrando os punhos. – Vais ver como elas mordem... meu menino!

– Muito bem! – disse Paul, cinicamente, deitando a cabeça de lado. – Então vamos lá ver...!

O que mais gostaria naquele momento era de poder bater em qualquer coisa, não importava o quê. Morel estava semidobrado, de punhos em riste, pronto a atacar.

O jovem estava de pé, com um sorriso nos lábios.

– Zás! – silvou o pai, desferindo um soco no ar com um gesto largo, rente à cara do filho. Apesar de tão próximo, não se atreveu a tocar-lhe realmente, passando-lhe a uma escassa polegada de distância.

– Isso! – disse Paul, de olhos pregados na boca do pai, onde a todo o momento o seu punho acertaria. Estava louco por dar aquele soco, mas ouviu um vago gemido atrás de si. A mãe estava lívida de morte e com a boca toda roxa. Morel saltitava, preparando novo ataque.

– Pai! – disse Paul, bem alto para lhe chamar a atenção.

Morel parou, assustado.

– Mãe! – gemeu o rapaz. – Mãe!

Ela começou a lutar contra si própria. Os seus olhos muito abertos observavam-no, apesar de não se poder mexer. A pouco e pouco ia voltando a si. O filho deitou-a no sofá e foi a correr buscar um pouco de uísque, de que ela por fim bebeu alguns golinhos. As lágrimas rolavam-lhe pela cara abaixo. Enquanto esteve ajoelhado ao lado da mãe não chorou, mas as lágrimas irromperam logo a seguir. Morel, sentado do outro lado da sala com os cotovelos apoiados nos joelhos, fuzilava o filho com o olhar.

– Qu’é qu’ela tem? – perguntou.

– Desmaiou! – respondeu Paul.

– Hum!

O homem mais velho começou a desapertar os atacadores das botas. Depois, foi aos tombos para o quarto. Tinha travado a sua derradeira luta naquela casa.

Paul estava ajoelhado ao lado da mãe, esfregando-lhe as mãos.

– Não fique assim, mãe... não fique assim! – não se cansava ele de repetir.

– Isto não é nada, meu filho – murmurou ela.

Finalmente, Paul levantou-se, foi buscar um grande bocado de carvão e abafou o borralho. Depois arrumou a sala, colocou tudo nos seus devidos lugares, pôs a mesa para o pequeno-almoço e foi buscar a palmatória da mãe.

– Consegue ir para a cama sozinha, mãe?

– Consigo, sim... Eu vou.

– Durma com a Annie, mãe, com ele não.

– Não... vou dormir na minha cama.

– Não durma com ele, mãe.

– Vou dormir na minha cama.

Mrs. Morel levantou-se e Paul desligou o gás, subindo depois a escada atrás dela, com a vela. Ao chegarem ao patamar, ele beijou-a ternamente.

– Boa noite, mãe.

– Boa noite – respondeu ela.

Ele enfiou a cabeça na almofada, num acesso de desespero. E, no entanto, sentia paz algures nos recônditos da alma, pois continuava a amar a mãe acima de todas as coisas. Era a paz amarga da resignação.

Os esforços do pai no dia seguinte para o cativar foram para ele uma verdadeira humilhação.

E todos tentaram esquecer o incidente.

2 «Esta manhã os pássaros acordaram-me. Ainda não era dia. Mas a janelinha do meu quarto clareou e logo ficou dourada, e todos os pássaros do bosque irromperam num canto vivo e sonoro.
E a aurora estremeceu. Tinha sonhado contigo. Será que também contemplas a aurora?

Os pássaros acordam-me quase todas as manhãs, e há sempre uma nota de terror no grito dos tordos. Está tão claro...» (N. da T.)

3 «Recordarás a beleza das carícias.» (N. da T.)


IX

A DERROTA DE MIRIAM

PAUL sentia-se descontente consigo mesmo e com tudo o que o rodeava. O seu amor mais profundo dedicava-o à mãe. Não podia suportar a sensação de a ter magoado ou de algum modo ferido o seu amor por ela. A Primavera já se anunciava e, com ela, uma batalha entre ele e Miriam. Este ano Paul tinha muitas queixas contra Miriam e ela estava vagamente consciente desse facto. O velho sentimento que experimentara ao rezar, e lhe segredara que teria de se sacrificar a este amor, misturava-se em todas as suas emoções. No fundo, Miriam não acreditava poder algum dia vir a ter Paul para si. Em primeiro lugar, não acreditava em si mesma: duvidava poder vir a ser o que ele exigiria que ela fosse. Por certo nunca se imaginara a viver a seu lado uma vida de eterna felicidade. O futuro prefigurava-lhe tragédia, dor e sacrifício. E, se no sacrifício era orgulhosa, na renúncia ela era forte; mas não confiava em si mesma para suportar a vida do dia-a-dia. Sentia-se preparada para gestos grandiosos e profundos, gestos dignos de tragédia. Não podia era confiar na sua capacidade de lidar com a pequenez do quotidiano.

As férias da Páscoa iniciaram-se num ambiente feliz. Paul mostrava-se franco, como na realidade o era. Contudo, Miriam sentia que algo iria perturbar aquela paz. No domingo à tarde, deteve-se à janela do seu quarto, olhando os carvalhos do bosque, em cuja folhagem se emaranhavam uns ténues raios de luz sob o resplandecente céu da tarde. Rosetas de folhas de madressilva verde-cinza pendiam frente à janela, algumas, pensou, já em botão. Era Primavera, tempo que Miriam amava e temia ao mesmo tempo.

Ouvindo o ranger do portão, ficou na expectativa. Estava um dia cinzento e luminoso. Paul entrou no pátio com a bicicleta, que reluzia à medida que ele andava. Era hábito tocar a campainha e sorrir em direcção à casa. Hoje, porém, caminhava de lábios cerrados, numa atitude fria e cruel que tinha algo de desprezo e indolência. Ela já o conhecia muito bem e, pela expressão penetrante e reservada do seu rosto jovial, sabia dizer o que se passava no seu íntimo. Havia um tal rigor de frieza no modo como colocou a bicicleta no lugar que o coração de Miriam soçobrou.

Desceu ao andar de baixo, nervosa. Vestia uma blusa nova de malha que, achava ela, lhe assentava muito bem. Tinha uma gola alta, debruada com um folho que lhe lembrava a Rainha Mary da Escócia e lhe dava, pensava ela, um ar encantadoramente feminino e muito digno. Com vinte anos, possuía uns seios bem desenvolvidos e formas voluptuosas. O seu rosto era ainda como uma máscara suave e rica, inalterável. Mas os seus olhos, quando os erguia, eram maravilhosos. Ela tinha medo dele. Ele iria reparar na sua blusa nova.

Paul mostrava-se de disposição dura e irónica, e divertia a família com a descrição de um sermão proferido na Capela Metodista Primitiva por um dos mais conhecidos pregadores da seita. Estava sentado à cabeceira da mesa com o seu rosto versátil e os seus olhos, que conseguiam ser tão belos, brilhando ternamente ou dançando risonhos, assumiam várias expressões, numa imitação das diversas pessoas que caricaturava. A sua veia jocosa sempre a magoara – era demasiado próxima da realidade. Paul era demasiado inteligente e cruel e ela sentia que, quando o seu olhar se enchia, como agora, de feroz ódio trocista, ele não poupava ninguém, nem mesmo a sua própria pessoa. Mas Mrs. Leivers enxugava os olhos marejados de lágrimas, de tanto rir, e Mr. Leivers, já desperto da sua sesta dominical, coçava a cabeça divertido. Os três irmãos, sentados em atitudes desleixadas e sonolentas e em mangas de camisa, soltavam uma gargalhada de vez em quando. O que a família mais adorava era, acima de tudo, uma boa caricatura.

Paul não prestou atenção a Miriam. Mais tarde, ela percebeu que ele tinha reparado na sua blusa nova, viu que o artista a aprovara, mas isso não merecera da sua parte o mínimo lampejo de ternura. Estava nervosa e mal conseguia chegar às chávenas de chá nas prateleiras do armário.

Quando os homens saíram para a ordenha, ousou dirigir-se-lhe pessoalmente:

– Vieste atrasado – disse.

– Vim? – perguntou ele.

Por um momento fez-se silêncio.

– Foi difícil vires a pedalar até aqui? – perguntou ela.

– Nem notei.

Ela continuou a pôr a mesa rapidamente. Quando acabou, disse-lhe:

– O chá só é servido dentro de alguns minutos. Queres vir ver os narcisos?

Ele ergueu-se, sem responder. Dirigiram-se para o jardim das traseiras, sob as ameixoeiras em flor. As colinas e o céu estavam límpidos e frios. Tudo parecia lavado, um pouco agreste talvez. Miriam lançou um olhar a Paul. Ele estava pálido e impassível. A ela parecia-lhe uma crueldade que aqueles olhos e sobrancelhas que ela tanto amava pudessem feri-la tanto.

– O vento cansou-te? – perguntou.

Detectou nele uma certa fadiga.

– Não, acho que não – respondeu ele.

– Deve ser cansativo na estrada... o vento sopra tão forte.

– Pelas nuvens podes ver que é vento sudoeste: até me ajudou a chegar aqui.

– Sabes que eu não ando de bicicleta, por isso não entendo o que queres dizer – murmurou ela.

– E é preciso andar de bicicleta para saber isso? – replicou ele.

Miriam pensou que o seu sarcasmo era desnecessário. Mantiveram-se em silêncio. Em redor do relvado maltratado com a erva muito alta situado nas traseiras da casa, havia uma sebe de espinheiros sob a qual os narcisos se erguiam dos seus ninhos de folhas verde-cinza. As faces das flores estavam esverdeadas de frio. Mas, mesmo assim, algumas haviam já florescido e o seu tom dourado agitava-se e resplandecia. Miriam ajoelhou-se diante de um ramalhete, tomou nas mãos um narciso de ar silvestre, voltou para si a sua face dourada e inclinou-se, acariciando-o com a boca, as faces e a fronte. Paul permaneceu de pé, ligeiramente afastado, de mãos nos bolsos, observando-a. Uma após outra, ela virou para ele as faces das flores amarelas, recém-abertas, em atitude suplicante, afagando-as com veemência.

– Não são magníficos? – murmurou.

– Magníficos?... Não será um pouco de mais?... São bonitos!

Ela inclinou-se novamente para as suas flores, perante esta censura à sua atitude de adoração. Ele ficou a vê-la adular e saborear as flores com beijos fervorosos.

– Porque tens de estar sempre a acariciar as coisas? – recriminou-a, irritado.

– Gosto de lhes tocar – replicou ela, magoada.

– Será que não podes gostar das coisas sem teres de te agarrar a elas como se quisesses arrancar-lhes o coração? Porque não tens um pouco mais de domínio ou reserva, ou o que quer que seja?

Ela ergueu para ele um olhar cheio de dor, continuando depois a pressionar os lábios, lentamente, contra uma flor ondulada. O seu aroma, quando o sentiu, era tão mais delicado do que Paul que quase a fez chorar.

– Com a tua adulação, retiras a alma às coisas – disse ele. – Eu nunca seria capaz de uma adulação... Em qualquer circunstância, seria sempre directo.

Paul não sabia o que dizia. Estas coisas saíam-lhe mecanicamente. Ela olhou para ele. O seu corpo parecia uma arma, firme e duro contra ela.

– Tu estás sempre a suplicar às coisas que te amem – disse ele – como se fosses uma pedinte de amor. Até as flores tu tens de acariciar...

Ritmadamente, Miriam agitava e amachucava a flor com a boca, inalando o perfume que daí em diante a faria estremecer sempre que penetrasse nas suas narinas.

– Tu não queres amar... a tua súplica eterna e anormal é seres amada. Não és positiva, és negativa. Absorves, absorves, como se necessitasses de te encher de amor por teres algures uma insuficiência.

Miriam estava aturdida com a crueldade de Paul, e não o escutava. Ele não tinha a mínima ideia do que estava a dizer. Era como se a sua alma inquieta e torturada, inflamada por uma paixão frustrada, fizesse jorrar aquelas palavras como centelhas brotando da electricidade. Ela não entendia nada do que ele dizia. Deixou-se ficar sentada, esmagada sob a sua crueldade e o seu ódio por ela. Nunca entendia as coisas num lampejo. Era assim com tudo, cismava e tornava a cismar.

Depois do chá, ele ficou a conversar com Edgar e os outros irmãos, não prestando atenção a Miriam. Ela, infinitamente infeliz com esta distância procurada, esperou por ele. Por fim, ele cedeu e veio ao seu encontro. Ela estava determinada a descobrir a origem do seu estado de espírito. Para ela, tudo aquilo não passava de um estado de espírito.

– Vamos passear um pouco pelo bosque? – sugeriu, sabendo que ele nunca recusava um pedido directo.

Desceram em direcção à coelheira. A meio do caminho passaram por uma armadilha, uma pequena cerca em forma de ferradura, feita com galhos de abeto entrelaçados, onde se exibiam, como isca, as vísceras de um coelho. Paul lançou-lhe um olhar, franzindo o sobrolho. Ela chamou-lhe a atenção.

– É terrível, não é? – perguntou.

– Não sei! Será pior que os dentes de uma doninha cravados no pescoço de um coelho? Ou uma doninha ou muitos coelhos. Uma das coisas vai ter de desaparecer!

Para Paul estava a ser difícil enfrentar a face amarga da vida. Miriam sentiu pena dele.

– Vamos para dentro – disse Paul. – Não me apetece andar cá fora.

Passaram pela árvore dos lilases, cujos rebentos das folhas cor de bronze principiavam agora a abrir. Apenas um fragmento restava do palheiro, um monumento quadrado e castanho, como um pilar de pedra. No meio, ainda lá perdurava uma pequena meda de feno da última ceifa.

– Sentemo-nos aqui por um minuto – pediu Miriam.

Ele sentou-se, contrariado, apoiando as costas ao sólido muro de feno. Diante deles, estendia-se o anfiteatro de colinas arredondadas, incandescente à luz do crepúsculo, as pequenas quintas brancas destacando-se na paisagem, os prados dourados, os bosques sombrios e contudo luminosos, as copas das árvores sobrepostas a outras copas de árvores, distintas na distância. A tarde clareara e o oriente suave tingia-se agora de um clarão magenta sob o qual a terra permanecia imóvel e pródiga.

– Não é uma beleza? – murmurou ela suavemente.

Mas ele limitou-se a franzir a testa, mal-humorado. Naquele momento, preferia que tudo fosse feio.

Subitamente, um grande cão veio ter com eles em louca correria, de boca escancarada, levantou as patas dianteiras e colocou-as nos ombros do jovem, lambendo-lhe o rosto. Paul recuou, rindo. Bill era um grande alívio para ele. Afastou o cão, mas este voltou, saltitante.

– Sai daqui – ordenou o rapaz. – Vê lá se queres apanhar.

Mas o cão não estava disposto a desistir facilmente. Então, Paul travou um pequena batalha com o animal, arremessando o pobre Bill para longe, apenas conseguindo contudo fazê-lo tropeçar e voltar à carga violentamente, excitadíssimo. Lutaram os dois, o homem rindo contrafeito, o cão todo ele disponibilidade. Miriam observava-os. Havia algo de patético no homem. Como ele desejava ardentemente amar e ser terno! O modo rude como brincava com o cão era realmente adorável. Paul levantou-se, ofegante de felicidade, os olhos castanhos rolando na cara branca, e de novo se deixou cair pesadamente. O animal adorava Paul. O rapaz lançou-lhe um olhar severo.

– Bill, já chega de brincadeira.

Mas o cão deixou-se ficar com as duas pesadas patas, que tremiam de carinho, assentes na sua coxa, mostrando uma língua ro-sada. O rapaz recuou.

– Não – disse. – Não... já chega.

E logo o cão se afastou, contente por variar de divertimento.

Paul continuou a olhar fixamente para as colinas, cuja beleza impassível invejava. Queria sair dali e ir andar de bicicleta com Edgar. No entanto, não tinha coragem de deixar Miriam.

– Porque estás triste? – perguntou ela, submissa.

– Não estou triste, porque havia de estar? – retorquiu ele. – Estou apenas normal.

Ela perguntava-se por que razão ele sempre afirmava estar normal quando se mostrava desagradável.

– Mas... afinal o que se passa? – perguntou, aliciando-o suavemente.

– Nada!

– Não! – murmurou ela.

Ele pegou num pau e começou a golpear a terra.

– É melhor que não digas nada – disse ele.

– Mas eu quero saber – respondeu ela.

Ele riu-se, ressentido.

– Tu queres sempre saber tudo.

– Não és leal para comigo – murmurou ela.

Ele feriu o solo vezes sem conta com o pau afiado, desprendendo pequenos torrões de terra, como se tomado por uma febre de irritação. Delicada e firmemente, ela pousou a mão sobre o seu pulso.

– Não faças isso! – pediu. – Deita isso fora.

Ele atirou o pau para cima das groselheiras e recostou-se. Já estava recomposto.

– Que se passa? – perguntou ela com suavidade.

Ele manteve-se imperturbável. Apenas o seu olhar vivia intensamente, repleto de tormento.

– Sabes – disse por fim, bastante a custo – sabes... era melhor rompermos a nossa ligação.

Era o que ela temia. Subitamente, tudo pareceu escurecer diante dos seus olhos.

– Porquê? – murmurou. – Que aconteceu?

– Não aconteceu nada... só que temos de ver o terreno que pisamos. Não vale a pena...

Ela esperou em silêncio, tristemente, cheia de paciência. Não adiantava ser impaciente com ele. De qualquer modo, ele dir-lhe-ia agora o que o afligia.

– Concordámos em ser amigos – prosseguiu ele, numa voz monótona e aborrecida. – Quantas vezes concordámos em ser amigos! E, no entanto, as coisas não param por aí, nem chegam a nenhum outro lado.

Paul calou-se. Miriam matutava. Que quereria ele dizer? Estava tão cansado. Havia algo que não queria admitir. Contudo, ela devia ser paciente.

– Eu só posso dar-te amizade... é tudo de que sou capaz... é uma falha na minha maneira de ser. As coisas pesam só para um lado... e eu odeio uma balança desequilibrada... vamos acabar com isto.

Havia um fervor de fúria nas suas últimas frases. O que ele queria dizer é que ela o amava mais a ele do que ele a ela. Talvez não conseguisse amá-la. Talvez ela não possuísse o que ele desejava. Esta falta de confiança em si mesma era o fundamento mais profundo da alma de Miriam. Tão profundo que ela não ousava entendê-lo, nem tão-pouco admiti-lo. Talvez lhe faltasse qualquer coisa. Como uma vergonha infinitamente subtil, esse sentimento sempre a fazia recuar. Se assim fosse, ela passaria sem ele. Nunca se permitiria desejá-lo. Limitar-se-ia a observar.

– Mas o que aconteceu? – perguntou.

– Nada... tinha tudo isto guardado dentro de mim... e só saiu agora. Ficamos sempre assim ao aproximarmo-nos da Páscoa.

Paul humilhou-se tão despojadamente que Miriam sentiu pena. Ela, pelo menos, nunca se tinha deixado cair de um modo tão deplorável. No fim de contas, era ele quem saía mais duramente humilhado.

– Que queres fazer? – perguntou ela.

– Bem... acho que não devo vir aqui tantas vezes... só isso. Porque deveria eu monopolizar-te, quando não sou... Bem vês, no que te diz respeito sou muito incompleto...

Ele estava a dizer-lhe que não a amava e, portanto, deveria dar-lhe uma oportunidade com outro homem. Que tolo e cego e vergonhosamente desajeitado ele era! Que lhe importavam a ela os outros homens! Que importância tinham! Mas ele, ah, ela amava a sua alma. Seria ele incompleto em alguma coisa? Talvez fosse.

– Mas eu não entendo – disse ela, com a voz rouca. – Ainda ontem...

A noite tornara-se desagradável e odiosa para ele à medida que a luz do crepúsculo se dissipava. E ela cedeu ao seu sofrimento.

– Eu sei – gritou ele. – Nem nunca entenderás. Nunca acreditarás que eu não posso... não sou fisicamente capaz, tal como não sou capaz de voar como uma cotovia...

– Capaz de quê? – perguntou ela, num murmúrio. Agora tinha medo.

– De te amar.

Paul odiou-a amargamente naquele momento, por fazê-la sofrer tanto. Amá-la! Miriam sabia que ele a amava. Ele pertencia-lhe realmente. Toda a conversa sobre não a amar fisicamente, corporalmente, era uma mera perversidade da parte dele, pois Paul sabia que ela o amava. Ele estava a ser casmurro como uma criança. Ele pertencia-lhe a ela. A sua alma desejava-a. Miriam suspeitou que alguém o tivesse influenciado. Através da sua rigidez, pressentia a estranheza de uma outra influência.

– Que te têm dito em casa? – perguntou.

– Não é nada disso – respondeu ele.

E, nesse momento, ela soube que era precisamente isso, e sentiu um profundo desprezo pela família dele e pela sua vulgaridade. Ignoravam as coisas que valiam realmente a pena.

Nessa noite, não conversaram muito mais. Por fim, ele deixou-a e foi passear de bicicleta com Edgar.

Paul voltara para a mãe, o elo mais forte da sua vida. Quando ele se embrenhava em pensamentos, Miriam quase deixava de existir, como se envolta num sentimento vago e irreal. E mais ninguém contava. Havia contudo um lugar no mundo que permanecia sólido e não se desvanecia na irrealidade: o lugar onde se encontrava a sua mãe. Todos podiam transformar-se em sombras, quase inexistentes para ele, mas não ela. Era como se o eixo ou pólo da sua vida, do qual ele não podia escapar, fosse a sua mãe.

E, da mesma forma, ela esperava por ele. Nele se concentrava agora toda a sua vida. Afinal, a vida que deixara para trás oferecera muito pouco a Mrs. Morel. Ela entendera que a nossa oportunidade para fazer está aqui, e fazer era importante para ela. Paul iria provar que ela tinha razão: iria transformar-se num homem a quem nada poderia derrubar, que iria alterar a face da terra de alguma forma importante. Onde quer que ele fosse, ela sentia que a sua alma ia junto. O que quer que ele fizesse, ela sentia que a sua alma permanecia junto dele, pronta como sempre a entregar-lhe as suas ferramentas. Não podia suportar quando ele estava com Miriam. William estava morto. Ela lutaria para ficar com Paul.

E ele voltou para ela. E na alma dele havia um sentimento de satisfação pelo auto-sacrifício, pois ele era-lhe fiel. Ela amava-o antes de tudo, ele amava-a antes de tudo. E, no entanto, isso não era o suficiente. A sua vida nova e jovem, tão forte e imperiosa, era solicitada por algo mais. Punha-o louco de agitação. Ela percebia isso e desejava amargamente que Miriam fosse uma mulher que pudesse arrancar dele esta nova vida e deixar-lhe a ela as raízes. Paul lutava contra a mãe quase tanto como lutava contra Miriam.

Passou-se uma semana antes que Paul voltasse a Willey Farm. Miriam sofrera muito e receava vê-lo novamente. Poderia ela suportar a ignomínia de ser abandonada por ele? Isso seria apenas superficial e temporário. Ele voltaria. Ela possuía a chave para entrar na sua alma. Mas, entretanto, ele iria torturá-la com a sua luta contra ela. Miriam temia sobretudo isso.

Porém, no domingo a seguir à Páscoa, Paul veio para o chá. Mrs. Leivers ficou contente ao vê-lo. Percebeu que algo o perturbava, que as coisas estavam difíceis para ele. E ele parecia refugiar-se nela para algum conforto. E ela era boa para ele. Fazia-lhe o grande favor de o tratar quase com reverência.

Paul encontrou os rapazes no jardim da frente.

– Estou contente por teres vindo – disse a mãe, olhando-o com os seus olhos castanhos, grandes e sinceros. – Está um dia tão soalheiro. Ia agora mesmo dar um passeio pelos campos pela primeira vez este ano.

Ele sentiu que ela apreciaria a sua companhia, e isso suavizou-o. Foram caminhando, falando de coisas simples, ele gentil e humilde. Quase chorou de gratidão por ela ser deferente para com ele. Sentia-se humilhado.

Ao fundo do campo de trigo, encontraram um ninho de tordos.

– Querem que vos mostre os ovos? – perguntou.

– Sim, por favor! – respondeu Mrs. Leivers. – Parecem um sinal tão real da Primavera e da esperança...

Paul afastou os espinhos e retirou os ovos, colocando-os na palma da mão.

– Estão quentinhos... parece que assustámos a mãe – disse ele.

– Ah, coitadinhos – disse Mrs. Leivers.

Miriam não pôde evitar tocar nos ovos e na mão dele, que, segundo ela, os protegia tão bem.

– É um calor tão estranho! – murmurou, para se aproximar dele.

– É o calor do sangue – retorquiu ele.

Ela viu-o colocar os ovos no seu lugar, com o corpo colado à cerca, o braço avançando lentamente através dos espinhos, a mão cuidadosamente fechada sobre os ovos. Estava concentrado no acto. Vendo-o assim, ela amava-o; ele parecia tão simples e auto-suficiente. E ela não conseguia alcançá-lo.

Durante o chá, Paul discutiu o sermão de Sexta-Feira Santa com Mrs. Leivers. A caminhada até à Capela era já muito longa para a senhora, e ela quase preferia ouvir o sermão através de Paul, acrescido dos seus comentários e argumentos. Os outros também escutavam. Até os rapazes, uns latagões rudes, se mostravam atentos e interessados, tirando uma lição do discurso.

– Ele pegou no capítulo que diz: «Aquele que acreditou na nossa história...» ... eu gosto desta passagem.

Os grandes olhos castanhos de Mrs. Leivers brilharam com o pensamento.

– E estragou-o todo... arruinou-o.

Subitamente, lançou um olhar a Miriam, para que ela estivesse do seu lado naquele momento.

– E ele disse...

Paul, sério e indignado, repetiu o sermão. Era em alturas como esta que Miriam o amava. Ao vê-lo assim, enchia-se de profunda satisfação. Amava-o do mesmo modo que Maria amou na Betânia. Só quando irrompia o homem nele existente, se instalava a guerra entre ambos. E qual era mais forte nele, o Discípulo ou o Homem? Ela acreditava que fosse o primeiro, e através do primeiro o retinha.

Enquanto ela levantava a mesa do chá, ele disse-lhe, num tom bastante forçado:

– Quando acabares, vamos dar uma volta.

Na cozinha, ajudou-a a limpar a louça. Ela tremia ligeiramente de apreensão. Mas sabia que naquela noite não tinha de temer o ressentimento dele.

– Levamos um livro? – perguntou Miriam, pegando no seu favorito, O Tesouro Dourado, de Palgrave. Os melhores momentos que passavam juntos aconteciam quando liam poesia.

– Esse não – respondeu ele.

O coração dela apertou-se. Permaneceu junto à prateleira dos livros, hesitante. Ele escolheu Tartarin de Tarascon. Sentaram-se novamente no monte de feno, na base da meda. Paul leu algumas páginas, mas sem sentimento. De novo o cão apareceu, correndo, para repetir a brincadeira anterior. Enterrou o focinho no peito do jovem. Paul acariciou-lhe a orelha de fugida. Depois, afastou-o.

– Vai-te embora, Bill – ordenou. – Não te quero aqui.

Bill retirou-se furtivamente, e Miriam perguntou-se, temerosa, o que estaria para vir. Algo no silêncio dele a fez paralisar de apreensão. Não eram as suas fúrias, mas as suas resoluções calmas que ela receava.

Voltando o rosto um pouco de lado, para que ela não pudesse vê-lo, Paul começou, falando lenta e penosamente:

– Achas que... se eu não viesse cá tantas vezes... podias gostar de outra pessoa... de outro homem?

Então era isso que ainda o incomodava.

– Mas eu não conheço outros homens... porque perguntas? – replicou ela, num tom surdo que deveria ter soado aos ouvidos dele como uma censura.

– Ora – disse ele abruptamente – porque eles dizem que eu não tenho o direito de vir aqui... sem que tenhamos intenção de casar...

Miriam estava indignada por alguém andar a forçar as coisas entre eles. Ficara furiosa com o próprio pai quando este, rindo, comentara com Paul que sabia por que razão ele os visitava tantas vezes.

– Quem diz isso? – perguntou ela, tentando perceber se a sua própria família tinha algo a ver com o assunto. Mas não tinha.

– A minha mãe... e os outros. Dizem que, assim, todos me consideram comprometido, e que eu também me devo considerar como tal, pois não é justo para ti. E eu tentei pensar melhor... e acho que não te amo como um homem deve amar a sua mulher. Que me dizes tu a isto?

Miriam baixou a cabeça, irritada. Irritava-a ter de travar aquela discussão. As pessoas deviam deixá-los em paz.

– Não sei – murmurou ela.

– Achas que nos amamos o suficiente para nos casarmos? – perguntou ele, definitivamente. Ela estremeceu.

– Não – respondeu, sinceramente. – Não acho... somos demasiado novos.

– Eu pensei – prosseguiu ele, infeliz – que talvez tu, com a intensidade que pões nas coisas, me tivesses dado mais... do que alguma vez eu te poderia compensar. E, mesmo assim, se achares que é melhor, ficamos noivos.

Naquele momento, Miriam queria chorar. Estava furiosa também. Ele era sempre tão infantil que as pessoas faziam dele o que queriam.

– Não, não acho – disse firmemente.

Paul reflectiu um minuto.

– Sabes – retomou –, para mim... eu acho que uma pessoa nunca poderá monopolizar-me, ser tudo para mim. Eu acho que isso nunca vai acontecer.

Miriam não tinha considerado este ponto.

– Não – murmurou. Após uma pausa, ela ergueu para ele os seus olhos escuros, faiscantes.

– Isto tem a ver com a tua mãe – disse ela. – Eu sei que ela nunca gostou de mim.

– Não, não é isso – apressou-se ele a dizer. – Desta vez foi para teu bem que ela falou, e só disse que, se eu continuasse, devia considerar-me comprometido. – Seguiu-se um silêncio. – E, se eu te pedir para continuares a visitar-me sempre, não dizes que não?

Miriam não respondeu. Estava agora muito zangada.

– Bem, então que fazemos? – perguntou secamente. – Assim sendo, é melhor desistir das aulas de francês. Agora que estava a começar a dar-me bem... Mas acho que posso continuar sozinha.

– Não vejo necessidade disso – considerou ele. – É claro que posso dar-te uma aula de francês.

– Bom, e há ainda as noites de domingo. Não vou deixar de ir à capela, porque gosto de ir e porque a isso se resume toda a minha vida social. Mas não precisas de ir comigo. Posso ir sozinha.

– Está bem – respondeu ele, algo surpreendido. – Mas, se eu pedir ao Edgar, ele pode vir connosco, e assim as pessoas já não podem dizer nada.

Fez-se silêncio. Afinal, ela não perderia muito. Apesar de todo o falatório em casa dele, a diferença não seria muita. Ela só desejava que eles não interferissem.

– E tu não vais pensar de mais no assunto e deixar que te perturbe, pois não? – perguntou ele.

– Oh, claro que não – retorquiu Miriam, sem se dignar olhar para ele.

Paul ficou em silêncio. Ela achava-o instável, sem um objectivo fixo, nenhuma âncora de certeza a segurá-lo.

– Porque – continuou ele – um homem pega na bicicleta... e vai para o trabalho... e faz toda a espécie de coisas. Mas uma mulher fica a cismar.

– Não, eu não vou ficar a cismar – assegurou-lhe Miriam, e estava a ser sincera.

O tempo arrefecera bastante. Juntos, encaminharam-se para casa.

– Que pálido está o Paul! – exclamou Mrs. Leivers. – Miriam, não devias tê-lo deixado sentar-se lá fora. Achas que te constipaste, Paul?

– Oh, não! – E riu-se.

Mas, na verdade, sentia-se fatigado. O conflito interior esgotara-o. Agora, Miriam sentia pena dele. Mas, muito cedo, ainda antes das nove horas, ele levantou-se para se retirar.

– Não te vais já embora, pois não? – perguntou Mrs. Leivers, ansiosa.

– Vou, sim – retorquiu ele. – Disse em casa que chegava cedo.

Paul estava muito embaraçado.

– Mas ainda é cedo – disse Mr. Leivers.

Miriam sentou-se na cadeira de baloiço e não falou. Ele hesitou, esperando que ela se erguesse para o acompanhar ao celeiro, como habitualmente, quando fosse buscar a bicicleta. Ela, porém, deixou-se ficar onde estava. Paul sentia-se perdido.

– Bem, então... boa noite a todos! – balbuciou.

Miriam deu-lhe as boas-noites, tal como os restantes. Mas, quando ia a passar diante da janela, ele olhou para dentro. Ela viu-o pálido, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas de um modo que se tornara constante nele, e o olhar ensombrado pelo sofrimento.

Ergueu-se então e foi até à porta dizer-lhe adeus, quando ele passou pelo portão. Paul pedalou lentamente sob a rama dos pinheiros, sentindo-se um cobarde e um patife miserável. A bicicleta rolava pelas colinas abaixo, à deriva. Chegou a pensar que seria um alívio partir o pescoço.

Dois dias depois, enviou-lhe um livro e um bilhete, incitando-a a ler e a manter-se ocupada.

E, contudo, nessa altura ele estava diferente. Tinha avaliado bem a situação. Sabia que não queria casar-se com ela. As razões pelas quais a amava não eram razões para se casar com ela; isso es-tava decidido. E a mãe repetira-lhe vezes sem conta que a sua actual situação não podia durar para sempre, e era bastante injusta para a rapariga. Por isso, Paul tentava agora manter a maior distância possível entre os dois. Era duro e frio para ela. Miriam ressentia-se disso amargamente, culpava a mãe dele, e esperava. Sabia que Paul não podia deixá-la sozinha. Mas ele parecia querer por força erguer muros entre eles, ele e ela, atrás dos quais pudesse refugiar-se, longe dela. Miriam sofria terrivelmente.

Durante esse tempo, Paul dedicou toda a sua amizade a Edgar. Gostava tanto da família, gostava tanto da quinta, que ela era para ele o lugar mais querido ao cimo da terra. Nem mesmo o seu lar era tão agradável. A sua mãe sim. Mas teria sido igualmente feliz com aquela mãe em qualquer outro lugar. Mas Paul amava Willey Farm apaixonadamente. Adorava a cozinha pequena e aconchegada, repisada pelas botas dos homens, e onde o cão dormia com um olho aberto e outro fechado, com medo de ser pisado; onde, à noite, a lamparina balouçava sobre a mesa e tudo ficava muito silencioso. Amava a saleta de Miriam, comprida e de tecto baixo, com a sua atmosfera romântica, as suas flores, os seus livros, o piano de pau-rosa. Amava os jardins e os edifícios que, nos limites nus dos campos, se erguiam com os seus telhados escarlate, arrastando-se em direcção ao bosque como se em busca de aconchego, onde a região selvagem cavava um vale profundo, para logo subir as encostas por cultivar do lado de lá. O simples facto de estar ali era um prazer e uma alegria para ele. Amava Mrs. Leivers, com a sua simplicidade e singular cinismo; amava Mr. Leivers, tão caloroso e jovial, e tão afável; amava Edgar, cujo olhar se iluminava quando ele chegava, e os outros rapazes e as crianças, e ainda Bill, e até a porca chamada Circe e o galo indiano de combate chamado Tippoo. Amava tudo isto além de Miriam. Não podia desistir de tudo.

Por isso, continuava a aparecer frequentemente, mas andava geralmente com Edgar. Toda a família, incluindo o pai, apenas se reunia à noite para os jogos e charadas. E, mais tarde, Miriam reunia-os a todos e liam Macbeth em edição de bolso, interpretando os vários papéis. Era muito divertido. Miriam ficava contente, Mrs. Leivers ficava contente e Mr. Leivers divertia-se. Depois, todos juntos, aprendiam a solfejar canções, cantando em círculo em redor da lareira. Mas agora, Paul raramente ficava a sós com Miriam. E ela esperava. Quando ela, Edgar e Paul regressavam a casa vindos da Capela ou do grémio literário de Bestwood, ela sabia que a conversa dele, tão apaixonada e tão pouco ortodoxa para aqueles dias, lhe era dirigida. Contudo, invejava Edgar e as suas corridas de bicicleta com Paul, as suas noites de sexta-feira, os seus dias de labuta conjunta nos campos. Para ela, as noites de sexta-feira e as aulas de francês tinham acabado. Estava quase sempre sozinha, vagueando e meditando pelo bosque, lendo, estudando, sonhando, esperando. E ele escrevia-lhe com frequência.

Num domingo à noite, conseguiram reatar a velha e rara harmonia. Edgar ficara com Mrs. Morel para a comunhão. Queria saber como era. Por isso, Paul e Miriam voltaram sozinhos para casa dele. Ele encontrava-se novamente mais ou menos sob o seu feitiço. Como era hábito, discutiram o sermão. Ele caminhava agora a passos largos para o agnosticismo, mas era um agnosticismo tão religioso que Miriam não sofria muito. Estavam na fase da Vie de Jésus de Renan. Miriam era a eira onde Paul debulhava todas as suas crenças. Enquanto repisava as suas ideias na alma dela, a verdade brotava dele. Só ela era a sua eira. Só ela o ajudava no sentido da plena realização. Quase impassível, ela submetia-se aos seus argumentos e interpretações. E, por causa dela, ele gradualmente compreendia, de algum modo, onde estava errado. E o que ele compreendia, ela compreendia. Miriam sentia que Paul não podia viver sem ela.

Chegaram à casa silenciosa. Ele tirou a chave da janela da cozinha e entraram. Durante todo o tempo, ele não interrompeu a discussão. Acendeu o gás, ateou o fogo e trouxe-lhe alguns biscoitos da despensa. Ela sentou-se no sofá, em silêncio, com um prato sobre os joelhos. Trazia um grande chapéu branco enfeitado com flores cor-de-rosa. Era um chapéu barato, mas ele gostava. Sob o chapéu, o rosto dela estava estático e pensativo, castanho-dourado e corado. Como sempre, as orelhas estavam ocultas sob os seus caracóis curtos. Ela observava-o.

Sempre gostara dele aos domingos. Nesses dias, ele usava um fato escuro que evidenciava todos os movimentos do seu corpo. Havia algo de limpo e fresco no seu ar. Paul prosseguiu o seu raciocínio dirigido a ela. De repente, pegou na Bíblia. Miriam gostou do modo como ele a alcançou, tão determinado, directo ao objectivo. Voltou as páginas rapidamente e leu-lhe um capítulo de S. João. Enquanto lia, absorto, sentado no cadeirão e apenas a sua voz pensava, ela sentia que ele estava a usá-la inconscientemente, como um homem usa as suas ferramentas em qualquer trabalho que o absorve. Adorava essa sensação. E a ânsia na sua voz era como a tentativa de alcançar algo, e era como se ela fosse o modo de o conseguir. Miriam recostou-se no sofá, longe dele, sentindo-se, todavia, o próprio instrumento que a mão dele segurava, o que lhe dava um indescritível prazer.

Pouco a pouco, a voz tornou-se hesitante e Paul ficou constrangido. E quando chegou ao versículo: «Uma mulher, quando está em trabalho de parto, sofre porque a sua hora chegou», omitiu-o. Miriam sentira o seu constrangimento a aumentar. Estremeceu quando as bem conhecidas palavras não foram proferidas. Paul continuou a ler, mas ela já não o escutava. Um sentimento de pesar e vergonha fê-la vergar a cabeça. Seis meses atrás, ele teria lido tudo naturalmente. Agora, abria-se uma brecha na relação entre os dois. Agora, ela sentia haver algo de realmente hostil entre eles, algo de que ambos se envergonhavam.

Miriam comeu o bolo mecanicamente. Ele tentou prosseguir, desenvolvendo o seu argumento, mas não conseguiu recuperar o tom certo. Edgar chegou pouco depois. Mrs. Morel tinha ido a casa de uma amiga. Os três saíram rumo a Willey Farm.

Miriam matutava sobre o afastamento dele em relação a ela. Havia algo mais que ele desejava. Paul não podia estar satisfeito, não podia dar-lhe paz. Agora haveria sempre entre eles lugar para o conflito. Ela queria pô-lo à prova. Acreditava que a maior necessidade na vida dele era ela. Se conseguisse prová-lo, tanto a si mesma como a ele, tudo o resto poderia desaparecer, e ela poderia simplesmente confiar no futuro.

Assim, em Maio, pediu-lhe para vir a Willey Farm visitar Mrs. Dawes. Havia algo que Paul procurava ardentemente. Sempre que se falava de Clara Dawes, Miriam via-o agitar-se e ficar ligeiramente irritado. Afirmou que não simpatizava com ela. Contudo, estava ansioso por saber coisas a seu respeito. Bom, ele tinha de ser posto à prova. Ela acreditava que havia nele ânsias de coisas superiores, e inferiores, e que o desejo pelas superiores venceria. De qualquer forma, deveria tentar. Miriam, porém, esqueceu-se de que os conceitos de «superior» e «inferior» eram arbitrários.

Paul estava bastante entusiasmado com a ideia de se encontrar com Clara em Willey Farm. Mrs. Dawes veio passar o dia. A sua pesada cabeleira castanho-escura estava enrolada ao alto da cabeça. Envergava uma blusa branca e uma saia azul-marinho e, de algum modo, a sua presença parecia tornar as coisas vulgares e insignificantes. Quando se encontrava por perto, a cozinha parecia ao mesmo tempo pequena e imperfeita. A bela saleta de Miriam, com a sua luz crepuscular, parecia estúpida e sem graça. Toda a família Leiver se eclipsava como velas. Eles achavam-na um pouco difícil de suportar. No entanto, ela era perfeitamente amistosa, mas indiferente e um pouco dura.

Paul só chegou da parte da tarde. Mas veio cedo. Enquanto descia da bicicleta, Miriam viu-o olhar em volta da casa, ansioso. Ficaria desapontado se a tão esperada visita não tivesse vindo. Miriam saiu ao seu encontro, baixando a cabeça devido à intensidade do sol. As abecedárias brotavam agora, encarnadas, da verde sombra fria das suas folhas. A rapariga esperou-o, de cabelo escuro, contente por vê-lo.

– A Clara não veio? – perguntou Paul.

– Veio – replicou ela, no seu timbre musical. – Está a ler.

Ele empurrou a bicicleta até ao celeiro. Pusera uma bonita gravata, na qual tinha muito orgulho, e meias a condizer.

– Chegou esta manhã? – perguntou.

– Sim – respondeu Miriam enquanto caminhava a seu lado. – Lembraste-te de trazer aquela carta do homem do Liberty?

– Oh, que chatice, não! – disse ele. – Mas podes atazanar-me até que a traga.

– Não gosto de te atazanar.

– Mas não te acanhes. E ela está mais simpática? – continuou.

– Sabes que eu sempre a achei bastante simpática.

Paul ficou em silêncio. Era evidente que a sua ânsia em chegar cedo naquele dia se devia à recém-chegada. Miriam já começara a sofrer. Encaminharam-se para casa lado a lado. Paul retirou as molas das calças, mas era muito preguiçoso para escovar o pó dos sapatos, apesar de ter requintado nas meias e na gravata.

Clara estava sentada na saleta fresca, a ler. Paul reparou na sua nuca branca e no delicado cabelo repuxado. Ela ergueu-se e olhou para ele com indiferença. Para o cumprimentar, levantou o braço de um modo que parecia, ao mesmo tempo, mantê-lo à distância e, no entanto, acenar-lhe com alguma coisa. Ele notou a forma como os seus seios inchavam dentro da blusa, e como o ombro se curvava deliciosamente sob a fina musselina no cimo do seu braço.

– Escolheste um lindo dia – disse ele.

– É... aconteceu – respondeu ela.

– É verdade – continuou ele. – Ainda bem.

Ela sentou-se, não lhe agradecendo a amabilidade.

– Que fizeste toda a manhã? – perguntou Paul, dirigindo-se a Miriam.

– Bem – disse Miriam, tossindo roucamente –, a Clara só chegou com o pai... e, por isso, não está cá há muito tempo.

Clara sentara-se encostada à mesa, mantendo-se distante. Ele notou que as suas mãos eram grandes, mas bem cuidadas. A pele parecia quase grosseira, opaca e branca, com finos pêlos dourados. Ela não se importava que ele observasse as suas mãos. Tinha intenção de o desprezar. O seu braço opulento estava negligentemente pousado sobre a mesa. A sua boca fechava-se como se estivesse ofendida, e o seu rosto mantinha-se ligeiramente desviado.

– Estiveste presente na reunião da Margaret Bonford na outra noite – disse-lhe ele. Miriam desconhecia este Paul cortês. Clara olhou-o de relance.

– Estive, sim – respondeu.

– Ora – perguntou Miriam – como é que sabes?

– Eu entrei por alguns minutos até o comboio chegar – explicou ele.

Clara desviou novamente o rosto, com uma expressão desdenhosa.

– Acho-a uma mulherzinha adorável – comentou Paul.

– A Margaret Bonford! – exclamou Clara. – Ela é muito mais esperta que a maioria dos homens.

– Bem, eu não disse que não era – disse ele, depreciativamente. – Ela é adorável por tudo isso.

– E é claro que é só isso que tem importância – disse Clara, com uma expressão fulminante.

Ele coçou a cabeça, meio perplexo, meio aborrecido.

– Acho que importa mais do que a inteligência dela – retorquiu Paul – que, afinal, nunca a levaria ao Céu.

– Não é o Céu que ela pretende... é o seu justo quinhão na terra – retorquiu Clara. Falava como se Paul fosse responsável por qualquer privação de que Miss Bonford sofresse.

– Bem – disse ele –, eu achei-a calorosa e extraordinariamente agradável... mas demasiado frágil. Só desejei que ela estivesse confortavelmente em paz...

– ... remendando as peúgas do marido – interrompeu Clara, sarcasticamente.

– Estou certo de que não se importaria de remendar até mesmo as minhas peúgas – afirmou ele. – E tenho a certeza de que o faria até muito bem. Tal como eu não me importaria de lhe engraxar as botas, se ela o desejasse.

Mas Clara recusou-se a dar troco a este tipo de comentário. Paul conversou com Miriam durante algum tempo. A outra mulher permaneceu afastada.

– Bem – disse ele –, acho que vou procurar o Edgar. Ele anda no campo?

– Acho que foi buscar um carregamento de carvão – respondeu Miriam. – Deve vir directamente para casa.

– Sendo assim – disse Paul –, vou ao encontro dele.

Miriam não ousou propor nenhum programa que envolvesse os três. Ele levantou-se e deixou-as.

No caminho de cima, onde a giesta despontava, Paul viu Edgar caminhando preguiçosamente ao lado da égua, que acenava a testa estrelada de branco enquanto arrastava o ruidoso carregamento de carvão. O rosto do jovem lavrador iluminou-se quando avistou o amigo. As suas roupas eram velhas e já bastante coçadas, mas caminhava com um orgulho considerável.

– Viva! – cumprimentou ele, vendo Paul sem chapéu. – Onde vais?

– Vim ter contigo. Não suporto a «Nunca jamais».

Os dentes de Edgar brilharam numa gargalhada divertida.

– Quem é a «Nunca jamais»? – perguntou.

– Aquela senhora – Mrs. Dawes – devia chamar-se Mrs. Corvo, aquele que disse «Nunca jamais».

Edgar riu com satisfação.

– Não gostas dela? – perguntou.

– Não morro de amores – respondeu Paul. – Porquê, tu gostas?

– Não! – A resposta veio com profunda convicção. – Não! – Edgar franziu os lábios. – Não posso dizer que seja muito o meu estilo. – Meditou um pouco. Depois: – Mas porque lhe chamas «Nunca jamais»? – perguntou.

– Bem – explicou Paul. – Se ela olha para um homem, diz arrogantemente «Nunca jamais», se se olha no espelho, diz desdenhosamente «Nunca jamais», e se pensa duas vezes, di-lo com nojo, e se olha em frente, di-lo cinicamente...

Edgar considerou o discurso de Paul, não conseguindo entendê-lo muito bem, e disse, rindo:

– Achas que ela odeia os homens?

– Ela acha que sim – retorquiu Paul.

– Mas tu não achas que assim seja?

– Não – respondeu Paul.

– Então ela não foi simpática contigo?

– Consegues imaginá-la a ser simpática com alguém? – perguntou o jovem.

Edgar riu-se. Juntos, descarregaram o carvão no pátio. Paul estava bastante contrafeito pois sabia que Clara o podia ver, se olhasse pela janela. Mas não olhou.

Nas tardes de sábado, os cavalos eram escovados e tratados. Paul e Edgar trabalharam juntos, espirrando com o pó proveniente do pêlo de Jimmy e Flower.

– Sabes alguma canção nova para me ensinar? – perguntou Edgar.

Ele continuava a trabalhar sem parar. Quando se baixava, deixava a descoberto a parte posterior do pescoço, encarniçada do sol, e os dedos que seguravam a escova eram taludos. Paul observava-o de vez em quando.

– Mary Morrison? – sugeriu o mais novo.

Edgar concordou. Era dono de uma bela voz de tenor e adorava aprender todas as canções que o amigo lhe ensinava para poder cantar enquanto conduzia a carroça. Paul possuía uma voz de barítono bastante sofrível, mas tinha bom ouvido. No entanto, cantou baixinho, com medo de Clara. Edgar repetiu o verso na sua voz límpida de tenor. Por vezes, ambos interrompiam a cantoria para espirrar e, primeiro um e depois o outro, insultarem o cavalo.

Miriam estava impaciente com os homens. Era preciso tão pouco para os divertir – até Paul. Achava pouco natural nele que pudesse ficar tão absorvido numa trivialidade.

Era hora do chá quando acabaram.

– Que canção era aquela? – perguntou Miriam.

Edgar informou-a. A conversa virou para o canto.

– Passámos momentos tão agradáveis – disse Miriam a Clara.

Mrs. Dawes tomou o seu chá devagar, com dignidade. Sempre que os homens estavam presentes, ela mostrava-se distante.

– Gostas de ouvir cantar? – perguntou-lhe Miriam.

– Se a voz for boa – disse ela.

Paul corou, naturalmente.

– Queres tu dizer, se a voz for de excepção e educada? – disse ele.

– Acho que uma voz precisa de ser educada para cantar alguma coisa que se oiça – disse Clara.

– Já agora, também podes dizer que as pessoas deviam educar a voz antes de falarem – replicou ele. – Francamente, a maior parte das pessoas canta para seu próprio prazer.

– E, quem sabe, para desprazer dos outros.

– Nesse caso, os outros que tapem os ouvidos – retorquiu Paul.

Os rapazes desataram a rir. Depois, fez-se silêncio. Ele corou violentamente e tomou o chá calado.

A conversa voltou à questão de se o salário das mulheres deveria ser igual ao dos homens. Mrs. Leivers sustentava que os homens tinham famílias a manter; Clara afirmava que trabalho igual teria de significar salário igual, para homens ou mulheres. Mr. Leivers estava inclinado a concordar com ela. O que quer que Mrs. Dawes tivesse dito, Paul teria tomado uma posição contrária à dela. Como tal, argumentou que uma mulher era apenas um acessório no mercado de trabalho e que, na maioria dos casos, não passava de uma coisa transitória, sustentando-se apenas por um ou dois anos. Clara avançou o número de mulheres que sustentavam pai, mãe, irmãs, etc.

– E quase todos os homens do mundo, acima dos trinta anos, sustentam mulher e filhos – e, regra geral, as ditas mulheres não são assalariadas – retorquiu ele.

– Eu penso, meu amigo – disse Clara muito friamente –, que já antes encontrei o teu tipo de pessoa: o jovem que pensa que sabe tudo.

– E tu és do tipo da jovem que pensa que eu não sei nada – volveu ele.

– Oh, sabes sim... sabes como te fazeres ouvir – disse ela.

Paul estava furioso. De repente, rebentou numa gargalhada.

– Isto parece mais uma reunião de sufragistas contigo no estrado a discursar – disse ele.

Clara corou até à raiz dos cabelos.

– Porque terei eu de responder pelos «Homens», quando afinal sou apenas um deles... – continuou Paul.

– Como se não fosse já suficiente – gracejou Edgar.

– E assim – retomou Paul – sou responsabilizado por todos os pecados da história de Inglaterra, desde a Rainha Boadisca até à Canção da Camisa. Não é justo. Gostava que o Homem tivesse o direito de existir na sociedade moderna... num qualquer canto onde pudesse repousar a cabeça.

– Bem – gracejou Mrs. Leivers –, no final de contas, o lugar do homem continuará a ser o mesmo enquanto formos feitos como somos.

Mas este gracejo foi demasiado subtil para todos, à excepção de Clara, que estava indignadíssima.

Após o chá, quando todos os homens, à excepção de Paul, se retiraram, Mrs. Leivers perguntou a Clara:

– E achas a vida mais feliz agora?

– Infinitamente.

– Então estás satisfeita?

– Desde que possa ser livre e independente.

– E não sentes falta de nada na tua vida? – quis saber Mrs. Leivers, delicadamente.

– Ultrapassei isso tudo.

Paul sentiu-se desconfortável perante este discurso, e levantou-se:

– Vais acabar por descobrir que tropeças constantemente nas coisas que deixaste para trás – disse ele. Depois saiu em direcção aos estábulos. Achava que tinha sido espirituoso e o seu orgulho masculino estava radiante. Pôs-se a assobiar enquanto descia o carreiro de ladrilhos.

Miriam veio procurá-lo pouco depois para saber se gostaria de as acompanhar, a Clara e a ela, num passeio. Partiram em direcção à quinta de Strelley Mill. Enquanto caminhavam ao longo da ribeira, pela margem do Willey Water, olhando através do arvoredo para a orla do bosque, onde pequeninas flores cor-de-rosa brilhavam sob uns poucos raios de sol, avistaram, para lá dos troncos das árvores e das ralas aveleiras, um homem conduzindo um grande cavalo baio pelos barrancos. O animal, enorme e cor de fogo, parecia dançar romanticamente através do verde-escuro das aveleiras até onde o ar era sombrio como o passado, por entre as campainhas emurchecidas que podiam ter florido para Deirdre ou Isolda.

Os três estacaram, encantados.

– Que prazer ser cavaleiro – disse ele – e ter aqui um pavilhão.

– E ter-nos a nós fechadas em segurança? – retorquiu Clara.

– Sim – respondeu ele –, entoando melodias com as vossas amas, entregues aos vossos bordados. Eu transportaria o vosso estandarte branco, verde e púrpura, e teria gravado no brasão do meu escudo a sigla das sufragistas, por baixo de uma mulher enfurecida...

– Não tenho qualquer dúvida – disse Clara – que muito mais depressa lutarias por uma mulher do que a deixarias lutar por si mesma.

– E lutaria mesmo! Quando a mulher luta por si mesma parece um cão diante de um espelho, enraivecido pela sua própria sombra.

– E tu és o espelho? – perguntou ela, com um franzir de lábios.

– Ou a sombra – replicou ele.

– Temo – disse ela – que sejas perigosamente inteligente.

– Bem, deixo-te a ti a tarefa de seres boazinha – retorquiu ele, rindo. – Sê boazinha, gentil donzela, e deixai-me ser inteligente.

Mas Clara cansou-se da irreverência de Paul. Subitamente, ao olhar para ela, ele viu que a expressão de superioridade que emanava do seu rosto era infelicidade e não desprezo. O coração dele enterneceu-se por todos. Voltou-se para Miriam, a quem até então negligenciara, e foi gentil com ela.

Ao aproximarem-se da orla do bosque, encontraram Limb, um homem trigueiro e franzino, de quarenta anos, rendeiro de Strelley Mill, que ele dirigia como uma quinta dedicada à pecuária. Segurava as rédeas do poderoso garanhão displicentemente, como se estivesse cansado. Os três recuaram para o deixarem passar por cima das pedras que atravessavam o primeiro regato. Paul admirou-se pelo facto de um animal tão grande caminhar sobre pedras tão escorregadias com inesgotável vigor. Limb estacou diante deles.

– Diga ao seu pai, Miss Leivers – disse ele, numa voz sibilante, pouco vulgar –, que, há três dias, as suas crias novas partiram aquela vedação do fundo e fugiram.

– Qual? – perguntou Miriam, trémula.

O grande cavalo resfolegava pesadamente, agitando os flancos encarniçados e olhando-os desconfiado, com os seus olhos grandes, maravilhosos, mantendo a cabeça baixa e a crina pendente.

– Venham comigo – respondeu Limb – qu’eu amostro-lhes.

O homem e o garanhão seguiram à frente. O cavalo dançava de lado, agitando o topete branco e parecendo assustado, como se sentisse que estava no meio do regato.

– Nada de bailaricos – disse o homem ao animal, afectuosamente.

O cavalo galgou a margem em pequenos saltos e chapinhou delicadamente entrando no segundo regato. Clara, caminhando numa espécie de abandono amuado, olhava meio fascinada, meio desdenhosa. Limb parou e apontou para uma vedação sob uns salgueiros.

– Ali, tá a ver por onde eles passaram? – disse ele. – Os meus homens trouxeram-nos de volta três vezes.

– Sim – balbuciou Miriam, corando como se a culpa fosse sua.

– Querem entrar? – convidou o homem.

– Não obrigado... mas gostaríamos de ir até ao lago.

– Se quiserem – disse ele.

O cavalo relinchou de satisfação por se ver tão próximo de casa.

– Está todo contente por estar de volta – comentou Clara, que estava interessada na criatura.

– Pois está... Hoje teve uma jornada muito cheia.

Atravessaram o portão e viram aproximar-se deles, vinda da casa grande da quinta, uma mulher morena e de baixa estatura, aparentando uma natureza emotiva e cerca de trinta e cinco anos. Tinha o cabelo já um pouco tingido de grisalho e os olhos pareciam selvagens. Avançava de mãos atrás das costas. O seu irmão continuou em frente. Ao vê-la, o grande garanhão relinchou de novo. Ela aproximou-se, excitada.

– Já estás em casa outra vez, meu rapaz! – disse, ternamente, dirigindo-se ao cavalo, não ao homem. O grande animal girou em torno dela, baixando a cabeça. A mulher meteu-lhe na boca a maçã enrugada e amarela que escondera atrás das costas e depois beijou-o perto dos olhos. O cavalo resfolegou de prazer. Ela segurou-lhe a cabeça entre os braços, e apertou-a contra o peito.

– É esplêndido! – disse Miriam.

Miss Limb ergueu os olhos. Eram escuros e dirigiram-se directamente a Paul.

– Oh, boa tarde, Miss Leivers – cumprimentou ela. – Há anos que não a vemos cá por baixo.

Miriam apresentou-lhe os amigos.

– O seu cavalo é um óptimo companheiro! – disse Clara.

– Pois é! – E beijou-o novamente. – Tão dedicado como um homem!

– Mais dedicado que a maioria dos homens, penso eu – retorquiu Clara.

– É um bom menino! – disse a mulher, abraçando de novo o cavalo.

Clara, fascinada pelo grande animal, aproximou-se para lhe afagar o pescoço.

– Ele é muito meigo – disse Miss Limb. – Não acha que todas as criaturas grandes o são?

– É uma beleza! – respondeu Clara.

Queria olhá-lo nos olhos. Queria que ele olhasse para ela.

– É uma pena que não possa falar – disse.

– Oh, mas ele pode... diz tudo – retorquiu a outra mulher.

Depois, o irmão foi-se embora com o cavalo.

– Então, não vão entrar? Faça o favor de entrar, Mr... desculpe, não percebi o seu nome...

– Morel! – disse Miriam. – Não, não vamos entrar, mas gostaríamos de passar pela represa.

– É claro, estejam à vontade. O senhor pesca, Mr. Morel?

– Não – respondeu Paul.

– Porque, se pesca, pode vir pescar quando quiser – ofereceu Miss Limb. – Raramente vemos alguém durante a semana. Até lhe agradecia.

– Que peixes há no lago? – perguntou Paul.

Passaram pelo jardim da frente da casa, sobre o açude, e subiram a margem íngreme até ao lago, que repousava na sombra, com as suas duas ilhotas de madeira. Paul caminhava ao lado de Miss Limb.

– Não me importava de vir nadar para aqui – disse ele.

– Então, venha – convidou ela. – Venha quando quiser. O meu irmão ficará muito contente por conversar consigo. Ele é assim calado porque não tem com quem falar. Venha nadar quando quiser.

Clara aproximou-se.

– Tem uma boa profundidade – comentou. – E é tão límpido.

– É verdade – disse Miss Limb.

– Sabes nadar? – perguntou Paul. – Miss Limb estava agora mesmo a dizer que podíamos vir quando quiséssemos.

– É claro que há os criados da lavoura – disse Miss Limb.

Conversaram durante alguns minutos e depois continuaram, colina acima, deixando na margem a solitária senhora de olhar esgazeado.

A vertente da colina estava amadurecida pelo sol. Era selvagem e coberta de tufos de urze, abandonada aos coelhos. Os três caminhavam em silêncio. Paul disse então:

– Ela faz-me sentir desconfortável.

– Referes-te a Miss Limb? – perguntou Miriam. – É verdade!

– Qual será o problema dela? Estará a ficar tonta por viver demasiado solitária?

– Parece que sim – concordou Miriam. – Isto não é vida para ela. Acho uma crueldade enterrá-la aqui. Eu devia vir visitá-la mais vezes. Mas... ela perturba-me.

– Faz-me sentir pena dela... é verdade, e aborrece-me – disse ele.

– Eu acho – disse Clara subitamente – que o que ela quer é um homem.

Os outros dois ficaram mudos durante alguns instantes.

– Mas é a solidão que a deixa assim amalucada – disse Paul.

Clara não respondeu, prosseguindo a caminhada colina acima. Caminhava cabisbaixa, com as pernas oscilando à medida que pisava por entre os cardos secos e os tufos de erva, e os braços pendendo soltos. Em vez de andar, o seu belo corpo parecia vaguear às cegas pela encosta acima. Uma onda de calor invadiu Paul. Estava curioso acerca dela. Talvez a vida tivesse sido cruel com Clara. Esqueceu Miriam, que caminhava a seu lado, conversando consigo. Ela olhou para ele ao ver que ele não lhe respondia. O olhar dele estava fixo em Clara.

– Ainda achas que ela é uma antipática? – perguntou Miriam.

Ele nem reparou que a pergunta era despropositada. É que também lhe andava a bailar no pensamento.

– Passa-se algo com ela – respondeu.

– Sim – concordou Miriam.

No cimo da colina encontraram uma tapada bravia, escondida dos olhares; dois dos seus lados eram delimitados pelo bosque, os outros dois por sebes altas de espinheiros e sabugueiros. Por entre estes arbustos densos, viam-se aberturas por onde o gado poderia ter passado, se ali houvesse ainda gado. Naquele sítio a relva era macia e aveludada, fofa e esburacada pelos coelhos. O campo propriamente dito nunca fora cultivado e estava inundado de primaveras grandes e altas que nunca haviam sido cortadas. As flores brotavam fortes em ramalhetes por todo o lado, erguendo-se acima dos grosseiros tufos de erva. Parecia uma angra repleta de altos mastros de navios.

– Ah! – exclamou Miriam, voltando para Paul os olhos escuros dilatados. Ele sorriu. Juntos, gozaram a visão do campo de flores. Clara, um pouco afastada, olhava as primaveras, desconsoladamente. Paul e Miriam ficaram juntos, conversando em voz baixa. Ele ajoelhou-se, colhendo rapidamente os melhores botões, movimentando-se incessantemente de ramalhete em ramalhete, falando sempre num tom suave. Miriam colhia as flores ternamente, detendo-se diante de cada uma delas. Ele parecia-lhe sempre demasiado rápido, quase científico. No entanto, os ramos dele tinham uma beleza natural, mais do que os dela. Ele amava-os, mas como se fossem seus e tivesse direito a eles. Ela tinha uma maior reverência para com as flores: tinham algo que ela não possuía.

As flores eram muito frescas e doces. Ele queria bebê-las. Enquanto as colhia, comeu até uns pequenos jasmins amarelos. Clara continuava a vaguear desconsoladamente. Dirigindo-se a ela, Paul perguntou:

– Porque não colhes algumas?

– Não acho bem. Elas parecem melhor a crescer no campo.

– Mas gostarias de algumas?

– Elas querem ser deixadas em paz.

– Não acho que queiram nada disso.

– Não quero ter cadáveres de flores à minha volta – disse ela.

– Essa é uma ideia pomposa e artificial – replicou ele. – Elas não morrem mais depressa na água do que nas próprias raízes. E, além disso, ficam bem numa jarra, parecem felizes. E só podemos chamar cadáver a uma coisa quando ela tem a aparência de cadáver.

– Mesmo sendo ou não cadáver? – argumentou ela.

– Para mim não o são. Uma flor morta não é o cadáver de uma flor.

Desta vez, Clara ignorou-o.

– Mesmo assim... que direito tens tu de as arrancar? – perguntou ela.

– Gosto delas e quero-as... e há muitas mais.

– E achas isso suficiente?

– Sim, porque não? Estou certo de que deixariam um agradável perfume no teu quarto em Nottingham.

– E eu teria o prazer de as ver morrer.

– Mas então... não te interessa se elas morrem.

Dito isto, deixou-a, pisando os maciços de flores emaranhadas, que cobriam espessamente o campo, como pálidas e luminosas formações de espuma. Miriam aproximara-se. Clara estava ajoelhada, aspirando o aroma das primaveras.

– Eu acho – disse Miriam – que se as tratarmos com reverência, não lhes fazemos mal... o que conta é o espírito com que as colhemos.

– Isso é verdade – concordou ele. – Mas nós colhemo-las porque as queremos, é tudo. E exibiu o seu ramalhete.

Miriam estava silenciosa. Paul colheu mais algumas flores.

– Olhem para estas! – continuou Paul. – Robustas e sadias como pequenas árvores ou meninos de pernas gordas...

O chapéu de Clara estava pousado na erva, não muito longe. Ela estava ajoelhada, ainda inclinada para a frente, a sentir o perfume das flores. A visão do seu pescoço fez Paul sentir uma ânsia aguda, de tão belo que era, embora naquele momento ele não se sentisse muito orgulhoso de si mesmo. Os seios dela agitavam-se ligeiramente na blusa. A curva arqueada das suas costas era bonita e forte: ela não usava corpete. Subitamente, sem saber, ele estava a espalhar uma mão-cheia de primaveras sobre o seu cabelo e o seu pescoço, dizendo:


«Cinzas às cinzas e pó ao pó será.

Se o Senhor não te receber, o Diabo o fará.»


As flores frescas caíram sobre o pescoço de Clara. Ela ergueu o rosto para ele, onde dois olhos cinzentos e assustados, quase cheios de compaixão, se interrogavam sobre o que ele estava a fazer. Sobre o seu rosto caíram flores e ela cerrou os olhos.

De súbito, ali de pé ao lado dela, ele sentiu-se estranho.

– Pensei que querias um funeral – disse, embaraçado.

Clara riu de forma estranha e levantou-se, tirando as primaveras do cabelo. Pegou no chapéu e colocou-o na cabeça. Uma flor permaneceu presa ao seu cabelo, mas Paul não lhe disse nada. Depois, recolheu as flores que espalhara sobre ela.

Nos limites do bosque, os miosótis tinham-se estendido pelo campo, aí ficando como água da corrente. Mas murchavam agora. Clara vagueava sobre eles. Ele seguiu-a. Os miosótis agradavam-lhe.

– Olha como saíram do bosque! – disse.

Nesse momento, ela voltou-se com uma centelha de calor e gratidão.

– É verdade! – sorriu.

O sangue de Paul correu mais rápido.

– Fazem-me pensar nos homens selvagens dos bosques... como eles devem ter-se sentido aterrorizados quando se defrontaram cara a cara com o espaço aberto.

– Achas que sim? – perguntou ela.

– Entre as tribos antigas, pergunto-me quais teriam mais medo: as que irrompiam da escuridão dos bosques para todo um espaço de luz, ou as das áreas abertas, penetrando pé ante pé nas florestas.

– Acho que as segundas – respondeu ela.

– Sim, tu sentes-te realmente como uma pessoa de espaços abertos... tentando forçar-se a penetrar no escuro, não é verdade?

– Como é que posso saber? – respondeu ela, de um modo singular.

A conversa ficou por aqui.

A noite adensava-se sobre a terra. O vale já se cobria de sombras. Um minúsculo quadrado de luz subsistia ainda do lado oposto à quinta de Crossleigh Bank. Um brilho incandescente inundava os cumes das colinas. Miriam subiu lentamente, com o rosto enterrado no seu grande e solto ramalhete de flores, caminhando através da espuma dispersa das primaveras que lhe cobria o tornozelo. Atrás dela, as árvores transformavam-se agora em formas, todas elas sombras.

– Vamos? – perguntou.

E os três voltaram para trás. Permaneceram em silêncio. Descendo o trilho de terra, podiam ver a luz de casa mesmo em frente e, no cume da colina, uma leve silhueta escura pontilhada de luzinhas, onde a aldeia da mina de carvão tocava o céu.

– Foi agradável, não foi? – perguntou ele.

Miriam concordou, num murmúrio. Clara ficou em silêncio.

– Não achas? – insistiu ele.

Mas ela caminhava com a cabeça erguida e não respondia. Pela sua maneira de andar, como se nada lhe importasse, ele podia adivinhar o seu sofrimento.

Por esta altura, Paul levou a mãe a Lincoln. Ela estava entusiasmada e resplandecente como nunca, mas, sentada diante dele na carruagem do comboio, parecia frágil. E Paul teve uma sensação fugaz, como se ela estivesse a deslizar para longe dele. Então, quis agarrá-la, prendê-la, quase acorrentá-la. Sentia que tinha de a segurar com as próprias mãos.

Aproximavam-se da cidade. Iam ambos à janela, procurando vislumbrar a catedral.

– Ali está ela, mãe! – gritou Paul.

Avistaram a grande catedral erguendo-se acima da planície.

– Ah! – exclamou ela. – Pois está!

Ele olhou para a mãe. Os seus olhos azuis observavam a catedral em silêncio. Novamente ela parecia para lá dele. Algo da serenidade eterna da elevada catedral, azul e nobre contra o céu, algo da sua fatalidade, estava nela reflectido. O que era, era! – mesmo com toda a sua juventude, ele não podia alterá-lo. Olhou o rosto dela: a pele era ainda fresca, cor-de-rosa e aveludada, mas notavam-se já alguns pés-de-galinha em torno dos olhos; as pálpebras eram firmes, afundando-se um pouco, e a boca sempre fechada, em desilusão; e havia nela o mesmo olhar eterno, como se, finalmente, conhecesse o destino. E ele debatia-se contra o destino com todas as forças da sua alma.

– Veja, mãe, como se eleva sobre a cidade! E pensar que há ruas e ruas abaixo dela; parece maior que toda a cidade.

– Pois parece! – exclamou a mãe, voltando novamente à vida. Mas ele vira-a sentada, olhando fixamente pela janela para a catedral, de rosto e olhar parados, reflectindo a inexorabilidade da vida. E os pés-de-galinha em redor dos seus olhos e a boca tão duramente cerrada fizeram-no sentir que enlouquecia.

Fizeram uma refeição que ela considerou desnecessariamente extravagante.

– Não penses que eu gosto disto – disse, enquanto comia a costeleta. – Não gosto, não gosto mesmo nada! Só de pensar no teu dinheiro, assim desperdiçado!

– Não se preocupe com o meu dinheiro – respondeu ele. – Esquece-se de que sou um rapaz que leva a namorada a jantar fora?

Depois, comprou-lhe violetas azuis.

– Pára já com isso, menino! – ordenou ela. – Como é que eu vou fazer uma coisa dessas?

– Não tem de fazer nada! Fique quieta.

E, em plena High Street, Paul pregou as flores no casaco da mãe.

– Uma velha como eu! – protestou ela, aspirando o perfume.

– Bem vê – explicou ele –, quero que as pessoas pensem que somos terrivelmente finos. Portanto, a mãe tem de se apresentar à altura.

– Merecias que eu te desse um tabefe – disse ela.

– Vá lá... – ordenou ele –, pavoneie-se... como um pombo de cauda em leque.

Levaram uma hora a percorrer a rua. Mrs. Morel deteve-se primeiro junto ao Glory Hole, depois diante de Stone Bow, deteve-se em todo o lado, soltando exclamações. Um homem aproximou-se, tirou o chapéu e fez-lhe uma vénia:

– Permita-me que lhe mostre a cidade, minha senhora.

– Não, obrigada – respondeu ela. – Tenho o meu filho.

Nesse momento, Paul ficou furioso com ela por não ter respondido com mais dignidade.

– Tu deixas-te levar por ti mesmo – exclamou ela. – Ah, aquela é a Casa do Judeu! Lembras-te daquele sermão, Paul...

Ela mal podia subir a colina que conduzia à catedral, mas ele não notou. De repente, porém, foi dar com ela incapaz de falar. Conduziu-a a um pequeno bar, onde descansou.

– Não é nada! – disse a mãe. – O meu coração só está a ficar velhote; é de se esperar.

Paul não respondeu, mas olhou para ela. E novamente o seu coração foi esmagado por um aperto escaldante. Queria gritar, queria desfazer tudo, em fúria.

Retomaram o passeio, passo a passo, muito lentamente. E cada passo parecia um peso no peito de Paul. Sentia-se como se o seu coração fosse explodir. Finalmente, chegaram ao topo. Ela deteve-se encantada, olhando para o portão do castelo, admirando a fachada da Catedral. Tinha-se esquecido de si mesma.

– Isto é ainda melhor do que pensei que pudesse ser! – exclamou.

Mas ele odiava tudo. Por todo o lado a seguia, cismando. Sentaram-se juntos na Catedral. Assistiram a um curto serviço religioso no coro. Ela estava hesitante.

– Estará aberto para todos? – perguntou.

– É claro que está – respondeu ele. – Pensa que iam ter a lata de nos mandar embora?

– Bem – exclamou ela –, tenho a certeza de que teriam, se ouvissem a tua linguagem!

Durante o serviço, o seu rosto parecia resplandecer novamente de alegria e tranquilidade. E durante todo esse tempo, ele tinha vontade de se enraivecer, partir coisas e gritar.

Mais tarde, quando se debruçaram da muralha, admirando a cidade lá em baixo, Paul disse intempestivamente:

– Porque é que um homem não pode ter uma mãe jovem? Porque é que há-de ser sempre velha?

– Bem – disse ela, a rir – não me parece que tenha muita escolha.

– E porque não fui eu o filho mais velho? Ora veja... os filhos mais velhos dizem que os mais novos têm vantagem... mas veja bem, eles é que tiveram a mãe jovem. A mãe devia ter-me tido como seu filho mais velho.

– Não fui eu que escolhi – replicou ela. – Se pensares bem, és tão culpado como eu.

Ele voltou-se para ela, pálido, com o olhar irado.

– Porque é que a mãe é velha? – disse ele, enlouquecido pela sua impotência. Porque é que não pode andar? Porque é que não pode acompanhar-me a todos os lugares?

– Tempos houve – respondeu ela – em que eu era capaz de correr por essa colina acima melhor do que tu.

– E de que é que isso me vale, a mim? – gritou ele, golpeando a muralha com o punho. Depois, tornou-se lamuriento: – É uma pena que esteja doente, minha pequenina, é...

– Doente! – interrompeu ela. – Estou só a ficar velha, e tu tens de te conformar, é tudo. – Ficaram em silêncio. Mas não por muito tempo, e logo retomaram a boa disposição durante o chá. Enquanto estavam sentados na margem do Brayford, observando os barcos, Paul falou-lhe de Clara. A mãe fez inúmeras perguntas.

– E com quem vive ela?

– Com a mãe, em Bluebell Hill.

– E têm o suficiente para se manterem?

– Acho que não: penso que fazem rendas.

– Afinal que encantos lhe encontras tu, meu filho?

– Não sei se ela tem encantos, mãe. Mas é simpática. E parece correcta, sabe... Nada profunda, nem um pouco.

– Mas é bastante mais velha do que tu.

– Tem trinta, e eu vou fazer vinte e três.

– Mas não me disseste porque gostas dela.

– Porque não sei... será talvez o ar provocador que ela tem, uma espécie de revolta...

Mrs. Morel pensou um pouco. Teria ficado contente se o filho se apaixonasse por uma mulher que... ela não sabia bem o quê. Mas ele enervou-se, ficando subitamente furioso, e novamente melancólico. Ela só desejava que ele conhecesse uma rapariga agradável. Nem sabia o que desejava, mas deixou o assunto no ar. De certa forma, não era hostil à ideia de Clara.

Também Annie se ia casar. Leonard fora para longe trabalhar em Birmingham. Um fim-de-semana em que ele estava lá em casa, Mrs. Morel dissera-lhe:

– Não estás com boa cara, meu filho.

– Não sei o que tenho – respondeu ele. – Sinto-me perdido, mãe.

Chamava-a já de mãe, com o seu jeito infantil.

– Tens a certeza de que as instalações são boas? – perguntou ela.

– Sim... sim. Só que... é um aborrecimento quando temos de tomar sozinhos o nosso próprio chá... sem ninguém para nos ralhar, se o deitarmos para o pires e o bebermos daí. Não sei porquê mas tira o sabor ao chá.

Mrs. Morel riu-se.

– E então isso preocupa-te? – perguntou.

– Não sei... Quero casar – disse ele, de repente, torcendo os dedos e olhando para as botas. Houve uma pausa.

– Mas – exclamou ela – pensei que tinhas dito que querias esperar mais um ano.

– Pois foi, eu disse isso – respondeu ele, teimosamente.

Mrs. Morel considerou as palavras do filho por um momento.

– Sabes – continuou – a Annie é um pouco esbanjadora. Não amealhou mais de umas onze libras... e eu sei, meu filho, que tu não tens tido muita sorte.

Ele corou até às orelhas.

– Eu tenho vinte e três libras – respondeu.

– Com isso, não vão muito longe – disse Mrs. Morel.

Ele não respondeu, limitando-se a torcer os dedos.

– E tu sabes que eu não tenho nada... – continuou ela.

– Nem eu queria, mãe...! – gritou ele, muito vermelho, sofrendo e protestando.

– Não, meu filho, eu sei. Só tenho pena de não ter dinheiro. Tirando cinco libras para o casamento e preparativos... ficam vinte e nove libras... com isso não conseguem fazer grande coisa...

Ele continuou a torcer os dedos, impotente, obstinado, sem erguer os olhos.

– Mas queres mesmo casar? – perguntou ela. – Achas que deves?

Ele olhou-a de frente com os seus olhos azuis.

– Quero! – afirmou.

– Então – continuou ela – temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance.

Quando Leonard voltou a erguer o rosto, tinha lágrimas nos olhos.

– Não quero que a Annie passe dificuldades...! – disse ele, debatendo-se.

– Meu filho – disse ela – vocês namoram há muito tempo – tu tens um emprego decente. Se um homem tivesse precisado de mim, eu teria casado com ele mesmo sem dinheiro. Para ela pode ser um pouco difícil começar a vida humildemente. As raparigas muito novas são assim. Esperam ansiosas pelo belo lar que pensam que vão ter. Mas eu tinha mobílias caras! E isso não é tudo.

Assim, o casamento teve lugar quase de imediato. Arthur veio a casa, esplêndido no seu uniforme. Annie estava muito bonita num vestido cinza peito-de-rola que podia guardar para os domingos. Morel disse-lhe que era bem parva por se casar, e mostrou-se muito frio para com o genro. Mrs. Morel tinha plumas brancas no chapéu e mais algumas na blusa, e ambos os filhos a arreliaram por se embonecar tanto. Leonard estava alegre e cordial e sentia-se um tolo amedrontado. Paul não conseguia entender por que razão Annie queria casar-se. Sentia um grande carinho por ela, e ela por ele. Esperava, por isso, talvez um pouco melancolicamente, que tudo lhe corresse pelo melhor. Arthur estava surpreendentemente elegante no seu uniforme escarlate e amarelo e tinha plena consciência disso, mas sentia-se secretamente envergonhado por estar fardado. Annie debulhou-se em lágrimas na cozinha, ao despedir-se da mãe. Mrs. Morel chorou um pouco e, depois, afagou-lhe as costas, dizendo:

– Não chores, filha, ele vai ser bom para ti.

Morel bateu com os pés no chão violentamente, afirmando que ela era uma parva por se ter amarrado tão depressa. Leonard estava pálido e exausto. Mrs. Morel disse-lhe:

– Confio-ta, meu filho, e considero-te responsável por ela.

– Pode confiar em mim – assegurou ele, quase morto com tanta confusão. E estava tudo acabado.

Quando Morel e Arthur se recolheram, Paul sentou-se a conversar com a mãe, como tantas vezes fazia.

– Não tem pena de ela se ter casado, pois não, mãe? – perguntou ele.

– Não tenho pena de ela ter casado... mas... é uma sensação estranha... vê-la partir para longe de mim. Até me parece impossível que ela prefira ir com o Leonard. Mas as mães são assim... eu sei que é tolice.

– E vai ficar triste por causa dela?

– Quando penso no dia do meu casamento – respondeu a mãe – só posso esperar que a vida dela seja diferente.

– Mas confia nele... para a tratar bem?

– Sim, sim! Há quem diga que ela podia ter arranjado melhor. Mas eu acho que, se um homem é genuíno, como é o Leonard, e uma rapariga gosta dele... então... está tudo bem... ele é tão bom quanto ela.

– Nesse caso, não se importa?

– Nunca deixaria uma filha minha casar com um homem que eu não sentisse ser completamente genuíno. E, no entanto, cá está este vazio, agora que ela se foi...

Sentiam-se ambos tristes e queriam-na de volta. Paul achava que a mãe parecia muito sozinha, na sua nova blusa de seda preta com guarnições brancas.

– De qualquer modo, mãe, eu nunca me casarei – afirmou ele.

– Ah, todos dizem o mesmo, meu filho. Ainda não encontraste a mulher ideal. Espera um ano ou dois, e vais ver.

– Mas eu não me caso, mãe... fico a viver consigo, e vamos ter uma criada.

– Ah, meu filho... falar é fácil. Veremos quando chegar a altura.

– Que altura? Eu tenho quase vinte e três anos.

– Sim... não és dos que se casam cedo. Mas daqui a três anos...

– Estarei consigo na mesma.

– Veremos, meu filho, veremos.

– Mas a mãe não quer que eu case?

– Não gostaria de pensar que vais continuar pela vida fora sem ninguém para tomar conta de ti e te fazer... não, não gostaria...

– Acha então que devo casar-me?

– Mais cedo ou mais tarde, todos os homens devem casar-se.

– Mas preferia que fosse mais tarde.

– Será difícil... muito difícil. É como o povo diz:


«Quem casa filho, perde um filho;

quem casa filha, ganha um filho.»


– E pensa que eu deixaria uma mulher afastar-me de si?

– Bem, não poderias pedir-lhe que casasse contigo e com a tua mãe – sorriu Mrs. Morel.

– Ela que fizesse o que quisesse... desde que não interferisse.

– Não o faria... até te ter apanhado... Mas depois verias...

– Então nunca vou ver. Nunca me casarei enquanto a tiver a si... Nunca.

– Mas eu não gostaria de te deixar sem ninguém, meu filho – disse Mrs. Morel, chorando.

– A mãe não vai deixar-me. A mãe tem... cinquenta e três anos! Dou-lhe até aos setenta e cinco. Ora aí tem, nessa altura, estou eu gordo e com quarenta e quatro anos, e então posso casar com uma mulher séria. A mãe vai ver...!

A mãe sentou-se, a rir.

– Vai deitar-te – disse ela –, vai deitar-te.

– E havemos de ter uma casa bem bonita, a mãe e eu, e uma criada, e tudo será perfeito. Talvez eu venha a ficar rico com a minha pintura.

– Já para a cama!

– E a mãe terá uma caleche puxada por um potro. Imagina-se... uma pequena Rainha Vitória por aí a trotar.

– Já te disse para ires para a cama – disse ela, a rir.

Ele beijou-a e saiu. Os seus planos para o futuro eram sempre os mesmos.

Mrs. Morel ficou a matutar sobre a filha, sobre Paul, sobre Arthur. Lamentava-se por ter perdido Annie. A família era muito unida, e ela sentia que agora tinha de viver, para estar com os filhos. A vida tinha-lhe dado tanta coisa. Paul amava-a e Arthur também. Arthur nunca soube o quanto a amava. Era uma criatura de momentos. Até agora, nunca tinha sido obrigado a compreender--se a si mesmo. O exército disciplinara o seu corpo, mas não a sua alma. Estava de perfeita saúde e era muito atraente. O seu cabelo negro e espesso assentava-lhe bem na cabeça pequena. Havia algo de infantil no seu nariz, algo quase feminino nos seus olhos azuis, muito escuros. Mas tinha a boca vermelha e cheia de um homem, sublinhando o bigode, e o queixo era vigoroso. A boca era do pai, e o nariz e os olhos da família da mãe, gente bonita, de fracos princípios. Mrs. Morel andava ansiosa, preocupada com o filho. Desde que assumisse realmente o uniforme, estava seguro. Mas até onde iria ele?

Na verdade, o exército não lhe tinha feito nenhum bem. Ressentia-se amargamente da autoridade dos oficiais subalternos. Detestava ter de obedecer, como se fosse um animal. Mas tinha o bom senso de não protestar. Por isso, concentrara toda a sua atenção na tentativa de tirar o melhor partido da situação. Sabia cantar, era um companheiro alegre. Por vezes, envolvia-se em situações difíceis, mas eram as dificuldades próprias de um homem, facilmente perdoáveis. Assim, tirava disso o melhor partido, enquanto o seu autorespeito se ia recalcando. Confiava na sua boa aparência e elegância, no seu requinte e boa educação, para conseguir quase tudo o que desejava, e não estava desiludido. No entanto, sentia-se inquieto. Algo parecia atormentá-lo por dentro. Nunca estava quieto, nunca estava sozinho. Com a mãe, mostrava-se bastante humilde. Admirava Paul, amava-o até, mas desprezava-o ligeiramente. E Paul, por sua vez, admirava e amava o irmão, mas desprezava-o ligeiramente.

Mrs. Morel recebera algumas libras da herança do pai, e decidiu comprar a saída do filho do exército. Ele não cabia em si de contente. Parecia um garoto em férias.

Sempre gostara de Beatrice Wyld e, durante a sua licença, reatou a velha amizade. Ela estava agora mais forte e de melhor saúde. Os dois davam frequentemente longos passeios, e Arthur levava-a pelo braço à boa maneira dos soldados, com alguma rigidez. Beatrice tocava piano enquanto ele cantava. Arthur desapertava, então, o colarinho da túnica, ia ficando cada vez mais corado, com o olhar brilhante, e cantava com uma voz máscula de tenor. Depois, sentavam-se juntos no sofá. Ele parecia exibir o seu corpo, e ela mostrava-se bem consciente dele, do peito forte, dos flancos, das coxas cingidas nas calças justas.

Ele gostava de se resvalar para o dialecto quando conversava com ela. Por vezes, Beatrice acompanhava-o e fumava também um cigarro. Noutras ocasiões, tirava apenas umas passas do cigarro dele.

– Não – disse ele uma noite, quando ela lhe pediu o cigarro: – Nem penses. Se quiseres, dou-te um beijo com fumo.

– Quero uma passa, não quero beijo nenhum – respondeu ela.

– Então... é isso que vais ter – disse ele – juntamente com o beijo.

– Quero dar uma passa no teu cigarro – irritou-se ela, tentando tirar-lhe o cigarro dos lábios.

Arthur estava sentado com o ombro encostado ao dela. Ela era pequena e rápida como um raio. Só a custo ele conseguiu escapar-lhe.

– Dou-te um beijo de fumo – disse ele.

– És um descarado impertinente, Arty Morel – disse ela, recostando-se no sofá.

– Deixa-me dar-te um beijo de fumo!

O soldado inclinou-se, sorrindo. O seu rosto estava próximo do dela.

– Olha o disparate! – replicou ela, virando a cabeça.

Arthur aspirou uma longa fumaça, fechou a boca e pôs os lábios perto dela. O seu bigode escuro e bem aparado sobressaía como uma escova. Beatrice olhou para os lábios rubros, pregueados, e depois, subitamente, conseguiu arrancar-lhe o cigarro dos dedos e fugiu para longe. Ele, correndo atrás dela, tirou-lhe a travessa que lhe prendia os cabelos. Ela voltou-se e atirou-lhe o cigarro. Ele apanhou-o, pô-lo na boca e sentou-se.

– Parvalhão! – gritou ela. – Dá-me a minha travessa!

Receava que o seu cabelo, especialmente penteado para ele, se desmanchasse, e conservou as mãos na cabeça. Ele escondeu a travessa entre os joelhos.

– Não a tenho – disse.

Com o riso, o cigarro tremia-lhe entre os lábios enquanto falava.

– Mentiroso! – acusou ela.

– Tão certo como eu estar aqui! – E riu-se, mostrando as mãos.

– Seu demónio desavergonhado! – exclamou ela, precipitando-se para ele, lutando para recuperar a travessa que ele tinha entre os joelhos. Enquanto Beatrice lutava com ele, puxando-lhe as coxas macias e apertadamente cingidas, Arthur riu-se até cair para trás no sofá, sacudido pelas gargalhadas. O cigarro caiu-lhe da boca e quase lhe queimou a garganta. Sob o delicado bronzeado, o sangue subiu à superfície, e ele riu até os seus olhos azuis ficarem cegos e a garganta inchada, quase sufocando. Depois, endireitou-se. Beatrice estava a colocar a travessa no lugar.

– Fizeste-me cócegas, Beat – disse ele, com a voz rouca.

Como um relâmpago, a mão dela, pequena e branca, voou e esbofeteou-lhe a face. Ele ergueu-se de um salto, com um olhar feroz. Entreolharam-se. Lentamente, um rubor subiu às faces dela; baixou os olhos, depois a cabeça. Ele sentou-se novamente, amuado. Ela entrou na cozinha para compor o cabelo. Aí, sozinha, verteu algumas lágrimas, não sabendo bem por que razão.

Quando regressou, estava recomposta. Mas era apenas uma capa sobre o seu fogo interior. Arthur, com a cabeleira revolta, continuava amuado no sofá. Beatrice sentou-se diante dele, no cadeirão, e nenhum dos dois falou. O relógio martelava no silêncio, com pancadas secas.

– És uma gatinha arisca, Beat – disse ele devagar, quase como um pedido de desculpas.

– Bem, e tu não devias ser tão atrevido – retorquiu ela.

Seguiu-se novamente um longo silêncio. Ele assobiava para si mesmo, como um homem muito agitado, mas provocador. Subitamente, ela atravessou a sala direita a ele e beijou-o.

– Então, dei ou não dei? – troçou ela.

Ele levantou o rosto para ela, sorrindo de forma singular.

– Dás-me outro? – convidou ele.

– Julgas que não me atrevo? – perguntou ela.

– Coragem! – desafiou-a ele, com a boca estendida na sua direcção.

Deliberadamente, e com um sorriso fremente que parecia espalhar-se a todo o corpo, ela colocou a boca sobre a dele. Imediatamente, os braços de Arthur se fecharam em torno dela. Assim que o longo beijo acabou, ela afastou a cabeça, e meteu os dedos delicados no pescoço dele, por dentro do colarinho aberto. Depois, fechando os olhos, abandonou-se de novo num beijo.

Agia agora de livre vontade. O que desejava fazer, fizera-o e não responsabilizava ninguém.

Paul sentia a vida mudar à sua volta. As condições da juventude tinham desaparecido. Agora, a sua era uma casa de pessoas adultas. Annie era uma mulher casada, Arthur seguia o seu próprio prazer de um modo que a família ignorava. Durante muito tempo, tinham vivido em casa, saindo para passar o tempo. Mas agora, para Annie e Arthur, a vida desenrolava-se fora de casa da mãe. Só vinha a casa de férias ou para descansar. Por isso, pairava no ar aquela sensação estranha de vazio, como se os passarinhos tivessem levantado voo. Paul andava cada vez mais inquieto. Annie e Arthur haviam partido. Ele estava ansioso por lhes seguir o exemplo. No entanto, a casa era, para ele, ao lado de sua mãe. E, contudo, havia algo mais, algo cá fora, algo que ele desejava.

Andava cada vez mais desassossegado. Miriam não o satisfazia. O seu antigo desejo, quase loucura, de estar com ela, enfraquecera. Por vezes, encontrava Clara em Nottingham, por vezes acompanhava-a a reuniões, por vezes via-a em Willey Farm. Mas ultimamente a situação tornara-se constrangedora. Havia um triângulo de antagonismo entre Paul, Clara e Miriam. Com Clara, ele adoptava um tom vivo, mundano e trocista que era muito desagradável para Miriam. Não lhe importava o que acontecera antes. Ela podia ser íntima e estar triste com ele. Depois, assim que Clara aparecia, tudo desaparecia, e ele representava para a recém-chegada.

Miriam disfrutara de uma bela noite na companhia de Paul, sentados no feno. Ele estivera ocupado na cavalariça e, quando acabou, veio ajudá-la a colocar o feno em pequenos molhes. Depois, falou-lhe das suas esperanças e desesperos, e toda a sua alma parecia estar ali, desnuda diante dela. Ela sentiu-se como se visse nele a própria essência trémula da vida. A Lua despontou; regressaram juntos a casa; parecia que ele a procurara porque precisava desesperadamente dela, e ela escutou-o, deu-lhe todo o seu amor e confiança. A Miriam parecia que ele lhe trouxera o melhor que havia em si para guardar, e que ela o guardaria enquanto vivesse. Não, o céu não cuidaria das estrelas melhor e mais eternamente do que ela guardaria o que de bom havia na alma de Paul Morel. Entrou em casa sozinha, sentindo-se exaltada, satisfeita com a sua confiança.

E depois, no dia seguinte, Clara chegou. Estava combinado tomarem o chá no campo de feno. Miriam viu a tarde vestir-se de dourado e depois de sombras. Durante todo esse tempo, Paul brincava com Clara. Fazia montes de feno cada vez maiores sobre os quais saltavam. Miriam não se interessava pelo jogo e manteve-se afastada. Edgar, Geoffrey, Maurice, Clara e Paul não paravam de saltar. Paul venceu, pois era muito leve. O sangue de Clara estava inflamado. Ela corria como uma amazona. Paul adorava a forma determinada como ela se precipitava para o monte de feno e saltava, aterrando do outro lado, com os seios sacudidos e o cabelo espesso em desalinho.

– Tocaste! – gritou ele. – Tocaste!

– Não toquei nada! – dardejou ela, voltando-se para Edgar. – Não toquei, pois não? Não achas que passei bem?

– Não sei. – E Edgar riu-se.

Nenhum deles sabia dizer.

– Mas tu tocaste – insistiu Paul. – E perdeste.

– Não toquei! – gritou ela.

– Tão claro como água – teimou Paul.

– Dá-lhe um puxão de orelhas por mim – gritou ela a Edgar.

– Não – disse Edgar a rir –, não me atrevo. Tens de ser tu a fazê-lo.

– Nada vai alterar o facto de teres tocado – insistiu Paul, trocista.

Ela estava furiosa. O seu pequeno triunfo diante de homens e rapazes desvanecera-se. Ela esquecera-se de si durante o jogo. Agora, ele queria humilhá-la.

– Acho que és desprezível! – disse-lhe ela.

Ele riu novamente, de um modo que torturou Miriam.

– Eu já sabia que não conseguias saltar aquele monte – provocou Paul.

Clara voltou-lhe as costas. Contudo, todos podiam ver que a única pessoa que ela escutava, ou da qual estava consciente, era ele, e ele dela. Agradava aos homens assistir a esta batalha entre eles. Mas Miriam torturava-se.

Via agora que Paul podia escolher o inferior em vez do superior. Ele conseguia ser infiel a si próprio, infiel ao verdadeiro e profundo Paul Morel. Havia o perigo de ele se tornar frívolo, de correr atrás das suas satisfações como qualquer Arthur, ou como o seu próprio pai. Pensar que ele pudesse desperdiçar a sua alma em troca desta irreverente relação de trivialidade com Clara era algo que atormentava Miriam. Caminhava amargurada e em silêncio, enquanto os outros dois brigavam entre si e Paul se divertia.

Mais tarde, embora se recusasse a admiti-lo, Paul sentiu-se envergonhado de si mesmo e prostrou-se diante de Miriam. Então, de novo se revoltou.

– Não é religioso ser-se religioso – disse. – Considero que um corvo é religioso quando cruza os céus. Mas só o faz porque se sente levado para onde vai, não porque pense que está a ser eterno.

Mas Miriam sabia que uma pessoa podia ser religiosa em tudo, ter Deus, fosse Ele quem fosse, presente em tudo.

– Não acredito que Deus saiba assim tanto sobre Si mesmo – bradou Paul. – Deus não sabe as coisas, Ele é as coisas... E estou certo de que não é sentimental.

A ela parecia-lhe que Paul tentava pôr Deus do seu lado, porque queria que as coisas fossem à sua maneira e desejava apenas o seu prazer. Travou-se uma longa batalha entre ambos. Ele era-lhe absolutamente infiel até mesmo na sua presença; depois ficava envergonhado, arrependido, para logo em seguida a odiar e fugir novamente. Essa era a situação eternamente repetida.

Ela irritava-o até ao mais fundo da sua alma. Depois, ali ficava, triste, pensativa, em adoração. E ele fazia-a sofrer. Metade do tempo, ele sofria por ela, metade do tempo, odiava-a. Ela era a sua consciência, e ele sentia que, de algum modo, tinha uma consciência que era de mais para si. Não podia deixá-la, porque, de certa forma, ela detinha em seu poder o melhor que havia nele. Não podia ficar com ela, porque ela não recebia tudo o resto, o que vinha por acréscimo, e eram três quartos. Por isso, desgastava-se em crueldade para com ela.

Quando ela fez vinte e um anos, ele escreveu-lhe uma carta que apenas podia ter sido escrita para ela.

«Será que devo escrever-te uma carta de aniversário? Parece um pouco pernicioso fazê-lo deliberadamente, não achas? Porque é certo que vou ser presunçoso e sentencioso.» Seguia-se então uma boa dose de presunção:

«A minha última carta preparava-te, não é verdade, para as alegrias da idade que se aproximava. Não te sentes como uma herdeira ao tomar posse da sua herança? É que agora, tornas-te publicamente dona de ti mesma. Querias mais?... Impossível!»

Paul começava a sentir o sentimento de culpa a torturá-lo. Parecia despedaçado por dentro, como se não pudesse manter-se de pé, mas devesse esforçar-se por não cair.

«Deixa-me falar do nosso velho e desgastado amor, pela última vez. Também ele está a mudar, não te parece? É como se o corpo desse amor tivesse morrido, deixando-te a sua alma invulnerável! Sabes, eu posso dar-te um amor espiritual, como sempre fiz du-rante estes longos, longos anos; mas não uma paixão encarniçada. Sabes, tu és uma freira. Eu dei-te aquilo que teria dado a uma freira sagrada... como um monge místico dá a uma freira mística; certamente que o estimas mais. No entanto, lamentas... não, lamentaste, melhor dizendo... o outro. Em todas as nossas relações, não entra o corpo. Não estou a falar-te através dos sentidos... mas através do espírito. É por isso que não somos capazes de amar no sentido comum. Muitas vezes, quando me dirijo a ti, não te olho de frente, porque, vê se entendes, eu não falo para os teus olhos, embora eles sejam escuros e belos, não falo para os teus ouvidos, ocultos sob uma delicada mecha de cabelo sedoso... mas para o teu íntimo, para lá de tudo isso. E assim continuarei a fazer a vida inteira, se o destino não intervier. Estás a ver? Compreendes agora porque só te beijo debaixo do azevinho. Entendes? E eu, será que entendo? Será talvez melhor, pensarás tu. Eu acho que sou demasiado educado, demasiado civilizado. Acho que muita gente o é.

«Tu ocupas um lugar na minha natureza que ninguém mais poderia preencher. Tu tens desempenhado um papel fundamental no meu desenvolvimento. E esta dor, que tem sido como uma nuvem ensombrando as nossas almas, não se começa ela a dissipar? A nossa não é uma afeição banal. E, no entanto, somos mortais, e viver lado a lado um com o outro seria terrível, pois, de algum modo, contigo não posso já ser trivial e, sabes, estar sempre para além deste estado mortal seria perdê-lo. Se as pessoas casam, devem viver juntas como seres humanos afectuosos que podem ser banais um com o outro sem se sentirem estranhos... não como duas almas. É assim que penso.

«Talvez me case nos próximos anos. Terá de ser uma mulher a quem possa beijar e abraçar, a quem possa fazer mãe dos meus filhos, com quem possa falar divertidamente, trivialmente, sinceramente, mas nunca com esta terrível seriedade. Vê como o destino dispôs as coisas. Tu... tu podes casar com um homem que não se derrame como fogo diante de ti. Pergunto-me se entendes... pergunto-me se eu próprio me entendo. Mas tu sabes que estas coisas me perturbam, e agora eis um final para a nossa conversa sobre este assunto. Perdoa-me por tudo o que disse – não é natural, eu sei – e queima esta carta, e não penses nela nem me faças pensar nela, e Deus nos ajude a suportar o fardo de nós próprios.

«Gostarias de um Manual de Ética? Acho que gostarias, sim, e podemos falar disso e aprender... oh, sim. E tu ficarás mais culta, não é? Como vês, a nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro.

«Agora tens vinte e um anos. Estou tão feliz por seres uma mulher independente. És tão forte quanto eu, não és? Sim, ainda mais forte. Oh, se temos de viver, temos de ser sensatos, e não nos podemos permitir ir longe de mais. Devemos ser triviais e procurar a beleza e não a dor, pois de outro modo ficamos numa situação difícil. Vá lá, nem uma palavra sobre os lugares sensíveis, por enquanto.

«Oh, como estaremos alegres na tua festa, no sábado! Eu, agora, não sinto nem um pouco de tristeza dentro do meu coração.

«Será que devo enviar-te esta carta? Duvido. Mas, afinal... é melhor, para que possas compreender. Adeus...»

Miriam leu a carta duas vezes, fechando-a em seguida. Um ano mais tarde, quebrou o selo para a mostrar à sua mãe.

«Tu és uma freira... tu és uma freira» – as palavras penetravam-lhe no coração uma e outra vez. Nada do que ele alguma vez dissera a penetrara tão profunda e firmemente, como se de uma ferida mortal se tratasse.

Ela respondeu-lhe dois dias depois da festa. «A nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro», citou. «Terá esse erro sido meu?»

Quase de imediato, ele respondeu-lhe de Nottingham, enviando-lhe ao mesmo tempo um pequeno Omar Khayyam.

«Vais encontrar muita coisa entre as finas capas deste pequeno livro, mas a lição a retirar é que devemos beber o vinho tinto da vida e deixá-lo embriagar-nos por um instante. Foi essa a razão por que o comprei. Também quero levar-te The Blessed Damosel, para passar um serão contigo e com Rossetti.

«Se o pequeno erro foi teu, perguntas tu. Bem, ninguém erra sozinho! A tua quota-parte do erro foi gloriosa, digna da imortalidade. Mas a minha foi um reconhecimento indomável do barro do vaso... frágil... rígido... confinador. E eu, alternadamente, amei e odiei a matéria mundana de mim mesmo. Quando a amava, era cruel para ti, quando a odiava, era cruel para mim, e para tudo o mais. Não tenho eu a faculdade de ser muito cruel?

«Se, na festa dos teus anos, eu estava ainda algo tempestuoso, foi porque reconheci no teu sol de quarta-feira o brilho lavado do teu longo dia de chuva de terça-feira. Eu não me sento e travo a descoberto as minhas batalhas, como tu fazes. Eu sacudo o inimigo pela garganta e grito-lhe que ele é um vilão e um cão. Com isso, ordeno-lhe que vá para longe de mim e, por um momento, fico em liberdade. Depois, digo a mim mesmo que se tratava de um pobre coitado e rio. Pouco depois, mergulho novamente nas trevas, ao descobrir que ele não se foi nem tão-pouco está morto... E, quando tudo isto se torna insuportável, travo com ele nova luta feroz. Através destas batalhas violentas venço, ou não venço. Sem triunfos, sem Waterloos. Assim, não sofro tão intensamente, e fico menos estável. Afinal de contas, é uma brincadeira, esta coisa de “nós”, não é?

«Estou feliz por teres respondido... És tão calma e natural que me envergonhas. Que oco que eu sou! Tenho de jogar duro... Tu não entendes como eu posso dançar em redor dos meus inimigos, invectivando-os e espiando-os, lançando mão de tudo o que me aparece no caminho, travando contendas ocasionais. Se eu me fechasse a tudo e mantivesse a dor apertada no peito, como tu fazes, morreria de exaustão. Nisso, as nossas naturezas são radicalmente opostas.

«Por isso, estamos tantas vezes em desacordo. Mas, no fundamental, estaremos sempre juntos, penso eu.

«Tenho de agradecer-te pela tua simpatia para com a minha pintura e os meus desenhos. Muitos dos esboços são dedicados a ti. Espero ansiosamente as tuas críticas, que, para minha vergonha e glória, são sempre grandes apreciações. Que deliciosa brincadeira que isso é.

«Adeus. Agora tenho de saldar uma maldita conta. Espero que queimes estas cartas. É minha regra queimá-las todas... pois nenhuma me dá prazer a não ser pela lembrança do prazer a que se referem, e muitas estão cheias de lágrimas secretas das quais devo fugir...»

Este foi o fim da primeira fase dos amores de Paul Morel. Estava agora com vinte e três anos e, embora virgem, o instinto sexual que Miriam refinara nele durante tanto tempo estava agora cada vez mais fortalecido. Muitas vezes, quando falava com Clara Dawes, sentia o sangue engrossar e alvoroçar-se, aquela concentração peculiar no peito, como se algo estivesse vivo lá dentro, um novo ser ou um novo centro de consciência, avisando-o de que, mais cedo ou mais tarde, teria de decidir-se por uma mulher ou por outra. Mas ele pertencia a Miriam. Disso ela estava absolutamente segura, de que ele lhe concedia esse direito.


X

CLARA

COM VINTE E TRÊS anos, Paul mandou uma paisagem sua para a Exposição de Inverno de Newcastle. Miss Jordan tinha-se interessado muito por ele e convidara-o para ir a sua casa, onde conheceu outros artistas. Paul começava a ter ambições.

Uma manhã, estava ele a lavar-se na copa, quando chegou o carteiro. Paul ouviu a mãe numa gritaria desenfreada. Correu para a cozinha e viu-a de pé diante da lareira, a agitar uma carta, como louca, e a gritar «Vivas!». Ficou chocado e assustado.

– Oh, mãe! – exclamou.

A mãe correu para ele e atirou-se-lhe ao pescoço, enquanto agitava a carta, gritando:

– Parabéns, meu filho... Eu sabia que havíamos de vencer!

Paul estava cheio de medo daquela mulher pequenina e bem-comportada, já de cabelos grisalhos, que de repente desatara naquele chinfrim. Até o carteiro voltou para trás a correr, pensando que tinha acontecido alguma desgraça. Viram-lhe o cocuruto do boné por detrás da cortina. Mrs. Morel precipitou-se para a porta.

– O quadro dele ganhou o primeiro prémio, Fred, e foi vendido por vinte guinéus!

– Ena pá! G’ande acontecimento! – disse o carteiro, um rapaz novo, que ela conhecia desde pequeno.

– Quem o comprou foi o major Moreton – acrescentou Mrs. Morel.

– Isso vale muito, olá se vale, Mrs. Morel – disse o carteiro, de olhos azuis a luzir. Não cabia em si de contente por ter sido o portador de tão boas notícias. Mrs. Morel voltou para dentro e sentou-se. Tremia dos pés à cabeça. Paul só tinha medo de que ela tivesse lido mal a carta e sofresse uma desilusão. Releu-a uma, duas vezes, e convenceu-se de que era mesmo verdade. Então, sentou-se, com o coração a pulsar forte, de alegria.

– Oh, mãe! – exclamou.

– Eu não te disse que havíamos de vencer? – disse ela, disfarçando as lágrimas.

Paul tirou a chaleira do lume e escaldou o chá.

– A mãe não imaginava que... – começou ele, hesitante.

– Não, meu filho... assim tanto não... mas esperava bastante.

– Mas tanto não – disse ele.

– Não... isso não... mas sabia que íamos vencer.

E logo recuperou a compostura, pelo menos aparentemente. Ele estava sentado, de camisa aberta, deixando-lhe a descoberto um pescoço quase feminino, de toalha na mão e cabelo em pé.

– Vinte guinéus, mãe! Exactamente o que a mãe precisava para resgatar o Arthur. Agora já não precisa de pedir emprestado. É mesmo à conta.

– Nem pensar nisso, não te vou ficar com o dinheiro todo! – disse ela.

– Ora essa, porquê?

– Porque não devo.

– Bem... então a mãe fica com onze libras... e eu com nove.

Continuaram a discutir a divisão dos vinte guinéus. Ela só queria as cinco libras de que precisava. Ele não concordava de maneira nenhuma. E, assim, a discussão serviu para descarregarem a tensão.

Morel, quando à noite chegou da mina, disse, mal entrou:

– Ouvi dizer qu’o quadro do Paul ganhou o primeiro prémio e foi vindido a Lorde Henry Bentley por cinquenta libras.

– As histórias que as pessoas contam! – exclamou Mrs. Morel.

– Ah! – disse ele. – Eu bem sabia qu’era mentira. Mas impingiram-me que tu é que tinhas contado ò Fred Hodgkisson.

– Como se eu lhe fosse dizer uma coisa dessas!

– Ah! – aquiesceu o mineiro.

Via-se que estava desapontado.

– Lá que ganhou o primeiro prémio... isso é verdade – disse Mrs. Morel.

O mineiro deixou-se cair pesadamente na cadeira.

– Conseguiu! – exclamou o mineiro.

Estava perplexo, de olhar pregado algures, no outro lado da sala.

– Mas, quanto às cinquenta libras, que disparate! – E Mrs. Morel calou-se por um instante. – Enfim... o major Moreton comprou-o por vinte guinéus...

– Vinte guinéus! Num pode ser! – exclamou Morel.

– Pois foi, e bem os merece.

– Tá bem! – disse ele. – Num duvido... Mas vinte guinéus por uma pintura qualquer qu’ele fez numa ou duas horas...! – Depois calou-se, cheio de respeito pelo filho. Mrs. Morel fungou ligeiramente, como se isso não fosse nada de importante.

– E quand’é qu’ele põe as mãos na massa? – perguntou o mineiro.

– Isso não sei... quando o quadro for entregue, suponho.

Fez-se silêncio. Morel olhava para o açucareiro em vez de comer, com o braço enfarruscado e a mão desfigurada pelo trabalho apoiados em cima da mesa. A mulher fingiu não ver quando ele limpou os olhos com as costas da mão, com a cara toda esborratada do pó da mina.

– Pois é, e o outro tamém havia de ter feito o mêmo, se num o tivessem matado – disse ele, em voz baixa.

A lembrança de William retalhou Mrs. Morel como uma lâmina gelada, deixando-a fatigada e a precisar de se ir deitar.

Paul foi convidado para jantar em casa de Mr. Jordan. Ao chegar a casa, disse:

– Mãe, preciso de um smoking.

– Sim, já calculava – disse ela. Estava contente. Fez uma pausa. – Tens o do William – prosseguiu. – Sei que custou quatro libras e dez xelins, e ele só o vestiu três vezes...

– E a mãe gostava que eu o usasse? – perguntou Paul.

– Com certeza. Acho que te deve servir... pelo menos o casaco. As calças têm de ser subidas.

Paul foi para o quarto e vestiu o casaco e o colete. Quando desceu estava bastante bizarro, com o colarinho e o peitilho de flanela e o casaco e colete de cerimónia. Estava-lhe tudo muito largo.

– O alfaiate aperta-te isso – disse a mãe, alisando-lhe o casaco no ombro. – O tecido é muito bonito. Nunca tive coragem para deixar o teu pai usar as calças e bem contente estou agora de o ter feito.

Enquanto passava a mão nas bandas de seda do casaco, pensou no filho mais velho. Mas este outro filho estava bem vivo dentro do fato, e ela passou-lhe a mão nas costas para o sentir. Estava vivo e era dela. O outro estava morto.

Paul foi a vários jantares com o smoking que tinha sido de William. De cada vez que isso acontecia, o coração da mãe exultava de orgulho e alegria. O filho estava lançado na vida. Os botões que ela e os irmãos tinham comprado para William trazia-os ele no peitilho, aplicados numa das camisas de cerimónia de William. Paul tinha uma bela figura. As suas feições eram algo rudes, mas era simpático e muito amável. Não seria propriamente um cavalheiro, mas via-se que estava ali um homem genuíno.

Paul contava à mãe tudo o que se passava, tudo o que se dizia. Era como se ela lá tivesse estado. E ele estava morto por lhe apresentar os novos amigos com quem ia jantar às sete e meia.

– Ir contigo? – disse ela. – Para que hão-de querer eles conhecer-me?

– Mas querem! – exclamou, indignado. – Se querem conhecer-me, como dizem, então querem conhecê-la a si também... porque a mãe é tão inteligente como eu.

– Ir contigo, meu filho... – E riu-se.

Mas começou a poupar mais as mãos. Também as dela estavam muito calejadas do trabalho. A pele estava lustrosa da água quente e os nós dos dedos inchados. Mas começou a ter o cuidado de não as meter em lixívia. Tinha saudades das suas mãos de outros tempos, pequenas e delicadas. E quando Annie começou a insistir com ela para usar blusas mais requintadas, de acordo com a sua idade, ela fez-lhe a vontade. Permitiu até que lhe pusessem um laço preto de veludo no cabelo. Depois, deu uma fungadela sarcástica, mas sabia que lhe ficava bem. Parecia uma senhora da sociedade, afirmava Paul, tão fina como Mrs. Moreton, e muito, muito mais bonita. A família estava a subir na escala social. Só Morel continuava na mesma, ou melhor, piorava lentamente.

Paul e a mãe discutiam longamente sobre a essência da vida. A religião ia desaparecendo da vida de Paul. Tinha-se desembaraçado de todas as crenças que o pudessem aperrear, fizera uma limpeza geral, e chegara mais ou menos ao âmago da fé, ou seja, que cada um deve procurar o bem e o mal dentro de si mesmo, e ir, com paciência, construindo a sua própria ideia de Deus. E, a partir dessa altura, passou a interessar-se mais pela vida.

– Sabe – disse ele à mãe –, não quero pertencer a uma burguesia abastada. Prefiro o povo. Eu sou do povo.

– Mas se fosse outra pessoa a dizê-lo, meu filho, ias ficar furioso. Tu sabes que te consideras igual a qualquer grande senhor.

– No íntimo, talvez – respondeu ele. – Não na classe ou na educação, ou nas maneiras. Mas no íntimo, isso sim.

– Muito bem... Então para quê falar no povo?

– Porque... a diferença entre as pessoas não está nas classes sociais, mas nelas mesmas... Só que às classes médias vão-se buscar as ideias, e ao povo... a própria vida, o calor humano. No povo sentem-se vibrar o ódio e o amor...

– Isso é tudo muito bonito, meu filho... mas então porque não vais conversar com os amigos do teu pai?

– Esses são muito diferentes.

– Não concordo. São gente do povo. Afinal, com que pessoas do povo é que te dás agora? Com as que gostam de trocar ideias, falar das mesmas coisas que a burguesia. As outras não te interessam.

– Mas... há a vida...

– Não creio que a Miriam te dê mais vida do que qualquer rapariga culta... Miss Moreton, por exemplo. Tu é que tens preconceitos de classe, estás a ficar um snob.

A mãe desejava francamente que o filho ascendesse à burguesia, o que ela sabia não ser difícil. E desejava vê-lo, no fim, casado com uma senhora da sociedade.

Empenhava-se agora em combater no filho a sua incessante inquietação. Ele ainda mantinha a ligação com Miriam, não conseguindo nem acabar com tudo nem assumir o compromisso em definitivo, e a indecisão parecia consumir-lhe as energias. Além disso, a mãe pressentia nele uma inclinação inconsciente para Clara, e sendo ela uma mulher casada, Mrs. Morel só desejava que o filho se apaixonasse por alguém em situação menos complicada. Mas Paul, estupidamente, recusava-se a amar, ou sequer a admirar uma rapariga só pelo facto de ela pertencer a uma classe mais elevada.

– Meu filho – disse-lhe a mãe –, nem toda a tua inteligência, nem todo o teu desprezo pelas tradições antigas, nem essa mania de fazeres só o que queres, parecem trazer-te grande felicidade.

– E o que é a felicidade? – exclamou ele. – Para mim não existe! Como é que eu posso ser feliz?

Esta pergunta tão directa perturbou-a.

– Isso só tu podes saber, meu filho. Mas, se pudesses encontrar uma mulher decente que te fizesse feliz... quando te bastava quereres... terias mais sossego para trabalhar... seria muito melhor para ti.

Paul franziu o sobrolho. A mãe pusera o dedo em cheio na ferida chamada Miriam. Ele afastou os cabelos da testa, com o olhar incendiado de dor.

– Isso é fácil de dizer, mãe – gritou. – Isso é a cartilha de todas as mulheres... paz de espírito e conforto físico. Para mim, isso não vale nada.

– Ah, não? – retorquiu a mãe. – Se calhar achas que o teu desencanto é divino, não?

– Acho... Lá da divindade não quero saber. Mas diabos levem a sua felicidade! Desde que se tenha uma vida cheia, não interessa se é ou não de felicidade. Receio que a sua felicidade me enchesse de tédio.

– Tu nem sequer tentas – disse a mãe. E, de repente, toda a dor que sentia por ele explodiu. – E isso é importante! – gritou ela. – Tinhas obrigação de ser feliz, tinhas obrigação de tentar ser feliz, de viver feliz. Como é que eu ia ficar, sabendo que eras infeliz?

– A sua vida foi suficientemente má, Mater, mas não a deixou muito pior do que os que foram mais felizes. Julgo que se saiu até muito bem. Comigo passa-se o mesmo. Não acha que me estou a sair bem?

– Não, meu filho, não estás. Batalhar... batalhar... e sofrer... é tudo o que fazes, pelo que eu vejo...

– E porque não, querida mãe? É o melhor que há a fazer...

– Não, não é! As pessoas têm obrigação de ser felizes!

Mrs. Morel tremia dos pés à cabeça. Discussões destas repetiam-se sempre que a mãe parecia querer lutar pela vida do filho, opondo-se à sua vontade de morrer. Paul abraçou-a. Ela estava doente, metia dó.

– Deixe lá, mãezinha! – murmurou Paul. – Desde que a vida não nos pareça mesquinha e miserável, o resto não importa... que seja feliz ou infeliz.

Ela apertou-o contra o peito.

– Mas eu quero que sejas feliz – disse, pateticamente.

– Oh, mãezinha adorada... diga antes que quer que eu viva.

Mrs. Morel sentiu o coração morrer por ele. Sabia que, por este andar, ele não duraria muito. O seu desleixo pungente, a propensão para o sofrimento, a vida que levava, eram tudo formas lentas de suicídio. Dilacerava-se-lhe o coração só de pensar. Odiava Miriam com toda a força da sua determinação por tão subtilmente ter minado a alegria de Paul. Não lhe interessava que não o fizesse por mal. Fazia-o, e ela odiava-a.

Queria tanto que o filho se apaixonasse por uma rapariga à sua altura – educada e forte. Mas ele não olhava para ninguém que considerasse superior. Parecia gostar de Mrs. Dawes. Pelo menos esse sentimento era genuíno. A mãe não se cansava de rezar por ele, para que não se perdesse. Era tudo o que pedia: não pela sua alma ou pela rectidão do seu carácter, mas para que não se perdesse. E, enquanto ele dormia, passava horas a fio a pensar nele e a rezar por ele.

Paul afastou-se de Miriam imperceptivelmente, sem o saber. Arthur só saiu do exército para se casar. O bebé nasceu seis meses após o casamento. Mrs. Morel arranjou-lhe um novo emprego na mesma firma onde trabalhara antes, a ganhar vinte e um xelins por semana. Com a ajuda da mãe de Beatrice, mobilou-lhe uma casinha de dois quartos. Agora estava definitivamente apanhado. Não importava barafustar e espernear, estava bem preso. Andou mal-humorado durante algum tempo, mostrando-se insuportável com a mulher que o amava; não ligava quando o bebé, que era franzino, chorava ou dava preocupações. Fazia à mãe queixas intermináveis, mas ela limitava-se a dizer: «Bem, meu filho, o responsável és tu, tens de aprender a tirar partido da situação.» E, finalmente, ganhou juízo. Agarrou-se ao trabalho, assumiu as suas responsabilidades, compreendeu que pertencia à mulher e ao filho e aprendeu a tirar o melhor partido da situação. Nunca se tinha sentido muito ligado à família, e agora afastava-se de vez.

Os meses iam passando devagar. Através de Clara, Paul tinha-se mais ou menos relacionado com os socialistas, as sufragistas e os sindicalistas de Nottingham. Um dia, uma amiga dele e de Clara, que morava em Bestwood, pediu-lhe que levasse um recado a Mrs. Dawes. Ao fim da tarde, Paul foi até Bluebell Hill, metendo por Sneinton Market, e lá conseguiu encontrar a casa numa ruela empedrada a granito e com passeios de tijolo azul-escuro, rugoso. Um degrau separava a porta da tosca calçada, servindo também para as pessoas limparem os pés e baterem com as botas para sacudirem a lama. A pintura castanha da porta estava tão deteriorada que se via a madeira por baixo da tinta a descascar. Paul ficou na rua, e bateu à porta. Soaram passos pesados e, por cima da sua cabeça, surgiu uma mulher alentada, por volta dos sessenta anos. Ele olhou para ela do passeio. A mulher tinha uma expressão severa.

Mandou-o entrar para a sala, que dava directamente para a rua. Era um quartinho pequeno, abafado e tétrico, com móveis de mogno e descomunais retratos a carvão de gente já falecida. Mrs. Radford saiu da sala com o seu passo imponente, quase marcial. Clara entrou logo a seguir e, ao vê-lo, corou até às orelhas, o que o deixou atrapalhado. Era como se não lhe agradasse que ele a tivesse vindo encontrar no seu ambiente doméstico.

– Parecia-me impossível ser a tua voz – disse ela.

Mas agora, perdido por cem, perdido por mil... e levou-o do mausoléu directamente para a cozinha.

A cozinha era também escura e acanhada, mas encontrava-se atafulhada de rendas brancas. A mãe tinha ido sentar-se de novo junto ao aparador, às voltas com uma emaranhada teia de renda. À sua direita, um monte solto de linha de algodão; à esquerda, tufos e mais tufos de espiguilha de renda; e, à sua frente, sobre o tapete da lareira, a tal teia emaranhada. Os fios encaracolados, puxados do emaranhado de rendas, espalhavam-se por cima do guarda-fogo e pela chaminé. Paul não se atrevia a dar um passo, não fosse tropeçar nos rolos de linha branca.

Em cima da mesa estava uma dobadoura. Havia ainda um maço de cartões castanhos e quadrados para enrolar a renda, uma caixinha de alfinetes e, em cima do sofá, um outro monte de renda.

Havia rendas por todo o lado, e a cozinha era tão escura e quente que fazia sobressair ainda mais a nuvem branca, rendada.

– Já que cá tá, num repare d’eu continuar a trabalhar – disse Mrs. Radford. – Sei que tá tudo atravancado, mas faça o favor de s’assentar.

Clara, muito atrapalhada, encostou à parede uma cadeira, para ele se sentar, em frente aos novelos de brancura, e sentou-se ela no sofá, envergonhada.

– Quer beber uma cerveja preta? – perguntou Mrs. Radford.

– Clara, vai buscar-lhe uma cerveja.

Paul protestou, mas Mrs. Radford insistiu.

– Tá cum ar de quem precisa – disse ela. – Nunca anda com melhores cores do qu’isso?

– É da minha pele, é muito grossa e não deixa ver o sangue à transparência – respondeu ele.

Clara, envergonhada e aborrecida, trouxe-lhe uma garrafa de cerveja e um copo. Paul deitou o líquido preto no copo.

– Bem – disse ele, erguendo o copo –, à nossa!

– Agradecida – disse Mrs. Radford.

Paul bebeu um gole.

– E pode fumar à vontade, desde que num deite fogo à casa – acrescentou Mrs. Radford.

– Obrigado – respondeu Paul.

– Num precisa de m’agradecer – disse ela. – Até vou gostar de sintir o cheirinho do tabaco aqui em casa outra vez. Uma casa só de mulheres é tão triste com’uma casa sem lareira, acho eu. Num sou de querer o meu canto só pra mim. Inté gosto de ver um home a andar por aí... se ele for alguma coisa que se veja.

Clara começou a trabalhar. A dobadoura rodava, chiando mansamente, e a renda branca saltava-lhe por entre os dedos para o cartão. Quando o cartão ficou cheio, ela partiu a espiguilha e, com um alfinete, prendeu a ponta à renda já enrolada. Depois, meteu novo cartão na dobadoura. Paul observava-a. Estava sentada com as costas muito direitas, magnífica. Tinha o pescoço e os braços desnudados. O sangue aflorava-lhe à face, por baixo da orelha, e mantinha a cabeça baixa, de vergonha e humilhação. Os olhos estavam pregados no trabalho. Os seus braços eram de um tom mate e pujantes de vida, comparados com a renda branca. As suas mãos, grandes e bem tratadas, trabalhavam em movimentos cadenciados, como se nada pudesse apressá-las. Ele, sem se aperceber, não tirava os olhos dela. Era a linha do seu pescoço, prolongando-se desde o ombro, quando ela se curvava; era o seu cabelo castanho-escuro; era o movimento dos seus braços resplandecentes.

– A Clara falou-me de si – continuou a mãe. – Trabalha na Jordan, não é? – E continuou a fazer renda sem parar.

– É, sim.

– Inda m’alembra de quando o Thomas Jordan costumava pedir-me caramelos.

– Ah, sim? – disse Paul, sorrindo. – E ele merecia-os?

– Umas vezes sim, outras não... sobretudo para o fim. Ele é dos que levam tudo e num dão nada, isso é qu’ele é... ou, pelo menos, costumava ser.

– Eu acho-o uma pessoa muito decente.

– Bom... folgo em saber.

Mrs. Radford olhava Paul sem pestanejar. Havia nela uma determinação que lhe agradava. A cara estava flácida, mas os olhos eram calmos, e havia nela um vigor que refutava a velhice, fazendo as rugas e as peles parecerem um mero anacronismo. Tinha a força e o sangue-frio de uma mulher na pujança da vida. Continuou a fazer renda com movimentos lentos e muita dignidade. A fofa teia amontoava-se-lhe inevitavelmente no avental, tombando depois pouco a pouco para o chão, ao seu lado. Os braços eram bem torneados, mas luzidios e amarelados, de marfim velho, e não tinham aquele tom mate que tornava, a seu ver, tão fascinantes os de Clara.

– Anda atão c’a Miriam Leivers? – perguntou a mãe de Clara.

– Bem... – disse ele.

– É boa rapariga – prosseguiu Mrs. Radford. – Boa rapariga, mas um bocado fedúncia cá prò meu gosto.

– Sim, talvez... – concordou Paul.

– Só fica satisfeita quando tiver asas pra poder voar por cima da cabeça de toda a gente – disse ela.

Clara interrompeu-os, e Paul deu-lhe o recado que o levara lá. Ela falava com ele com humildade, vendo-se surpreendida no seu antro de miséria. Ao vê-la assim, humilde, era como se ele a esperasse, ansioso.

– Gostas de dobar? – perguntou Paul.

– O que é que uma mulher há-de fazer? – respondeu ela amargamente.

– É cansativo?

– Mais ou menos. E não o é todo o trabalho feminino? Essa é outra das partidas que os homens nos pregaram, desde que conquistámos o nosso lugar no mundo do trabalho.

– Atão... num fales mal dos homes – disse a mãe. – S’as mulheres num fossem umas parvas, os homes num eram tão maus, é o qu’eu digo... Olha que nenhum home me tratou mal que não levasse o troco... Mas que são uns danados, lá isso são, num adianta negar.

– Mas boas pessoas, não concorda? – perguntou Paul.

– Bem... são um bocado diferentes das mulheres – disse ela.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – perguntou ele a Clara.

– Acho que não – respondeu ela.

– Gostava, pois! – exclamou a mãe. – Ficava toda contente se voltasse. Num lhe ligue. Ela é toda cheia de nove horas, mas qualquer dia inda vai morrer de fome.

Clara passava vergonhas com a mãe. Até Paul sentia os olhos abrirem-se-lhe de espanto. Será que não devia mesmo ligar aos remoques de Clara? Ela trabalhava com afinco. E ele sentiu um arrepio de prazer só de pensar que ela podia precisar da sua ajuda. Parecia tão carente e privada de tanta coisa. O seu braço, que não fora feito para se amarrar a um mecanismo, movia-se mecanicamente; e a cabeça, que não fora feita para andar curvada, curvava-se sobre a renda. Parecia presa à dobadoura, entre os desperdícios de uma vida. Era muito duro para ela ver-se dispensada pela vida, como se já não tivesse préstimo. Não admira que protestasse tanto.

Clara acompanhou-o à porta. Ele ficou parado na ruela miserável, a olhar para ela. Era tão soberba na figura e no porte que fazia lembrar Juno destronada. De pé, na soleira da porta, fechava os olhos à rua e à miséria que a rodeava.

– Vais a Hucknall com Mrs. Hodgkinson?

Paul dizia coisas sem sentido, de olhos postos nela. Os olhos cinzentos de Clara encontraram finalmente os seus. Estavam mudos de humilhação, contritos, com uma espécie de submissão de escrava. Ele ficou surpreendido, sem saber o que fazer. Sempre a tinha imaginado altiva e poderosa.

Quando dali saiu, só lhe apetecia fugir. Dirigiu-se para a estação, como um sonâmbulo, e chegou a casa sem consciência de já não estar na rua dela.

Estava convencido de que Susan, a supervisora da Espiral, se ia casar, e no dia seguinte perguntou-lho.

– Diz-me uma coisa, Susan, ouvi dizer que te vais casar. É verdade?

Susan corou.

– Quem te disse? – perguntou ela.

– Ninguém. Apenas ouvi dizer que estavas a pensar...

– Lá isso estou... Mas não precisas de contar a ninguém. E, ainda por cima, quem me dera não estar...!

– Julgas que eu acredito nisso, Susan?

– Pois podes acreditar. Antes queria mil vezes ficar como estou.

Paul estava chocado.

– Porquê, Susan?

A rapariga estava ruborizada e fulminava-o com o olhar.

– Porque sim!

– E tens mesmo de casar?

Em resposta, ela limitou-se a olhar para ele. Paul tinha uma candura e uma gentileza que faziam as mulheres confiar nele. Compreendeu o que ela queria dizer.

– Ah, desculpa – disse ele. Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

– Mas verás que tudo vai correr bem. Tenta ver as coisas pelo lado melhor – disse ele, melancólico.

– Nem posso fazer outra coisa.

– Podes sim, podes dar cabo da tua vida. Esforça-te por seres feliz.

Paul arranjou novo pretexto para ir a casa de Clara.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – disse ele.

Ela pousou o trabalho, apoiou os braços belíssimos em cima da mesa e fitou-o sem responder. Pouco a pouco, um rubor subiu-lhe às faces.

– Porquê? – perguntou.

Paul sentiu-se constrangido.

– Bem... É que a Susan está a pensar em ir-se embora. Clara continuou a dobar. A espiguilha branca pulava e saltava para o cartão. Ele aguardou. Sem levantar a cabeça, ela disse por fim, numa voz desusadamente baixa:

– Falaste com alguém sobre o assunto?

– Nem uma palavra... Só contigo.

Seguiu-se novo e longo silêncio.

– Quando puserem o anúncio, concorro – disse ela.

– Tens de concorrer antes. Eu digo-te quando.

Ela continuou a fazer girar a dobadoura e não o contrariou.

Clara voltou para a Jordan. Algumas das funcionárias mais antigas, entre elas Fanny, lembravam-se dela de outros tempos e não guardavam boas memórias. Clara sempre fora muito altiva, uma mulher reservada e superior. Nunca se misturava com as colegas e sempre que tinha oportunidade de as criticar, fazia-o com frieza e extrema delicadeza, o que as fazia sentirem-se mais insultadas do que agastadas. Para com Fanny, a pobre corcunda hipersensível, Clara fora sempre extremamente amável e gentil, o que fazia Fanny chorar ainda mais do que as línguas grosseiras das outras supervisoras.


CONTINUA

Era ali, naquele momento, que ela se alimentava de vida para toda uma semana. Ele mandou-a copiar o poema Le Balcon, de Baudelaire e, em seguida, leu-o para ela ouvir. A voz dele era suave e acariciante, mas nos crescendos tornava-se brutal. Paul tinha um modo apaixonado e, ao mesmo tempo, amargurado de arreganhar os lábios e mostrar os dentes sempre que as palavras o levavam ao rubro. E assim fazia agora, fazendo sentir a Miriam que ele a estava a espezinhar. Ela nem se atrevia a olhar para ele, mantendo-se sentada e de cabeça baixa. Não entendia por que razão ele se deixava arrebatar por tão tumultuosas fúrias, e isso deixava-a desfeita. Ainda por cima, nem sequer gostava muito de Baudelaire... nem de Verlaine.


«Olha-a, a cantar pelos campos,

Filha solitária das montanhas...»


Isto sim, alimentava-lhe a alma... tal como a «Linda Inês». E também:


«Caía bela a noite, doce e pura,

Em suspiros sagrados e serenos, como freira...»


Estes versos, sim, eram como ela. E ele, ali à sua frente, arrancando da garganta, em grito rouco:


«Tu te rappelleras la beauté dês caresses.»3


O poema terminou e Paul tirou os pães do forno, metendo-os no alguidar, os queimados no fundo e os bons por cima. A carcaça ressequida continuava na copa embrulhada num pano húmido.

– A Mater não precisa de saber até amanhã de manhã – disse ele. – Já não se vai zangar tanto como esta noite.

Miriam foi à estante e viu as cartas e postais que ele tinha recebido, e quais os livros que lá tinha, e tirou um em que ele se mostrara interessado. Depois, Paul desligou o gás e saíram. Paul nem se preocupou em fechar a porta à chave.

Quando voltou já faltava um quarto para as onze. A mãe estava sentada na cadeira de baloiço e Annie num banquinho junto da lareira, com o cabelo a cair-lhe pelas costas abaixo e os cotovelos apoiados nos joelhos, taciturna. Em cima da mesa, a carcaça da discórdia, já desembrulhada. Paul entrou ofegante. Ninguém abriu a boca. A mãe lia a gazeta local. Ele despiu o casaco e foi sentar-se no sofá. A mãe chegou-se para o lado com brusquidão, deixando-o passar. Ninguém abria a boca. Ele já não sabia como havia de estar. Durante alguns minutos, fingiu ler um bocado do jornal que encontrou em cima da mesa. Mas depois disse:

– Esqueci-me daquele pão no forno, mãe.

Nenhuma das mulheres lhe respondeu.

– Bem – continuou ele –, são só dois dinheiros e meio. Se quiser, eu pago.

Amuado, pôs três moedas em cima da mesa e empurrou-as na direcção da mãe. Ela voltou a cabeça para o outro lado. A boca continuava crispada.

– Pois é – disse Annie –, tu nem fazes ideia de como a mãe se sente mal!

E a rapariga continuou carrancuda a olhar para o lume.

– Sente-se mal porquê? – perguntou Paul, no seu tom autoritário.

– Essa agora – disse Annie. – Viu-se aflita para chegar a casa.

Paul olhou com atenção para a mãe. Parecia de facto doente.

– Viu-se aflita para chegar a casa porquê? – perguntou ele, ainda agreste. A irmã não respondeu.

– Vim encontrá-la aqui sentada, branca como a cera – disse Annie, com lágrimas na voz.

– Diga lá porque foi! – insistiu Paul, já de testa franzida e olhos empolgadamente dilatados.

– Era o suficiente para deixar qualquer pessoa doente – disse Mrs. Morel. – Carregar nos braços com as compras todas... a carne, os legumes e as cortinas...

– Para que carregou com tudo? Não era preciso.

– E então quem é que carregava?

– Mandava a Annie ir buscar a carne.

– Claro que eu tinha ido buscar a carne. Mas como é que eu podia adivinhar? Tu andavas a passear com a Miriam, em vez de estares em casa quando a mãe chegou.

– Mas o que é que lhe aconteceu? – perguntou Paul à mãe.

– Deve ser o coração – respondeu ela. De facto, tinha os lábios azulados.

– E já tinha sentido isso alguma vez?

– Já... e até mais de uma vez.

– Então porque não me disse, e porque é que não foi ao médico?

Mrs. Morel mexeu-se na cadeira, irritada com a prelecção.

– Tu nunca reparas em nada – disse Annie. – Só pensas em andar com a Miriam.

– Ah, sim? E tu e o Leonard... não é a mesma coisa?

– Eu cheguei a casa faltava um quarto para as dez.

Seguiram-se uns minutos de silêncio.

– Nunca imaginei que ela te deixasse tão distraído, ao ponto de queimares uma fornada inteira de pão – disse Mrs. Morel com azedume.

– A Beatrice também cá estava.

– Acredito. Mas nós sabemos porque é que o pão se queimou.

– E porque foi? – disse ele intempestivo.

– Porque tu estavas todo entretido com a Miriam – replicou Mrs. Morel acalorada.

– Pois fique sabendo que não foi nada por isso! – ripostou ele, sacudido.

Estava desgostoso e infeliz. Pegou no jornal e começou a ler. Annie, com a blusa já desabotoada e duas longas tranças, foi para cima, para a cama, dando-lhe secamente as boas-noites.

Paul continuou a fingir que estava a ler. Por um lado, sabia que a mãe lhe queria pregar um sermão. Mas, por outro, queria saber o que a pusera naquele estado, e estava preocupado. Por isso, em vez de ir a correr para a cama, como era sua vontade, ficou à espera. Sentia-se a tensão no silêncio. O tiquetaque do relógio soava forte.

– O melhor é ires deitar-te antes de o teu pai chegar – disse Mrs. Morel, com rispidez. – E se quiseres comer alguma coisa, tens de ir buscá-la.

– Não quero nada.

A mãe costumava preparar-lhe qualquer coisa para a ceia às sextas-feiras à noite, que era a noite de luxo dos mineiros. Mas ele estava demasiado irritado para ir buscar a ceia à despensa, e ela sentiu-se insultada.

– Se eu quisesse que fosses a Selby numa sexta-feira à noite, já estou a imaginar a cena – disse Mrs. Morel. – Mas quando é ela a vir buscar-te, nem sabes o que é cansaço. E já nem comes nem bebes.

– Não posso deixá-la voltar sozinha.

– Ah, não podes... E então para que é que ela vem?

– Não sou eu que lhe peço.

– Ela não vinha se tu não a quisesses cá...

– E se eu a quiser...? Hem? – repontou ele.

– Nada a opor, se fosse sensato ou razoável. Mas calcorrear milhas e milhas por cima dum lamaçal e voltar à meia-noite, para quem tem de ir logo pela manhã para Nottingham...

– E, se não tivesse de ir, para si era a mesma coisa.

– Pois era, porque isto não faz sentido nenhum. Ela é assim tão fascinante que tenhas de andar atrás dela para todo o lado? – perguntou Mrs. Morel, com acerado sarcasmo, continuando sentada, com cara de poucos amigos, esfregando o cetim preto do avental em movimentos ritmadamente repetidos. Aquele motu-contínuo quase enlouquecia Paul.

– Eu gosto muito dela – disse ele – mas...

– Gostas então dela! – disse Mrs. Morel, no mesmo tom mordaz. – Pois a mim parece-me que não gostas de mais nada nem de mais ninguém. Para ti, agora, não existe mais ninguém: nem eu, nem a Annie... nada.

– Que disparate, mãe... sabe bem que eu não amo a Miriam... eu... posso garantir-lhe que não a amo... ela não anda de braço dado comigo nem nada, porque eu não quero.

– Então porque é que vais a correr tantas vezes para ao pé dela?

– Porque gosto muito de falar com ela... Nunca disse que não gostava. Mas não a amo.

– E não tens mais ninguém com quem falar?

– Não acerca das coisas de que nós falamos. Há muitas coisas por que a mãe não se interessa e que...

– Que coisas...?

Mrs. Morel estava tão exaltada que Paul começou a gaguejar.

– Ora essa... pintura... livros... A mãe, por exemplo, não gosta de Herbert Spencer.

– Não – foi a resposta concisa. – E tu também não vais gostar, quando tiveres a minha idade.

– Está bem, mas gosto agora... e a Miriam também...

– E como é que sabes – atalhou Mrs. Morel em tom de desafio – que eu não gosto. Já experimentaste perguntar-me?

– Mas eu sei que não gosta, mãe, sabe bem que não lhe interessa discutir se um quadro é ou não decorativo... é-lhe indiferente qual o seu estilo.

– Como sabes que não me interessa... já experimentaste perguntar-me? Alguma vez conversas comigo sobre essas coisas, só para experimentar?

– Mas a mãe sabe bem que para si isso não conta, sabe bem que não.

– Então o que é, diz lá... o que é que conta para mim? – desferiu ela.

Paul franziu a testa, magoado.

– A senhora é velha, mãe, e nós somos novos.

O que ele queria dizer era que os interesses da idade dela não eram idênticos aos da sua. Mas mal acabou a frase percebeu que tinha dito o que não devia.

– Sim, sei muito bem... sou uma velha! E por isso mesmo devo manter-me afastada... já não tenho nada a ver contigo. Tu só me queres para te servir de criada... o resto é com a Miriam.

Ele já não aguentava mais. Instintivamente, apercebeu-se de que ele era toda a vida dela. E, bem vistas as coisas, ela era para ele a coisa mais importante, a única verdade suprema.

– Sabe bem que não é assim, mãe... sabe bem que não é.

O grito dele comoveu-a.

– Pois olha que parece mesmo – disse ela, deixando de certa forma de lado o desespero.

– Não, mãe... na verdade, eu não a amo. Converso com ela... mas é para a nossa casa, para ao pé de si que eu quero vir.

Paul, já sem o colarinho e a gravata, levantou-se para se ir deitar. Quando ia a dar um beijo à mãe, ela passou-lhe os braços em volta do pescoço, escondeu a cara no seu ombro e pôs-se a choramingar, com uma voz dorida, tão pouco habitual nela que o fez crispar-se de agonia.

– Eu já não aguento mais. Uma outra mulher talvez... mas ela não... ela não me daria espaço algum... nem um bocadinho...

E imediatamente sentiu que odiava Miriam amargamente.

– E eu nunca... tu sabes, Paul... eu nunca tive um marido... não um de verdade...

Ele acariciou-lhe os cabelos e os seus lábios afloraram o pescoço dela.

– E ela esforça-se tanto para te afastar de mim... ela não é como as outras raparigas.

– Bem, mãe, eu não a amo – murmurou ele, baixando a cabeça e escondendo os olhos no ombro dela, muito infeliz. A mãe deu-lhe um beijo ardente e longo.

– Meu filho! – disse, com a voz trémula de amor. E ele, sem se aperceber, acariciou-lhe suavemente o rosto.

– Pronto – disse a mãe. – Agora vai deitar-te. Senão amanhã de manhã acordas muito cansado.

Enquanto falava, Mrs. Morel sentiu o marido entrar.

– Vem aí o teu pai... vá, já para a cama... – Subitamente, olhou para o filho quase a medo. – Talvez eu esteja a ser egoísta. Se a queres, meu filho, fica com ela.

A mãe estava a comportar-se de uma forma muito estranha, pensou Paul, beijando-a, ainda a tremer.

– Oh, mãe! – disse ele meigamente.

Morel entrou aos tropeções. Trazia o chapéu tombado sobre o canto do olho. Ao transpor a porta, perdeu o equilíbrio. – Outra vez a fazeres das tuas? – disse ele, acintosamente.

As emoções de Mrs. Morel transformaram-se instantaneamente em ódio por aquele bêbado que viera intrometer-se tão intempestivamente.

– Pelo menos, ele está sóbrio – disse ela.

– Hum... hum...! Hum... hum! – fez ele, cinicamente.

Foi ao corredor e pendurou o chapéu e o casaco. Em seguida, ouviram-no descer os três degraus da despensa. Quando voltou trazia na mão uma fatia de empadão de carne de porco. Era o que Mrs. Morel tinha comprado para o filho.

– Isso não é para ti. Se não me podes dar mais de vinte e cinco xelins, certamente não te vou comprar empadão de carne de porco, para tu te regalares depois de teres enchido a barriga de cerveja.

– O quê?... O quê? – rosnou Morel, a cambalear e, num repente, atirou o empadão para a lareira, num acesso de mau génio e mesquinhez.

Paul pôs-se de pé num salto.

– Deite fora o que é seu! – gritou.

– O quê?... O quê? – berrou Morel de imediato, dando um salto atrás e cerrando os punhos. – Vais ver como elas mordem... meu menino!

– Muito bem! – disse Paul, cinicamente, deitando a cabeça de lado. – Então vamos lá ver...!

O que mais gostaria naquele momento era de poder bater em qualquer coisa, não importava o quê. Morel estava semidobrado, de punhos em riste, pronto a atacar.

O jovem estava de pé, com um sorriso nos lábios.

– Zás! – silvou o pai, desferindo um soco no ar com um gesto largo, rente à cara do filho. Apesar de tão próximo, não se atreveu a tocar-lhe realmente, passando-lhe a uma escassa polegada de distância.

– Isso! – disse Paul, de olhos pregados na boca do pai, onde a todo o momento o seu punho acertaria. Estava louco por dar aquele soco, mas ouviu um vago gemido atrás de si. A mãe estava lívida de morte e com a boca toda roxa. Morel saltitava, preparando novo ataque.

– Pai! – disse Paul, bem alto para lhe chamar a atenção.

Morel parou, assustado.

– Mãe! – gemeu o rapaz. – Mãe!

Ela começou a lutar contra si própria. Os seus olhos muito abertos observavam-no, apesar de não se poder mexer. A pouco e pouco ia voltando a si. O filho deitou-a no sofá e foi a correr buscar um pouco de uísque, de que ela por fim bebeu alguns golinhos. As lágrimas rolavam-lhe pela cara abaixo. Enquanto esteve ajoelhado ao lado da mãe não chorou, mas as lágrimas irromperam logo a seguir. Morel, sentado do outro lado da sala com os cotovelos apoiados nos joelhos, fuzilava o filho com o olhar.

– Qu’é qu’ela tem? – perguntou.

– Desmaiou! – respondeu Paul.

– Hum!

O homem mais velho começou a desapertar os atacadores das botas. Depois, foi aos tombos para o quarto. Tinha travado a sua derradeira luta naquela casa.

Paul estava ajoelhado ao lado da mãe, esfregando-lhe as mãos.

– Não fique assim, mãe... não fique assim! – não se cansava ele de repetir.

– Isto não é nada, meu filho – murmurou ela.

Finalmente, Paul levantou-se, foi buscar um grande bocado de carvão e abafou o borralho. Depois arrumou a sala, colocou tudo nos seus devidos lugares, pôs a mesa para o pequeno-almoço e foi buscar a palmatória da mãe.

– Consegue ir para a cama sozinha, mãe?

– Consigo, sim... Eu vou.

– Durma com a Annie, mãe, com ele não.

– Não... vou dormir na minha cama.

– Não durma com ele, mãe.

– Vou dormir na minha cama.

Mrs. Morel levantou-se e Paul desligou o gás, subindo depois a escada atrás dela, com a vela. Ao chegarem ao patamar, ele beijou-a ternamente.

– Boa noite, mãe.

– Boa noite – respondeu ela.

Ele enfiou a cabeça na almofada, num acesso de desespero. E, no entanto, sentia paz algures nos recônditos da alma, pois continuava a amar a mãe acima de todas as coisas. Era a paz amarga da resignação.

Os esforços do pai no dia seguinte para o cativar foram para ele uma verdadeira humilhação.

E todos tentaram esquecer o incidente.

2 «Esta manhã os pássaros acordaram-me. Ainda não era dia. Mas a janelinha do meu quarto clareou e logo ficou dourada, e todos os pássaros do bosque irromperam num canto vivo e sonoro.
E a aurora estremeceu. Tinha sonhado contigo. Será que também contemplas a aurora?

Os pássaros acordam-me quase todas as manhãs, e há sempre uma nota de terror no grito dos tordos. Está tão claro...» (N. da T.)

3 «Recordarás a beleza das carícias.» (N. da T.)


IX

A DERROTA DE MIRIAM

PAUL sentia-se descontente consigo mesmo e com tudo o que o rodeava. O seu amor mais profundo dedicava-o à mãe. Não podia suportar a sensação de a ter magoado ou de algum modo ferido o seu amor por ela. A Primavera já se anunciava e, com ela, uma batalha entre ele e Miriam. Este ano Paul tinha muitas queixas contra Miriam e ela estava vagamente consciente desse facto. O velho sentimento que experimentara ao rezar, e lhe segredara que teria de se sacrificar a este amor, misturava-se em todas as suas emoções. No fundo, Miriam não acreditava poder algum dia vir a ter Paul para si. Em primeiro lugar, não acreditava em si mesma: duvidava poder vir a ser o que ele exigiria que ela fosse. Por certo nunca se imaginara a viver a seu lado uma vida de eterna felicidade. O futuro prefigurava-lhe tragédia, dor e sacrifício. E, se no sacrifício era orgulhosa, na renúncia ela era forte; mas não confiava em si mesma para suportar a vida do dia-a-dia. Sentia-se preparada para gestos grandiosos e profundos, gestos dignos de tragédia. Não podia era confiar na sua capacidade de lidar com a pequenez do quotidiano.

As férias da Páscoa iniciaram-se num ambiente feliz. Paul mostrava-se franco, como na realidade o era. Contudo, Miriam sentia que algo iria perturbar aquela paz. No domingo à tarde, deteve-se à janela do seu quarto, olhando os carvalhos do bosque, em cuja folhagem se emaranhavam uns ténues raios de luz sob o resplandecente céu da tarde. Rosetas de folhas de madressilva verde-cinza pendiam frente à janela, algumas, pensou, já em botão. Era Primavera, tempo que Miriam amava e temia ao mesmo tempo.

Ouvindo o ranger do portão, ficou na expectativa. Estava um dia cinzento e luminoso. Paul entrou no pátio com a bicicleta, que reluzia à medida que ele andava. Era hábito tocar a campainha e sorrir em direcção à casa. Hoje, porém, caminhava de lábios cerrados, numa atitude fria e cruel que tinha algo de desprezo e indolência. Ela já o conhecia muito bem e, pela expressão penetrante e reservada do seu rosto jovial, sabia dizer o que se passava no seu íntimo. Havia um tal rigor de frieza no modo como colocou a bicicleta no lugar que o coração de Miriam soçobrou.

Desceu ao andar de baixo, nervosa. Vestia uma blusa nova de malha que, achava ela, lhe assentava muito bem. Tinha uma gola alta, debruada com um folho que lhe lembrava a Rainha Mary da Escócia e lhe dava, pensava ela, um ar encantadoramente feminino e muito digno. Com vinte anos, possuía uns seios bem desenvolvidos e formas voluptuosas. O seu rosto era ainda como uma máscara suave e rica, inalterável. Mas os seus olhos, quando os erguia, eram maravilhosos. Ela tinha medo dele. Ele iria reparar na sua blusa nova.

Paul mostrava-se de disposição dura e irónica, e divertia a família com a descrição de um sermão proferido na Capela Metodista Primitiva por um dos mais conhecidos pregadores da seita. Estava sentado à cabeceira da mesa com o seu rosto versátil e os seus olhos, que conseguiam ser tão belos, brilhando ternamente ou dançando risonhos, assumiam várias expressões, numa imitação das diversas pessoas que caricaturava. A sua veia jocosa sempre a magoara – era demasiado próxima da realidade. Paul era demasiado inteligente e cruel e ela sentia que, quando o seu olhar se enchia, como agora, de feroz ódio trocista, ele não poupava ninguém, nem mesmo a sua própria pessoa. Mas Mrs. Leivers enxugava os olhos marejados de lágrimas, de tanto rir, e Mr. Leivers, já desperto da sua sesta dominical, coçava a cabeça divertido. Os três irmãos, sentados em atitudes desleixadas e sonolentas e em mangas de camisa, soltavam uma gargalhada de vez em quando. O que a família mais adorava era, acima de tudo, uma boa caricatura.

Paul não prestou atenção a Miriam. Mais tarde, ela percebeu que ele tinha reparado na sua blusa nova, viu que o artista a aprovara, mas isso não merecera da sua parte o mínimo lampejo de ternura. Estava nervosa e mal conseguia chegar às chávenas de chá nas prateleiras do armário.

Quando os homens saíram para a ordenha, ousou dirigir-se-lhe pessoalmente:

– Vieste atrasado – disse.

– Vim? – perguntou ele.

Por um momento fez-se silêncio.

– Foi difícil vires a pedalar até aqui? – perguntou ela.

– Nem notei.

Ela continuou a pôr a mesa rapidamente. Quando acabou, disse-lhe:

– O chá só é servido dentro de alguns minutos. Queres vir ver os narcisos?

Ele ergueu-se, sem responder. Dirigiram-se para o jardim das traseiras, sob as ameixoeiras em flor. As colinas e o céu estavam límpidos e frios. Tudo parecia lavado, um pouco agreste talvez. Miriam lançou um olhar a Paul. Ele estava pálido e impassível. A ela parecia-lhe uma crueldade que aqueles olhos e sobrancelhas que ela tanto amava pudessem feri-la tanto.

– O vento cansou-te? – perguntou.

Detectou nele uma certa fadiga.

– Não, acho que não – respondeu ele.

– Deve ser cansativo na estrada... o vento sopra tão forte.

– Pelas nuvens podes ver que é vento sudoeste: até me ajudou a chegar aqui.

– Sabes que eu não ando de bicicleta, por isso não entendo o que queres dizer – murmurou ela.

– E é preciso andar de bicicleta para saber isso? – replicou ele.

Miriam pensou que o seu sarcasmo era desnecessário. Mantiveram-se em silêncio. Em redor do relvado maltratado com a erva muito alta situado nas traseiras da casa, havia uma sebe de espinheiros sob a qual os narcisos se erguiam dos seus ninhos de folhas verde-cinza. As faces das flores estavam esverdeadas de frio. Mas, mesmo assim, algumas haviam já florescido e o seu tom dourado agitava-se e resplandecia. Miriam ajoelhou-se diante de um ramalhete, tomou nas mãos um narciso de ar silvestre, voltou para si a sua face dourada e inclinou-se, acariciando-o com a boca, as faces e a fronte. Paul permaneceu de pé, ligeiramente afastado, de mãos nos bolsos, observando-a. Uma após outra, ela virou para ele as faces das flores amarelas, recém-abertas, em atitude suplicante, afagando-as com veemência.

– Não são magníficos? – murmurou.

– Magníficos?... Não será um pouco de mais?... São bonitos!

Ela inclinou-se novamente para as suas flores, perante esta censura à sua atitude de adoração. Ele ficou a vê-la adular e saborear as flores com beijos fervorosos.

– Porque tens de estar sempre a acariciar as coisas? – recriminou-a, irritado.

– Gosto de lhes tocar – replicou ela, magoada.

– Será que não podes gostar das coisas sem teres de te agarrar a elas como se quisesses arrancar-lhes o coração? Porque não tens um pouco mais de domínio ou reserva, ou o que quer que seja?

Ela ergueu para ele um olhar cheio de dor, continuando depois a pressionar os lábios, lentamente, contra uma flor ondulada. O seu aroma, quando o sentiu, era tão mais delicado do que Paul que quase a fez chorar.

– Com a tua adulação, retiras a alma às coisas – disse ele. – Eu nunca seria capaz de uma adulação... Em qualquer circunstância, seria sempre directo.

Paul não sabia o que dizia. Estas coisas saíam-lhe mecanicamente. Ela olhou para ele. O seu corpo parecia uma arma, firme e duro contra ela.

– Tu estás sempre a suplicar às coisas que te amem – disse ele – como se fosses uma pedinte de amor. Até as flores tu tens de acariciar...

Ritmadamente, Miriam agitava e amachucava a flor com a boca, inalando o perfume que daí em diante a faria estremecer sempre que penetrasse nas suas narinas.

– Tu não queres amar... a tua súplica eterna e anormal é seres amada. Não és positiva, és negativa. Absorves, absorves, como se necessitasses de te encher de amor por teres algures uma insuficiência.

Miriam estava aturdida com a crueldade de Paul, e não o escutava. Ele não tinha a mínima ideia do que estava a dizer. Era como se a sua alma inquieta e torturada, inflamada por uma paixão frustrada, fizesse jorrar aquelas palavras como centelhas brotando da electricidade. Ela não entendia nada do que ele dizia. Deixou-se ficar sentada, esmagada sob a sua crueldade e o seu ódio por ela. Nunca entendia as coisas num lampejo. Era assim com tudo, cismava e tornava a cismar.

Depois do chá, ele ficou a conversar com Edgar e os outros irmãos, não prestando atenção a Miriam. Ela, infinitamente infeliz com esta distância procurada, esperou por ele. Por fim, ele cedeu e veio ao seu encontro. Ela estava determinada a descobrir a origem do seu estado de espírito. Para ela, tudo aquilo não passava de um estado de espírito.

– Vamos passear um pouco pelo bosque? – sugeriu, sabendo que ele nunca recusava um pedido directo.

Desceram em direcção à coelheira. A meio do caminho passaram por uma armadilha, uma pequena cerca em forma de ferradura, feita com galhos de abeto entrelaçados, onde se exibiam, como isca, as vísceras de um coelho. Paul lançou-lhe um olhar, franzindo o sobrolho. Ela chamou-lhe a atenção.

– É terrível, não é? – perguntou.

– Não sei! Será pior que os dentes de uma doninha cravados no pescoço de um coelho? Ou uma doninha ou muitos coelhos. Uma das coisas vai ter de desaparecer!

Para Paul estava a ser difícil enfrentar a face amarga da vida. Miriam sentiu pena dele.

– Vamos para dentro – disse Paul. – Não me apetece andar cá fora.

Passaram pela árvore dos lilases, cujos rebentos das folhas cor de bronze principiavam agora a abrir. Apenas um fragmento restava do palheiro, um monumento quadrado e castanho, como um pilar de pedra. No meio, ainda lá perdurava uma pequena meda de feno da última ceifa.

– Sentemo-nos aqui por um minuto – pediu Miriam.

Ele sentou-se, contrariado, apoiando as costas ao sólido muro de feno. Diante deles, estendia-se o anfiteatro de colinas arredondadas, incandescente à luz do crepúsculo, as pequenas quintas brancas destacando-se na paisagem, os prados dourados, os bosques sombrios e contudo luminosos, as copas das árvores sobrepostas a outras copas de árvores, distintas na distância. A tarde clareara e o oriente suave tingia-se agora de um clarão magenta sob o qual a terra permanecia imóvel e pródiga.

– Não é uma beleza? – murmurou ela suavemente.

Mas ele limitou-se a franzir a testa, mal-humorado. Naquele momento, preferia que tudo fosse feio.

Subitamente, um grande cão veio ter com eles em louca correria, de boca escancarada, levantou as patas dianteiras e colocou-as nos ombros do jovem, lambendo-lhe o rosto. Paul recuou, rindo. Bill era um grande alívio para ele. Afastou o cão, mas este voltou, saltitante.

– Sai daqui – ordenou o rapaz. – Vê lá se queres apanhar.

Mas o cão não estava disposto a desistir facilmente. Então, Paul travou um pequena batalha com o animal, arremessando o pobre Bill para longe, apenas conseguindo contudo fazê-lo tropeçar e voltar à carga violentamente, excitadíssimo. Lutaram os dois, o homem rindo contrafeito, o cão todo ele disponibilidade. Miriam observava-os. Havia algo de patético no homem. Como ele desejava ardentemente amar e ser terno! O modo rude como brincava com o cão era realmente adorável. Paul levantou-se, ofegante de felicidade, os olhos castanhos rolando na cara branca, e de novo se deixou cair pesadamente. O animal adorava Paul. O rapaz lançou-lhe um olhar severo.

– Bill, já chega de brincadeira.

Mas o cão deixou-se ficar com as duas pesadas patas, que tremiam de carinho, assentes na sua coxa, mostrando uma língua ro-sada. O rapaz recuou.

– Não – disse. – Não... já chega.

E logo o cão se afastou, contente por variar de divertimento.

Paul continuou a olhar fixamente para as colinas, cuja beleza impassível invejava. Queria sair dali e ir andar de bicicleta com Edgar. No entanto, não tinha coragem de deixar Miriam.

– Porque estás triste? – perguntou ela, submissa.

– Não estou triste, porque havia de estar? – retorquiu ele. – Estou apenas normal.

Ela perguntava-se por que razão ele sempre afirmava estar normal quando se mostrava desagradável.

– Mas... afinal o que se passa? – perguntou, aliciando-o suavemente.

– Nada!

– Não! – murmurou ela.

Ele pegou num pau e começou a golpear a terra.

– É melhor que não digas nada – disse ele.

– Mas eu quero saber – respondeu ela.

Ele riu-se, ressentido.

– Tu queres sempre saber tudo.

– Não és leal para comigo – murmurou ela.

Ele feriu o solo vezes sem conta com o pau afiado, desprendendo pequenos torrões de terra, como se tomado por uma febre de irritação. Delicada e firmemente, ela pousou a mão sobre o seu pulso.

– Não faças isso! – pediu. – Deita isso fora.

Ele atirou o pau para cima das groselheiras e recostou-se. Já estava recomposto.

– Que se passa? – perguntou ela com suavidade.

Ele manteve-se imperturbável. Apenas o seu olhar vivia intensamente, repleto de tormento.

– Sabes – disse por fim, bastante a custo – sabes... era melhor rompermos a nossa ligação.

Era o que ela temia. Subitamente, tudo pareceu escurecer diante dos seus olhos.

– Porquê? – murmurou. – Que aconteceu?

– Não aconteceu nada... só que temos de ver o terreno que pisamos. Não vale a pena...

Ela esperou em silêncio, tristemente, cheia de paciência. Não adiantava ser impaciente com ele. De qualquer modo, ele dir-lhe-ia agora o que o afligia.

– Concordámos em ser amigos – prosseguiu ele, numa voz monótona e aborrecida. – Quantas vezes concordámos em ser amigos! E, no entanto, as coisas não param por aí, nem chegam a nenhum outro lado.

Paul calou-se. Miriam matutava. Que quereria ele dizer? Estava tão cansado. Havia algo que não queria admitir. Contudo, ela devia ser paciente.

– Eu só posso dar-te amizade... é tudo de que sou capaz... é uma falha na minha maneira de ser. As coisas pesam só para um lado... e eu odeio uma balança desequilibrada... vamos acabar com isto.

Havia um fervor de fúria nas suas últimas frases. O que ele queria dizer é que ela o amava mais a ele do que ele a ela. Talvez não conseguisse amá-la. Talvez ela não possuísse o que ele desejava. Esta falta de confiança em si mesma era o fundamento mais profundo da alma de Miriam. Tão profundo que ela não ousava entendê-lo, nem tão-pouco admiti-lo. Talvez lhe faltasse qualquer coisa. Como uma vergonha infinitamente subtil, esse sentimento sempre a fazia recuar. Se assim fosse, ela passaria sem ele. Nunca se permitiria desejá-lo. Limitar-se-ia a observar.

– Mas o que aconteceu? – perguntou.

– Nada... tinha tudo isto guardado dentro de mim... e só saiu agora. Ficamos sempre assim ao aproximarmo-nos da Páscoa.

Paul humilhou-se tão despojadamente que Miriam sentiu pena. Ela, pelo menos, nunca se tinha deixado cair de um modo tão deplorável. No fim de contas, era ele quem saía mais duramente humilhado.

– Que queres fazer? – perguntou ela.

– Bem... acho que não devo vir aqui tantas vezes... só isso. Porque deveria eu monopolizar-te, quando não sou... Bem vês, no que te diz respeito sou muito incompleto...

Ele estava a dizer-lhe que não a amava e, portanto, deveria dar-lhe uma oportunidade com outro homem. Que tolo e cego e vergonhosamente desajeitado ele era! Que lhe importavam a ela os outros homens! Que importância tinham! Mas ele, ah, ela amava a sua alma. Seria ele incompleto em alguma coisa? Talvez fosse.

– Mas eu não entendo – disse ela, com a voz rouca. – Ainda ontem...

A noite tornara-se desagradável e odiosa para ele à medida que a luz do crepúsculo se dissipava. E ela cedeu ao seu sofrimento.

– Eu sei – gritou ele. – Nem nunca entenderás. Nunca acreditarás que eu não posso... não sou fisicamente capaz, tal como não sou capaz de voar como uma cotovia...

– Capaz de quê? – perguntou ela, num murmúrio. Agora tinha medo.

– De te amar.

Paul odiou-a amargamente naquele momento, por fazê-la sofrer tanto. Amá-la! Miriam sabia que ele a amava. Ele pertencia-lhe realmente. Toda a conversa sobre não a amar fisicamente, corporalmente, era uma mera perversidade da parte dele, pois Paul sabia que ela o amava. Ele estava a ser casmurro como uma criança. Ele pertencia-lhe a ela. A sua alma desejava-a. Miriam suspeitou que alguém o tivesse influenciado. Através da sua rigidez, pressentia a estranheza de uma outra influência.

– Que te têm dito em casa? – perguntou.

– Não é nada disso – respondeu ele.

E, nesse momento, ela soube que era precisamente isso, e sentiu um profundo desprezo pela família dele e pela sua vulgaridade. Ignoravam as coisas que valiam realmente a pena.

Nessa noite, não conversaram muito mais. Por fim, ele deixou-a e foi passear de bicicleta com Edgar.

Paul voltara para a mãe, o elo mais forte da sua vida. Quando ele se embrenhava em pensamentos, Miriam quase deixava de existir, como se envolta num sentimento vago e irreal. E mais ninguém contava. Havia contudo um lugar no mundo que permanecia sólido e não se desvanecia na irrealidade: o lugar onde se encontrava a sua mãe. Todos podiam transformar-se em sombras, quase inexistentes para ele, mas não ela. Era como se o eixo ou pólo da sua vida, do qual ele não podia escapar, fosse a sua mãe.

E, da mesma forma, ela esperava por ele. Nele se concentrava agora toda a sua vida. Afinal, a vida que deixara para trás oferecera muito pouco a Mrs. Morel. Ela entendera que a nossa oportunidade para fazer está aqui, e fazer era importante para ela. Paul iria provar que ela tinha razão: iria transformar-se num homem a quem nada poderia derrubar, que iria alterar a face da terra de alguma forma importante. Onde quer que ele fosse, ela sentia que a sua alma ia junto. O que quer que ele fizesse, ela sentia que a sua alma permanecia junto dele, pronta como sempre a entregar-lhe as suas ferramentas. Não podia suportar quando ele estava com Miriam. William estava morto. Ela lutaria para ficar com Paul.

E ele voltou para ela. E na alma dele havia um sentimento de satisfação pelo auto-sacrifício, pois ele era-lhe fiel. Ela amava-o antes de tudo, ele amava-a antes de tudo. E, no entanto, isso não era o suficiente. A sua vida nova e jovem, tão forte e imperiosa, era solicitada por algo mais. Punha-o louco de agitação. Ela percebia isso e desejava amargamente que Miriam fosse uma mulher que pudesse arrancar dele esta nova vida e deixar-lhe a ela as raízes. Paul lutava contra a mãe quase tanto como lutava contra Miriam.

Passou-se uma semana antes que Paul voltasse a Willey Farm. Miriam sofrera muito e receava vê-lo novamente. Poderia ela suportar a ignomínia de ser abandonada por ele? Isso seria apenas superficial e temporário. Ele voltaria. Ela possuía a chave para entrar na sua alma. Mas, entretanto, ele iria torturá-la com a sua luta contra ela. Miriam temia sobretudo isso.

Porém, no domingo a seguir à Páscoa, Paul veio para o chá. Mrs. Leivers ficou contente ao vê-lo. Percebeu que algo o perturbava, que as coisas estavam difíceis para ele. E ele parecia refugiar-se nela para algum conforto. E ela era boa para ele. Fazia-lhe o grande favor de o tratar quase com reverência.

Paul encontrou os rapazes no jardim da frente.

– Estou contente por teres vindo – disse a mãe, olhando-o com os seus olhos castanhos, grandes e sinceros. – Está um dia tão soalheiro. Ia agora mesmo dar um passeio pelos campos pela primeira vez este ano.

Ele sentiu que ela apreciaria a sua companhia, e isso suavizou-o. Foram caminhando, falando de coisas simples, ele gentil e humilde. Quase chorou de gratidão por ela ser deferente para com ele. Sentia-se humilhado.

Ao fundo do campo de trigo, encontraram um ninho de tordos.

– Querem que vos mostre os ovos? – perguntou.

– Sim, por favor! – respondeu Mrs. Leivers. – Parecem um sinal tão real da Primavera e da esperança...

Paul afastou os espinhos e retirou os ovos, colocando-os na palma da mão.

– Estão quentinhos... parece que assustámos a mãe – disse ele.

– Ah, coitadinhos – disse Mrs. Leivers.

Miriam não pôde evitar tocar nos ovos e na mão dele, que, segundo ela, os protegia tão bem.

– É um calor tão estranho! – murmurou, para se aproximar dele.

– É o calor do sangue – retorquiu ele.

Ela viu-o colocar os ovos no seu lugar, com o corpo colado à cerca, o braço avançando lentamente através dos espinhos, a mão cuidadosamente fechada sobre os ovos. Estava concentrado no acto. Vendo-o assim, ela amava-o; ele parecia tão simples e auto-suficiente. E ela não conseguia alcançá-lo.

Durante o chá, Paul discutiu o sermão de Sexta-Feira Santa com Mrs. Leivers. A caminhada até à Capela era já muito longa para a senhora, e ela quase preferia ouvir o sermão através de Paul, acrescido dos seus comentários e argumentos. Os outros também escutavam. Até os rapazes, uns latagões rudes, se mostravam atentos e interessados, tirando uma lição do discurso.

– Ele pegou no capítulo que diz: «Aquele que acreditou na nossa história...» ... eu gosto desta passagem.

Os grandes olhos castanhos de Mrs. Leivers brilharam com o pensamento.

– E estragou-o todo... arruinou-o.

Subitamente, lançou um olhar a Miriam, para que ela estivesse do seu lado naquele momento.

– E ele disse...

Paul, sério e indignado, repetiu o sermão. Era em alturas como esta que Miriam o amava. Ao vê-lo assim, enchia-se de profunda satisfação. Amava-o do mesmo modo que Maria amou na Betânia. Só quando irrompia o homem nele existente, se instalava a guerra entre ambos. E qual era mais forte nele, o Discípulo ou o Homem? Ela acreditava que fosse o primeiro, e através do primeiro o retinha.

Enquanto ela levantava a mesa do chá, ele disse-lhe, num tom bastante forçado:

– Quando acabares, vamos dar uma volta.

Na cozinha, ajudou-a a limpar a louça. Ela tremia ligeiramente de apreensão. Mas sabia que naquela noite não tinha de temer o ressentimento dele.

– Levamos um livro? – perguntou Miriam, pegando no seu favorito, O Tesouro Dourado, de Palgrave. Os melhores momentos que passavam juntos aconteciam quando liam poesia.

– Esse não – respondeu ele.

O coração dela apertou-se. Permaneceu junto à prateleira dos livros, hesitante. Ele escolheu Tartarin de Tarascon. Sentaram-se novamente no monte de feno, na base da meda. Paul leu algumas páginas, mas sem sentimento. De novo o cão apareceu, correndo, para repetir a brincadeira anterior. Enterrou o focinho no peito do jovem. Paul acariciou-lhe a orelha de fugida. Depois, afastou-o.

– Vai-te embora, Bill – ordenou. – Não te quero aqui.

Bill retirou-se furtivamente, e Miriam perguntou-se, temerosa, o que estaria para vir. Algo no silêncio dele a fez paralisar de apreensão. Não eram as suas fúrias, mas as suas resoluções calmas que ela receava.

Voltando o rosto um pouco de lado, para que ela não pudesse vê-lo, Paul começou, falando lenta e penosamente:

– Achas que... se eu não viesse cá tantas vezes... podias gostar de outra pessoa... de outro homem?

Então era isso que ainda o incomodava.

– Mas eu não conheço outros homens... porque perguntas? – replicou ela, num tom surdo que deveria ter soado aos ouvidos dele como uma censura.

– Ora – disse ele abruptamente – porque eles dizem que eu não tenho o direito de vir aqui... sem que tenhamos intenção de casar...

Miriam estava indignada por alguém andar a forçar as coisas entre eles. Ficara furiosa com o próprio pai quando este, rindo, comentara com Paul que sabia por que razão ele os visitava tantas vezes.

– Quem diz isso? – perguntou ela, tentando perceber se a sua própria família tinha algo a ver com o assunto. Mas não tinha.

– A minha mãe... e os outros. Dizem que, assim, todos me consideram comprometido, e que eu também me devo considerar como tal, pois não é justo para ti. E eu tentei pensar melhor... e acho que não te amo como um homem deve amar a sua mulher. Que me dizes tu a isto?

Miriam baixou a cabeça, irritada. Irritava-a ter de travar aquela discussão. As pessoas deviam deixá-los em paz.

– Não sei – murmurou ela.

– Achas que nos amamos o suficiente para nos casarmos? – perguntou ele, definitivamente. Ela estremeceu.

– Não – respondeu, sinceramente. – Não acho... somos demasiado novos.

– Eu pensei – prosseguiu ele, infeliz – que talvez tu, com a intensidade que pões nas coisas, me tivesses dado mais... do que alguma vez eu te poderia compensar. E, mesmo assim, se achares que é melhor, ficamos noivos.

Naquele momento, Miriam queria chorar. Estava furiosa também. Ele era sempre tão infantil que as pessoas faziam dele o que queriam.

– Não, não acho – disse firmemente.

Paul reflectiu um minuto.

– Sabes – retomou –, para mim... eu acho que uma pessoa nunca poderá monopolizar-me, ser tudo para mim. Eu acho que isso nunca vai acontecer.

Miriam não tinha considerado este ponto.

– Não – murmurou. Após uma pausa, ela ergueu para ele os seus olhos escuros, faiscantes.

– Isto tem a ver com a tua mãe – disse ela. – Eu sei que ela nunca gostou de mim.

– Não, não é isso – apressou-se ele a dizer. – Desta vez foi para teu bem que ela falou, e só disse que, se eu continuasse, devia considerar-me comprometido. – Seguiu-se um silêncio. – E, se eu te pedir para continuares a visitar-me sempre, não dizes que não?

Miriam não respondeu. Estava agora muito zangada.

– Bem, então que fazemos? – perguntou secamente. – Assim sendo, é melhor desistir das aulas de francês. Agora que estava a começar a dar-me bem... Mas acho que posso continuar sozinha.

– Não vejo necessidade disso – considerou ele. – É claro que posso dar-te uma aula de francês.

– Bom, e há ainda as noites de domingo. Não vou deixar de ir à capela, porque gosto de ir e porque a isso se resume toda a minha vida social. Mas não precisas de ir comigo. Posso ir sozinha.

– Está bem – respondeu ele, algo surpreendido. – Mas, se eu pedir ao Edgar, ele pode vir connosco, e assim as pessoas já não podem dizer nada.

Fez-se silêncio. Afinal, ela não perderia muito. Apesar de todo o falatório em casa dele, a diferença não seria muita. Ela só desejava que eles não interferissem.

– E tu não vais pensar de mais no assunto e deixar que te perturbe, pois não? – perguntou ele.

– Oh, claro que não – retorquiu Miriam, sem se dignar olhar para ele.

Paul ficou em silêncio. Ela achava-o instável, sem um objectivo fixo, nenhuma âncora de certeza a segurá-lo.

– Porque – continuou ele – um homem pega na bicicleta... e vai para o trabalho... e faz toda a espécie de coisas. Mas uma mulher fica a cismar.

– Não, eu não vou ficar a cismar – assegurou-lhe Miriam, e estava a ser sincera.

O tempo arrefecera bastante. Juntos, encaminharam-se para casa.

– Que pálido está o Paul! – exclamou Mrs. Leivers. – Miriam, não devias tê-lo deixado sentar-se lá fora. Achas que te constipaste, Paul?

– Oh, não! – E riu-se.

Mas, na verdade, sentia-se fatigado. O conflito interior esgotara-o. Agora, Miriam sentia pena dele. Mas, muito cedo, ainda antes das nove horas, ele levantou-se para se retirar.

– Não te vais já embora, pois não? – perguntou Mrs. Leivers, ansiosa.

– Vou, sim – retorquiu ele. – Disse em casa que chegava cedo.

Paul estava muito embaraçado.

– Mas ainda é cedo – disse Mr. Leivers.

Miriam sentou-se na cadeira de baloiço e não falou. Ele hesitou, esperando que ela se erguesse para o acompanhar ao celeiro, como habitualmente, quando fosse buscar a bicicleta. Ela, porém, deixou-se ficar onde estava. Paul sentia-se perdido.

– Bem, então... boa noite a todos! – balbuciou.

Miriam deu-lhe as boas-noites, tal como os restantes. Mas, quando ia a passar diante da janela, ele olhou para dentro. Ela viu-o pálido, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas de um modo que se tornara constante nele, e o olhar ensombrado pelo sofrimento.

Ergueu-se então e foi até à porta dizer-lhe adeus, quando ele passou pelo portão. Paul pedalou lentamente sob a rama dos pinheiros, sentindo-se um cobarde e um patife miserável. A bicicleta rolava pelas colinas abaixo, à deriva. Chegou a pensar que seria um alívio partir o pescoço.

Dois dias depois, enviou-lhe um livro e um bilhete, incitando-a a ler e a manter-se ocupada.

E, contudo, nessa altura ele estava diferente. Tinha avaliado bem a situação. Sabia que não queria casar-se com ela. As razões pelas quais a amava não eram razões para se casar com ela; isso es-tava decidido. E a mãe repetira-lhe vezes sem conta que a sua actual situação não podia durar para sempre, e era bastante injusta para a rapariga. Por isso, Paul tentava agora manter a maior distância possível entre os dois. Era duro e frio para ela. Miriam ressentia-se disso amargamente, culpava a mãe dele, e esperava. Sabia que Paul não podia deixá-la sozinha. Mas ele parecia querer por força erguer muros entre eles, ele e ela, atrás dos quais pudesse refugiar-se, longe dela. Miriam sofria terrivelmente.

Durante esse tempo, Paul dedicou toda a sua amizade a Edgar. Gostava tanto da família, gostava tanto da quinta, que ela era para ele o lugar mais querido ao cimo da terra. Nem mesmo o seu lar era tão agradável. A sua mãe sim. Mas teria sido igualmente feliz com aquela mãe em qualquer outro lugar. Mas Paul amava Willey Farm apaixonadamente. Adorava a cozinha pequena e aconchegada, repisada pelas botas dos homens, e onde o cão dormia com um olho aberto e outro fechado, com medo de ser pisado; onde, à noite, a lamparina balouçava sobre a mesa e tudo ficava muito silencioso. Amava a saleta de Miriam, comprida e de tecto baixo, com a sua atmosfera romântica, as suas flores, os seus livros, o piano de pau-rosa. Amava os jardins e os edifícios que, nos limites nus dos campos, se erguiam com os seus telhados escarlate, arrastando-se em direcção ao bosque como se em busca de aconchego, onde a região selvagem cavava um vale profundo, para logo subir as encostas por cultivar do lado de lá. O simples facto de estar ali era um prazer e uma alegria para ele. Amava Mrs. Leivers, com a sua simplicidade e singular cinismo; amava Mr. Leivers, tão caloroso e jovial, e tão afável; amava Edgar, cujo olhar se iluminava quando ele chegava, e os outros rapazes e as crianças, e ainda Bill, e até a porca chamada Circe e o galo indiano de combate chamado Tippoo. Amava tudo isto além de Miriam. Não podia desistir de tudo.

Por isso, continuava a aparecer frequentemente, mas andava geralmente com Edgar. Toda a família, incluindo o pai, apenas se reunia à noite para os jogos e charadas. E, mais tarde, Miriam reunia-os a todos e liam Macbeth em edição de bolso, interpretando os vários papéis. Era muito divertido. Miriam ficava contente, Mrs. Leivers ficava contente e Mr. Leivers divertia-se. Depois, todos juntos, aprendiam a solfejar canções, cantando em círculo em redor da lareira. Mas agora, Paul raramente ficava a sós com Miriam. E ela esperava. Quando ela, Edgar e Paul regressavam a casa vindos da Capela ou do grémio literário de Bestwood, ela sabia que a conversa dele, tão apaixonada e tão pouco ortodoxa para aqueles dias, lhe era dirigida. Contudo, invejava Edgar e as suas corridas de bicicleta com Paul, as suas noites de sexta-feira, os seus dias de labuta conjunta nos campos. Para ela, as noites de sexta-feira e as aulas de francês tinham acabado. Estava quase sempre sozinha, vagueando e meditando pelo bosque, lendo, estudando, sonhando, esperando. E ele escrevia-lhe com frequência.

Num domingo à noite, conseguiram reatar a velha e rara harmonia. Edgar ficara com Mrs. Morel para a comunhão. Queria saber como era. Por isso, Paul e Miriam voltaram sozinhos para casa dele. Ele encontrava-se novamente mais ou menos sob o seu feitiço. Como era hábito, discutiram o sermão. Ele caminhava agora a passos largos para o agnosticismo, mas era um agnosticismo tão religioso que Miriam não sofria muito. Estavam na fase da Vie de Jésus de Renan. Miriam era a eira onde Paul debulhava todas as suas crenças. Enquanto repisava as suas ideias na alma dela, a verdade brotava dele. Só ela era a sua eira. Só ela o ajudava no sentido da plena realização. Quase impassível, ela submetia-se aos seus argumentos e interpretações. E, por causa dela, ele gradualmente compreendia, de algum modo, onde estava errado. E o que ele compreendia, ela compreendia. Miriam sentia que Paul não podia viver sem ela.

Chegaram à casa silenciosa. Ele tirou a chave da janela da cozinha e entraram. Durante todo o tempo, ele não interrompeu a discussão. Acendeu o gás, ateou o fogo e trouxe-lhe alguns biscoitos da despensa. Ela sentou-se no sofá, em silêncio, com um prato sobre os joelhos. Trazia um grande chapéu branco enfeitado com flores cor-de-rosa. Era um chapéu barato, mas ele gostava. Sob o chapéu, o rosto dela estava estático e pensativo, castanho-dourado e corado. Como sempre, as orelhas estavam ocultas sob os seus caracóis curtos. Ela observava-o.

Sempre gostara dele aos domingos. Nesses dias, ele usava um fato escuro que evidenciava todos os movimentos do seu corpo. Havia algo de limpo e fresco no seu ar. Paul prosseguiu o seu raciocínio dirigido a ela. De repente, pegou na Bíblia. Miriam gostou do modo como ele a alcançou, tão determinado, directo ao objectivo. Voltou as páginas rapidamente e leu-lhe um capítulo de S. João. Enquanto lia, absorto, sentado no cadeirão e apenas a sua voz pensava, ela sentia que ele estava a usá-la inconscientemente, como um homem usa as suas ferramentas em qualquer trabalho que o absorve. Adorava essa sensação. E a ânsia na sua voz era como a tentativa de alcançar algo, e era como se ela fosse o modo de o conseguir. Miriam recostou-se no sofá, longe dele, sentindo-se, todavia, o próprio instrumento que a mão dele segurava, o que lhe dava um indescritível prazer.

Pouco a pouco, a voz tornou-se hesitante e Paul ficou constrangido. E quando chegou ao versículo: «Uma mulher, quando está em trabalho de parto, sofre porque a sua hora chegou», omitiu-o. Miriam sentira o seu constrangimento a aumentar. Estremeceu quando as bem conhecidas palavras não foram proferidas. Paul continuou a ler, mas ela já não o escutava. Um sentimento de pesar e vergonha fê-la vergar a cabeça. Seis meses atrás, ele teria lido tudo naturalmente. Agora, abria-se uma brecha na relação entre os dois. Agora, ela sentia haver algo de realmente hostil entre eles, algo de que ambos se envergonhavam.

Miriam comeu o bolo mecanicamente. Ele tentou prosseguir, desenvolvendo o seu argumento, mas não conseguiu recuperar o tom certo. Edgar chegou pouco depois. Mrs. Morel tinha ido a casa de uma amiga. Os três saíram rumo a Willey Farm.

Miriam matutava sobre o afastamento dele em relação a ela. Havia algo mais que ele desejava. Paul não podia estar satisfeito, não podia dar-lhe paz. Agora haveria sempre entre eles lugar para o conflito. Ela queria pô-lo à prova. Acreditava que a maior necessidade na vida dele era ela. Se conseguisse prová-lo, tanto a si mesma como a ele, tudo o resto poderia desaparecer, e ela poderia simplesmente confiar no futuro.

Assim, em Maio, pediu-lhe para vir a Willey Farm visitar Mrs. Dawes. Havia algo que Paul procurava ardentemente. Sempre que se falava de Clara Dawes, Miriam via-o agitar-se e ficar ligeiramente irritado. Afirmou que não simpatizava com ela. Contudo, estava ansioso por saber coisas a seu respeito. Bom, ele tinha de ser posto à prova. Ela acreditava que havia nele ânsias de coisas superiores, e inferiores, e que o desejo pelas superiores venceria. De qualquer forma, deveria tentar. Miriam, porém, esqueceu-se de que os conceitos de «superior» e «inferior» eram arbitrários.

Paul estava bastante entusiasmado com a ideia de se encontrar com Clara em Willey Farm. Mrs. Dawes veio passar o dia. A sua pesada cabeleira castanho-escura estava enrolada ao alto da cabeça. Envergava uma blusa branca e uma saia azul-marinho e, de algum modo, a sua presença parecia tornar as coisas vulgares e insignificantes. Quando se encontrava por perto, a cozinha parecia ao mesmo tempo pequena e imperfeita. A bela saleta de Miriam, com a sua luz crepuscular, parecia estúpida e sem graça. Toda a família Leiver se eclipsava como velas. Eles achavam-na um pouco difícil de suportar. No entanto, ela era perfeitamente amistosa, mas indiferente e um pouco dura.

Paul só chegou da parte da tarde. Mas veio cedo. Enquanto descia da bicicleta, Miriam viu-o olhar em volta da casa, ansioso. Ficaria desapontado se a tão esperada visita não tivesse vindo. Miriam saiu ao seu encontro, baixando a cabeça devido à intensidade do sol. As abecedárias brotavam agora, encarnadas, da verde sombra fria das suas folhas. A rapariga esperou-o, de cabelo escuro, contente por vê-lo.

– A Clara não veio? – perguntou Paul.

– Veio – replicou ela, no seu timbre musical. – Está a ler.

Ele empurrou a bicicleta até ao celeiro. Pusera uma bonita gravata, na qual tinha muito orgulho, e meias a condizer.

– Chegou esta manhã? – perguntou.

– Sim – respondeu Miriam enquanto caminhava a seu lado. – Lembraste-te de trazer aquela carta do homem do Liberty?

– Oh, que chatice, não! – disse ele. – Mas podes atazanar-me até que a traga.

– Não gosto de te atazanar.

– Mas não te acanhes. E ela está mais simpática? – continuou.

– Sabes que eu sempre a achei bastante simpática.

Paul ficou em silêncio. Era evidente que a sua ânsia em chegar cedo naquele dia se devia à recém-chegada. Miriam já começara a sofrer. Encaminharam-se para casa lado a lado. Paul retirou as molas das calças, mas era muito preguiçoso para escovar o pó dos sapatos, apesar de ter requintado nas meias e na gravata.

Clara estava sentada na saleta fresca, a ler. Paul reparou na sua nuca branca e no delicado cabelo repuxado. Ela ergueu-se e olhou para ele com indiferença. Para o cumprimentar, levantou o braço de um modo que parecia, ao mesmo tempo, mantê-lo à distância e, no entanto, acenar-lhe com alguma coisa. Ele notou a forma como os seus seios inchavam dentro da blusa, e como o ombro se curvava deliciosamente sob a fina musselina no cimo do seu braço.

– Escolheste um lindo dia – disse ele.

– É... aconteceu – respondeu ela.

– É verdade – continuou ele. – Ainda bem.

Ela sentou-se, não lhe agradecendo a amabilidade.

– Que fizeste toda a manhã? – perguntou Paul, dirigindo-se a Miriam.

– Bem – disse Miriam, tossindo roucamente –, a Clara só chegou com o pai... e, por isso, não está cá há muito tempo.

Clara sentara-se encostada à mesa, mantendo-se distante. Ele notou que as suas mãos eram grandes, mas bem cuidadas. A pele parecia quase grosseira, opaca e branca, com finos pêlos dourados. Ela não se importava que ele observasse as suas mãos. Tinha intenção de o desprezar. O seu braço opulento estava negligentemente pousado sobre a mesa. A sua boca fechava-se como se estivesse ofendida, e o seu rosto mantinha-se ligeiramente desviado.

– Estiveste presente na reunião da Margaret Bonford na outra noite – disse-lhe ele. Miriam desconhecia este Paul cortês. Clara olhou-o de relance.

– Estive, sim – respondeu.

– Ora – perguntou Miriam – como é que sabes?

– Eu entrei por alguns minutos até o comboio chegar – explicou ele.

Clara desviou novamente o rosto, com uma expressão desdenhosa.

– Acho-a uma mulherzinha adorável – comentou Paul.

– A Margaret Bonford! – exclamou Clara. – Ela é muito mais esperta que a maioria dos homens.

– Bem, eu não disse que não era – disse ele, depreciativamente. – Ela é adorável por tudo isso.

– E é claro que é só isso que tem importância – disse Clara, com uma expressão fulminante.

Ele coçou a cabeça, meio perplexo, meio aborrecido.

– Acho que importa mais do que a inteligência dela – retorquiu Paul – que, afinal, nunca a levaria ao Céu.

– Não é o Céu que ela pretende... é o seu justo quinhão na terra – retorquiu Clara. Falava como se Paul fosse responsável por qualquer privação de que Miss Bonford sofresse.

– Bem – disse ele –, eu achei-a calorosa e extraordinariamente agradável... mas demasiado frágil. Só desejei que ela estivesse confortavelmente em paz...

– ... remendando as peúgas do marido – interrompeu Clara, sarcasticamente.

– Estou certo de que não se importaria de remendar até mesmo as minhas peúgas – afirmou ele. – E tenho a certeza de que o faria até muito bem. Tal como eu não me importaria de lhe engraxar as botas, se ela o desejasse.

Mas Clara recusou-se a dar troco a este tipo de comentário. Paul conversou com Miriam durante algum tempo. A outra mulher permaneceu afastada.

– Bem – disse ele –, acho que vou procurar o Edgar. Ele anda no campo?

– Acho que foi buscar um carregamento de carvão – respondeu Miriam. – Deve vir directamente para casa.

– Sendo assim – disse Paul –, vou ao encontro dele.

Miriam não ousou propor nenhum programa que envolvesse os três. Ele levantou-se e deixou-as.

No caminho de cima, onde a giesta despontava, Paul viu Edgar caminhando preguiçosamente ao lado da égua, que acenava a testa estrelada de branco enquanto arrastava o ruidoso carregamento de carvão. O rosto do jovem lavrador iluminou-se quando avistou o amigo. As suas roupas eram velhas e já bastante coçadas, mas caminhava com um orgulho considerável.

– Viva! – cumprimentou ele, vendo Paul sem chapéu. – Onde vais?

– Vim ter contigo. Não suporto a «Nunca jamais».

Os dentes de Edgar brilharam numa gargalhada divertida.

– Quem é a «Nunca jamais»? – perguntou.

– Aquela senhora – Mrs. Dawes – devia chamar-se Mrs. Corvo, aquele que disse «Nunca jamais».

Edgar riu com satisfação.

– Não gostas dela? – perguntou.

– Não morro de amores – respondeu Paul. – Porquê, tu gostas?

– Não! – A resposta veio com profunda convicção. – Não! – Edgar franziu os lábios. – Não posso dizer que seja muito o meu estilo. – Meditou um pouco. Depois: – Mas porque lhe chamas «Nunca jamais»? – perguntou.

– Bem – explicou Paul. – Se ela olha para um homem, diz arrogantemente «Nunca jamais», se se olha no espelho, diz desdenhosamente «Nunca jamais», e se pensa duas vezes, di-lo com nojo, e se olha em frente, di-lo cinicamente...

Edgar considerou o discurso de Paul, não conseguindo entendê-lo muito bem, e disse, rindo:

– Achas que ela odeia os homens?

– Ela acha que sim – retorquiu Paul.

– Mas tu não achas que assim seja?

– Não – respondeu Paul.

– Então ela não foi simpática contigo?

– Consegues imaginá-la a ser simpática com alguém? – perguntou o jovem.

Edgar riu-se. Juntos, descarregaram o carvão no pátio. Paul estava bastante contrafeito pois sabia que Clara o podia ver, se olhasse pela janela. Mas não olhou.

Nas tardes de sábado, os cavalos eram escovados e tratados. Paul e Edgar trabalharam juntos, espirrando com o pó proveniente do pêlo de Jimmy e Flower.

– Sabes alguma canção nova para me ensinar? – perguntou Edgar.

Ele continuava a trabalhar sem parar. Quando se baixava, deixava a descoberto a parte posterior do pescoço, encarniçada do sol, e os dedos que seguravam a escova eram taludos. Paul observava-o de vez em quando.

– Mary Morrison? – sugeriu o mais novo.

Edgar concordou. Era dono de uma bela voz de tenor e adorava aprender todas as canções que o amigo lhe ensinava para poder cantar enquanto conduzia a carroça. Paul possuía uma voz de barítono bastante sofrível, mas tinha bom ouvido. No entanto, cantou baixinho, com medo de Clara. Edgar repetiu o verso na sua voz límpida de tenor. Por vezes, ambos interrompiam a cantoria para espirrar e, primeiro um e depois o outro, insultarem o cavalo.

Miriam estava impaciente com os homens. Era preciso tão pouco para os divertir – até Paul. Achava pouco natural nele que pudesse ficar tão absorvido numa trivialidade.

Era hora do chá quando acabaram.

– Que canção era aquela? – perguntou Miriam.

Edgar informou-a. A conversa virou para o canto.

– Passámos momentos tão agradáveis – disse Miriam a Clara.

Mrs. Dawes tomou o seu chá devagar, com dignidade. Sempre que os homens estavam presentes, ela mostrava-se distante.

– Gostas de ouvir cantar? – perguntou-lhe Miriam.

– Se a voz for boa – disse ela.

Paul corou, naturalmente.

– Queres tu dizer, se a voz for de excepção e educada? – disse ele.

– Acho que uma voz precisa de ser educada para cantar alguma coisa que se oiça – disse Clara.

– Já agora, também podes dizer que as pessoas deviam educar a voz antes de falarem – replicou ele. – Francamente, a maior parte das pessoas canta para seu próprio prazer.

– E, quem sabe, para desprazer dos outros.

– Nesse caso, os outros que tapem os ouvidos – retorquiu Paul.

Os rapazes desataram a rir. Depois, fez-se silêncio. Ele corou violentamente e tomou o chá calado.

A conversa voltou à questão de se o salário das mulheres deveria ser igual ao dos homens. Mrs. Leivers sustentava que os homens tinham famílias a manter; Clara afirmava que trabalho igual teria de significar salário igual, para homens ou mulheres. Mr. Leivers estava inclinado a concordar com ela. O que quer que Mrs. Dawes tivesse dito, Paul teria tomado uma posição contrária à dela. Como tal, argumentou que uma mulher era apenas um acessório no mercado de trabalho e que, na maioria dos casos, não passava de uma coisa transitória, sustentando-se apenas por um ou dois anos. Clara avançou o número de mulheres que sustentavam pai, mãe, irmãs, etc.

– E quase todos os homens do mundo, acima dos trinta anos, sustentam mulher e filhos – e, regra geral, as ditas mulheres não são assalariadas – retorquiu ele.

– Eu penso, meu amigo – disse Clara muito friamente –, que já antes encontrei o teu tipo de pessoa: o jovem que pensa que sabe tudo.

– E tu és do tipo da jovem que pensa que eu não sei nada – volveu ele.

– Oh, sabes sim... sabes como te fazeres ouvir – disse ela.

Paul estava furioso. De repente, rebentou numa gargalhada.

– Isto parece mais uma reunião de sufragistas contigo no estrado a discursar – disse ele.

Clara corou até à raiz dos cabelos.

– Porque terei eu de responder pelos «Homens», quando afinal sou apenas um deles... – continuou Paul.

– Como se não fosse já suficiente – gracejou Edgar.

– E assim – retomou Paul – sou responsabilizado por todos os pecados da história de Inglaterra, desde a Rainha Boadisca até à Canção da Camisa. Não é justo. Gostava que o Homem tivesse o direito de existir na sociedade moderna... num qualquer canto onde pudesse repousar a cabeça.

– Bem – gracejou Mrs. Leivers –, no final de contas, o lugar do homem continuará a ser o mesmo enquanto formos feitos como somos.

Mas este gracejo foi demasiado subtil para todos, à excepção de Clara, que estava indignadíssima.

Após o chá, quando todos os homens, à excepção de Paul, se retiraram, Mrs. Leivers perguntou a Clara:

– E achas a vida mais feliz agora?

– Infinitamente.

– Então estás satisfeita?

– Desde que possa ser livre e independente.

– E não sentes falta de nada na tua vida? – quis saber Mrs. Leivers, delicadamente.

– Ultrapassei isso tudo.

Paul sentiu-se desconfortável perante este discurso, e levantou-se:

– Vais acabar por descobrir que tropeças constantemente nas coisas que deixaste para trás – disse ele. Depois saiu em direcção aos estábulos. Achava que tinha sido espirituoso e o seu orgulho masculino estava radiante. Pôs-se a assobiar enquanto descia o carreiro de ladrilhos.

Miriam veio procurá-lo pouco depois para saber se gostaria de as acompanhar, a Clara e a ela, num passeio. Partiram em direcção à quinta de Strelley Mill. Enquanto caminhavam ao longo da ribeira, pela margem do Willey Water, olhando através do arvoredo para a orla do bosque, onde pequeninas flores cor-de-rosa brilhavam sob uns poucos raios de sol, avistaram, para lá dos troncos das árvores e das ralas aveleiras, um homem conduzindo um grande cavalo baio pelos barrancos. O animal, enorme e cor de fogo, parecia dançar romanticamente através do verde-escuro das aveleiras até onde o ar era sombrio como o passado, por entre as campainhas emurchecidas que podiam ter florido para Deirdre ou Isolda.

Os três estacaram, encantados.

– Que prazer ser cavaleiro – disse ele – e ter aqui um pavilhão.

– E ter-nos a nós fechadas em segurança? – retorquiu Clara.

– Sim – respondeu ele –, entoando melodias com as vossas amas, entregues aos vossos bordados. Eu transportaria o vosso estandarte branco, verde e púrpura, e teria gravado no brasão do meu escudo a sigla das sufragistas, por baixo de uma mulher enfurecida...

– Não tenho qualquer dúvida – disse Clara – que muito mais depressa lutarias por uma mulher do que a deixarias lutar por si mesma.

– E lutaria mesmo! Quando a mulher luta por si mesma parece um cão diante de um espelho, enraivecido pela sua própria sombra.

– E tu és o espelho? – perguntou ela, com um franzir de lábios.

– Ou a sombra – replicou ele.

– Temo – disse ela – que sejas perigosamente inteligente.

– Bem, deixo-te a ti a tarefa de seres boazinha – retorquiu ele, rindo. – Sê boazinha, gentil donzela, e deixai-me ser inteligente.

Mas Clara cansou-se da irreverência de Paul. Subitamente, ao olhar para ela, ele viu que a expressão de superioridade que emanava do seu rosto era infelicidade e não desprezo. O coração dele enterneceu-se por todos. Voltou-se para Miriam, a quem até então negligenciara, e foi gentil com ela.

Ao aproximarem-se da orla do bosque, encontraram Limb, um homem trigueiro e franzino, de quarenta anos, rendeiro de Strelley Mill, que ele dirigia como uma quinta dedicada à pecuária. Segurava as rédeas do poderoso garanhão displicentemente, como se estivesse cansado. Os três recuaram para o deixarem passar por cima das pedras que atravessavam o primeiro regato. Paul admirou-se pelo facto de um animal tão grande caminhar sobre pedras tão escorregadias com inesgotável vigor. Limb estacou diante deles.

– Diga ao seu pai, Miss Leivers – disse ele, numa voz sibilante, pouco vulgar –, que, há três dias, as suas crias novas partiram aquela vedação do fundo e fugiram.

– Qual? – perguntou Miriam, trémula.

O grande cavalo resfolegava pesadamente, agitando os flancos encarniçados e olhando-os desconfiado, com os seus olhos grandes, maravilhosos, mantendo a cabeça baixa e a crina pendente.

– Venham comigo – respondeu Limb – qu’eu amostro-lhes.

O homem e o garanhão seguiram à frente. O cavalo dançava de lado, agitando o topete branco e parecendo assustado, como se sentisse que estava no meio do regato.

– Nada de bailaricos – disse o homem ao animal, afectuosamente.

O cavalo galgou a margem em pequenos saltos e chapinhou delicadamente entrando no segundo regato. Clara, caminhando numa espécie de abandono amuado, olhava meio fascinada, meio desdenhosa. Limb parou e apontou para uma vedação sob uns salgueiros.

– Ali, tá a ver por onde eles passaram? – disse ele. – Os meus homens trouxeram-nos de volta três vezes.

– Sim – balbuciou Miriam, corando como se a culpa fosse sua.

– Querem entrar? – convidou o homem.

– Não obrigado... mas gostaríamos de ir até ao lago.

– Se quiserem – disse ele.

O cavalo relinchou de satisfação por se ver tão próximo de casa.

– Está todo contente por estar de volta – comentou Clara, que estava interessada na criatura.

– Pois está... Hoje teve uma jornada muito cheia.

Atravessaram o portão e viram aproximar-se deles, vinda da casa grande da quinta, uma mulher morena e de baixa estatura, aparentando uma natureza emotiva e cerca de trinta e cinco anos. Tinha o cabelo já um pouco tingido de grisalho e os olhos pareciam selvagens. Avançava de mãos atrás das costas. O seu irmão continuou em frente. Ao vê-la, o grande garanhão relinchou de novo. Ela aproximou-se, excitada.

– Já estás em casa outra vez, meu rapaz! – disse, ternamente, dirigindo-se ao cavalo, não ao homem. O grande animal girou em torno dela, baixando a cabeça. A mulher meteu-lhe na boca a maçã enrugada e amarela que escondera atrás das costas e depois beijou-o perto dos olhos. O cavalo resfolegou de prazer. Ela segurou-lhe a cabeça entre os braços, e apertou-a contra o peito.

– É esplêndido! – disse Miriam.

Miss Limb ergueu os olhos. Eram escuros e dirigiram-se directamente a Paul.

– Oh, boa tarde, Miss Leivers – cumprimentou ela. – Há anos que não a vemos cá por baixo.

Miriam apresentou-lhe os amigos.

– O seu cavalo é um óptimo companheiro! – disse Clara.

– Pois é! – E beijou-o novamente. – Tão dedicado como um homem!

– Mais dedicado que a maioria dos homens, penso eu – retorquiu Clara.

– É um bom menino! – disse a mulher, abraçando de novo o cavalo.

Clara, fascinada pelo grande animal, aproximou-se para lhe afagar o pescoço.

– Ele é muito meigo – disse Miss Limb. – Não acha que todas as criaturas grandes o são?

– É uma beleza! – respondeu Clara.

Queria olhá-lo nos olhos. Queria que ele olhasse para ela.

– É uma pena que não possa falar – disse.

– Oh, mas ele pode... diz tudo – retorquiu a outra mulher.

Depois, o irmão foi-se embora com o cavalo.

– Então, não vão entrar? Faça o favor de entrar, Mr... desculpe, não percebi o seu nome...

– Morel! – disse Miriam. – Não, não vamos entrar, mas gostaríamos de passar pela represa.

– É claro, estejam à vontade. O senhor pesca, Mr. Morel?

– Não – respondeu Paul.

– Porque, se pesca, pode vir pescar quando quiser – ofereceu Miss Limb. – Raramente vemos alguém durante a semana. Até lhe agradecia.

– Que peixes há no lago? – perguntou Paul.

Passaram pelo jardim da frente da casa, sobre o açude, e subiram a margem íngreme até ao lago, que repousava na sombra, com as suas duas ilhotas de madeira. Paul caminhava ao lado de Miss Limb.

– Não me importava de vir nadar para aqui – disse ele.

– Então, venha – convidou ela. – Venha quando quiser. O meu irmão ficará muito contente por conversar consigo. Ele é assim calado porque não tem com quem falar. Venha nadar quando quiser.

Clara aproximou-se.

– Tem uma boa profundidade – comentou. – E é tão límpido.

– É verdade – disse Miss Limb.

– Sabes nadar? – perguntou Paul. – Miss Limb estava agora mesmo a dizer que podíamos vir quando quiséssemos.

– É claro que há os criados da lavoura – disse Miss Limb.

Conversaram durante alguns minutos e depois continuaram, colina acima, deixando na margem a solitária senhora de olhar esgazeado.

A vertente da colina estava amadurecida pelo sol. Era selvagem e coberta de tufos de urze, abandonada aos coelhos. Os três caminhavam em silêncio. Paul disse então:

– Ela faz-me sentir desconfortável.

– Referes-te a Miss Limb? – perguntou Miriam. – É verdade!

– Qual será o problema dela? Estará a ficar tonta por viver demasiado solitária?

– Parece que sim – concordou Miriam. – Isto não é vida para ela. Acho uma crueldade enterrá-la aqui. Eu devia vir visitá-la mais vezes. Mas... ela perturba-me.

– Faz-me sentir pena dela... é verdade, e aborrece-me – disse ele.

– Eu acho – disse Clara subitamente – que o que ela quer é um homem.

Os outros dois ficaram mudos durante alguns instantes.

– Mas é a solidão que a deixa assim amalucada – disse Paul.

Clara não respondeu, prosseguindo a caminhada colina acima. Caminhava cabisbaixa, com as pernas oscilando à medida que pisava por entre os cardos secos e os tufos de erva, e os braços pendendo soltos. Em vez de andar, o seu belo corpo parecia vaguear às cegas pela encosta acima. Uma onda de calor invadiu Paul. Estava curioso acerca dela. Talvez a vida tivesse sido cruel com Clara. Esqueceu Miriam, que caminhava a seu lado, conversando consigo. Ela olhou para ele ao ver que ele não lhe respondia. O olhar dele estava fixo em Clara.

– Ainda achas que ela é uma antipática? – perguntou Miriam.

Ele nem reparou que a pergunta era despropositada. É que também lhe andava a bailar no pensamento.

– Passa-se algo com ela – respondeu.

– Sim – concordou Miriam.

No cimo da colina encontraram uma tapada bravia, escondida dos olhares; dois dos seus lados eram delimitados pelo bosque, os outros dois por sebes altas de espinheiros e sabugueiros. Por entre estes arbustos densos, viam-se aberturas por onde o gado poderia ter passado, se ali houvesse ainda gado. Naquele sítio a relva era macia e aveludada, fofa e esburacada pelos coelhos. O campo propriamente dito nunca fora cultivado e estava inundado de primaveras grandes e altas que nunca haviam sido cortadas. As flores brotavam fortes em ramalhetes por todo o lado, erguendo-se acima dos grosseiros tufos de erva. Parecia uma angra repleta de altos mastros de navios.

– Ah! – exclamou Miriam, voltando para Paul os olhos escuros dilatados. Ele sorriu. Juntos, gozaram a visão do campo de flores. Clara, um pouco afastada, olhava as primaveras, desconsoladamente. Paul e Miriam ficaram juntos, conversando em voz baixa. Ele ajoelhou-se, colhendo rapidamente os melhores botões, movimentando-se incessantemente de ramalhete em ramalhete, falando sempre num tom suave. Miriam colhia as flores ternamente, detendo-se diante de cada uma delas. Ele parecia-lhe sempre demasiado rápido, quase científico. No entanto, os ramos dele tinham uma beleza natural, mais do que os dela. Ele amava-os, mas como se fossem seus e tivesse direito a eles. Ela tinha uma maior reverência para com as flores: tinham algo que ela não possuía.

As flores eram muito frescas e doces. Ele queria bebê-las. Enquanto as colhia, comeu até uns pequenos jasmins amarelos. Clara continuava a vaguear desconsoladamente. Dirigindo-se a ela, Paul perguntou:

– Porque não colhes algumas?

– Não acho bem. Elas parecem melhor a crescer no campo.

– Mas gostarias de algumas?

– Elas querem ser deixadas em paz.

– Não acho que queiram nada disso.

– Não quero ter cadáveres de flores à minha volta – disse ela.

– Essa é uma ideia pomposa e artificial – replicou ele. – Elas não morrem mais depressa na água do que nas próprias raízes. E, além disso, ficam bem numa jarra, parecem felizes. E só podemos chamar cadáver a uma coisa quando ela tem a aparência de cadáver.

– Mesmo sendo ou não cadáver? – argumentou ela.

– Para mim não o são. Uma flor morta não é o cadáver de uma flor.

Desta vez, Clara ignorou-o.

– Mesmo assim... que direito tens tu de as arrancar? – perguntou ela.

– Gosto delas e quero-as... e há muitas mais.

– E achas isso suficiente?

– Sim, porque não? Estou certo de que deixariam um agradável perfume no teu quarto em Nottingham.

– E eu teria o prazer de as ver morrer.

– Mas então... não te interessa se elas morrem.

Dito isto, deixou-a, pisando os maciços de flores emaranhadas, que cobriam espessamente o campo, como pálidas e luminosas formações de espuma. Miriam aproximara-se. Clara estava ajoelhada, aspirando o aroma das primaveras.

– Eu acho – disse Miriam – que se as tratarmos com reverência, não lhes fazemos mal... o que conta é o espírito com que as colhemos.

– Isso é verdade – concordou ele. – Mas nós colhemo-las porque as queremos, é tudo. E exibiu o seu ramalhete.

Miriam estava silenciosa. Paul colheu mais algumas flores.

– Olhem para estas! – continuou Paul. – Robustas e sadias como pequenas árvores ou meninos de pernas gordas...

O chapéu de Clara estava pousado na erva, não muito longe. Ela estava ajoelhada, ainda inclinada para a frente, a sentir o perfume das flores. A visão do seu pescoço fez Paul sentir uma ânsia aguda, de tão belo que era, embora naquele momento ele não se sentisse muito orgulhoso de si mesmo. Os seios dela agitavam-se ligeiramente na blusa. A curva arqueada das suas costas era bonita e forte: ela não usava corpete. Subitamente, sem saber, ele estava a espalhar uma mão-cheia de primaveras sobre o seu cabelo e o seu pescoço, dizendo:


«Cinzas às cinzas e pó ao pó será.

Se o Senhor não te receber, o Diabo o fará.»


As flores frescas caíram sobre o pescoço de Clara. Ela ergueu o rosto para ele, onde dois olhos cinzentos e assustados, quase cheios de compaixão, se interrogavam sobre o que ele estava a fazer. Sobre o seu rosto caíram flores e ela cerrou os olhos.

De súbito, ali de pé ao lado dela, ele sentiu-se estranho.

– Pensei que querias um funeral – disse, embaraçado.

Clara riu de forma estranha e levantou-se, tirando as primaveras do cabelo. Pegou no chapéu e colocou-o na cabeça. Uma flor permaneceu presa ao seu cabelo, mas Paul não lhe disse nada. Depois, recolheu as flores que espalhara sobre ela.

Nos limites do bosque, os miosótis tinham-se estendido pelo campo, aí ficando como água da corrente. Mas murchavam agora. Clara vagueava sobre eles. Ele seguiu-a. Os miosótis agradavam-lhe.

– Olha como saíram do bosque! – disse.

Nesse momento, ela voltou-se com uma centelha de calor e gratidão.

– É verdade! – sorriu.

O sangue de Paul correu mais rápido.

– Fazem-me pensar nos homens selvagens dos bosques... como eles devem ter-se sentido aterrorizados quando se defrontaram cara a cara com o espaço aberto.

– Achas que sim? – perguntou ela.

– Entre as tribos antigas, pergunto-me quais teriam mais medo: as que irrompiam da escuridão dos bosques para todo um espaço de luz, ou as das áreas abertas, penetrando pé ante pé nas florestas.

– Acho que as segundas – respondeu ela.

– Sim, tu sentes-te realmente como uma pessoa de espaços abertos... tentando forçar-se a penetrar no escuro, não é verdade?

– Como é que posso saber? – respondeu ela, de um modo singular.

A conversa ficou por aqui.

A noite adensava-se sobre a terra. O vale já se cobria de sombras. Um minúsculo quadrado de luz subsistia ainda do lado oposto à quinta de Crossleigh Bank. Um brilho incandescente inundava os cumes das colinas. Miriam subiu lentamente, com o rosto enterrado no seu grande e solto ramalhete de flores, caminhando através da espuma dispersa das primaveras que lhe cobria o tornozelo. Atrás dela, as árvores transformavam-se agora em formas, todas elas sombras.

– Vamos? – perguntou.

E os três voltaram para trás. Permaneceram em silêncio. Descendo o trilho de terra, podiam ver a luz de casa mesmo em frente e, no cume da colina, uma leve silhueta escura pontilhada de luzinhas, onde a aldeia da mina de carvão tocava o céu.

– Foi agradável, não foi? – perguntou ele.

Miriam concordou, num murmúrio. Clara ficou em silêncio.

– Não achas? – insistiu ele.

Mas ela caminhava com a cabeça erguida e não respondia. Pela sua maneira de andar, como se nada lhe importasse, ele podia adivinhar o seu sofrimento.

Por esta altura, Paul levou a mãe a Lincoln. Ela estava entusiasmada e resplandecente como nunca, mas, sentada diante dele na carruagem do comboio, parecia frágil. E Paul teve uma sensação fugaz, como se ela estivesse a deslizar para longe dele. Então, quis agarrá-la, prendê-la, quase acorrentá-la. Sentia que tinha de a segurar com as próprias mãos.

Aproximavam-se da cidade. Iam ambos à janela, procurando vislumbrar a catedral.

– Ali está ela, mãe! – gritou Paul.

Avistaram a grande catedral erguendo-se acima da planície.

– Ah! – exclamou ela. – Pois está!

Ele olhou para a mãe. Os seus olhos azuis observavam a catedral em silêncio. Novamente ela parecia para lá dele. Algo da serenidade eterna da elevada catedral, azul e nobre contra o céu, algo da sua fatalidade, estava nela reflectido. O que era, era! – mesmo com toda a sua juventude, ele não podia alterá-lo. Olhou o rosto dela: a pele era ainda fresca, cor-de-rosa e aveludada, mas notavam-se já alguns pés-de-galinha em torno dos olhos; as pálpebras eram firmes, afundando-se um pouco, e a boca sempre fechada, em desilusão; e havia nela o mesmo olhar eterno, como se, finalmente, conhecesse o destino. E ele debatia-se contra o destino com todas as forças da sua alma.

– Veja, mãe, como se eleva sobre a cidade! E pensar que há ruas e ruas abaixo dela; parece maior que toda a cidade.

– Pois parece! – exclamou a mãe, voltando novamente à vida. Mas ele vira-a sentada, olhando fixamente pela janela para a catedral, de rosto e olhar parados, reflectindo a inexorabilidade da vida. E os pés-de-galinha em redor dos seus olhos e a boca tão duramente cerrada fizeram-no sentir que enlouquecia.

Fizeram uma refeição que ela considerou desnecessariamente extravagante.

– Não penses que eu gosto disto – disse, enquanto comia a costeleta. – Não gosto, não gosto mesmo nada! Só de pensar no teu dinheiro, assim desperdiçado!

– Não se preocupe com o meu dinheiro – respondeu ele. – Esquece-se de que sou um rapaz que leva a namorada a jantar fora?

Depois, comprou-lhe violetas azuis.

– Pára já com isso, menino! – ordenou ela. – Como é que eu vou fazer uma coisa dessas?

– Não tem de fazer nada! Fique quieta.

E, em plena High Street, Paul pregou as flores no casaco da mãe.

– Uma velha como eu! – protestou ela, aspirando o perfume.

– Bem vê – explicou ele –, quero que as pessoas pensem que somos terrivelmente finos. Portanto, a mãe tem de se apresentar à altura.

– Merecias que eu te desse um tabefe – disse ela.

– Vá lá... – ordenou ele –, pavoneie-se... como um pombo de cauda em leque.

Levaram uma hora a percorrer a rua. Mrs. Morel deteve-se primeiro junto ao Glory Hole, depois diante de Stone Bow, deteve-se em todo o lado, soltando exclamações. Um homem aproximou-se, tirou o chapéu e fez-lhe uma vénia:

– Permita-me que lhe mostre a cidade, minha senhora.

– Não, obrigada – respondeu ela. – Tenho o meu filho.

Nesse momento, Paul ficou furioso com ela por não ter respondido com mais dignidade.

– Tu deixas-te levar por ti mesmo – exclamou ela. – Ah, aquela é a Casa do Judeu! Lembras-te daquele sermão, Paul...

Ela mal podia subir a colina que conduzia à catedral, mas ele não notou. De repente, porém, foi dar com ela incapaz de falar. Conduziu-a a um pequeno bar, onde descansou.

– Não é nada! – disse a mãe. – O meu coração só está a ficar velhote; é de se esperar.

Paul não respondeu, mas olhou para ela. E novamente o seu coração foi esmagado por um aperto escaldante. Queria gritar, queria desfazer tudo, em fúria.

Retomaram o passeio, passo a passo, muito lentamente. E cada passo parecia um peso no peito de Paul. Sentia-se como se o seu coração fosse explodir. Finalmente, chegaram ao topo. Ela deteve-se encantada, olhando para o portão do castelo, admirando a fachada da Catedral. Tinha-se esquecido de si mesma.

– Isto é ainda melhor do que pensei que pudesse ser! – exclamou.

Mas ele odiava tudo. Por todo o lado a seguia, cismando. Sentaram-se juntos na Catedral. Assistiram a um curto serviço religioso no coro. Ela estava hesitante.

– Estará aberto para todos? – perguntou.

– É claro que está – respondeu ele. – Pensa que iam ter a lata de nos mandar embora?

– Bem – exclamou ela –, tenho a certeza de que teriam, se ouvissem a tua linguagem!

Durante o serviço, o seu rosto parecia resplandecer novamente de alegria e tranquilidade. E durante todo esse tempo, ele tinha vontade de se enraivecer, partir coisas e gritar.

Mais tarde, quando se debruçaram da muralha, admirando a cidade lá em baixo, Paul disse intempestivamente:

– Porque é que um homem não pode ter uma mãe jovem? Porque é que há-de ser sempre velha?

– Bem – disse ela, a rir – não me parece que tenha muita escolha.

– E porque não fui eu o filho mais velho? Ora veja... os filhos mais velhos dizem que os mais novos têm vantagem... mas veja bem, eles é que tiveram a mãe jovem. A mãe devia ter-me tido como seu filho mais velho.

– Não fui eu que escolhi – replicou ela. – Se pensares bem, és tão culpado como eu.

Ele voltou-se para ela, pálido, com o olhar irado.

– Porque é que a mãe é velha? – disse ele, enlouquecido pela sua impotência. Porque é que não pode andar? Porque é que não pode acompanhar-me a todos os lugares?

– Tempos houve – respondeu ela – em que eu era capaz de correr por essa colina acima melhor do que tu.

– E de que é que isso me vale, a mim? – gritou ele, golpeando a muralha com o punho. Depois, tornou-se lamuriento: – É uma pena que esteja doente, minha pequenina, é...

– Doente! – interrompeu ela. – Estou só a ficar velha, e tu tens de te conformar, é tudo. – Ficaram em silêncio. Mas não por muito tempo, e logo retomaram a boa disposição durante o chá. Enquanto estavam sentados na margem do Brayford, observando os barcos, Paul falou-lhe de Clara. A mãe fez inúmeras perguntas.

– E com quem vive ela?

– Com a mãe, em Bluebell Hill.

– E têm o suficiente para se manterem?

– Acho que não: penso que fazem rendas.

– Afinal que encantos lhe encontras tu, meu filho?

– Não sei se ela tem encantos, mãe. Mas é simpática. E parece correcta, sabe... Nada profunda, nem um pouco.

– Mas é bastante mais velha do que tu.

– Tem trinta, e eu vou fazer vinte e três.

– Mas não me disseste porque gostas dela.

– Porque não sei... será talvez o ar provocador que ela tem, uma espécie de revolta...

Mrs. Morel pensou um pouco. Teria ficado contente se o filho se apaixonasse por uma mulher que... ela não sabia bem o quê. Mas ele enervou-se, ficando subitamente furioso, e novamente melancólico. Ela só desejava que ele conhecesse uma rapariga agradável. Nem sabia o que desejava, mas deixou o assunto no ar. De certa forma, não era hostil à ideia de Clara.

Também Annie se ia casar. Leonard fora para longe trabalhar em Birmingham. Um fim-de-semana em que ele estava lá em casa, Mrs. Morel dissera-lhe:

– Não estás com boa cara, meu filho.

– Não sei o que tenho – respondeu ele. – Sinto-me perdido, mãe.

Chamava-a já de mãe, com o seu jeito infantil.

– Tens a certeza de que as instalações são boas? – perguntou ela.

– Sim... sim. Só que... é um aborrecimento quando temos de tomar sozinhos o nosso próprio chá... sem ninguém para nos ralhar, se o deitarmos para o pires e o bebermos daí. Não sei porquê mas tira o sabor ao chá.

Mrs. Morel riu-se.

– E então isso preocupa-te? – perguntou.

– Não sei... Quero casar – disse ele, de repente, torcendo os dedos e olhando para as botas. Houve uma pausa.

– Mas – exclamou ela – pensei que tinhas dito que querias esperar mais um ano.

– Pois foi, eu disse isso – respondeu ele, teimosamente.

Mrs. Morel considerou as palavras do filho por um momento.

– Sabes – continuou – a Annie é um pouco esbanjadora. Não amealhou mais de umas onze libras... e eu sei, meu filho, que tu não tens tido muita sorte.

Ele corou até às orelhas.

– Eu tenho vinte e três libras – respondeu.

– Com isso, não vão muito longe – disse Mrs. Morel.

Ele não respondeu, limitando-se a torcer os dedos.

– E tu sabes que eu não tenho nada... – continuou ela.

– Nem eu queria, mãe...! – gritou ele, muito vermelho, sofrendo e protestando.

– Não, meu filho, eu sei. Só tenho pena de não ter dinheiro. Tirando cinco libras para o casamento e preparativos... ficam vinte e nove libras... com isso não conseguem fazer grande coisa...

Ele continuou a torcer os dedos, impotente, obstinado, sem erguer os olhos.

– Mas queres mesmo casar? – perguntou ela. – Achas que deves?

Ele olhou-a de frente com os seus olhos azuis.

– Quero! – afirmou.

– Então – continuou ela – temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance.

Quando Leonard voltou a erguer o rosto, tinha lágrimas nos olhos.

– Não quero que a Annie passe dificuldades...! – disse ele, debatendo-se.

– Meu filho – disse ela – vocês namoram há muito tempo – tu tens um emprego decente. Se um homem tivesse precisado de mim, eu teria casado com ele mesmo sem dinheiro. Para ela pode ser um pouco difícil começar a vida humildemente. As raparigas muito novas são assim. Esperam ansiosas pelo belo lar que pensam que vão ter. Mas eu tinha mobílias caras! E isso não é tudo.

Assim, o casamento teve lugar quase de imediato. Arthur veio a casa, esplêndido no seu uniforme. Annie estava muito bonita num vestido cinza peito-de-rola que podia guardar para os domingos. Morel disse-lhe que era bem parva por se casar, e mostrou-se muito frio para com o genro. Mrs. Morel tinha plumas brancas no chapéu e mais algumas na blusa, e ambos os filhos a arreliaram por se embonecar tanto. Leonard estava alegre e cordial e sentia-se um tolo amedrontado. Paul não conseguia entender por que razão Annie queria casar-se. Sentia um grande carinho por ela, e ela por ele. Esperava, por isso, talvez um pouco melancolicamente, que tudo lhe corresse pelo melhor. Arthur estava surpreendentemente elegante no seu uniforme escarlate e amarelo e tinha plena consciência disso, mas sentia-se secretamente envergonhado por estar fardado. Annie debulhou-se em lágrimas na cozinha, ao despedir-se da mãe. Mrs. Morel chorou um pouco e, depois, afagou-lhe as costas, dizendo:

– Não chores, filha, ele vai ser bom para ti.

Morel bateu com os pés no chão violentamente, afirmando que ela era uma parva por se ter amarrado tão depressa. Leonard estava pálido e exausto. Mrs. Morel disse-lhe:

– Confio-ta, meu filho, e considero-te responsável por ela.

– Pode confiar em mim – assegurou ele, quase morto com tanta confusão. E estava tudo acabado.

Quando Morel e Arthur se recolheram, Paul sentou-se a conversar com a mãe, como tantas vezes fazia.

– Não tem pena de ela se ter casado, pois não, mãe? – perguntou ele.

– Não tenho pena de ela ter casado... mas... é uma sensação estranha... vê-la partir para longe de mim. Até me parece impossível que ela prefira ir com o Leonard. Mas as mães são assim... eu sei que é tolice.

– E vai ficar triste por causa dela?

– Quando penso no dia do meu casamento – respondeu a mãe – só posso esperar que a vida dela seja diferente.

– Mas confia nele... para a tratar bem?

– Sim, sim! Há quem diga que ela podia ter arranjado melhor. Mas eu acho que, se um homem é genuíno, como é o Leonard, e uma rapariga gosta dele... então... está tudo bem... ele é tão bom quanto ela.

– Nesse caso, não se importa?

– Nunca deixaria uma filha minha casar com um homem que eu não sentisse ser completamente genuíno. E, no entanto, cá está este vazio, agora que ela se foi...

Sentiam-se ambos tristes e queriam-na de volta. Paul achava que a mãe parecia muito sozinha, na sua nova blusa de seda preta com guarnições brancas.

– De qualquer modo, mãe, eu nunca me casarei – afirmou ele.

– Ah, todos dizem o mesmo, meu filho. Ainda não encontraste a mulher ideal. Espera um ano ou dois, e vais ver.

– Mas eu não me caso, mãe... fico a viver consigo, e vamos ter uma criada.

– Ah, meu filho... falar é fácil. Veremos quando chegar a altura.

– Que altura? Eu tenho quase vinte e três anos.

– Sim... não és dos que se casam cedo. Mas daqui a três anos...

– Estarei consigo na mesma.

– Veremos, meu filho, veremos.

– Mas a mãe não quer que eu case?

– Não gostaria de pensar que vais continuar pela vida fora sem ninguém para tomar conta de ti e te fazer... não, não gostaria...

– Acha então que devo casar-me?

– Mais cedo ou mais tarde, todos os homens devem casar-se.

– Mas preferia que fosse mais tarde.

– Será difícil... muito difícil. É como o povo diz:


«Quem casa filho, perde um filho;

quem casa filha, ganha um filho.»


– E pensa que eu deixaria uma mulher afastar-me de si?

– Bem, não poderias pedir-lhe que casasse contigo e com a tua mãe – sorriu Mrs. Morel.

– Ela que fizesse o que quisesse... desde que não interferisse.

– Não o faria... até te ter apanhado... Mas depois verias...

– Então nunca vou ver. Nunca me casarei enquanto a tiver a si... Nunca.

– Mas eu não gostaria de te deixar sem ninguém, meu filho – disse Mrs. Morel, chorando.

– A mãe não vai deixar-me. A mãe tem... cinquenta e três anos! Dou-lhe até aos setenta e cinco. Ora aí tem, nessa altura, estou eu gordo e com quarenta e quatro anos, e então posso casar com uma mulher séria. A mãe vai ver...!

A mãe sentou-se, a rir.

– Vai deitar-te – disse ela –, vai deitar-te.

– E havemos de ter uma casa bem bonita, a mãe e eu, e uma criada, e tudo será perfeito. Talvez eu venha a ficar rico com a minha pintura.

– Já para a cama!

– E a mãe terá uma caleche puxada por um potro. Imagina-se... uma pequena Rainha Vitória por aí a trotar.

– Já te disse para ires para a cama – disse ela, a rir.

Ele beijou-a e saiu. Os seus planos para o futuro eram sempre os mesmos.

Mrs. Morel ficou a matutar sobre a filha, sobre Paul, sobre Arthur. Lamentava-se por ter perdido Annie. A família era muito unida, e ela sentia que agora tinha de viver, para estar com os filhos. A vida tinha-lhe dado tanta coisa. Paul amava-a e Arthur também. Arthur nunca soube o quanto a amava. Era uma criatura de momentos. Até agora, nunca tinha sido obrigado a compreender--se a si mesmo. O exército disciplinara o seu corpo, mas não a sua alma. Estava de perfeita saúde e era muito atraente. O seu cabelo negro e espesso assentava-lhe bem na cabeça pequena. Havia algo de infantil no seu nariz, algo quase feminino nos seus olhos azuis, muito escuros. Mas tinha a boca vermelha e cheia de um homem, sublinhando o bigode, e o queixo era vigoroso. A boca era do pai, e o nariz e os olhos da família da mãe, gente bonita, de fracos princípios. Mrs. Morel andava ansiosa, preocupada com o filho. Desde que assumisse realmente o uniforme, estava seguro. Mas até onde iria ele?

Na verdade, o exército não lhe tinha feito nenhum bem. Ressentia-se amargamente da autoridade dos oficiais subalternos. Detestava ter de obedecer, como se fosse um animal. Mas tinha o bom senso de não protestar. Por isso, concentrara toda a sua atenção na tentativa de tirar o melhor partido da situação. Sabia cantar, era um companheiro alegre. Por vezes, envolvia-se em situações difíceis, mas eram as dificuldades próprias de um homem, facilmente perdoáveis. Assim, tirava disso o melhor partido, enquanto o seu autorespeito se ia recalcando. Confiava na sua boa aparência e elegância, no seu requinte e boa educação, para conseguir quase tudo o que desejava, e não estava desiludido. No entanto, sentia-se inquieto. Algo parecia atormentá-lo por dentro. Nunca estava quieto, nunca estava sozinho. Com a mãe, mostrava-se bastante humilde. Admirava Paul, amava-o até, mas desprezava-o ligeiramente. E Paul, por sua vez, admirava e amava o irmão, mas desprezava-o ligeiramente.

Mrs. Morel recebera algumas libras da herança do pai, e decidiu comprar a saída do filho do exército. Ele não cabia em si de contente. Parecia um garoto em férias.

Sempre gostara de Beatrice Wyld e, durante a sua licença, reatou a velha amizade. Ela estava agora mais forte e de melhor saúde. Os dois davam frequentemente longos passeios, e Arthur levava-a pelo braço à boa maneira dos soldados, com alguma rigidez. Beatrice tocava piano enquanto ele cantava. Arthur desapertava, então, o colarinho da túnica, ia ficando cada vez mais corado, com o olhar brilhante, e cantava com uma voz máscula de tenor. Depois, sentavam-se juntos no sofá. Ele parecia exibir o seu corpo, e ela mostrava-se bem consciente dele, do peito forte, dos flancos, das coxas cingidas nas calças justas.

Ele gostava de se resvalar para o dialecto quando conversava com ela. Por vezes, Beatrice acompanhava-o e fumava também um cigarro. Noutras ocasiões, tirava apenas umas passas do cigarro dele.

– Não – disse ele uma noite, quando ela lhe pediu o cigarro: – Nem penses. Se quiseres, dou-te um beijo com fumo.

– Quero uma passa, não quero beijo nenhum – respondeu ela.

– Então... é isso que vais ter – disse ele – juntamente com o beijo.

– Quero dar uma passa no teu cigarro – irritou-se ela, tentando tirar-lhe o cigarro dos lábios.

Arthur estava sentado com o ombro encostado ao dela. Ela era pequena e rápida como um raio. Só a custo ele conseguiu escapar-lhe.

– Dou-te um beijo de fumo – disse ele.

– És um descarado impertinente, Arty Morel – disse ela, recostando-se no sofá.

– Deixa-me dar-te um beijo de fumo!

O soldado inclinou-se, sorrindo. O seu rosto estava próximo do dela.

– Olha o disparate! – replicou ela, virando a cabeça.

Arthur aspirou uma longa fumaça, fechou a boca e pôs os lábios perto dela. O seu bigode escuro e bem aparado sobressaía como uma escova. Beatrice olhou para os lábios rubros, pregueados, e depois, subitamente, conseguiu arrancar-lhe o cigarro dos dedos e fugiu para longe. Ele, correndo atrás dela, tirou-lhe a travessa que lhe prendia os cabelos. Ela voltou-se e atirou-lhe o cigarro. Ele apanhou-o, pô-lo na boca e sentou-se.

– Parvalhão! – gritou ela. – Dá-me a minha travessa!

Receava que o seu cabelo, especialmente penteado para ele, se desmanchasse, e conservou as mãos na cabeça. Ele escondeu a travessa entre os joelhos.

– Não a tenho – disse.

Com o riso, o cigarro tremia-lhe entre os lábios enquanto falava.

– Mentiroso! – acusou ela.

– Tão certo como eu estar aqui! – E riu-se, mostrando as mãos.

– Seu demónio desavergonhado! – exclamou ela, precipitando-se para ele, lutando para recuperar a travessa que ele tinha entre os joelhos. Enquanto Beatrice lutava com ele, puxando-lhe as coxas macias e apertadamente cingidas, Arthur riu-se até cair para trás no sofá, sacudido pelas gargalhadas. O cigarro caiu-lhe da boca e quase lhe queimou a garganta. Sob o delicado bronzeado, o sangue subiu à superfície, e ele riu até os seus olhos azuis ficarem cegos e a garganta inchada, quase sufocando. Depois, endireitou-se. Beatrice estava a colocar a travessa no lugar.

– Fizeste-me cócegas, Beat – disse ele, com a voz rouca.

Como um relâmpago, a mão dela, pequena e branca, voou e esbofeteou-lhe a face. Ele ergueu-se de um salto, com um olhar feroz. Entreolharam-se. Lentamente, um rubor subiu às faces dela; baixou os olhos, depois a cabeça. Ele sentou-se novamente, amuado. Ela entrou na cozinha para compor o cabelo. Aí, sozinha, verteu algumas lágrimas, não sabendo bem por que razão.

Quando regressou, estava recomposta. Mas era apenas uma capa sobre o seu fogo interior. Arthur, com a cabeleira revolta, continuava amuado no sofá. Beatrice sentou-se diante dele, no cadeirão, e nenhum dos dois falou. O relógio martelava no silêncio, com pancadas secas.

– És uma gatinha arisca, Beat – disse ele devagar, quase como um pedido de desculpas.

– Bem, e tu não devias ser tão atrevido – retorquiu ela.

Seguiu-se novamente um longo silêncio. Ele assobiava para si mesmo, como um homem muito agitado, mas provocador. Subitamente, ela atravessou a sala direita a ele e beijou-o.

– Então, dei ou não dei? – troçou ela.

Ele levantou o rosto para ela, sorrindo de forma singular.

– Dás-me outro? – convidou ele.

– Julgas que não me atrevo? – perguntou ela.

– Coragem! – desafiou-a ele, com a boca estendida na sua direcção.

Deliberadamente, e com um sorriso fremente que parecia espalhar-se a todo o corpo, ela colocou a boca sobre a dele. Imediatamente, os braços de Arthur se fecharam em torno dela. Assim que o longo beijo acabou, ela afastou a cabeça, e meteu os dedos delicados no pescoço dele, por dentro do colarinho aberto. Depois, fechando os olhos, abandonou-se de novo num beijo.

Agia agora de livre vontade. O que desejava fazer, fizera-o e não responsabilizava ninguém.

Paul sentia a vida mudar à sua volta. As condições da juventude tinham desaparecido. Agora, a sua era uma casa de pessoas adultas. Annie era uma mulher casada, Arthur seguia o seu próprio prazer de um modo que a família ignorava. Durante muito tempo, tinham vivido em casa, saindo para passar o tempo. Mas agora, para Annie e Arthur, a vida desenrolava-se fora de casa da mãe. Só vinha a casa de férias ou para descansar. Por isso, pairava no ar aquela sensação estranha de vazio, como se os passarinhos tivessem levantado voo. Paul andava cada vez mais inquieto. Annie e Arthur haviam partido. Ele estava ansioso por lhes seguir o exemplo. No entanto, a casa era, para ele, ao lado de sua mãe. E, contudo, havia algo mais, algo cá fora, algo que ele desejava.

Andava cada vez mais desassossegado. Miriam não o satisfazia. O seu antigo desejo, quase loucura, de estar com ela, enfraquecera. Por vezes, encontrava Clara em Nottingham, por vezes acompanhava-a a reuniões, por vezes via-a em Willey Farm. Mas ultimamente a situação tornara-se constrangedora. Havia um triângulo de antagonismo entre Paul, Clara e Miriam. Com Clara, ele adoptava um tom vivo, mundano e trocista que era muito desagradável para Miriam. Não lhe importava o que acontecera antes. Ela podia ser íntima e estar triste com ele. Depois, assim que Clara aparecia, tudo desaparecia, e ele representava para a recém-chegada.

Miriam disfrutara de uma bela noite na companhia de Paul, sentados no feno. Ele estivera ocupado na cavalariça e, quando acabou, veio ajudá-la a colocar o feno em pequenos molhes. Depois, falou-lhe das suas esperanças e desesperos, e toda a sua alma parecia estar ali, desnuda diante dela. Ela sentiu-se como se visse nele a própria essência trémula da vida. A Lua despontou; regressaram juntos a casa; parecia que ele a procurara porque precisava desesperadamente dela, e ela escutou-o, deu-lhe todo o seu amor e confiança. A Miriam parecia que ele lhe trouxera o melhor que havia em si para guardar, e que ela o guardaria enquanto vivesse. Não, o céu não cuidaria das estrelas melhor e mais eternamente do que ela guardaria o que de bom havia na alma de Paul Morel. Entrou em casa sozinha, sentindo-se exaltada, satisfeita com a sua confiança.

E depois, no dia seguinte, Clara chegou. Estava combinado tomarem o chá no campo de feno. Miriam viu a tarde vestir-se de dourado e depois de sombras. Durante todo esse tempo, Paul brincava com Clara. Fazia montes de feno cada vez maiores sobre os quais saltavam. Miriam não se interessava pelo jogo e manteve-se afastada. Edgar, Geoffrey, Maurice, Clara e Paul não paravam de saltar. Paul venceu, pois era muito leve. O sangue de Clara estava inflamado. Ela corria como uma amazona. Paul adorava a forma determinada como ela se precipitava para o monte de feno e saltava, aterrando do outro lado, com os seios sacudidos e o cabelo espesso em desalinho.

– Tocaste! – gritou ele. – Tocaste!

– Não toquei nada! – dardejou ela, voltando-se para Edgar. – Não toquei, pois não? Não achas que passei bem?

– Não sei. – E Edgar riu-se.

Nenhum deles sabia dizer.

– Mas tu tocaste – insistiu Paul. – E perdeste.

– Não toquei! – gritou ela.

– Tão claro como água – teimou Paul.

– Dá-lhe um puxão de orelhas por mim – gritou ela a Edgar.

– Não – disse Edgar a rir –, não me atrevo. Tens de ser tu a fazê-lo.

– Nada vai alterar o facto de teres tocado – insistiu Paul, trocista.

Ela estava furiosa. O seu pequeno triunfo diante de homens e rapazes desvanecera-se. Ela esquecera-se de si durante o jogo. Agora, ele queria humilhá-la.

– Acho que és desprezível! – disse-lhe ela.

Ele riu novamente, de um modo que torturou Miriam.

– Eu já sabia que não conseguias saltar aquele monte – provocou Paul.

Clara voltou-lhe as costas. Contudo, todos podiam ver que a única pessoa que ela escutava, ou da qual estava consciente, era ele, e ele dela. Agradava aos homens assistir a esta batalha entre eles. Mas Miriam torturava-se.

Via agora que Paul podia escolher o inferior em vez do superior. Ele conseguia ser infiel a si próprio, infiel ao verdadeiro e profundo Paul Morel. Havia o perigo de ele se tornar frívolo, de correr atrás das suas satisfações como qualquer Arthur, ou como o seu próprio pai. Pensar que ele pudesse desperdiçar a sua alma em troca desta irreverente relação de trivialidade com Clara era algo que atormentava Miriam. Caminhava amargurada e em silêncio, enquanto os outros dois brigavam entre si e Paul se divertia.

Mais tarde, embora se recusasse a admiti-lo, Paul sentiu-se envergonhado de si mesmo e prostrou-se diante de Miriam. Então, de novo se revoltou.

– Não é religioso ser-se religioso – disse. – Considero que um corvo é religioso quando cruza os céus. Mas só o faz porque se sente levado para onde vai, não porque pense que está a ser eterno.

Mas Miriam sabia que uma pessoa podia ser religiosa em tudo, ter Deus, fosse Ele quem fosse, presente em tudo.

– Não acredito que Deus saiba assim tanto sobre Si mesmo – bradou Paul. – Deus não sabe as coisas, Ele é as coisas... E estou certo de que não é sentimental.

A ela parecia-lhe que Paul tentava pôr Deus do seu lado, porque queria que as coisas fossem à sua maneira e desejava apenas o seu prazer. Travou-se uma longa batalha entre ambos. Ele era-lhe absolutamente infiel até mesmo na sua presença; depois ficava envergonhado, arrependido, para logo em seguida a odiar e fugir novamente. Essa era a situação eternamente repetida.

Ela irritava-o até ao mais fundo da sua alma. Depois, ali ficava, triste, pensativa, em adoração. E ele fazia-a sofrer. Metade do tempo, ele sofria por ela, metade do tempo, odiava-a. Ela era a sua consciência, e ele sentia que, de algum modo, tinha uma consciência que era de mais para si. Não podia deixá-la, porque, de certa forma, ela detinha em seu poder o melhor que havia nele. Não podia ficar com ela, porque ela não recebia tudo o resto, o que vinha por acréscimo, e eram três quartos. Por isso, desgastava-se em crueldade para com ela.

Quando ela fez vinte e um anos, ele escreveu-lhe uma carta que apenas podia ter sido escrita para ela.

«Será que devo escrever-te uma carta de aniversário? Parece um pouco pernicioso fazê-lo deliberadamente, não achas? Porque é certo que vou ser presunçoso e sentencioso.» Seguia-se então uma boa dose de presunção:

«A minha última carta preparava-te, não é verdade, para as alegrias da idade que se aproximava. Não te sentes como uma herdeira ao tomar posse da sua herança? É que agora, tornas-te publicamente dona de ti mesma. Querias mais?... Impossível!»

Paul começava a sentir o sentimento de culpa a torturá-lo. Parecia despedaçado por dentro, como se não pudesse manter-se de pé, mas devesse esforçar-se por não cair.

«Deixa-me falar do nosso velho e desgastado amor, pela última vez. Também ele está a mudar, não te parece? É como se o corpo desse amor tivesse morrido, deixando-te a sua alma invulnerável! Sabes, eu posso dar-te um amor espiritual, como sempre fiz du-rante estes longos, longos anos; mas não uma paixão encarniçada. Sabes, tu és uma freira. Eu dei-te aquilo que teria dado a uma freira sagrada... como um monge místico dá a uma freira mística; certamente que o estimas mais. No entanto, lamentas... não, lamentaste, melhor dizendo... o outro. Em todas as nossas relações, não entra o corpo. Não estou a falar-te através dos sentidos... mas através do espírito. É por isso que não somos capazes de amar no sentido comum. Muitas vezes, quando me dirijo a ti, não te olho de frente, porque, vê se entendes, eu não falo para os teus olhos, embora eles sejam escuros e belos, não falo para os teus ouvidos, ocultos sob uma delicada mecha de cabelo sedoso... mas para o teu íntimo, para lá de tudo isso. E assim continuarei a fazer a vida inteira, se o destino não intervier. Estás a ver? Compreendes agora porque só te beijo debaixo do azevinho. Entendes? E eu, será que entendo? Será talvez melhor, pensarás tu. Eu acho que sou demasiado educado, demasiado civilizado. Acho que muita gente o é.

«Tu ocupas um lugar na minha natureza que ninguém mais poderia preencher. Tu tens desempenhado um papel fundamental no meu desenvolvimento. E esta dor, que tem sido como uma nuvem ensombrando as nossas almas, não se começa ela a dissipar? A nossa não é uma afeição banal. E, no entanto, somos mortais, e viver lado a lado um com o outro seria terrível, pois, de algum modo, contigo não posso já ser trivial e, sabes, estar sempre para além deste estado mortal seria perdê-lo. Se as pessoas casam, devem viver juntas como seres humanos afectuosos que podem ser banais um com o outro sem se sentirem estranhos... não como duas almas. É assim que penso.

«Talvez me case nos próximos anos. Terá de ser uma mulher a quem possa beijar e abraçar, a quem possa fazer mãe dos meus filhos, com quem possa falar divertidamente, trivialmente, sinceramente, mas nunca com esta terrível seriedade. Vê como o destino dispôs as coisas. Tu... tu podes casar com um homem que não se derrame como fogo diante de ti. Pergunto-me se entendes... pergunto-me se eu próprio me entendo. Mas tu sabes que estas coisas me perturbam, e agora eis um final para a nossa conversa sobre este assunto. Perdoa-me por tudo o que disse – não é natural, eu sei – e queima esta carta, e não penses nela nem me faças pensar nela, e Deus nos ajude a suportar o fardo de nós próprios.

«Gostarias de um Manual de Ética? Acho que gostarias, sim, e podemos falar disso e aprender... oh, sim. E tu ficarás mais culta, não é? Como vês, a nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro.

«Agora tens vinte e um anos. Estou tão feliz por seres uma mulher independente. És tão forte quanto eu, não és? Sim, ainda mais forte. Oh, se temos de viver, temos de ser sensatos, e não nos podemos permitir ir longe de mais. Devemos ser triviais e procurar a beleza e não a dor, pois de outro modo ficamos numa situação difícil. Vá lá, nem uma palavra sobre os lugares sensíveis, por enquanto.

«Oh, como estaremos alegres na tua festa, no sábado! Eu, agora, não sinto nem um pouco de tristeza dentro do meu coração.

«Será que devo enviar-te esta carta? Duvido. Mas, afinal... é melhor, para que possas compreender. Adeus...»

Miriam leu a carta duas vezes, fechando-a em seguida. Um ano mais tarde, quebrou o selo para a mostrar à sua mãe.

«Tu és uma freira... tu és uma freira» – as palavras penetravam-lhe no coração uma e outra vez. Nada do que ele alguma vez dissera a penetrara tão profunda e firmemente, como se de uma ferida mortal se tratasse.

Ela respondeu-lhe dois dias depois da festa. «A nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro», citou. «Terá esse erro sido meu?»

Quase de imediato, ele respondeu-lhe de Nottingham, enviando-lhe ao mesmo tempo um pequeno Omar Khayyam.

«Vais encontrar muita coisa entre as finas capas deste pequeno livro, mas a lição a retirar é que devemos beber o vinho tinto da vida e deixá-lo embriagar-nos por um instante. Foi essa a razão por que o comprei. Também quero levar-te The Blessed Damosel, para passar um serão contigo e com Rossetti.

«Se o pequeno erro foi teu, perguntas tu. Bem, ninguém erra sozinho! A tua quota-parte do erro foi gloriosa, digna da imortalidade. Mas a minha foi um reconhecimento indomável do barro do vaso... frágil... rígido... confinador. E eu, alternadamente, amei e odiei a matéria mundana de mim mesmo. Quando a amava, era cruel para ti, quando a odiava, era cruel para mim, e para tudo o mais. Não tenho eu a faculdade de ser muito cruel?

«Se, na festa dos teus anos, eu estava ainda algo tempestuoso, foi porque reconheci no teu sol de quarta-feira o brilho lavado do teu longo dia de chuva de terça-feira. Eu não me sento e travo a descoberto as minhas batalhas, como tu fazes. Eu sacudo o inimigo pela garganta e grito-lhe que ele é um vilão e um cão. Com isso, ordeno-lhe que vá para longe de mim e, por um momento, fico em liberdade. Depois, digo a mim mesmo que se tratava de um pobre coitado e rio. Pouco depois, mergulho novamente nas trevas, ao descobrir que ele não se foi nem tão-pouco está morto... E, quando tudo isto se torna insuportável, travo com ele nova luta feroz. Através destas batalhas violentas venço, ou não venço. Sem triunfos, sem Waterloos. Assim, não sofro tão intensamente, e fico menos estável. Afinal de contas, é uma brincadeira, esta coisa de “nós”, não é?

«Estou feliz por teres respondido... És tão calma e natural que me envergonhas. Que oco que eu sou! Tenho de jogar duro... Tu não entendes como eu posso dançar em redor dos meus inimigos, invectivando-os e espiando-os, lançando mão de tudo o que me aparece no caminho, travando contendas ocasionais. Se eu me fechasse a tudo e mantivesse a dor apertada no peito, como tu fazes, morreria de exaustão. Nisso, as nossas naturezas são radicalmente opostas.

«Por isso, estamos tantas vezes em desacordo. Mas, no fundamental, estaremos sempre juntos, penso eu.

«Tenho de agradecer-te pela tua simpatia para com a minha pintura e os meus desenhos. Muitos dos esboços são dedicados a ti. Espero ansiosamente as tuas críticas, que, para minha vergonha e glória, são sempre grandes apreciações. Que deliciosa brincadeira que isso é.

«Adeus. Agora tenho de saldar uma maldita conta. Espero que queimes estas cartas. É minha regra queimá-las todas... pois nenhuma me dá prazer a não ser pela lembrança do prazer a que se referem, e muitas estão cheias de lágrimas secretas das quais devo fugir...»

Este foi o fim da primeira fase dos amores de Paul Morel. Estava agora com vinte e três anos e, embora virgem, o instinto sexual que Miriam refinara nele durante tanto tempo estava agora cada vez mais fortalecido. Muitas vezes, quando falava com Clara Dawes, sentia o sangue engrossar e alvoroçar-se, aquela concentração peculiar no peito, como se algo estivesse vivo lá dentro, um novo ser ou um novo centro de consciência, avisando-o de que, mais cedo ou mais tarde, teria de decidir-se por uma mulher ou por outra. Mas ele pertencia a Miriam. Disso ela estava absolutamente segura, de que ele lhe concedia esse direito.


X

CLARA

COM VINTE E TRÊS anos, Paul mandou uma paisagem sua para a Exposição de Inverno de Newcastle. Miss Jordan tinha-se interessado muito por ele e convidara-o para ir a sua casa, onde conheceu outros artistas. Paul começava a ter ambições.

Uma manhã, estava ele a lavar-se na copa, quando chegou o carteiro. Paul ouviu a mãe numa gritaria desenfreada. Correu para a cozinha e viu-a de pé diante da lareira, a agitar uma carta, como louca, e a gritar «Vivas!». Ficou chocado e assustado.

– Oh, mãe! – exclamou.

A mãe correu para ele e atirou-se-lhe ao pescoço, enquanto agitava a carta, gritando:

– Parabéns, meu filho... Eu sabia que havíamos de vencer!

Paul estava cheio de medo daquela mulher pequenina e bem-comportada, já de cabelos grisalhos, que de repente desatara naquele chinfrim. Até o carteiro voltou para trás a correr, pensando que tinha acontecido alguma desgraça. Viram-lhe o cocuruto do boné por detrás da cortina. Mrs. Morel precipitou-se para a porta.

– O quadro dele ganhou o primeiro prémio, Fred, e foi vendido por vinte guinéus!

– Ena pá! G’ande acontecimento! – disse o carteiro, um rapaz novo, que ela conhecia desde pequeno.

– Quem o comprou foi o major Moreton – acrescentou Mrs. Morel.

– Isso vale muito, olá se vale, Mrs. Morel – disse o carteiro, de olhos azuis a luzir. Não cabia em si de contente por ter sido o portador de tão boas notícias. Mrs. Morel voltou para dentro e sentou-se. Tremia dos pés à cabeça. Paul só tinha medo de que ela tivesse lido mal a carta e sofresse uma desilusão. Releu-a uma, duas vezes, e convenceu-se de que era mesmo verdade. Então, sentou-se, com o coração a pulsar forte, de alegria.

– Oh, mãe! – exclamou.

– Eu não te disse que havíamos de vencer? – disse ela, disfarçando as lágrimas.

Paul tirou a chaleira do lume e escaldou o chá.

– A mãe não imaginava que... – começou ele, hesitante.

– Não, meu filho... assim tanto não... mas esperava bastante.

– Mas tanto não – disse ele.

– Não... isso não... mas sabia que íamos vencer.

E logo recuperou a compostura, pelo menos aparentemente. Ele estava sentado, de camisa aberta, deixando-lhe a descoberto um pescoço quase feminino, de toalha na mão e cabelo em pé.

– Vinte guinéus, mãe! Exactamente o que a mãe precisava para resgatar o Arthur. Agora já não precisa de pedir emprestado. É mesmo à conta.

– Nem pensar nisso, não te vou ficar com o dinheiro todo! – disse ela.

– Ora essa, porquê?

– Porque não devo.

– Bem... então a mãe fica com onze libras... e eu com nove.

Continuaram a discutir a divisão dos vinte guinéus. Ela só queria as cinco libras de que precisava. Ele não concordava de maneira nenhuma. E, assim, a discussão serviu para descarregarem a tensão.

Morel, quando à noite chegou da mina, disse, mal entrou:

– Ouvi dizer qu’o quadro do Paul ganhou o primeiro prémio e foi vindido a Lorde Henry Bentley por cinquenta libras.

– As histórias que as pessoas contam! – exclamou Mrs. Morel.

– Ah! – disse ele. – Eu bem sabia qu’era mentira. Mas impingiram-me que tu é que tinhas contado ò Fred Hodgkisson.

– Como se eu lhe fosse dizer uma coisa dessas!

– Ah! – aquiesceu o mineiro.

Via-se que estava desapontado.

– Lá que ganhou o primeiro prémio... isso é verdade – disse Mrs. Morel.

O mineiro deixou-se cair pesadamente na cadeira.

– Conseguiu! – exclamou o mineiro.

Estava perplexo, de olhar pregado algures, no outro lado da sala.

– Mas, quanto às cinquenta libras, que disparate! – E Mrs. Morel calou-se por um instante. – Enfim... o major Moreton comprou-o por vinte guinéus...

– Vinte guinéus! Num pode ser! – exclamou Morel.

– Pois foi, e bem os merece.

– Tá bem! – disse ele. – Num duvido... Mas vinte guinéus por uma pintura qualquer qu’ele fez numa ou duas horas...! – Depois calou-se, cheio de respeito pelo filho. Mrs. Morel fungou ligeiramente, como se isso não fosse nada de importante.

– E quand’é qu’ele põe as mãos na massa? – perguntou o mineiro.

– Isso não sei... quando o quadro for entregue, suponho.

Fez-se silêncio. Morel olhava para o açucareiro em vez de comer, com o braço enfarruscado e a mão desfigurada pelo trabalho apoiados em cima da mesa. A mulher fingiu não ver quando ele limpou os olhos com as costas da mão, com a cara toda esborratada do pó da mina.

– Pois é, e o outro tamém havia de ter feito o mêmo, se num o tivessem matado – disse ele, em voz baixa.

A lembrança de William retalhou Mrs. Morel como uma lâmina gelada, deixando-a fatigada e a precisar de se ir deitar.

Paul foi convidado para jantar em casa de Mr. Jordan. Ao chegar a casa, disse:

– Mãe, preciso de um smoking.

– Sim, já calculava – disse ela. Estava contente. Fez uma pausa. – Tens o do William – prosseguiu. – Sei que custou quatro libras e dez xelins, e ele só o vestiu três vezes...

– E a mãe gostava que eu o usasse? – perguntou Paul.

– Com certeza. Acho que te deve servir... pelo menos o casaco. As calças têm de ser subidas.

Paul foi para o quarto e vestiu o casaco e o colete. Quando desceu estava bastante bizarro, com o colarinho e o peitilho de flanela e o casaco e colete de cerimónia. Estava-lhe tudo muito largo.

– O alfaiate aperta-te isso – disse a mãe, alisando-lhe o casaco no ombro. – O tecido é muito bonito. Nunca tive coragem para deixar o teu pai usar as calças e bem contente estou agora de o ter feito.

Enquanto passava a mão nas bandas de seda do casaco, pensou no filho mais velho. Mas este outro filho estava bem vivo dentro do fato, e ela passou-lhe a mão nas costas para o sentir. Estava vivo e era dela. O outro estava morto.

Paul foi a vários jantares com o smoking que tinha sido de William. De cada vez que isso acontecia, o coração da mãe exultava de orgulho e alegria. O filho estava lançado na vida. Os botões que ela e os irmãos tinham comprado para William trazia-os ele no peitilho, aplicados numa das camisas de cerimónia de William. Paul tinha uma bela figura. As suas feições eram algo rudes, mas era simpático e muito amável. Não seria propriamente um cavalheiro, mas via-se que estava ali um homem genuíno.

Paul contava à mãe tudo o que se passava, tudo o que se dizia. Era como se ela lá tivesse estado. E ele estava morto por lhe apresentar os novos amigos com quem ia jantar às sete e meia.

– Ir contigo? – disse ela. – Para que hão-de querer eles conhecer-me?

– Mas querem! – exclamou, indignado. – Se querem conhecer-me, como dizem, então querem conhecê-la a si também... porque a mãe é tão inteligente como eu.

– Ir contigo, meu filho... – E riu-se.

Mas começou a poupar mais as mãos. Também as dela estavam muito calejadas do trabalho. A pele estava lustrosa da água quente e os nós dos dedos inchados. Mas começou a ter o cuidado de não as meter em lixívia. Tinha saudades das suas mãos de outros tempos, pequenas e delicadas. E quando Annie começou a insistir com ela para usar blusas mais requintadas, de acordo com a sua idade, ela fez-lhe a vontade. Permitiu até que lhe pusessem um laço preto de veludo no cabelo. Depois, deu uma fungadela sarcástica, mas sabia que lhe ficava bem. Parecia uma senhora da sociedade, afirmava Paul, tão fina como Mrs. Moreton, e muito, muito mais bonita. A família estava a subir na escala social. Só Morel continuava na mesma, ou melhor, piorava lentamente.

Paul e a mãe discutiam longamente sobre a essência da vida. A religião ia desaparecendo da vida de Paul. Tinha-se desembaraçado de todas as crenças que o pudessem aperrear, fizera uma limpeza geral, e chegara mais ou menos ao âmago da fé, ou seja, que cada um deve procurar o bem e o mal dentro de si mesmo, e ir, com paciência, construindo a sua própria ideia de Deus. E, a partir dessa altura, passou a interessar-se mais pela vida.

– Sabe – disse ele à mãe –, não quero pertencer a uma burguesia abastada. Prefiro o povo. Eu sou do povo.

– Mas se fosse outra pessoa a dizê-lo, meu filho, ias ficar furioso. Tu sabes que te consideras igual a qualquer grande senhor.

– No íntimo, talvez – respondeu ele. – Não na classe ou na educação, ou nas maneiras. Mas no íntimo, isso sim.

– Muito bem... Então para quê falar no povo?

– Porque... a diferença entre as pessoas não está nas classes sociais, mas nelas mesmas... Só que às classes médias vão-se buscar as ideias, e ao povo... a própria vida, o calor humano. No povo sentem-se vibrar o ódio e o amor...

– Isso é tudo muito bonito, meu filho... mas então porque não vais conversar com os amigos do teu pai?

– Esses são muito diferentes.

– Não concordo. São gente do povo. Afinal, com que pessoas do povo é que te dás agora? Com as que gostam de trocar ideias, falar das mesmas coisas que a burguesia. As outras não te interessam.

– Mas... há a vida...

– Não creio que a Miriam te dê mais vida do que qualquer rapariga culta... Miss Moreton, por exemplo. Tu é que tens preconceitos de classe, estás a ficar um snob.

A mãe desejava francamente que o filho ascendesse à burguesia, o que ela sabia não ser difícil. E desejava vê-lo, no fim, casado com uma senhora da sociedade.

Empenhava-se agora em combater no filho a sua incessante inquietação. Ele ainda mantinha a ligação com Miriam, não conseguindo nem acabar com tudo nem assumir o compromisso em definitivo, e a indecisão parecia consumir-lhe as energias. Além disso, a mãe pressentia nele uma inclinação inconsciente para Clara, e sendo ela uma mulher casada, Mrs. Morel só desejava que o filho se apaixonasse por alguém em situação menos complicada. Mas Paul, estupidamente, recusava-se a amar, ou sequer a admirar uma rapariga só pelo facto de ela pertencer a uma classe mais elevada.

– Meu filho – disse-lhe a mãe –, nem toda a tua inteligência, nem todo o teu desprezo pelas tradições antigas, nem essa mania de fazeres só o que queres, parecem trazer-te grande felicidade.

– E o que é a felicidade? – exclamou ele. – Para mim não existe! Como é que eu posso ser feliz?

Esta pergunta tão directa perturbou-a.

– Isso só tu podes saber, meu filho. Mas, se pudesses encontrar uma mulher decente que te fizesse feliz... quando te bastava quereres... terias mais sossego para trabalhar... seria muito melhor para ti.

Paul franziu o sobrolho. A mãe pusera o dedo em cheio na ferida chamada Miriam. Ele afastou os cabelos da testa, com o olhar incendiado de dor.

– Isso é fácil de dizer, mãe – gritou. – Isso é a cartilha de todas as mulheres... paz de espírito e conforto físico. Para mim, isso não vale nada.

– Ah, não? – retorquiu a mãe. – Se calhar achas que o teu desencanto é divino, não?

– Acho... Lá da divindade não quero saber. Mas diabos levem a sua felicidade! Desde que se tenha uma vida cheia, não interessa se é ou não de felicidade. Receio que a sua felicidade me enchesse de tédio.

– Tu nem sequer tentas – disse a mãe. E, de repente, toda a dor que sentia por ele explodiu. – E isso é importante! – gritou ela. – Tinhas obrigação de ser feliz, tinhas obrigação de tentar ser feliz, de viver feliz. Como é que eu ia ficar, sabendo que eras infeliz?

– A sua vida foi suficientemente má, Mater, mas não a deixou muito pior do que os que foram mais felizes. Julgo que se saiu até muito bem. Comigo passa-se o mesmo. Não acha que me estou a sair bem?

– Não, meu filho, não estás. Batalhar... batalhar... e sofrer... é tudo o que fazes, pelo que eu vejo...

– E porque não, querida mãe? É o melhor que há a fazer...

– Não, não é! As pessoas têm obrigação de ser felizes!

Mrs. Morel tremia dos pés à cabeça. Discussões destas repetiam-se sempre que a mãe parecia querer lutar pela vida do filho, opondo-se à sua vontade de morrer. Paul abraçou-a. Ela estava doente, metia dó.

– Deixe lá, mãezinha! – murmurou Paul. – Desde que a vida não nos pareça mesquinha e miserável, o resto não importa... que seja feliz ou infeliz.

Ela apertou-o contra o peito.

– Mas eu quero que sejas feliz – disse, pateticamente.

– Oh, mãezinha adorada... diga antes que quer que eu viva.

Mrs. Morel sentiu o coração morrer por ele. Sabia que, por este andar, ele não duraria muito. O seu desleixo pungente, a propensão para o sofrimento, a vida que levava, eram tudo formas lentas de suicídio. Dilacerava-se-lhe o coração só de pensar. Odiava Miriam com toda a força da sua determinação por tão subtilmente ter minado a alegria de Paul. Não lhe interessava que não o fizesse por mal. Fazia-o, e ela odiava-a.

Queria tanto que o filho se apaixonasse por uma rapariga à sua altura – educada e forte. Mas ele não olhava para ninguém que considerasse superior. Parecia gostar de Mrs. Dawes. Pelo menos esse sentimento era genuíno. A mãe não se cansava de rezar por ele, para que não se perdesse. Era tudo o que pedia: não pela sua alma ou pela rectidão do seu carácter, mas para que não se perdesse. E, enquanto ele dormia, passava horas a fio a pensar nele e a rezar por ele.

Paul afastou-se de Miriam imperceptivelmente, sem o saber. Arthur só saiu do exército para se casar. O bebé nasceu seis meses após o casamento. Mrs. Morel arranjou-lhe um novo emprego na mesma firma onde trabalhara antes, a ganhar vinte e um xelins por semana. Com a ajuda da mãe de Beatrice, mobilou-lhe uma casinha de dois quartos. Agora estava definitivamente apanhado. Não importava barafustar e espernear, estava bem preso. Andou mal-humorado durante algum tempo, mostrando-se insuportável com a mulher que o amava; não ligava quando o bebé, que era franzino, chorava ou dava preocupações. Fazia à mãe queixas intermináveis, mas ela limitava-se a dizer: «Bem, meu filho, o responsável és tu, tens de aprender a tirar partido da situação.» E, finalmente, ganhou juízo. Agarrou-se ao trabalho, assumiu as suas responsabilidades, compreendeu que pertencia à mulher e ao filho e aprendeu a tirar o melhor partido da situação. Nunca se tinha sentido muito ligado à família, e agora afastava-se de vez.

Os meses iam passando devagar. Através de Clara, Paul tinha-se mais ou menos relacionado com os socialistas, as sufragistas e os sindicalistas de Nottingham. Um dia, uma amiga dele e de Clara, que morava em Bestwood, pediu-lhe que levasse um recado a Mrs. Dawes. Ao fim da tarde, Paul foi até Bluebell Hill, metendo por Sneinton Market, e lá conseguiu encontrar a casa numa ruela empedrada a granito e com passeios de tijolo azul-escuro, rugoso. Um degrau separava a porta da tosca calçada, servindo também para as pessoas limparem os pés e baterem com as botas para sacudirem a lama. A pintura castanha da porta estava tão deteriorada que se via a madeira por baixo da tinta a descascar. Paul ficou na rua, e bateu à porta. Soaram passos pesados e, por cima da sua cabeça, surgiu uma mulher alentada, por volta dos sessenta anos. Ele olhou para ela do passeio. A mulher tinha uma expressão severa.

Mandou-o entrar para a sala, que dava directamente para a rua. Era um quartinho pequeno, abafado e tétrico, com móveis de mogno e descomunais retratos a carvão de gente já falecida. Mrs. Radford saiu da sala com o seu passo imponente, quase marcial. Clara entrou logo a seguir e, ao vê-lo, corou até às orelhas, o que o deixou atrapalhado. Era como se não lhe agradasse que ele a tivesse vindo encontrar no seu ambiente doméstico.

– Parecia-me impossível ser a tua voz – disse ela.

Mas agora, perdido por cem, perdido por mil... e levou-o do mausoléu directamente para a cozinha.

A cozinha era também escura e acanhada, mas encontrava-se atafulhada de rendas brancas. A mãe tinha ido sentar-se de novo junto ao aparador, às voltas com uma emaranhada teia de renda. À sua direita, um monte solto de linha de algodão; à esquerda, tufos e mais tufos de espiguilha de renda; e, à sua frente, sobre o tapete da lareira, a tal teia emaranhada. Os fios encaracolados, puxados do emaranhado de rendas, espalhavam-se por cima do guarda-fogo e pela chaminé. Paul não se atrevia a dar um passo, não fosse tropeçar nos rolos de linha branca.

Em cima da mesa estava uma dobadoura. Havia ainda um maço de cartões castanhos e quadrados para enrolar a renda, uma caixinha de alfinetes e, em cima do sofá, um outro monte de renda.

Havia rendas por todo o lado, e a cozinha era tão escura e quente que fazia sobressair ainda mais a nuvem branca, rendada.

– Já que cá tá, num repare d’eu continuar a trabalhar – disse Mrs. Radford. – Sei que tá tudo atravancado, mas faça o favor de s’assentar.

Clara, muito atrapalhada, encostou à parede uma cadeira, para ele se sentar, em frente aos novelos de brancura, e sentou-se ela no sofá, envergonhada.

– Quer beber uma cerveja preta? – perguntou Mrs. Radford.

– Clara, vai buscar-lhe uma cerveja.

Paul protestou, mas Mrs. Radford insistiu.

– Tá cum ar de quem precisa – disse ela. – Nunca anda com melhores cores do qu’isso?

– É da minha pele, é muito grossa e não deixa ver o sangue à transparência – respondeu ele.

Clara, envergonhada e aborrecida, trouxe-lhe uma garrafa de cerveja e um copo. Paul deitou o líquido preto no copo.

– Bem – disse ele, erguendo o copo –, à nossa!

– Agradecida – disse Mrs. Radford.

Paul bebeu um gole.

– E pode fumar à vontade, desde que num deite fogo à casa – acrescentou Mrs. Radford.

– Obrigado – respondeu Paul.

– Num precisa de m’agradecer – disse ela. – Até vou gostar de sintir o cheirinho do tabaco aqui em casa outra vez. Uma casa só de mulheres é tão triste com’uma casa sem lareira, acho eu. Num sou de querer o meu canto só pra mim. Inté gosto de ver um home a andar por aí... se ele for alguma coisa que se veja.

Clara começou a trabalhar. A dobadoura rodava, chiando mansamente, e a renda branca saltava-lhe por entre os dedos para o cartão. Quando o cartão ficou cheio, ela partiu a espiguilha e, com um alfinete, prendeu a ponta à renda já enrolada. Depois, meteu novo cartão na dobadoura. Paul observava-a. Estava sentada com as costas muito direitas, magnífica. Tinha o pescoço e os braços desnudados. O sangue aflorava-lhe à face, por baixo da orelha, e mantinha a cabeça baixa, de vergonha e humilhação. Os olhos estavam pregados no trabalho. Os seus braços eram de um tom mate e pujantes de vida, comparados com a renda branca. As suas mãos, grandes e bem tratadas, trabalhavam em movimentos cadenciados, como se nada pudesse apressá-las. Ele, sem se aperceber, não tirava os olhos dela. Era a linha do seu pescoço, prolongando-se desde o ombro, quando ela se curvava; era o seu cabelo castanho-escuro; era o movimento dos seus braços resplandecentes.

– A Clara falou-me de si – continuou a mãe. – Trabalha na Jordan, não é? – E continuou a fazer renda sem parar.

– É, sim.

– Inda m’alembra de quando o Thomas Jordan costumava pedir-me caramelos.

– Ah, sim? – disse Paul, sorrindo. – E ele merecia-os?

– Umas vezes sim, outras não... sobretudo para o fim. Ele é dos que levam tudo e num dão nada, isso é qu’ele é... ou, pelo menos, costumava ser.

– Eu acho-o uma pessoa muito decente.

– Bom... folgo em saber.

Mrs. Radford olhava Paul sem pestanejar. Havia nela uma determinação que lhe agradava. A cara estava flácida, mas os olhos eram calmos, e havia nela um vigor que refutava a velhice, fazendo as rugas e as peles parecerem um mero anacronismo. Tinha a força e o sangue-frio de uma mulher na pujança da vida. Continuou a fazer renda com movimentos lentos e muita dignidade. A fofa teia amontoava-se-lhe inevitavelmente no avental, tombando depois pouco a pouco para o chão, ao seu lado. Os braços eram bem torneados, mas luzidios e amarelados, de marfim velho, e não tinham aquele tom mate que tornava, a seu ver, tão fascinantes os de Clara.

– Anda atão c’a Miriam Leivers? – perguntou a mãe de Clara.

– Bem... – disse ele.

– É boa rapariga – prosseguiu Mrs. Radford. – Boa rapariga, mas um bocado fedúncia cá prò meu gosto.

– Sim, talvez... – concordou Paul.

– Só fica satisfeita quando tiver asas pra poder voar por cima da cabeça de toda a gente – disse ela.

Clara interrompeu-os, e Paul deu-lhe o recado que o levara lá. Ela falava com ele com humildade, vendo-se surpreendida no seu antro de miséria. Ao vê-la assim, humilde, era como se ele a esperasse, ansioso.

– Gostas de dobar? – perguntou Paul.

– O que é que uma mulher há-de fazer? – respondeu ela amargamente.

– É cansativo?

– Mais ou menos. E não o é todo o trabalho feminino? Essa é outra das partidas que os homens nos pregaram, desde que conquistámos o nosso lugar no mundo do trabalho.

– Atão... num fales mal dos homes – disse a mãe. – S’as mulheres num fossem umas parvas, os homes num eram tão maus, é o qu’eu digo... Olha que nenhum home me tratou mal que não levasse o troco... Mas que são uns danados, lá isso são, num adianta negar.

– Mas boas pessoas, não concorda? – perguntou Paul.

– Bem... são um bocado diferentes das mulheres – disse ela.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – perguntou ele a Clara.

– Acho que não – respondeu ela.

– Gostava, pois! – exclamou a mãe. – Ficava toda contente se voltasse. Num lhe ligue. Ela é toda cheia de nove horas, mas qualquer dia inda vai morrer de fome.

Clara passava vergonhas com a mãe. Até Paul sentia os olhos abrirem-se-lhe de espanto. Será que não devia mesmo ligar aos remoques de Clara? Ela trabalhava com afinco. E ele sentiu um arrepio de prazer só de pensar que ela podia precisar da sua ajuda. Parecia tão carente e privada de tanta coisa. O seu braço, que não fora feito para se amarrar a um mecanismo, movia-se mecanicamente; e a cabeça, que não fora feita para andar curvada, curvava-se sobre a renda. Parecia presa à dobadoura, entre os desperdícios de uma vida. Era muito duro para ela ver-se dispensada pela vida, como se já não tivesse préstimo. Não admira que protestasse tanto.

Clara acompanhou-o à porta. Ele ficou parado na ruela miserável, a olhar para ela. Era tão soberba na figura e no porte que fazia lembrar Juno destronada. De pé, na soleira da porta, fechava os olhos à rua e à miséria que a rodeava.

– Vais a Hucknall com Mrs. Hodgkinson?

Paul dizia coisas sem sentido, de olhos postos nela. Os olhos cinzentos de Clara encontraram finalmente os seus. Estavam mudos de humilhação, contritos, com uma espécie de submissão de escrava. Ele ficou surpreendido, sem saber o que fazer. Sempre a tinha imaginado altiva e poderosa.

Quando dali saiu, só lhe apetecia fugir. Dirigiu-se para a estação, como um sonâmbulo, e chegou a casa sem consciência de já não estar na rua dela.

Estava convencido de que Susan, a supervisora da Espiral, se ia casar, e no dia seguinte perguntou-lho.

– Diz-me uma coisa, Susan, ouvi dizer que te vais casar. É verdade?

Susan corou.

– Quem te disse? – perguntou ela.

– Ninguém. Apenas ouvi dizer que estavas a pensar...

– Lá isso estou... Mas não precisas de contar a ninguém. E, ainda por cima, quem me dera não estar...!

– Julgas que eu acredito nisso, Susan?

– Pois podes acreditar. Antes queria mil vezes ficar como estou.

Paul estava chocado.

– Porquê, Susan?

A rapariga estava ruborizada e fulminava-o com o olhar.

– Porque sim!

– E tens mesmo de casar?

Em resposta, ela limitou-se a olhar para ele. Paul tinha uma candura e uma gentileza que faziam as mulheres confiar nele. Compreendeu o que ela queria dizer.

– Ah, desculpa – disse ele. Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

– Mas verás que tudo vai correr bem. Tenta ver as coisas pelo lado melhor – disse ele, melancólico.

– Nem posso fazer outra coisa.

– Podes sim, podes dar cabo da tua vida. Esforça-te por seres feliz.

Paul arranjou novo pretexto para ir a casa de Clara.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – disse ele.

Ela pousou o trabalho, apoiou os braços belíssimos em cima da mesa e fitou-o sem responder. Pouco a pouco, um rubor subiu-lhe às faces.

– Porquê? – perguntou.

Paul sentiu-se constrangido.

– Bem... É que a Susan está a pensar em ir-se embora. Clara continuou a dobar. A espiguilha branca pulava e saltava para o cartão. Ele aguardou. Sem levantar a cabeça, ela disse por fim, numa voz desusadamente baixa:

– Falaste com alguém sobre o assunto?

– Nem uma palavra... Só contigo.

Seguiu-se novo e longo silêncio.

– Quando puserem o anúncio, concorro – disse ela.

– Tens de concorrer antes. Eu digo-te quando.

Ela continuou a fazer girar a dobadoura e não o contrariou.

Clara voltou para a Jordan. Algumas das funcionárias mais antigas, entre elas Fanny, lembravam-se dela de outros tempos e não guardavam boas memórias. Clara sempre fora muito altiva, uma mulher reservada e superior. Nunca se misturava com as colegas e sempre que tinha oportunidade de as criticar, fazia-o com frieza e extrema delicadeza, o que as fazia sentirem-se mais insultadas do que agastadas. Para com Fanny, a pobre corcunda hipersensível, Clara fora sempre extremamente amável e gentil, o que fazia Fanny chorar ainda mais do que as línguas grosseiras das outras supervisoras.


CONTINUA

Era ali, naquele momento, que ela se alimentava de vida para toda uma semana. Ele mandou-a copiar o poema Le Balcon, de Baudelaire e, em seguida, leu-o para ela ouvir. A voz dele era suave e acariciante, mas nos crescendos tornava-se brutal. Paul tinha um modo apaixonado e, ao mesmo tempo, amargurado de arreganhar os lábios e mostrar os dentes sempre que as palavras o levavam ao rubro. E assim fazia agora, fazendo sentir a Miriam que ele a estava a espezinhar. Ela nem se atrevia a olhar para ele, mantendo-se sentada e de cabeça baixa. Não entendia por que razão ele se deixava arrebatar por tão tumultuosas fúrias, e isso deixava-a desfeita. Ainda por cima, nem sequer gostava muito de Baudelaire... nem de Verlaine.


«Olha-a, a cantar pelos campos,

Filha solitária das montanhas...»


Isto sim, alimentava-lhe a alma... tal como a «Linda Inês». E também:


«Caía bela a noite, doce e pura,

Em suspiros sagrados e serenos, como freira...»


Estes versos, sim, eram como ela. E ele, ali à sua frente, arrancando da garganta, em grito rouco:


«Tu te rappelleras la beauté dês caresses.»3


O poema terminou e Paul tirou os pães do forno, metendo-os no alguidar, os queimados no fundo e os bons por cima. A carcaça ressequida continuava na copa embrulhada num pano húmido.

– A Mater não precisa de saber até amanhã de manhã – disse ele. – Já não se vai zangar tanto como esta noite.

Miriam foi à estante e viu as cartas e postais que ele tinha recebido, e quais os livros que lá tinha, e tirou um em que ele se mostrara interessado. Depois, Paul desligou o gás e saíram. Paul nem se preocupou em fechar a porta à chave.

Quando voltou já faltava um quarto para as onze. A mãe estava sentada na cadeira de baloiço e Annie num banquinho junto da lareira, com o cabelo a cair-lhe pelas costas abaixo e os cotovelos apoiados nos joelhos, taciturna. Em cima da mesa, a carcaça da discórdia, já desembrulhada. Paul entrou ofegante. Ninguém abriu a boca. A mãe lia a gazeta local. Ele despiu o casaco e foi sentar-se no sofá. A mãe chegou-se para o lado com brusquidão, deixando-o passar. Ninguém abria a boca. Ele já não sabia como havia de estar. Durante alguns minutos, fingiu ler um bocado do jornal que encontrou em cima da mesa. Mas depois disse:

– Esqueci-me daquele pão no forno, mãe.

Nenhuma das mulheres lhe respondeu.

– Bem – continuou ele –, são só dois dinheiros e meio. Se quiser, eu pago.

Amuado, pôs três moedas em cima da mesa e empurrou-as na direcção da mãe. Ela voltou a cabeça para o outro lado. A boca continuava crispada.

– Pois é – disse Annie –, tu nem fazes ideia de como a mãe se sente mal!

E a rapariga continuou carrancuda a olhar para o lume.

– Sente-se mal porquê? – perguntou Paul, no seu tom autoritário.

– Essa agora – disse Annie. – Viu-se aflita para chegar a casa.

Paul olhou com atenção para a mãe. Parecia de facto doente.

– Viu-se aflita para chegar a casa porquê? – perguntou ele, ainda agreste. A irmã não respondeu.

– Vim encontrá-la aqui sentada, branca como a cera – disse Annie, com lágrimas na voz.

– Diga lá porque foi! – insistiu Paul, já de testa franzida e olhos empolgadamente dilatados.

– Era o suficiente para deixar qualquer pessoa doente – disse Mrs. Morel. – Carregar nos braços com as compras todas... a carne, os legumes e as cortinas...

– Para que carregou com tudo? Não era preciso.

– E então quem é que carregava?

– Mandava a Annie ir buscar a carne.

– Claro que eu tinha ido buscar a carne. Mas como é que eu podia adivinhar? Tu andavas a passear com a Miriam, em vez de estares em casa quando a mãe chegou.

– Mas o que é que lhe aconteceu? – perguntou Paul à mãe.

– Deve ser o coração – respondeu ela. De facto, tinha os lábios azulados.

– E já tinha sentido isso alguma vez?

– Já... e até mais de uma vez.

– Então porque não me disse, e porque é que não foi ao médico?

Mrs. Morel mexeu-se na cadeira, irritada com a prelecção.

– Tu nunca reparas em nada – disse Annie. – Só pensas em andar com a Miriam.

– Ah, sim? E tu e o Leonard... não é a mesma coisa?

– Eu cheguei a casa faltava um quarto para as dez.

Seguiram-se uns minutos de silêncio.

– Nunca imaginei que ela te deixasse tão distraído, ao ponto de queimares uma fornada inteira de pão – disse Mrs. Morel com azedume.

– A Beatrice também cá estava.

– Acredito. Mas nós sabemos porque é que o pão se queimou.

– E porque foi? – disse ele intempestivo.

– Porque tu estavas todo entretido com a Miriam – replicou Mrs. Morel acalorada.

– Pois fique sabendo que não foi nada por isso! – ripostou ele, sacudido.

Estava desgostoso e infeliz. Pegou no jornal e começou a ler. Annie, com a blusa já desabotoada e duas longas tranças, foi para cima, para a cama, dando-lhe secamente as boas-noites.

Paul continuou a fingir que estava a ler. Por um lado, sabia que a mãe lhe queria pregar um sermão. Mas, por outro, queria saber o que a pusera naquele estado, e estava preocupado. Por isso, em vez de ir a correr para a cama, como era sua vontade, ficou à espera. Sentia-se a tensão no silêncio. O tiquetaque do relógio soava forte.

– O melhor é ires deitar-te antes de o teu pai chegar – disse Mrs. Morel, com rispidez. – E se quiseres comer alguma coisa, tens de ir buscá-la.

– Não quero nada.

A mãe costumava preparar-lhe qualquer coisa para a ceia às sextas-feiras à noite, que era a noite de luxo dos mineiros. Mas ele estava demasiado irritado para ir buscar a ceia à despensa, e ela sentiu-se insultada.

– Se eu quisesse que fosses a Selby numa sexta-feira à noite, já estou a imaginar a cena – disse Mrs. Morel. – Mas quando é ela a vir buscar-te, nem sabes o que é cansaço. E já nem comes nem bebes.

– Não posso deixá-la voltar sozinha.

– Ah, não podes... E então para que é que ela vem?

– Não sou eu que lhe peço.

– Ela não vinha se tu não a quisesses cá...

– E se eu a quiser...? Hem? – repontou ele.

– Nada a opor, se fosse sensato ou razoável. Mas calcorrear milhas e milhas por cima dum lamaçal e voltar à meia-noite, para quem tem de ir logo pela manhã para Nottingham...

– E, se não tivesse de ir, para si era a mesma coisa.

– Pois era, porque isto não faz sentido nenhum. Ela é assim tão fascinante que tenhas de andar atrás dela para todo o lado? – perguntou Mrs. Morel, com acerado sarcasmo, continuando sentada, com cara de poucos amigos, esfregando o cetim preto do avental em movimentos ritmadamente repetidos. Aquele motu-contínuo quase enlouquecia Paul.

– Eu gosto muito dela – disse ele – mas...

– Gostas então dela! – disse Mrs. Morel, no mesmo tom mordaz. – Pois a mim parece-me que não gostas de mais nada nem de mais ninguém. Para ti, agora, não existe mais ninguém: nem eu, nem a Annie... nada.

– Que disparate, mãe... sabe bem que eu não amo a Miriam... eu... posso garantir-lhe que não a amo... ela não anda de braço dado comigo nem nada, porque eu não quero.

– Então porque é que vais a correr tantas vezes para ao pé dela?

– Porque gosto muito de falar com ela... Nunca disse que não gostava. Mas não a amo.

– E não tens mais ninguém com quem falar?

– Não acerca das coisas de que nós falamos. Há muitas coisas por que a mãe não se interessa e que...

– Que coisas...?

Mrs. Morel estava tão exaltada que Paul começou a gaguejar.

– Ora essa... pintura... livros... A mãe, por exemplo, não gosta de Herbert Spencer.

– Não – foi a resposta concisa. – E tu também não vais gostar, quando tiveres a minha idade.

– Está bem, mas gosto agora... e a Miriam também...

– E como é que sabes – atalhou Mrs. Morel em tom de desafio – que eu não gosto. Já experimentaste perguntar-me?

– Mas eu sei que não gosta, mãe, sabe bem que não lhe interessa discutir se um quadro é ou não decorativo... é-lhe indiferente qual o seu estilo.

– Como sabes que não me interessa... já experimentaste perguntar-me? Alguma vez conversas comigo sobre essas coisas, só para experimentar?

– Mas a mãe sabe bem que para si isso não conta, sabe bem que não.

– Então o que é, diz lá... o que é que conta para mim? – desferiu ela.

Paul franziu a testa, magoado.

– A senhora é velha, mãe, e nós somos novos.

O que ele queria dizer era que os interesses da idade dela não eram idênticos aos da sua. Mas mal acabou a frase percebeu que tinha dito o que não devia.

– Sim, sei muito bem... sou uma velha! E por isso mesmo devo manter-me afastada... já não tenho nada a ver contigo. Tu só me queres para te servir de criada... o resto é com a Miriam.

Ele já não aguentava mais. Instintivamente, apercebeu-se de que ele era toda a vida dela. E, bem vistas as coisas, ela era para ele a coisa mais importante, a única verdade suprema.

– Sabe bem que não é assim, mãe... sabe bem que não é.

O grito dele comoveu-a.

– Pois olha que parece mesmo – disse ela, deixando de certa forma de lado o desespero.

– Não, mãe... na verdade, eu não a amo. Converso com ela... mas é para a nossa casa, para ao pé de si que eu quero vir.

Paul, já sem o colarinho e a gravata, levantou-se para se ir deitar. Quando ia a dar um beijo à mãe, ela passou-lhe os braços em volta do pescoço, escondeu a cara no seu ombro e pôs-se a choramingar, com uma voz dorida, tão pouco habitual nela que o fez crispar-se de agonia.

– Eu já não aguento mais. Uma outra mulher talvez... mas ela não... ela não me daria espaço algum... nem um bocadinho...

E imediatamente sentiu que odiava Miriam amargamente.

– E eu nunca... tu sabes, Paul... eu nunca tive um marido... não um de verdade...

Ele acariciou-lhe os cabelos e os seus lábios afloraram o pescoço dela.

– E ela esforça-se tanto para te afastar de mim... ela não é como as outras raparigas.

– Bem, mãe, eu não a amo – murmurou ele, baixando a cabeça e escondendo os olhos no ombro dela, muito infeliz. A mãe deu-lhe um beijo ardente e longo.

– Meu filho! – disse, com a voz trémula de amor. E ele, sem se aperceber, acariciou-lhe suavemente o rosto.

– Pronto – disse a mãe. – Agora vai deitar-te. Senão amanhã de manhã acordas muito cansado.

Enquanto falava, Mrs. Morel sentiu o marido entrar.

– Vem aí o teu pai... vá, já para a cama... – Subitamente, olhou para o filho quase a medo. – Talvez eu esteja a ser egoísta. Se a queres, meu filho, fica com ela.

A mãe estava a comportar-se de uma forma muito estranha, pensou Paul, beijando-a, ainda a tremer.

– Oh, mãe! – disse ele meigamente.

Morel entrou aos tropeções. Trazia o chapéu tombado sobre o canto do olho. Ao transpor a porta, perdeu o equilíbrio. – Outra vez a fazeres das tuas? – disse ele, acintosamente.

As emoções de Mrs. Morel transformaram-se instantaneamente em ódio por aquele bêbado que viera intrometer-se tão intempestivamente.

– Pelo menos, ele está sóbrio – disse ela.

– Hum... hum...! Hum... hum! – fez ele, cinicamente.

Foi ao corredor e pendurou o chapéu e o casaco. Em seguida, ouviram-no descer os três degraus da despensa. Quando voltou trazia na mão uma fatia de empadão de carne de porco. Era o que Mrs. Morel tinha comprado para o filho.

– Isso não é para ti. Se não me podes dar mais de vinte e cinco xelins, certamente não te vou comprar empadão de carne de porco, para tu te regalares depois de teres enchido a barriga de cerveja.

– O quê?... O quê? – rosnou Morel, a cambalear e, num repente, atirou o empadão para a lareira, num acesso de mau génio e mesquinhez.

Paul pôs-se de pé num salto.

– Deite fora o que é seu! – gritou.

– O quê?... O quê? – berrou Morel de imediato, dando um salto atrás e cerrando os punhos. – Vais ver como elas mordem... meu menino!

– Muito bem! – disse Paul, cinicamente, deitando a cabeça de lado. – Então vamos lá ver...!

O que mais gostaria naquele momento era de poder bater em qualquer coisa, não importava o quê. Morel estava semidobrado, de punhos em riste, pronto a atacar.

O jovem estava de pé, com um sorriso nos lábios.

– Zás! – silvou o pai, desferindo um soco no ar com um gesto largo, rente à cara do filho. Apesar de tão próximo, não se atreveu a tocar-lhe realmente, passando-lhe a uma escassa polegada de distância.

– Isso! – disse Paul, de olhos pregados na boca do pai, onde a todo o momento o seu punho acertaria. Estava louco por dar aquele soco, mas ouviu um vago gemido atrás de si. A mãe estava lívida de morte e com a boca toda roxa. Morel saltitava, preparando novo ataque.

– Pai! – disse Paul, bem alto para lhe chamar a atenção.

Morel parou, assustado.

– Mãe! – gemeu o rapaz. – Mãe!

Ela começou a lutar contra si própria. Os seus olhos muito abertos observavam-no, apesar de não se poder mexer. A pouco e pouco ia voltando a si. O filho deitou-a no sofá e foi a correr buscar um pouco de uísque, de que ela por fim bebeu alguns golinhos. As lágrimas rolavam-lhe pela cara abaixo. Enquanto esteve ajoelhado ao lado da mãe não chorou, mas as lágrimas irromperam logo a seguir. Morel, sentado do outro lado da sala com os cotovelos apoiados nos joelhos, fuzilava o filho com o olhar.

– Qu’é qu’ela tem? – perguntou.

– Desmaiou! – respondeu Paul.

– Hum!

O homem mais velho começou a desapertar os atacadores das botas. Depois, foi aos tombos para o quarto. Tinha travado a sua derradeira luta naquela casa.

Paul estava ajoelhado ao lado da mãe, esfregando-lhe as mãos.

– Não fique assim, mãe... não fique assim! – não se cansava ele de repetir.

– Isto não é nada, meu filho – murmurou ela.

Finalmente, Paul levantou-se, foi buscar um grande bocado de carvão e abafou o borralho. Depois arrumou a sala, colocou tudo nos seus devidos lugares, pôs a mesa para o pequeno-almoço e foi buscar a palmatória da mãe.

– Consegue ir para a cama sozinha, mãe?

– Consigo, sim... Eu vou.

– Durma com a Annie, mãe, com ele não.

– Não... vou dormir na minha cama.

– Não durma com ele, mãe.

– Vou dormir na minha cama.

Mrs. Morel levantou-se e Paul desligou o gás, subindo depois a escada atrás dela, com a vela. Ao chegarem ao patamar, ele beijou-a ternamente.

– Boa noite, mãe.

– Boa noite – respondeu ela.

Ele enfiou a cabeça na almofada, num acesso de desespero. E, no entanto, sentia paz algures nos recônditos da alma, pois continuava a amar a mãe acima de todas as coisas. Era a paz amarga da resignação.

Os esforços do pai no dia seguinte para o cativar foram para ele uma verdadeira humilhação.

E todos tentaram esquecer o incidente.

2 «Esta manhã os pássaros acordaram-me. Ainda não era dia. Mas a janelinha do meu quarto clareou e logo ficou dourada, e todos os pássaros do bosque irromperam num canto vivo e sonoro.
E a aurora estremeceu. Tinha sonhado contigo. Será que também contemplas a aurora?

Os pássaros acordam-me quase todas as manhãs, e há sempre uma nota de terror no grito dos tordos. Está tão claro...» (N. da T.)

3 «Recordarás a beleza das carícias.» (N. da T.)


IX

A DERROTA DE MIRIAM

PAUL sentia-se descontente consigo mesmo e com tudo o que o rodeava. O seu amor mais profundo dedicava-o à mãe. Não podia suportar a sensação de a ter magoado ou de algum modo ferido o seu amor por ela. A Primavera já se anunciava e, com ela, uma batalha entre ele e Miriam. Este ano Paul tinha muitas queixas contra Miriam e ela estava vagamente consciente desse facto. O velho sentimento que experimentara ao rezar, e lhe segredara que teria de se sacrificar a este amor, misturava-se em todas as suas emoções. No fundo, Miriam não acreditava poder algum dia vir a ter Paul para si. Em primeiro lugar, não acreditava em si mesma: duvidava poder vir a ser o que ele exigiria que ela fosse. Por certo nunca se imaginara a viver a seu lado uma vida de eterna felicidade. O futuro prefigurava-lhe tragédia, dor e sacrifício. E, se no sacrifício era orgulhosa, na renúncia ela era forte; mas não confiava em si mesma para suportar a vida do dia-a-dia. Sentia-se preparada para gestos grandiosos e profundos, gestos dignos de tragédia. Não podia era confiar na sua capacidade de lidar com a pequenez do quotidiano.

As férias da Páscoa iniciaram-se num ambiente feliz. Paul mostrava-se franco, como na realidade o era. Contudo, Miriam sentia que algo iria perturbar aquela paz. No domingo à tarde, deteve-se à janela do seu quarto, olhando os carvalhos do bosque, em cuja folhagem se emaranhavam uns ténues raios de luz sob o resplandecente céu da tarde. Rosetas de folhas de madressilva verde-cinza pendiam frente à janela, algumas, pensou, já em botão. Era Primavera, tempo que Miriam amava e temia ao mesmo tempo.

Ouvindo o ranger do portão, ficou na expectativa. Estava um dia cinzento e luminoso. Paul entrou no pátio com a bicicleta, que reluzia à medida que ele andava. Era hábito tocar a campainha e sorrir em direcção à casa. Hoje, porém, caminhava de lábios cerrados, numa atitude fria e cruel que tinha algo de desprezo e indolência. Ela já o conhecia muito bem e, pela expressão penetrante e reservada do seu rosto jovial, sabia dizer o que se passava no seu íntimo. Havia um tal rigor de frieza no modo como colocou a bicicleta no lugar que o coração de Miriam soçobrou.

Desceu ao andar de baixo, nervosa. Vestia uma blusa nova de malha que, achava ela, lhe assentava muito bem. Tinha uma gola alta, debruada com um folho que lhe lembrava a Rainha Mary da Escócia e lhe dava, pensava ela, um ar encantadoramente feminino e muito digno. Com vinte anos, possuía uns seios bem desenvolvidos e formas voluptuosas. O seu rosto era ainda como uma máscara suave e rica, inalterável. Mas os seus olhos, quando os erguia, eram maravilhosos. Ela tinha medo dele. Ele iria reparar na sua blusa nova.

Paul mostrava-se de disposição dura e irónica, e divertia a família com a descrição de um sermão proferido na Capela Metodista Primitiva por um dos mais conhecidos pregadores da seita. Estava sentado à cabeceira da mesa com o seu rosto versátil e os seus olhos, que conseguiam ser tão belos, brilhando ternamente ou dançando risonhos, assumiam várias expressões, numa imitação das diversas pessoas que caricaturava. A sua veia jocosa sempre a magoara – era demasiado próxima da realidade. Paul era demasiado inteligente e cruel e ela sentia que, quando o seu olhar se enchia, como agora, de feroz ódio trocista, ele não poupava ninguém, nem mesmo a sua própria pessoa. Mas Mrs. Leivers enxugava os olhos marejados de lágrimas, de tanto rir, e Mr. Leivers, já desperto da sua sesta dominical, coçava a cabeça divertido. Os três irmãos, sentados em atitudes desleixadas e sonolentas e em mangas de camisa, soltavam uma gargalhada de vez em quando. O que a família mais adorava era, acima de tudo, uma boa caricatura.

Paul não prestou atenção a Miriam. Mais tarde, ela percebeu que ele tinha reparado na sua blusa nova, viu que o artista a aprovara, mas isso não merecera da sua parte o mínimo lampejo de ternura. Estava nervosa e mal conseguia chegar às chávenas de chá nas prateleiras do armário.

Quando os homens saíram para a ordenha, ousou dirigir-se-lhe pessoalmente:

– Vieste atrasado – disse.

– Vim? – perguntou ele.

Por um momento fez-se silêncio.

– Foi difícil vires a pedalar até aqui? – perguntou ela.

– Nem notei.

Ela continuou a pôr a mesa rapidamente. Quando acabou, disse-lhe:

– O chá só é servido dentro de alguns minutos. Queres vir ver os narcisos?

Ele ergueu-se, sem responder. Dirigiram-se para o jardim das traseiras, sob as ameixoeiras em flor. As colinas e o céu estavam límpidos e frios. Tudo parecia lavado, um pouco agreste talvez. Miriam lançou um olhar a Paul. Ele estava pálido e impassível. A ela parecia-lhe uma crueldade que aqueles olhos e sobrancelhas que ela tanto amava pudessem feri-la tanto.

– O vento cansou-te? – perguntou.

Detectou nele uma certa fadiga.

– Não, acho que não – respondeu ele.

– Deve ser cansativo na estrada... o vento sopra tão forte.

– Pelas nuvens podes ver que é vento sudoeste: até me ajudou a chegar aqui.

– Sabes que eu não ando de bicicleta, por isso não entendo o que queres dizer – murmurou ela.

– E é preciso andar de bicicleta para saber isso? – replicou ele.

Miriam pensou que o seu sarcasmo era desnecessário. Mantiveram-se em silêncio. Em redor do relvado maltratado com a erva muito alta situado nas traseiras da casa, havia uma sebe de espinheiros sob a qual os narcisos se erguiam dos seus ninhos de folhas verde-cinza. As faces das flores estavam esverdeadas de frio. Mas, mesmo assim, algumas haviam já florescido e o seu tom dourado agitava-se e resplandecia. Miriam ajoelhou-se diante de um ramalhete, tomou nas mãos um narciso de ar silvestre, voltou para si a sua face dourada e inclinou-se, acariciando-o com a boca, as faces e a fronte. Paul permaneceu de pé, ligeiramente afastado, de mãos nos bolsos, observando-a. Uma após outra, ela virou para ele as faces das flores amarelas, recém-abertas, em atitude suplicante, afagando-as com veemência.

– Não são magníficos? – murmurou.

– Magníficos?... Não será um pouco de mais?... São bonitos!

Ela inclinou-se novamente para as suas flores, perante esta censura à sua atitude de adoração. Ele ficou a vê-la adular e saborear as flores com beijos fervorosos.

– Porque tens de estar sempre a acariciar as coisas? – recriminou-a, irritado.

– Gosto de lhes tocar – replicou ela, magoada.

– Será que não podes gostar das coisas sem teres de te agarrar a elas como se quisesses arrancar-lhes o coração? Porque não tens um pouco mais de domínio ou reserva, ou o que quer que seja?

Ela ergueu para ele um olhar cheio de dor, continuando depois a pressionar os lábios, lentamente, contra uma flor ondulada. O seu aroma, quando o sentiu, era tão mais delicado do que Paul que quase a fez chorar.

– Com a tua adulação, retiras a alma às coisas – disse ele. – Eu nunca seria capaz de uma adulação... Em qualquer circunstância, seria sempre directo.

Paul não sabia o que dizia. Estas coisas saíam-lhe mecanicamente. Ela olhou para ele. O seu corpo parecia uma arma, firme e duro contra ela.

– Tu estás sempre a suplicar às coisas que te amem – disse ele – como se fosses uma pedinte de amor. Até as flores tu tens de acariciar...

Ritmadamente, Miriam agitava e amachucava a flor com a boca, inalando o perfume que daí em diante a faria estremecer sempre que penetrasse nas suas narinas.

– Tu não queres amar... a tua súplica eterna e anormal é seres amada. Não és positiva, és negativa. Absorves, absorves, como se necessitasses de te encher de amor por teres algures uma insuficiência.

Miriam estava aturdida com a crueldade de Paul, e não o escutava. Ele não tinha a mínima ideia do que estava a dizer. Era como se a sua alma inquieta e torturada, inflamada por uma paixão frustrada, fizesse jorrar aquelas palavras como centelhas brotando da electricidade. Ela não entendia nada do que ele dizia. Deixou-se ficar sentada, esmagada sob a sua crueldade e o seu ódio por ela. Nunca entendia as coisas num lampejo. Era assim com tudo, cismava e tornava a cismar.

Depois do chá, ele ficou a conversar com Edgar e os outros irmãos, não prestando atenção a Miriam. Ela, infinitamente infeliz com esta distância procurada, esperou por ele. Por fim, ele cedeu e veio ao seu encontro. Ela estava determinada a descobrir a origem do seu estado de espírito. Para ela, tudo aquilo não passava de um estado de espírito.

– Vamos passear um pouco pelo bosque? – sugeriu, sabendo que ele nunca recusava um pedido directo.

Desceram em direcção à coelheira. A meio do caminho passaram por uma armadilha, uma pequena cerca em forma de ferradura, feita com galhos de abeto entrelaçados, onde se exibiam, como isca, as vísceras de um coelho. Paul lançou-lhe um olhar, franzindo o sobrolho. Ela chamou-lhe a atenção.

– É terrível, não é? – perguntou.

– Não sei! Será pior que os dentes de uma doninha cravados no pescoço de um coelho? Ou uma doninha ou muitos coelhos. Uma das coisas vai ter de desaparecer!

Para Paul estava a ser difícil enfrentar a face amarga da vida. Miriam sentiu pena dele.

– Vamos para dentro – disse Paul. – Não me apetece andar cá fora.

Passaram pela árvore dos lilases, cujos rebentos das folhas cor de bronze principiavam agora a abrir. Apenas um fragmento restava do palheiro, um monumento quadrado e castanho, como um pilar de pedra. No meio, ainda lá perdurava uma pequena meda de feno da última ceifa.

– Sentemo-nos aqui por um minuto – pediu Miriam.

Ele sentou-se, contrariado, apoiando as costas ao sólido muro de feno. Diante deles, estendia-se o anfiteatro de colinas arredondadas, incandescente à luz do crepúsculo, as pequenas quintas brancas destacando-se na paisagem, os prados dourados, os bosques sombrios e contudo luminosos, as copas das árvores sobrepostas a outras copas de árvores, distintas na distância. A tarde clareara e o oriente suave tingia-se agora de um clarão magenta sob o qual a terra permanecia imóvel e pródiga.

– Não é uma beleza? – murmurou ela suavemente.

Mas ele limitou-se a franzir a testa, mal-humorado. Naquele momento, preferia que tudo fosse feio.

Subitamente, um grande cão veio ter com eles em louca correria, de boca escancarada, levantou as patas dianteiras e colocou-as nos ombros do jovem, lambendo-lhe o rosto. Paul recuou, rindo. Bill era um grande alívio para ele. Afastou o cão, mas este voltou, saltitante.

– Sai daqui – ordenou o rapaz. – Vê lá se queres apanhar.

Mas o cão não estava disposto a desistir facilmente. Então, Paul travou um pequena batalha com o animal, arremessando o pobre Bill para longe, apenas conseguindo contudo fazê-lo tropeçar e voltar à carga violentamente, excitadíssimo. Lutaram os dois, o homem rindo contrafeito, o cão todo ele disponibilidade. Miriam observava-os. Havia algo de patético no homem. Como ele desejava ardentemente amar e ser terno! O modo rude como brincava com o cão era realmente adorável. Paul levantou-se, ofegante de felicidade, os olhos castanhos rolando na cara branca, e de novo se deixou cair pesadamente. O animal adorava Paul. O rapaz lançou-lhe um olhar severo.

– Bill, já chega de brincadeira.

Mas o cão deixou-se ficar com as duas pesadas patas, que tremiam de carinho, assentes na sua coxa, mostrando uma língua ro-sada. O rapaz recuou.

– Não – disse. – Não... já chega.

E logo o cão se afastou, contente por variar de divertimento.

Paul continuou a olhar fixamente para as colinas, cuja beleza impassível invejava. Queria sair dali e ir andar de bicicleta com Edgar. No entanto, não tinha coragem de deixar Miriam.

– Porque estás triste? – perguntou ela, submissa.

– Não estou triste, porque havia de estar? – retorquiu ele. – Estou apenas normal.

Ela perguntava-se por que razão ele sempre afirmava estar normal quando se mostrava desagradável.

– Mas... afinal o que se passa? – perguntou, aliciando-o suavemente.

– Nada!

– Não! – murmurou ela.

Ele pegou num pau e começou a golpear a terra.

– É melhor que não digas nada – disse ele.

– Mas eu quero saber – respondeu ela.

Ele riu-se, ressentido.

– Tu queres sempre saber tudo.

– Não és leal para comigo – murmurou ela.

Ele feriu o solo vezes sem conta com o pau afiado, desprendendo pequenos torrões de terra, como se tomado por uma febre de irritação. Delicada e firmemente, ela pousou a mão sobre o seu pulso.

– Não faças isso! – pediu. – Deita isso fora.

Ele atirou o pau para cima das groselheiras e recostou-se. Já estava recomposto.

– Que se passa? – perguntou ela com suavidade.

Ele manteve-se imperturbável. Apenas o seu olhar vivia intensamente, repleto de tormento.

– Sabes – disse por fim, bastante a custo – sabes... era melhor rompermos a nossa ligação.

Era o que ela temia. Subitamente, tudo pareceu escurecer diante dos seus olhos.

– Porquê? – murmurou. – Que aconteceu?

– Não aconteceu nada... só que temos de ver o terreno que pisamos. Não vale a pena...

Ela esperou em silêncio, tristemente, cheia de paciência. Não adiantava ser impaciente com ele. De qualquer modo, ele dir-lhe-ia agora o que o afligia.

– Concordámos em ser amigos – prosseguiu ele, numa voz monótona e aborrecida. – Quantas vezes concordámos em ser amigos! E, no entanto, as coisas não param por aí, nem chegam a nenhum outro lado.

Paul calou-se. Miriam matutava. Que quereria ele dizer? Estava tão cansado. Havia algo que não queria admitir. Contudo, ela devia ser paciente.

– Eu só posso dar-te amizade... é tudo de que sou capaz... é uma falha na minha maneira de ser. As coisas pesam só para um lado... e eu odeio uma balança desequilibrada... vamos acabar com isto.

Havia um fervor de fúria nas suas últimas frases. O que ele queria dizer é que ela o amava mais a ele do que ele a ela. Talvez não conseguisse amá-la. Talvez ela não possuísse o que ele desejava. Esta falta de confiança em si mesma era o fundamento mais profundo da alma de Miriam. Tão profundo que ela não ousava entendê-lo, nem tão-pouco admiti-lo. Talvez lhe faltasse qualquer coisa. Como uma vergonha infinitamente subtil, esse sentimento sempre a fazia recuar. Se assim fosse, ela passaria sem ele. Nunca se permitiria desejá-lo. Limitar-se-ia a observar.

– Mas o que aconteceu? – perguntou.

– Nada... tinha tudo isto guardado dentro de mim... e só saiu agora. Ficamos sempre assim ao aproximarmo-nos da Páscoa.

Paul humilhou-se tão despojadamente que Miriam sentiu pena. Ela, pelo menos, nunca se tinha deixado cair de um modo tão deplorável. No fim de contas, era ele quem saía mais duramente humilhado.

– Que queres fazer? – perguntou ela.

– Bem... acho que não devo vir aqui tantas vezes... só isso. Porque deveria eu monopolizar-te, quando não sou... Bem vês, no que te diz respeito sou muito incompleto...

Ele estava a dizer-lhe que não a amava e, portanto, deveria dar-lhe uma oportunidade com outro homem. Que tolo e cego e vergonhosamente desajeitado ele era! Que lhe importavam a ela os outros homens! Que importância tinham! Mas ele, ah, ela amava a sua alma. Seria ele incompleto em alguma coisa? Talvez fosse.

– Mas eu não entendo – disse ela, com a voz rouca. – Ainda ontem...

A noite tornara-se desagradável e odiosa para ele à medida que a luz do crepúsculo se dissipava. E ela cedeu ao seu sofrimento.

– Eu sei – gritou ele. – Nem nunca entenderás. Nunca acreditarás que eu não posso... não sou fisicamente capaz, tal como não sou capaz de voar como uma cotovia...

– Capaz de quê? – perguntou ela, num murmúrio. Agora tinha medo.

– De te amar.

Paul odiou-a amargamente naquele momento, por fazê-la sofrer tanto. Amá-la! Miriam sabia que ele a amava. Ele pertencia-lhe realmente. Toda a conversa sobre não a amar fisicamente, corporalmente, era uma mera perversidade da parte dele, pois Paul sabia que ela o amava. Ele estava a ser casmurro como uma criança. Ele pertencia-lhe a ela. A sua alma desejava-a. Miriam suspeitou que alguém o tivesse influenciado. Através da sua rigidez, pressentia a estranheza de uma outra influência.

– Que te têm dito em casa? – perguntou.

– Não é nada disso – respondeu ele.

E, nesse momento, ela soube que era precisamente isso, e sentiu um profundo desprezo pela família dele e pela sua vulgaridade. Ignoravam as coisas que valiam realmente a pena.

Nessa noite, não conversaram muito mais. Por fim, ele deixou-a e foi passear de bicicleta com Edgar.

Paul voltara para a mãe, o elo mais forte da sua vida. Quando ele se embrenhava em pensamentos, Miriam quase deixava de existir, como se envolta num sentimento vago e irreal. E mais ninguém contava. Havia contudo um lugar no mundo que permanecia sólido e não se desvanecia na irrealidade: o lugar onde se encontrava a sua mãe. Todos podiam transformar-se em sombras, quase inexistentes para ele, mas não ela. Era como se o eixo ou pólo da sua vida, do qual ele não podia escapar, fosse a sua mãe.

E, da mesma forma, ela esperava por ele. Nele se concentrava agora toda a sua vida. Afinal, a vida que deixara para trás oferecera muito pouco a Mrs. Morel. Ela entendera que a nossa oportunidade para fazer está aqui, e fazer era importante para ela. Paul iria provar que ela tinha razão: iria transformar-se num homem a quem nada poderia derrubar, que iria alterar a face da terra de alguma forma importante. Onde quer que ele fosse, ela sentia que a sua alma ia junto. O que quer que ele fizesse, ela sentia que a sua alma permanecia junto dele, pronta como sempre a entregar-lhe as suas ferramentas. Não podia suportar quando ele estava com Miriam. William estava morto. Ela lutaria para ficar com Paul.

E ele voltou para ela. E na alma dele havia um sentimento de satisfação pelo auto-sacrifício, pois ele era-lhe fiel. Ela amava-o antes de tudo, ele amava-a antes de tudo. E, no entanto, isso não era o suficiente. A sua vida nova e jovem, tão forte e imperiosa, era solicitada por algo mais. Punha-o louco de agitação. Ela percebia isso e desejava amargamente que Miriam fosse uma mulher que pudesse arrancar dele esta nova vida e deixar-lhe a ela as raízes. Paul lutava contra a mãe quase tanto como lutava contra Miriam.

Passou-se uma semana antes que Paul voltasse a Willey Farm. Miriam sofrera muito e receava vê-lo novamente. Poderia ela suportar a ignomínia de ser abandonada por ele? Isso seria apenas superficial e temporário. Ele voltaria. Ela possuía a chave para entrar na sua alma. Mas, entretanto, ele iria torturá-la com a sua luta contra ela. Miriam temia sobretudo isso.

Porém, no domingo a seguir à Páscoa, Paul veio para o chá. Mrs. Leivers ficou contente ao vê-lo. Percebeu que algo o perturbava, que as coisas estavam difíceis para ele. E ele parecia refugiar-se nela para algum conforto. E ela era boa para ele. Fazia-lhe o grande favor de o tratar quase com reverência.

Paul encontrou os rapazes no jardim da frente.

– Estou contente por teres vindo – disse a mãe, olhando-o com os seus olhos castanhos, grandes e sinceros. – Está um dia tão soalheiro. Ia agora mesmo dar um passeio pelos campos pela primeira vez este ano.

Ele sentiu que ela apreciaria a sua companhia, e isso suavizou-o. Foram caminhando, falando de coisas simples, ele gentil e humilde. Quase chorou de gratidão por ela ser deferente para com ele. Sentia-se humilhado.

Ao fundo do campo de trigo, encontraram um ninho de tordos.

– Querem que vos mostre os ovos? – perguntou.

– Sim, por favor! – respondeu Mrs. Leivers. – Parecem um sinal tão real da Primavera e da esperança...

Paul afastou os espinhos e retirou os ovos, colocando-os na palma da mão.

– Estão quentinhos... parece que assustámos a mãe – disse ele.

– Ah, coitadinhos – disse Mrs. Leivers.

Miriam não pôde evitar tocar nos ovos e na mão dele, que, segundo ela, os protegia tão bem.

– É um calor tão estranho! – murmurou, para se aproximar dele.

– É o calor do sangue – retorquiu ele.

Ela viu-o colocar os ovos no seu lugar, com o corpo colado à cerca, o braço avançando lentamente através dos espinhos, a mão cuidadosamente fechada sobre os ovos. Estava concentrado no acto. Vendo-o assim, ela amava-o; ele parecia tão simples e auto-suficiente. E ela não conseguia alcançá-lo.

Durante o chá, Paul discutiu o sermão de Sexta-Feira Santa com Mrs. Leivers. A caminhada até à Capela era já muito longa para a senhora, e ela quase preferia ouvir o sermão através de Paul, acrescido dos seus comentários e argumentos. Os outros também escutavam. Até os rapazes, uns latagões rudes, se mostravam atentos e interessados, tirando uma lição do discurso.

– Ele pegou no capítulo que diz: «Aquele que acreditou na nossa história...» ... eu gosto desta passagem.

Os grandes olhos castanhos de Mrs. Leivers brilharam com o pensamento.

– E estragou-o todo... arruinou-o.

Subitamente, lançou um olhar a Miriam, para que ela estivesse do seu lado naquele momento.

– E ele disse...

Paul, sério e indignado, repetiu o sermão. Era em alturas como esta que Miriam o amava. Ao vê-lo assim, enchia-se de profunda satisfação. Amava-o do mesmo modo que Maria amou na Betânia. Só quando irrompia o homem nele existente, se instalava a guerra entre ambos. E qual era mais forte nele, o Discípulo ou o Homem? Ela acreditava que fosse o primeiro, e através do primeiro o retinha.

Enquanto ela levantava a mesa do chá, ele disse-lhe, num tom bastante forçado:

– Quando acabares, vamos dar uma volta.

Na cozinha, ajudou-a a limpar a louça. Ela tremia ligeiramente de apreensão. Mas sabia que naquela noite não tinha de temer o ressentimento dele.

– Levamos um livro? – perguntou Miriam, pegando no seu favorito, O Tesouro Dourado, de Palgrave. Os melhores momentos que passavam juntos aconteciam quando liam poesia.

– Esse não – respondeu ele.

O coração dela apertou-se. Permaneceu junto à prateleira dos livros, hesitante. Ele escolheu Tartarin de Tarascon. Sentaram-se novamente no monte de feno, na base da meda. Paul leu algumas páginas, mas sem sentimento. De novo o cão apareceu, correndo, para repetir a brincadeira anterior. Enterrou o focinho no peito do jovem. Paul acariciou-lhe a orelha de fugida. Depois, afastou-o.

– Vai-te embora, Bill – ordenou. – Não te quero aqui.

Bill retirou-se furtivamente, e Miriam perguntou-se, temerosa, o que estaria para vir. Algo no silêncio dele a fez paralisar de apreensão. Não eram as suas fúrias, mas as suas resoluções calmas que ela receava.

Voltando o rosto um pouco de lado, para que ela não pudesse vê-lo, Paul começou, falando lenta e penosamente:

– Achas que... se eu não viesse cá tantas vezes... podias gostar de outra pessoa... de outro homem?

Então era isso que ainda o incomodava.

– Mas eu não conheço outros homens... porque perguntas? – replicou ela, num tom surdo que deveria ter soado aos ouvidos dele como uma censura.

– Ora – disse ele abruptamente – porque eles dizem que eu não tenho o direito de vir aqui... sem que tenhamos intenção de casar...

Miriam estava indignada por alguém andar a forçar as coisas entre eles. Ficara furiosa com o próprio pai quando este, rindo, comentara com Paul que sabia por que razão ele os visitava tantas vezes.

– Quem diz isso? – perguntou ela, tentando perceber se a sua própria família tinha algo a ver com o assunto. Mas não tinha.

– A minha mãe... e os outros. Dizem que, assim, todos me consideram comprometido, e que eu também me devo considerar como tal, pois não é justo para ti. E eu tentei pensar melhor... e acho que não te amo como um homem deve amar a sua mulher. Que me dizes tu a isto?

Miriam baixou a cabeça, irritada. Irritava-a ter de travar aquela discussão. As pessoas deviam deixá-los em paz.

– Não sei – murmurou ela.

– Achas que nos amamos o suficiente para nos casarmos? – perguntou ele, definitivamente. Ela estremeceu.

– Não – respondeu, sinceramente. – Não acho... somos demasiado novos.

– Eu pensei – prosseguiu ele, infeliz – que talvez tu, com a intensidade que pões nas coisas, me tivesses dado mais... do que alguma vez eu te poderia compensar. E, mesmo assim, se achares que é melhor, ficamos noivos.

Naquele momento, Miriam queria chorar. Estava furiosa também. Ele era sempre tão infantil que as pessoas faziam dele o que queriam.

– Não, não acho – disse firmemente.

Paul reflectiu um minuto.

– Sabes – retomou –, para mim... eu acho que uma pessoa nunca poderá monopolizar-me, ser tudo para mim. Eu acho que isso nunca vai acontecer.

Miriam não tinha considerado este ponto.

– Não – murmurou. Após uma pausa, ela ergueu para ele os seus olhos escuros, faiscantes.

– Isto tem a ver com a tua mãe – disse ela. – Eu sei que ela nunca gostou de mim.

– Não, não é isso – apressou-se ele a dizer. – Desta vez foi para teu bem que ela falou, e só disse que, se eu continuasse, devia considerar-me comprometido. – Seguiu-se um silêncio. – E, se eu te pedir para continuares a visitar-me sempre, não dizes que não?

Miriam não respondeu. Estava agora muito zangada.

– Bem, então que fazemos? – perguntou secamente. – Assim sendo, é melhor desistir das aulas de francês. Agora que estava a começar a dar-me bem... Mas acho que posso continuar sozinha.

– Não vejo necessidade disso – considerou ele. – É claro que posso dar-te uma aula de francês.

– Bom, e há ainda as noites de domingo. Não vou deixar de ir à capela, porque gosto de ir e porque a isso se resume toda a minha vida social. Mas não precisas de ir comigo. Posso ir sozinha.

– Está bem – respondeu ele, algo surpreendido. – Mas, se eu pedir ao Edgar, ele pode vir connosco, e assim as pessoas já não podem dizer nada.

Fez-se silêncio. Afinal, ela não perderia muito. Apesar de todo o falatório em casa dele, a diferença não seria muita. Ela só desejava que eles não interferissem.

– E tu não vais pensar de mais no assunto e deixar que te perturbe, pois não? – perguntou ele.

– Oh, claro que não – retorquiu Miriam, sem se dignar olhar para ele.

Paul ficou em silêncio. Ela achava-o instável, sem um objectivo fixo, nenhuma âncora de certeza a segurá-lo.

– Porque – continuou ele – um homem pega na bicicleta... e vai para o trabalho... e faz toda a espécie de coisas. Mas uma mulher fica a cismar.

– Não, eu não vou ficar a cismar – assegurou-lhe Miriam, e estava a ser sincera.

O tempo arrefecera bastante. Juntos, encaminharam-se para casa.

– Que pálido está o Paul! – exclamou Mrs. Leivers. – Miriam, não devias tê-lo deixado sentar-se lá fora. Achas que te constipaste, Paul?

– Oh, não! – E riu-se.

Mas, na verdade, sentia-se fatigado. O conflito interior esgotara-o. Agora, Miriam sentia pena dele. Mas, muito cedo, ainda antes das nove horas, ele levantou-se para se retirar.

– Não te vais já embora, pois não? – perguntou Mrs. Leivers, ansiosa.

– Vou, sim – retorquiu ele. – Disse em casa que chegava cedo.

Paul estava muito embaraçado.

– Mas ainda é cedo – disse Mr. Leivers.

Miriam sentou-se na cadeira de baloiço e não falou. Ele hesitou, esperando que ela se erguesse para o acompanhar ao celeiro, como habitualmente, quando fosse buscar a bicicleta. Ela, porém, deixou-se ficar onde estava. Paul sentia-se perdido.

– Bem, então... boa noite a todos! – balbuciou.

Miriam deu-lhe as boas-noites, tal como os restantes. Mas, quando ia a passar diante da janela, ele olhou para dentro. Ela viu-o pálido, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas de um modo que se tornara constante nele, e o olhar ensombrado pelo sofrimento.

Ergueu-se então e foi até à porta dizer-lhe adeus, quando ele passou pelo portão. Paul pedalou lentamente sob a rama dos pinheiros, sentindo-se um cobarde e um patife miserável. A bicicleta rolava pelas colinas abaixo, à deriva. Chegou a pensar que seria um alívio partir o pescoço.

Dois dias depois, enviou-lhe um livro e um bilhete, incitando-a a ler e a manter-se ocupada.

E, contudo, nessa altura ele estava diferente. Tinha avaliado bem a situação. Sabia que não queria casar-se com ela. As razões pelas quais a amava não eram razões para se casar com ela; isso es-tava decidido. E a mãe repetira-lhe vezes sem conta que a sua actual situação não podia durar para sempre, e era bastante injusta para a rapariga. Por isso, Paul tentava agora manter a maior distância possível entre os dois. Era duro e frio para ela. Miriam ressentia-se disso amargamente, culpava a mãe dele, e esperava. Sabia que Paul não podia deixá-la sozinha. Mas ele parecia querer por força erguer muros entre eles, ele e ela, atrás dos quais pudesse refugiar-se, longe dela. Miriam sofria terrivelmente.

Durante esse tempo, Paul dedicou toda a sua amizade a Edgar. Gostava tanto da família, gostava tanto da quinta, que ela era para ele o lugar mais querido ao cimo da terra. Nem mesmo o seu lar era tão agradável. A sua mãe sim. Mas teria sido igualmente feliz com aquela mãe em qualquer outro lugar. Mas Paul amava Willey Farm apaixonadamente. Adorava a cozinha pequena e aconchegada, repisada pelas botas dos homens, e onde o cão dormia com um olho aberto e outro fechado, com medo de ser pisado; onde, à noite, a lamparina balouçava sobre a mesa e tudo ficava muito silencioso. Amava a saleta de Miriam, comprida e de tecto baixo, com a sua atmosfera romântica, as suas flores, os seus livros, o piano de pau-rosa. Amava os jardins e os edifícios que, nos limites nus dos campos, se erguiam com os seus telhados escarlate, arrastando-se em direcção ao bosque como se em busca de aconchego, onde a região selvagem cavava um vale profundo, para logo subir as encostas por cultivar do lado de lá. O simples facto de estar ali era um prazer e uma alegria para ele. Amava Mrs. Leivers, com a sua simplicidade e singular cinismo; amava Mr. Leivers, tão caloroso e jovial, e tão afável; amava Edgar, cujo olhar se iluminava quando ele chegava, e os outros rapazes e as crianças, e ainda Bill, e até a porca chamada Circe e o galo indiano de combate chamado Tippoo. Amava tudo isto além de Miriam. Não podia desistir de tudo.

Por isso, continuava a aparecer frequentemente, mas andava geralmente com Edgar. Toda a família, incluindo o pai, apenas se reunia à noite para os jogos e charadas. E, mais tarde, Miriam reunia-os a todos e liam Macbeth em edição de bolso, interpretando os vários papéis. Era muito divertido. Miriam ficava contente, Mrs. Leivers ficava contente e Mr. Leivers divertia-se. Depois, todos juntos, aprendiam a solfejar canções, cantando em círculo em redor da lareira. Mas agora, Paul raramente ficava a sós com Miriam. E ela esperava. Quando ela, Edgar e Paul regressavam a casa vindos da Capela ou do grémio literário de Bestwood, ela sabia que a conversa dele, tão apaixonada e tão pouco ortodoxa para aqueles dias, lhe era dirigida. Contudo, invejava Edgar e as suas corridas de bicicleta com Paul, as suas noites de sexta-feira, os seus dias de labuta conjunta nos campos. Para ela, as noites de sexta-feira e as aulas de francês tinham acabado. Estava quase sempre sozinha, vagueando e meditando pelo bosque, lendo, estudando, sonhando, esperando. E ele escrevia-lhe com frequência.

Num domingo à noite, conseguiram reatar a velha e rara harmonia. Edgar ficara com Mrs. Morel para a comunhão. Queria saber como era. Por isso, Paul e Miriam voltaram sozinhos para casa dele. Ele encontrava-se novamente mais ou menos sob o seu feitiço. Como era hábito, discutiram o sermão. Ele caminhava agora a passos largos para o agnosticismo, mas era um agnosticismo tão religioso que Miriam não sofria muito. Estavam na fase da Vie de Jésus de Renan. Miriam era a eira onde Paul debulhava todas as suas crenças. Enquanto repisava as suas ideias na alma dela, a verdade brotava dele. Só ela era a sua eira. Só ela o ajudava no sentido da plena realização. Quase impassível, ela submetia-se aos seus argumentos e interpretações. E, por causa dela, ele gradualmente compreendia, de algum modo, onde estava errado. E o que ele compreendia, ela compreendia. Miriam sentia que Paul não podia viver sem ela.

Chegaram à casa silenciosa. Ele tirou a chave da janela da cozinha e entraram. Durante todo o tempo, ele não interrompeu a discussão. Acendeu o gás, ateou o fogo e trouxe-lhe alguns biscoitos da despensa. Ela sentou-se no sofá, em silêncio, com um prato sobre os joelhos. Trazia um grande chapéu branco enfeitado com flores cor-de-rosa. Era um chapéu barato, mas ele gostava. Sob o chapéu, o rosto dela estava estático e pensativo, castanho-dourado e corado. Como sempre, as orelhas estavam ocultas sob os seus caracóis curtos. Ela observava-o.

Sempre gostara dele aos domingos. Nesses dias, ele usava um fato escuro que evidenciava todos os movimentos do seu corpo. Havia algo de limpo e fresco no seu ar. Paul prosseguiu o seu raciocínio dirigido a ela. De repente, pegou na Bíblia. Miriam gostou do modo como ele a alcançou, tão determinado, directo ao objectivo. Voltou as páginas rapidamente e leu-lhe um capítulo de S. João. Enquanto lia, absorto, sentado no cadeirão e apenas a sua voz pensava, ela sentia que ele estava a usá-la inconscientemente, como um homem usa as suas ferramentas em qualquer trabalho que o absorve. Adorava essa sensação. E a ânsia na sua voz era como a tentativa de alcançar algo, e era como se ela fosse o modo de o conseguir. Miriam recostou-se no sofá, longe dele, sentindo-se, todavia, o próprio instrumento que a mão dele segurava, o que lhe dava um indescritível prazer.

Pouco a pouco, a voz tornou-se hesitante e Paul ficou constrangido. E quando chegou ao versículo: «Uma mulher, quando está em trabalho de parto, sofre porque a sua hora chegou», omitiu-o. Miriam sentira o seu constrangimento a aumentar. Estremeceu quando as bem conhecidas palavras não foram proferidas. Paul continuou a ler, mas ela já não o escutava. Um sentimento de pesar e vergonha fê-la vergar a cabeça. Seis meses atrás, ele teria lido tudo naturalmente. Agora, abria-se uma brecha na relação entre os dois. Agora, ela sentia haver algo de realmente hostil entre eles, algo de que ambos se envergonhavam.

Miriam comeu o bolo mecanicamente. Ele tentou prosseguir, desenvolvendo o seu argumento, mas não conseguiu recuperar o tom certo. Edgar chegou pouco depois. Mrs. Morel tinha ido a casa de uma amiga. Os três saíram rumo a Willey Farm.

Miriam matutava sobre o afastamento dele em relação a ela. Havia algo mais que ele desejava. Paul não podia estar satisfeito, não podia dar-lhe paz. Agora haveria sempre entre eles lugar para o conflito. Ela queria pô-lo à prova. Acreditava que a maior necessidade na vida dele era ela. Se conseguisse prová-lo, tanto a si mesma como a ele, tudo o resto poderia desaparecer, e ela poderia simplesmente confiar no futuro.

Assim, em Maio, pediu-lhe para vir a Willey Farm visitar Mrs. Dawes. Havia algo que Paul procurava ardentemente. Sempre que se falava de Clara Dawes, Miriam via-o agitar-se e ficar ligeiramente irritado. Afirmou que não simpatizava com ela. Contudo, estava ansioso por saber coisas a seu respeito. Bom, ele tinha de ser posto à prova. Ela acreditava que havia nele ânsias de coisas superiores, e inferiores, e que o desejo pelas superiores venceria. De qualquer forma, deveria tentar. Miriam, porém, esqueceu-se de que os conceitos de «superior» e «inferior» eram arbitrários.

Paul estava bastante entusiasmado com a ideia de se encontrar com Clara em Willey Farm. Mrs. Dawes veio passar o dia. A sua pesada cabeleira castanho-escura estava enrolada ao alto da cabeça. Envergava uma blusa branca e uma saia azul-marinho e, de algum modo, a sua presença parecia tornar as coisas vulgares e insignificantes. Quando se encontrava por perto, a cozinha parecia ao mesmo tempo pequena e imperfeita. A bela saleta de Miriam, com a sua luz crepuscular, parecia estúpida e sem graça. Toda a família Leiver se eclipsava como velas. Eles achavam-na um pouco difícil de suportar. No entanto, ela era perfeitamente amistosa, mas indiferente e um pouco dura.

Paul só chegou da parte da tarde. Mas veio cedo. Enquanto descia da bicicleta, Miriam viu-o olhar em volta da casa, ansioso. Ficaria desapontado se a tão esperada visita não tivesse vindo. Miriam saiu ao seu encontro, baixando a cabeça devido à intensidade do sol. As abecedárias brotavam agora, encarnadas, da verde sombra fria das suas folhas. A rapariga esperou-o, de cabelo escuro, contente por vê-lo.

– A Clara não veio? – perguntou Paul.

– Veio – replicou ela, no seu timbre musical. – Está a ler.

Ele empurrou a bicicleta até ao celeiro. Pusera uma bonita gravata, na qual tinha muito orgulho, e meias a condizer.

– Chegou esta manhã? – perguntou.

– Sim – respondeu Miriam enquanto caminhava a seu lado. – Lembraste-te de trazer aquela carta do homem do Liberty?

– Oh, que chatice, não! – disse ele. – Mas podes atazanar-me até que a traga.

– Não gosto de te atazanar.

– Mas não te acanhes. E ela está mais simpática? – continuou.

– Sabes que eu sempre a achei bastante simpática.

Paul ficou em silêncio. Era evidente que a sua ânsia em chegar cedo naquele dia se devia à recém-chegada. Miriam já começara a sofrer. Encaminharam-se para casa lado a lado. Paul retirou as molas das calças, mas era muito preguiçoso para escovar o pó dos sapatos, apesar de ter requintado nas meias e na gravata.

Clara estava sentada na saleta fresca, a ler. Paul reparou na sua nuca branca e no delicado cabelo repuxado. Ela ergueu-se e olhou para ele com indiferença. Para o cumprimentar, levantou o braço de um modo que parecia, ao mesmo tempo, mantê-lo à distância e, no entanto, acenar-lhe com alguma coisa. Ele notou a forma como os seus seios inchavam dentro da blusa, e como o ombro se curvava deliciosamente sob a fina musselina no cimo do seu braço.

– Escolheste um lindo dia – disse ele.

– É... aconteceu – respondeu ela.

– É verdade – continuou ele. – Ainda bem.

Ela sentou-se, não lhe agradecendo a amabilidade.

– Que fizeste toda a manhã? – perguntou Paul, dirigindo-se a Miriam.

– Bem – disse Miriam, tossindo roucamente –, a Clara só chegou com o pai... e, por isso, não está cá há muito tempo.

Clara sentara-se encostada à mesa, mantendo-se distante. Ele notou que as suas mãos eram grandes, mas bem cuidadas. A pele parecia quase grosseira, opaca e branca, com finos pêlos dourados. Ela não se importava que ele observasse as suas mãos. Tinha intenção de o desprezar. O seu braço opulento estava negligentemente pousado sobre a mesa. A sua boca fechava-se como se estivesse ofendida, e o seu rosto mantinha-se ligeiramente desviado.

– Estiveste presente na reunião da Margaret Bonford na outra noite – disse-lhe ele. Miriam desconhecia este Paul cortês. Clara olhou-o de relance.

– Estive, sim – respondeu.

– Ora – perguntou Miriam – como é que sabes?

– Eu entrei por alguns minutos até o comboio chegar – explicou ele.

Clara desviou novamente o rosto, com uma expressão desdenhosa.

– Acho-a uma mulherzinha adorável – comentou Paul.

– A Margaret Bonford! – exclamou Clara. – Ela é muito mais esperta que a maioria dos homens.

– Bem, eu não disse que não era – disse ele, depreciativamente. – Ela é adorável por tudo isso.

– E é claro que é só isso que tem importância – disse Clara, com uma expressão fulminante.

Ele coçou a cabeça, meio perplexo, meio aborrecido.

– Acho que importa mais do que a inteligência dela – retorquiu Paul – que, afinal, nunca a levaria ao Céu.

– Não é o Céu que ela pretende... é o seu justo quinhão na terra – retorquiu Clara. Falava como se Paul fosse responsável por qualquer privação de que Miss Bonford sofresse.

– Bem – disse ele –, eu achei-a calorosa e extraordinariamente agradável... mas demasiado frágil. Só desejei que ela estivesse confortavelmente em paz...

– ... remendando as peúgas do marido – interrompeu Clara, sarcasticamente.

– Estou certo de que não se importaria de remendar até mesmo as minhas peúgas – afirmou ele. – E tenho a certeza de que o faria até muito bem. Tal como eu não me importaria de lhe engraxar as botas, se ela o desejasse.

Mas Clara recusou-se a dar troco a este tipo de comentário. Paul conversou com Miriam durante algum tempo. A outra mulher permaneceu afastada.

– Bem – disse ele –, acho que vou procurar o Edgar. Ele anda no campo?

– Acho que foi buscar um carregamento de carvão – respondeu Miriam. – Deve vir directamente para casa.

– Sendo assim – disse Paul –, vou ao encontro dele.

Miriam não ousou propor nenhum programa que envolvesse os três. Ele levantou-se e deixou-as.

No caminho de cima, onde a giesta despontava, Paul viu Edgar caminhando preguiçosamente ao lado da égua, que acenava a testa estrelada de branco enquanto arrastava o ruidoso carregamento de carvão. O rosto do jovem lavrador iluminou-se quando avistou o amigo. As suas roupas eram velhas e já bastante coçadas, mas caminhava com um orgulho considerável.

– Viva! – cumprimentou ele, vendo Paul sem chapéu. – Onde vais?

– Vim ter contigo. Não suporto a «Nunca jamais».

Os dentes de Edgar brilharam numa gargalhada divertida.

– Quem é a «Nunca jamais»? – perguntou.

– Aquela senhora – Mrs. Dawes – devia chamar-se Mrs. Corvo, aquele que disse «Nunca jamais».

Edgar riu com satisfação.

– Não gostas dela? – perguntou.

– Não morro de amores – respondeu Paul. – Porquê, tu gostas?

– Não! – A resposta veio com profunda convicção. – Não! – Edgar franziu os lábios. – Não posso dizer que seja muito o meu estilo. – Meditou um pouco. Depois: – Mas porque lhe chamas «Nunca jamais»? – perguntou.

– Bem – explicou Paul. – Se ela olha para um homem, diz arrogantemente «Nunca jamais», se se olha no espelho, diz desdenhosamente «Nunca jamais», e se pensa duas vezes, di-lo com nojo, e se olha em frente, di-lo cinicamente...

Edgar considerou o discurso de Paul, não conseguindo entendê-lo muito bem, e disse, rindo:

– Achas que ela odeia os homens?

– Ela acha que sim – retorquiu Paul.

– Mas tu não achas que assim seja?

– Não – respondeu Paul.

– Então ela não foi simpática contigo?

– Consegues imaginá-la a ser simpática com alguém? – perguntou o jovem.

Edgar riu-se. Juntos, descarregaram o carvão no pátio. Paul estava bastante contrafeito pois sabia que Clara o podia ver, se olhasse pela janela. Mas não olhou.

Nas tardes de sábado, os cavalos eram escovados e tratados. Paul e Edgar trabalharam juntos, espirrando com o pó proveniente do pêlo de Jimmy e Flower.

– Sabes alguma canção nova para me ensinar? – perguntou Edgar.

Ele continuava a trabalhar sem parar. Quando se baixava, deixava a descoberto a parte posterior do pescoço, encarniçada do sol, e os dedos que seguravam a escova eram taludos. Paul observava-o de vez em quando.

– Mary Morrison? – sugeriu o mais novo.

Edgar concordou. Era dono de uma bela voz de tenor e adorava aprender todas as canções que o amigo lhe ensinava para poder cantar enquanto conduzia a carroça. Paul possuía uma voz de barítono bastante sofrível, mas tinha bom ouvido. No entanto, cantou baixinho, com medo de Clara. Edgar repetiu o verso na sua voz límpida de tenor. Por vezes, ambos interrompiam a cantoria para espirrar e, primeiro um e depois o outro, insultarem o cavalo.

Miriam estava impaciente com os homens. Era preciso tão pouco para os divertir – até Paul. Achava pouco natural nele que pudesse ficar tão absorvido numa trivialidade.

Era hora do chá quando acabaram.

– Que canção era aquela? – perguntou Miriam.

Edgar informou-a. A conversa virou para o canto.

– Passámos momentos tão agradáveis – disse Miriam a Clara.

Mrs. Dawes tomou o seu chá devagar, com dignidade. Sempre que os homens estavam presentes, ela mostrava-se distante.

– Gostas de ouvir cantar? – perguntou-lhe Miriam.

– Se a voz for boa – disse ela.

Paul corou, naturalmente.

– Queres tu dizer, se a voz for de excepção e educada? – disse ele.

– Acho que uma voz precisa de ser educada para cantar alguma coisa que se oiça – disse Clara.

– Já agora, também podes dizer que as pessoas deviam educar a voz antes de falarem – replicou ele. – Francamente, a maior parte das pessoas canta para seu próprio prazer.

– E, quem sabe, para desprazer dos outros.

– Nesse caso, os outros que tapem os ouvidos – retorquiu Paul.

Os rapazes desataram a rir. Depois, fez-se silêncio. Ele corou violentamente e tomou o chá calado.

A conversa voltou à questão de se o salário das mulheres deveria ser igual ao dos homens. Mrs. Leivers sustentava que os homens tinham famílias a manter; Clara afirmava que trabalho igual teria de significar salário igual, para homens ou mulheres. Mr. Leivers estava inclinado a concordar com ela. O que quer que Mrs. Dawes tivesse dito, Paul teria tomado uma posição contrária à dela. Como tal, argumentou que uma mulher era apenas um acessório no mercado de trabalho e que, na maioria dos casos, não passava de uma coisa transitória, sustentando-se apenas por um ou dois anos. Clara avançou o número de mulheres que sustentavam pai, mãe, irmãs, etc.

– E quase todos os homens do mundo, acima dos trinta anos, sustentam mulher e filhos – e, regra geral, as ditas mulheres não são assalariadas – retorquiu ele.

– Eu penso, meu amigo – disse Clara muito friamente –, que já antes encontrei o teu tipo de pessoa: o jovem que pensa que sabe tudo.

– E tu és do tipo da jovem que pensa que eu não sei nada – volveu ele.

– Oh, sabes sim... sabes como te fazeres ouvir – disse ela.

Paul estava furioso. De repente, rebentou numa gargalhada.

– Isto parece mais uma reunião de sufragistas contigo no estrado a discursar – disse ele.

Clara corou até à raiz dos cabelos.

– Porque terei eu de responder pelos «Homens», quando afinal sou apenas um deles... – continuou Paul.

– Como se não fosse já suficiente – gracejou Edgar.

– E assim – retomou Paul – sou responsabilizado por todos os pecados da história de Inglaterra, desde a Rainha Boadisca até à Canção da Camisa. Não é justo. Gostava que o Homem tivesse o direito de existir na sociedade moderna... num qualquer canto onde pudesse repousar a cabeça.

– Bem – gracejou Mrs. Leivers –, no final de contas, o lugar do homem continuará a ser o mesmo enquanto formos feitos como somos.

Mas este gracejo foi demasiado subtil para todos, à excepção de Clara, que estava indignadíssima.

Após o chá, quando todos os homens, à excepção de Paul, se retiraram, Mrs. Leivers perguntou a Clara:

– E achas a vida mais feliz agora?

– Infinitamente.

– Então estás satisfeita?

– Desde que possa ser livre e independente.

– E não sentes falta de nada na tua vida? – quis saber Mrs. Leivers, delicadamente.

– Ultrapassei isso tudo.

Paul sentiu-se desconfortável perante este discurso, e levantou-se:

– Vais acabar por descobrir que tropeças constantemente nas coisas que deixaste para trás – disse ele. Depois saiu em direcção aos estábulos. Achava que tinha sido espirituoso e o seu orgulho masculino estava radiante. Pôs-se a assobiar enquanto descia o carreiro de ladrilhos.

Miriam veio procurá-lo pouco depois para saber se gostaria de as acompanhar, a Clara e a ela, num passeio. Partiram em direcção à quinta de Strelley Mill. Enquanto caminhavam ao longo da ribeira, pela margem do Willey Water, olhando através do arvoredo para a orla do bosque, onde pequeninas flores cor-de-rosa brilhavam sob uns poucos raios de sol, avistaram, para lá dos troncos das árvores e das ralas aveleiras, um homem conduzindo um grande cavalo baio pelos barrancos. O animal, enorme e cor de fogo, parecia dançar romanticamente através do verde-escuro das aveleiras até onde o ar era sombrio como o passado, por entre as campainhas emurchecidas que podiam ter florido para Deirdre ou Isolda.

Os três estacaram, encantados.

– Que prazer ser cavaleiro – disse ele – e ter aqui um pavilhão.

– E ter-nos a nós fechadas em segurança? – retorquiu Clara.

– Sim – respondeu ele –, entoando melodias com as vossas amas, entregues aos vossos bordados. Eu transportaria o vosso estandarte branco, verde e púrpura, e teria gravado no brasão do meu escudo a sigla das sufragistas, por baixo de uma mulher enfurecida...

– Não tenho qualquer dúvida – disse Clara – que muito mais depressa lutarias por uma mulher do que a deixarias lutar por si mesma.

– E lutaria mesmo! Quando a mulher luta por si mesma parece um cão diante de um espelho, enraivecido pela sua própria sombra.

– E tu és o espelho? – perguntou ela, com um franzir de lábios.

– Ou a sombra – replicou ele.

– Temo – disse ela – que sejas perigosamente inteligente.

– Bem, deixo-te a ti a tarefa de seres boazinha – retorquiu ele, rindo. – Sê boazinha, gentil donzela, e deixai-me ser inteligente.

Mas Clara cansou-se da irreverência de Paul. Subitamente, ao olhar para ela, ele viu que a expressão de superioridade que emanava do seu rosto era infelicidade e não desprezo. O coração dele enterneceu-se por todos. Voltou-se para Miriam, a quem até então negligenciara, e foi gentil com ela.

Ao aproximarem-se da orla do bosque, encontraram Limb, um homem trigueiro e franzino, de quarenta anos, rendeiro de Strelley Mill, que ele dirigia como uma quinta dedicada à pecuária. Segurava as rédeas do poderoso garanhão displicentemente, como se estivesse cansado. Os três recuaram para o deixarem passar por cima das pedras que atravessavam o primeiro regato. Paul admirou-se pelo facto de um animal tão grande caminhar sobre pedras tão escorregadias com inesgotável vigor. Limb estacou diante deles.

– Diga ao seu pai, Miss Leivers – disse ele, numa voz sibilante, pouco vulgar –, que, há três dias, as suas crias novas partiram aquela vedação do fundo e fugiram.

– Qual? – perguntou Miriam, trémula.

O grande cavalo resfolegava pesadamente, agitando os flancos encarniçados e olhando-os desconfiado, com os seus olhos grandes, maravilhosos, mantendo a cabeça baixa e a crina pendente.

– Venham comigo – respondeu Limb – qu’eu amostro-lhes.

O homem e o garanhão seguiram à frente. O cavalo dançava de lado, agitando o topete branco e parecendo assustado, como se sentisse que estava no meio do regato.

– Nada de bailaricos – disse o homem ao animal, afectuosamente.

O cavalo galgou a margem em pequenos saltos e chapinhou delicadamente entrando no segundo regato. Clara, caminhando numa espécie de abandono amuado, olhava meio fascinada, meio desdenhosa. Limb parou e apontou para uma vedação sob uns salgueiros.

– Ali, tá a ver por onde eles passaram? – disse ele. – Os meus homens trouxeram-nos de volta três vezes.

– Sim – balbuciou Miriam, corando como se a culpa fosse sua.

– Querem entrar? – convidou o homem.

– Não obrigado... mas gostaríamos de ir até ao lago.

– Se quiserem – disse ele.

O cavalo relinchou de satisfação por se ver tão próximo de casa.

– Está todo contente por estar de volta – comentou Clara, que estava interessada na criatura.

– Pois está... Hoje teve uma jornada muito cheia.

Atravessaram o portão e viram aproximar-se deles, vinda da casa grande da quinta, uma mulher morena e de baixa estatura, aparentando uma natureza emotiva e cerca de trinta e cinco anos. Tinha o cabelo já um pouco tingido de grisalho e os olhos pareciam selvagens. Avançava de mãos atrás das costas. O seu irmão continuou em frente. Ao vê-la, o grande garanhão relinchou de novo. Ela aproximou-se, excitada.

– Já estás em casa outra vez, meu rapaz! – disse, ternamente, dirigindo-se ao cavalo, não ao homem. O grande animal girou em torno dela, baixando a cabeça. A mulher meteu-lhe na boca a maçã enrugada e amarela que escondera atrás das costas e depois beijou-o perto dos olhos. O cavalo resfolegou de prazer. Ela segurou-lhe a cabeça entre os braços, e apertou-a contra o peito.

– É esplêndido! – disse Miriam.

Miss Limb ergueu os olhos. Eram escuros e dirigiram-se directamente a Paul.

– Oh, boa tarde, Miss Leivers – cumprimentou ela. – Há anos que não a vemos cá por baixo.

Miriam apresentou-lhe os amigos.

– O seu cavalo é um óptimo companheiro! – disse Clara.

– Pois é! – E beijou-o novamente. – Tão dedicado como um homem!

– Mais dedicado que a maioria dos homens, penso eu – retorquiu Clara.

– É um bom menino! – disse a mulher, abraçando de novo o cavalo.

Clara, fascinada pelo grande animal, aproximou-se para lhe afagar o pescoço.

– Ele é muito meigo – disse Miss Limb. – Não acha que todas as criaturas grandes o são?

– É uma beleza! – respondeu Clara.

Queria olhá-lo nos olhos. Queria que ele olhasse para ela.

– É uma pena que não possa falar – disse.

– Oh, mas ele pode... diz tudo – retorquiu a outra mulher.

Depois, o irmão foi-se embora com o cavalo.

– Então, não vão entrar? Faça o favor de entrar, Mr... desculpe, não percebi o seu nome...

– Morel! – disse Miriam. – Não, não vamos entrar, mas gostaríamos de passar pela represa.

– É claro, estejam à vontade. O senhor pesca, Mr. Morel?

– Não – respondeu Paul.

– Porque, se pesca, pode vir pescar quando quiser – ofereceu Miss Limb. – Raramente vemos alguém durante a semana. Até lhe agradecia.

– Que peixes há no lago? – perguntou Paul.

Passaram pelo jardim da frente da casa, sobre o açude, e subiram a margem íngreme até ao lago, que repousava na sombra, com as suas duas ilhotas de madeira. Paul caminhava ao lado de Miss Limb.

– Não me importava de vir nadar para aqui – disse ele.

– Então, venha – convidou ela. – Venha quando quiser. O meu irmão ficará muito contente por conversar consigo. Ele é assim calado porque não tem com quem falar. Venha nadar quando quiser.

Clara aproximou-se.

– Tem uma boa profundidade – comentou. – E é tão límpido.

– É verdade – disse Miss Limb.

– Sabes nadar? – perguntou Paul. – Miss Limb estava agora mesmo a dizer que podíamos vir quando quiséssemos.

– É claro que há os criados da lavoura – disse Miss Limb.

Conversaram durante alguns minutos e depois continuaram, colina acima, deixando na margem a solitária senhora de olhar esgazeado.

A vertente da colina estava amadurecida pelo sol. Era selvagem e coberta de tufos de urze, abandonada aos coelhos. Os três caminhavam em silêncio. Paul disse então:

– Ela faz-me sentir desconfortável.

– Referes-te a Miss Limb? – perguntou Miriam. – É verdade!

– Qual será o problema dela? Estará a ficar tonta por viver demasiado solitária?

– Parece que sim – concordou Miriam. – Isto não é vida para ela. Acho uma crueldade enterrá-la aqui. Eu devia vir visitá-la mais vezes. Mas... ela perturba-me.

– Faz-me sentir pena dela... é verdade, e aborrece-me – disse ele.

– Eu acho – disse Clara subitamente – que o que ela quer é um homem.

Os outros dois ficaram mudos durante alguns instantes.

– Mas é a solidão que a deixa assim amalucada – disse Paul.

Clara não respondeu, prosseguindo a caminhada colina acima. Caminhava cabisbaixa, com as pernas oscilando à medida que pisava por entre os cardos secos e os tufos de erva, e os braços pendendo soltos. Em vez de andar, o seu belo corpo parecia vaguear às cegas pela encosta acima. Uma onda de calor invadiu Paul. Estava curioso acerca dela. Talvez a vida tivesse sido cruel com Clara. Esqueceu Miriam, que caminhava a seu lado, conversando consigo. Ela olhou para ele ao ver que ele não lhe respondia. O olhar dele estava fixo em Clara.

– Ainda achas que ela é uma antipática? – perguntou Miriam.

Ele nem reparou que a pergunta era despropositada. É que também lhe andava a bailar no pensamento.

– Passa-se algo com ela – respondeu.

– Sim – concordou Miriam.

No cimo da colina encontraram uma tapada bravia, escondida dos olhares; dois dos seus lados eram delimitados pelo bosque, os outros dois por sebes altas de espinheiros e sabugueiros. Por entre estes arbustos densos, viam-se aberturas por onde o gado poderia ter passado, se ali houvesse ainda gado. Naquele sítio a relva era macia e aveludada, fofa e esburacada pelos coelhos. O campo propriamente dito nunca fora cultivado e estava inundado de primaveras grandes e altas que nunca haviam sido cortadas. As flores brotavam fortes em ramalhetes por todo o lado, erguendo-se acima dos grosseiros tufos de erva. Parecia uma angra repleta de altos mastros de navios.

– Ah! – exclamou Miriam, voltando para Paul os olhos escuros dilatados. Ele sorriu. Juntos, gozaram a visão do campo de flores. Clara, um pouco afastada, olhava as primaveras, desconsoladamente. Paul e Miriam ficaram juntos, conversando em voz baixa. Ele ajoelhou-se, colhendo rapidamente os melhores botões, movimentando-se incessantemente de ramalhete em ramalhete, falando sempre num tom suave. Miriam colhia as flores ternamente, detendo-se diante de cada uma delas. Ele parecia-lhe sempre demasiado rápido, quase científico. No entanto, os ramos dele tinham uma beleza natural, mais do que os dela. Ele amava-os, mas como se fossem seus e tivesse direito a eles. Ela tinha uma maior reverência para com as flores: tinham algo que ela não possuía.

As flores eram muito frescas e doces. Ele queria bebê-las. Enquanto as colhia, comeu até uns pequenos jasmins amarelos. Clara continuava a vaguear desconsoladamente. Dirigindo-se a ela, Paul perguntou:

– Porque não colhes algumas?

– Não acho bem. Elas parecem melhor a crescer no campo.

– Mas gostarias de algumas?

– Elas querem ser deixadas em paz.

– Não acho que queiram nada disso.

– Não quero ter cadáveres de flores à minha volta – disse ela.

– Essa é uma ideia pomposa e artificial – replicou ele. – Elas não morrem mais depressa na água do que nas próprias raízes. E, além disso, ficam bem numa jarra, parecem felizes. E só podemos chamar cadáver a uma coisa quando ela tem a aparência de cadáver.

– Mesmo sendo ou não cadáver? – argumentou ela.

– Para mim não o são. Uma flor morta não é o cadáver de uma flor.

Desta vez, Clara ignorou-o.

– Mesmo assim... que direito tens tu de as arrancar? – perguntou ela.

– Gosto delas e quero-as... e há muitas mais.

– E achas isso suficiente?

– Sim, porque não? Estou certo de que deixariam um agradável perfume no teu quarto em Nottingham.

– E eu teria o prazer de as ver morrer.

– Mas então... não te interessa se elas morrem.

Dito isto, deixou-a, pisando os maciços de flores emaranhadas, que cobriam espessamente o campo, como pálidas e luminosas formações de espuma. Miriam aproximara-se. Clara estava ajoelhada, aspirando o aroma das primaveras.

– Eu acho – disse Miriam – que se as tratarmos com reverência, não lhes fazemos mal... o que conta é o espírito com que as colhemos.

– Isso é verdade – concordou ele. – Mas nós colhemo-las porque as queremos, é tudo. E exibiu o seu ramalhete.

Miriam estava silenciosa. Paul colheu mais algumas flores.

– Olhem para estas! – continuou Paul. – Robustas e sadias como pequenas árvores ou meninos de pernas gordas...

O chapéu de Clara estava pousado na erva, não muito longe. Ela estava ajoelhada, ainda inclinada para a frente, a sentir o perfume das flores. A visão do seu pescoço fez Paul sentir uma ânsia aguda, de tão belo que era, embora naquele momento ele não se sentisse muito orgulhoso de si mesmo. Os seios dela agitavam-se ligeiramente na blusa. A curva arqueada das suas costas era bonita e forte: ela não usava corpete. Subitamente, sem saber, ele estava a espalhar uma mão-cheia de primaveras sobre o seu cabelo e o seu pescoço, dizendo:


«Cinzas às cinzas e pó ao pó será.

Se o Senhor não te receber, o Diabo o fará.»


As flores frescas caíram sobre o pescoço de Clara. Ela ergueu o rosto para ele, onde dois olhos cinzentos e assustados, quase cheios de compaixão, se interrogavam sobre o que ele estava a fazer. Sobre o seu rosto caíram flores e ela cerrou os olhos.

De súbito, ali de pé ao lado dela, ele sentiu-se estranho.

– Pensei que querias um funeral – disse, embaraçado.

Clara riu de forma estranha e levantou-se, tirando as primaveras do cabelo. Pegou no chapéu e colocou-o na cabeça. Uma flor permaneceu presa ao seu cabelo, mas Paul não lhe disse nada. Depois, recolheu as flores que espalhara sobre ela.

Nos limites do bosque, os miosótis tinham-se estendido pelo campo, aí ficando como água da corrente. Mas murchavam agora. Clara vagueava sobre eles. Ele seguiu-a. Os miosótis agradavam-lhe.

– Olha como saíram do bosque! – disse.

Nesse momento, ela voltou-se com uma centelha de calor e gratidão.

– É verdade! – sorriu.

O sangue de Paul correu mais rápido.

– Fazem-me pensar nos homens selvagens dos bosques... como eles devem ter-se sentido aterrorizados quando se defrontaram cara a cara com o espaço aberto.

– Achas que sim? – perguntou ela.

– Entre as tribos antigas, pergunto-me quais teriam mais medo: as que irrompiam da escuridão dos bosques para todo um espaço de luz, ou as das áreas abertas, penetrando pé ante pé nas florestas.

– Acho que as segundas – respondeu ela.

– Sim, tu sentes-te realmente como uma pessoa de espaços abertos... tentando forçar-se a penetrar no escuro, não é verdade?

– Como é que posso saber? – respondeu ela, de um modo singular.

A conversa ficou por aqui.

A noite adensava-se sobre a terra. O vale já se cobria de sombras. Um minúsculo quadrado de luz subsistia ainda do lado oposto à quinta de Crossleigh Bank. Um brilho incandescente inundava os cumes das colinas. Miriam subiu lentamente, com o rosto enterrado no seu grande e solto ramalhete de flores, caminhando através da espuma dispersa das primaveras que lhe cobria o tornozelo. Atrás dela, as árvores transformavam-se agora em formas, todas elas sombras.

– Vamos? – perguntou.

E os três voltaram para trás. Permaneceram em silêncio. Descendo o trilho de terra, podiam ver a luz de casa mesmo em frente e, no cume da colina, uma leve silhueta escura pontilhada de luzinhas, onde a aldeia da mina de carvão tocava o céu.

– Foi agradável, não foi? – perguntou ele.

Miriam concordou, num murmúrio. Clara ficou em silêncio.

– Não achas? – insistiu ele.

Mas ela caminhava com a cabeça erguida e não respondia. Pela sua maneira de andar, como se nada lhe importasse, ele podia adivinhar o seu sofrimento.

Por esta altura, Paul levou a mãe a Lincoln. Ela estava entusiasmada e resplandecente como nunca, mas, sentada diante dele na carruagem do comboio, parecia frágil. E Paul teve uma sensação fugaz, como se ela estivesse a deslizar para longe dele. Então, quis agarrá-la, prendê-la, quase acorrentá-la. Sentia que tinha de a segurar com as próprias mãos.

Aproximavam-se da cidade. Iam ambos à janela, procurando vislumbrar a catedral.

– Ali está ela, mãe! – gritou Paul.

Avistaram a grande catedral erguendo-se acima da planície.

– Ah! – exclamou ela. – Pois está!

Ele olhou para a mãe. Os seus olhos azuis observavam a catedral em silêncio. Novamente ela parecia para lá dele. Algo da serenidade eterna da elevada catedral, azul e nobre contra o céu, algo da sua fatalidade, estava nela reflectido. O que era, era! – mesmo com toda a sua juventude, ele não podia alterá-lo. Olhou o rosto dela: a pele era ainda fresca, cor-de-rosa e aveludada, mas notavam-se já alguns pés-de-galinha em torno dos olhos; as pálpebras eram firmes, afundando-se um pouco, e a boca sempre fechada, em desilusão; e havia nela o mesmo olhar eterno, como se, finalmente, conhecesse o destino. E ele debatia-se contra o destino com todas as forças da sua alma.

– Veja, mãe, como se eleva sobre a cidade! E pensar que há ruas e ruas abaixo dela; parece maior que toda a cidade.

– Pois parece! – exclamou a mãe, voltando novamente à vida. Mas ele vira-a sentada, olhando fixamente pela janela para a catedral, de rosto e olhar parados, reflectindo a inexorabilidade da vida. E os pés-de-galinha em redor dos seus olhos e a boca tão duramente cerrada fizeram-no sentir que enlouquecia.

Fizeram uma refeição que ela considerou desnecessariamente extravagante.

– Não penses que eu gosto disto – disse, enquanto comia a costeleta. – Não gosto, não gosto mesmo nada! Só de pensar no teu dinheiro, assim desperdiçado!

– Não se preocupe com o meu dinheiro – respondeu ele. – Esquece-se de que sou um rapaz que leva a namorada a jantar fora?

Depois, comprou-lhe violetas azuis.

– Pára já com isso, menino! – ordenou ela. – Como é que eu vou fazer uma coisa dessas?

– Não tem de fazer nada! Fique quieta.

E, em plena High Street, Paul pregou as flores no casaco da mãe.

– Uma velha como eu! – protestou ela, aspirando o perfume.

– Bem vê – explicou ele –, quero que as pessoas pensem que somos terrivelmente finos. Portanto, a mãe tem de se apresentar à altura.

– Merecias que eu te desse um tabefe – disse ela.

– Vá lá... – ordenou ele –, pavoneie-se... como um pombo de cauda em leque.

Levaram uma hora a percorrer a rua. Mrs. Morel deteve-se primeiro junto ao Glory Hole, depois diante de Stone Bow, deteve-se em todo o lado, soltando exclamações. Um homem aproximou-se, tirou o chapéu e fez-lhe uma vénia:

– Permita-me que lhe mostre a cidade, minha senhora.

– Não, obrigada – respondeu ela. – Tenho o meu filho.

Nesse momento, Paul ficou furioso com ela por não ter respondido com mais dignidade.

– Tu deixas-te levar por ti mesmo – exclamou ela. – Ah, aquela é a Casa do Judeu! Lembras-te daquele sermão, Paul...

Ela mal podia subir a colina que conduzia à catedral, mas ele não notou. De repente, porém, foi dar com ela incapaz de falar. Conduziu-a a um pequeno bar, onde descansou.

– Não é nada! – disse a mãe. – O meu coração só está a ficar velhote; é de se esperar.

Paul não respondeu, mas olhou para ela. E novamente o seu coração foi esmagado por um aperto escaldante. Queria gritar, queria desfazer tudo, em fúria.

Retomaram o passeio, passo a passo, muito lentamente. E cada passo parecia um peso no peito de Paul. Sentia-se como se o seu coração fosse explodir. Finalmente, chegaram ao topo. Ela deteve-se encantada, olhando para o portão do castelo, admirando a fachada da Catedral. Tinha-se esquecido de si mesma.

– Isto é ainda melhor do que pensei que pudesse ser! – exclamou.

Mas ele odiava tudo. Por todo o lado a seguia, cismando. Sentaram-se juntos na Catedral. Assistiram a um curto serviço religioso no coro. Ela estava hesitante.

– Estará aberto para todos? – perguntou.

– É claro que está – respondeu ele. – Pensa que iam ter a lata de nos mandar embora?

– Bem – exclamou ela –, tenho a certeza de que teriam, se ouvissem a tua linguagem!

Durante o serviço, o seu rosto parecia resplandecer novamente de alegria e tranquilidade. E durante todo esse tempo, ele tinha vontade de se enraivecer, partir coisas e gritar.

Mais tarde, quando se debruçaram da muralha, admirando a cidade lá em baixo, Paul disse intempestivamente:

– Porque é que um homem não pode ter uma mãe jovem? Porque é que há-de ser sempre velha?

– Bem – disse ela, a rir – não me parece que tenha muita escolha.

– E porque não fui eu o filho mais velho? Ora veja... os filhos mais velhos dizem que os mais novos têm vantagem... mas veja bem, eles é que tiveram a mãe jovem. A mãe devia ter-me tido como seu filho mais velho.

– Não fui eu que escolhi – replicou ela. – Se pensares bem, és tão culpado como eu.

Ele voltou-se para ela, pálido, com o olhar irado.

– Porque é que a mãe é velha? – disse ele, enlouquecido pela sua impotência. Porque é que não pode andar? Porque é que não pode acompanhar-me a todos os lugares?

– Tempos houve – respondeu ela – em que eu era capaz de correr por essa colina acima melhor do que tu.

– E de que é que isso me vale, a mim? – gritou ele, golpeando a muralha com o punho. Depois, tornou-se lamuriento: – É uma pena que esteja doente, minha pequenina, é...

– Doente! – interrompeu ela. – Estou só a ficar velha, e tu tens de te conformar, é tudo. – Ficaram em silêncio. Mas não por muito tempo, e logo retomaram a boa disposição durante o chá. Enquanto estavam sentados na margem do Brayford, observando os barcos, Paul falou-lhe de Clara. A mãe fez inúmeras perguntas.

– E com quem vive ela?

– Com a mãe, em Bluebell Hill.

– E têm o suficiente para se manterem?

– Acho que não: penso que fazem rendas.

– Afinal que encantos lhe encontras tu, meu filho?

– Não sei se ela tem encantos, mãe. Mas é simpática. E parece correcta, sabe... Nada profunda, nem um pouco.

– Mas é bastante mais velha do que tu.

– Tem trinta, e eu vou fazer vinte e três.

– Mas não me disseste porque gostas dela.

– Porque não sei... será talvez o ar provocador que ela tem, uma espécie de revolta...

Mrs. Morel pensou um pouco. Teria ficado contente se o filho se apaixonasse por uma mulher que... ela não sabia bem o quê. Mas ele enervou-se, ficando subitamente furioso, e novamente melancólico. Ela só desejava que ele conhecesse uma rapariga agradável. Nem sabia o que desejava, mas deixou o assunto no ar. De certa forma, não era hostil à ideia de Clara.

Também Annie se ia casar. Leonard fora para longe trabalhar em Birmingham. Um fim-de-semana em que ele estava lá em casa, Mrs. Morel dissera-lhe:

– Não estás com boa cara, meu filho.

– Não sei o que tenho – respondeu ele. – Sinto-me perdido, mãe.

Chamava-a já de mãe, com o seu jeito infantil.

– Tens a certeza de que as instalações são boas? – perguntou ela.

– Sim... sim. Só que... é um aborrecimento quando temos de tomar sozinhos o nosso próprio chá... sem ninguém para nos ralhar, se o deitarmos para o pires e o bebermos daí. Não sei porquê mas tira o sabor ao chá.

Mrs. Morel riu-se.

– E então isso preocupa-te? – perguntou.

– Não sei... Quero casar – disse ele, de repente, torcendo os dedos e olhando para as botas. Houve uma pausa.

– Mas – exclamou ela – pensei que tinhas dito que querias esperar mais um ano.

– Pois foi, eu disse isso – respondeu ele, teimosamente.

Mrs. Morel considerou as palavras do filho por um momento.

– Sabes – continuou – a Annie é um pouco esbanjadora. Não amealhou mais de umas onze libras... e eu sei, meu filho, que tu não tens tido muita sorte.

Ele corou até às orelhas.

– Eu tenho vinte e três libras – respondeu.

– Com isso, não vão muito longe – disse Mrs. Morel.

Ele não respondeu, limitando-se a torcer os dedos.

– E tu sabes que eu não tenho nada... – continuou ela.

– Nem eu queria, mãe...! – gritou ele, muito vermelho, sofrendo e protestando.

– Não, meu filho, eu sei. Só tenho pena de não ter dinheiro. Tirando cinco libras para o casamento e preparativos... ficam vinte e nove libras... com isso não conseguem fazer grande coisa...

Ele continuou a torcer os dedos, impotente, obstinado, sem erguer os olhos.

– Mas queres mesmo casar? – perguntou ela. – Achas que deves?

Ele olhou-a de frente com os seus olhos azuis.

– Quero! – afirmou.

– Então – continuou ela – temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance.

Quando Leonard voltou a erguer o rosto, tinha lágrimas nos olhos.

– Não quero que a Annie passe dificuldades...! – disse ele, debatendo-se.

– Meu filho – disse ela – vocês namoram há muito tempo – tu tens um emprego decente. Se um homem tivesse precisado de mim, eu teria casado com ele mesmo sem dinheiro. Para ela pode ser um pouco difícil começar a vida humildemente. As raparigas muito novas são assim. Esperam ansiosas pelo belo lar que pensam que vão ter. Mas eu tinha mobílias caras! E isso não é tudo.

Assim, o casamento teve lugar quase de imediato. Arthur veio a casa, esplêndido no seu uniforme. Annie estava muito bonita num vestido cinza peito-de-rola que podia guardar para os domingos. Morel disse-lhe que era bem parva por se casar, e mostrou-se muito frio para com o genro. Mrs. Morel tinha plumas brancas no chapéu e mais algumas na blusa, e ambos os filhos a arreliaram por se embonecar tanto. Leonard estava alegre e cordial e sentia-se um tolo amedrontado. Paul não conseguia entender por que razão Annie queria casar-se. Sentia um grande carinho por ela, e ela por ele. Esperava, por isso, talvez um pouco melancolicamente, que tudo lhe corresse pelo melhor. Arthur estava surpreendentemente elegante no seu uniforme escarlate e amarelo e tinha plena consciência disso, mas sentia-se secretamente envergonhado por estar fardado. Annie debulhou-se em lágrimas na cozinha, ao despedir-se da mãe. Mrs. Morel chorou um pouco e, depois, afagou-lhe as costas, dizendo:

– Não chores, filha, ele vai ser bom para ti.

Morel bateu com os pés no chão violentamente, afirmando que ela era uma parva por se ter amarrado tão depressa. Leonard estava pálido e exausto. Mrs. Morel disse-lhe:

– Confio-ta, meu filho, e considero-te responsável por ela.

– Pode confiar em mim – assegurou ele, quase morto com tanta confusão. E estava tudo acabado.

Quando Morel e Arthur se recolheram, Paul sentou-se a conversar com a mãe, como tantas vezes fazia.

– Não tem pena de ela se ter casado, pois não, mãe? – perguntou ele.

– Não tenho pena de ela ter casado... mas... é uma sensação estranha... vê-la partir para longe de mim. Até me parece impossível que ela prefira ir com o Leonard. Mas as mães são assim... eu sei que é tolice.

– E vai ficar triste por causa dela?

– Quando penso no dia do meu casamento – respondeu a mãe – só posso esperar que a vida dela seja diferente.

– Mas confia nele... para a tratar bem?

– Sim, sim! Há quem diga que ela podia ter arranjado melhor. Mas eu acho que, se um homem é genuíno, como é o Leonard, e uma rapariga gosta dele... então... está tudo bem... ele é tão bom quanto ela.

– Nesse caso, não se importa?

– Nunca deixaria uma filha minha casar com um homem que eu não sentisse ser completamente genuíno. E, no entanto, cá está este vazio, agora que ela se foi...

Sentiam-se ambos tristes e queriam-na de volta. Paul achava que a mãe parecia muito sozinha, na sua nova blusa de seda preta com guarnições brancas.

– De qualquer modo, mãe, eu nunca me casarei – afirmou ele.

– Ah, todos dizem o mesmo, meu filho. Ainda não encontraste a mulher ideal. Espera um ano ou dois, e vais ver.

– Mas eu não me caso, mãe... fico a viver consigo, e vamos ter uma criada.

– Ah, meu filho... falar é fácil. Veremos quando chegar a altura.

– Que altura? Eu tenho quase vinte e três anos.

– Sim... não és dos que se casam cedo. Mas daqui a três anos...

– Estarei consigo na mesma.

– Veremos, meu filho, veremos.

– Mas a mãe não quer que eu case?

– Não gostaria de pensar que vais continuar pela vida fora sem ninguém para tomar conta de ti e te fazer... não, não gostaria...

– Acha então que devo casar-me?

– Mais cedo ou mais tarde, todos os homens devem casar-se.

– Mas preferia que fosse mais tarde.

– Será difícil... muito difícil. É como o povo diz:


«Quem casa filho, perde um filho;

quem casa filha, ganha um filho.»


– E pensa que eu deixaria uma mulher afastar-me de si?

– Bem, não poderias pedir-lhe que casasse contigo e com a tua mãe – sorriu Mrs. Morel.

– Ela que fizesse o que quisesse... desde que não interferisse.

– Não o faria... até te ter apanhado... Mas depois verias...

– Então nunca vou ver. Nunca me casarei enquanto a tiver a si... Nunca.

– Mas eu não gostaria de te deixar sem ninguém, meu filho – disse Mrs. Morel, chorando.

– A mãe não vai deixar-me. A mãe tem... cinquenta e três anos! Dou-lhe até aos setenta e cinco. Ora aí tem, nessa altura, estou eu gordo e com quarenta e quatro anos, e então posso casar com uma mulher séria. A mãe vai ver...!

A mãe sentou-se, a rir.

– Vai deitar-te – disse ela –, vai deitar-te.

– E havemos de ter uma casa bem bonita, a mãe e eu, e uma criada, e tudo será perfeito. Talvez eu venha a ficar rico com a minha pintura.

– Já para a cama!

– E a mãe terá uma caleche puxada por um potro. Imagina-se... uma pequena Rainha Vitória por aí a trotar.

– Já te disse para ires para a cama – disse ela, a rir.

Ele beijou-a e saiu. Os seus planos para o futuro eram sempre os mesmos.

Mrs. Morel ficou a matutar sobre a filha, sobre Paul, sobre Arthur. Lamentava-se por ter perdido Annie. A família era muito unida, e ela sentia que agora tinha de viver, para estar com os filhos. A vida tinha-lhe dado tanta coisa. Paul amava-a e Arthur também. Arthur nunca soube o quanto a amava. Era uma criatura de momentos. Até agora, nunca tinha sido obrigado a compreender--se a si mesmo. O exército disciplinara o seu corpo, mas não a sua alma. Estava de perfeita saúde e era muito atraente. O seu cabelo negro e espesso assentava-lhe bem na cabeça pequena. Havia algo de infantil no seu nariz, algo quase feminino nos seus olhos azuis, muito escuros. Mas tinha a boca vermelha e cheia de um homem, sublinhando o bigode, e o queixo era vigoroso. A boca era do pai, e o nariz e os olhos da família da mãe, gente bonita, de fracos princípios. Mrs. Morel andava ansiosa, preocupada com o filho. Desde que assumisse realmente o uniforme, estava seguro. Mas até onde iria ele?

Na verdade, o exército não lhe tinha feito nenhum bem. Ressentia-se amargamente da autoridade dos oficiais subalternos. Detestava ter de obedecer, como se fosse um animal. Mas tinha o bom senso de não protestar. Por isso, concentrara toda a sua atenção na tentativa de tirar o melhor partido da situação. Sabia cantar, era um companheiro alegre. Por vezes, envolvia-se em situações difíceis, mas eram as dificuldades próprias de um homem, facilmente perdoáveis. Assim, tirava disso o melhor partido, enquanto o seu autorespeito se ia recalcando. Confiava na sua boa aparência e elegância, no seu requinte e boa educação, para conseguir quase tudo o que desejava, e não estava desiludido. No entanto, sentia-se inquieto. Algo parecia atormentá-lo por dentro. Nunca estava quieto, nunca estava sozinho. Com a mãe, mostrava-se bastante humilde. Admirava Paul, amava-o até, mas desprezava-o ligeiramente. E Paul, por sua vez, admirava e amava o irmão, mas desprezava-o ligeiramente.

Mrs. Morel recebera algumas libras da herança do pai, e decidiu comprar a saída do filho do exército. Ele não cabia em si de contente. Parecia um garoto em férias.

Sempre gostara de Beatrice Wyld e, durante a sua licença, reatou a velha amizade. Ela estava agora mais forte e de melhor saúde. Os dois davam frequentemente longos passeios, e Arthur levava-a pelo braço à boa maneira dos soldados, com alguma rigidez. Beatrice tocava piano enquanto ele cantava. Arthur desapertava, então, o colarinho da túnica, ia ficando cada vez mais corado, com o olhar brilhante, e cantava com uma voz máscula de tenor. Depois, sentavam-se juntos no sofá. Ele parecia exibir o seu corpo, e ela mostrava-se bem consciente dele, do peito forte, dos flancos, das coxas cingidas nas calças justas.

Ele gostava de se resvalar para o dialecto quando conversava com ela. Por vezes, Beatrice acompanhava-o e fumava também um cigarro. Noutras ocasiões, tirava apenas umas passas do cigarro dele.

– Não – disse ele uma noite, quando ela lhe pediu o cigarro: – Nem penses. Se quiseres, dou-te um beijo com fumo.

– Quero uma passa, não quero beijo nenhum – respondeu ela.

– Então... é isso que vais ter – disse ele – juntamente com o beijo.

– Quero dar uma passa no teu cigarro – irritou-se ela, tentando tirar-lhe o cigarro dos lábios.

Arthur estava sentado com o ombro encostado ao dela. Ela era pequena e rápida como um raio. Só a custo ele conseguiu escapar-lhe.

– Dou-te um beijo de fumo – disse ele.

– És um descarado impertinente, Arty Morel – disse ela, recostando-se no sofá.

– Deixa-me dar-te um beijo de fumo!

O soldado inclinou-se, sorrindo. O seu rosto estava próximo do dela.

– Olha o disparate! – replicou ela, virando a cabeça.

Arthur aspirou uma longa fumaça, fechou a boca e pôs os lábios perto dela. O seu bigode escuro e bem aparado sobressaía como uma escova. Beatrice olhou para os lábios rubros, pregueados, e depois, subitamente, conseguiu arrancar-lhe o cigarro dos dedos e fugiu para longe. Ele, correndo atrás dela, tirou-lhe a travessa que lhe prendia os cabelos. Ela voltou-se e atirou-lhe o cigarro. Ele apanhou-o, pô-lo na boca e sentou-se.

– Parvalhão! – gritou ela. – Dá-me a minha travessa!

Receava que o seu cabelo, especialmente penteado para ele, se desmanchasse, e conservou as mãos na cabeça. Ele escondeu a travessa entre os joelhos.

– Não a tenho – disse.

Com o riso, o cigarro tremia-lhe entre os lábios enquanto falava.

– Mentiroso! – acusou ela.

– Tão certo como eu estar aqui! – E riu-se, mostrando as mãos.

– Seu demónio desavergonhado! – exclamou ela, precipitando-se para ele, lutando para recuperar a travessa que ele tinha entre os joelhos. Enquanto Beatrice lutava com ele, puxando-lhe as coxas macias e apertadamente cingidas, Arthur riu-se até cair para trás no sofá, sacudido pelas gargalhadas. O cigarro caiu-lhe da boca e quase lhe queimou a garganta. Sob o delicado bronzeado, o sangue subiu à superfície, e ele riu até os seus olhos azuis ficarem cegos e a garganta inchada, quase sufocando. Depois, endireitou-se. Beatrice estava a colocar a travessa no lugar.

– Fizeste-me cócegas, Beat – disse ele, com a voz rouca.

Como um relâmpago, a mão dela, pequena e branca, voou e esbofeteou-lhe a face. Ele ergueu-se de um salto, com um olhar feroz. Entreolharam-se. Lentamente, um rubor subiu às faces dela; baixou os olhos, depois a cabeça. Ele sentou-se novamente, amuado. Ela entrou na cozinha para compor o cabelo. Aí, sozinha, verteu algumas lágrimas, não sabendo bem por que razão.

Quando regressou, estava recomposta. Mas era apenas uma capa sobre o seu fogo interior. Arthur, com a cabeleira revolta, continuava amuado no sofá. Beatrice sentou-se diante dele, no cadeirão, e nenhum dos dois falou. O relógio martelava no silêncio, com pancadas secas.

– És uma gatinha arisca, Beat – disse ele devagar, quase como um pedido de desculpas.

– Bem, e tu não devias ser tão atrevido – retorquiu ela.

Seguiu-se novamente um longo silêncio. Ele assobiava para si mesmo, como um homem muito agitado, mas provocador. Subitamente, ela atravessou a sala direita a ele e beijou-o.

– Então, dei ou não dei? – troçou ela.

Ele levantou o rosto para ela, sorrindo de forma singular.

– Dás-me outro? – convidou ele.

– Julgas que não me atrevo? – perguntou ela.

– Coragem! – desafiou-a ele, com a boca estendida na sua direcção.

Deliberadamente, e com um sorriso fremente que parecia espalhar-se a todo o corpo, ela colocou a boca sobre a dele. Imediatamente, os braços de Arthur se fecharam em torno dela. Assim que o longo beijo acabou, ela afastou a cabeça, e meteu os dedos delicados no pescoço dele, por dentro do colarinho aberto. Depois, fechando os olhos, abandonou-se de novo num beijo.

Agia agora de livre vontade. O que desejava fazer, fizera-o e não responsabilizava ninguém.

Paul sentia a vida mudar à sua volta. As condições da juventude tinham desaparecido. Agora, a sua era uma casa de pessoas adultas. Annie era uma mulher casada, Arthur seguia o seu próprio prazer de um modo que a família ignorava. Durante muito tempo, tinham vivido em casa, saindo para passar o tempo. Mas agora, para Annie e Arthur, a vida desenrolava-se fora de casa da mãe. Só vinha a casa de férias ou para descansar. Por isso, pairava no ar aquela sensação estranha de vazio, como se os passarinhos tivessem levantado voo. Paul andava cada vez mais inquieto. Annie e Arthur haviam partido. Ele estava ansioso por lhes seguir o exemplo. No entanto, a casa era, para ele, ao lado de sua mãe. E, contudo, havia algo mais, algo cá fora, algo que ele desejava.

Andava cada vez mais desassossegado. Miriam não o satisfazia. O seu antigo desejo, quase loucura, de estar com ela, enfraquecera. Por vezes, encontrava Clara em Nottingham, por vezes acompanhava-a a reuniões, por vezes via-a em Willey Farm. Mas ultimamente a situação tornara-se constrangedora. Havia um triângulo de antagonismo entre Paul, Clara e Miriam. Com Clara, ele adoptava um tom vivo, mundano e trocista que era muito desagradável para Miriam. Não lhe importava o que acontecera antes. Ela podia ser íntima e estar triste com ele. Depois, assim que Clara aparecia, tudo desaparecia, e ele representava para a recém-chegada.

Miriam disfrutara de uma bela noite na companhia de Paul, sentados no feno. Ele estivera ocupado na cavalariça e, quando acabou, veio ajudá-la a colocar o feno em pequenos molhes. Depois, falou-lhe das suas esperanças e desesperos, e toda a sua alma parecia estar ali, desnuda diante dela. Ela sentiu-se como se visse nele a própria essência trémula da vida. A Lua despontou; regressaram juntos a casa; parecia que ele a procurara porque precisava desesperadamente dela, e ela escutou-o, deu-lhe todo o seu amor e confiança. A Miriam parecia que ele lhe trouxera o melhor que havia em si para guardar, e que ela o guardaria enquanto vivesse. Não, o céu não cuidaria das estrelas melhor e mais eternamente do que ela guardaria o que de bom havia na alma de Paul Morel. Entrou em casa sozinha, sentindo-se exaltada, satisfeita com a sua confiança.

E depois, no dia seguinte, Clara chegou. Estava combinado tomarem o chá no campo de feno. Miriam viu a tarde vestir-se de dourado e depois de sombras. Durante todo esse tempo, Paul brincava com Clara. Fazia montes de feno cada vez maiores sobre os quais saltavam. Miriam não se interessava pelo jogo e manteve-se afastada. Edgar, Geoffrey, Maurice, Clara e Paul não paravam de saltar. Paul venceu, pois era muito leve. O sangue de Clara estava inflamado. Ela corria como uma amazona. Paul adorava a forma determinada como ela se precipitava para o monte de feno e saltava, aterrando do outro lado, com os seios sacudidos e o cabelo espesso em desalinho.

– Tocaste! – gritou ele. – Tocaste!

– Não toquei nada! – dardejou ela, voltando-se para Edgar. – Não toquei, pois não? Não achas que passei bem?

– Não sei. – E Edgar riu-se.

Nenhum deles sabia dizer.

– Mas tu tocaste – insistiu Paul. – E perdeste.

– Não toquei! – gritou ela.

– Tão claro como água – teimou Paul.

– Dá-lhe um puxão de orelhas por mim – gritou ela a Edgar.

– Não – disse Edgar a rir –, não me atrevo. Tens de ser tu a fazê-lo.

– Nada vai alterar o facto de teres tocado – insistiu Paul, trocista.

Ela estava furiosa. O seu pequeno triunfo diante de homens e rapazes desvanecera-se. Ela esquecera-se de si durante o jogo. Agora, ele queria humilhá-la.

– Acho que és desprezível! – disse-lhe ela.

Ele riu novamente, de um modo que torturou Miriam.

– Eu já sabia que não conseguias saltar aquele monte – provocou Paul.

Clara voltou-lhe as costas. Contudo, todos podiam ver que a única pessoa que ela escutava, ou da qual estava consciente, era ele, e ele dela. Agradava aos homens assistir a esta batalha entre eles. Mas Miriam torturava-se.

Via agora que Paul podia escolher o inferior em vez do superior. Ele conseguia ser infiel a si próprio, infiel ao verdadeiro e profundo Paul Morel. Havia o perigo de ele se tornar frívolo, de correr atrás das suas satisfações como qualquer Arthur, ou como o seu próprio pai. Pensar que ele pudesse desperdiçar a sua alma em troca desta irreverente relação de trivialidade com Clara era algo que atormentava Miriam. Caminhava amargurada e em silêncio, enquanto os outros dois brigavam entre si e Paul se divertia.

Mais tarde, embora se recusasse a admiti-lo, Paul sentiu-se envergonhado de si mesmo e prostrou-se diante de Miriam. Então, de novo se revoltou.

– Não é religioso ser-se religioso – disse. – Considero que um corvo é religioso quando cruza os céus. Mas só o faz porque se sente levado para onde vai, não porque pense que está a ser eterno.

Mas Miriam sabia que uma pessoa podia ser religiosa em tudo, ter Deus, fosse Ele quem fosse, presente em tudo.

– Não acredito que Deus saiba assim tanto sobre Si mesmo – bradou Paul. – Deus não sabe as coisas, Ele é as coisas... E estou certo de que não é sentimental.

A ela parecia-lhe que Paul tentava pôr Deus do seu lado, porque queria que as coisas fossem à sua maneira e desejava apenas o seu prazer. Travou-se uma longa batalha entre ambos. Ele era-lhe absolutamente infiel até mesmo na sua presença; depois ficava envergonhado, arrependido, para logo em seguida a odiar e fugir novamente. Essa era a situação eternamente repetida.

Ela irritava-o até ao mais fundo da sua alma. Depois, ali ficava, triste, pensativa, em adoração. E ele fazia-a sofrer. Metade do tempo, ele sofria por ela, metade do tempo, odiava-a. Ela era a sua consciência, e ele sentia que, de algum modo, tinha uma consciência que era de mais para si. Não podia deixá-la, porque, de certa forma, ela detinha em seu poder o melhor que havia nele. Não podia ficar com ela, porque ela não recebia tudo o resto, o que vinha por acréscimo, e eram três quartos. Por isso, desgastava-se em crueldade para com ela.

Quando ela fez vinte e um anos, ele escreveu-lhe uma carta que apenas podia ter sido escrita para ela.

«Será que devo escrever-te uma carta de aniversário? Parece um pouco pernicioso fazê-lo deliberadamente, não achas? Porque é certo que vou ser presunçoso e sentencioso.» Seguia-se então uma boa dose de presunção:

«A minha última carta preparava-te, não é verdade, para as alegrias da idade que se aproximava. Não te sentes como uma herdeira ao tomar posse da sua herança? É que agora, tornas-te publicamente dona de ti mesma. Querias mais?... Impossível!»

Paul começava a sentir o sentimento de culpa a torturá-lo. Parecia despedaçado por dentro, como se não pudesse manter-se de pé, mas devesse esforçar-se por não cair.

«Deixa-me falar do nosso velho e desgastado amor, pela última vez. Também ele está a mudar, não te parece? É como se o corpo desse amor tivesse morrido, deixando-te a sua alma invulnerável! Sabes, eu posso dar-te um amor espiritual, como sempre fiz du-rante estes longos, longos anos; mas não uma paixão encarniçada. Sabes, tu és uma freira. Eu dei-te aquilo que teria dado a uma freira sagrada... como um monge místico dá a uma freira mística; certamente que o estimas mais. No entanto, lamentas... não, lamentaste, melhor dizendo... o outro. Em todas as nossas relações, não entra o corpo. Não estou a falar-te através dos sentidos... mas através do espírito. É por isso que não somos capazes de amar no sentido comum. Muitas vezes, quando me dirijo a ti, não te olho de frente, porque, vê se entendes, eu não falo para os teus olhos, embora eles sejam escuros e belos, não falo para os teus ouvidos, ocultos sob uma delicada mecha de cabelo sedoso... mas para o teu íntimo, para lá de tudo isso. E assim continuarei a fazer a vida inteira, se o destino não intervier. Estás a ver? Compreendes agora porque só te beijo debaixo do azevinho. Entendes? E eu, será que entendo? Será talvez melhor, pensarás tu. Eu acho que sou demasiado educado, demasiado civilizado. Acho que muita gente o é.

«Tu ocupas um lugar na minha natureza que ninguém mais poderia preencher. Tu tens desempenhado um papel fundamental no meu desenvolvimento. E esta dor, que tem sido como uma nuvem ensombrando as nossas almas, não se começa ela a dissipar? A nossa não é uma afeição banal. E, no entanto, somos mortais, e viver lado a lado um com o outro seria terrível, pois, de algum modo, contigo não posso já ser trivial e, sabes, estar sempre para além deste estado mortal seria perdê-lo. Se as pessoas casam, devem viver juntas como seres humanos afectuosos que podem ser banais um com o outro sem se sentirem estranhos... não como duas almas. É assim que penso.

«Talvez me case nos próximos anos. Terá de ser uma mulher a quem possa beijar e abraçar, a quem possa fazer mãe dos meus filhos, com quem possa falar divertidamente, trivialmente, sinceramente, mas nunca com esta terrível seriedade. Vê como o destino dispôs as coisas. Tu... tu podes casar com um homem que não se derrame como fogo diante de ti. Pergunto-me se entendes... pergunto-me se eu próprio me entendo. Mas tu sabes que estas coisas me perturbam, e agora eis um final para a nossa conversa sobre este assunto. Perdoa-me por tudo o que disse – não é natural, eu sei – e queima esta carta, e não penses nela nem me faças pensar nela, e Deus nos ajude a suportar o fardo de nós próprios.

«Gostarias de um Manual de Ética? Acho que gostarias, sim, e podemos falar disso e aprender... oh, sim. E tu ficarás mais culta, não é? Como vês, a nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro.

«Agora tens vinte e um anos. Estou tão feliz por seres uma mulher independente. És tão forte quanto eu, não és? Sim, ainda mais forte. Oh, se temos de viver, temos de ser sensatos, e não nos podemos permitir ir longe de mais. Devemos ser triviais e procurar a beleza e não a dor, pois de outro modo ficamos numa situação difícil. Vá lá, nem uma palavra sobre os lugares sensíveis, por enquanto.

«Oh, como estaremos alegres na tua festa, no sábado! Eu, agora, não sinto nem um pouco de tristeza dentro do meu coração.

«Será que devo enviar-te esta carta? Duvido. Mas, afinal... é melhor, para que possas compreender. Adeus...»

Miriam leu a carta duas vezes, fechando-a em seguida. Um ano mais tarde, quebrou o selo para a mostrar à sua mãe.

«Tu és uma freira... tu és uma freira» – as palavras penetravam-lhe no coração uma e outra vez. Nada do que ele alguma vez dissera a penetrara tão profunda e firmemente, como se de uma ferida mortal se tratasse.

Ela respondeu-lhe dois dias depois da festa. «A nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro», citou. «Terá esse erro sido meu?»

Quase de imediato, ele respondeu-lhe de Nottingham, enviando-lhe ao mesmo tempo um pequeno Omar Khayyam.

«Vais encontrar muita coisa entre as finas capas deste pequeno livro, mas a lição a retirar é que devemos beber o vinho tinto da vida e deixá-lo embriagar-nos por um instante. Foi essa a razão por que o comprei. Também quero levar-te The Blessed Damosel, para passar um serão contigo e com Rossetti.

«Se o pequeno erro foi teu, perguntas tu. Bem, ninguém erra sozinho! A tua quota-parte do erro foi gloriosa, digna da imortalidade. Mas a minha foi um reconhecimento indomável do barro do vaso... frágil... rígido... confinador. E eu, alternadamente, amei e odiei a matéria mundana de mim mesmo. Quando a amava, era cruel para ti, quando a odiava, era cruel para mim, e para tudo o mais. Não tenho eu a faculdade de ser muito cruel?

«Se, na festa dos teus anos, eu estava ainda algo tempestuoso, foi porque reconheci no teu sol de quarta-feira o brilho lavado do teu longo dia de chuva de terça-feira. Eu não me sento e travo a descoberto as minhas batalhas, como tu fazes. Eu sacudo o inimigo pela garganta e grito-lhe que ele é um vilão e um cão. Com isso, ordeno-lhe que vá para longe de mim e, por um momento, fico em liberdade. Depois, digo a mim mesmo que se tratava de um pobre coitado e rio. Pouco depois, mergulho novamente nas trevas, ao descobrir que ele não se foi nem tão-pouco está morto... E, quando tudo isto se torna insuportável, travo com ele nova luta feroz. Através destas batalhas violentas venço, ou não venço. Sem triunfos, sem Waterloos. Assim, não sofro tão intensamente, e fico menos estável. Afinal de contas, é uma brincadeira, esta coisa de “nós”, não é?

«Estou feliz por teres respondido... És tão calma e natural que me envergonhas. Que oco que eu sou! Tenho de jogar duro... Tu não entendes como eu posso dançar em redor dos meus inimigos, invectivando-os e espiando-os, lançando mão de tudo o que me aparece no caminho, travando contendas ocasionais. Se eu me fechasse a tudo e mantivesse a dor apertada no peito, como tu fazes, morreria de exaustão. Nisso, as nossas naturezas são radicalmente opostas.

«Por isso, estamos tantas vezes em desacordo. Mas, no fundamental, estaremos sempre juntos, penso eu.

«Tenho de agradecer-te pela tua simpatia para com a minha pintura e os meus desenhos. Muitos dos esboços são dedicados a ti. Espero ansiosamente as tuas críticas, que, para minha vergonha e glória, são sempre grandes apreciações. Que deliciosa brincadeira que isso é.

«Adeus. Agora tenho de saldar uma maldita conta. Espero que queimes estas cartas. É minha regra queimá-las todas... pois nenhuma me dá prazer a não ser pela lembrança do prazer a que se referem, e muitas estão cheias de lágrimas secretas das quais devo fugir...»

Este foi o fim da primeira fase dos amores de Paul Morel. Estava agora com vinte e três anos e, embora virgem, o instinto sexual que Miriam refinara nele durante tanto tempo estava agora cada vez mais fortalecido. Muitas vezes, quando falava com Clara Dawes, sentia o sangue engrossar e alvoroçar-se, aquela concentração peculiar no peito, como se algo estivesse vivo lá dentro, um novo ser ou um novo centro de consciência, avisando-o de que, mais cedo ou mais tarde, teria de decidir-se por uma mulher ou por outra. Mas ele pertencia a Miriam. Disso ela estava absolutamente segura, de que ele lhe concedia esse direito.


X

CLARA

COM VINTE E TRÊS anos, Paul mandou uma paisagem sua para a Exposição de Inverno de Newcastle. Miss Jordan tinha-se interessado muito por ele e convidara-o para ir a sua casa, onde conheceu outros artistas. Paul começava a ter ambições.

Uma manhã, estava ele a lavar-se na copa, quando chegou o carteiro. Paul ouviu a mãe numa gritaria desenfreada. Correu para a cozinha e viu-a de pé diante da lareira, a agitar uma carta, como louca, e a gritar «Vivas!». Ficou chocado e assustado.

– Oh, mãe! – exclamou.

A mãe correu para ele e atirou-se-lhe ao pescoço, enquanto agitava a carta, gritando:

– Parabéns, meu filho... Eu sabia que havíamos de vencer!

Paul estava cheio de medo daquela mulher pequenina e bem-comportada, já de cabelos grisalhos, que de repente desatara naquele chinfrim. Até o carteiro voltou para trás a correr, pensando que tinha acontecido alguma desgraça. Viram-lhe o cocuruto do boné por detrás da cortina. Mrs. Morel precipitou-se para a porta.

– O quadro dele ganhou o primeiro prémio, Fred, e foi vendido por vinte guinéus!

– Ena pá! G’ande acontecimento! – disse o carteiro, um rapaz novo, que ela conhecia desde pequeno.

– Quem o comprou foi o major Moreton – acrescentou Mrs. Morel.

– Isso vale muito, olá se vale, Mrs. Morel – disse o carteiro, de olhos azuis a luzir. Não cabia em si de contente por ter sido o portador de tão boas notícias. Mrs. Morel voltou para dentro e sentou-se. Tremia dos pés à cabeça. Paul só tinha medo de que ela tivesse lido mal a carta e sofresse uma desilusão. Releu-a uma, duas vezes, e convenceu-se de que era mesmo verdade. Então, sentou-se, com o coração a pulsar forte, de alegria.

– Oh, mãe! – exclamou.

– Eu não te disse que havíamos de vencer? – disse ela, disfarçando as lágrimas.

Paul tirou a chaleira do lume e escaldou o chá.

– A mãe não imaginava que... – começou ele, hesitante.

– Não, meu filho... assim tanto não... mas esperava bastante.

– Mas tanto não – disse ele.

– Não... isso não... mas sabia que íamos vencer.

E logo recuperou a compostura, pelo menos aparentemente. Ele estava sentado, de camisa aberta, deixando-lhe a descoberto um pescoço quase feminino, de toalha na mão e cabelo em pé.

– Vinte guinéus, mãe! Exactamente o que a mãe precisava para resgatar o Arthur. Agora já não precisa de pedir emprestado. É mesmo à conta.

– Nem pensar nisso, não te vou ficar com o dinheiro todo! – disse ela.

– Ora essa, porquê?

– Porque não devo.

– Bem... então a mãe fica com onze libras... e eu com nove.

Continuaram a discutir a divisão dos vinte guinéus. Ela só queria as cinco libras de que precisava. Ele não concordava de maneira nenhuma. E, assim, a discussão serviu para descarregarem a tensão.

Morel, quando à noite chegou da mina, disse, mal entrou:

– Ouvi dizer qu’o quadro do Paul ganhou o primeiro prémio e foi vindido a Lorde Henry Bentley por cinquenta libras.

– As histórias que as pessoas contam! – exclamou Mrs. Morel.

– Ah! – disse ele. – Eu bem sabia qu’era mentira. Mas impingiram-me que tu é que tinhas contado ò Fred Hodgkisson.

– Como se eu lhe fosse dizer uma coisa dessas!

– Ah! – aquiesceu o mineiro.

Via-se que estava desapontado.

– Lá que ganhou o primeiro prémio... isso é verdade – disse Mrs. Morel.

O mineiro deixou-se cair pesadamente na cadeira.

– Conseguiu! – exclamou o mineiro.

Estava perplexo, de olhar pregado algures, no outro lado da sala.

– Mas, quanto às cinquenta libras, que disparate! – E Mrs. Morel calou-se por um instante. – Enfim... o major Moreton comprou-o por vinte guinéus...

– Vinte guinéus! Num pode ser! – exclamou Morel.

– Pois foi, e bem os merece.

– Tá bem! – disse ele. – Num duvido... Mas vinte guinéus por uma pintura qualquer qu’ele fez numa ou duas horas...! – Depois calou-se, cheio de respeito pelo filho. Mrs. Morel fungou ligeiramente, como se isso não fosse nada de importante.

– E quand’é qu’ele põe as mãos na massa? – perguntou o mineiro.

– Isso não sei... quando o quadro for entregue, suponho.

Fez-se silêncio. Morel olhava para o açucareiro em vez de comer, com o braço enfarruscado e a mão desfigurada pelo trabalho apoiados em cima da mesa. A mulher fingiu não ver quando ele limpou os olhos com as costas da mão, com a cara toda esborratada do pó da mina.

– Pois é, e o outro tamém havia de ter feito o mêmo, se num o tivessem matado – disse ele, em voz baixa.

A lembrança de William retalhou Mrs. Morel como uma lâmina gelada, deixando-a fatigada e a precisar de se ir deitar.

Paul foi convidado para jantar em casa de Mr. Jordan. Ao chegar a casa, disse:

– Mãe, preciso de um smoking.

– Sim, já calculava – disse ela. Estava contente. Fez uma pausa. – Tens o do William – prosseguiu. – Sei que custou quatro libras e dez xelins, e ele só o vestiu três vezes...

– E a mãe gostava que eu o usasse? – perguntou Paul.

– Com certeza. Acho que te deve servir... pelo menos o casaco. As calças têm de ser subidas.

Paul foi para o quarto e vestiu o casaco e o colete. Quando desceu estava bastante bizarro, com o colarinho e o peitilho de flanela e o casaco e colete de cerimónia. Estava-lhe tudo muito largo.

– O alfaiate aperta-te isso – disse a mãe, alisando-lhe o casaco no ombro. – O tecido é muito bonito. Nunca tive coragem para deixar o teu pai usar as calças e bem contente estou agora de o ter feito.

Enquanto passava a mão nas bandas de seda do casaco, pensou no filho mais velho. Mas este outro filho estava bem vivo dentro do fato, e ela passou-lhe a mão nas costas para o sentir. Estava vivo e era dela. O outro estava morto.

Paul foi a vários jantares com o smoking que tinha sido de William. De cada vez que isso acontecia, o coração da mãe exultava de orgulho e alegria. O filho estava lançado na vida. Os botões que ela e os irmãos tinham comprado para William trazia-os ele no peitilho, aplicados numa das camisas de cerimónia de William. Paul tinha uma bela figura. As suas feições eram algo rudes, mas era simpático e muito amável. Não seria propriamente um cavalheiro, mas via-se que estava ali um homem genuíno.

Paul contava à mãe tudo o que se passava, tudo o que se dizia. Era como se ela lá tivesse estado. E ele estava morto por lhe apresentar os novos amigos com quem ia jantar às sete e meia.

– Ir contigo? – disse ela. – Para que hão-de querer eles conhecer-me?

– Mas querem! – exclamou, indignado. – Se querem conhecer-me, como dizem, então querem conhecê-la a si também... porque a mãe é tão inteligente como eu.

– Ir contigo, meu filho... – E riu-se.

Mas começou a poupar mais as mãos. Também as dela estavam muito calejadas do trabalho. A pele estava lustrosa da água quente e os nós dos dedos inchados. Mas começou a ter o cuidado de não as meter em lixívia. Tinha saudades das suas mãos de outros tempos, pequenas e delicadas. E quando Annie começou a insistir com ela para usar blusas mais requintadas, de acordo com a sua idade, ela fez-lhe a vontade. Permitiu até que lhe pusessem um laço preto de veludo no cabelo. Depois, deu uma fungadela sarcástica, mas sabia que lhe ficava bem. Parecia uma senhora da sociedade, afirmava Paul, tão fina como Mrs. Moreton, e muito, muito mais bonita. A família estava a subir na escala social. Só Morel continuava na mesma, ou melhor, piorava lentamente.

Paul e a mãe discutiam longamente sobre a essência da vida. A religião ia desaparecendo da vida de Paul. Tinha-se desembaraçado de todas as crenças que o pudessem aperrear, fizera uma limpeza geral, e chegara mais ou menos ao âmago da fé, ou seja, que cada um deve procurar o bem e o mal dentro de si mesmo, e ir, com paciência, construindo a sua própria ideia de Deus. E, a partir dessa altura, passou a interessar-se mais pela vida.

– Sabe – disse ele à mãe –, não quero pertencer a uma burguesia abastada. Prefiro o povo. Eu sou do povo.

– Mas se fosse outra pessoa a dizê-lo, meu filho, ias ficar furioso. Tu sabes que te consideras igual a qualquer grande senhor.

– No íntimo, talvez – respondeu ele. – Não na classe ou na educação, ou nas maneiras. Mas no íntimo, isso sim.

– Muito bem... Então para quê falar no povo?

– Porque... a diferença entre as pessoas não está nas classes sociais, mas nelas mesmas... Só que às classes médias vão-se buscar as ideias, e ao povo... a própria vida, o calor humano. No povo sentem-se vibrar o ódio e o amor...

– Isso é tudo muito bonito, meu filho... mas então porque não vais conversar com os amigos do teu pai?

– Esses são muito diferentes.

– Não concordo. São gente do povo. Afinal, com que pessoas do povo é que te dás agora? Com as que gostam de trocar ideias, falar das mesmas coisas que a burguesia. As outras não te interessam.

– Mas... há a vida...

– Não creio que a Miriam te dê mais vida do que qualquer rapariga culta... Miss Moreton, por exemplo. Tu é que tens preconceitos de classe, estás a ficar um snob.

A mãe desejava francamente que o filho ascendesse à burguesia, o que ela sabia não ser difícil. E desejava vê-lo, no fim, casado com uma senhora da sociedade.

Empenhava-se agora em combater no filho a sua incessante inquietação. Ele ainda mantinha a ligação com Miriam, não conseguindo nem acabar com tudo nem assumir o compromisso em definitivo, e a indecisão parecia consumir-lhe as energias. Além disso, a mãe pressentia nele uma inclinação inconsciente para Clara, e sendo ela uma mulher casada, Mrs. Morel só desejava que o filho se apaixonasse por alguém em situação menos complicada. Mas Paul, estupidamente, recusava-se a amar, ou sequer a admirar uma rapariga só pelo facto de ela pertencer a uma classe mais elevada.

– Meu filho – disse-lhe a mãe –, nem toda a tua inteligência, nem todo o teu desprezo pelas tradições antigas, nem essa mania de fazeres só o que queres, parecem trazer-te grande felicidade.

– E o que é a felicidade? – exclamou ele. – Para mim não existe! Como é que eu posso ser feliz?

Esta pergunta tão directa perturbou-a.

– Isso só tu podes saber, meu filho. Mas, se pudesses encontrar uma mulher decente que te fizesse feliz... quando te bastava quereres... terias mais sossego para trabalhar... seria muito melhor para ti.

Paul franziu o sobrolho. A mãe pusera o dedo em cheio na ferida chamada Miriam. Ele afastou os cabelos da testa, com o olhar incendiado de dor.

– Isso é fácil de dizer, mãe – gritou. – Isso é a cartilha de todas as mulheres... paz de espírito e conforto físico. Para mim, isso não vale nada.

– Ah, não? – retorquiu a mãe. – Se calhar achas que o teu desencanto é divino, não?

– Acho... Lá da divindade não quero saber. Mas diabos levem a sua felicidade! Desde que se tenha uma vida cheia, não interessa se é ou não de felicidade. Receio que a sua felicidade me enchesse de tédio.

– Tu nem sequer tentas – disse a mãe. E, de repente, toda a dor que sentia por ele explodiu. – E isso é importante! – gritou ela. – Tinhas obrigação de ser feliz, tinhas obrigação de tentar ser feliz, de viver feliz. Como é que eu ia ficar, sabendo que eras infeliz?

– A sua vida foi suficientemente má, Mater, mas não a deixou muito pior do que os que foram mais felizes. Julgo que se saiu até muito bem. Comigo passa-se o mesmo. Não acha que me estou a sair bem?

– Não, meu filho, não estás. Batalhar... batalhar... e sofrer... é tudo o que fazes, pelo que eu vejo...

– E porque não, querida mãe? É o melhor que há a fazer...

– Não, não é! As pessoas têm obrigação de ser felizes!

Mrs. Morel tremia dos pés à cabeça. Discussões destas repetiam-se sempre que a mãe parecia querer lutar pela vida do filho, opondo-se à sua vontade de morrer. Paul abraçou-a. Ela estava doente, metia dó.

– Deixe lá, mãezinha! – murmurou Paul. – Desde que a vida não nos pareça mesquinha e miserável, o resto não importa... que seja feliz ou infeliz.

Ela apertou-o contra o peito.

– Mas eu quero que sejas feliz – disse, pateticamente.

– Oh, mãezinha adorada... diga antes que quer que eu viva.

Mrs. Morel sentiu o coração morrer por ele. Sabia que, por este andar, ele não duraria muito. O seu desleixo pungente, a propensão para o sofrimento, a vida que levava, eram tudo formas lentas de suicídio. Dilacerava-se-lhe o coração só de pensar. Odiava Miriam com toda a força da sua determinação por tão subtilmente ter minado a alegria de Paul. Não lhe interessava que não o fizesse por mal. Fazia-o, e ela odiava-a.

Queria tanto que o filho se apaixonasse por uma rapariga à sua altura – educada e forte. Mas ele não olhava para ninguém que considerasse superior. Parecia gostar de Mrs. Dawes. Pelo menos esse sentimento era genuíno. A mãe não se cansava de rezar por ele, para que não se perdesse. Era tudo o que pedia: não pela sua alma ou pela rectidão do seu carácter, mas para que não se perdesse. E, enquanto ele dormia, passava horas a fio a pensar nele e a rezar por ele.

Paul afastou-se de Miriam imperceptivelmente, sem o saber. Arthur só saiu do exército para se casar. O bebé nasceu seis meses após o casamento. Mrs. Morel arranjou-lhe um novo emprego na mesma firma onde trabalhara antes, a ganhar vinte e um xelins por semana. Com a ajuda da mãe de Beatrice, mobilou-lhe uma casinha de dois quartos. Agora estava definitivamente apanhado. Não importava barafustar e espernear, estava bem preso. Andou mal-humorado durante algum tempo, mostrando-se insuportável com a mulher que o amava; não ligava quando o bebé, que era franzino, chorava ou dava preocupações. Fazia à mãe queixas intermináveis, mas ela limitava-se a dizer: «Bem, meu filho, o responsável és tu, tens de aprender a tirar partido da situação.» E, finalmente, ganhou juízo. Agarrou-se ao trabalho, assumiu as suas responsabilidades, compreendeu que pertencia à mulher e ao filho e aprendeu a tirar o melhor partido da situação. Nunca se tinha sentido muito ligado à família, e agora afastava-se de vez.

Os meses iam passando devagar. Através de Clara, Paul tinha-se mais ou menos relacionado com os socialistas, as sufragistas e os sindicalistas de Nottingham. Um dia, uma amiga dele e de Clara, que morava em Bestwood, pediu-lhe que levasse um recado a Mrs. Dawes. Ao fim da tarde, Paul foi até Bluebell Hill, metendo por Sneinton Market, e lá conseguiu encontrar a casa numa ruela empedrada a granito e com passeios de tijolo azul-escuro, rugoso. Um degrau separava a porta da tosca calçada, servindo também para as pessoas limparem os pés e baterem com as botas para sacudirem a lama. A pintura castanha da porta estava tão deteriorada que se via a madeira por baixo da tinta a descascar. Paul ficou na rua, e bateu à porta. Soaram passos pesados e, por cima da sua cabeça, surgiu uma mulher alentada, por volta dos sessenta anos. Ele olhou para ela do passeio. A mulher tinha uma expressão severa.

Mandou-o entrar para a sala, que dava directamente para a rua. Era um quartinho pequeno, abafado e tétrico, com móveis de mogno e descomunais retratos a carvão de gente já falecida. Mrs. Radford saiu da sala com o seu passo imponente, quase marcial. Clara entrou logo a seguir e, ao vê-lo, corou até às orelhas, o que o deixou atrapalhado. Era como se não lhe agradasse que ele a tivesse vindo encontrar no seu ambiente doméstico.

– Parecia-me impossível ser a tua voz – disse ela.

Mas agora, perdido por cem, perdido por mil... e levou-o do mausoléu directamente para a cozinha.

A cozinha era também escura e acanhada, mas encontrava-se atafulhada de rendas brancas. A mãe tinha ido sentar-se de novo junto ao aparador, às voltas com uma emaranhada teia de renda. À sua direita, um monte solto de linha de algodão; à esquerda, tufos e mais tufos de espiguilha de renda; e, à sua frente, sobre o tapete da lareira, a tal teia emaranhada. Os fios encaracolados, puxados do emaranhado de rendas, espalhavam-se por cima do guarda-fogo e pela chaminé. Paul não se atrevia a dar um passo, não fosse tropeçar nos rolos de linha branca.

Em cima da mesa estava uma dobadoura. Havia ainda um maço de cartões castanhos e quadrados para enrolar a renda, uma caixinha de alfinetes e, em cima do sofá, um outro monte de renda.

Havia rendas por todo o lado, e a cozinha era tão escura e quente que fazia sobressair ainda mais a nuvem branca, rendada.

– Já que cá tá, num repare d’eu continuar a trabalhar – disse Mrs. Radford. – Sei que tá tudo atravancado, mas faça o favor de s’assentar.

Clara, muito atrapalhada, encostou à parede uma cadeira, para ele se sentar, em frente aos novelos de brancura, e sentou-se ela no sofá, envergonhada.

– Quer beber uma cerveja preta? – perguntou Mrs. Radford.

– Clara, vai buscar-lhe uma cerveja.

Paul protestou, mas Mrs. Radford insistiu.

– Tá cum ar de quem precisa – disse ela. – Nunca anda com melhores cores do qu’isso?

– É da minha pele, é muito grossa e não deixa ver o sangue à transparência – respondeu ele.

Clara, envergonhada e aborrecida, trouxe-lhe uma garrafa de cerveja e um copo. Paul deitou o líquido preto no copo.

– Bem – disse ele, erguendo o copo –, à nossa!

– Agradecida – disse Mrs. Radford.

Paul bebeu um gole.

– E pode fumar à vontade, desde que num deite fogo à casa – acrescentou Mrs. Radford.

– Obrigado – respondeu Paul.

– Num precisa de m’agradecer – disse ela. – Até vou gostar de sintir o cheirinho do tabaco aqui em casa outra vez. Uma casa só de mulheres é tão triste com’uma casa sem lareira, acho eu. Num sou de querer o meu canto só pra mim. Inté gosto de ver um home a andar por aí... se ele for alguma coisa que se veja.

Clara começou a trabalhar. A dobadoura rodava, chiando mansamente, e a renda branca saltava-lhe por entre os dedos para o cartão. Quando o cartão ficou cheio, ela partiu a espiguilha e, com um alfinete, prendeu a ponta à renda já enrolada. Depois, meteu novo cartão na dobadoura. Paul observava-a. Estava sentada com as costas muito direitas, magnífica. Tinha o pescoço e os braços desnudados. O sangue aflorava-lhe à face, por baixo da orelha, e mantinha a cabeça baixa, de vergonha e humilhação. Os olhos estavam pregados no trabalho. Os seus braços eram de um tom mate e pujantes de vida, comparados com a renda branca. As suas mãos, grandes e bem tratadas, trabalhavam em movimentos cadenciados, como se nada pudesse apressá-las. Ele, sem se aperceber, não tirava os olhos dela. Era a linha do seu pescoço, prolongando-se desde o ombro, quando ela se curvava; era o seu cabelo castanho-escuro; era o movimento dos seus braços resplandecentes.

– A Clara falou-me de si – continuou a mãe. – Trabalha na Jordan, não é? – E continuou a fazer renda sem parar.

– É, sim.

– Inda m’alembra de quando o Thomas Jordan costumava pedir-me caramelos.

– Ah, sim? – disse Paul, sorrindo. – E ele merecia-os?

– Umas vezes sim, outras não... sobretudo para o fim. Ele é dos que levam tudo e num dão nada, isso é qu’ele é... ou, pelo menos, costumava ser.

– Eu acho-o uma pessoa muito decente.

– Bom... folgo em saber.

Mrs. Radford olhava Paul sem pestanejar. Havia nela uma determinação que lhe agradava. A cara estava flácida, mas os olhos eram calmos, e havia nela um vigor que refutava a velhice, fazendo as rugas e as peles parecerem um mero anacronismo. Tinha a força e o sangue-frio de uma mulher na pujança da vida. Continuou a fazer renda com movimentos lentos e muita dignidade. A fofa teia amontoava-se-lhe inevitavelmente no avental, tombando depois pouco a pouco para o chão, ao seu lado. Os braços eram bem torneados, mas luzidios e amarelados, de marfim velho, e não tinham aquele tom mate que tornava, a seu ver, tão fascinantes os de Clara.

– Anda atão c’a Miriam Leivers? – perguntou a mãe de Clara.

– Bem... – disse ele.

– É boa rapariga – prosseguiu Mrs. Radford. – Boa rapariga, mas um bocado fedúncia cá prò meu gosto.

– Sim, talvez... – concordou Paul.

– Só fica satisfeita quando tiver asas pra poder voar por cima da cabeça de toda a gente – disse ela.

Clara interrompeu-os, e Paul deu-lhe o recado que o levara lá. Ela falava com ele com humildade, vendo-se surpreendida no seu antro de miséria. Ao vê-la assim, humilde, era como se ele a esperasse, ansioso.

– Gostas de dobar? – perguntou Paul.

– O que é que uma mulher há-de fazer? – respondeu ela amargamente.

– É cansativo?

– Mais ou menos. E não o é todo o trabalho feminino? Essa é outra das partidas que os homens nos pregaram, desde que conquistámos o nosso lugar no mundo do trabalho.

– Atão... num fales mal dos homes – disse a mãe. – S’as mulheres num fossem umas parvas, os homes num eram tão maus, é o qu’eu digo... Olha que nenhum home me tratou mal que não levasse o troco... Mas que são uns danados, lá isso são, num adianta negar.

– Mas boas pessoas, não concorda? – perguntou Paul.

– Bem... são um bocado diferentes das mulheres – disse ela.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – perguntou ele a Clara.

– Acho que não – respondeu ela.

– Gostava, pois! – exclamou a mãe. – Ficava toda contente se voltasse. Num lhe ligue. Ela é toda cheia de nove horas, mas qualquer dia inda vai morrer de fome.

Clara passava vergonhas com a mãe. Até Paul sentia os olhos abrirem-se-lhe de espanto. Será que não devia mesmo ligar aos remoques de Clara? Ela trabalhava com afinco. E ele sentiu um arrepio de prazer só de pensar que ela podia precisar da sua ajuda. Parecia tão carente e privada de tanta coisa. O seu braço, que não fora feito para se amarrar a um mecanismo, movia-se mecanicamente; e a cabeça, que não fora feita para andar curvada, curvava-se sobre a renda. Parecia presa à dobadoura, entre os desperdícios de uma vida. Era muito duro para ela ver-se dispensada pela vida, como se já não tivesse préstimo. Não admira que protestasse tanto.

Clara acompanhou-o à porta. Ele ficou parado na ruela miserável, a olhar para ela. Era tão soberba na figura e no porte que fazia lembrar Juno destronada. De pé, na soleira da porta, fechava os olhos à rua e à miséria que a rodeava.

– Vais a Hucknall com Mrs. Hodgkinson?

Paul dizia coisas sem sentido, de olhos postos nela. Os olhos cinzentos de Clara encontraram finalmente os seus. Estavam mudos de humilhação, contritos, com uma espécie de submissão de escrava. Ele ficou surpreendido, sem saber o que fazer. Sempre a tinha imaginado altiva e poderosa.

Quando dali saiu, só lhe apetecia fugir. Dirigiu-se para a estação, como um sonâmbulo, e chegou a casa sem consciência de já não estar na rua dela.

Estava convencido de que Susan, a supervisora da Espiral, se ia casar, e no dia seguinte perguntou-lho.

– Diz-me uma coisa, Susan, ouvi dizer que te vais casar. É verdade?

Susan corou.

– Quem te disse? – perguntou ela.

– Ninguém. Apenas ouvi dizer que estavas a pensar...

– Lá isso estou... Mas não precisas de contar a ninguém. E, ainda por cima, quem me dera não estar...!

– Julgas que eu acredito nisso, Susan?

– Pois podes acreditar. Antes queria mil vezes ficar como estou.

Paul estava chocado.

– Porquê, Susan?

A rapariga estava ruborizada e fulminava-o com o olhar.

– Porque sim!

– E tens mesmo de casar?

Em resposta, ela limitou-se a olhar para ele. Paul tinha uma candura e uma gentileza que faziam as mulheres confiar nele. Compreendeu o que ela queria dizer.

– Ah, desculpa – disse ele. Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

– Mas verás que tudo vai correr bem. Tenta ver as coisas pelo lado melhor – disse ele, melancólico.

– Nem posso fazer outra coisa.

– Podes sim, podes dar cabo da tua vida. Esforça-te por seres feliz.

Paul arranjou novo pretexto para ir a casa de Clara.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – disse ele.

Ela pousou o trabalho, apoiou os braços belíssimos em cima da mesa e fitou-o sem responder. Pouco a pouco, um rubor subiu-lhe às faces.

– Porquê? – perguntou.

Paul sentiu-se constrangido.

– Bem... É que a Susan está a pensar em ir-se embora. Clara continuou a dobar. A espiguilha branca pulava e saltava para o cartão. Ele aguardou. Sem levantar a cabeça, ela disse por fim, numa voz desusadamente baixa:

– Falaste com alguém sobre o assunto?

– Nem uma palavra... Só contigo.

Seguiu-se novo e longo silêncio.

– Quando puserem o anúncio, concorro – disse ela.

– Tens de concorrer antes. Eu digo-te quando.

Ela continuou a fazer girar a dobadoura e não o contrariou.

Clara voltou para a Jordan. Algumas das funcionárias mais antigas, entre elas Fanny, lembravam-se dela de outros tempos e não guardavam boas memórias. Clara sempre fora muito altiva, uma mulher reservada e superior. Nunca se misturava com as colegas e sempre que tinha oportunidade de as criticar, fazia-o com frieza e extrema delicadeza, o que as fazia sentirem-se mais insultadas do que agastadas. Para com Fanny, a pobre corcunda hipersensível, Clara fora sempre extremamente amável e gentil, o que fazia Fanny chorar ainda mais do que as línguas grosseiras das outras supervisoras.


CONTINUA

Era ali, naquele momento, que ela se alimentava de vida para toda uma semana. Ele mandou-a copiar o poema Le Balcon, de Baudelaire e, em seguida, leu-o para ela ouvir. A voz dele era suave e acariciante, mas nos crescendos tornava-se brutal. Paul tinha um modo apaixonado e, ao mesmo tempo, amargurado de arreganhar os lábios e mostrar os dentes sempre que as palavras o levavam ao rubro. E assim fazia agora, fazendo sentir a Miriam que ele a estava a espezinhar. Ela nem se atrevia a olhar para ele, mantendo-se sentada e de cabeça baixa. Não entendia por que razão ele se deixava arrebatar por tão tumultuosas fúrias, e isso deixava-a desfeita. Ainda por cima, nem sequer gostava muito de Baudelaire... nem de Verlaine.


«Olha-a, a cantar pelos campos,

Filha solitária das montanhas...»


Isto sim, alimentava-lhe a alma... tal como a «Linda Inês». E também:


«Caía bela a noite, doce e pura,

Em suspiros sagrados e serenos, como freira...»


Estes versos, sim, eram como ela. E ele, ali à sua frente, arrancando da garganta, em grito rouco:


«Tu te rappelleras la beauté dês caresses.»3


O poema terminou e Paul tirou os pães do forno, metendo-os no alguidar, os queimados no fundo e os bons por cima. A carcaça ressequida continuava na copa embrulhada num pano húmido.

– A Mater não precisa de saber até amanhã de manhã – disse ele. – Já não se vai zangar tanto como esta noite.

Miriam foi à estante e viu as cartas e postais que ele tinha recebido, e quais os livros que lá tinha, e tirou um em que ele se mostrara interessado. Depois, Paul desligou o gás e saíram. Paul nem se preocupou em fechar a porta à chave.

Quando voltou já faltava um quarto para as onze. A mãe estava sentada na cadeira de baloiço e Annie num banquinho junto da lareira, com o cabelo a cair-lhe pelas costas abaixo e os cotovelos apoiados nos joelhos, taciturna. Em cima da mesa, a carcaça da discórdia, já desembrulhada. Paul entrou ofegante. Ninguém abriu a boca. A mãe lia a gazeta local. Ele despiu o casaco e foi sentar-se no sofá. A mãe chegou-se para o lado com brusquidão, deixando-o passar. Ninguém abria a boca. Ele já não sabia como havia de estar. Durante alguns minutos, fingiu ler um bocado do jornal que encontrou em cima da mesa. Mas depois disse:

– Esqueci-me daquele pão no forno, mãe.

Nenhuma das mulheres lhe respondeu.

– Bem – continuou ele –, são só dois dinheiros e meio. Se quiser, eu pago.

Amuado, pôs três moedas em cima da mesa e empurrou-as na direcção da mãe. Ela voltou a cabeça para o outro lado. A boca continuava crispada.

– Pois é – disse Annie –, tu nem fazes ideia de como a mãe se sente mal!

E a rapariga continuou carrancuda a olhar para o lume.

– Sente-se mal porquê? – perguntou Paul, no seu tom autoritário.

– Essa agora – disse Annie. – Viu-se aflita para chegar a casa.

Paul olhou com atenção para a mãe. Parecia de facto doente.

– Viu-se aflita para chegar a casa porquê? – perguntou ele, ainda agreste. A irmã não respondeu.

– Vim encontrá-la aqui sentada, branca como a cera – disse Annie, com lágrimas na voz.

– Diga lá porque foi! – insistiu Paul, já de testa franzida e olhos empolgadamente dilatados.

– Era o suficiente para deixar qualquer pessoa doente – disse Mrs. Morel. – Carregar nos braços com as compras todas... a carne, os legumes e as cortinas...

– Para que carregou com tudo? Não era preciso.

– E então quem é que carregava?

– Mandava a Annie ir buscar a carne.

– Claro que eu tinha ido buscar a carne. Mas como é que eu podia adivinhar? Tu andavas a passear com a Miriam, em vez de estares em casa quando a mãe chegou.

– Mas o que é que lhe aconteceu? – perguntou Paul à mãe.

– Deve ser o coração – respondeu ela. De facto, tinha os lábios azulados.

– E já tinha sentido isso alguma vez?

– Já... e até mais de uma vez.

– Então porque não me disse, e porque é que não foi ao médico?

Mrs. Morel mexeu-se na cadeira, irritada com a prelecção.

– Tu nunca reparas em nada – disse Annie. – Só pensas em andar com a Miriam.

– Ah, sim? E tu e o Leonard... não é a mesma coisa?

– Eu cheguei a casa faltava um quarto para as dez.

Seguiram-se uns minutos de silêncio.

– Nunca imaginei que ela te deixasse tão distraído, ao ponto de queimares uma fornada inteira de pão – disse Mrs. Morel com azedume.

– A Beatrice também cá estava.

– Acredito. Mas nós sabemos porque é que o pão se queimou.

– E porque foi? – disse ele intempestivo.

– Porque tu estavas todo entretido com a Miriam – replicou Mrs. Morel acalorada.

– Pois fique sabendo que não foi nada por isso! – ripostou ele, sacudido.

Estava desgostoso e infeliz. Pegou no jornal e começou a ler. Annie, com a blusa já desabotoada e duas longas tranças, foi para cima, para a cama, dando-lhe secamente as boas-noites.

Paul continuou a fingir que estava a ler. Por um lado, sabia que a mãe lhe queria pregar um sermão. Mas, por outro, queria saber o que a pusera naquele estado, e estava preocupado. Por isso, em vez de ir a correr para a cama, como era sua vontade, ficou à espera. Sentia-se a tensão no silêncio. O tiquetaque do relógio soava forte.

– O melhor é ires deitar-te antes de o teu pai chegar – disse Mrs. Morel, com rispidez. – E se quiseres comer alguma coisa, tens de ir buscá-la.

– Não quero nada.

A mãe costumava preparar-lhe qualquer coisa para a ceia às sextas-feiras à noite, que era a noite de luxo dos mineiros. Mas ele estava demasiado irritado para ir buscar a ceia à despensa, e ela sentiu-se insultada.

– Se eu quisesse que fosses a Selby numa sexta-feira à noite, já estou a imaginar a cena – disse Mrs. Morel. – Mas quando é ela a vir buscar-te, nem sabes o que é cansaço. E já nem comes nem bebes.

– Não posso deixá-la voltar sozinha.

– Ah, não podes... E então para que é que ela vem?

– Não sou eu que lhe peço.

– Ela não vinha se tu não a quisesses cá...

– E se eu a quiser...? Hem? – repontou ele.

– Nada a opor, se fosse sensato ou razoável. Mas calcorrear milhas e milhas por cima dum lamaçal e voltar à meia-noite, para quem tem de ir logo pela manhã para Nottingham...

– E, se não tivesse de ir, para si era a mesma coisa.

– Pois era, porque isto não faz sentido nenhum. Ela é assim tão fascinante que tenhas de andar atrás dela para todo o lado? – perguntou Mrs. Morel, com acerado sarcasmo, continuando sentada, com cara de poucos amigos, esfregando o cetim preto do avental em movimentos ritmadamente repetidos. Aquele motu-contínuo quase enlouquecia Paul.

– Eu gosto muito dela – disse ele – mas...

– Gostas então dela! – disse Mrs. Morel, no mesmo tom mordaz. – Pois a mim parece-me que não gostas de mais nada nem de mais ninguém. Para ti, agora, não existe mais ninguém: nem eu, nem a Annie... nada.

– Que disparate, mãe... sabe bem que eu não amo a Miriam... eu... posso garantir-lhe que não a amo... ela não anda de braço dado comigo nem nada, porque eu não quero.

– Então porque é que vais a correr tantas vezes para ao pé dela?

– Porque gosto muito de falar com ela... Nunca disse que não gostava. Mas não a amo.

– E não tens mais ninguém com quem falar?

– Não acerca das coisas de que nós falamos. Há muitas coisas por que a mãe não se interessa e que...

– Que coisas...?

Mrs. Morel estava tão exaltada que Paul começou a gaguejar.

– Ora essa... pintura... livros... A mãe, por exemplo, não gosta de Herbert Spencer.

– Não – foi a resposta concisa. – E tu também não vais gostar, quando tiveres a minha idade.

– Está bem, mas gosto agora... e a Miriam também...

– E como é que sabes – atalhou Mrs. Morel em tom de desafio – que eu não gosto. Já experimentaste perguntar-me?

– Mas eu sei que não gosta, mãe, sabe bem que não lhe interessa discutir se um quadro é ou não decorativo... é-lhe indiferente qual o seu estilo.

– Como sabes que não me interessa... já experimentaste perguntar-me? Alguma vez conversas comigo sobre essas coisas, só para experimentar?

– Mas a mãe sabe bem que para si isso não conta, sabe bem que não.

– Então o que é, diz lá... o que é que conta para mim? – desferiu ela.

Paul franziu a testa, magoado.

– A senhora é velha, mãe, e nós somos novos.

O que ele queria dizer era que os interesses da idade dela não eram idênticos aos da sua. Mas mal acabou a frase percebeu que tinha dito o que não devia.

– Sim, sei muito bem... sou uma velha! E por isso mesmo devo manter-me afastada... já não tenho nada a ver contigo. Tu só me queres para te servir de criada... o resto é com a Miriam.

Ele já não aguentava mais. Instintivamente, apercebeu-se de que ele era toda a vida dela. E, bem vistas as coisas, ela era para ele a coisa mais importante, a única verdade suprema.

– Sabe bem que não é assim, mãe... sabe bem que não é.

O grito dele comoveu-a.

– Pois olha que parece mesmo – disse ela, deixando de certa forma de lado o desespero.

– Não, mãe... na verdade, eu não a amo. Converso com ela... mas é para a nossa casa, para ao pé de si que eu quero vir.

Paul, já sem o colarinho e a gravata, levantou-se para se ir deitar. Quando ia a dar um beijo à mãe, ela passou-lhe os braços em volta do pescoço, escondeu a cara no seu ombro e pôs-se a choramingar, com uma voz dorida, tão pouco habitual nela que o fez crispar-se de agonia.

– Eu já não aguento mais. Uma outra mulher talvez... mas ela não... ela não me daria espaço algum... nem um bocadinho...

E imediatamente sentiu que odiava Miriam amargamente.

– E eu nunca... tu sabes, Paul... eu nunca tive um marido... não um de verdade...

Ele acariciou-lhe os cabelos e os seus lábios afloraram o pescoço dela.

– E ela esforça-se tanto para te afastar de mim... ela não é como as outras raparigas.

– Bem, mãe, eu não a amo – murmurou ele, baixando a cabeça e escondendo os olhos no ombro dela, muito infeliz. A mãe deu-lhe um beijo ardente e longo.

– Meu filho! – disse, com a voz trémula de amor. E ele, sem se aperceber, acariciou-lhe suavemente o rosto.

– Pronto – disse a mãe. – Agora vai deitar-te. Senão amanhã de manhã acordas muito cansado.

Enquanto falava, Mrs. Morel sentiu o marido entrar.

– Vem aí o teu pai... vá, já para a cama... – Subitamente, olhou para o filho quase a medo. – Talvez eu esteja a ser egoísta. Se a queres, meu filho, fica com ela.

A mãe estava a comportar-se de uma forma muito estranha, pensou Paul, beijando-a, ainda a tremer.

– Oh, mãe! – disse ele meigamente.

Morel entrou aos tropeções. Trazia o chapéu tombado sobre o canto do olho. Ao transpor a porta, perdeu o equilíbrio. – Outra vez a fazeres das tuas? – disse ele, acintosamente.

As emoções de Mrs. Morel transformaram-se instantaneamente em ódio por aquele bêbado que viera intrometer-se tão intempestivamente.

– Pelo menos, ele está sóbrio – disse ela.

– Hum... hum...! Hum... hum! – fez ele, cinicamente.

Foi ao corredor e pendurou o chapéu e o casaco. Em seguida, ouviram-no descer os três degraus da despensa. Quando voltou trazia na mão uma fatia de empadão de carne de porco. Era o que Mrs. Morel tinha comprado para o filho.

– Isso não é para ti. Se não me podes dar mais de vinte e cinco xelins, certamente não te vou comprar empadão de carne de porco, para tu te regalares depois de teres enchido a barriga de cerveja.

– O quê?... O quê? – rosnou Morel, a cambalear e, num repente, atirou o empadão para a lareira, num acesso de mau génio e mesquinhez.

Paul pôs-se de pé num salto.

– Deite fora o que é seu! – gritou.

– O quê?... O quê? – berrou Morel de imediato, dando um salto atrás e cerrando os punhos. – Vais ver como elas mordem... meu menino!

– Muito bem! – disse Paul, cinicamente, deitando a cabeça de lado. – Então vamos lá ver...!

O que mais gostaria naquele momento era de poder bater em qualquer coisa, não importava o quê. Morel estava semidobrado, de punhos em riste, pronto a atacar.

O jovem estava de pé, com um sorriso nos lábios.

– Zás! – silvou o pai, desferindo um soco no ar com um gesto largo, rente à cara do filho. Apesar de tão próximo, não se atreveu a tocar-lhe realmente, passando-lhe a uma escassa polegada de distância.

– Isso! – disse Paul, de olhos pregados na boca do pai, onde a todo o momento o seu punho acertaria. Estava louco por dar aquele soco, mas ouviu um vago gemido atrás de si. A mãe estava lívida de morte e com a boca toda roxa. Morel saltitava, preparando novo ataque.

– Pai! – disse Paul, bem alto para lhe chamar a atenção.

Morel parou, assustado.

– Mãe! – gemeu o rapaz. – Mãe!

Ela começou a lutar contra si própria. Os seus olhos muito abertos observavam-no, apesar de não se poder mexer. A pouco e pouco ia voltando a si. O filho deitou-a no sofá e foi a correr buscar um pouco de uísque, de que ela por fim bebeu alguns golinhos. As lágrimas rolavam-lhe pela cara abaixo. Enquanto esteve ajoelhado ao lado da mãe não chorou, mas as lágrimas irromperam logo a seguir. Morel, sentado do outro lado da sala com os cotovelos apoiados nos joelhos, fuzilava o filho com o olhar.

– Qu’é qu’ela tem? – perguntou.

– Desmaiou! – respondeu Paul.

– Hum!

O homem mais velho começou a desapertar os atacadores das botas. Depois, foi aos tombos para o quarto. Tinha travado a sua derradeira luta naquela casa.

Paul estava ajoelhado ao lado da mãe, esfregando-lhe as mãos.

– Não fique assim, mãe... não fique assim! – não se cansava ele de repetir.

– Isto não é nada, meu filho – murmurou ela.

Finalmente, Paul levantou-se, foi buscar um grande bocado de carvão e abafou o borralho. Depois arrumou a sala, colocou tudo nos seus devidos lugares, pôs a mesa para o pequeno-almoço e foi buscar a palmatória da mãe.

– Consegue ir para a cama sozinha, mãe?

– Consigo, sim... Eu vou.

– Durma com a Annie, mãe, com ele não.

– Não... vou dormir na minha cama.

– Não durma com ele, mãe.

– Vou dormir na minha cama.

Mrs. Morel levantou-se e Paul desligou o gás, subindo depois a escada atrás dela, com a vela. Ao chegarem ao patamar, ele beijou-a ternamente.

– Boa noite, mãe.

– Boa noite – respondeu ela.

Ele enfiou a cabeça na almofada, num acesso de desespero. E, no entanto, sentia paz algures nos recônditos da alma, pois continuava a amar a mãe acima de todas as coisas. Era a paz amarga da resignação.

Os esforços do pai no dia seguinte para o cativar foram para ele uma verdadeira humilhação.

E todos tentaram esquecer o incidente.

2 «Esta manhã os pássaros acordaram-me. Ainda não era dia. Mas a janelinha do meu quarto clareou e logo ficou dourada, e todos os pássaros do bosque irromperam num canto vivo e sonoro.
E a aurora estremeceu. Tinha sonhado contigo. Será que também contemplas a aurora?

Os pássaros acordam-me quase todas as manhãs, e há sempre uma nota de terror no grito dos tordos. Está tão claro...» (N. da T.)

3 «Recordarás a beleza das carícias.» (N. da T.)


IX

A DERROTA DE MIRIAM

PAUL sentia-se descontente consigo mesmo e com tudo o que o rodeava. O seu amor mais profundo dedicava-o à mãe. Não podia suportar a sensação de a ter magoado ou de algum modo ferido o seu amor por ela. A Primavera já se anunciava e, com ela, uma batalha entre ele e Miriam. Este ano Paul tinha muitas queixas contra Miriam e ela estava vagamente consciente desse facto. O velho sentimento que experimentara ao rezar, e lhe segredara que teria de se sacrificar a este amor, misturava-se em todas as suas emoções. No fundo, Miriam não acreditava poder algum dia vir a ter Paul para si. Em primeiro lugar, não acreditava em si mesma: duvidava poder vir a ser o que ele exigiria que ela fosse. Por certo nunca se imaginara a viver a seu lado uma vida de eterna felicidade. O futuro prefigurava-lhe tragédia, dor e sacrifício. E, se no sacrifício era orgulhosa, na renúncia ela era forte; mas não confiava em si mesma para suportar a vida do dia-a-dia. Sentia-se preparada para gestos grandiosos e profundos, gestos dignos de tragédia. Não podia era confiar na sua capacidade de lidar com a pequenez do quotidiano.

As férias da Páscoa iniciaram-se num ambiente feliz. Paul mostrava-se franco, como na realidade o era. Contudo, Miriam sentia que algo iria perturbar aquela paz. No domingo à tarde, deteve-se à janela do seu quarto, olhando os carvalhos do bosque, em cuja folhagem se emaranhavam uns ténues raios de luz sob o resplandecente céu da tarde. Rosetas de folhas de madressilva verde-cinza pendiam frente à janela, algumas, pensou, já em botão. Era Primavera, tempo que Miriam amava e temia ao mesmo tempo.

Ouvindo o ranger do portão, ficou na expectativa. Estava um dia cinzento e luminoso. Paul entrou no pátio com a bicicleta, que reluzia à medida que ele andava. Era hábito tocar a campainha e sorrir em direcção à casa. Hoje, porém, caminhava de lábios cerrados, numa atitude fria e cruel que tinha algo de desprezo e indolência. Ela já o conhecia muito bem e, pela expressão penetrante e reservada do seu rosto jovial, sabia dizer o que se passava no seu íntimo. Havia um tal rigor de frieza no modo como colocou a bicicleta no lugar que o coração de Miriam soçobrou.

Desceu ao andar de baixo, nervosa. Vestia uma blusa nova de malha que, achava ela, lhe assentava muito bem. Tinha uma gola alta, debruada com um folho que lhe lembrava a Rainha Mary da Escócia e lhe dava, pensava ela, um ar encantadoramente feminino e muito digno. Com vinte anos, possuía uns seios bem desenvolvidos e formas voluptuosas. O seu rosto era ainda como uma máscara suave e rica, inalterável. Mas os seus olhos, quando os erguia, eram maravilhosos. Ela tinha medo dele. Ele iria reparar na sua blusa nova.

Paul mostrava-se de disposição dura e irónica, e divertia a família com a descrição de um sermão proferido na Capela Metodista Primitiva por um dos mais conhecidos pregadores da seita. Estava sentado à cabeceira da mesa com o seu rosto versátil e os seus olhos, que conseguiam ser tão belos, brilhando ternamente ou dançando risonhos, assumiam várias expressões, numa imitação das diversas pessoas que caricaturava. A sua veia jocosa sempre a magoara – era demasiado próxima da realidade. Paul era demasiado inteligente e cruel e ela sentia que, quando o seu olhar se enchia, como agora, de feroz ódio trocista, ele não poupava ninguém, nem mesmo a sua própria pessoa. Mas Mrs. Leivers enxugava os olhos marejados de lágrimas, de tanto rir, e Mr. Leivers, já desperto da sua sesta dominical, coçava a cabeça divertido. Os três irmãos, sentados em atitudes desleixadas e sonolentas e em mangas de camisa, soltavam uma gargalhada de vez em quando. O que a família mais adorava era, acima de tudo, uma boa caricatura.

Paul não prestou atenção a Miriam. Mais tarde, ela percebeu que ele tinha reparado na sua blusa nova, viu que o artista a aprovara, mas isso não merecera da sua parte o mínimo lampejo de ternura. Estava nervosa e mal conseguia chegar às chávenas de chá nas prateleiras do armário.

Quando os homens saíram para a ordenha, ousou dirigir-se-lhe pessoalmente:

– Vieste atrasado – disse.

– Vim? – perguntou ele.

Por um momento fez-se silêncio.

– Foi difícil vires a pedalar até aqui? – perguntou ela.

– Nem notei.

Ela continuou a pôr a mesa rapidamente. Quando acabou, disse-lhe:

– O chá só é servido dentro de alguns minutos. Queres vir ver os narcisos?

Ele ergueu-se, sem responder. Dirigiram-se para o jardim das traseiras, sob as ameixoeiras em flor. As colinas e o céu estavam límpidos e frios. Tudo parecia lavado, um pouco agreste talvez. Miriam lançou um olhar a Paul. Ele estava pálido e impassível. A ela parecia-lhe uma crueldade que aqueles olhos e sobrancelhas que ela tanto amava pudessem feri-la tanto.

– O vento cansou-te? – perguntou.

Detectou nele uma certa fadiga.

– Não, acho que não – respondeu ele.

– Deve ser cansativo na estrada... o vento sopra tão forte.

– Pelas nuvens podes ver que é vento sudoeste: até me ajudou a chegar aqui.

– Sabes que eu não ando de bicicleta, por isso não entendo o que queres dizer – murmurou ela.

– E é preciso andar de bicicleta para saber isso? – replicou ele.

Miriam pensou que o seu sarcasmo era desnecessário. Mantiveram-se em silêncio. Em redor do relvado maltratado com a erva muito alta situado nas traseiras da casa, havia uma sebe de espinheiros sob a qual os narcisos se erguiam dos seus ninhos de folhas verde-cinza. As faces das flores estavam esverdeadas de frio. Mas, mesmo assim, algumas haviam já florescido e o seu tom dourado agitava-se e resplandecia. Miriam ajoelhou-se diante de um ramalhete, tomou nas mãos um narciso de ar silvestre, voltou para si a sua face dourada e inclinou-se, acariciando-o com a boca, as faces e a fronte. Paul permaneceu de pé, ligeiramente afastado, de mãos nos bolsos, observando-a. Uma após outra, ela virou para ele as faces das flores amarelas, recém-abertas, em atitude suplicante, afagando-as com veemência.

– Não são magníficos? – murmurou.

– Magníficos?... Não será um pouco de mais?... São bonitos!

Ela inclinou-se novamente para as suas flores, perante esta censura à sua atitude de adoração. Ele ficou a vê-la adular e saborear as flores com beijos fervorosos.

– Porque tens de estar sempre a acariciar as coisas? – recriminou-a, irritado.

– Gosto de lhes tocar – replicou ela, magoada.

– Será que não podes gostar das coisas sem teres de te agarrar a elas como se quisesses arrancar-lhes o coração? Porque não tens um pouco mais de domínio ou reserva, ou o que quer que seja?

Ela ergueu para ele um olhar cheio de dor, continuando depois a pressionar os lábios, lentamente, contra uma flor ondulada. O seu aroma, quando o sentiu, era tão mais delicado do que Paul que quase a fez chorar.

– Com a tua adulação, retiras a alma às coisas – disse ele. – Eu nunca seria capaz de uma adulação... Em qualquer circunstância, seria sempre directo.

Paul não sabia o que dizia. Estas coisas saíam-lhe mecanicamente. Ela olhou para ele. O seu corpo parecia uma arma, firme e duro contra ela.

– Tu estás sempre a suplicar às coisas que te amem – disse ele – como se fosses uma pedinte de amor. Até as flores tu tens de acariciar...

Ritmadamente, Miriam agitava e amachucava a flor com a boca, inalando o perfume que daí em diante a faria estremecer sempre que penetrasse nas suas narinas.

– Tu não queres amar... a tua súplica eterna e anormal é seres amada. Não és positiva, és negativa. Absorves, absorves, como se necessitasses de te encher de amor por teres algures uma insuficiência.

Miriam estava aturdida com a crueldade de Paul, e não o escutava. Ele não tinha a mínima ideia do que estava a dizer. Era como se a sua alma inquieta e torturada, inflamada por uma paixão frustrada, fizesse jorrar aquelas palavras como centelhas brotando da electricidade. Ela não entendia nada do que ele dizia. Deixou-se ficar sentada, esmagada sob a sua crueldade e o seu ódio por ela. Nunca entendia as coisas num lampejo. Era assim com tudo, cismava e tornava a cismar.

Depois do chá, ele ficou a conversar com Edgar e os outros irmãos, não prestando atenção a Miriam. Ela, infinitamente infeliz com esta distância procurada, esperou por ele. Por fim, ele cedeu e veio ao seu encontro. Ela estava determinada a descobrir a origem do seu estado de espírito. Para ela, tudo aquilo não passava de um estado de espírito.

– Vamos passear um pouco pelo bosque? – sugeriu, sabendo que ele nunca recusava um pedido directo.

Desceram em direcção à coelheira. A meio do caminho passaram por uma armadilha, uma pequena cerca em forma de ferradura, feita com galhos de abeto entrelaçados, onde se exibiam, como isca, as vísceras de um coelho. Paul lançou-lhe um olhar, franzindo o sobrolho. Ela chamou-lhe a atenção.

– É terrível, não é? – perguntou.

– Não sei! Será pior que os dentes de uma doninha cravados no pescoço de um coelho? Ou uma doninha ou muitos coelhos. Uma das coisas vai ter de desaparecer!

Para Paul estava a ser difícil enfrentar a face amarga da vida. Miriam sentiu pena dele.

– Vamos para dentro – disse Paul. – Não me apetece andar cá fora.

Passaram pela árvore dos lilases, cujos rebentos das folhas cor de bronze principiavam agora a abrir. Apenas um fragmento restava do palheiro, um monumento quadrado e castanho, como um pilar de pedra. No meio, ainda lá perdurava uma pequena meda de feno da última ceifa.

– Sentemo-nos aqui por um minuto – pediu Miriam.

Ele sentou-se, contrariado, apoiando as costas ao sólido muro de feno. Diante deles, estendia-se o anfiteatro de colinas arredondadas, incandescente à luz do crepúsculo, as pequenas quintas brancas destacando-se na paisagem, os prados dourados, os bosques sombrios e contudo luminosos, as copas das árvores sobrepostas a outras copas de árvores, distintas na distância. A tarde clareara e o oriente suave tingia-se agora de um clarão magenta sob o qual a terra permanecia imóvel e pródiga.

– Não é uma beleza? – murmurou ela suavemente.

Mas ele limitou-se a franzir a testa, mal-humorado. Naquele momento, preferia que tudo fosse feio.

Subitamente, um grande cão veio ter com eles em louca correria, de boca escancarada, levantou as patas dianteiras e colocou-as nos ombros do jovem, lambendo-lhe o rosto. Paul recuou, rindo. Bill era um grande alívio para ele. Afastou o cão, mas este voltou, saltitante.

– Sai daqui – ordenou o rapaz. – Vê lá se queres apanhar.

Mas o cão não estava disposto a desistir facilmente. Então, Paul travou um pequena batalha com o animal, arremessando o pobre Bill para longe, apenas conseguindo contudo fazê-lo tropeçar e voltar à carga violentamente, excitadíssimo. Lutaram os dois, o homem rindo contrafeito, o cão todo ele disponibilidade. Miriam observava-os. Havia algo de patético no homem. Como ele desejava ardentemente amar e ser terno! O modo rude como brincava com o cão era realmente adorável. Paul levantou-se, ofegante de felicidade, os olhos castanhos rolando na cara branca, e de novo se deixou cair pesadamente. O animal adorava Paul. O rapaz lançou-lhe um olhar severo.

– Bill, já chega de brincadeira.

Mas o cão deixou-se ficar com as duas pesadas patas, que tremiam de carinho, assentes na sua coxa, mostrando uma língua ro-sada. O rapaz recuou.

– Não – disse. – Não... já chega.

E logo o cão se afastou, contente por variar de divertimento.

Paul continuou a olhar fixamente para as colinas, cuja beleza impassível invejava. Queria sair dali e ir andar de bicicleta com Edgar. No entanto, não tinha coragem de deixar Miriam.

– Porque estás triste? – perguntou ela, submissa.

– Não estou triste, porque havia de estar? – retorquiu ele. – Estou apenas normal.

Ela perguntava-se por que razão ele sempre afirmava estar normal quando se mostrava desagradável.

– Mas... afinal o que se passa? – perguntou, aliciando-o suavemente.

– Nada!

– Não! – murmurou ela.

Ele pegou num pau e começou a golpear a terra.

– É melhor que não digas nada – disse ele.

– Mas eu quero saber – respondeu ela.

Ele riu-se, ressentido.

– Tu queres sempre saber tudo.

– Não és leal para comigo – murmurou ela.

Ele feriu o solo vezes sem conta com o pau afiado, desprendendo pequenos torrões de terra, como se tomado por uma febre de irritação. Delicada e firmemente, ela pousou a mão sobre o seu pulso.

– Não faças isso! – pediu. – Deita isso fora.

Ele atirou o pau para cima das groselheiras e recostou-se. Já estava recomposto.

– Que se passa? – perguntou ela com suavidade.

Ele manteve-se imperturbável. Apenas o seu olhar vivia intensamente, repleto de tormento.

– Sabes – disse por fim, bastante a custo – sabes... era melhor rompermos a nossa ligação.

Era o que ela temia. Subitamente, tudo pareceu escurecer diante dos seus olhos.

– Porquê? – murmurou. – Que aconteceu?

– Não aconteceu nada... só que temos de ver o terreno que pisamos. Não vale a pena...

Ela esperou em silêncio, tristemente, cheia de paciência. Não adiantava ser impaciente com ele. De qualquer modo, ele dir-lhe-ia agora o que o afligia.

– Concordámos em ser amigos – prosseguiu ele, numa voz monótona e aborrecida. – Quantas vezes concordámos em ser amigos! E, no entanto, as coisas não param por aí, nem chegam a nenhum outro lado.

Paul calou-se. Miriam matutava. Que quereria ele dizer? Estava tão cansado. Havia algo que não queria admitir. Contudo, ela devia ser paciente.

– Eu só posso dar-te amizade... é tudo de que sou capaz... é uma falha na minha maneira de ser. As coisas pesam só para um lado... e eu odeio uma balança desequilibrada... vamos acabar com isto.

Havia um fervor de fúria nas suas últimas frases. O que ele queria dizer é que ela o amava mais a ele do que ele a ela. Talvez não conseguisse amá-la. Talvez ela não possuísse o que ele desejava. Esta falta de confiança em si mesma era o fundamento mais profundo da alma de Miriam. Tão profundo que ela não ousava entendê-lo, nem tão-pouco admiti-lo. Talvez lhe faltasse qualquer coisa. Como uma vergonha infinitamente subtil, esse sentimento sempre a fazia recuar. Se assim fosse, ela passaria sem ele. Nunca se permitiria desejá-lo. Limitar-se-ia a observar.

– Mas o que aconteceu? – perguntou.

– Nada... tinha tudo isto guardado dentro de mim... e só saiu agora. Ficamos sempre assim ao aproximarmo-nos da Páscoa.

Paul humilhou-se tão despojadamente que Miriam sentiu pena. Ela, pelo menos, nunca se tinha deixado cair de um modo tão deplorável. No fim de contas, era ele quem saía mais duramente humilhado.

– Que queres fazer? – perguntou ela.

– Bem... acho que não devo vir aqui tantas vezes... só isso. Porque deveria eu monopolizar-te, quando não sou... Bem vês, no que te diz respeito sou muito incompleto...

Ele estava a dizer-lhe que não a amava e, portanto, deveria dar-lhe uma oportunidade com outro homem. Que tolo e cego e vergonhosamente desajeitado ele era! Que lhe importavam a ela os outros homens! Que importância tinham! Mas ele, ah, ela amava a sua alma. Seria ele incompleto em alguma coisa? Talvez fosse.

– Mas eu não entendo – disse ela, com a voz rouca. – Ainda ontem...

A noite tornara-se desagradável e odiosa para ele à medida que a luz do crepúsculo se dissipava. E ela cedeu ao seu sofrimento.

– Eu sei – gritou ele. – Nem nunca entenderás. Nunca acreditarás que eu não posso... não sou fisicamente capaz, tal como não sou capaz de voar como uma cotovia...

– Capaz de quê? – perguntou ela, num murmúrio. Agora tinha medo.

– De te amar.

Paul odiou-a amargamente naquele momento, por fazê-la sofrer tanto. Amá-la! Miriam sabia que ele a amava. Ele pertencia-lhe realmente. Toda a conversa sobre não a amar fisicamente, corporalmente, era uma mera perversidade da parte dele, pois Paul sabia que ela o amava. Ele estava a ser casmurro como uma criança. Ele pertencia-lhe a ela. A sua alma desejava-a. Miriam suspeitou que alguém o tivesse influenciado. Através da sua rigidez, pressentia a estranheza de uma outra influência.

– Que te têm dito em casa? – perguntou.

– Não é nada disso – respondeu ele.

E, nesse momento, ela soube que era precisamente isso, e sentiu um profundo desprezo pela família dele e pela sua vulgaridade. Ignoravam as coisas que valiam realmente a pena.

Nessa noite, não conversaram muito mais. Por fim, ele deixou-a e foi passear de bicicleta com Edgar.

Paul voltara para a mãe, o elo mais forte da sua vida. Quando ele se embrenhava em pensamentos, Miriam quase deixava de existir, como se envolta num sentimento vago e irreal. E mais ninguém contava. Havia contudo um lugar no mundo que permanecia sólido e não se desvanecia na irrealidade: o lugar onde se encontrava a sua mãe. Todos podiam transformar-se em sombras, quase inexistentes para ele, mas não ela. Era como se o eixo ou pólo da sua vida, do qual ele não podia escapar, fosse a sua mãe.

E, da mesma forma, ela esperava por ele. Nele se concentrava agora toda a sua vida. Afinal, a vida que deixara para trás oferecera muito pouco a Mrs. Morel. Ela entendera que a nossa oportunidade para fazer está aqui, e fazer era importante para ela. Paul iria provar que ela tinha razão: iria transformar-se num homem a quem nada poderia derrubar, que iria alterar a face da terra de alguma forma importante. Onde quer que ele fosse, ela sentia que a sua alma ia junto. O que quer que ele fizesse, ela sentia que a sua alma permanecia junto dele, pronta como sempre a entregar-lhe as suas ferramentas. Não podia suportar quando ele estava com Miriam. William estava morto. Ela lutaria para ficar com Paul.

E ele voltou para ela. E na alma dele havia um sentimento de satisfação pelo auto-sacrifício, pois ele era-lhe fiel. Ela amava-o antes de tudo, ele amava-a antes de tudo. E, no entanto, isso não era o suficiente. A sua vida nova e jovem, tão forte e imperiosa, era solicitada por algo mais. Punha-o louco de agitação. Ela percebia isso e desejava amargamente que Miriam fosse uma mulher que pudesse arrancar dele esta nova vida e deixar-lhe a ela as raízes. Paul lutava contra a mãe quase tanto como lutava contra Miriam.

Passou-se uma semana antes que Paul voltasse a Willey Farm. Miriam sofrera muito e receava vê-lo novamente. Poderia ela suportar a ignomínia de ser abandonada por ele? Isso seria apenas superficial e temporário. Ele voltaria. Ela possuía a chave para entrar na sua alma. Mas, entretanto, ele iria torturá-la com a sua luta contra ela. Miriam temia sobretudo isso.

Porém, no domingo a seguir à Páscoa, Paul veio para o chá. Mrs. Leivers ficou contente ao vê-lo. Percebeu que algo o perturbava, que as coisas estavam difíceis para ele. E ele parecia refugiar-se nela para algum conforto. E ela era boa para ele. Fazia-lhe o grande favor de o tratar quase com reverência.

Paul encontrou os rapazes no jardim da frente.

– Estou contente por teres vindo – disse a mãe, olhando-o com os seus olhos castanhos, grandes e sinceros. – Está um dia tão soalheiro. Ia agora mesmo dar um passeio pelos campos pela primeira vez este ano.

Ele sentiu que ela apreciaria a sua companhia, e isso suavizou-o. Foram caminhando, falando de coisas simples, ele gentil e humilde. Quase chorou de gratidão por ela ser deferente para com ele. Sentia-se humilhado.

Ao fundo do campo de trigo, encontraram um ninho de tordos.

– Querem que vos mostre os ovos? – perguntou.

– Sim, por favor! – respondeu Mrs. Leivers. – Parecem um sinal tão real da Primavera e da esperança...

Paul afastou os espinhos e retirou os ovos, colocando-os na palma da mão.

– Estão quentinhos... parece que assustámos a mãe – disse ele.

– Ah, coitadinhos – disse Mrs. Leivers.

Miriam não pôde evitar tocar nos ovos e na mão dele, que, segundo ela, os protegia tão bem.

– É um calor tão estranho! – murmurou, para se aproximar dele.

– É o calor do sangue – retorquiu ele.

Ela viu-o colocar os ovos no seu lugar, com o corpo colado à cerca, o braço avançando lentamente através dos espinhos, a mão cuidadosamente fechada sobre os ovos. Estava concentrado no acto. Vendo-o assim, ela amava-o; ele parecia tão simples e auto-suficiente. E ela não conseguia alcançá-lo.

Durante o chá, Paul discutiu o sermão de Sexta-Feira Santa com Mrs. Leivers. A caminhada até à Capela era já muito longa para a senhora, e ela quase preferia ouvir o sermão através de Paul, acrescido dos seus comentários e argumentos. Os outros também escutavam. Até os rapazes, uns latagões rudes, se mostravam atentos e interessados, tirando uma lição do discurso.

– Ele pegou no capítulo que diz: «Aquele que acreditou na nossa história...» ... eu gosto desta passagem.

Os grandes olhos castanhos de Mrs. Leivers brilharam com o pensamento.

– E estragou-o todo... arruinou-o.

Subitamente, lançou um olhar a Miriam, para que ela estivesse do seu lado naquele momento.

– E ele disse...

Paul, sério e indignado, repetiu o sermão. Era em alturas como esta que Miriam o amava. Ao vê-lo assim, enchia-se de profunda satisfação. Amava-o do mesmo modo que Maria amou na Betânia. Só quando irrompia o homem nele existente, se instalava a guerra entre ambos. E qual era mais forte nele, o Discípulo ou o Homem? Ela acreditava que fosse o primeiro, e através do primeiro o retinha.

Enquanto ela levantava a mesa do chá, ele disse-lhe, num tom bastante forçado:

– Quando acabares, vamos dar uma volta.

Na cozinha, ajudou-a a limpar a louça. Ela tremia ligeiramente de apreensão. Mas sabia que naquela noite não tinha de temer o ressentimento dele.

– Levamos um livro? – perguntou Miriam, pegando no seu favorito, O Tesouro Dourado, de Palgrave. Os melhores momentos que passavam juntos aconteciam quando liam poesia.

– Esse não – respondeu ele.

O coração dela apertou-se. Permaneceu junto à prateleira dos livros, hesitante. Ele escolheu Tartarin de Tarascon. Sentaram-se novamente no monte de feno, na base da meda. Paul leu algumas páginas, mas sem sentimento. De novo o cão apareceu, correndo, para repetir a brincadeira anterior. Enterrou o focinho no peito do jovem. Paul acariciou-lhe a orelha de fugida. Depois, afastou-o.

– Vai-te embora, Bill – ordenou. – Não te quero aqui.

Bill retirou-se furtivamente, e Miriam perguntou-se, temerosa, o que estaria para vir. Algo no silêncio dele a fez paralisar de apreensão. Não eram as suas fúrias, mas as suas resoluções calmas que ela receava.

Voltando o rosto um pouco de lado, para que ela não pudesse vê-lo, Paul começou, falando lenta e penosamente:

– Achas que... se eu não viesse cá tantas vezes... podias gostar de outra pessoa... de outro homem?

Então era isso que ainda o incomodava.

– Mas eu não conheço outros homens... porque perguntas? – replicou ela, num tom surdo que deveria ter soado aos ouvidos dele como uma censura.

– Ora – disse ele abruptamente – porque eles dizem que eu não tenho o direito de vir aqui... sem que tenhamos intenção de casar...

Miriam estava indignada por alguém andar a forçar as coisas entre eles. Ficara furiosa com o próprio pai quando este, rindo, comentara com Paul que sabia por que razão ele os visitava tantas vezes.

– Quem diz isso? – perguntou ela, tentando perceber se a sua própria família tinha algo a ver com o assunto. Mas não tinha.

– A minha mãe... e os outros. Dizem que, assim, todos me consideram comprometido, e que eu também me devo considerar como tal, pois não é justo para ti. E eu tentei pensar melhor... e acho que não te amo como um homem deve amar a sua mulher. Que me dizes tu a isto?

Miriam baixou a cabeça, irritada. Irritava-a ter de travar aquela discussão. As pessoas deviam deixá-los em paz.

– Não sei – murmurou ela.

– Achas que nos amamos o suficiente para nos casarmos? – perguntou ele, definitivamente. Ela estremeceu.

– Não – respondeu, sinceramente. – Não acho... somos demasiado novos.

– Eu pensei – prosseguiu ele, infeliz – que talvez tu, com a intensidade que pões nas coisas, me tivesses dado mais... do que alguma vez eu te poderia compensar. E, mesmo assim, se achares que é melhor, ficamos noivos.

Naquele momento, Miriam queria chorar. Estava furiosa também. Ele era sempre tão infantil que as pessoas faziam dele o que queriam.

– Não, não acho – disse firmemente.

Paul reflectiu um minuto.

– Sabes – retomou –, para mim... eu acho que uma pessoa nunca poderá monopolizar-me, ser tudo para mim. Eu acho que isso nunca vai acontecer.

Miriam não tinha considerado este ponto.

– Não – murmurou. Após uma pausa, ela ergueu para ele os seus olhos escuros, faiscantes.

– Isto tem a ver com a tua mãe – disse ela. – Eu sei que ela nunca gostou de mim.

– Não, não é isso – apressou-se ele a dizer. – Desta vez foi para teu bem que ela falou, e só disse que, se eu continuasse, devia considerar-me comprometido. – Seguiu-se um silêncio. – E, se eu te pedir para continuares a visitar-me sempre, não dizes que não?

Miriam não respondeu. Estava agora muito zangada.

– Bem, então que fazemos? – perguntou secamente. – Assim sendo, é melhor desistir das aulas de francês. Agora que estava a começar a dar-me bem... Mas acho que posso continuar sozinha.

– Não vejo necessidade disso – considerou ele. – É claro que posso dar-te uma aula de francês.

– Bom, e há ainda as noites de domingo. Não vou deixar de ir à capela, porque gosto de ir e porque a isso se resume toda a minha vida social. Mas não precisas de ir comigo. Posso ir sozinha.

– Está bem – respondeu ele, algo surpreendido. – Mas, se eu pedir ao Edgar, ele pode vir connosco, e assim as pessoas já não podem dizer nada.

Fez-se silêncio. Afinal, ela não perderia muito. Apesar de todo o falatório em casa dele, a diferença não seria muita. Ela só desejava que eles não interferissem.

– E tu não vais pensar de mais no assunto e deixar que te perturbe, pois não? – perguntou ele.

– Oh, claro que não – retorquiu Miriam, sem se dignar olhar para ele.

Paul ficou em silêncio. Ela achava-o instável, sem um objectivo fixo, nenhuma âncora de certeza a segurá-lo.

– Porque – continuou ele – um homem pega na bicicleta... e vai para o trabalho... e faz toda a espécie de coisas. Mas uma mulher fica a cismar.

– Não, eu não vou ficar a cismar – assegurou-lhe Miriam, e estava a ser sincera.

O tempo arrefecera bastante. Juntos, encaminharam-se para casa.

– Que pálido está o Paul! – exclamou Mrs. Leivers. – Miriam, não devias tê-lo deixado sentar-se lá fora. Achas que te constipaste, Paul?

– Oh, não! – E riu-se.

Mas, na verdade, sentia-se fatigado. O conflito interior esgotara-o. Agora, Miriam sentia pena dele. Mas, muito cedo, ainda antes das nove horas, ele levantou-se para se retirar.

– Não te vais já embora, pois não? – perguntou Mrs. Leivers, ansiosa.

– Vou, sim – retorquiu ele. – Disse em casa que chegava cedo.

Paul estava muito embaraçado.

– Mas ainda é cedo – disse Mr. Leivers.

Miriam sentou-se na cadeira de baloiço e não falou. Ele hesitou, esperando que ela se erguesse para o acompanhar ao celeiro, como habitualmente, quando fosse buscar a bicicleta. Ela, porém, deixou-se ficar onde estava. Paul sentia-se perdido.

– Bem, então... boa noite a todos! – balbuciou.

Miriam deu-lhe as boas-noites, tal como os restantes. Mas, quando ia a passar diante da janela, ele olhou para dentro. Ela viu-o pálido, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas de um modo que se tornara constante nele, e o olhar ensombrado pelo sofrimento.

Ergueu-se então e foi até à porta dizer-lhe adeus, quando ele passou pelo portão. Paul pedalou lentamente sob a rama dos pinheiros, sentindo-se um cobarde e um patife miserável. A bicicleta rolava pelas colinas abaixo, à deriva. Chegou a pensar que seria um alívio partir o pescoço.

Dois dias depois, enviou-lhe um livro e um bilhete, incitando-a a ler e a manter-se ocupada.

E, contudo, nessa altura ele estava diferente. Tinha avaliado bem a situação. Sabia que não queria casar-se com ela. As razões pelas quais a amava não eram razões para se casar com ela; isso es-tava decidido. E a mãe repetira-lhe vezes sem conta que a sua actual situação não podia durar para sempre, e era bastante injusta para a rapariga. Por isso, Paul tentava agora manter a maior distância possível entre os dois. Era duro e frio para ela. Miriam ressentia-se disso amargamente, culpava a mãe dele, e esperava. Sabia que Paul não podia deixá-la sozinha. Mas ele parecia querer por força erguer muros entre eles, ele e ela, atrás dos quais pudesse refugiar-se, longe dela. Miriam sofria terrivelmente.

Durante esse tempo, Paul dedicou toda a sua amizade a Edgar. Gostava tanto da família, gostava tanto da quinta, que ela era para ele o lugar mais querido ao cimo da terra. Nem mesmo o seu lar era tão agradável. A sua mãe sim. Mas teria sido igualmente feliz com aquela mãe em qualquer outro lugar. Mas Paul amava Willey Farm apaixonadamente. Adorava a cozinha pequena e aconchegada, repisada pelas botas dos homens, e onde o cão dormia com um olho aberto e outro fechado, com medo de ser pisado; onde, à noite, a lamparina balouçava sobre a mesa e tudo ficava muito silencioso. Amava a saleta de Miriam, comprida e de tecto baixo, com a sua atmosfera romântica, as suas flores, os seus livros, o piano de pau-rosa. Amava os jardins e os edifícios que, nos limites nus dos campos, se erguiam com os seus telhados escarlate, arrastando-se em direcção ao bosque como se em busca de aconchego, onde a região selvagem cavava um vale profundo, para logo subir as encostas por cultivar do lado de lá. O simples facto de estar ali era um prazer e uma alegria para ele. Amava Mrs. Leivers, com a sua simplicidade e singular cinismo; amava Mr. Leivers, tão caloroso e jovial, e tão afável; amava Edgar, cujo olhar se iluminava quando ele chegava, e os outros rapazes e as crianças, e ainda Bill, e até a porca chamada Circe e o galo indiano de combate chamado Tippoo. Amava tudo isto além de Miriam. Não podia desistir de tudo.

Por isso, continuava a aparecer frequentemente, mas andava geralmente com Edgar. Toda a família, incluindo o pai, apenas se reunia à noite para os jogos e charadas. E, mais tarde, Miriam reunia-os a todos e liam Macbeth em edição de bolso, interpretando os vários papéis. Era muito divertido. Miriam ficava contente, Mrs. Leivers ficava contente e Mr. Leivers divertia-se. Depois, todos juntos, aprendiam a solfejar canções, cantando em círculo em redor da lareira. Mas agora, Paul raramente ficava a sós com Miriam. E ela esperava. Quando ela, Edgar e Paul regressavam a casa vindos da Capela ou do grémio literário de Bestwood, ela sabia que a conversa dele, tão apaixonada e tão pouco ortodoxa para aqueles dias, lhe era dirigida. Contudo, invejava Edgar e as suas corridas de bicicleta com Paul, as suas noites de sexta-feira, os seus dias de labuta conjunta nos campos. Para ela, as noites de sexta-feira e as aulas de francês tinham acabado. Estava quase sempre sozinha, vagueando e meditando pelo bosque, lendo, estudando, sonhando, esperando. E ele escrevia-lhe com frequência.

Num domingo à noite, conseguiram reatar a velha e rara harmonia. Edgar ficara com Mrs. Morel para a comunhão. Queria saber como era. Por isso, Paul e Miriam voltaram sozinhos para casa dele. Ele encontrava-se novamente mais ou menos sob o seu feitiço. Como era hábito, discutiram o sermão. Ele caminhava agora a passos largos para o agnosticismo, mas era um agnosticismo tão religioso que Miriam não sofria muito. Estavam na fase da Vie de Jésus de Renan. Miriam era a eira onde Paul debulhava todas as suas crenças. Enquanto repisava as suas ideias na alma dela, a verdade brotava dele. Só ela era a sua eira. Só ela o ajudava no sentido da plena realização. Quase impassível, ela submetia-se aos seus argumentos e interpretações. E, por causa dela, ele gradualmente compreendia, de algum modo, onde estava errado. E o que ele compreendia, ela compreendia. Miriam sentia que Paul não podia viver sem ela.

Chegaram à casa silenciosa. Ele tirou a chave da janela da cozinha e entraram. Durante todo o tempo, ele não interrompeu a discussão. Acendeu o gás, ateou o fogo e trouxe-lhe alguns biscoitos da despensa. Ela sentou-se no sofá, em silêncio, com um prato sobre os joelhos. Trazia um grande chapéu branco enfeitado com flores cor-de-rosa. Era um chapéu barato, mas ele gostava. Sob o chapéu, o rosto dela estava estático e pensativo, castanho-dourado e corado. Como sempre, as orelhas estavam ocultas sob os seus caracóis curtos. Ela observava-o.

Sempre gostara dele aos domingos. Nesses dias, ele usava um fato escuro que evidenciava todos os movimentos do seu corpo. Havia algo de limpo e fresco no seu ar. Paul prosseguiu o seu raciocínio dirigido a ela. De repente, pegou na Bíblia. Miriam gostou do modo como ele a alcançou, tão determinado, directo ao objectivo. Voltou as páginas rapidamente e leu-lhe um capítulo de S. João. Enquanto lia, absorto, sentado no cadeirão e apenas a sua voz pensava, ela sentia que ele estava a usá-la inconscientemente, como um homem usa as suas ferramentas em qualquer trabalho que o absorve. Adorava essa sensação. E a ânsia na sua voz era como a tentativa de alcançar algo, e era como se ela fosse o modo de o conseguir. Miriam recostou-se no sofá, longe dele, sentindo-se, todavia, o próprio instrumento que a mão dele segurava, o que lhe dava um indescritível prazer.

Pouco a pouco, a voz tornou-se hesitante e Paul ficou constrangido. E quando chegou ao versículo: «Uma mulher, quando está em trabalho de parto, sofre porque a sua hora chegou», omitiu-o. Miriam sentira o seu constrangimento a aumentar. Estremeceu quando as bem conhecidas palavras não foram proferidas. Paul continuou a ler, mas ela já não o escutava. Um sentimento de pesar e vergonha fê-la vergar a cabeça. Seis meses atrás, ele teria lido tudo naturalmente. Agora, abria-se uma brecha na relação entre os dois. Agora, ela sentia haver algo de realmente hostil entre eles, algo de que ambos se envergonhavam.

Miriam comeu o bolo mecanicamente. Ele tentou prosseguir, desenvolvendo o seu argumento, mas não conseguiu recuperar o tom certo. Edgar chegou pouco depois. Mrs. Morel tinha ido a casa de uma amiga. Os três saíram rumo a Willey Farm.

Miriam matutava sobre o afastamento dele em relação a ela. Havia algo mais que ele desejava. Paul não podia estar satisfeito, não podia dar-lhe paz. Agora haveria sempre entre eles lugar para o conflito. Ela queria pô-lo à prova. Acreditava que a maior necessidade na vida dele era ela. Se conseguisse prová-lo, tanto a si mesma como a ele, tudo o resto poderia desaparecer, e ela poderia simplesmente confiar no futuro.

Assim, em Maio, pediu-lhe para vir a Willey Farm visitar Mrs. Dawes. Havia algo que Paul procurava ardentemente. Sempre que se falava de Clara Dawes, Miriam via-o agitar-se e ficar ligeiramente irritado. Afirmou que não simpatizava com ela. Contudo, estava ansioso por saber coisas a seu respeito. Bom, ele tinha de ser posto à prova. Ela acreditava que havia nele ânsias de coisas superiores, e inferiores, e que o desejo pelas superiores venceria. De qualquer forma, deveria tentar. Miriam, porém, esqueceu-se de que os conceitos de «superior» e «inferior» eram arbitrários.

Paul estava bastante entusiasmado com a ideia de se encontrar com Clara em Willey Farm. Mrs. Dawes veio passar o dia. A sua pesada cabeleira castanho-escura estava enrolada ao alto da cabeça. Envergava uma blusa branca e uma saia azul-marinho e, de algum modo, a sua presença parecia tornar as coisas vulgares e insignificantes. Quando se encontrava por perto, a cozinha parecia ao mesmo tempo pequena e imperfeita. A bela saleta de Miriam, com a sua luz crepuscular, parecia estúpida e sem graça. Toda a família Leiver se eclipsava como velas. Eles achavam-na um pouco difícil de suportar. No entanto, ela era perfeitamente amistosa, mas indiferente e um pouco dura.

Paul só chegou da parte da tarde. Mas veio cedo. Enquanto descia da bicicleta, Miriam viu-o olhar em volta da casa, ansioso. Ficaria desapontado se a tão esperada visita não tivesse vindo. Miriam saiu ao seu encontro, baixando a cabeça devido à intensidade do sol. As abecedárias brotavam agora, encarnadas, da verde sombra fria das suas folhas. A rapariga esperou-o, de cabelo escuro, contente por vê-lo.

– A Clara não veio? – perguntou Paul.

– Veio – replicou ela, no seu timbre musical. – Está a ler.

Ele empurrou a bicicleta até ao celeiro. Pusera uma bonita gravata, na qual tinha muito orgulho, e meias a condizer.

– Chegou esta manhã? – perguntou.

– Sim – respondeu Miriam enquanto caminhava a seu lado. – Lembraste-te de trazer aquela carta do homem do Liberty?

– Oh, que chatice, não! – disse ele. – Mas podes atazanar-me até que a traga.

– Não gosto de te atazanar.

– Mas não te acanhes. E ela está mais simpática? – continuou.

– Sabes que eu sempre a achei bastante simpática.

Paul ficou em silêncio. Era evidente que a sua ânsia em chegar cedo naquele dia se devia à recém-chegada. Miriam já começara a sofrer. Encaminharam-se para casa lado a lado. Paul retirou as molas das calças, mas era muito preguiçoso para escovar o pó dos sapatos, apesar de ter requintado nas meias e na gravata.

Clara estava sentada na saleta fresca, a ler. Paul reparou na sua nuca branca e no delicado cabelo repuxado. Ela ergueu-se e olhou para ele com indiferença. Para o cumprimentar, levantou o braço de um modo que parecia, ao mesmo tempo, mantê-lo à distância e, no entanto, acenar-lhe com alguma coisa. Ele notou a forma como os seus seios inchavam dentro da blusa, e como o ombro se curvava deliciosamente sob a fina musselina no cimo do seu braço.

– Escolheste um lindo dia – disse ele.

– É... aconteceu – respondeu ela.

– É verdade – continuou ele. – Ainda bem.

Ela sentou-se, não lhe agradecendo a amabilidade.

– Que fizeste toda a manhã? – perguntou Paul, dirigindo-se a Miriam.

– Bem – disse Miriam, tossindo roucamente –, a Clara só chegou com o pai... e, por isso, não está cá há muito tempo.

Clara sentara-se encostada à mesa, mantendo-se distante. Ele notou que as suas mãos eram grandes, mas bem cuidadas. A pele parecia quase grosseira, opaca e branca, com finos pêlos dourados. Ela não se importava que ele observasse as suas mãos. Tinha intenção de o desprezar. O seu braço opulento estava negligentemente pousado sobre a mesa. A sua boca fechava-se como se estivesse ofendida, e o seu rosto mantinha-se ligeiramente desviado.

– Estiveste presente na reunião da Margaret Bonford na outra noite – disse-lhe ele. Miriam desconhecia este Paul cortês. Clara olhou-o de relance.

– Estive, sim – respondeu.

– Ora – perguntou Miriam – como é que sabes?

– Eu entrei por alguns minutos até o comboio chegar – explicou ele.

Clara desviou novamente o rosto, com uma expressão desdenhosa.

– Acho-a uma mulherzinha adorável – comentou Paul.

– A Margaret Bonford! – exclamou Clara. – Ela é muito mais esperta que a maioria dos homens.

– Bem, eu não disse que não era – disse ele, depreciativamente. – Ela é adorável por tudo isso.

– E é claro que é só isso que tem importância – disse Clara, com uma expressão fulminante.

Ele coçou a cabeça, meio perplexo, meio aborrecido.

– Acho que importa mais do que a inteligência dela – retorquiu Paul – que, afinal, nunca a levaria ao Céu.

– Não é o Céu que ela pretende... é o seu justo quinhão na terra – retorquiu Clara. Falava como se Paul fosse responsável por qualquer privação de que Miss Bonford sofresse.

– Bem – disse ele –, eu achei-a calorosa e extraordinariamente agradável... mas demasiado frágil. Só desejei que ela estivesse confortavelmente em paz...

– ... remendando as peúgas do marido – interrompeu Clara, sarcasticamente.

– Estou certo de que não se importaria de remendar até mesmo as minhas peúgas – afirmou ele. – E tenho a certeza de que o faria até muito bem. Tal como eu não me importaria de lhe engraxar as botas, se ela o desejasse.

Mas Clara recusou-se a dar troco a este tipo de comentário. Paul conversou com Miriam durante algum tempo. A outra mulher permaneceu afastada.

– Bem – disse ele –, acho que vou procurar o Edgar. Ele anda no campo?

– Acho que foi buscar um carregamento de carvão – respondeu Miriam. – Deve vir directamente para casa.

– Sendo assim – disse Paul –, vou ao encontro dele.

Miriam não ousou propor nenhum programa que envolvesse os três. Ele levantou-se e deixou-as.

No caminho de cima, onde a giesta despontava, Paul viu Edgar caminhando preguiçosamente ao lado da égua, que acenava a testa estrelada de branco enquanto arrastava o ruidoso carregamento de carvão. O rosto do jovem lavrador iluminou-se quando avistou o amigo. As suas roupas eram velhas e já bastante coçadas, mas caminhava com um orgulho considerável.

– Viva! – cumprimentou ele, vendo Paul sem chapéu. – Onde vais?

– Vim ter contigo. Não suporto a «Nunca jamais».

Os dentes de Edgar brilharam numa gargalhada divertida.

– Quem é a «Nunca jamais»? – perguntou.

– Aquela senhora – Mrs. Dawes – devia chamar-se Mrs. Corvo, aquele que disse «Nunca jamais».

Edgar riu com satisfação.

– Não gostas dela? – perguntou.

– Não morro de amores – respondeu Paul. – Porquê, tu gostas?

– Não! – A resposta veio com profunda convicção. – Não! – Edgar franziu os lábios. – Não posso dizer que seja muito o meu estilo. – Meditou um pouco. Depois: – Mas porque lhe chamas «Nunca jamais»? – perguntou.

– Bem – explicou Paul. – Se ela olha para um homem, diz arrogantemente «Nunca jamais», se se olha no espelho, diz desdenhosamente «Nunca jamais», e se pensa duas vezes, di-lo com nojo, e se olha em frente, di-lo cinicamente...

Edgar considerou o discurso de Paul, não conseguindo entendê-lo muito bem, e disse, rindo:

– Achas que ela odeia os homens?

– Ela acha que sim – retorquiu Paul.

– Mas tu não achas que assim seja?

– Não – respondeu Paul.

– Então ela não foi simpática contigo?

– Consegues imaginá-la a ser simpática com alguém? – perguntou o jovem.

Edgar riu-se. Juntos, descarregaram o carvão no pátio. Paul estava bastante contrafeito pois sabia que Clara o podia ver, se olhasse pela janela. Mas não olhou.

Nas tardes de sábado, os cavalos eram escovados e tratados. Paul e Edgar trabalharam juntos, espirrando com o pó proveniente do pêlo de Jimmy e Flower.

– Sabes alguma canção nova para me ensinar? – perguntou Edgar.

Ele continuava a trabalhar sem parar. Quando se baixava, deixava a descoberto a parte posterior do pescoço, encarniçada do sol, e os dedos que seguravam a escova eram taludos. Paul observava-o de vez em quando.

– Mary Morrison? – sugeriu o mais novo.

Edgar concordou. Era dono de uma bela voz de tenor e adorava aprender todas as canções que o amigo lhe ensinava para poder cantar enquanto conduzia a carroça. Paul possuía uma voz de barítono bastante sofrível, mas tinha bom ouvido. No entanto, cantou baixinho, com medo de Clara. Edgar repetiu o verso na sua voz límpida de tenor. Por vezes, ambos interrompiam a cantoria para espirrar e, primeiro um e depois o outro, insultarem o cavalo.

Miriam estava impaciente com os homens. Era preciso tão pouco para os divertir – até Paul. Achava pouco natural nele que pudesse ficar tão absorvido numa trivialidade.

Era hora do chá quando acabaram.

– Que canção era aquela? – perguntou Miriam.

Edgar informou-a. A conversa virou para o canto.

– Passámos momentos tão agradáveis – disse Miriam a Clara.

Mrs. Dawes tomou o seu chá devagar, com dignidade. Sempre que os homens estavam presentes, ela mostrava-se distante.

– Gostas de ouvir cantar? – perguntou-lhe Miriam.

– Se a voz for boa – disse ela.

Paul corou, naturalmente.

– Queres tu dizer, se a voz for de excepção e educada? – disse ele.

– Acho que uma voz precisa de ser educada para cantar alguma coisa que se oiça – disse Clara.

– Já agora, também podes dizer que as pessoas deviam educar a voz antes de falarem – replicou ele. – Francamente, a maior parte das pessoas canta para seu próprio prazer.

– E, quem sabe, para desprazer dos outros.

– Nesse caso, os outros que tapem os ouvidos – retorquiu Paul.

Os rapazes desataram a rir. Depois, fez-se silêncio. Ele corou violentamente e tomou o chá calado.

A conversa voltou à questão de se o salário das mulheres deveria ser igual ao dos homens. Mrs. Leivers sustentava que os homens tinham famílias a manter; Clara afirmava que trabalho igual teria de significar salário igual, para homens ou mulheres. Mr. Leivers estava inclinado a concordar com ela. O que quer que Mrs. Dawes tivesse dito, Paul teria tomado uma posição contrária à dela. Como tal, argumentou que uma mulher era apenas um acessório no mercado de trabalho e que, na maioria dos casos, não passava de uma coisa transitória, sustentando-se apenas por um ou dois anos. Clara avançou o número de mulheres que sustentavam pai, mãe, irmãs, etc.

– E quase todos os homens do mundo, acima dos trinta anos, sustentam mulher e filhos – e, regra geral, as ditas mulheres não são assalariadas – retorquiu ele.

– Eu penso, meu amigo – disse Clara muito friamente –, que já antes encontrei o teu tipo de pessoa: o jovem que pensa que sabe tudo.

– E tu és do tipo da jovem que pensa que eu não sei nada – volveu ele.

– Oh, sabes sim... sabes como te fazeres ouvir – disse ela.

Paul estava furioso. De repente, rebentou numa gargalhada.

– Isto parece mais uma reunião de sufragistas contigo no estrado a discursar – disse ele.

Clara corou até à raiz dos cabelos.

– Porque terei eu de responder pelos «Homens», quando afinal sou apenas um deles... – continuou Paul.

– Como se não fosse já suficiente – gracejou Edgar.

– E assim – retomou Paul – sou responsabilizado por todos os pecados da história de Inglaterra, desde a Rainha Boadisca até à Canção da Camisa. Não é justo. Gostava que o Homem tivesse o direito de existir na sociedade moderna... num qualquer canto onde pudesse repousar a cabeça.

– Bem – gracejou Mrs. Leivers –, no final de contas, o lugar do homem continuará a ser o mesmo enquanto formos feitos como somos.

Mas este gracejo foi demasiado subtil para todos, à excepção de Clara, que estava indignadíssima.

Após o chá, quando todos os homens, à excepção de Paul, se retiraram, Mrs. Leivers perguntou a Clara:

– E achas a vida mais feliz agora?

– Infinitamente.

– Então estás satisfeita?

– Desde que possa ser livre e independente.

– E não sentes falta de nada na tua vida? – quis saber Mrs. Leivers, delicadamente.

– Ultrapassei isso tudo.

Paul sentiu-se desconfortável perante este discurso, e levantou-se:

– Vais acabar por descobrir que tropeças constantemente nas coisas que deixaste para trás – disse ele. Depois saiu em direcção aos estábulos. Achava que tinha sido espirituoso e o seu orgulho masculino estava radiante. Pôs-se a assobiar enquanto descia o carreiro de ladrilhos.

Miriam veio procurá-lo pouco depois para saber se gostaria de as acompanhar, a Clara e a ela, num passeio. Partiram em direcção à quinta de Strelley Mill. Enquanto caminhavam ao longo da ribeira, pela margem do Willey Water, olhando através do arvoredo para a orla do bosque, onde pequeninas flores cor-de-rosa brilhavam sob uns poucos raios de sol, avistaram, para lá dos troncos das árvores e das ralas aveleiras, um homem conduzindo um grande cavalo baio pelos barrancos. O animal, enorme e cor de fogo, parecia dançar romanticamente através do verde-escuro das aveleiras até onde o ar era sombrio como o passado, por entre as campainhas emurchecidas que podiam ter florido para Deirdre ou Isolda.

Os três estacaram, encantados.

– Que prazer ser cavaleiro – disse ele – e ter aqui um pavilhão.

– E ter-nos a nós fechadas em segurança? – retorquiu Clara.

– Sim – respondeu ele –, entoando melodias com as vossas amas, entregues aos vossos bordados. Eu transportaria o vosso estandarte branco, verde e púrpura, e teria gravado no brasão do meu escudo a sigla das sufragistas, por baixo de uma mulher enfurecida...

– Não tenho qualquer dúvida – disse Clara – que muito mais depressa lutarias por uma mulher do que a deixarias lutar por si mesma.

– E lutaria mesmo! Quando a mulher luta por si mesma parece um cão diante de um espelho, enraivecido pela sua própria sombra.

– E tu és o espelho? – perguntou ela, com um franzir de lábios.

– Ou a sombra – replicou ele.

– Temo – disse ela – que sejas perigosamente inteligente.

– Bem, deixo-te a ti a tarefa de seres boazinha – retorquiu ele, rindo. – Sê boazinha, gentil donzela, e deixai-me ser inteligente.

Mas Clara cansou-se da irreverência de Paul. Subitamente, ao olhar para ela, ele viu que a expressão de superioridade que emanava do seu rosto era infelicidade e não desprezo. O coração dele enterneceu-se por todos. Voltou-se para Miriam, a quem até então negligenciara, e foi gentil com ela.

Ao aproximarem-se da orla do bosque, encontraram Limb, um homem trigueiro e franzino, de quarenta anos, rendeiro de Strelley Mill, que ele dirigia como uma quinta dedicada à pecuária. Segurava as rédeas do poderoso garanhão displicentemente, como se estivesse cansado. Os três recuaram para o deixarem passar por cima das pedras que atravessavam o primeiro regato. Paul admirou-se pelo facto de um animal tão grande caminhar sobre pedras tão escorregadias com inesgotável vigor. Limb estacou diante deles.

– Diga ao seu pai, Miss Leivers – disse ele, numa voz sibilante, pouco vulgar –, que, há três dias, as suas crias novas partiram aquela vedação do fundo e fugiram.

– Qual? – perguntou Miriam, trémula.

O grande cavalo resfolegava pesadamente, agitando os flancos encarniçados e olhando-os desconfiado, com os seus olhos grandes, maravilhosos, mantendo a cabeça baixa e a crina pendente.

– Venham comigo – respondeu Limb – qu’eu amostro-lhes.

O homem e o garanhão seguiram à frente. O cavalo dançava de lado, agitando o topete branco e parecendo assustado, como se sentisse que estava no meio do regato.

– Nada de bailaricos – disse o homem ao animal, afectuosamente.

O cavalo galgou a margem em pequenos saltos e chapinhou delicadamente entrando no segundo regato. Clara, caminhando numa espécie de abandono amuado, olhava meio fascinada, meio desdenhosa. Limb parou e apontou para uma vedação sob uns salgueiros.

– Ali, tá a ver por onde eles passaram? – disse ele. – Os meus homens trouxeram-nos de volta três vezes.

– Sim – balbuciou Miriam, corando como se a culpa fosse sua.

– Querem entrar? – convidou o homem.

– Não obrigado... mas gostaríamos de ir até ao lago.

– Se quiserem – disse ele.

O cavalo relinchou de satisfação por se ver tão próximo de casa.

– Está todo contente por estar de volta – comentou Clara, que estava interessada na criatura.

– Pois está... Hoje teve uma jornada muito cheia.

Atravessaram o portão e viram aproximar-se deles, vinda da casa grande da quinta, uma mulher morena e de baixa estatura, aparentando uma natureza emotiva e cerca de trinta e cinco anos. Tinha o cabelo já um pouco tingido de grisalho e os olhos pareciam selvagens. Avançava de mãos atrás das costas. O seu irmão continuou em frente. Ao vê-la, o grande garanhão relinchou de novo. Ela aproximou-se, excitada.

– Já estás em casa outra vez, meu rapaz! – disse, ternamente, dirigindo-se ao cavalo, não ao homem. O grande animal girou em torno dela, baixando a cabeça. A mulher meteu-lhe na boca a maçã enrugada e amarela que escondera atrás das costas e depois beijou-o perto dos olhos. O cavalo resfolegou de prazer. Ela segurou-lhe a cabeça entre os braços, e apertou-a contra o peito.

– É esplêndido! – disse Miriam.

Miss Limb ergueu os olhos. Eram escuros e dirigiram-se directamente a Paul.

– Oh, boa tarde, Miss Leivers – cumprimentou ela. – Há anos que não a vemos cá por baixo.

Miriam apresentou-lhe os amigos.

– O seu cavalo é um óptimo companheiro! – disse Clara.

– Pois é! – E beijou-o novamente. – Tão dedicado como um homem!

– Mais dedicado que a maioria dos homens, penso eu – retorquiu Clara.

– É um bom menino! – disse a mulher, abraçando de novo o cavalo.

Clara, fascinada pelo grande animal, aproximou-se para lhe afagar o pescoço.

– Ele é muito meigo – disse Miss Limb. – Não acha que todas as criaturas grandes o são?

– É uma beleza! – respondeu Clara.

Queria olhá-lo nos olhos. Queria que ele olhasse para ela.

– É uma pena que não possa falar – disse.

– Oh, mas ele pode... diz tudo – retorquiu a outra mulher.

Depois, o irmão foi-se embora com o cavalo.

– Então, não vão entrar? Faça o favor de entrar, Mr... desculpe, não percebi o seu nome...

– Morel! – disse Miriam. – Não, não vamos entrar, mas gostaríamos de passar pela represa.

– É claro, estejam à vontade. O senhor pesca, Mr. Morel?

– Não – respondeu Paul.

– Porque, se pesca, pode vir pescar quando quiser – ofereceu Miss Limb. – Raramente vemos alguém durante a semana. Até lhe agradecia.

– Que peixes há no lago? – perguntou Paul.

Passaram pelo jardim da frente da casa, sobre o açude, e subiram a margem íngreme até ao lago, que repousava na sombra, com as suas duas ilhotas de madeira. Paul caminhava ao lado de Miss Limb.

– Não me importava de vir nadar para aqui – disse ele.

– Então, venha – convidou ela. – Venha quando quiser. O meu irmão ficará muito contente por conversar consigo. Ele é assim calado porque não tem com quem falar. Venha nadar quando quiser.

Clara aproximou-se.

– Tem uma boa profundidade – comentou. – E é tão límpido.

– É verdade – disse Miss Limb.

– Sabes nadar? – perguntou Paul. – Miss Limb estava agora mesmo a dizer que podíamos vir quando quiséssemos.

– É claro que há os criados da lavoura – disse Miss Limb.

Conversaram durante alguns minutos e depois continuaram, colina acima, deixando na margem a solitária senhora de olhar esgazeado.

A vertente da colina estava amadurecida pelo sol. Era selvagem e coberta de tufos de urze, abandonada aos coelhos. Os três caminhavam em silêncio. Paul disse então:

– Ela faz-me sentir desconfortável.

– Referes-te a Miss Limb? – perguntou Miriam. – É verdade!

– Qual será o problema dela? Estará a ficar tonta por viver demasiado solitária?

– Parece que sim – concordou Miriam. – Isto não é vida para ela. Acho uma crueldade enterrá-la aqui. Eu devia vir visitá-la mais vezes. Mas... ela perturba-me.

– Faz-me sentir pena dela... é verdade, e aborrece-me – disse ele.

– Eu acho – disse Clara subitamente – que o que ela quer é um homem.

Os outros dois ficaram mudos durante alguns instantes.

– Mas é a solidão que a deixa assim amalucada – disse Paul.

Clara não respondeu, prosseguindo a caminhada colina acima. Caminhava cabisbaixa, com as pernas oscilando à medida que pisava por entre os cardos secos e os tufos de erva, e os braços pendendo soltos. Em vez de andar, o seu belo corpo parecia vaguear às cegas pela encosta acima. Uma onda de calor invadiu Paul. Estava curioso acerca dela. Talvez a vida tivesse sido cruel com Clara. Esqueceu Miriam, que caminhava a seu lado, conversando consigo. Ela olhou para ele ao ver que ele não lhe respondia. O olhar dele estava fixo em Clara.

– Ainda achas que ela é uma antipática? – perguntou Miriam.

Ele nem reparou que a pergunta era despropositada. É que também lhe andava a bailar no pensamento.

– Passa-se algo com ela – respondeu.

– Sim – concordou Miriam.

No cimo da colina encontraram uma tapada bravia, escondida dos olhares; dois dos seus lados eram delimitados pelo bosque, os outros dois por sebes altas de espinheiros e sabugueiros. Por entre estes arbustos densos, viam-se aberturas por onde o gado poderia ter passado, se ali houvesse ainda gado. Naquele sítio a relva era macia e aveludada, fofa e esburacada pelos coelhos. O campo propriamente dito nunca fora cultivado e estava inundado de primaveras grandes e altas que nunca haviam sido cortadas. As flores brotavam fortes em ramalhetes por todo o lado, erguendo-se acima dos grosseiros tufos de erva. Parecia uma angra repleta de altos mastros de navios.

– Ah! – exclamou Miriam, voltando para Paul os olhos escuros dilatados. Ele sorriu. Juntos, gozaram a visão do campo de flores. Clara, um pouco afastada, olhava as primaveras, desconsoladamente. Paul e Miriam ficaram juntos, conversando em voz baixa. Ele ajoelhou-se, colhendo rapidamente os melhores botões, movimentando-se incessantemente de ramalhete em ramalhete, falando sempre num tom suave. Miriam colhia as flores ternamente, detendo-se diante de cada uma delas. Ele parecia-lhe sempre demasiado rápido, quase científico. No entanto, os ramos dele tinham uma beleza natural, mais do que os dela. Ele amava-os, mas como se fossem seus e tivesse direito a eles. Ela tinha uma maior reverência para com as flores: tinham algo que ela não possuía.

As flores eram muito frescas e doces. Ele queria bebê-las. Enquanto as colhia, comeu até uns pequenos jasmins amarelos. Clara continuava a vaguear desconsoladamente. Dirigindo-se a ela, Paul perguntou:

– Porque não colhes algumas?

– Não acho bem. Elas parecem melhor a crescer no campo.

– Mas gostarias de algumas?

– Elas querem ser deixadas em paz.

– Não acho que queiram nada disso.

– Não quero ter cadáveres de flores à minha volta – disse ela.

– Essa é uma ideia pomposa e artificial – replicou ele. – Elas não morrem mais depressa na água do que nas próprias raízes. E, além disso, ficam bem numa jarra, parecem felizes. E só podemos chamar cadáver a uma coisa quando ela tem a aparência de cadáver.

– Mesmo sendo ou não cadáver? – argumentou ela.

– Para mim não o são. Uma flor morta não é o cadáver de uma flor.

Desta vez, Clara ignorou-o.

– Mesmo assim... que direito tens tu de as arrancar? – perguntou ela.

– Gosto delas e quero-as... e há muitas mais.

– E achas isso suficiente?

– Sim, porque não? Estou certo de que deixariam um agradável perfume no teu quarto em Nottingham.

– E eu teria o prazer de as ver morrer.

– Mas então... não te interessa se elas morrem.

Dito isto, deixou-a, pisando os maciços de flores emaranhadas, que cobriam espessamente o campo, como pálidas e luminosas formações de espuma. Miriam aproximara-se. Clara estava ajoelhada, aspirando o aroma das primaveras.

– Eu acho – disse Miriam – que se as tratarmos com reverência, não lhes fazemos mal... o que conta é o espírito com que as colhemos.

– Isso é verdade – concordou ele. – Mas nós colhemo-las porque as queremos, é tudo. E exibiu o seu ramalhete.

Miriam estava silenciosa. Paul colheu mais algumas flores.

– Olhem para estas! – continuou Paul. – Robustas e sadias como pequenas árvores ou meninos de pernas gordas...

O chapéu de Clara estava pousado na erva, não muito longe. Ela estava ajoelhada, ainda inclinada para a frente, a sentir o perfume das flores. A visão do seu pescoço fez Paul sentir uma ânsia aguda, de tão belo que era, embora naquele momento ele não se sentisse muito orgulhoso de si mesmo. Os seios dela agitavam-se ligeiramente na blusa. A curva arqueada das suas costas era bonita e forte: ela não usava corpete. Subitamente, sem saber, ele estava a espalhar uma mão-cheia de primaveras sobre o seu cabelo e o seu pescoço, dizendo:


«Cinzas às cinzas e pó ao pó será.

Se o Senhor não te receber, o Diabo o fará.»


As flores frescas caíram sobre o pescoço de Clara. Ela ergueu o rosto para ele, onde dois olhos cinzentos e assustados, quase cheios de compaixão, se interrogavam sobre o que ele estava a fazer. Sobre o seu rosto caíram flores e ela cerrou os olhos.

De súbito, ali de pé ao lado dela, ele sentiu-se estranho.

– Pensei que querias um funeral – disse, embaraçado.

Clara riu de forma estranha e levantou-se, tirando as primaveras do cabelo. Pegou no chapéu e colocou-o na cabeça. Uma flor permaneceu presa ao seu cabelo, mas Paul não lhe disse nada. Depois, recolheu as flores que espalhara sobre ela.

Nos limites do bosque, os miosótis tinham-se estendido pelo campo, aí ficando como água da corrente. Mas murchavam agora. Clara vagueava sobre eles. Ele seguiu-a. Os miosótis agradavam-lhe.

– Olha como saíram do bosque! – disse.

Nesse momento, ela voltou-se com uma centelha de calor e gratidão.

– É verdade! – sorriu.

O sangue de Paul correu mais rápido.

– Fazem-me pensar nos homens selvagens dos bosques... como eles devem ter-se sentido aterrorizados quando se defrontaram cara a cara com o espaço aberto.

– Achas que sim? – perguntou ela.

– Entre as tribos antigas, pergunto-me quais teriam mais medo: as que irrompiam da escuridão dos bosques para todo um espaço de luz, ou as das áreas abertas, penetrando pé ante pé nas florestas.

– Acho que as segundas – respondeu ela.

– Sim, tu sentes-te realmente como uma pessoa de espaços abertos... tentando forçar-se a penetrar no escuro, não é verdade?

– Como é que posso saber? – respondeu ela, de um modo singular.

A conversa ficou por aqui.

A noite adensava-se sobre a terra. O vale já se cobria de sombras. Um minúsculo quadrado de luz subsistia ainda do lado oposto à quinta de Crossleigh Bank. Um brilho incandescente inundava os cumes das colinas. Miriam subiu lentamente, com o rosto enterrado no seu grande e solto ramalhete de flores, caminhando através da espuma dispersa das primaveras que lhe cobria o tornozelo. Atrás dela, as árvores transformavam-se agora em formas, todas elas sombras.

– Vamos? – perguntou.

E os três voltaram para trás. Permaneceram em silêncio. Descendo o trilho de terra, podiam ver a luz de casa mesmo em frente e, no cume da colina, uma leve silhueta escura pontilhada de luzinhas, onde a aldeia da mina de carvão tocava o céu.

– Foi agradável, não foi? – perguntou ele.

Miriam concordou, num murmúrio. Clara ficou em silêncio.

– Não achas? – insistiu ele.

Mas ela caminhava com a cabeça erguida e não respondia. Pela sua maneira de andar, como se nada lhe importasse, ele podia adivinhar o seu sofrimento.

Por esta altura, Paul levou a mãe a Lincoln. Ela estava entusiasmada e resplandecente como nunca, mas, sentada diante dele na carruagem do comboio, parecia frágil. E Paul teve uma sensação fugaz, como se ela estivesse a deslizar para longe dele. Então, quis agarrá-la, prendê-la, quase acorrentá-la. Sentia que tinha de a segurar com as próprias mãos.

Aproximavam-se da cidade. Iam ambos à janela, procurando vislumbrar a catedral.

– Ali está ela, mãe! – gritou Paul.

Avistaram a grande catedral erguendo-se acima da planície.

– Ah! – exclamou ela. – Pois está!

Ele olhou para a mãe. Os seus olhos azuis observavam a catedral em silêncio. Novamente ela parecia para lá dele. Algo da serenidade eterna da elevada catedral, azul e nobre contra o céu, algo da sua fatalidade, estava nela reflectido. O que era, era! – mesmo com toda a sua juventude, ele não podia alterá-lo. Olhou o rosto dela: a pele era ainda fresca, cor-de-rosa e aveludada, mas notavam-se já alguns pés-de-galinha em torno dos olhos; as pálpebras eram firmes, afundando-se um pouco, e a boca sempre fechada, em desilusão; e havia nela o mesmo olhar eterno, como se, finalmente, conhecesse o destino. E ele debatia-se contra o destino com todas as forças da sua alma.

– Veja, mãe, como se eleva sobre a cidade! E pensar que há ruas e ruas abaixo dela; parece maior que toda a cidade.

– Pois parece! – exclamou a mãe, voltando novamente à vida. Mas ele vira-a sentada, olhando fixamente pela janela para a catedral, de rosto e olhar parados, reflectindo a inexorabilidade da vida. E os pés-de-galinha em redor dos seus olhos e a boca tão duramente cerrada fizeram-no sentir que enlouquecia.

Fizeram uma refeição que ela considerou desnecessariamente extravagante.

– Não penses que eu gosto disto – disse, enquanto comia a costeleta. – Não gosto, não gosto mesmo nada! Só de pensar no teu dinheiro, assim desperdiçado!

– Não se preocupe com o meu dinheiro – respondeu ele. – Esquece-se de que sou um rapaz que leva a namorada a jantar fora?

Depois, comprou-lhe violetas azuis.

– Pára já com isso, menino! – ordenou ela. – Como é que eu vou fazer uma coisa dessas?

– Não tem de fazer nada! Fique quieta.

E, em plena High Street, Paul pregou as flores no casaco da mãe.

– Uma velha como eu! – protestou ela, aspirando o perfume.

– Bem vê – explicou ele –, quero que as pessoas pensem que somos terrivelmente finos. Portanto, a mãe tem de se apresentar à altura.

– Merecias que eu te desse um tabefe – disse ela.

– Vá lá... – ordenou ele –, pavoneie-se... como um pombo de cauda em leque.

Levaram uma hora a percorrer a rua. Mrs. Morel deteve-se primeiro junto ao Glory Hole, depois diante de Stone Bow, deteve-se em todo o lado, soltando exclamações. Um homem aproximou-se, tirou o chapéu e fez-lhe uma vénia:

– Permita-me que lhe mostre a cidade, minha senhora.

– Não, obrigada – respondeu ela. – Tenho o meu filho.

Nesse momento, Paul ficou furioso com ela por não ter respondido com mais dignidade.

– Tu deixas-te levar por ti mesmo – exclamou ela. – Ah, aquela é a Casa do Judeu! Lembras-te daquele sermão, Paul...

Ela mal podia subir a colina que conduzia à catedral, mas ele não notou. De repente, porém, foi dar com ela incapaz de falar. Conduziu-a a um pequeno bar, onde descansou.

– Não é nada! – disse a mãe. – O meu coração só está a ficar velhote; é de se esperar.

Paul não respondeu, mas olhou para ela. E novamente o seu coração foi esmagado por um aperto escaldante. Queria gritar, queria desfazer tudo, em fúria.

Retomaram o passeio, passo a passo, muito lentamente. E cada passo parecia um peso no peito de Paul. Sentia-se como se o seu coração fosse explodir. Finalmente, chegaram ao topo. Ela deteve-se encantada, olhando para o portão do castelo, admirando a fachada da Catedral. Tinha-se esquecido de si mesma.

– Isto é ainda melhor do que pensei que pudesse ser! – exclamou.

Mas ele odiava tudo. Por todo o lado a seguia, cismando. Sentaram-se juntos na Catedral. Assistiram a um curto serviço religioso no coro. Ela estava hesitante.

– Estará aberto para todos? – perguntou.

– É claro que está – respondeu ele. – Pensa que iam ter a lata de nos mandar embora?

– Bem – exclamou ela –, tenho a certeza de que teriam, se ouvissem a tua linguagem!

Durante o serviço, o seu rosto parecia resplandecer novamente de alegria e tranquilidade. E durante todo esse tempo, ele tinha vontade de se enraivecer, partir coisas e gritar.

Mais tarde, quando se debruçaram da muralha, admirando a cidade lá em baixo, Paul disse intempestivamente:

– Porque é que um homem não pode ter uma mãe jovem? Porque é que há-de ser sempre velha?

– Bem – disse ela, a rir – não me parece que tenha muita escolha.

– E porque não fui eu o filho mais velho? Ora veja... os filhos mais velhos dizem que os mais novos têm vantagem... mas veja bem, eles é que tiveram a mãe jovem. A mãe devia ter-me tido como seu filho mais velho.

– Não fui eu que escolhi – replicou ela. – Se pensares bem, és tão culpado como eu.

Ele voltou-se para ela, pálido, com o olhar irado.

– Porque é que a mãe é velha? – disse ele, enlouquecido pela sua impotência. Porque é que não pode andar? Porque é que não pode acompanhar-me a todos os lugares?

– Tempos houve – respondeu ela – em que eu era capaz de correr por essa colina acima melhor do que tu.

– E de que é que isso me vale, a mim? – gritou ele, golpeando a muralha com o punho. Depois, tornou-se lamuriento: – É uma pena que esteja doente, minha pequenina, é...

– Doente! – interrompeu ela. – Estou só a ficar velha, e tu tens de te conformar, é tudo. – Ficaram em silêncio. Mas não por muito tempo, e logo retomaram a boa disposição durante o chá. Enquanto estavam sentados na margem do Brayford, observando os barcos, Paul falou-lhe de Clara. A mãe fez inúmeras perguntas.

– E com quem vive ela?

– Com a mãe, em Bluebell Hill.

– E têm o suficiente para se manterem?

– Acho que não: penso que fazem rendas.

– Afinal que encantos lhe encontras tu, meu filho?

– Não sei se ela tem encantos, mãe. Mas é simpática. E parece correcta, sabe... Nada profunda, nem um pouco.

– Mas é bastante mais velha do que tu.

– Tem trinta, e eu vou fazer vinte e três.

– Mas não me disseste porque gostas dela.

– Porque não sei... será talvez o ar provocador que ela tem, uma espécie de revolta...

Mrs. Morel pensou um pouco. Teria ficado contente se o filho se apaixonasse por uma mulher que... ela não sabia bem o quê. Mas ele enervou-se, ficando subitamente furioso, e novamente melancólico. Ela só desejava que ele conhecesse uma rapariga agradável. Nem sabia o que desejava, mas deixou o assunto no ar. De certa forma, não era hostil à ideia de Clara.

Também Annie se ia casar. Leonard fora para longe trabalhar em Birmingham. Um fim-de-semana em que ele estava lá em casa, Mrs. Morel dissera-lhe:

– Não estás com boa cara, meu filho.

– Não sei o que tenho – respondeu ele. – Sinto-me perdido, mãe.

Chamava-a já de mãe, com o seu jeito infantil.

– Tens a certeza de que as instalações são boas? – perguntou ela.

– Sim... sim. Só que... é um aborrecimento quando temos de tomar sozinhos o nosso próprio chá... sem ninguém para nos ralhar, se o deitarmos para o pires e o bebermos daí. Não sei porquê mas tira o sabor ao chá.

Mrs. Morel riu-se.

– E então isso preocupa-te? – perguntou.

– Não sei... Quero casar – disse ele, de repente, torcendo os dedos e olhando para as botas. Houve uma pausa.

– Mas – exclamou ela – pensei que tinhas dito que querias esperar mais um ano.

– Pois foi, eu disse isso – respondeu ele, teimosamente.

Mrs. Morel considerou as palavras do filho por um momento.

– Sabes – continuou – a Annie é um pouco esbanjadora. Não amealhou mais de umas onze libras... e eu sei, meu filho, que tu não tens tido muita sorte.

Ele corou até às orelhas.

– Eu tenho vinte e três libras – respondeu.

– Com isso, não vão muito longe – disse Mrs. Morel.

Ele não respondeu, limitando-se a torcer os dedos.

– E tu sabes que eu não tenho nada... – continuou ela.

– Nem eu queria, mãe...! – gritou ele, muito vermelho, sofrendo e protestando.

– Não, meu filho, eu sei. Só tenho pena de não ter dinheiro. Tirando cinco libras para o casamento e preparativos... ficam vinte e nove libras... com isso não conseguem fazer grande coisa...

Ele continuou a torcer os dedos, impotente, obstinado, sem erguer os olhos.

– Mas queres mesmo casar? – perguntou ela. – Achas que deves?

Ele olhou-a de frente com os seus olhos azuis.

– Quero! – afirmou.

– Então – continuou ela – temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance.

Quando Leonard voltou a erguer o rosto, tinha lágrimas nos olhos.

– Não quero que a Annie passe dificuldades...! – disse ele, debatendo-se.

– Meu filho – disse ela – vocês namoram há muito tempo – tu tens um emprego decente. Se um homem tivesse precisado de mim, eu teria casado com ele mesmo sem dinheiro. Para ela pode ser um pouco difícil começar a vida humildemente. As raparigas muito novas são assim. Esperam ansiosas pelo belo lar que pensam que vão ter. Mas eu tinha mobílias caras! E isso não é tudo.

Assim, o casamento teve lugar quase de imediato. Arthur veio a casa, esplêndido no seu uniforme. Annie estava muito bonita num vestido cinza peito-de-rola que podia guardar para os domingos. Morel disse-lhe que era bem parva por se casar, e mostrou-se muito frio para com o genro. Mrs. Morel tinha plumas brancas no chapéu e mais algumas na blusa, e ambos os filhos a arreliaram por se embonecar tanto. Leonard estava alegre e cordial e sentia-se um tolo amedrontado. Paul não conseguia entender por que razão Annie queria casar-se. Sentia um grande carinho por ela, e ela por ele. Esperava, por isso, talvez um pouco melancolicamente, que tudo lhe corresse pelo melhor. Arthur estava surpreendentemente elegante no seu uniforme escarlate e amarelo e tinha plena consciência disso, mas sentia-se secretamente envergonhado por estar fardado. Annie debulhou-se em lágrimas na cozinha, ao despedir-se da mãe. Mrs. Morel chorou um pouco e, depois, afagou-lhe as costas, dizendo:

– Não chores, filha, ele vai ser bom para ti.

Morel bateu com os pés no chão violentamente, afirmando que ela era uma parva por se ter amarrado tão depressa. Leonard estava pálido e exausto. Mrs. Morel disse-lhe:

– Confio-ta, meu filho, e considero-te responsável por ela.

– Pode confiar em mim – assegurou ele, quase morto com tanta confusão. E estava tudo acabado.

Quando Morel e Arthur se recolheram, Paul sentou-se a conversar com a mãe, como tantas vezes fazia.

– Não tem pena de ela se ter casado, pois não, mãe? – perguntou ele.

– Não tenho pena de ela ter casado... mas... é uma sensação estranha... vê-la partir para longe de mim. Até me parece impossível que ela prefira ir com o Leonard. Mas as mães são assim... eu sei que é tolice.

– E vai ficar triste por causa dela?

– Quando penso no dia do meu casamento – respondeu a mãe – só posso esperar que a vida dela seja diferente.

– Mas confia nele... para a tratar bem?

– Sim, sim! Há quem diga que ela podia ter arranjado melhor. Mas eu acho que, se um homem é genuíno, como é o Leonard, e uma rapariga gosta dele... então... está tudo bem... ele é tão bom quanto ela.

– Nesse caso, não se importa?

– Nunca deixaria uma filha minha casar com um homem que eu não sentisse ser completamente genuíno. E, no entanto, cá está este vazio, agora que ela se foi...

Sentiam-se ambos tristes e queriam-na de volta. Paul achava que a mãe parecia muito sozinha, na sua nova blusa de seda preta com guarnições brancas.

– De qualquer modo, mãe, eu nunca me casarei – afirmou ele.

– Ah, todos dizem o mesmo, meu filho. Ainda não encontraste a mulher ideal. Espera um ano ou dois, e vais ver.

– Mas eu não me caso, mãe... fico a viver consigo, e vamos ter uma criada.

– Ah, meu filho... falar é fácil. Veremos quando chegar a altura.

– Que altura? Eu tenho quase vinte e três anos.

– Sim... não és dos que se casam cedo. Mas daqui a três anos...

– Estarei consigo na mesma.

– Veremos, meu filho, veremos.

– Mas a mãe não quer que eu case?

– Não gostaria de pensar que vais continuar pela vida fora sem ninguém para tomar conta de ti e te fazer... não, não gostaria...

– Acha então que devo casar-me?

– Mais cedo ou mais tarde, todos os homens devem casar-se.

– Mas preferia que fosse mais tarde.

– Será difícil... muito difícil. É como o povo diz:


«Quem casa filho, perde um filho;

quem casa filha, ganha um filho.»


– E pensa que eu deixaria uma mulher afastar-me de si?

– Bem, não poderias pedir-lhe que casasse contigo e com a tua mãe – sorriu Mrs. Morel.

– Ela que fizesse o que quisesse... desde que não interferisse.

– Não o faria... até te ter apanhado... Mas depois verias...

– Então nunca vou ver. Nunca me casarei enquanto a tiver a si... Nunca.

– Mas eu não gostaria de te deixar sem ninguém, meu filho – disse Mrs. Morel, chorando.

– A mãe não vai deixar-me. A mãe tem... cinquenta e três anos! Dou-lhe até aos setenta e cinco. Ora aí tem, nessa altura, estou eu gordo e com quarenta e quatro anos, e então posso casar com uma mulher séria. A mãe vai ver...!

A mãe sentou-se, a rir.

– Vai deitar-te – disse ela –, vai deitar-te.

– E havemos de ter uma casa bem bonita, a mãe e eu, e uma criada, e tudo será perfeito. Talvez eu venha a ficar rico com a minha pintura.

– Já para a cama!

– E a mãe terá uma caleche puxada por um potro. Imagina-se... uma pequena Rainha Vitória por aí a trotar.

– Já te disse para ires para a cama – disse ela, a rir.

Ele beijou-a e saiu. Os seus planos para o futuro eram sempre os mesmos.

Mrs. Morel ficou a matutar sobre a filha, sobre Paul, sobre Arthur. Lamentava-se por ter perdido Annie. A família era muito unida, e ela sentia que agora tinha de viver, para estar com os filhos. A vida tinha-lhe dado tanta coisa. Paul amava-a e Arthur também. Arthur nunca soube o quanto a amava. Era uma criatura de momentos. Até agora, nunca tinha sido obrigado a compreender--se a si mesmo. O exército disciplinara o seu corpo, mas não a sua alma. Estava de perfeita saúde e era muito atraente. O seu cabelo negro e espesso assentava-lhe bem na cabeça pequena. Havia algo de infantil no seu nariz, algo quase feminino nos seus olhos azuis, muito escuros. Mas tinha a boca vermelha e cheia de um homem, sublinhando o bigode, e o queixo era vigoroso. A boca era do pai, e o nariz e os olhos da família da mãe, gente bonita, de fracos princípios. Mrs. Morel andava ansiosa, preocupada com o filho. Desde que assumisse realmente o uniforme, estava seguro. Mas até onde iria ele?

Na verdade, o exército não lhe tinha feito nenhum bem. Ressentia-se amargamente da autoridade dos oficiais subalternos. Detestava ter de obedecer, como se fosse um animal. Mas tinha o bom senso de não protestar. Por isso, concentrara toda a sua atenção na tentativa de tirar o melhor partido da situação. Sabia cantar, era um companheiro alegre. Por vezes, envolvia-se em situações difíceis, mas eram as dificuldades próprias de um homem, facilmente perdoáveis. Assim, tirava disso o melhor partido, enquanto o seu autorespeito se ia recalcando. Confiava na sua boa aparência e elegância, no seu requinte e boa educação, para conseguir quase tudo o que desejava, e não estava desiludido. No entanto, sentia-se inquieto. Algo parecia atormentá-lo por dentro. Nunca estava quieto, nunca estava sozinho. Com a mãe, mostrava-se bastante humilde. Admirava Paul, amava-o até, mas desprezava-o ligeiramente. E Paul, por sua vez, admirava e amava o irmão, mas desprezava-o ligeiramente.

Mrs. Morel recebera algumas libras da herança do pai, e decidiu comprar a saída do filho do exército. Ele não cabia em si de contente. Parecia um garoto em férias.

Sempre gostara de Beatrice Wyld e, durante a sua licença, reatou a velha amizade. Ela estava agora mais forte e de melhor saúde. Os dois davam frequentemente longos passeios, e Arthur levava-a pelo braço à boa maneira dos soldados, com alguma rigidez. Beatrice tocava piano enquanto ele cantava. Arthur desapertava, então, o colarinho da túnica, ia ficando cada vez mais corado, com o olhar brilhante, e cantava com uma voz máscula de tenor. Depois, sentavam-se juntos no sofá. Ele parecia exibir o seu corpo, e ela mostrava-se bem consciente dele, do peito forte, dos flancos, das coxas cingidas nas calças justas.

Ele gostava de se resvalar para o dialecto quando conversava com ela. Por vezes, Beatrice acompanhava-o e fumava também um cigarro. Noutras ocasiões, tirava apenas umas passas do cigarro dele.

– Não – disse ele uma noite, quando ela lhe pediu o cigarro: – Nem penses. Se quiseres, dou-te um beijo com fumo.

– Quero uma passa, não quero beijo nenhum – respondeu ela.

– Então... é isso que vais ter – disse ele – juntamente com o beijo.

– Quero dar uma passa no teu cigarro – irritou-se ela, tentando tirar-lhe o cigarro dos lábios.

Arthur estava sentado com o ombro encostado ao dela. Ela era pequena e rápida como um raio. Só a custo ele conseguiu escapar-lhe.

– Dou-te um beijo de fumo – disse ele.

– És um descarado impertinente, Arty Morel – disse ela, recostando-se no sofá.

– Deixa-me dar-te um beijo de fumo!

O soldado inclinou-se, sorrindo. O seu rosto estava próximo do dela.

– Olha o disparate! – replicou ela, virando a cabeça.

Arthur aspirou uma longa fumaça, fechou a boca e pôs os lábios perto dela. O seu bigode escuro e bem aparado sobressaía como uma escova. Beatrice olhou para os lábios rubros, pregueados, e depois, subitamente, conseguiu arrancar-lhe o cigarro dos dedos e fugiu para longe. Ele, correndo atrás dela, tirou-lhe a travessa que lhe prendia os cabelos. Ela voltou-se e atirou-lhe o cigarro. Ele apanhou-o, pô-lo na boca e sentou-se.

– Parvalhão! – gritou ela. – Dá-me a minha travessa!

Receava que o seu cabelo, especialmente penteado para ele, se desmanchasse, e conservou as mãos na cabeça. Ele escondeu a travessa entre os joelhos.

– Não a tenho – disse.

Com o riso, o cigarro tremia-lhe entre os lábios enquanto falava.

– Mentiroso! – acusou ela.

– Tão certo como eu estar aqui! – E riu-se, mostrando as mãos.

– Seu demónio desavergonhado! – exclamou ela, precipitando-se para ele, lutando para recuperar a travessa que ele tinha entre os joelhos. Enquanto Beatrice lutava com ele, puxando-lhe as coxas macias e apertadamente cingidas, Arthur riu-se até cair para trás no sofá, sacudido pelas gargalhadas. O cigarro caiu-lhe da boca e quase lhe queimou a garganta. Sob o delicado bronzeado, o sangue subiu à superfície, e ele riu até os seus olhos azuis ficarem cegos e a garganta inchada, quase sufocando. Depois, endireitou-se. Beatrice estava a colocar a travessa no lugar.

– Fizeste-me cócegas, Beat – disse ele, com a voz rouca.

Como um relâmpago, a mão dela, pequena e branca, voou e esbofeteou-lhe a face. Ele ergueu-se de um salto, com um olhar feroz. Entreolharam-se. Lentamente, um rubor subiu às faces dela; baixou os olhos, depois a cabeça. Ele sentou-se novamente, amuado. Ela entrou na cozinha para compor o cabelo. Aí, sozinha, verteu algumas lágrimas, não sabendo bem por que razão.

Quando regressou, estava recomposta. Mas era apenas uma capa sobre o seu fogo interior. Arthur, com a cabeleira revolta, continuava amuado no sofá. Beatrice sentou-se diante dele, no cadeirão, e nenhum dos dois falou. O relógio martelava no silêncio, com pancadas secas.

– És uma gatinha arisca, Beat – disse ele devagar, quase como um pedido de desculpas.

– Bem, e tu não devias ser tão atrevido – retorquiu ela.

Seguiu-se novamente um longo silêncio. Ele assobiava para si mesmo, como um homem muito agitado, mas provocador. Subitamente, ela atravessou a sala direita a ele e beijou-o.

– Então, dei ou não dei? – troçou ela.

Ele levantou o rosto para ela, sorrindo de forma singular.

– Dás-me outro? – convidou ele.

– Julgas que não me atrevo? – perguntou ela.

– Coragem! – desafiou-a ele, com a boca estendida na sua direcção.

Deliberadamente, e com um sorriso fremente que parecia espalhar-se a todo o corpo, ela colocou a boca sobre a dele. Imediatamente, os braços de Arthur se fecharam em torno dela. Assim que o longo beijo acabou, ela afastou a cabeça, e meteu os dedos delicados no pescoço dele, por dentro do colarinho aberto. Depois, fechando os olhos, abandonou-se de novo num beijo.

Agia agora de livre vontade. O que desejava fazer, fizera-o e não responsabilizava ninguém.

Paul sentia a vida mudar à sua volta. As condições da juventude tinham desaparecido. Agora, a sua era uma casa de pessoas adultas. Annie era uma mulher casada, Arthur seguia o seu próprio prazer de um modo que a família ignorava. Durante muito tempo, tinham vivido em casa, saindo para passar o tempo. Mas agora, para Annie e Arthur, a vida desenrolava-se fora de casa da mãe. Só vinha a casa de férias ou para descansar. Por isso, pairava no ar aquela sensação estranha de vazio, como se os passarinhos tivessem levantado voo. Paul andava cada vez mais inquieto. Annie e Arthur haviam partido. Ele estava ansioso por lhes seguir o exemplo. No entanto, a casa era, para ele, ao lado de sua mãe. E, contudo, havia algo mais, algo cá fora, algo que ele desejava.

Andava cada vez mais desassossegado. Miriam não o satisfazia. O seu antigo desejo, quase loucura, de estar com ela, enfraquecera. Por vezes, encontrava Clara em Nottingham, por vezes acompanhava-a a reuniões, por vezes via-a em Willey Farm. Mas ultimamente a situação tornara-se constrangedora. Havia um triângulo de antagonismo entre Paul, Clara e Miriam. Com Clara, ele adoptava um tom vivo, mundano e trocista que era muito desagradável para Miriam. Não lhe importava o que acontecera antes. Ela podia ser íntima e estar triste com ele. Depois, assim que Clara aparecia, tudo desaparecia, e ele representava para a recém-chegada.

Miriam disfrutara de uma bela noite na companhia de Paul, sentados no feno. Ele estivera ocupado na cavalariça e, quando acabou, veio ajudá-la a colocar o feno em pequenos molhes. Depois, falou-lhe das suas esperanças e desesperos, e toda a sua alma parecia estar ali, desnuda diante dela. Ela sentiu-se como se visse nele a própria essência trémula da vida. A Lua despontou; regressaram juntos a casa; parecia que ele a procurara porque precisava desesperadamente dela, e ela escutou-o, deu-lhe todo o seu amor e confiança. A Miriam parecia que ele lhe trouxera o melhor que havia em si para guardar, e que ela o guardaria enquanto vivesse. Não, o céu não cuidaria das estrelas melhor e mais eternamente do que ela guardaria o que de bom havia na alma de Paul Morel. Entrou em casa sozinha, sentindo-se exaltada, satisfeita com a sua confiança.

E depois, no dia seguinte, Clara chegou. Estava combinado tomarem o chá no campo de feno. Miriam viu a tarde vestir-se de dourado e depois de sombras. Durante todo esse tempo, Paul brincava com Clara. Fazia montes de feno cada vez maiores sobre os quais saltavam. Miriam não se interessava pelo jogo e manteve-se afastada. Edgar, Geoffrey, Maurice, Clara e Paul não paravam de saltar. Paul venceu, pois era muito leve. O sangue de Clara estava inflamado. Ela corria como uma amazona. Paul adorava a forma determinada como ela se precipitava para o monte de feno e saltava, aterrando do outro lado, com os seios sacudidos e o cabelo espesso em desalinho.

– Tocaste! – gritou ele. – Tocaste!

– Não toquei nada! – dardejou ela, voltando-se para Edgar. – Não toquei, pois não? Não achas que passei bem?

– Não sei. – E Edgar riu-se.

Nenhum deles sabia dizer.

– Mas tu tocaste – insistiu Paul. – E perdeste.

– Não toquei! – gritou ela.

– Tão claro como água – teimou Paul.

– Dá-lhe um puxão de orelhas por mim – gritou ela a Edgar.

– Não – disse Edgar a rir –, não me atrevo. Tens de ser tu a fazê-lo.

– Nada vai alterar o facto de teres tocado – insistiu Paul, trocista.

Ela estava furiosa. O seu pequeno triunfo diante de homens e rapazes desvanecera-se. Ela esquecera-se de si durante o jogo. Agora, ele queria humilhá-la.

– Acho que és desprezível! – disse-lhe ela.

Ele riu novamente, de um modo que torturou Miriam.

– Eu já sabia que não conseguias saltar aquele monte – provocou Paul.

Clara voltou-lhe as costas. Contudo, todos podiam ver que a única pessoa que ela escutava, ou da qual estava consciente, era ele, e ele dela. Agradava aos homens assistir a esta batalha entre eles. Mas Miriam torturava-se.

Via agora que Paul podia escolher o inferior em vez do superior. Ele conseguia ser infiel a si próprio, infiel ao verdadeiro e profundo Paul Morel. Havia o perigo de ele se tornar frívolo, de correr atrás das suas satisfações como qualquer Arthur, ou como o seu próprio pai. Pensar que ele pudesse desperdiçar a sua alma em troca desta irreverente relação de trivialidade com Clara era algo que atormentava Miriam. Caminhava amargurada e em silêncio, enquanto os outros dois brigavam entre si e Paul se divertia.

Mais tarde, embora se recusasse a admiti-lo, Paul sentiu-se envergonhado de si mesmo e prostrou-se diante de Miriam. Então, de novo se revoltou.

– Não é religioso ser-se religioso – disse. – Considero que um corvo é religioso quando cruza os céus. Mas só o faz porque se sente levado para onde vai, não porque pense que está a ser eterno.

Mas Miriam sabia que uma pessoa podia ser religiosa em tudo, ter Deus, fosse Ele quem fosse, presente em tudo.

– Não acredito que Deus saiba assim tanto sobre Si mesmo – bradou Paul. – Deus não sabe as coisas, Ele é as coisas... E estou certo de que não é sentimental.

A ela parecia-lhe que Paul tentava pôr Deus do seu lado, porque queria que as coisas fossem à sua maneira e desejava apenas o seu prazer. Travou-se uma longa batalha entre ambos. Ele era-lhe absolutamente infiel até mesmo na sua presença; depois ficava envergonhado, arrependido, para logo em seguida a odiar e fugir novamente. Essa era a situação eternamente repetida.

Ela irritava-o até ao mais fundo da sua alma. Depois, ali ficava, triste, pensativa, em adoração. E ele fazia-a sofrer. Metade do tempo, ele sofria por ela, metade do tempo, odiava-a. Ela era a sua consciência, e ele sentia que, de algum modo, tinha uma consciência que era de mais para si. Não podia deixá-la, porque, de certa forma, ela detinha em seu poder o melhor que havia nele. Não podia ficar com ela, porque ela não recebia tudo o resto, o que vinha por acréscimo, e eram três quartos. Por isso, desgastava-se em crueldade para com ela.

Quando ela fez vinte e um anos, ele escreveu-lhe uma carta que apenas podia ter sido escrita para ela.

«Será que devo escrever-te uma carta de aniversário? Parece um pouco pernicioso fazê-lo deliberadamente, não achas? Porque é certo que vou ser presunçoso e sentencioso.» Seguia-se então uma boa dose de presunção:

«A minha última carta preparava-te, não é verdade, para as alegrias da idade que se aproximava. Não te sentes como uma herdeira ao tomar posse da sua herança? É que agora, tornas-te publicamente dona de ti mesma. Querias mais?... Impossível!»

Paul começava a sentir o sentimento de culpa a torturá-lo. Parecia despedaçado por dentro, como se não pudesse manter-se de pé, mas devesse esforçar-se por não cair.

«Deixa-me falar do nosso velho e desgastado amor, pela última vez. Também ele está a mudar, não te parece? É como se o corpo desse amor tivesse morrido, deixando-te a sua alma invulnerável! Sabes, eu posso dar-te um amor espiritual, como sempre fiz du-rante estes longos, longos anos; mas não uma paixão encarniçada. Sabes, tu és uma freira. Eu dei-te aquilo que teria dado a uma freira sagrada... como um monge místico dá a uma freira mística; certamente que o estimas mais. No entanto, lamentas... não, lamentaste, melhor dizendo... o outro. Em todas as nossas relações, não entra o corpo. Não estou a falar-te através dos sentidos... mas através do espírito. É por isso que não somos capazes de amar no sentido comum. Muitas vezes, quando me dirijo a ti, não te olho de frente, porque, vê se entendes, eu não falo para os teus olhos, embora eles sejam escuros e belos, não falo para os teus ouvidos, ocultos sob uma delicada mecha de cabelo sedoso... mas para o teu íntimo, para lá de tudo isso. E assim continuarei a fazer a vida inteira, se o destino não intervier. Estás a ver? Compreendes agora porque só te beijo debaixo do azevinho. Entendes? E eu, será que entendo? Será talvez melhor, pensarás tu. Eu acho que sou demasiado educado, demasiado civilizado. Acho que muita gente o é.

«Tu ocupas um lugar na minha natureza que ninguém mais poderia preencher. Tu tens desempenhado um papel fundamental no meu desenvolvimento. E esta dor, que tem sido como uma nuvem ensombrando as nossas almas, não se começa ela a dissipar? A nossa não é uma afeição banal. E, no entanto, somos mortais, e viver lado a lado um com o outro seria terrível, pois, de algum modo, contigo não posso já ser trivial e, sabes, estar sempre para além deste estado mortal seria perdê-lo. Se as pessoas casam, devem viver juntas como seres humanos afectuosos que podem ser banais um com o outro sem se sentirem estranhos... não como duas almas. É assim que penso.

«Talvez me case nos próximos anos. Terá de ser uma mulher a quem possa beijar e abraçar, a quem possa fazer mãe dos meus filhos, com quem possa falar divertidamente, trivialmente, sinceramente, mas nunca com esta terrível seriedade. Vê como o destino dispôs as coisas. Tu... tu podes casar com um homem que não se derrame como fogo diante de ti. Pergunto-me se entendes... pergunto-me se eu próprio me entendo. Mas tu sabes que estas coisas me perturbam, e agora eis um final para a nossa conversa sobre este assunto. Perdoa-me por tudo o que disse – não é natural, eu sei – e queima esta carta, e não penses nela nem me faças pensar nela, e Deus nos ajude a suportar o fardo de nós próprios.

«Gostarias de um Manual de Ética? Acho que gostarias, sim, e podemos falar disso e aprender... oh, sim. E tu ficarás mais culta, não é? Como vês, a nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro.

«Agora tens vinte e um anos. Estou tão feliz por seres uma mulher independente. És tão forte quanto eu, não és? Sim, ainda mais forte. Oh, se temos de viver, temos de ser sensatos, e não nos podemos permitir ir longe de mais. Devemos ser triviais e procurar a beleza e não a dor, pois de outro modo ficamos numa situação difícil. Vá lá, nem uma palavra sobre os lugares sensíveis, por enquanto.

«Oh, como estaremos alegres na tua festa, no sábado! Eu, agora, não sinto nem um pouco de tristeza dentro do meu coração.

«Será que devo enviar-te esta carta? Duvido. Mas, afinal... é melhor, para que possas compreender. Adeus...»

Miriam leu a carta duas vezes, fechando-a em seguida. Um ano mais tarde, quebrou o selo para a mostrar à sua mãe.

«Tu és uma freira... tu és uma freira» – as palavras penetravam-lhe no coração uma e outra vez. Nada do que ele alguma vez dissera a penetrara tão profunda e firmemente, como se de uma ferida mortal se tratasse.

Ela respondeu-lhe dois dias depois da festa. «A nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro», citou. «Terá esse erro sido meu?»

Quase de imediato, ele respondeu-lhe de Nottingham, enviando-lhe ao mesmo tempo um pequeno Omar Khayyam.

«Vais encontrar muita coisa entre as finas capas deste pequeno livro, mas a lição a retirar é que devemos beber o vinho tinto da vida e deixá-lo embriagar-nos por um instante. Foi essa a razão por que o comprei. Também quero levar-te The Blessed Damosel, para passar um serão contigo e com Rossetti.

«Se o pequeno erro foi teu, perguntas tu. Bem, ninguém erra sozinho! A tua quota-parte do erro foi gloriosa, digna da imortalidade. Mas a minha foi um reconhecimento indomável do barro do vaso... frágil... rígido... confinador. E eu, alternadamente, amei e odiei a matéria mundana de mim mesmo. Quando a amava, era cruel para ti, quando a odiava, era cruel para mim, e para tudo o mais. Não tenho eu a faculdade de ser muito cruel?

«Se, na festa dos teus anos, eu estava ainda algo tempestuoso, foi porque reconheci no teu sol de quarta-feira o brilho lavado do teu longo dia de chuva de terça-feira. Eu não me sento e travo a descoberto as minhas batalhas, como tu fazes. Eu sacudo o inimigo pela garganta e grito-lhe que ele é um vilão e um cão. Com isso, ordeno-lhe que vá para longe de mim e, por um momento, fico em liberdade. Depois, digo a mim mesmo que se tratava de um pobre coitado e rio. Pouco depois, mergulho novamente nas trevas, ao descobrir que ele não se foi nem tão-pouco está morto... E, quando tudo isto se torna insuportável, travo com ele nova luta feroz. Através destas batalhas violentas venço, ou não venço. Sem triunfos, sem Waterloos. Assim, não sofro tão intensamente, e fico menos estável. Afinal de contas, é uma brincadeira, esta coisa de “nós”, não é?

«Estou feliz por teres respondido... És tão calma e natural que me envergonhas. Que oco que eu sou! Tenho de jogar duro... Tu não entendes como eu posso dançar em redor dos meus inimigos, invectivando-os e espiando-os, lançando mão de tudo o que me aparece no caminho, travando contendas ocasionais. Se eu me fechasse a tudo e mantivesse a dor apertada no peito, como tu fazes, morreria de exaustão. Nisso, as nossas naturezas são radicalmente opostas.

«Por isso, estamos tantas vezes em desacordo. Mas, no fundamental, estaremos sempre juntos, penso eu.

«Tenho de agradecer-te pela tua simpatia para com a minha pintura e os meus desenhos. Muitos dos esboços são dedicados a ti. Espero ansiosamente as tuas críticas, que, para minha vergonha e glória, são sempre grandes apreciações. Que deliciosa brincadeira que isso é.

«Adeus. Agora tenho de saldar uma maldita conta. Espero que queimes estas cartas. É minha regra queimá-las todas... pois nenhuma me dá prazer a não ser pela lembrança do prazer a que se referem, e muitas estão cheias de lágrimas secretas das quais devo fugir...»

Este foi o fim da primeira fase dos amores de Paul Morel. Estava agora com vinte e três anos e, embora virgem, o instinto sexual que Miriam refinara nele durante tanto tempo estava agora cada vez mais fortalecido. Muitas vezes, quando falava com Clara Dawes, sentia o sangue engrossar e alvoroçar-se, aquela concentração peculiar no peito, como se algo estivesse vivo lá dentro, um novo ser ou um novo centro de consciência, avisando-o de que, mais cedo ou mais tarde, teria de decidir-se por uma mulher ou por outra. Mas ele pertencia a Miriam. Disso ela estava absolutamente segura, de que ele lhe concedia esse direito.


X

CLARA

COM VINTE E TRÊS anos, Paul mandou uma paisagem sua para a Exposição de Inverno de Newcastle. Miss Jordan tinha-se interessado muito por ele e convidara-o para ir a sua casa, onde conheceu outros artistas. Paul começava a ter ambições.

Uma manhã, estava ele a lavar-se na copa, quando chegou o carteiro. Paul ouviu a mãe numa gritaria desenfreada. Correu para a cozinha e viu-a de pé diante da lareira, a agitar uma carta, como louca, e a gritar «Vivas!». Ficou chocado e assustado.

– Oh, mãe! – exclamou.

A mãe correu para ele e atirou-se-lhe ao pescoço, enquanto agitava a carta, gritando:

– Parabéns, meu filho... Eu sabia que havíamos de vencer!

Paul estava cheio de medo daquela mulher pequenina e bem-comportada, já de cabelos grisalhos, que de repente desatara naquele chinfrim. Até o carteiro voltou para trás a correr, pensando que tinha acontecido alguma desgraça. Viram-lhe o cocuruto do boné por detrás da cortina. Mrs. Morel precipitou-se para a porta.

– O quadro dele ganhou o primeiro prémio, Fred, e foi vendido por vinte guinéus!

– Ena pá! G’ande acontecimento! – disse o carteiro, um rapaz novo, que ela conhecia desde pequeno.

– Quem o comprou foi o major Moreton – acrescentou Mrs. Morel.

– Isso vale muito, olá se vale, Mrs. Morel – disse o carteiro, de olhos azuis a luzir. Não cabia em si de contente por ter sido o portador de tão boas notícias. Mrs. Morel voltou para dentro e sentou-se. Tremia dos pés à cabeça. Paul só tinha medo de que ela tivesse lido mal a carta e sofresse uma desilusão. Releu-a uma, duas vezes, e convenceu-se de que era mesmo verdade. Então, sentou-se, com o coração a pulsar forte, de alegria.

– Oh, mãe! – exclamou.

– Eu não te disse que havíamos de vencer? – disse ela, disfarçando as lágrimas.

Paul tirou a chaleira do lume e escaldou o chá.

– A mãe não imaginava que... – começou ele, hesitante.

– Não, meu filho... assim tanto não... mas esperava bastante.

– Mas tanto não – disse ele.

– Não... isso não... mas sabia que íamos vencer.

E logo recuperou a compostura, pelo menos aparentemente. Ele estava sentado, de camisa aberta, deixando-lhe a descoberto um pescoço quase feminino, de toalha na mão e cabelo em pé.

– Vinte guinéus, mãe! Exactamente o que a mãe precisava para resgatar o Arthur. Agora já não precisa de pedir emprestado. É mesmo à conta.

– Nem pensar nisso, não te vou ficar com o dinheiro todo! – disse ela.

– Ora essa, porquê?

– Porque não devo.

– Bem... então a mãe fica com onze libras... e eu com nove.

Continuaram a discutir a divisão dos vinte guinéus. Ela só queria as cinco libras de que precisava. Ele não concordava de maneira nenhuma. E, assim, a discussão serviu para descarregarem a tensão.

Morel, quando à noite chegou da mina, disse, mal entrou:

– Ouvi dizer qu’o quadro do Paul ganhou o primeiro prémio e foi vindido a Lorde Henry Bentley por cinquenta libras.

– As histórias que as pessoas contam! – exclamou Mrs. Morel.

– Ah! – disse ele. – Eu bem sabia qu’era mentira. Mas impingiram-me que tu é que tinhas contado ò Fred Hodgkisson.

– Como se eu lhe fosse dizer uma coisa dessas!

– Ah! – aquiesceu o mineiro.

Via-se que estava desapontado.

– Lá que ganhou o primeiro prémio... isso é verdade – disse Mrs. Morel.

O mineiro deixou-se cair pesadamente na cadeira.

– Conseguiu! – exclamou o mineiro.

Estava perplexo, de olhar pregado algures, no outro lado da sala.

– Mas, quanto às cinquenta libras, que disparate! – E Mrs. Morel calou-se por um instante. – Enfim... o major Moreton comprou-o por vinte guinéus...

– Vinte guinéus! Num pode ser! – exclamou Morel.

– Pois foi, e bem os merece.

– Tá bem! – disse ele. – Num duvido... Mas vinte guinéus por uma pintura qualquer qu’ele fez numa ou duas horas...! – Depois calou-se, cheio de respeito pelo filho. Mrs. Morel fungou ligeiramente, como se isso não fosse nada de importante.

– E quand’é qu’ele põe as mãos na massa? – perguntou o mineiro.

– Isso não sei... quando o quadro for entregue, suponho.

Fez-se silêncio. Morel olhava para o açucareiro em vez de comer, com o braço enfarruscado e a mão desfigurada pelo trabalho apoiados em cima da mesa. A mulher fingiu não ver quando ele limpou os olhos com as costas da mão, com a cara toda esborratada do pó da mina.

– Pois é, e o outro tamém havia de ter feito o mêmo, se num o tivessem matado – disse ele, em voz baixa.

A lembrança de William retalhou Mrs. Morel como uma lâmina gelada, deixando-a fatigada e a precisar de se ir deitar.

Paul foi convidado para jantar em casa de Mr. Jordan. Ao chegar a casa, disse:

– Mãe, preciso de um smoking.

– Sim, já calculava – disse ela. Estava contente. Fez uma pausa. – Tens o do William – prosseguiu. – Sei que custou quatro libras e dez xelins, e ele só o vestiu três vezes...

– E a mãe gostava que eu o usasse? – perguntou Paul.

– Com certeza. Acho que te deve servir... pelo menos o casaco. As calças têm de ser subidas.

Paul foi para o quarto e vestiu o casaco e o colete. Quando desceu estava bastante bizarro, com o colarinho e o peitilho de flanela e o casaco e colete de cerimónia. Estava-lhe tudo muito largo.

– O alfaiate aperta-te isso – disse a mãe, alisando-lhe o casaco no ombro. – O tecido é muito bonito. Nunca tive coragem para deixar o teu pai usar as calças e bem contente estou agora de o ter feito.

Enquanto passava a mão nas bandas de seda do casaco, pensou no filho mais velho. Mas este outro filho estava bem vivo dentro do fato, e ela passou-lhe a mão nas costas para o sentir. Estava vivo e era dela. O outro estava morto.

Paul foi a vários jantares com o smoking que tinha sido de William. De cada vez que isso acontecia, o coração da mãe exultava de orgulho e alegria. O filho estava lançado na vida. Os botões que ela e os irmãos tinham comprado para William trazia-os ele no peitilho, aplicados numa das camisas de cerimónia de William. Paul tinha uma bela figura. As suas feições eram algo rudes, mas era simpático e muito amável. Não seria propriamente um cavalheiro, mas via-se que estava ali um homem genuíno.

Paul contava à mãe tudo o que se passava, tudo o que se dizia. Era como se ela lá tivesse estado. E ele estava morto por lhe apresentar os novos amigos com quem ia jantar às sete e meia.

– Ir contigo? – disse ela. – Para que hão-de querer eles conhecer-me?

– Mas querem! – exclamou, indignado. – Se querem conhecer-me, como dizem, então querem conhecê-la a si também... porque a mãe é tão inteligente como eu.

– Ir contigo, meu filho... – E riu-se.

Mas começou a poupar mais as mãos. Também as dela estavam muito calejadas do trabalho. A pele estava lustrosa da água quente e os nós dos dedos inchados. Mas começou a ter o cuidado de não as meter em lixívia. Tinha saudades das suas mãos de outros tempos, pequenas e delicadas. E quando Annie começou a insistir com ela para usar blusas mais requintadas, de acordo com a sua idade, ela fez-lhe a vontade. Permitiu até que lhe pusessem um laço preto de veludo no cabelo. Depois, deu uma fungadela sarcástica, mas sabia que lhe ficava bem. Parecia uma senhora da sociedade, afirmava Paul, tão fina como Mrs. Moreton, e muito, muito mais bonita. A família estava a subir na escala social. Só Morel continuava na mesma, ou melhor, piorava lentamente.

Paul e a mãe discutiam longamente sobre a essência da vida. A religião ia desaparecendo da vida de Paul. Tinha-se desembaraçado de todas as crenças que o pudessem aperrear, fizera uma limpeza geral, e chegara mais ou menos ao âmago da fé, ou seja, que cada um deve procurar o bem e o mal dentro de si mesmo, e ir, com paciência, construindo a sua própria ideia de Deus. E, a partir dessa altura, passou a interessar-se mais pela vida.

– Sabe – disse ele à mãe –, não quero pertencer a uma burguesia abastada. Prefiro o povo. Eu sou do povo.

– Mas se fosse outra pessoa a dizê-lo, meu filho, ias ficar furioso. Tu sabes que te consideras igual a qualquer grande senhor.

– No íntimo, talvez – respondeu ele. – Não na classe ou na educação, ou nas maneiras. Mas no íntimo, isso sim.

– Muito bem... Então para quê falar no povo?

– Porque... a diferença entre as pessoas não está nas classes sociais, mas nelas mesmas... Só que às classes médias vão-se buscar as ideias, e ao povo... a própria vida, o calor humano. No povo sentem-se vibrar o ódio e o amor...

– Isso é tudo muito bonito, meu filho... mas então porque não vais conversar com os amigos do teu pai?

– Esses são muito diferentes.

– Não concordo. São gente do povo. Afinal, com que pessoas do povo é que te dás agora? Com as que gostam de trocar ideias, falar das mesmas coisas que a burguesia. As outras não te interessam.

– Mas... há a vida...

– Não creio que a Miriam te dê mais vida do que qualquer rapariga culta... Miss Moreton, por exemplo. Tu é que tens preconceitos de classe, estás a ficar um snob.

A mãe desejava francamente que o filho ascendesse à burguesia, o que ela sabia não ser difícil. E desejava vê-lo, no fim, casado com uma senhora da sociedade.

Empenhava-se agora em combater no filho a sua incessante inquietação. Ele ainda mantinha a ligação com Miriam, não conseguindo nem acabar com tudo nem assumir o compromisso em definitivo, e a indecisão parecia consumir-lhe as energias. Além disso, a mãe pressentia nele uma inclinação inconsciente para Clara, e sendo ela uma mulher casada, Mrs. Morel só desejava que o filho se apaixonasse por alguém em situação menos complicada. Mas Paul, estupidamente, recusava-se a amar, ou sequer a admirar uma rapariga só pelo facto de ela pertencer a uma classe mais elevada.

– Meu filho – disse-lhe a mãe –, nem toda a tua inteligência, nem todo o teu desprezo pelas tradições antigas, nem essa mania de fazeres só o que queres, parecem trazer-te grande felicidade.

– E o que é a felicidade? – exclamou ele. – Para mim não existe! Como é que eu posso ser feliz?

Esta pergunta tão directa perturbou-a.

– Isso só tu podes saber, meu filho. Mas, se pudesses encontrar uma mulher decente que te fizesse feliz... quando te bastava quereres... terias mais sossego para trabalhar... seria muito melhor para ti.

Paul franziu o sobrolho. A mãe pusera o dedo em cheio na ferida chamada Miriam. Ele afastou os cabelos da testa, com o olhar incendiado de dor.

– Isso é fácil de dizer, mãe – gritou. – Isso é a cartilha de todas as mulheres... paz de espírito e conforto físico. Para mim, isso não vale nada.

– Ah, não? – retorquiu a mãe. – Se calhar achas que o teu desencanto é divino, não?

– Acho... Lá da divindade não quero saber. Mas diabos levem a sua felicidade! Desde que se tenha uma vida cheia, não interessa se é ou não de felicidade. Receio que a sua felicidade me enchesse de tédio.

– Tu nem sequer tentas – disse a mãe. E, de repente, toda a dor que sentia por ele explodiu. – E isso é importante! – gritou ela. – Tinhas obrigação de ser feliz, tinhas obrigação de tentar ser feliz, de viver feliz. Como é que eu ia ficar, sabendo que eras infeliz?

– A sua vida foi suficientemente má, Mater, mas não a deixou muito pior do que os que foram mais felizes. Julgo que se saiu até muito bem. Comigo passa-se o mesmo. Não acha que me estou a sair bem?

– Não, meu filho, não estás. Batalhar... batalhar... e sofrer... é tudo o que fazes, pelo que eu vejo...

– E porque não, querida mãe? É o melhor que há a fazer...

– Não, não é! As pessoas têm obrigação de ser felizes!

Mrs. Morel tremia dos pés à cabeça. Discussões destas repetiam-se sempre que a mãe parecia querer lutar pela vida do filho, opondo-se à sua vontade de morrer. Paul abraçou-a. Ela estava doente, metia dó.

– Deixe lá, mãezinha! – murmurou Paul. – Desde que a vida não nos pareça mesquinha e miserável, o resto não importa... que seja feliz ou infeliz.

Ela apertou-o contra o peito.

– Mas eu quero que sejas feliz – disse, pateticamente.

– Oh, mãezinha adorada... diga antes que quer que eu viva.

Mrs. Morel sentiu o coração morrer por ele. Sabia que, por este andar, ele não duraria muito. O seu desleixo pungente, a propensão para o sofrimento, a vida que levava, eram tudo formas lentas de suicídio. Dilacerava-se-lhe o coração só de pensar. Odiava Miriam com toda a força da sua determinação por tão subtilmente ter minado a alegria de Paul. Não lhe interessava que não o fizesse por mal. Fazia-o, e ela odiava-a.

Queria tanto que o filho se apaixonasse por uma rapariga à sua altura – educada e forte. Mas ele não olhava para ninguém que considerasse superior. Parecia gostar de Mrs. Dawes. Pelo menos esse sentimento era genuíno. A mãe não se cansava de rezar por ele, para que não se perdesse. Era tudo o que pedia: não pela sua alma ou pela rectidão do seu carácter, mas para que não se perdesse. E, enquanto ele dormia, passava horas a fio a pensar nele e a rezar por ele.

Paul afastou-se de Miriam imperceptivelmente, sem o saber. Arthur só saiu do exército para se casar. O bebé nasceu seis meses após o casamento. Mrs. Morel arranjou-lhe um novo emprego na mesma firma onde trabalhara antes, a ganhar vinte e um xelins por semana. Com a ajuda da mãe de Beatrice, mobilou-lhe uma casinha de dois quartos. Agora estava definitivamente apanhado. Não importava barafustar e espernear, estava bem preso. Andou mal-humorado durante algum tempo, mostrando-se insuportável com a mulher que o amava; não ligava quando o bebé, que era franzino, chorava ou dava preocupações. Fazia à mãe queixas intermináveis, mas ela limitava-se a dizer: «Bem, meu filho, o responsável és tu, tens de aprender a tirar partido da situação.» E, finalmente, ganhou juízo. Agarrou-se ao trabalho, assumiu as suas responsabilidades, compreendeu que pertencia à mulher e ao filho e aprendeu a tirar o melhor partido da situação. Nunca se tinha sentido muito ligado à família, e agora afastava-se de vez.

Os meses iam passando devagar. Através de Clara, Paul tinha-se mais ou menos relacionado com os socialistas, as sufragistas e os sindicalistas de Nottingham. Um dia, uma amiga dele e de Clara, que morava em Bestwood, pediu-lhe que levasse um recado a Mrs. Dawes. Ao fim da tarde, Paul foi até Bluebell Hill, metendo por Sneinton Market, e lá conseguiu encontrar a casa numa ruela empedrada a granito e com passeios de tijolo azul-escuro, rugoso. Um degrau separava a porta da tosca calçada, servindo também para as pessoas limparem os pés e baterem com as botas para sacudirem a lama. A pintura castanha da porta estava tão deteriorada que se via a madeira por baixo da tinta a descascar. Paul ficou na rua, e bateu à porta. Soaram passos pesados e, por cima da sua cabeça, surgiu uma mulher alentada, por volta dos sessenta anos. Ele olhou para ela do passeio. A mulher tinha uma expressão severa.

Mandou-o entrar para a sala, que dava directamente para a rua. Era um quartinho pequeno, abafado e tétrico, com móveis de mogno e descomunais retratos a carvão de gente já falecida. Mrs. Radford saiu da sala com o seu passo imponente, quase marcial. Clara entrou logo a seguir e, ao vê-lo, corou até às orelhas, o que o deixou atrapalhado. Era como se não lhe agradasse que ele a tivesse vindo encontrar no seu ambiente doméstico.

– Parecia-me impossível ser a tua voz – disse ela.

Mas agora, perdido por cem, perdido por mil... e levou-o do mausoléu directamente para a cozinha.

A cozinha era também escura e acanhada, mas encontrava-se atafulhada de rendas brancas. A mãe tinha ido sentar-se de novo junto ao aparador, às voltas com uma emaranhada teia de renda. À sua direita, um monte solto de linha de algodão; à esquerda, tufos e mais tufos de espiguilha de renda; e, à sua frente, sobre o tapete da lareira, a tal teia emaranhada. Os fios encaracolados, puxados do emaranhado de rendas, espalhavam-se por cima do guarda-fogo e pela chaminé. Paul não se atrevia a dar um passo, não fosse tropeçar nos rolos de linha branca.

Em cima da mesa estava uma dobadoura. Havia ainda um maço de cartões castanhos e quadrados para enrolar a renda, uma caixinha de alfinetes e, em cima do sofá, um outro monte de renda.

Havia rendas por todo o lado, e a cozinha era tão escura e quente que fazia sobressair ainda mais a nuvem branca, rendada.

– Já que cá tá, num repare d’eu continuar a trabalhar – disse Mrs. Radford. – Sei que tá tudo atravancado, mas faça o favor de s’assentar.

Clara, muito atrapalhada, encostou à parede uma cadeira, para ele se sentar, em frente aos novelos de brancura, e sentou-se ela no sofá, envergonhada.

– Quer beber uma cerveja preta? – perguntou Mrs. Radford.

– Clara, vai buscar-lhe uma cerveja.

Paul protestou, mas Mrs. Radford insistiu.

– Tá cum ar de quem precisa – disse ela. – Nunca anda com melhores cores do qu’isso?

– É da minha pele, é muito grossa e não deixa ver o sangue à transparência – respondeu ele.

Clara, envergonhada e aborrecida, trouxe-lhe uma garrafa de cerveja e um copo. Paul deitou o líquido preto no copo.

– Bem – disse ele, erguendo o copo –, à nossa!

– Agradecida – disse Mrs. Radford.

Paul bebeu um gole.

– E pode fumar à vontade, desde que num deite fogo à casa – acrescentou Mrs. Radford.

– Obrigado – respondeu Paul.

– Num precisa de m’agradecer – disse ela. – Até vou gostar de sintir o cheirinho do tabaco aqui em casa outra vez. Uma casa só de mulheres é tão triste com’uma casa sem lareira, acho eu. Num sou de querer o meu canto só pra mim. Inté gosto de ver um home a andar por aí... se ele for alguma coisa que se veja.

Clara começou a trabalhar. A dobadoura rodava, chiando mansamente, e a renda branca saltava-lhe por entre os dedos para o cartão. Quando o cartão ficou cheio, ela partiu a espiguilha e, com um alfinete, prendeu a ponta à renda já enrolada. Depois, meteu novo cartão na dobadoura. Paul observava-a. Estava sentada com as costas muito direitas, magnífica. Tinha o pescoço e os braços desnudados. O sangue aflorava-lhe à face, por baixo da orelha, e mantinha a cabeça baixa, de vergonha e humilhação. Os olhos estavam pregados no trabalho. Os seus braços eram de um tom mate e pujantes de vida, comparados com a renda branca. As suas mãos, grandes e bem tratadas, trabalhavam em movimentos cadenciados, como se nada pudesse apressá-las. Ele, sem se aperceber, não tirava os olhos dela. Era a linha do seu pescoço, prolongando-se desde o ombro, quando ela se curvava; era o seu cabelo castanho-escuro; era o movimento dos seus braços resplandecentes.

– A Clara falou-me de si – continuou a mãe. – Trabalha na Jordan, não é? – E continuou a fazer renda sem parar.

– É, sim.

– Inda m’alembra de quando o Thomas Jordan costumava pedir-me caramelos.

– Ah, sim? – disse Paul, sorrindo. – E ele merecia-os?

– Umas vezes sim, outras não... sobretudo para o fim. Ele é dos que levam tudo e num dão nada, isso é qu’ele é... ou, pelo menos, costumava ser.

– Eu acho-o uma pessoa muito decente.

– Bom... folgo em saber.

Mrs. Radford olhava Paul sem pestanejar. Havia nela uma determinação que lhe agradava. A cara estava flácida, mas os olhos eram calmos, e havia nela um vigor que refutava a velhice, fazendo as rugas e as peles parecerem um mero anacronismo. Tinha a força e o sangue-frio de uma mulher na pujança da vida. Continuou a fazer renda com movimentos lentos e muita dignidade. A fofa teia amontoava-se-lhe inevitavelmente no avental, tombando depois pouco a pouco para o chão, ao seu lado. Os braços eram bem torneados, mas luzidios e amarelados, de marfim velho, e não tinham aquele tom mate que tornava, a seu ver, tão fascinantes os de Clara.

– Anda atão c’a Miriam Leivers? – perguntou a mãe de Clara.

– Bem... – disse ele.

– É boa rapariga – prosseguiu Mrs. Radford. – Boa rapariga, mas um bocado fedúncia cá prò meu gosto.

– Sim, talvez... – concordou Paul.

– Só fica satisfeita quando tiver asas pra poder voar por cima da cabeça de toda a gente – disse ela.

Clara interrompeu-os, e Paul deu-lhe o recado que o levara lá. Ela falava com ele com humildade, vendo-se surpreendida no seu antro de miséria. Ao vê-la assim, humilde, era como se ele a esperasse, ansioso.

– Gostas de dobar? – perguntou Paul.

– O que é que uma mulher há-de fazer? – respondeu ela amargamente.

– É cansativo?

– Mais ou menos. E não o é todo o trabalho feminino? Essa é outra das partidas que os homens nos pregaram, desde que conquistámos o nosso lugar no mundo do trabalho.

– Atão... num fales mal dos homes – disse a mãe. – S’as mulheres num fossem umas parvas, os homes num eram tão maus, é o qu’eu digo... Olha que nenhum home me tratou mal que não levasse o troco... Mas que são uns danados, lá isso são, num adianta negar.

– Mas boas pessoas, não concorda? – perguntou Paul.

– Bem... são um bocado diferentes das mulheres – disse ela.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – perguntou ele a Clara.

– Acho que não – respondeu ela.

– Gostava, pois! – exclamou a mãe. – Ficava toda contente se voltasse. Num lhe ligue. Ela é toda cheia de nove horas, mas qualquer dia inda vai morrer de fome.

Clara passava vergonhas com a mãe. Até Paul sentia os olhos abrirem-se-lhe de espanto. Será que não devia mesmo ligar aos remoques de Clara? Ela trabalhava com afinco. E ele sentiu um arrepio de prazer só de pensar que ela podia precisar da sua ajuda. Parecia tão carente e privada de tanta coisa. O seu braço, que não fora feito para se amarrar a um mecanismo, movia-se mecanicamente; e a cabeça, que não fora feita para andar curvada, curvava-se sobre a renda. Parecia presa à dobadoura, entre os desperdícios de uma vida. Era muito duro para ela ver-se dispensada pela vida, como se já não tivesse préstimo. Não admira que protestasse tanto.

Clara acompanhou-o à porta. Ele ficou parado na ruela miserável, a olhar para ela. Era tão soberba na figura e no porte que fazia lembrar Juno destronada. De pé, na soleira da porta, fechava os olhos à rua e à miséria que a rodeava.

– Vais a Hucknall com Mrs. Hodgkinson?

Paul dizia coisas sem sentido, de olhos postos nela. Os olhos cinzentos de Clara encontraram finalmente os seus. Estavam mudos de humilhação, contritos, com uma espécie de submissão de escrava. Ele ficou surpreendido, sem saber o que fazer. Sempre a tinha imaginado altiva e poderosa.

Quando dali saiu, só lhe apetecia fugir. Dirigiu-se para a estação, como um sonâmbulo, e chegou a casa sem consciência de já não estar na rua dela.

Estava convencido de que Susan, a supervisora da Espiral, se ia casar, e no dia seguinte perguntou-lho.

– Diz-me uma coisa, Susan, ouvi dizer que te vais casar. É verdade?

Susan corou.

– Quem te disse? – perguntou ela.

– Ninguém. Apenas ouvi dizer que estavas a pensar...

– Lá isso estou... Mas não precisas de contar a ninguém. E, ainda por cima, quem me dera não estar...!

– Julgas que eu acredito nisso, Susan?

– Pois podes acreditar. Antes queria mil vezes ficar como estou.

Paul estava chocado.

– Porquê, Susan?

A rapariga estava ruborizada e fulminava-o com o olhar.

– Porque sim!

– E tens mesmo de casar?

Em resposta, ela limitou-se a olhar para ele. Paul tinha uma candura e uma gentileza que faziam as mulheres confiar nele. Compreendeu o que ela queria dizer.

– Ah, desculpa – disse ele. Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

– Mas verás que tudo vai correr bem. Tenta ver as coisas pelo lado melhor – disse ele, melancólico.

– Nem posso fazer outra coisa.

– Podes sim, podes dar cabo da tua vida. Esforça-te por seres feliz.

Paul arranjou novo pretexto para ir a casa de Clara.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – disse ele.

Ela pousou o trabalho, apoiou os braços belíssimos em cima da mesa e fitou-o sem responder. Pouco a pouco, um rubor subiu-lhe às faces.

– Porquê? – perguntou.

Paul sentiu-se constrangido.

– Bem... É que a Susan está a pensar em ir-se embora. Clara continuou a dobar. A espiguilha branca pulava e saltava para o cartão. Ele aguardou. Sem levantar a cabeça, ela disse por fim, numa voz desusadamente baixa:

– Falaste com alguém sobre o assunto?

– Nem uma palavra... Só contigo.

Seguiu-se novo e longo silêncio.

– Quando puserem o anúncio, concorro – disse ela.

– Tens de concorrer antes. Eu digo-te quando.

Ela continuou a fazer girar a dobadoura e não o contrariou.

Clara voltou para a Jordan. Algumas das funcionárias mais antigas, entre elas Fanny, lembravam-se dela de outros tempos e não guardavam boas memórias. Clara sempre fora muito altiva, uma mulher reservada e superior. Nunca se misturava com as colegas e sempre que tinha oportunidade de as criticar, fazia-o com frieza e extrema delicadeza, o que as fazia sentirem-se mais insultadas do que agastadas. Para com Fanny, a pobre corcunda hipersensível, Clara fora sempre extremamente amável e gentil, o que fazia Fanny chorar ainda mais do que as línguas grosseiras das outras supervisoras.


CONTINUA

Era ali, naquele momento, que ela se alimentava de vida para toda uma semana. Ele mandou-a copiar o poema Le Balcon, de Baudelaire e, em seguida, leu-o para ela ouvir. A voz dele era suave e acariciante, mas nos crescendos tornava-se brutal. Paul tinha um modo apaixonado e, ao mesmo tempo, amargurado de arreganhar os lábios e mostrar os dentes sempre que as palavras o levavam ao rubro. E assim fazia agora, fazendo sentir a Miriam que ele a estava a espezinhar. Ela nem se atrevia a olhar para ele, mantendo-se sentada e de cabeça baixa. Não entendia por que razão ele se deixava arrebatar por tão tumultuosas fúrias, e isso deixava-a desfeita. Ainda por cima, nem sequer gostava muito de Baudelaire... nem de Verlaine.


«Olha-a, a cantar pelos campos,

Filha solitária das montanhas...»


Isto sim, alimentava-lhe a alma... tal como a «Linda Inês». E também:


«Caía bela a noite, doce e pura,

Em suspiros sagrados e serenos, como freira...»


Estes versos, sim, eram como ela. E ele, ali à sua frente, arrancando da garganta, em grito rouco:


«Tu te rappelleras la beauté dês caresses.»3


O poema terminou e Paul tirou os pães do forno, metendo-os no alguidar, os queimados no fundo e os bons por cima. A carcaça ressequida continuava na copa embrulhada num pano húmido.

– A Mater não precisa de saber até amanhã de manhã – disse ele. – Já não se vai zangar tanto como esta noite.

Miriam foi à estante e viu as cartas e postais que ele tinha recebido, e quais os livros que lá tinha, e tirou um em que ele se mostrara interessado. Depois, Paul desligou o gás e saíram. Paul nem se preocupou em fechar a porta à chave.

Quando voltou já faltava um quarto para as onze. A mãe estava sentada na cadeira de baloiço e Annie num banquinho junto da lareira, com o cabelo a cair-lhe pelas costas abaixo e os cotovelos apoiados nos joelhos, taciturna. Em cima da mesa, a carcaça da discórdia, já desembrulhada. Paul entrou ofegante. Ninguém abriu a boca. A mãe lia a gazeta local. Ele despiu o casaco e foi sentar-se no sofá. A mãe chegou-se para o lado com brusquidão, deixando-o passar. Ninguém abria a boca. Ele já não sabia como havia de estar. Durante alguns minutos, fingiu ler um bocado do jornal que encontrou em cima da mesa. Mas depois disse:

– Esqueci-me daquele pão no forno, mãe.

Nenhuma das mulheres lhe respondeu.

– Bem – continuou ele –, são só dois dinheiros e meio. Se quiser, eu pago.

Amuado, pôs três moedas em cima da mesa e empurrou-as na direcção da mãe. Ela voltou a cabeça para o outro lado. A boca continuava crispada.

– Pois é – disse Annie –, tu nem fazes ideia de como a mãe se sente mal!

E a rapariga continuou carrancuda a olhar para o lume.

– Sente-se mal porquê? – perguntou Paul, no seu tom autoritário.

– Essa agora – disse Annie. – Viu-se aflita para chegar a casa.

Paul olhou com atenção para a mãe. Parecia de facto doente.

– Viu-se aflita para chegar a casa porquê? – perguntou ele, ainda agreste. A irmã não respondeu.

– Vim encontrá-la aqui sentada, branca como a cera – disse Annie, com lágrimas na voz.

– Diga lá porque foi! – insistiu Paul, já de testa franzida e olhos empolgadamente dilatados.

– Era o suficiente para deixar qualquer pessoa doente – disse Mrs. Morel. – Carregar nos braços com as compras todas... a carne, os legumes e as cortinas...

– Para que carregou com tudo? Não era preciso.

– E então quem é que carregava?

– Mandava a Annie ir buscar a carne.

– Claro que eu tinha ido buscar a carne. Mas como é que eu podia adivinhar? Tu andavas a passear com a Miriam, em vez de estares em casa quando a mãe chegou.

– Mas o que é que lhe aconteceu? – perguntou Paul à mãe.

– Deve ser o coração – respondeu ela. De facto, tinha os lábios azulados.

– E já tinha sentido isso alguma vez?

– Já... e até mais de uma vez.

– Então porque não me disse, e porque é que não foi ao médico?

Mrs. Morel mexeu-se na cadeira, irritada com a prelecção.

– Tu nunca reparas em nada – disse Annie. – Só pensas em andar com a Miriam.

– Ah, sim? E tu e o Leonard... não é a mesma coisa?

– Eu cheguei a casa faltava um quarto para as dez.

Seguiram-se uns minutos de silêncio.

– Nunca imaginei que ela te deixasse tão distraído, ao ponto de queimares uma fornada inteira de pão – disse Mrs. Morel com azedume.

– A Beatrice também cá estava.

– Acredito. Mas nós sabemos porque é que o pão se queimou.

– E porque foi? – disse ele intempestivo.

– Porque tu estavas todo entretido com a Miriam – replicou Mrs. Morel acalorada.

– Pois fique sabendo que não foi nada por isso! – ripostou ele, sacudido.

Estava desgostoso e infeliz. Pegou no jornal e começou a ler. Annie, com a blusa já desabotoada e duas longas tranças, foi para cima, para a cama, dando-lhe secamente as boas-noites.

Paul continuou a fingir que estava a ler. Por um lado, sabia que a mãe lhe queria pregar um sermão. Mas, por outro, queria saber o que a pusera naquele estado, e estava preocupado. Por isso, em vez de ir a correr para a cama, como era sua vontade, ficou à espera. Sentia-se a tensão no silêncio. O tiquetaque do relógio soava forte.

– O melhor é ires deitar-te antes de o teu pai chegar – disse Mrs. Morel, com rispidez. – E se quiseres comer alguma coisa, tens de ir buscá-la.

– Não quero nada.

A mãe costumava preparar-lhe qualquer coisa para a ceia às sextas-feiras à noite, que era a noite de luxo dos mineiros. Mas ele estava demasiado irritado para ir buscar a ceia à despensa, e ela sentiu-se insultada.

– Se eu quisesse que fosses a Selby numa sexta-feira à noite, já estou a imaginar a cena – disse Mrs. Morel. – Mas quando é ela a vir buscar-te, nem sabes o que é cansaço. E já nem comes nem bebes.

– Não posso deixá-la voltar sozinha.

– Ah, não podes... E então para que é que ela vem?

– Não sou eu que lhe peço.

– Ela não vinha se tu não a quisesses cá...

– E se eu a quiser...? Hem? – repontou ele.

– Nada a opor, se fosse sensato ou razoável. Mas calcorrear milhas e milhas por cima dum lamaçal e voltar à meia-noite, para quem tem de ir logo pela manhã para Nottingham...

– E, se não tivesse de ir, para si era a mesma coisa.

– Pois era, porque isto não faz sentido nenhum. Ela é assim tão fascinante que tenhas de andar atrás dela para todo o lado? – perguntou Mrs. Morel, com acerado sarcasmo, continuando sentada, com cara de poucos amigos, esfregando o cetim preto do avental em movimentos ritmadamente repetidos. Aquele motu-contínuo quase enlouquecia Paul.

– Eu gosto muito dela – disse ele – mas...

– Gostas então dela! – disse Mrs. Morel, no mesmo tom mordaz. – Pois a mim parece-me que não gostas de mais nada nem de mais ninguém. Para ti, agora, não existe mais ninguém: nem eu, nem a Annie... nada.

– Que disparate, mãe... sabe bem que eu não amo a Miriam... eu... posso garantir-lhe que não a amo... ela não anda de braço dado comigo nem nada, porque eu não quero.

– Então porque é que vais a correr tantas vezes para ao pé dela?

– Porque gosto muito de falar com ela... Nunca disse que não gostava. Mas não a amo.

– E não tens mais ninguém com quem falar?

– Não acerca das coisas de que nós falamos. Há muitas coisas por que a mãe não se interessa e que...

– Que coisas...?

Mrs. Morel estava tão exaltada que Paul começou a gaguejar.

– Ora essa... pintura... livros... A mãe, por exemplo, não gosta de Herbert Spencer.

– Não – foi a resposta concisa. – E tu também não vais gostar, quando tiveres a minha idade.

– Está bem, mas gosto agora... e a Miriam também...

– E como é que sabes – atalhou Mrs. Morel em tom de desafio – que eu não gosto. Já experimentaste perguntar-me?

– Mas eu sei que não gosta, mãe, sabe bem que não lhe interessa discutir se um quadro é ou não decorativo... é-lhe indiferente qual o seu estilo.

– Como sabes que não me interessa... já experimentaste perguntar-me? Alguma vez conversas comigo sobre essas coisas, só para experimentar?

– Mas a mãe sabe bem que para si isso não conta, sabe bem que não.

– Então o que é, diz lá... o que é que conta para mim? – desferiu ela.

Paul franziu a testa, magoado.

– A senhora é velha, mãe, e nós somos novos.

O que ele queria dizer era que os interesses da idade dela não eram idênticos aos da sua. Mas mal acabou a frase percebeu que tinha dito o que não devia.

– Sim, sei muito bem... sou uma velha! E por isso mesmo devo manter-me afastada... já não tenho nada a ver contigo. Tu só me queres para te servir de criada... o resto é com a Miriam.

Ele já não aguentava mais. Instintivamente, apercebeu-se de que ele era toda a vida dela. E, bem vistas as coisas, ela era para ele a coisa mais importante, a única verdade suprema.

– Sabe bem que não é assim, mãe... sabe bem que não é.

O grito dele comoveu-a.

– Pois olha que parece mesmo – disse ela, deixando de certa forma de lado o desespero.

– Não, mãe... na verdade, eu não a amo. Converso com ela... mas é para a nossa casa, para ao pé de si que eu quero vir.

Paul, já sem o colarinho e a gravata, levantou-se para se ir deitar. Quando ia a dar um beijo à mãe, ela passou-lhe os braços em volta do pescoço, escondeu a cara no seu ombro e pôs-se a choramingar, com uma voz dorida, tão pouco habitual nela que o fez crispar-se de agonia.

– Eu já não aguento mais. Uma outra mulher talvez... mas ela não... ela não me daria espaço algum... nem um bocadinho...

E imediatamente sentiu que odiava Miriam amargamente.

– E eu nunca... tu sabes, Paul... eu nunca tive um marido... não um de verdade...

Ele acariciou-lhe os cabelos e os seus lábios afloraram o pescoço dela.

– E ela esforça-se tanto para te afastar de mim... ela não é como as outras raparigas.

– Bem, mãe, eu não a amo – murmurou ele, baixando a cabeça e escondendo os olhos no ombro dela, muito infeliz. A mãe deu-lhe um beijo ardente e longo.

– Meu filho! – disse, com a voz trémula de amor. E ele, sem se aperceber, acariciou-lhe suavemente o rosto.

– Pronto – disse a mãe. – Agora vai deitar-te. Senão amanhã de manhã acordas muito cansado.

Enquanto falava, Mrs. Morel sentiu o marido entrar.

– Vem aí o teu pai... vá, já para a cama... – Subitamente, olhou para o filho quase a medo. – Talvez eu esteja a ser egoísta. Se a queres, meu filho, fica com ela.

A mãe estava a comportar-se de uma forma muito estranha, pensou Paul, beijando-a, ainda a tremer.

– Oh, mãe! – disse ele meigamente.

Morel entrou aos tropeções. Trazia o chapéu tombado sobre o canto do olho. Ao transpor a porta, perdeu o equilíbrio. – Outra vez a fazeres das tuas? – disse ele, acintosamente.

As emoções de Mrs. Morel transformaram-se instantaneamente em ódio por aquele bêbado que viera intrometer-se tão intempestivamente.

– Pelo menos, ele está sóbrio – disse ela.

– Hum... hum...! Hum... hum! – fez ele, cinicamente.

Foi ao corredor e pendurou o chapéu e o casaco. Em seguida, ouviram-no descer os três degraus da despensa. Quando voltou trazia na mão uma fatia de empadão de carne de porco. Era o que Mrs. Morel tinha comprado para o filho.

– Isso não é para ti. Se não me podes dar mais de vinte e cinco xelins, certamente não te vou comprar empadão de carne de porco, para tu te regalares depois de teres enchido a barriga de cerveja.

– O quê?... O quê? – rosnou Morel, a cambalear e, num repente, atirou o empadão para a lareira, num acesso de mau génio e mesquinhez.

Paul pôs-se de pé num salto.

– Deite fora o que é seu! – gritou.

– O quê?... O quê? – berrou Morel de imediato, dando um salto atrás e cerrando os punhos. – Vais ver como elas mordem... meu menino!

– Muito bem! – disse Paul, cinicamente, deitando a cabeça de lado. – Então vamos lá ver...!

O que mais gostaria naquele momento era de poder bater em qualquer coisa, não importava o quê. Morel estava semidobrado, de punhos em riste, pronto a atacar.

O jovem estava de pé, com um sorriso nos lábios.

– Zás! – silvou o pai, desferindo um soco no ar com um gesto largo, rente à cara do filho. Apesar de tão próximo, não se atreveu a tocar-lhe realmente, passando-lhe a uma escassa polegada de distância.

– Isso! – disse Paul, de olhos pregados na boca do pai, onde a todo o momento o seu punho acertaria. Estava louco por dar aquele soco, mas ouviu um vago gemido atrás de si. A mãe estava lívida de morte e com a boca toda roxa. Morel saltitava, preparando novo ataque.

– Pai! – disse Paul, bem alto para lhe chamar a atenção.

Morel parou, assustado.

– Mãe! – gemeu o rapaz. – Mãe!

Ela começou a lutar contra si própria. Os seus olhos muito abertos observavam-no, apesar de não se poder mexer. A pouco e pouco ia voltando a si. O filho deitou-a no sofá e foi a correr buscar um pouco de uísque, de que ela por fim bebeu alguns golinhos. As lágrimas rolavam-lhe pela cara abaixo. Enquanto esteve ajoelhado ao lado da mãe não chorou, mas as lágrimas irromperam logo a seguir. Morel, sentado do outro lado da sala com os cotovelos apoiados nos joelhos, fuzilava o filho com o olhar.

– Qu’é qu’ela tem? – perguntou.

– Desmaiou! – respondeu Paul.

– Hum!

O homem mais velho começou a desapertar os atacadores das botas. Depois, foi aos tombos para o quarto. Tinha travado a sua derradeira luta naquela casa.

Paul estava ajoelhado ao lado da mãe, esfregando-lhe as mãos.

– Não fique assim, mãe... não fique assim! – não se cansava ele de repetir.

– Isto não é nada, meu filho – murmurou ela.

Finalmente, Paul levantou-se, foi buscar um grande bocado de carvão e abafou o borralho. Depois arrumou a sala, colocou tudo nos seus devidos lugares, pôs a mesa para o pequeno-almoço e foi buscar a palmatória da mãe.

– Consegue ir para a cama sozinha, mãe?

– Consigo, sim... Eu vou.

– Durma com a Annie, mãe, com ele não.

– Não... vou dormir na minha cama.

– Não durma com ele, mãe.

– Vou dormir na minha cama.

Mrs. Morel levantou-se e Paul desligou o gás, subindo depois a escada atrás dela, com a vela. Ao chegarem ao patamar, ele beijou-a ternamente.

– Boa noite, mãe.

– Boa noite – respondeu ela.

Ele enfiou a cabeça na almofada, num acesso de desespero. E, no entanto, sentia paz algures nos recônditos da alma, pois continuava a amar a mãe acima de todas as coisas. Era a paz amarga da resignação.

Os esforços do pai no dia seguinte para o cativar foram para ele uma verdadeira humilhação.

E todos tentaram esquecer o incidente.

2 «Esta manhã os pássaros acordaram-me. Ainda não era dia. Mas a janelinha do meu quarto clareou e logo ficou dourada, e todos os pássaros do bosque irromperam num canto vivo e sonoro.
E a aurora estremeceu. Tinha sonhado contigo. Será que também contemplas a aurora?

Os pássaros acordam-me quase todas as manhãs, e há sempre uma nota de terror no grito dos tordos. Está tão claro...» (N. da T.)

3 «Recordarás a beleza das carícias.» (N. da T.)


IX

A DERROTA DE MIRIAM

PAUL sentia-se descontente consigo mesmo e com tudo o que o rodeava. O seu amor mais profundo dedicava-o à mãe. Não podia suportar a sensação de a ter magoado ou de algum modo ferido o seu amor por ela. A Primavera já se anunciava e, com ela, uma batalha entre ele e Miriam. Este ano Paul tinha muitas queixas contra Miriam e ela estava vagamente consciente desse facto. O velho sentimento que experimentara ao rezar, e lhe segredara que teria de se sacrificar a este amor, misturava-se em todas as suas emoções. No fundo, Miriam não acreditava poder algum dia vir a ter Paul para si. Em primeiro lugar, não acreditava em si mesma: duvidava poder vir a ser o que ele exigiria que ela fosse. Por certo nunca se imaginara a viver a seu lado uma vida de eterna felicidade. O futuro prefigurava-lhe tragédia, dor e sacrifício. E, se no sacrifício era orgulhosa, na renúncia ela era forte; mas não confiava em si mesma para suportar a vida do dia-a-dia. Sentia-se preparada para gestos grandiosos e profundos, gestos dignos de tragédia. Não podia era confiar na sua capacidade de lidar com a pequenez do quotidiano.

As férias da Páscoa iniciaram-se num ambiente feliz. Paul mostrava-se franco, como na realidade o era. Contudo, Miriam sentia que algo iria perturbar aquela paz. No domingo à tarde, deteve-se à janela do seu quarto, olhando os carvalhos do bosque, em cuja folhagem se emaranhavam uns ténues raios de luz sob o resplandecente céu da tarde. Rosetas de folhas de madressilva verde-cinza pendiam frente à janela, algumas, pensou, já em botão. Era Primavera, tempo que Miriam amava e temia ao mesmo tempo.

Ouvindo o ranger do portão, ficou na expectativa. Estava um dia cinzento e luminoso. Paul entrou no pátio com a bicicleta, que reluzia à medida que ele andava. Era hábito tocar a campainha e sorrir em direcção à casa. Hoje, porém, caminhava de lábios cerrados, numa atitude fria e cruel que tinha algo de desprezo e indolência. Ela já o conhecia muito bem e, pela expressão penetrante e reservada do seu rosto jovial, sabia dizer o que se passava no seu íntimo. Havia um tal rigor de frieza no modo como colocou a bicicleta no lugar que o coração de Miriam soçobrou.

Desceu ao andar de baixo, nervosa. Vestia uma blusa nova de malha que, achava ela, lhe assentava muito bem. Tinha uma gola alta, debruada com um folho que lhe lembrava a Rainha Mary da Escócia e lhe dava, pensava ela, um ar encantadoramente feminino e muito digno. Com vinte anos, possuía uns seios bem desenvolvidos e formas voluptuosas. O seu rosto era ainda como uma máscara suave e rica, inalterável. Mas os seus olhos, quando os erguia, eram maravilhosos. Ela tinha medo dele. Ele iria reparar na sua blusa nova.

Paul mostrava-se de disposição dura e irónica, e divertia a família com a descrição de um sermão proferido na Capela Metodista Primitiva por um dos mais conhecidos pregadores da seita. Estava sentado à cabeceira da mesa com o seu rosto versátil e os seus olhos, que conseguiam ser tão belos, brilhando ternamente ou dançando risonhos, assumiam várias expressões, numa imitação das diversas pessoas que caricaturava. A sua veia jocosa sempre a magoara – era demasiado próxima da realidade. Paul era demasiado inteligente e cruel e ela sentia que, quando o seu olhar se enchia, como agora, de feroz ódio trocista, ele não poupava ninguém, nem mesmo a sua própria pessoa. Mas Mrs. Leivers enxugava os olhos marejados de lágrimas, de tanto rir, e Mr. Leivers, já desperto da sua sesta dominical, coçava a cabeça divertido. Os três irmãos, sentados em atitudes desleixadas e sonolentas e em mangas de camisa, soltavam uma gargalhada de vez em quando. O que a família mais adorava era, acima de tudo, uma boa caricatura.

Paul não prestou atenção a Miriam. Mais tarde, ela percebeu que ele tinha reparado na sua blusa nova, viu que o artista a aprovara, mas isso não merecera da sua parte o mínimo lampejo de ternura. Estava nervosa e mal conseguia chegar às chávenas de chá nas prateleiras do armário.

Quando os homens saíram para a ordenha, ousou dirigir-se-lhe pessoalmente:

– Vieste atrasado – disse.

– Vim? – perguntou ele.

Por um momento fez-se silêncio.

– Foi difícil vires a pedalar até aqui? – perguntou ela.

– Nem notei.

Ela continuou a pôr a mesa rapidamente. Quando acabou, disse-lhe:

– O chá só é servido dentro de alguns minutos. Queres vir ver os narcisos?

Ele ergueu-se, sem responder. Dirigiram-se para o jardim das traseiras, sob as ameixoeiras em flor. As colinas e o céu estavam límpidos e frios. Tudo parecia lavado, um pouco agreste talvez. Miriam lançou um olhar a Paul. Ele estava pálido e impassível. A ela parecia-lhe uma crueldade que aqueles olhos e sobrancelhas que ela tanto amava pudessem feri-la tanto.

– O vento cansou-te? – perguntou.

Detectou nele uma certa fadiga.

– Não, acho que não – respondeu ele.

– Deve ser cansativo na estrada... o vento sopra tão forte.

– Pelas nuvens podes ver que é vento sudoeste: até me ajudou a chegar aqui.

– Sabes que eu não ando de bicicleta, por isso não entendo o que queres dizer – murmurou ela.

– E é preciso andar de bicicleta para saber isso? – replicou ele.

Miriam pensou que o seu sarcasmo era desnecessário. Mantiveram-se em silêncio. Em redor do relvado maltratado com a erva muito alta situado nas traseiras da casa, havia uma sebe de espinheiros sob a qual os narcisos se erguiam dos seus ninhos de folhas verde-cinza. As faces das flores estavam esverdeadas de frio. Mas, mesmo assim, algumas haviam já florescido e o seu tom dourado agitava-se e resplandecia. Miriam ajoelhou-se diante de um ramalhete, tomou nas mãos um narciso de ar silvestre, voltou para si a sua face dourada e inclinou-se, acariciando-o com a boca, as faces e a fronte. Paul permaneceu de pé, ligeiramente afastado, de mãos nos bolsos, observando-a. Uma após outra, ela virou para ele as faces das flores amarelas, recém-abertas, em atitude suplicante, afagando-as com veemência.

– Não são magníficos? – murmurou.

– Magníficos?... Não será um pouco de mais?... São bonitos!

Ela inclinou-se novamente para as suas flores, perante esta censura à sua atitude de adoração. Ele ficou a vê-la adular e saborear as flores com beijos fervorosos.

– Porque tens de estar sempre a acariciar as coisas? – recriminou-a, irritado.

– Gosto de lhes tocar – replicou ela, magoada.

– Será que não podes gostar das coisas sem teres de te agarrar a elas como se quisesses arrancar-lhes o coração? Porque não tens um pouco mais de domínio ou reserva, ou o que quer que seja?

Ela ergueu para ele um olhar cheio de dor, continuando depois a pressionar os lábios, lentamente, contra uma flor ondulada. O seu aroma, quando o sentiu, era tão mais delicado do que Paul que quase a fez chorar.

– Com a tua adulação, retiras a alma às coisas – disse ele. – Eu nunca seria capaz de uma adulação... Em qualquer circunstância, seria sempre directo.

Paul não sabia o que dizia. Estas coisas saíam-lhe mecanicamente. Ela olhou para ele. O seu corpo parecia uma arma, firme e duro contra ela.

– Tu estás sempre a suplicar às coisas que te amem – disse ele – como se fosses uma pedinte de amor. Até as flores tu tens de acariciar...

Ritmadamente, Miriam agitava e amachucava a flor com a boca, inalando o perfume que daí em diante a faria estremecer sempre que penetrasse nas suas narinas.

– Tu não queres amar... a tua súplica eterna e anormal é seres amada. Não és positiva, és negativa. Absorves, absorves, como se necessitasses de te encher de amor por teres algures uma insuficiência.

Miriam estava aturdida com a crueldade de Paul, e não o escutava. Ele não tinha a mínima ideia do que estava a dizer. Era como se a sua alma inquieta e torturada, inflamada por uma paixão frustrada, fizesse jorrar aquelas palavras como centelhas brotando da electricidade. Ela não entendia nada do que ele dizia. Deixou-se ficar sentada, esmagada sob a sua crueldade e o seu ódio por ela. Nunca entendia as coisas num lampejo. Era assim com tudo, cismava e tornava a cismar.

Depois do chá, ele ficou a conversar com Edgar e os outros irmãos, não prestando atenção a Miriam. Ela, infinitamente infeliz com esta distância procurada, esperou por ele. Por fim, ele cedeu e veio ao seu encontro. Ela estava determinada a descobrir a origem do seu estado de espírito. Para ela, tudo aquilo não passava de um estado de espírito.

– Vamos passear um pouco pelo bosque? – sugeriu, sabendo que ele nunca recusava um pedido directo.

Desceram em direcção à coelheira. A meio do caminho passaram por uma armadilha, uma pequena cerca em forma de ferradura, feita com galhos de abeto entrelaçados, onde se exibiam, como isca, as vísceras de um coelho. Paul lançou-lhe um olhar, franzindo o sobrolho. Ela chamou-lhe a atenção.

– É terrível, não é? – perguntou.

– Não sei! Será pior que os dentes de uma doninha cravados no pescoço de um coelho? Ou uma doninha ou muitos coelhos. Uma das coisas vai ter de desaparecer!

Para Paul estava a ser difícil enfrentar a face amarga da vida. Miriam sentiu pena dele.

– Vamos para dentro – disse Paul. – Não me apetece andar cá fora.

Passaram pela árvore dos lilases, cujos rebentos das folhas cor de bronze principiavam agora a abrir. Apenas um fragmento restava do palheiro, um monumento quadrado e castanho, como um pilar de pedra. No meio, ainda lá perdurava uma pequena meda de feno da última ceifa.

– Sentemo-nos aqui por um minuto – pediu Miriam.

Ele sentou-se, contrariado, apoiando as costas ao sólido muro de feno. Diante deles, estendia-se o anfiteatro de colinas arredondadas, incandescente à luz do crepúsculo, as pequenas quintas brancas destacando-se na paisagem, os prados dourados, os bosques sombrios e contudo luminosos, as copas das árvores sobrepostas a outras copas de árvores, distintas na distância. A tarde clareara e o oriente suave tingia-se agora de um clarão magenta sob o qual a terra permanecia imóvel e pródiga.

– Não é uma beleza? – murmurou ela suavemente.

Mas ele limitou-se a franzir a testa, mal-humorado. Naquele momento, preferia que tudo fosse feio.

Subitamente, um grande cão veio ter com eles em louca correria, de boca escancarada, levantou as patas dianteiras e colocou-as nos ombros do jovem, lambendo-lhe o rosto. Paul recuou, rindo. Bill era um grande alívio para ele. Afastou o cão, mas este voltou, saltitante.

– Sai daqui – ordenou o rapaz. – Vê lá se queres apanhar.

Mas o cão não estava disposto a desistir facilmente. Então, Paul travou um pequena batalha com o animal, arremessando o pobre Bill para longe, apenas conseguindo contudo fazê-lo tropeçar e voltar à carga violentamente, excitadíssimo. Lutaram os dois, o homem rindo contrafeito, o cão todo ele disponibilidade. Miriam observava-os. Havia algo de patético no homem. Como ele desejava ardentemente amar e ser terno! O modo rude como brincava com o cão era realmente adorável. Paul levantou-se, ofegante de felicidade, os olhos castanhos rolando na cara branca, e de novo se deixou cair pesadamente. O animal adorava Paul. O rapaz lançou-lhe um olhar severo.

– Bill, já chega de brincadeira.

Mas o cão deixou-se ficar com as duas pesadas patas, que tremiam de carinho, assentes na sua coxa, mostrando uma língua ro-sada. O rapaz recuou.

– Não – disse. – Não... já chega.

E logo o cão se afastou, contente por variar de divertimento.

Paul continuou a olhar fixamente para as colinas, cuja beleza impassível invejava. Queria sair dali e ir andar de bicicleta com Edgar. No entanto, não tinha coragem de deixar Miriam.

– Porque estás triste? – perguntou ela, submissa.

– Não estou triste, porque havia de estar? – retorquiu ele. – Estou apenas normal.

Ela perguntava-se por que razão ele sempre afirmava estar normal quando se mostrava desagradável.

– Mas... afinal o que se passa? – perguntou, aliciando-o suavemente.

– Nada!

– Não! – murmurou ela.

Ele pegou num pau e começou a golpear a terra.

– É melhor que não digas nada – disse ele.

– Mas eu quero saber – respondeu ela.

Ele riu-se, ressentido.

– Tu queres sempre saber tudo.

– Não és leal para comigo – murmurou ela.

Ele feriu o solo vezes sem conta com o pau afiado, desprendendo pequenos torrões de terra, como se tomado por uma febre de irritação. Delicada e firmemente, ela pousou a mão sobre o seu pulso.

– Não faças isso! – pediu. – Deita isso fora.

Ele atirou o pau para cima das groselheiras e recostou-se. Já estava recomposto.

– Que se passa? – perguntou ela com suavidade.

Ele manteve-se imperturbável. Apenas o seu olhar vivia intensamente, repleto de tormento.

– Sabes – disse por fim, bastante a custo – sabes... era melhor rompermos a nossa ligação.

Era o que ela temia. Subitamente, tudo pareceu escurecer diante dos seus olhos.

– Porquê? – murmurou. – Que aconteceu?

– Não aconteceu nada... só que temos de ver o terreno que pisamos. Não vale a pena...

Ela esperou em silêncio, tristemente, cheia de paciência. Não adiantava ser impaciente com ele. De qualquer modo, ele dir-lhe-ia agora o que o afligia.

– Concordámos em ser amigos – prosseguiu ele, numa voz monótona e aborrecida. – Quantas vezes concordámos em ser amigos! E, no entanto, as coisas não param por aí, nem chegam a nenhum outro lado.

Paul calou-se. Miriam matutava. Que quereria ele dizer? Estava tão cansado. Havia algo que não queria admitir. Contudo, ela devia ser paciente.

– Eu só posso dar-te amizade... é tudo de que sou capaz... é uma falha na minha maneira de ser. As coisas pesam só para um lado... e eu odeio uma balança desequilibrada... vamos acabar com isto.

Havia um fervor de fúria nas suas últimas frases. O que ele queria dizer é que ela o amava mais a ele do que ele a ela. Talvez não conseguisse amá-la. Talvez ela não possuísse o que ele desejava. Esta falta de confiança em si mesma era o fundamento mais profundo da alma de Miriam. Tão profundo que ela não ousava entendê-lo, nem tão-pouco admiti-lo. Talvez lhe faltasse qualquer coisa. Como uma vergonha infinitamente subtil, esse sentimento sempre a fazia recuar. Se assim fosse, ela passaria sem ele. Nunca se permitiria desejá-lo. Limitar-se-ia a observar.

– Mas o que aconteceu? – perguntou.

– Nada... tinha tudo isto guardado dentro de mim... e só saiu agora. Ficamos sempre assim ao aproximarmo-nos da Páscoa.

Paul humilhou-se tão despojadamente que Miriam sentiu pena. Ela, pelo menos, nunca se tinha deixado cair de um modo tão deplorável. No fim de contas, era ele quem saía mais duramente humilhado.

– Que queres fazer? – perguntou ela.

– Bem... acho que não devo vir aqui tantas vezes... só isso. Porque deveria eu monopolizar-te, quando não sou... Bem vês, no que te diz respeito sou muito incompleto...

Ele estava a dizer-lhe que não a amava e, portanto, deveria dar-lhe uma oportunidade com outro homem. Que tolo e cego e vergonhosamente desajeitado ele era! Que lhe importavam a ela os outros homens! Que importância tinham! Mas ele, ah, ela amava a sua alma. Seria ele incompleto em alguma coisa? Talvez fosse.

– Mas eu não entendo – disse ela, com a voz rouca. – Ainda ontem...

A noite tornara-se desagradável e odiosa para ele à medida que a luz do crepúsculo se dissipava. E ela cedeu ao seu sofrimento.

– Eu sei – gritou ele. – Nem nunca entenderás. Nunca acreditarás que eu não posso... não sou fisicamente capaz, tal como não sou capaz de voar como uma cotovia...

– Capaz de quê? – perguntou ela, num murmúrio. Agora tinha medo.

– De te amar.

Paul odiou-a amargamente naquele momento, por fazê-la sofrer tanto. Amá-la! Miriam sabia que ele a amava. Ele pertencia-lhe realmente. Toda a conversa sobre não a amar fisicamente, corporalmente, era uma mera perversidade da parte dele, pois Paul sabia que ela o amava. Ele estava a ser casmurro como uma criança. Ele pertencia-lhe a ela. A sua alma desejava-a. Miriam suspeitou que alguém o tivesse influenciado. Através da sua rigidez, pressentia a estranheza de uma outra influência.

– Que te têm dito em casa? – perguntou.

– Não é nada disso – respondeu ele.

E, nesse momento, ela soube que era precisamente isso, e sentiu um profundo desprezo pela família dele e pela sua vulgaridade. Ignoravam as coisas que valiam realmente a pena.

Nessa noite, não conversaram muito mais. Por fim, ele deixou-a e foi passear de bicicleta com Edgar.

Paul voltara para a mãe, o elo mais forte da sua vida. Quando ele se embrenhava em pensamentos, Miriam quase deixava de existir, como se envolta num sentimento vago e irreal. E mais ninguém contava. Havia contudo um lugar no mundo que permanecia sólido e não se desvanecia na irrealidade: o lugar onde se encontrava a sua mãe. Todos podiam transformar-se em sombras, quase inexistentes para ele, mas não ela. Era como se o eixo ou pólo da sua vida, do qual ele não podia escapar, fosse a sua mãe.

E, da mesma forma, ela esperava por ele. Nele se concentrava agora toda a sua vida. Afinal, a vida que deixara para trás oferecera muito pouco a Mrs. Morel. Ela entendera que a nossa oportunidade para fazer está aqui, e fazer era importante para ela. Paul iria provar que ela tinha razão: iria transformar-se num homem a quem nada poderia derrubar, que iria alterar a face da terra de alguma forma importante. Onde quer que ele fosse, ela sentia que a sua alma ia junto. O que quer que ele fizesse, ela sentia que a sua alma permanecia junto dele, pronta como sempre a entregar-lhe as suas ferramentas. Não podia suportar quando ele estava com Miriam. William estava morto. Ela lutaria para ficar com Paul.

E ele voltou para ela. E na alma dele havia um sentimento de satisfação pelo auto-sacrifício, pois ele era-lhe fiel. Ela amava-o antes de tudo, ele amava-a antes de tudo. E, no entanto, isso não era o suficiente. A sua vida nova e jovem, tão forte e imperiosa, era solicitada por algo mais. Punha-o louco de agitação. Ela percebia isso e desejava amargamente que Miriam fosse uma mulher que pudesse arrancar dele esta nova vida e deixar-lhe a ela as raízes. Paul lutava contra a mãe quase tanto como lutava contra Miriam.

Passou-se uma semana antes que Paul voltasse a Willey Farm. Miriam sofrera muito e receava vê-lo novamente. Poderia ela suportar a ignomínia de ser abandonada por ele? Isso seria apenas superficial e temporário. Ele voltaria. Ela possuía a chave para entrar na sua alma. Mas, entretanto, ele iria torturá-la com a sua luta contra ela. Miriam temia sobretudo isso.

Porém, no domingo a seguir à Páscoa, Paul veio para o chá. Mrs. Leivers ficou contente ao vê-lo. Percebeu que algo o perturbava, que as coisas estavam difíceis para ele. E ele parecia refugiar-se nela para algum conforto. E ela era boa para ele. Fazia-lhe o grande favor de o tratar quase com reverência.

Paul encontrou os rapazes no jardim da frente.

– Estou contente por teres vindo – disse a mãe, olhando-o com os seus olhos castanhos, grandes e sinceros. – Está um dia tão soalheiro. Ia agora mesmo dar um passeio pelos campos pela primeira vez este ano.

Ele sentiu que ela apreciaria a sua companhia, e isso suavizou-o. Foram caminhando, falando de coisas simples, ele gentil e humilde. Quase chorou de gratidão por ela ser deferente para com ele. Sentia-se humilhado.

Ao fundo do campo de trigo, encontraram um ninho de tordos.

– Querem que vos mostre os ovos? – perguntou.

– Sim, por favor! – respondeu Mrs. Leivers. – Parecem um sinal tão real da Primavera e da esperança...

Paul afastou os espinhos e retirou os ovos, colocando-os na palma da mão.

– Estão quentinhos... parece que assustámos a mãe – disse ele.

– Ah, coitadinhos – disse Mrs. Leivers.

Miriam não pôde evitar tocar nos ovos e na mão dele, que, segundo ela, os protegia tão bem.

– É um calor tão estranho! – murmurou, para se aproximar dele.

– É o calor do sangue – retorquiu ele.

Ela viu-o colocar os ovos no seu lugar, com o corpo colado à cerca, o braço avançando lentamente através dos espinhos, a mão cuidadosamente fechada sobre os ovos. Estava concentrado no acto. Vendo-o assim, ela amava-o; ele parecia tão simples e auto-suficiente. E ela não conseguia alcançá-lo.

Durante o chá, Paul discutiu o sermão de Sexta-Feira Santa com Mrs. Leivers. A caminhada até à Capela era já muito longa para a senhora, e ela quase preferia ouvir o sermão através de Paul, acrescido dos seus comentários e argumentos. Os outros também escutavam. Até os rapazes, uns latagões rudes, se mostravam atentos e interessados, tirando uma lição do discurso.

– Ele pegou no capítulo que diz: «Aquele que acreditou na nossa história...» ... eu gosto desta passagem.

Os grandes olhos castanhos de Mrs. Leivers brilharam com o pensamento.

– E estragou-o todo... arruinou-o.

Subitamente, lançou um olhar a Miriam, para que ela estivesse do seu lado naquele momento.

– E ele disse...

Paul, sério e indignado, repetiu o sermão. Era em alturas como esta que Miriam o amava. Ao vê-lo assim, enchia-se de profunda satisfação. Amava-o do mesmo modo que Maria amou na Betânia. Só quando irrompia o homem nele existente, se instalava a guerra entre ambos. E qual era mais forte nele, o Discípulo ou o Homem? Ela acreditava que fosse o primeiro, e através do primeiro o retinha.

Enquanto ela levantava a mesa do chá, ele disse-lhe, num tom bastante forçado:

– Quando acabares, vamos dar uma volta.

Na cozinha, ajudou-a a limpar a louça. Ela tremia ligeiramente de apreensão. Mas sabia que naquela noite não tinha de temer o ressentimento dele.

– Levamos um livro? – perguntou Miriam, pegando no seu favorito, O Tesouro Dourado, de Palgrave. Os melhores momentos que passavam juntos aconteciam quando liam poesia.

– Esse não – respondeu ele.

O coração dela apertou-se. Permaneceu junto à prateleira dos livros, hesitante. Ele escolheu Tartarin de Tarascon. Sentaram-se novamente no monte de feno, na base da meda. Paul leu algumas páginas, mas sem sentimento. De novo o cão apareceu, correndo, para repetir a brincadeira anterior. Enterrou o focinho no peito do jovem. Paul acariciou-lhe a orelha de fugida. Depois, afastou-o.

– Vai-te embora, Bill – ordenou. – Não te quero aqui.

Bill retirou-se furtivamente, e Miriam perguntou-se, temerosa, o que estaria para vir. Algo no silêncio dele a fez paralisar de apreensão. Não eram as suas fúrias, mas as suas resoluções calmas que ela receava.

Voltando o rosto um pouco de lado, para que ela não pudesse vê-lo, Paul começou, falando lenta e penosamente:

– Achas que... se eu não viesse cá tantas vezes... podias gostar de outra pessoa... de outro homem?

Então era isso que ainda o incomodava.

– Mas eu não conheço outros homens... porque perguntas? – replicou ela, num tom surdo que deveria ter soado aos ouvidos dele como uma censura.

– Ora – disse ele abruptamente – porque eles dizem que eu não tenho o direito de vir aqui... sem que tenhamos intenção de casar...

Miriam estava indignada por alguém andar a forçar as coisas entre eles. Ficara furiosa com o próprio pai quando este, rindo, comentara com Paul que sabia por que razão ele os visitava tantas vezes.

– Quem diz isso? – perguntou ela, tentando perceber se a sua própria família tinha algo a ver com o assunto. Mas não tinha.

– A minha mãe... e os outros. Dizem que, assim, todos me consideram comprometido, e que eu também me devo considerar como tal, pois não é justo para ti. E eu tentei pensar melhor... e acho que não te amo como um homem deve amar a sua mulher. Que me dizes tu a isto?

Miriam baixou a cabeça, irritada. Irritava-a ter de travar aquela discussão. As pessoas deviam deixá-los em paz.

– Não sei – murmurou ela.

– Achas que nos amamos o suficiente para nos casarmos? – perguntou ele, definitivamente. Ela estremeceu.

– Não – respondeu, sinceramente. – Não acho... somos demasiado novos.

– Eu pensei – prosseguiu ele, infeliz – que talvez tu, com a intensidade que pões nas coisas, me tivesses dado mais... do que alguma vez eu te poderia compensar. E, mesmo assim, se achares que é melhor, ficamos noivos.

Naquele momento, Miriam queria chorar. Estava furiosa também. Ele era sempre tão infantil que as pessoas faziam dele o que queriam.

– Não, não acho – disse firmemente.

Paul reflectiu um minuto.

– Sabes – retomou –, para mim... eu acho que uma pessoa nunca poderá monopolizar-me, ser tudo para mim. Eu acho que isso nunca vai acontecer.

Miriam não tinha considerado este ponto.

– Não – murmurou. Após uma pausa, ela ergueu para ele os seus olhos escuros, faiscantes.

– Isto tem a ver com a tua mãe – disse ela. – Eu sei que ela nunca gostou de mim.

– Não, não é isso – apressou-se ele a dizer. – Desta vez foi para teu bem que ela falou, e só disse que, se eu continuasse, devia considerar-me comprometido. – Seguiu-se um silêncio. – E, se eu te pedir para continuares a visitar-me sempre, não dizes que não?

Miriam não respondeu. Estava agora muito zangada.

– Bem, então que fazemos? – perguntou secamente. – Assim sendo, é melhor desistir das aulas de francês. Agora que estava a começar a dar-me bem... Mas acho que posso continuar sozinha.

– Não vejo necessidade disso – considerou ele. – É claro que posso dar-te uma aula de francês.

– Bom, e há ainda as noites de domingo. Não vou deixar de ir à capela, porque gosto de ir e porque a isso se resume toda a minha vida social. Mas não precisas de ir comigo. Posso ir sozinha.

– Está bem – respondeu ele, algo surpreendido. – Mas, se eu pedir ao Edgar, ele pode vir connosco, e assim as pessoas já não podem dizer nada.

Fez-se silêncio. Afinal, ela não perderia muito. Apesar de todo o falatório em casa dele, a diferença não seria muita. Ela só desejava que eles não interferissem.

– E tu não vais pensar de mais no assunto e deixar que te perturbe, pois não? – perguntou ele.

– Oh, claro que não – retorquiu Miriam, sem se dignar olhar para ele.

Paul ficou em silêncio. Ela achava-o instável, sem um objectivo fixo, nenhuma âncora de certeza a segurá-lo.

– Porque – continuou ele – um homem pega na bicicleta... e vai para o trabalho... e faz toda a espécie de coisas. Mas uma mulher fica a cismar.

– Não, eu não vou ficar a cismar – assegurou-lhe Miriam, e estava a ser sincera.

O tempo arrefecera bastante. Juntos, encaminharam-se para casa.

– Que pálido está o Paul! – exclamou Mrs. Leivers. – Miriam, não devias tê-lo deixado sentar-se lá fora. Achas que te constipaste, Paul?

– Oh, não! – E riu-se.

Mas, na verdade, sentia-se fatigado. O conflito interior esgotara-o. Agora, Miriam sentia pena dele. Mas, muito cedo, ainda antes das nove horas, ele levantou-se para se retirar.

– Não te vais já embora, pois não? – perguntou Mrs. Leivers, ansiosa.

– Vou, sim – retorquiu ele. – Disse em casa que chegava cedo.

Paul estava muito embaraçado.

– Mas ainda é cedo – disse Mr. Leivers.

Miriam sentou-se na cadeira de baloiço e não falou. Ele hesitou, esperando que ela se erguesse para o acompanhar ao celeiro, como habitualmente, quando fosse buscar a bicicleta. Ela, porém, deixou-se ficar onde estava. Paul sentia-se perdido.

– Bem, então... boa noite a todos! – balbuciou.

Miriam deu-lhe as boas-noites, tal como os restantes. Mas, quando ia a passar diante da janela, ele olhou para dentro. Ela viu-o pálido, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas de um modo que se tornara constante nele, e o olhar ensombrado pelo sofrimento.

Ergueu-se então e foi até à porta dizer-lhe adeus, quando ele passou pelo portão. Paul pedalou lentamente sob a rama dos pinheiros, sentindo-se um cobarde e um patife miserável. A bicicleta rolava pelas colinas abaixo, à deriva. Chegou a pensar que seria um alívio partir o pescoço.

Dois dias depois, enviou-lhe um livro e um bilhete, incitando-a a ler e a manter-se ocupada.

E, contudo, nessa altura ele estava diferente. Tinha avaliado bem a situação. Sabia que não queria casar-se com ela. As razões pelas quais a amava não eram razões para se casar com ela; isso es-tava decidido. E a mãe repetira-lhe vezes sem conta que a sua actual situação não podia durar para sempre, e era bastante injusta para a rapariga. Por isso, Paul tentava agora manter a maior distância possível entre os dois. Era duro e frio para ela. Miriam ressentia-se disso amargamente, culpava a mãe dele, e esperava. Sabia que Paul não podia deixá-la sozinha. Mas ele parecia querer por força erguer muros entre eles, ele e ela, atrás dos quais pudesse refugiar-se, longe dela. Miriam sofria terrivelmente.

Durante esse tempo, Paul dedicou toda a sua amizade a Edgar. Gostava tanto da família, gostava tanto da quinta, que ela era para ele o lugar mais querido ao cimo da terra. Nem mesmo o seu lar era tão agradável. A sua mãe sim. Mas teria sido igualmente feliz com aquela mãe em qualquer outro lugar. Mas Paul amava Willey Farm apaixonadamente. Adorava a cozinha pequena e aconchegada, repisada pelas botas dos homens, e onde o cão dormia com um olho aberto e outro fechado, com medo de ser pisado; onde, à noite, a lamparina balouçava sobre a mesa e tudo ficava muito silencioso. Amava a saleta de Miriam, comprida e de tecto baixo, com a sua atmosfera romântica, as suas flores, os seus livros, o piano de pau-rosa. Amava os jardins e os edifícios que, nos limites nus dos campos, se erguiam com os seus telhados escarlate, arrastando-se em direcção ao bosque como se em busca de aconchego, onde a região selvagem cavava um vale profundo, para logo subir as encostas por cultivar do lado de lá. O simples facto de estar ali era um prazer e uma alegria para ele. Amava Mrs. Leivers, com a sua simplicidade e singular cinismo; amava Mr. Leivers, tão caloroso e jovial, e tão afável; amava Edgar, cujo olhar se iluminava quando ele chegava, e os outros rapazes e as crianças, e ainda Bill, e até a porca chamada Circe e o galo indiano de combate chamado Tippoo. Amava tudo isto além de Miriam. Não podia desistir de tudo.

Por isso, continuava a aparecer frequentemente, mas andava geralmente com Edgar. Toda a família, incluindo o pai, apenas se reunia à noite para os jogos e charadas. E, mais tarde, Miriam reunia-os a todos e liam Macbeth em edição de bolso, interpretando os vários papéis. Era muito divertido. Miriam ficava contente, Mrs. Leivers ficava contente e Mr. Leivers divertia-se. Depois, todos juntos, aprendiam a solfejar canções, cantando em círculo em redor da lareira. Mas agora, Paul raramente ficava a sós com Miriam. E ela esperava. Quando ela, Edgar e Paul regressavam a casa vindos da Capela ou do grémio literário de Bestwood, ela sabia que a conversa dele, tão apaixonada e tão pouco ortodoxa para aqueles dias, lhe era dirigida. Contudo, invejava Edgar e as suas corridas de bicicleta com Paul, as suas noites de sexta-feira, os seus dias de labuta conjunta nos campos. Para ela, as noites de sexta-feira e as aulas de francês tinham acabado. Estava quase sempre sozinha, vagueando e meditando pelo bosque, lendo, estudando, sonhando, esperando. E ele escrevia-lhe com frequência.

Num domingo à noite, conseguiram reatar a velha e rara harmonia. Edgar ficara com Mrs. Morel para a comunhão. Queria saber como era. Por isso, Paul e Miriam voltaram sozinhos para casa dele. Ele encontrava-se novamente mais ou menos sob o seu feitiço. Como era hábito, discutiram o sermão. Ele caminhava agora a passos largos para o agnosticismo, mas era um agnosticismo tão religioso que Miriam não sofria muito. Estavam na fase da Vie de Jésus de Renan. Miriam era a eira onde Paul debulhava todas as suas crenças. Enquanto repisava as suas ideias na alma dela, a verdade brotava dele. Só ela era a sua eira. Só ela o ajudava no sentido da plena realização. Quase impassível, ela submetia-se aos seus argumentos e interpretações. E, por causa dela, ele gradualmente compreendia, de algum modo, onde estava errado. E o que ele compreendia, ela compreendia. Miriam sentia que Paul não podia viver sem ela.

Chegaram à casa silenciosa. Ele tirou a chave da janela da cozinha e entraram. Durante todo o tempo, ele não interrompeu a discussão. Acendeu o gás, ateou o fogo e trouxe-lhe alguns biscoitos da despensa. Ela sentou-se no sofá, em silêncio, com um prato sobre os joelhos. Trazia um grande chapéu branco enfeitado com flores cor-de-rosa. Era um chapéu barato, mas ele gostava. Sob o chapéu, o rosto dela estava estático e pensativo, castanho-dourado e corado. Como sempre, as orelhas estavam ocultas sob os seus caracóis curtos. Ela observava-o.

Sempre gostara dele aos domingos. Nesses dias, ele usava um fato escuro que evidenciava todos os movimentos do seu corpo. Havia algo de limpo e fresco no seu ar. Paul prosseguiu o seu raciocínio dirigido a ela. De repente, pegou na Bíblia. Miriam gostou do modo como ele a alcançou, tão determinado, directo ao objectivo. Voltou as páginas rapidamente e leu-lhe um capítulo de S. João. Enquanto lia, absorto, sentado no cadeirão e apenas a sua voz pensava, ela sentia que ele estava a usá-la inconscientemente, como um homem usa as suas ferramentas em qualquer trabalho que o absorve. Adorava essa sensação. E a ânsia na sua voz era como a tentativa de alcançar algo, e era como se ela fosse o modo de o conseguir. Miriam recostou-se no sofá, longe dele, sentindo-se, todavia, o próprio instrumento que a mão dele segurava, o que lhe dava um indescritível prazer.

Pouco a pouco, a voz tornou-se hesitante e Paul ficou constrangido. E quando chegou ao versículo: «Uma mulher, quando está em trabalho de parto, sofre porque a sua hora chegou», omitiu-o. Miriam sentira o seu constrangimento a aumentar. Estremeceu quando as bem conhecidas palavras não foram proferidas. Paul continuou a ler, mas ela já não o escutava. Um sentimento de pesar e vergonha fê-la vergar a cabeça. Seis meses atrás, ele teria lido tudo naturalmente. Agora, abria-se uma brecha na relação entre os dois. Agora, ela sentia haver algo de realmente hostil entre eles, algo de que ambos se envergonhavam.

Miriam comeu o bolo mecanicamente. Ele tentou prosseguir, desenvolvendo o seu argumento, mas não conseguiu recuperar o tom certo. Edgar chegou pouco depois. Mrs. Morel tinha ido a casa de uma amiga. Os três saíram rumo a Willey Farm.

Miriam matutava sobre o afastamento dele em relação a ela. Havia algo mais que ele desejava. Paul não podia estar satisfeito, não podia dar-lhe paz. Agora haveria sempre entre eles lugar para o conflito. Ela queria pô-lo à prova. Acreditava que a maior necessidade na vida dele era ela. Se conseguisse prová-lo, tanto a si mesma como a ele, tudo o resto poderia desaparecer, e ela poderia simplesmente confiar no futuro.

Assim, em Maio, pediu-lhe para vir a Willey Farm visitar Mrs. Dawes. Havia algo que Paul procurava ardentemente. Sempre que se falava de Clara Dawes, Miriam via-o agitar-se e ficar ligeiramente irritado. Afirmou que não simpatizava com ela. Contudo, estava ansioso por saber coisas a seu respeito. Bom, ele tinha de ser posto à prova. Ela acreditava que havia nele ânsias de coisas superiores, e inferiores, e que o desejo pelas superiores venceria. De qualquer forma, deveria tentar. Miriam, porém, esqueceu-se de que os conceitos de «superior» e «inferior» eram arbitrários.

Paul estava bastante entusiasmado com a ideia de se encontrar com Clara em Willey Farm. Mrs. Dawes veio passar o dia. A sua pesada cabeleira castanho-escura estava enrolada ao alto da cabeça. Envergava uma blusa branca e uma saia azul-marinho e, de algum modo, a sua presença parecia tornar as coisas vulgares e insignificantes. Quando se encontrava por perto, a cozinha parecia ao mesmo tempo pequena e imperfeita. A bela saleta de Miriam, com a sua luz crepuscular, parecia estúpida e sem graça. Toda a família Leiver se eclipsava como velas. Eles achavam-na um pouco difícil de suportar. No entanto, ela era perfeitamente amistosa, mas indiferente e um pouco dura.

Paul só chegou da parte da tarde. Mas veio cedo. Enquanto descia da bicicleta, Miriam viu-o olhar em volta da casa, ansioso. Ficaria desapontado se a tão esperada visita não tivesse vindo. Miriam saiu ao seu encontro, baixando a cabeça devido à intensidade do sol. As abecedárias brotavam agora, encarnadas, da verde sombra fria das suas folhas. A rapariga esperou-o, de cabelo escuro, contente por vê-lo.

– A Clara não veio? – perguntou Paul.

– Veio – replicou ela, no seu timbre musical. – Está a ler.

Ele empurrou a bicicleta até ao celeiro. Pusera uma bonita gravata, na qual tinha muito orgulho, e meias a condizer.

– Chegou esta manhã? – perguntou.

– Sim – respondeu Miriam enquanto caminhava a seu lado. – Lembraste-te de trazer aquela carta do homem do Liberty?

– Oh, que chatice, não! – disse ele. – Mas podes atazanar-me até que a traga.

– Não gosto de te atazanar.

– Mas não te acanhes. E ela está mais simpática? – continuou.

– Sabes que eu sempre a achei bastante simpática.

Paul ficou em silêncio. Era evidente que a sua ânsia em chegar cedo naquele dia se devia à recém-chegada. Miriam já começara a sofrer. Encaminharam-se para casa lado a lado. Paul retirou as molas das calças, mas era muito preguiçoso para escovar o pó dos sapatos, apesar de ter requintado nas meias e na gravata.

Clara estava sentada na saleta fresca, a ler. Paul reparou na sua nuca branca e no delicado cabelo repuxado. Ela ergueu-se e olhou para ele com indiferença. Para o cumprimentar, levantou o braço de um modo que parecia, ao mesmo tempo, mantê-lo à distância e, no entanto, acenar-lhe com alguma coisa. Ele notou a forma como os seus seios inchavam dentro da blusa, e como o ombro se curvava deliciosamente sob a fina musselina no cimo do seu braço.

– Escolheste um lindo dia – disse ele.

– É... aconteceu – respondeu ela.

– É verdade – continuou ele. – Ainda bem.

Ela sentou-se, não lhe agradecendo a amabilidade.

– Que fizeste toda a manhã? – perguntou Paul, dirigindo-se a Miriam.

– Bem – disse Miriam, tossindo roucamente –, a Clara só chegou com o pai... e, por isso, não está cá há muito tempo.

Clara sentara-se encostada à mesa, mantendo-se distante. Ele notou que as suas mãos eram grandes, mas bem cuidadas. A pele parecia quase grosseira, opaca e branca, com finos pêlos dourados. Ela não se importava que ele observasse as suas mãos. Tinha intenção de o desprezar. O seu braço opulento estava negligentemente pousado sobre a mesa. A sua boca fechava-se como se estivesse ofendida, e o seu rosto mantinha-se ligeiramente desviado.

– Estiveste presente na reunião da Margaret Bonford na outra noite – disse-lhe ele. Miriam desconhecia este Paul cortês. Clara olhou-o de relance.

– Estive, sim – respondeu.

– Ora – perguntou Miriam – como é que sabes?

– Eu entrei por alguns minutos até o comboio chegar – explicou ele.

Clara desviou novamente o rosto, com uma expressão desdenhosa.

– Acho-a uma mulherzinha adorável – comentou Paul.

– A Margaret Bonford! – exclamou Clara. – Ela é muito mais esperta que a maioria dos homens.

– Bem, eu não disse que não era – disse ele, depreciativamente. – Ela é adorável por tudo isso.

– E é claro que é só isso que tem importância – disse Clara, com uma expressão fulminante.

Ele coçou a cabeça, meio perplexo, meio aborrecido.

– Acho que importa mais do que a inteligência dela – retorquiu Paul – que, afinal, nunca a levaria ao Céu.

– Não é o Céu que ela pretende... é o seu justo quinhão na terra – retorquiu Clara. Falava como se Paul fosse responsável por qualquer privação de que Miss Bonford sofresse.

– Bem – disse ele –, eu achei-a calorosa e extraordinariamente agradável... mas demasiado frágil. Só desejei que ela estivesse confortavelmente em paz...

– ... remendando as peúgas do marido – interrompeu Clara, sarcasticamente.

– Estou certo de que não se importaria de remendar até mesmo as minhas peúgas – afirmou ele. – E tenho a certeza de que o faria até muito bem. Tal como eu não me importaria de lhe engraxar as botas, se ela o desejasse.

Mas Clara recusou-se a dar troco a este tipo de comentário. Paul conversou com Miriam durante algum tempo. A outra mulher permaneceu afastada.

– Bem – disse ele –, acho que vou procurar o Edgar. Ele anda no campo?

– Acho que foi buscar um carregamento de carvão – respondeu Miriam. – Deve vir directamente para casa.

– Sendo assim – disse Paul –, vou ao encontro dele.

Miriam não ousou propor nenhum programa que envolvesse os três. Ele levantou-se e deixou-as.

No caminho de cima, onde a giesta despontava, Paul viu Edgar caminhando preguiçosamente ao lado da égua, que acenava a testa estrelada de branco enquanto arrastava o ruidoso carregamento de carvão. O rosto do jovem lavrador iluminou-se quando avistou o amigo. As suas roupas eram velhas e já bastante coçadas, mas caminhava com um orgulho considerável.

– Viva! – cumprimentou ele, vendo Paul sem chapéu. – Onde vais?

– Vim ter contigo. Não suporto a «Nunca jamais».

Os dentes de Edgar brilharam numa gargalhada divertida.

– Quem é a «Nunca jamais»? – perguntou.

– Aquela senhora – Mrs. Dawes – devia chamar-se Mrs. Corvo, aquele que disse «Nunca jamais».

Edgar riu com satisfação.

– Não gostas dela? – perguntou.

– Não morro de amores – respondeu Paul. – Porquê, tu gostas?

– Não! – A resposta veio com profunda convicção. – Não! – Edgar franziu os lábios. – Não posso dizer que seja muito o meu estilo. – Meditou um pouco. Depois: – Mas porque lhe chamas «Nunca jamais»? – perguntou.

– Bem – explicou Paul. – Se ela olha para um homem, diz arrogantemente «Nunca jamais», se se olha no espelho, diz desdenhosamente «Nunca jamais», e se pensa duas vezes, di-lo com nojo, e se olha em frente, di-lo cinicamente...

Edgar considerou o discurso de Paul, não conseguindo entendê-lo muito bem, e disse, rindo:

– Achas que ela odeia os homens?

– Ela acha que sim – retorquiu Paul.

– Mas tu não achas que assim seja?

– Não – respondeu Paul.

– Então ela não foi simpática contigo?

– Consegues imaginá-la a ser simpática com alguém? – perguntou o jovem.

Edgar riu-se. Juntos, descarregaram o carvão no pátio. Paul estava bastante contrafeito pois sabia que Clara o podia ver, se olhasse pela janela. Mas não olhou.

Nas tardes de sábado, os cavalos eram escovados e tratados. Paul e Edgar trabalharam juntos, espirrando com o pó proveniente do pêlo de Jimmy e Flower.

– Sabes alguma canção nova para me ensinar? – perguntou Edgar.

Ele continuava a trabalhar sem parar. Quando se baixava, deixava a descoberto a parte posterior do pescoço, encarniçada do sol, e os dedos que seguravam a escova eram taludos. Paul observava-o de vez em quando.

– Mary Morrison? – sugeriu o mais novo.

Edgar concordou. Era dono de uma bela voz de tenor e adorava aprender todas as canções que o amigo lhe ensinava para poder cantar enquanto conduzia a carroça. Paul possuía uma voz de barítono bastante sofrível, mas tinha bom ouvido. No entanto, cantou baixinho, com medo de Clara. Edgar repetiu o verso na sua voz límpida de tenor. Por vezes, ambos interrompiam a cantoria para espirrar e, primeiro um e depois o outro, insultarem o cavalo.

Miriam estava impaciente com os homens. Era preciso tão pouco para os divertir – até Paul. Achava pouco natural nele que pudesse ficar tão absorvido numa trivialidade.

Era hora do chá quando acabaram.

– Que canção era aquela? – perguntou Miriam.

Edgar informou-a. A conversa virou para o canto.

– Passámos momentos tão agradáveis – disse Miriam a Clara.

Mrs. Dawes tomou o seu chá devagar, com dignidade. Sempre que os homens estavam presentes, ela mostrava-se distante.

– Gostas de ouvir cantar? – perguntou-lhe Miriam.

– Se a voz for boa – disse ela.

Paul corou, naturalmente.

– Queres tu dizer, se a voz for de excepção e educada? – disse ele.

– Acho que uma voz precisa de ser educada para cantar alguma coisa que se oiça – disse Clara.

– Já agora, também podes dizer que as pessoas deviam educar a voz antes de falarem – replicou ele. – Francamente, a maior parte das pessoas canta para seu próprio prazer.

– E, quem sabe, para desprazer dos outros.

– Nesse caso, os outros que tapem os ouvidos – retorquiu Paul.

Os rapazes desataram a rir. Depois, fez-se silêncio. Ele corou violentamente e tomou o chá calado.

A conversa voltou à questão de se o salário das mulheres deveria ser igual ao dos homens. Mrs. Leivers sustentava que os homens tinham famílias a manter; Clara afirmava que trabalho igual teria de significar salário igual, para homens ou mulheres. Mr. Leivers estava inclinado a concordar com ela. O que quer que Mrs. Dawes tivesse dito, Paul teria tomado uma posição contrária à dela. Como tal, argumentou que uma mulher era apenas um acessório no mercado de trabalho e que, na maioria dos casos, não passava de uma coisa transitória, sustentando-se apenas por um ou dois anos. Clara avançou o número de mulheres que sustentavam pai, mãe, irmãs, etc.

– E quase todos os homens do mundo, acima dos trinta anos, sustentam mulher e filhos – e, regra geral, as ditas mulheres não são assalariadas – retorquiu ele.

– Eu penso, meu amigo – disse Clara muito friamente –, que já antes encontrei o teu tipo de pessoa: o jovem que pensa que sabe tudo.

– E tu és do tipo da jovem que pensa que eu não sei nada – volveu ele.

– Oh, sabes sim... sabes como te fazeres ouvir – disse ela.

Paul estava furioso. De repente, rebentou numa gargalhada.

– Isto parece mais uma reunião de sufragistas contigo no estrado a discursar – disse ele.

Clara corou até à raiz dos cabelos.

– Porque terei eu de responder pelos «Homens», quando afinal sou apenas um deles... – continuou Paul.

– Como se não fosse já suficiente – gracejou Edgar.

– E assim – retomou Paul – sou responsabilizado por todos os pecados da história de Inglaterra, desde a Rainha Boadisca até à Canção da Camisa. Não é justo. Gostava que o Homem tivesse o direito de existir na sociedade moderna... num qualquer canto onde pudesse repousar a cabeça.

– Bem – gracejou Mrs. Leivers –, no final de contas, o lugar do homem continuará a ser o mesmo enquanto formos feitos como somos.

Mas este gracejo foi demasiado subtil para todos, à excepção de Clara, que estava indignadíssima.

Após o chá, quando todos os homens, à excepção de Paul, se retiraram, Mrs. Leivers perguntou a Clara:

– E achas a vida mais feliz agora?

– Infinitamente.

– Então estás satisfeita?

– Desde que possa ser livre e independente.

– E não sentes falta de nada na tua vida? – quis saber Mrs. Leivers, delicadamente.

– Ultrapassei isso tudo.

Paul sentiu-se desconfortável perante este discurso, e levantou-se:

– Vais acabar por descobrir que tropeças constantemente nas coisas que deixaste para trás – disse ele. Depois saiu em direcção aos estábulos. Achava que tinha sido espirituoso e o seu orgulho masculino estava radiante. Pôs-se a assobiar enquanto descia o carreiro de ladrilhos.

Miriam veio procurá-lo pouco depois para saber se gostaria de as acompanhar, a Clara e a ela, num passeio. Partiram em direcção à quinta de Strelley Mill. Enquanto caminhavam ao longo da ribeira, pela margem do Willey Water, olhando através do arvoredo para a orla do bosque, onde pequeninas flores cor-de-rosa brilhavam sob uns poucos raios de sol, avistaram, para lá dos troncos das árvores e das ralas aveleiras, um homem conduzindo um grande cavalo baio pelos barrancos. O animal, enorme e cor de fogo, parecia dançar romanticamente através do verde-escuro das aveleiras até onde o ar era sombrio como o passado, por entre as campainhas emurchecidas que podiam ter florido para Deirdre ou Isolda.

Os três estacaram, encantados.

– Que prazer ser cavaleiro – disse ele – e ter aqui um pavilhão.

– E ter-nos a nós fechadas em segurança? – retorquiu Clara.

– Sim – respondeu ele –, entoando melodias com as vossas amas, entregues aos vossos bordados. Eu transportaria o vosso estandarte branco, verde e púrpura, e teria gravado no brasão do meu escudo a sigla das sufragistas, por baixo de uma mulher enfurecida...

– Não tenho qualquer dúvida – disse Clara – que muito mais depressa lutarias por uma mulher do que a deixarias lutar por si mesma.

– E lutaria mesmo! Quando a mulher luta por si mesma parece um cão diante de um espelho, enraivecido pela sua própria sombra.

– E tu és o espelho? – perguntou ela, com um franzir de lábios.

– Ou a sombra – replicou ele.

– Temo – disse ela – que sejas perigosamente inteligente.

– Bem, deixo-te a ti a tarefa de seres boazinha – retorquiu ele, rindo. – Sê boazinha, gentil donzela, e deixai-me ser inteligente.

Mas Clara cansou-se da irreverência de Paul. Subitamente, ao olhar para ela, ele viu que a expressão de superioridade que emanava do seu rosto era infelicidade e não desprezo. O coração dele enterneceu-se por todos. Voltou-se para Miriam, a quem até então negligenciara, e foi gentil com ela.

Ao aproximarem-se da orla do bosque, encontraram Limb, um homem trigueiro e franzino, de quarenta anos, rendeiro de Strelley Mill, que ele dirigia como uma quinta dedicada à pecuária. Segurava as rédeas do poderoso garanhão displicentemente, como se estivesse cansado. Os três recuaram para o deixarem passar por cima das pedras que atravessavam o primeiro regato. Paul admirou-se pelo facto de um animal tão grande caminhar sobre pedras tão escorregadias com inesgotável vigor. Limb estacou diante deles.

– Diga ao seu pai, Miss Leivers – disse ele, numa voz sibilante, pouco vulgar –, que, há três dias, as suas crias novas partiram aquela vedação do fundo e fugiram.

– Qual? – perguntou Miriam, trémula.

O grande cavalo resfolegava pesadamente, agitando os flancos encarniçados e olhando-os desconfiado, com os seus olhos grandes, maravilhosos, mantendo a cabeça baixa e a crina pendente.

– Venham comigo – respondeu Limb – qu’eu amostro-lhes.

O homem e o garanhão seguiram à frente. O cavalo dançava de lado, agitando o topete branco e parecendo assustado, como se sentisse que estava no meio do regato.

– Nada de bailaricos – disse o homem ao animal, afectuosamente.

O cavalo galgou a margem em pequenos saltos e chapinhou delicadamente entrando no segundo regato. Clara, caminhando numa espécie de abandono amuado, olhava meio fascinada, meio desdenhosa. Limb parou e apontou para uma vedação sob uns salgueiros.

– Ali, tá a ver por onde eles passaram? – disse ele. – Os meus homens trouxeram-nos de volta três vezes.

– Sim – balbuciou Miriam, corando como se a culpa fosse sua.

– Querem entrar? – convidou o homem.

– Não obrigado... mas gostaríamos de ir até ao lago.

– Se quiserem – disse ele.

O cavalo relinchou de satisfação por se ver tão próximo de casa.

– Está todo contente por estar de volta – comentou Clara, que estava interessada na criatura.

– Pois está... Hoje teve uma jornada muito cheia.

Atravessaram o portão e viram aproximar-se deles, vinda da casa grande da quinta, uma mulher morena e de baixa estatura, aparentando uma natureza emotiva e cerca de trinta e cinco anos. Tinha o cabelo já um pouco tingido de grisalho e os olhos pareciam selvagens. Avançava de mãos atrás das costas. O seu irmão continuou em frente. Ao vê-la, o grande garanhão relinchou de novo. Ela aproximou-se, excitada.

– Já estás em casa outra vez, meu rapaz! – disse, ternamente, dirigindo-se ao cavalo, não ao homem. O grande animal girou em torno dela, baixando a cabeça. A mulher meteu-lhe na boca a maçã enrugada e amarela que escondera atrás das costas e depois beijou-o perto dos olhos. O cavalo resfolegou de prazer. Ela segurou-lhe a cabeça entre os braços, e apertou-a contra o peito.

– É esplêndido! – disse Miriam.

Miss Limb ergueu os olhos. Eram escuros e dirigiram-se directamente a Paul.

– Oh, boa tarde, Miss Leivers – cumprimentou ela. – Há anos que não a vemos cá por baixo.

Miriam apresentou-lhe os amigos.

– O seu cavalo é um óptimo companheiro! – disse Clara.

– Pois é! – E beijou-o novamente. – Tão dedicado como um homem!

– Mais dedicado que a maioria dos homens, penso eu – retorquiu Clara.

– É um bom menino! – disse a mulher, abraçando de novo o cavalo.

Clara, fascinada pelo grande animal, aproximou-se para lhe afagar o pescoço.

– Ele é muito meigo – disse Miss Limb. – Não acha que todas as criaturas grandes o são?

– É uma beleza! – respondeu Clara.

Queria olhá-lo nos olhos. Queria que ele olhasse para ela.

– É uma pena que não possa falar – disse.

– Oh, mas ele pode... diz tudo – retorquiu a outra mulher.

Depois, o irmão foi-se embora com o cavalo.

– Então, não vão entrar? Faça o favor de entrar, Mr... desculpe, não percebi o seu nome...

– Morel! – disse Miriam. – Não, não vamos entrar, mas gostaríamos de passar pela represa.

– É claro, estejam à vontade. O senhor pesca, Mr. Morel?

– Não – respondeu Paul.

– Porque, se pesca, pode vir pescar quando quiser – ofereceu Miss Limb. – Raramente vemos alguém durante a semana. Até lhe agradecia.

– Que peixes há no lago? – perguntou Paul.

Passaram pelo jardim da frente da casa, sobre o açude, e subiram a margem íngreme até ao lago, que repousava na sombra, com as suas duas ilhotas de madeira. Paul caminhava ao lado de Miss Limb.

– Não me importava de vir nadar para aqui – disse ele.

– Então, venha – convidou ela. – Venha quando quiser. O meu irmão ficará muito contente por conversar consigo. Ele é assim calado porque não tem com quem falar. Venha nadar quando quiser.

Clara aproximou-se.

– Tem uma boa profundidade – comentou. – E é tão límpido.

– É verdade – disse Miss Limb.

– Sabes nadar? – perguntou Paul. – Miss Limb estava agora mesmo a dizer que podíamos vir quando quiséssemos.

– É claro que há os criados da lavoura – disse Miss Limb.

Conversaram durante alguns minutos e depois continuaram, colina acima, deixando na margem a solitária senhora de olhar esgazeado.

A vertente da colina estava amadurecida pelo sol. Era selvagem e coberta de tufos de urze, abandonada aos coelhos. Os três caminhavam em silêncio. Paul disse então:

– Ela faz-me sentir desconfortável.

– Referes-te a Miss Limb? – perguntou Miriam. – É verdade!

– Qual será o problema dela? Estará a ficar tonta por viver demasiado solitária?

– Parece que sim – concordou Miriam. – Isto não é vida para ela. Acho uma crueldade enterrá-la aqui. Eu devia vir visitá-la mais vezes. Mas... ela perturba-me.

– Faz-me sentir pena dela... é verdade, e aborrece-me – disse ele.

– Eu acho – disse Clara subitamente – que o que ela quer é um homem.

Os outros dois ficaram mudos durante alguns instantes.

– Mas é a solidão que a deixa assim amalucada – disse Paul.

Clara não respondeu, prosseguindo a caminhada colina acima. Caminhava cabisbaixa, com as pernas oscilando à medida que pisava por entre os cardos secos e os tufos de erva, e os braços pendendo soltos. Em vez de andar, o seu belo corpo parecia vaguear às cegas pela encosta acima. Uma onda de calor invadiu Paul. Estava curioso acerca dela. Talvez a vida tivesse sido cruel com Clara. Esqueceu Miriam, que caminhava a seu lado, conversando consigo. Ela olhou para ele ao ver que ele não lhe respondia. O olhar dele estava fixo em Clara.

– Ainda achas que ela é uma antipática? – perguntou Miriam.

Ele nem reparou que a pergunta era despropositada. É que também lhe andava a bailar no pensamento.

– Passa-se algo com ela – respondeu.

– Sim – concordou Miriam.

No cimo da colina encontraram uma tapada bravia, escondida dos olhares; dois dos seus lados eram delimitados pelo bosque, os outros dois por sebes altas de espinheiros e sabugueiros. Por entre estes arbustos densos, viam-se aberturas por onde o gado poderia ter passado, se ali houvesse ainda gado. Naquele sítio a relva era macia e aveludada, fofa e esburacada pelos coelhos. O campo propriamente dito nunca fora cultivado e estava inundado de primaveras grandes e altas que nunca haviam sido cortadas. As flores brotavam fortes em ramalhetes por todo o lado, erguendo-se acima dos grosseiros tufos de erva. Parecia uma angra repleta de altos mastros de navios.

– Ah! – exclamou Miriam, voltando para Paul os olhos escuros dilatados. Ele sorriu. Juntos, gozaram a visão do campo de flores. Clara, um pouco afastada, olhava as primaveras, desconsoladamente. Paul e Miriam ficaram juntos, conversando em voz baixa. Ele ajoelhou-se, colhendo rapidamente os melhores botões, movimentando-se incessantemente de ramalhete em ramalhete, falando sempre num tom suave. Miriam colhia as flores ternamente, detendo-se diante de cada uma delas. Ele parecia-lhe sempre demasiado rápido, quase científico. No entanto, os ramos dele tinham uma beleza natural, mais do que os dela. Ele amava-os, mas como se fossem seus e tivesse direito a eles. Ela tinha uma maior reverência para com as flores: tinham algo que ela não possuía.

As flores eram muito frescas e doces. Ele queria bebê-las. Enquanto as colhia, comeu até uns pequenos jasmins amarelos. Clara continuava a vaguear desconsoladamente. Dirigindo-se a ela, Paul perguntou:

– Porque não colhes algumas?

– Não acho bem. Elas parecem melhor a crescer no campo.

– Mas gostarias de algumas?

– Elas querem ser deixadas em paz.

– Não acho que queiram nada disso.

– Não quero ter cadáveres de flores à minha volta – disse ela.

– Essa é uma ideia pomposa e artificial – replicou ele. – Elas não morrem mais depressa na água do que nas próprias raízes. E, além disso, ficam bem numa jarra, parecem felizes. E só podemos chamar cadáver a uma coisa quando ela tem a aparência de cadáver.

– Mesmo sendo ou não cadáver? – argumentou ela.

– Para mim não o são. Uma flor morta não é o cadáver de uma flor.

Desta vez, Clara ignorou-o.

– Mesmo assim... que direito tens tu de as arrancar? – perguntou ela.

– Gosto delas e quero-as... e há muitas mais.

– E achas isso suficiente?

– Sim, porque não? Estou certo de que deixariam um agradável perfume no teu quarto em Nottingham.

– E eu teria o prazer de as ver morrer.

– Mas então... não te interessa se elas morrem.

Dito isto, deixou-a, pisando os maciços de flores emaranhadas, que cobriam espessamente o campo, como pálidas e luminosas formações de espuma. Miriam aproximara-se. Clara estava ajoelhada, aspirando o aroma das primaveras.

– Eu acho – disse Miriam – que se as tratarmos com reverência, não lhes fazemos mal... o que conta é o espírito com que as colhemos.

– Isso é verdade – concordou ele. – Mas nós colhemo-las porque as queremos, é tudo. E exibiu o seu ramalhete.

Miriam estava silenciosa. Paul colheu mais algumas flores.

– Olhem para estas! – continuou Paul. – Robustas e sadias como pequenas árvores ou meninos de pernas gordas...

O chapéu de Clara estava pousado na erva, não muito longe. Ela estava ajoelhada, ainda inclinada para a frente, a sentir o perfume das flores. A visão do seu pescoço fez Paul sentir uma ânsia aguda, de tão belo que era, embora naquele momento ele não se sentisse muito orgulhoso de si mesmo. Os seios dela agitavam-se ligeiramente na blusa. A curva arqueada das suas costas era bonita e forte: ela não usava corpete. Subitamente, sem saber, ele estava a espalhar uma mão-cheia de primaveras sobre o seu cabelo e o seu pescoço, dizendo:


«Cinzas às cinzas e pó ao pó será.

Se o Senhor não te receber, o Diabo o fará.»


As flores frescas caíram sobre o pescoço de Clara. Ela ergueu o rosto para ele, onde dois olhos cinzentos e assustados, quase cheios de compaixão, se interrogavam sobre o que ele estava a fazer. Sobre o seu rosto caíram flores e ela cerrou os olhos.

De súbito, ali de pé ao lado dela, ele sentiu-se estranho.

– Pensei que querias um funeral – disse, embaraçado.

Clara riu de forma estranha e levantou-se, tirando as primaveras do cabelo. Pegou no chapéu e colocou-o na cabeça. Uma flor permaneceu presa ao seu cabelo, mas Paul não lhe disse nada. Depois, recolheu as flores que espalhara sobre ela.

Nos limites do bosque, os miosótis tinham-se estendido pelo campo, aí ficando como água da corrente. Mas murchavam agora. Clara vagueava sobre eles. Ele seguiu-a. Os miosótis agradavam-lhe.

– Olha como saíram do bosque! – disse.

Nesse momento, ela voltou-se com uma centelha de calor e gratidão.

– É verdade! – sorriu.

O sangue de Paul correu mais rápido.

– Fazem-me pensar nos homens selvagens dos bosques... como eles devem ter-se sentido aterrorizados quando se defrontaram cara a cara com o espaço aberto.

– Achas que sim? – perguntou ela.

– Entre as tribos antigas, pergunto-me quais teriam mais medo: as que irrompiam da escuridão dos bosques para todo um espaço de luz, ou as das áreas abertas, penetrando pé ante pé nas florestas.

– Acho que as segundas – respondeu ela.

– Sim, tu sentes-te realmente como uma pessoa de espaços abertos... tentando forçar-se a penetrar no escuro, não é verdade?

– Como é que posso saber? – respondeu ela, de um modo singular.

A conversa ficou por aqui.

A noite adensava-se sobre a terra. O vale já se cobria de sombras. Um minúsculo quadrado de luz subsistia ainda do lado oposto à quinta de Crossleigh Bank. Um brilho incandescente inundava os cumes das colinas. Miriam subiu lentamente, com o rosto enterrado no seu grande e solto ramalhete de flores, caminhando através da espuma dispersa das primaveras que lhe cobria o tornozelo. Atrás dela, as árvores transformavam-se agora em formas, todas elas sombras.

– Vamos? – perguntou.

E os três voltaram para trás. Permaneceram em silêncio. Descendo o trilho de terra, podiam ver a luz de casa mesmo em frente e, no cume da colina, uma leve silhueta escura pontilhada de luzinhas, onde a aldeia da mina de carvão tocava o céu.

– Foi agradável, não foi? – perguntou ele.

Miriam concordou, num murmúrio. Clara ficou em silêncio.

– Não achas? – insistiu ele.

Mas ela caminhava com a cabeça erguida e não respondia. Pela sua maneira de andar, como se nada lhe importasse, ele podia adivinhar o seu sofrimento.

Por esta altura, Paul levou a mãe a Lincoln. Ela estava entusiasmada e resplandecente como nunca, mas, sentada diante dele na carruagem do comboio, parecia frágil. E Paul teve uma sensação fugaz, como se ela estivesse a deslizar para longe dele. Então, quis agarrá-la, prendê-la, quase acorrentá-la. Sentia que tinha de a segurar com as próprias mãos.

Aproximavam-se da cidade. Iam ambos à janela, procurando vislumbrar a catedral.

– Ali está ela, mãe! – gritou Paul.

Avistaram a grande catedral erguendo-se acima da planície.

– Ah! – exclamou ela. – Pois está!

Ele olhou para a mãe. Os seus olhos azuis observavam a catedral em silêncio. Novamente ela parecia para lá dele. Algo da serenidade eterna da elevada catedral, azul e nobre contra o céu, algo da sua fatalidade, estava nela reflectido. O que era, era! – mesmo com toda a sua juventude, ele não podia alterá-lo. Olhou o rosto dela: a pele era ainda fresca, cor-de-rosa e aveludada, mas notavam-se já alguns pés-de-galinha em torno dos olhos; as pálpebras eram firmes, afundando-se um pouco, e a boca sempre fechada, em desilusão; e havia nela o mesmo olhar eterno, como se, finalmente, conhecesse o destino. E ele debatia-se contra o destino com todas as forças da sua alma.

– Veja, mãe, como se eleva sobre a cidade! E pensar que há ruas e ruas abaixo dela; parece maior que toda a cidade.

– Pois parece! – exclamou a mãe, voltando novamente à vida. Mas ele vira-a sentada, olhando fixamente pela janela para a catedral, de rosto e olhar parados, reflectindo a inexorabilidade da vida. E os pés-de-galinha em redor dos seus olhos e a boca tão duramente cerrada fizeram-no sentir que enlouquecia.

Fizeram uma refeição que ela considerou desnecessariamente extravagante.

– Não penses que eu gosto disto – disse, enquanto comia a costeleta. – Não gosto, não gosto mesmo nada! Só de pensar no teu dinheiro, assim desperdiçado!

– Não se preocupe com o meu dinheiro – respondeu ele. – Esquece-se de que sou um rapaz que leva a namorada a jantar fora?

Depois, comprou-lhe violetas azuis.

– Pára já com isso, menino! – ordenou ela. – Como é que eu vou fazer uma coisa dessas?

– Não tem de fazer nada! Fique quieta.

E, em plena High Street, Paul pregou as flores no casaco da mãe.

– Uma velha como eu! – protestou ela, aspirando o perfume.

– Bem vê – explicou ele –, quero que as pessoas pensem que somos terrivelmente finos. Portanto, a mãe tem de se apresentar à altura.

– Merecias que eu te desse um tabefe – disse ela.

– Vá lá... – ordenou ele –, pavoneie-se... como um pombo de cauda em leque.

Levaram uma hora a percorrer a rua. Mrs. Morel deteve-se primeiro junto ao Glory Hole, depois diante de Stone Bow, deteve-se em todo o lado, soltando exclamações. Um homem aproximou-se, tirou o chapéu e fez-lhe uma vénia:

– Permita-me que lhe mostre a cidade, minha senhora.

– Não, obrigada – respondeu ela. – Tenho o meu filho.

Nesse momento, Paul ficou furioso com ela por não ter respondido com mais dignidade.

– Tu deixas-te levar por ti mesmo – exclamou ela. – Ah, aquela é a Casa do Judeu! Lembras-te daquele sermão, Paul...

Ela mal podia subir a colina que conduzia à catedral, mas ele não notou. De repente, porém, foi dar com ela incapaz de falar. Conduziu-a a um pequeno bar, onde descansou.

– Não é nada! – disse a mãe. – O meu coração só está a ficar velhote; é de se esperar.

Paul não respondeu, mas olhou para ela. E novamente o seu coração foi esmagado por um aperto escaldante. Queria gritar, queria desfazer tudo, em fúria.

Retomaram o passeio, passo a passo, muito lentamente. E cada passo parecia um peso no peito de Paul. Sentia-se como se o seu coração fosse explodir. Finalmente, chegaram ao topo. Ela deteve-se encantada, olhando para o portão do castelo, admirando a fachada da Catedral. Tinha-se esquecido de si mesma.

– Isto é ainda melhor do que pensei que pudesse ser! – exclamou.

Mas ele odiava tudo. Por todo o lado a seguia, cismando. Sentaram-se juntos na Catedral. Assistiram a um curto serviço religioso no coro. Ela estava hesitante.

– Estará aberto para todos? – perguntou.

– É claro que está – respondeu ele. – Pensa que iam ter a lata de nos mandar embora?

– Bem – exclamou ela –, tenho a certeza de que teriam, se ouvissem a tua linguagem!

Durante o serviço, o seu rosto parecia resplandecer novamente de alegria e tranquilidade. E durante todo esse tempo, ele tinha vontade de se enraivecer, partir coisas e gritar.

Mais tarde, quando se debruçaram da muralha, admirando a cidade lá em baixo, Paul disse intempestivamente:

– Porque é que um homem não pode ter uma mãe jovem? Porque é que há-de ser sempre velha?

– Bem – disse ela, a rir – não me parece que tenha muita escolha.

– E porque não fui eu o filho mais velho? Ora veja... os filhos mais velhos dizem que os mais novos têm vantagem... mas veja bem, eles é que tiveram a mãe jovem. A mãe devia ter-me tido como seu filho mais velho.

– Não fui eu que escolhi – replicou ela. – Se pensares bem, és tão culpado como eu.

Ele voltou-se para ela, pálido, com o olhar irado.

– Porque é que a mãe é velha? – disse ele, enlouquecido pela sua impotência. Porque é que não pode andar? Porque é que não pode acompanhar-me a todos os lugares?

– Tempos houve – respondeu ela – em que eu era capaz de correr por essa colina acima melhor do que tu.

– E de que é que isso me vale, a mim? – gritou ele, golpeando a muralha com o punho. Depois, tornou-se lamuriento: – É uma pena que esteja doente, minha pequenina, é...

– Doente! – interrompeu ela. – Estou só a ficar velha, e tu tens de te conformar, é tudo. – Ficaram em silêncio. Mas não por muito tempo, e logo retomaram a boa disposição durante o chá. Enquanto estavam sentados na margem do Brayford, observando os barcos, Paul falou-lhe de Clara. A mãe fez inúmeras perguntas.

– E com quem vive ela?

– Com a mãe, em Bluebell Hill.

– E têm o suficiente para se manterem?

– Acho que não: penso que fazem rendas.

– Afinal que encantos lhe encontras tu, meu filho?

– Não sei se ela tem encantos, mãe. Mas é simpática. E parece correcta, sabe... Nada profunda, nem um pouco.

– Mas é bastante mais velha do que tu.

– Tem trinta, e eu vou fazer vinte e três.

– Mas não me disseste porque gostas dela.

– Porque não sei... será talvez o ar provocador que ela tem, uma espécie de revolta...

Mrs. Morel pensou um pouco. Teria ficado contente se o filho se apaixonasse por uma mulher que... ela não sabia bem o quê. Mas ele enervou-se, ficando subitamente furioso, e novamente melancólico. Ela só desejava que ele conhecesse uma rapariga agradável. Nem sabia o que desejava, mas deixou o assunto no ar. De certa forma, não era hostil à ideia de Clara.

Também Annie se ia casar. Leonard fora para longe trabalhar em Birmingham. Um fim-de-semana em que ele estava lá em casa, Mrs. Morel dissera-lhe:

– Não estás com boa cara, meu filho.

– Não sei o que tenho – respondeu ele. – Sinto-me perdido, mãe.

Chamava-a já de mãe, com o seu jeito infantil.

– Tens a certeza de que as instalações são boas? – perguntou ela.

– Sim... sim. Só que... é um aborrecimento quando temos de tomar sozinhos o nosso próprio chá... sem ninguém para nos ralhar, se o deitarmos para o pires e o bebermos daí. Não sei porquê mas tira o sabor ao chá.

Mrs. Morel riu-se.

– E então isso preocupa-te? – perguntou.

– Não sei... Quero casar – disse ele, de repente, torcendo os dedos e olhando para as botas. Houve uma pausa.

– Mas – exclamou ela – pensei que tinhas dito que querias esperar mais um ano.

– Pois foi, eu disse isso – respondeu ele, teimosamente.

Mrs. Morel considerou as palavras do filho por um momento.

– Sabes – continuou – a Annie é um pouco esbanjadora. Não amealhou mais de umas onze libras... e eu sei, meu filho, que tu não tens tido muita sorte.

Ele corou até às orelhas.

– Eu tenho vinte e três libras – respondeu.

– Com isso, não vão muito longe – disse Mrs. Morel.

Ele não respondeu, limitando-se a torcer os dedos.

– E tu sabes que eu não tenho nada... – continuou ela.

– Nem eu queria, mãe...! – gritou ele, muito vermelho, sofrendo e protestando.

– Não, meu filho, eu sei. Só tenho pena de não ter dinheiro. Tirando cinco libras para o casamento e preparativos... ficam vinte e nove libras... com isso não conseguem fazer grande coisa...

Ele continuou a torcer os dedos, impotente, obstinado, sem erguer os olhos.

– Mas queres mesmo casar? – perguntou ela. – Achas que deves?

Ele olhou-a de frente com os seus olhos azuis.

– Quero! – afirmou.

– Então – continuou ela – temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance.

Quando Leonard voltou a erguer o rosto, tinha lágrimas nos olhos.

– Não quero que a Annie passe dificuldades...! – disse ele, debatendo-se.

– Meu filho – disse ela – vocês namoram há muito tempo – tu tens um emprego decente. Se um homem tivesse precisado de mim, eu teria casado com ele mesmo sem dinheiro. Para ela pode ser um pouco difícil começar a vida humildemente. As raparigas muito novas são assim. Esperam ansiosas pelo belo lar que pensam que vão ter. Mas eu tinha mobílias caras! E isso não é tudo.

Assim, o casamento teve lugar quase de imediato. Arthur veio a casa, esplêndido no seu uniforme. Annie estava muito bonita num vestido cinza peito-de-rola que podia guardar para os domingos. Morel disse-lhe que era bem parva por se casar, e mostrou-se muito frio para com o genro. Mrs. Morel tinha plumas brancas no chapéu e mais algumas na blusa, e ambos os filhos a arreliaram por se embonecar tanto. Leonard estava alegre e cordial e sentia-se um tolo amedrontado. Paul não conseguia entender por que razão Annie queria casar-se. Sentia um grande carinho por ela, e ela por ele. Esperava, por isso, talvez um pouco melancolicamente, que tudo lhe corresse pelo melhor. Arthur estava surpreendentemente elegante no seu uniforme escarlate e amarelo e tinha plena consciência disso, mas sentia-se secretamente envergonhado por estar fardado. Annie debulhou-se em lágrimas na cozinha, ao despedir-se da mãe. Mrs. Morel chorou um pouco e, depois, afagou-lhe as costas, dizendo:

– Não chores, filha, ele vai ser bom para ti.

Morel bateu com os pés no chão violentamente, afirmando que ela era uma parva por se ter amarrado tão depressa. Leonard estava pálido e exausto. Mrs. Morel disse-lhe:

– Confio-ta, meu filho, e considero-te responsável por ela.

– Pode confiar em mim – assegurou ele, quase morto com tanta confusão. E estava tudo acabado.

Quando Morel e Arthur se recolheram, Paul sentou-se a conversar com a mãe, como tantas vezes fazia.

– Não tem pena de ela se ter casado, pois não, mãe? – perguntou ele.

– Não tenho pena de ela ter casado... mas... é uma sensação estranha... vê-la partir para longe de mim. Até me parece impossível que ela prefira ir com o Leonard. Mas as mães são assim... eu sei que é tolice.

– E vai ficar triste por causa dela?

– Quando penso no dia do meu casamento – respondeu a mãe – só posso esperar que a vida dela seja diferente.

– Mas confia nele... para a tratar bem?

– Sim, sim! Há quem diga que ela podia ter arranjado melhor. Mas eu acho que, se um homem é genuíno, como é o Leonard, e uma rapariga gosta dele... então... está tudo bem... ele é tão bom quanto ela.

– Nesse caso, não se importa?

– Nunca deixaria uma filha minha casar com um homem que eu não sentisse ser completamente genuíno. E, no entanto, cá está este vazio, agora que ela se foi...

Sentiam-se ambos tristes e queriam-na de volta. Paul achava que a mãe parecia muito sozinha, na sua nova blusa de seda preta com guarnições brancas.

– De qualquer modo, mãe, eu nunca me casarei – afirmou ele.

– Ah, todos dizem o mesmo, meu filho. Ainda não encontraste a mulher ideal. Espera um ano ou dois, e vais ver.

– Mas eu não me caso, mãe... fico a viver consigo, e vamos ter uma criada.

– Ah, meu filho... falar é fácil. Veremos quando chegar a altura.

– Que altura? Eu tenho quase vinte e três anos.

– Sim... não és dos que se casam cedo. Mas daqui a três anos...

– Estarei consigo na mesma.

– Veremos, meu filho, veremos.

– Mas a mãe não quer que eu case?

– Não gostaria de pensar que vais continuar pela vida fora sem ninguém para tomar conta de ti e te fazer... não, não gostaria...

– Acha então que devo casar-me?

– Mais cedo ou mais tarde, todos os homens devem casar-se.

– Mas preferia que fosse mais tarde.

– Será difícil... muito difícil. É como o povo diz:


«Quem casa filho, perde um filho;

quem casa filha, ganha um filho.»


– E pensa que eu deixaria uma mulher afastar-me de si?

– Bem, não poderias pedir-lhe que casasse contigo e com a tua mãe – sorriu Mrs. Morel.

– Ela que fizesse o que quisesse... desde que não interferisse.

– Não o faria... até te ter apanhado... Mas depois verias...

– Então nunca vou ver. Nunca me casarei enquanto a tiver a si... Nunca.

– Mas eu não gostaria de te deixar sem ninguém, meu filho – disse Mrs. Morel, chorando.

– A mãe não vai deixar-me. A mãe tem... cinquenta e três anos! Dou-lhe até aos setenta e cinco. Ora aí tem, nessa altura, estou eu gordo e com quarenta e quatro anos, e então posso casar com uma mulher séria. A mãe vai ver...!

A mãe sentou-se, a rir.

– Vai deitar-te – disse ela –, vai deitar-te.

– E havemos de ter uma casa bem bonita, a mãe e eu, e uma criada, e tudo será perfeito. Talvez eu venha a ficar rico com a minha pintura.

– Já para a cama!

– E a mãe terá uma caleche puxada por um potro. Imagina-se... uma pequena Rainha Vitória por aí a trotar.

– Já te disse para ires para a cama – disse ela, a rir.

Ele beijou-a e saiu. Os seus planos para o futuro eram sempre os mesmos.

Mrs. Morel ficou a matutar sobre a filha, sobre Paul, sobre Arthur. Lamentava-se por ter perdido Annie. A família era muito unida, e ela sentia que agora tinha de viver, para estar com os filhos. A vida tinha-lhe dado tanta coisa. Paul amava-a e Arthur também. Arthur nunca soube o quanto a amava. Era uma criatura de momentos. Até agora, nunca tinha sido obrigado a compreender--se a si mesmo. O exército disciplinara o seu corpo, mas não a sua alma. Estava de perfeita saúde e era muito atraente. O seu cabelo negro e espesso assentava-lhe bem na cabeça pequena. Havia algo de infantil no seu nariz, algo quase feminino nos seus olhos azuis, muito escuros. Mas tinha a boca vermelha e cheia de um homem, sublinhando o bigode, e o queixo era vigoroso. A boca era do pai, e o nariz e os olhos da família da mãe, gente bonita, de fracos princípios. Mrs. Morel andava ansiosa, preocupada com o filho. Desde que assumisse realmente o uniforme, estava seguro. Mas até onde iria ele?

Na verdade, o exército não lhe tinha feito nenhum bem. Ressentia-se amargamente da autoridade dos oficiais subalternos. Detestava ter de obedecer, como se fosse um animal. Mas tinha o bom senso de não protestar. Por isso, concentrara toda a sua atenção na tentativa de tirar o melhor partido da situação. Sabia cantar, era um companheiro alegre. Por vezes, envolvia-se em situações difíceis, mas eram as dificuldades próprias de um homem, facilmente perdoáveis. Assim, tirava disso o melhor partido, enquanto o seu autorespeito se ia recalcando. Confiava na sua boa aparência e elegância, no seu requinte e boa educação, para conseguir quase tudo o que desejava, e não estava desiludido. No entanto, sentia-se inquieto. Algo parecia atormentá-lo por dentro. Nunca estava quieto, nunca estava sozinho. Com a mãe, mostrava-se bastante humilde. Admirava Paul, amava-o até, mas desprezava-o ligeiramente. E Paul, por sua vez, admirava e amava o irmão, mas desprezava-o ligeiramente.

Mrs. Morel recebera algumas libras da herança do pai, e decidiu comprar a saída do filho do exército. Ele não cabia em si de contente. Parecia um garoto em férias.

Sempre gostara de Beatrice Wyld e, durante a sua licença, reatou a velha amizade. Ela estava agora mais forte e de melhor saúde. Os dois davam frequentemente longos passeios, e Arthur levava-a pelo braço à boa maneira dos soldados, com alguma rigidez. Beatrice tocava piano enquanto ele cantava. Arthur desapertava, então, o colarinho da túnica, ia ficando cada vez mais corado, com o olhar brilhante, e cantava com uma voz máscula de tenor. Depois, sentavam-se juntos no sofá. Ele parecia exibir o seu corpo, e ela mostrava-se bem consciente dele, do peito forte, dos flancos, das coxas cingidas nas calças justas.

Ele gostava de se resvalar para o dialecto quando conversava com ela. Por vezes, Beatrice acompanhava-o e fumava também um cigarro. Noutras ocasiões, tirava apenas umas passas do cigarro dele.

– Não – disse ele uma noite, quando ela lhe pediu o cigarro: – Nem penses. Se quiseres, dou-te um beijo com fumo.

– Quero uma passa, não quero beijo nenhum – respondeu ela.

– Então... é isso que vais ter – disse ele – juntamente com o beijo.

– Quero dar uma passa no teu cigarro – irritou-se ela, tentando tirar-lhe o cigarro dos lábios.

Arthur estava sentado com o ombro encostado ao dela. Ela era pequena e rápida como um raio. Só a custo ele conseguiu escapar-lhe.

– Dou-te um beijo de fumo – disse ele.

– És um descarado impertinente, Arty Morel – disse ela, recostando-se no sofá.

– Deixa-me dar-te um beijo de fumo!

O soldado inclinou-se, sorrindo. O seu rosto estava próximo do dela.

– Olha o disparate! – replicou ela, virando a cabeça.

Arthur aspirou uma longa fumaça, fechou a boca e pôs os lábios perto dela. O seu bigode escuro e bem aparado sobressaía como uma escova. Beatrice olhou para os lábios rubros, pregueados, e depois, subitamente, conseguiu arrancar-lhe o cigarro dos dedos e fugiu para longe. Ele, correndo atrás dela, tirou-lhe a travessa que lhe prendia os cabelos. Ela voltou-se e atirou-lhe o cigarro. Ele apanhou-o, pô-lo na boca e sentou-se.

– Parvalhão! – gritou ela. – Dá-me a minha travessa!

Receava que o seu cabelo, especialmente penteado para ele, se desmanchasse, e conservou as mãos na cabeça. Ele escondeu a travessa entre os joelhos.

– Não a tenho – disse.

Com o riso, o cigarro tremia-lhe entre os lábios enquanto falava.

– Mentiroso! – acusou ela.

– Tão certo como eu estar aqui! – E riu-se, mostrando as mãos.

– Seu demónio desavergonhado! – exclamou ela, precipitando-se para ele, lutando para recuperar a travessa que ele tinha entre os joelhos. Enquanto Beatrice lutava com ele, puxando-lhe as coxas macias e apertadamente cingidas, Arthur riu-se até cair para trás no sofá, sacudido pelas gargalhadas. O cigarro caiu-lhe da boca e quase lhe queimou a garganta. Sob o delicado bronzeado, o sangue subiu à superfície, e ele riu até os seus olhos azuis ficarem cegos e a garganta inchada, quase sufocando. Depois, endireitou-se. Beatrice estava a colocar a travessa no lugar.

– Fizeste-me cócegas, Beat – disse ele, com a voz rouca.

Como um relâmpago, a mão dela, pequena e branca, voou e esbofeteou-lhe a face. Ele ergueu-se de um salto, com um olhar feroz. Entreolharam-se. Lentamente, um rubor subiu às faces dela; baixou os olhos, depois a cabeça. Ele sentou-se novamente, amuado. Ela entrou na cozinha para compor o cabelo. Aí, sozinha, verteu algumas lágrimas, não sabendo bem por que razão.

Quando regressou, estava recomposta. Mas era apenas uma capa sobre o seu fogo interior. Arthur, com a cabeleira revolta, continuava amuado no sofá. Beatrice sentou-se diante dele, no cadeirão, e nenhum dos dois falou. O relógio martelava no silêncio, com pancadas secas.

– És uma gatinha arisca, Beat – disse ele devagar, quase como um pedido de desculpas.

– Bem, e tu não devias ser tão atrevido – retorquiu ela.

Seguiu-se novamente um longo silêncio. Ele assobiava para si mesmo, como um homem muito agitado, mas provocador. Subitamente, ela atravessou a sala direita a ele e beijou-o.

– Então, dei ou não dei? – troçou ela.

Ele levantou o rosto para ela, sorrindo de forma singular.

– Dás-me outro? – convidou ele.

– Julgas que não me atrevo? – perguntou ela.

– Coragem! – desafiou-a ele, com a boca estendida na sua direcção.

Deliberadamente, e com um sorriso fremente que parecia espalhar-se a todo o corpo, ela colocou a boca sobre a dele. Imediatamente, os braços de Arthur se fecharam em torno dela. Assim que o longo beijo acabou, ela afastou a cabeça, e meteu os dedos delicados no pescoço dele, por dentro do colarinho aberto. Depois, fechando os olhos, abandonou-se de novo num beijo.

Agia agora de livre vontade. O que desejava fazer, fizera-o e não responsabilizava ninguém.

Paul sentia a vida mudar à sua volta. As condições da juventude tinham desaparecido. Agora, a sua era uma casa de pessoas adultas. Annie era uma mulher casada, Arthur seguia o seu próprio prazer de um modo que a família ignorava. Durante muito tempo, tinham vivido em casa, saindo para passar o tempo. Mas agora, para Annie e Arthur, a vida desenrolava-se fora de casa da mãe. Só vinha a casa de férias ou para descansar. Por isso, pairava no ar aquela sensação estranha de vazio, como se os passarinhos tivessem levantado voo. Paul andava cada vez mais inquieto. Annie e Arthur haviam partido. Ele estava ansioso por lhes seguir o exemplo. No entanto, a casa era, para ele, ao lado de sua mãe. E, contudo, havia algo mais, algo cá fora, algo que ele desejava.

Andava cada vez mais desassossegado. Miriam não o satisfazia. O seu antigo desejo, quase loucura, de estar com ela, enfraquecera. Por vezes, encontrava Clara em Nottingham, por vezes acompanhava-a a reuniões, por vezes via-a em Willey Farm. Mas ultimamente a situação tornara-se constrangedora. Havia um triângulo de antagonismo entre Paul, Clara e Miriam. Com Clara, ele adoptava um tom vivo, mundano e trocista que era muito desagradável para Miriam. Não lhe importava o que acontecera antes. Ela podia ser íntima e estar triste com ele. Depois, assim que Clara aparecia, tudo desaparecia, e ele representava para a recém-chegada.

Miriam disfrutara de uma bela noite na companhia de Paul, sentados no feno. Ele estivera ocupado na cavalariça e, quando acabou, veio ajudá-la a colocar o feno em pequenos molhes. Depois, falou-lhe das suas esperanças e desesperos, e toda a sua alma parecia estar ali, desnuda diante dela. Ela sentiu-se como se visse nele a própria essência trémula da vida. A Lua despontou; regressaram juntos a casa; parecia que ele a procurara porque precisava desesperadamente dela, e ela escutou-o, deu-lhe todo o seu amor e confiança. A Miriam parecia que ele lhe trouxera o melhor que havia em si para guardar, e que ela o guardaria enquanto vivesse. Não, o céu não cuidaria das estrelas melhor e mais eternamente do que ela guardaria o que de bom havia na alma de Paul Morel. Entrou em casa sozinha, sentindo-se exaltada, satisfeita com a sua confiança.

E depois, no dia seguinte, Clara chegou. Estava combinado tomarem o chá no campo de feno. Miriam viu a tarde vestir-se de dourado e depois de sombras. Durante todo esse tempo, Paul brincava com Clara. Fazia montes de feno cada vez maiores sobre os quais saltavam. Miriam não se interessava pelo jogo e manteve-se afastada. Edgar, Geoffrey, Maurice, Clara e Paul não paravam de saltar. Paul venceu, pois era muito leve. O sangue de Clara estava inflamado. Ela corria como uma amazona. Paul adorava a forma determinada como ela se precipitava para o monte de feno e saltava, aterrando do outro lado, com os seios sacudidos e o cabelo espesso em desalinho.

– Tocaste! – gritou ele. – Tocaste!

– Não toquei nada! – dardejou ela, voltando-se para Edgar. – Não toquei, pois não? Não achas que passei bem?

– Não sei. – E Edgar riu-se.

Nenhum deles sabia dizer.

– Mas tu tocaste – insistiu Paul. – E perdeste.

– Não toquei! – gritou ela.

– Tão claro como água – teimou Paul.

– Dá-lhe um puxão de orelhas por mim – gritou ela a Edgar.

– Não – disse Edgar a rir –, não me atrevo. Tens de ser tu a fazê-lo.

– Nada vai alterar o facto de teres tocado – insistiu Paul, trocista.

Ela estava furiosa. O seu pequeno triunfo diante de homens e rapazes desvanecera-se. Ela esquecera-se de si durante o jogo. Agora, ele queria humilhá-la.

– Acho que és desprezível! – disse-lhe ela.

Ele riu novamente, de um modo que torturou Miriam.

– Eu já sabia que não conseguias saltar aquele monte – provocou Paul.

Clara voltou-lhe as costas. Contudo, todos podiam ver que a única pessoa que ela escutava, ou da qual estava consciente, era ele, e ele dela. Agradava aos homens assistir a esta batalha entre eles. Mas Miriam torturava-se.

Via agora que Paul podia escolher o inferior em vez do superior. Ele conseguia ser infiel a si próprio, infiel ao verdadeiro e profundo Paul Morel. Havia o perigo de ele se tornar frívolo, de correr atrás das suas satisfações como qualquer Arthur, ou como o seu próprio pai. Pensar que ele pudesse desperdiçar a sua alma em troca desta irreverente relação de trivialidade com Clara era algo que atormentava Miriam. Caminhava amargurada e em silêncio, enquanto os outros dois brigavam entre si e Paul se divertia.

Mais tarde, embora se recusasse a admiti-lo, Paul sentiu-se envergonhado de si mesmo e prostrou-se diante de Miriam. Então, de novo se revoltou.

– Não é religioso ser-se religioso – disse. – Considero que um corvo é religioso quando cruza os céus. Mas só o faz porque se sente levado para onde vai, não porque pense que está a ser eterno.

Mas Miriam sabia que uma pessoa podia ser religiosa em tudo, ter Deus, fosse Ele quem fosse, presente em tudo.

– Não acredito que Deus saiba assim tanto sobre Si mesmo – bradou Paul. – Deus não sabe as coisas, Ele é as coisas... E estou certo de que não é sentimental.

A ela parecia-lhe que Paul tentava pôr Deus do seu lado, porque queria que as coisas fossem à sua maneira e desejava apenas o seu prazer. Travou-se uma longa batalha entre ambos. Ele era-lhe absolutamente infiel até mesmo na sua presença; depois ficava envergonhado, arrependido, para logo em seguida a odiar e fugir novamente. Essa era a situação eternamente repetida.

Ela irritava-o até ao mais fundo da sua alma. Depois, ali ficava, triste, pensativa, em adoração. E ele fazia-a sofrer. Metade do tempo, ele sofria por ela, metade do tempo, odiava-a. Ela era a sua consciência, e ele sentia que, de algum modo, tinha uma consciência que era de mais para si. Não podia deixá-la, porque, de certa forma, ela detinha em seu poder o melhor que havia nele. Não podia ficar com ela, porque ela não recebia tudo o resto, o que vinha por acréscimo, e eram três quartos. Por isso, desgastava-se em crueldade para com ela.

Quando ela fez vinte e um anos, ele escreveu-lhe uma carta que apenas podia ter sido escrita para ela.

«Será que devo escrever-te uma carta de aniversário? Parece um pouco pernicioso fazê-lo deliberadamente, não achas? Porque é certo que vou ser presunçoso e sentencioso.» Seguia-se então uma boa dose de presunção:

«A minha última carta preparava-te, não é verdade, para as alegrias da idade que se aproximava. Não te sentes como uma herdeira ao tomar posse da sua herança? É que agora, tornas-te publicamente dona de ti mesma. Querias mais?... Impossível!»

Paul começava a sentir o sentimento de culpa a torturá-lo. Parecia despedaçado por dentro, como se não pudesse manter-se de pé, mas devesse esforçar-se por não cair.

«Deixa-me falar do nosso velho e desgastado amor, pela última vez. Também ele está a mudar, não te parece? É como se o corpo desse amor tivesse morrido, deixando-te a sua alma invulnerável! Sabes, eu posso dar-te um amor espiritual, como sempre fiz du-rante estes longos, longos anos; mas não uma paixão encarniçada. Sabes, tu és uma freira. Eu dei-te aquilo que teria dado a uma freira sagrada... como um monge místico dá a uma freira mística; certamente que o estimas mais. No entanto, lamentas... não, lamentaste, melhor dizendo... o outro. Em todas as nossas relações, não entra o corpo. Não estou a falar-te através dos sentidos... mas através do espírito. É por isso que não somos capazes de amar no sentido comum. Muitas vezes, quando me dirijo a ti, não te olho de frente, porque, vê se entendes, eu não falo para os teus olhos, embora eles sejam escuros e belos, não falo para os teus ouvidos, ocultos sob uma delicada mecha de cabelo sedoso... mas para o teu íntimo, para lá de tudo isso. E assim continuarei a fazer a vida inteira, se o destino não intervier. Estás a ver? Compreendes agora porque só te beijo debaixo do azevinho. Entendes? E eu, será que entendo? Será talvez melhor, pensarás tu. Eu acho que sou demasiado educado, demasiado civilizado. Acho que muita gente o é.

«Tu ocupas um lugar na minha natureza que ninguém mais poderia preencher. Tu tens desempenhado um papel fundamental no meu desenvolvimento. E esta dor, que tem sido como uma nuvem ensombrando as nossas almas, não se começa ela a dissipar? A nossa não é uma afeição banal. E, no entanto, somos mortais, e viver lado a lado um com o outro seria terrível, pois, de algum modo, contigo não posso já ser trivial e, sabes, estar sempre para além deste estado mortal seria perdê-lo. Se as pessoas casam, devem viver juntas como seres humanos afectuosos que podem ser banais um com o outro sem se sentirem estranhos... não como duas almas. É assim que penso.

«Talvez me case nos próximos anos. Terá de ser uma mulher a quem possa beijar e abraçar, a quem possa fazer mãe dos meus filhos, com quem possa falar divertidamente, trivialmente, sinceramente, mas nunca com esta terrível seriedade. Vê como o destino dispôs as coisas. Tu... tu podes casar com um homem que não se derrame como fogo diante de ti. Pergunto-me se entendes... pergunto-me se eu próprio me entendo. Mas tu sabes que estas coisas me perturbam, e agora eis um final para a nossa conversa sobre este assunto. Perdoa-me por tudo o que disse – não é natural, eu sei – e queima esta carta, e não penses nela nem me faças pensar nela, e Deus nos ajude a suportar o fardo de nós próprios.

«Gostarias de um Manual de Ética? Acho que gostarias, sim, e podemos falar disso e aprender... oh, sim. E tu ficarás mais culta, não é? Como vês, a nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro.

«Agora tens vinte e um anos. Estou tão feliz por seres uma mulher independente. És tão forte quanto eu, não és? Sim, ainda mais forte. Oh, se temos de viver, temos de ser sensatos, e não nos podemos permitir ir longe de mais. Devemos ser triviais e procurar a beleza e não a dor, pois de outro modo ficamos numa situação difícil. Vá lá, nem uma palavra sobre os lugares sensíveis, por enquanto.

«Oh, como estaremos alegres na tua festa, no sábado! Eu, agora, não sinto nem um pouco de tristeza dentro do meu coração.

«Será que devo enviar-te esta carta? Duvido. Mas, afinal... é melhor, para que possas compreender. Adeus...»

Miriam leu a carta duas vezes, fechando-a em seguida. Um ano mais tarde, quebrou o selo para a mostrar à sua mãe.

«Tu és uma freira... tu és uma freira» – as palavras penetravam-lhe no coração uma e outra vez. Nada do que ele alguma vez dissera a penetrara tão profunda e firmemente, como se de uma ferida mortal se tratasse.

Ela respondeu-lhe dois dias depois da festa. «A nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro», citou. «Terá esse erro sido meu?»

Quase de imediato, ele respondeu-lhe de Nottingham, enviando-lhe ao mesmo tempo um pequeno Omar Khayyam.

«Vais encontrar muita coisa entre as finas capas deste pequeno livro, mas a lição a retirar é que devemos beber o vinho tinto da vida e deixá-lo embriagar-nos por um instante. Foi essa a razão por que o comprei. Também quero levar-te The Blessed Damosel, para passar um serão contigo e com Rossetti.

«Se o pequeno erro foi teu, perguntas tu. Bem, ninguém erra sozinho! A tua quota-parte do erro foi gloriosa, digna da imortalidade. Mas a minha foi um reconhecimento indomável do barro do vaso... frágil... rígido... confinador. E eu, alternadamente, amei e odiei a matéria mundana de mim mesmo. Quando a amava, era cruel para ti, quando a odiava, era cruel para mim, e para tudo o mais. Não tenho eu a faculdade de ser muito cruel?

«Se, na festa dos teus anos, eu estava ainda algo tempestuoso, foi porque reconheci no teu sol de quarta-feira o brilho lavado do teu longo dia de chuva de terça-feira. Eu não me sento e travo a descoberto as minhas batalhas, como tu fazes. Eu sacudo o inimigo pela garganta e grito-lhe que ele é um vilão e um cão. Com isso, ordeno-lhe que vá para longe de mim e, por um momento, fico em liberdade. Depois, digo a mim mesmo que se tratava de um pobre coitado e rio. Pouco depois, mergulho novamente nas trevas, ao descobrir que ele não se foi nem tão-pouco está morto... E, quando tudo isto se torna insuportável, travo com ele nova luta feroz. Através destas batalhas violentas venço, ou não venço. Sem triunfos, sem Waterloos. Assim, não sofro tão intensamente, e fico menos estável. Afinal de contas, é uma brincadeira, esta coisa de “nós”, não é?

«Estou feliz por teres respondido... És tão calma e natural que me envergonhas. Que oco que eu sou! Tenho de jogar duro... Tu não entendes como eu posso dançar em redor dos meus inimigos, invectivando-os e espiando-os, lançando mão de tudo o que me aparece no caminho, travando contendas ocasionais. Se eu me fechasse a tudo e mantivesse a dor apertada no peito, como tu fazes, morreria de exaustão. Nisso, as nossas naturezas são radicalmente opostas.

«Por isso, estamos tantas vezes em desacordo. Mas, no fundamental, estaremos sempre juntos, penso eu.

«Tenho de agradecer-te pela tua simpatia para com a minha pintura e os meus desenhos. Muitos dos esboços são dedicados a ti. Espero ansiosamente as tuas críticas, que, para minha vergonha e glória, são sempre grandes apreciações. Que deliciosa brincadeira que isso é.

«Adeus. Agora tenho de saldar uma maldita conta. Espero que queimes estas cartas. É minha regra queimá-las todas... pois nenhuma me dá prazer a não ser pela lembrança do prazer a que se referem, e muitas estão cheias de lágrimas secretas das quais devo fugir...»

Este foi o fim da primeira fase dos amores de Paul Morel. Estava agora com vinte e três anos e, embora virgem, o instinto sexual que Miriam refinara nele durante tanto tempo estava agora cada vez mais fortalecido. Muitas vezes, quando falava com Clara Dawes, sentia o sangue engrossar e alvoroçar-se, aquela concentração peculiar no peito, como se algo estivesse vivo lá dentro, um novo ser ou um novo centro de consciência, avisando-o de que, mais cedo ou mais tarde, teria de decidir-se por uma mulher ou por outra. Mas ele pertencia a Miriam. Disso ela estava absolutamente segura, de que ele lhe concedia esse direito.


X

CLARA

COM VINTE E TRÊS anos, Paul mandou uma paisagem sua para a Exposição de Inverno de Newcastle. Miss Jordan tinha-se interessado muito por ele e convidara-o para ir a sua casa, onde conheceu outros artistas. Paul começava a ter ambições.

Uma manhã, estava ele a lavar-se na copa, quando chegou o carteiro. Paul ouviu a mãe numa gritaria desenfreada. Correu para a cozinha e viu-a de pé diante da lareira, a agitar uma carta, como louca, e a gritar «Vivas!». Ficou chocado e assustado.

– Oh, mãe! – exclamou.

A mãe correu para ele e atirou-se-lhe ao pescoço, enquanto agitava a carta, gritando:

– Parabéns, meu filho... Eu sabia que havíamos de vencer!

Paul estava cheio de medo daquela mulher pequenina e bem-comportada, já de cabelos grisalhos, que de repente desatara naquele chinfrim. Até o carteiro voltou para trás a correr, pensando que tinha acontecido alguma desgraça. Viram-lhe o cocuruto do boné por detrás da cortina. Mrs. Morel precipitou-se para a porta.

– O quadro dele ganhou o primeiro prémio, Fred, e foi vendido por vinte guinéus!

– Ena pá! G’ande acontecimento! – disse o carteiro, um rapaz novo, que ela conhecia desde pequeno.

– Quem o comprou foi o major Moreton – acrescentou Mrs. Morel.

– Isso vale muito, olá se vale, Mrs. Morel – disse o carteiro, de olhos azuis a luzir. Não cabia em si de contente por ter sido o portador de tão boas notícias. Mrs. Morel voltou para dentro e sentou-se. Tremia dos pés à cabeça. Paul só tinha medo de que ela tivesse lido mal a carta e sofresse uma desilusão. Releu-a uma, duas vezes, e convenceu-se de que era mesmo verdade. Então, sentou-se, com o coração a pulsar forte, de alegria.

– Oh, mãe! – exclamou.

– Eu não te disse que havíamos de vencer? – disse ela, disfarçando as lágrimas.

Paul tirou a chaleira do lume e escaldou o chá.

– A mãe não imaginava que... – começou ele, hesitante.

– Não, meu filho... assim tanto não... mas esperava bastante.

– Mas tanto não – disse ele.

– Não... isso não... mas sabia que íamos vencer.

E logo recuperou a compostura, pelo menos aparentemente. Ele estava sentado, de camisa aberta, deixando-lhe a descoberto um pescoço quase feminino, de toalha na mão e cabelo em pé.

– Vinte guinéus, mãe! Exactamente o que a mãe precisava para resgatar o Arthur. Agora já não precisa de pedir emprestado. É mesmo à conta.

– Nem pensar nisso, não te vou ficar com o dinheiro todo! – disse ela.

– Ora essa, porquê?

– Porque não devo.

– Bem... então a mãe fica com onze libras... e eu com nove.

Continuaram a discutir a divisão dos vinte guinéus. Ela só queria as cinco libras de que precisava. Ele não concordava de maneira nenhuma. E, assim, a discussão serviu para descarregarem a tensão.

Morel, quando à noite chegou da mina, disse, mal entrou:

– Ouvi dizer qu’o quadro do Paul ganhou o primeiro prémio e foi vindido a Lorde Henry Bentley por cinquenta libras.

– As histórias que as pessoas contam! – exclamou Mrs. Morel.

– Ah! – disse ele. – Eu bem sabia qu’era mentira. Mas impingiram-me que tu é que tinhas contado ò Fred Hodgkisson.

– Como se eu lhe fosse dizer uma coisa dessas!

– Ah! – aquiesceu o mineiro.

Via-se que estava desapontado.

– Lá que ganhou o primeiro prémio... isso é verdade – disse Mrs. Morel.

O mineiro deixou-se cair pesadamente na cadeira.

– Conseguiu! – exclamou o mineiro.

Estava perplexo, de olhar pregado algures, no outro lado da sala.

– Mas, quanto às cinquenta libras, que disparate! – E Mrs. Morel calou-se por um instante. – Enfim... o major Moreton comprou-o por vinte guinéus...

– Vinte guinéus! Num pode ser! – exclamou Morel.

– Pois foi, e bem os merece.

– Tá bem! – disse ele. – Num duvido... Mas vinte guinéus por uma pintura qualquer qu’ele fez numa ou duas horas...! – Depois calou-se, cheio de respeito pelo filho. Mrs. Morel fungou ligeiramente, como se isso não fosse nada de importante.

– E quand’é qu’ele põe as mãos na massa? – perguntou o mineiro.

– Isso não sei... quando o quadro for entregue, suponho.

Fez-se silêncio. Morel olhava para o açucareiro em vez de comer, com o braço enfarruscado e a mão desfigurada pelo trabalho apoiados em cima da mesa. A mulher fingiu não ver quando ele limpou os olhos com as costas da mão, com a cara toda esborratada do pó da mina.

– Pois é, e o outro tamém havia de ter feito o mêmo, se num o tivessem matado – disse ele, em voz baixa.

A lembrança de William retalhou Mrs. Morel como uma lâmina gelada, deixando-a fatigada e a precisar de se ir deitar.

Paul foi convidado para jantar em casa de Mr. Jordan. Ao chegar a casa, disse:

– Mãe, preciso de um smoking.

– Sim, já calculava – disse ela. Estava contente. Fez uma pausa. – Tens o do William – prosseguiu. – Sei que custou quatro libras e dez xelins, e ele só o vestiu três vezes...

– E a mãe gostava que eu o usasse? – perguntou Paul.

– Com certeza. Acho que te deve servir... pelo menos o casaco. As calças têm de ser subidas.

Paul foi para o quarto e vestiu o casaco e o colete. Quando desceu estava bastante bizarro, com o colarinho e o peitilho de flanela e o casaco e colete de cerimónia. Estava-lhe tudo muito largo.

– O alfaiate aperta-te isso – disse a mãe, alisando-lhe o casaco no ombro. – O tecido é muito bonito. Nunca tive coragem para deixar o teu pai usar as calças e bem contente estou agora de o ter feito.

Enquanto passava a mão nas bandas de seda do casaco, pensou no filho mais velho. Mas este outro filho estava bem vivo dentro do fato, e ela passou-lhe a mão nas costas para o sentir. Estava vivo e era dela. O outro estava morto.

Paul foi a vários jantares com o smoking que tinha sido de William. De cada vez que isso acontecia, o coração da mãe exultava de orgulho e alegria. O filho estava lançado na vida. Os botões que ela e os irmãos tinham comprado para William trazia-os ele no peitilho, aplicados numa das camisas de cerimónia de William. Paul tinha uma bela figura. As suas feições eram algo rudes, mas era simpático e muito amável. Não seria propriamente um cavalheiro, mas via-se que estava ali um homem genuíno.

Paul contava à mãe tudo o que se passava, tudo o que se dizia. Era como se ela lá tivesse estado. E ele estava morto por lhe apresentar os novos amigos com quem ia jantar às sete e meia.

– Ir contigo? – disse ela. – Para que hão-de querer eles conhecer-me?

– Mas querem! – exclamou, indignado. – Se querem conhecer-me, como dizem, então querem conhecê-la a si também... porque a mãe é tão inteligente como eu.

– Ir contigo, meu filho... – E riu-se.

Mas começou a poupar mais as mãos. Também as dela estavam muito calejadas do trabalho. A pele estava lustrosa da água quente e os nós dos dedos inchados. Mas começou a ter o cuidado de não as meter em lixívia. Tinha saudades das suas mãos de outros tempos, pequenas e delicadas. E quando Annie começou a insistir com ela para usar blusas mais requintadas, de acordo com a sua idade, ela fez-lhe a vontade. Permitiu até que lhe pusessem um laço preto de veludo no cabelo. Depois, deu uma fungadela sarcástica, mas sabia que lhe ficava bem. Parecia uma senhora da sociedade, afirmava Paul, tão fina como Mrs. Moreton, e muito, muito mais bonita. A família estava a subir na escala social. Só Morel continuava na mesma, ou melhor, piorava lentamente.

Paul e a mãe discutiam longamente sobre a essência da vida. A religião ia desaparecendo da vida de Paul. Tinha-se desembaraçado de todas as crenças que o pudessem aperrear, fizera uma limpeza geral, e chegara mais ou menos ao âmago da fé, ou seja, que cada um deve procurar o bem e o mal dentro de si mesmo, e ir, com paciência, construindo a sua própria ideia de Deus. E, a partir dessa altura, passou a interessar-se mais pela vida.

– Sabe – disse ele à mãe –, não quero pertencer a uma burguesia abastada. Prefiro o povo. Eu sou do povo.

– Mas se fosse outra pessoa a dizê-lo, meu filho, ias ficar furioso. Tu sabes que te consideras igual a qualquer grande senhor.

– No íntimo, talvez – respondeu ele. – Não na classe ou na educação, ou nas maneiras. Mas no íntimo, isso sim.

– Muito bem... Então para quê falar no povo?

– Porque... a diferença entre as pessoas não está nas classes sociais, mas nelas mesmas... Só que às classes médias vão-se buscar as ideias, e ao povo... a própria vida, o calor humano. No povo sentem-se vibrar o ódio e o amor...

– Isso é tudo muito bonito, meu filho... mas então porque não vais conversar com os amigos do teu pai?

– Esses são muito diferentes.

– Não concordo. São gente do povo. Afinal, com que pessoas do povo é que te dás agora? Com as que gostam de trocar ideias, falar das mesmas coisas que a burguesia. As outras não te interessam.

– Mas... há a vida...

– Não creio que a Miriam te dê mais vida do que qualquer rapariga culta... Miss Moreton, por exemplo. Tu é que tens preconceitos de classe, estás a ficar um snob.

A mãe desejava francamente que o filho ascendesse à burguesia, o que ela sabia não ser difícil. E desejava vê-lo, no fim, casado com uma senhora da sociedade.

Empenhava-se agora em combater no filho a sua incessante inquietação. Ele ainda mantinha a ligação com Miriam, não conseguindo nem acabar com tudo nem assumir o compromisso em definitivo, e a indecisão parecia consumir-lhe as energias. Além disso, a mãe pressentia nele uma inclinação inconsciente para Clara, e sendo ela uma mulher casada, Mrs. Morel só desejava que o filho se apaixonasse por alguém em situação menos complicada. Mas Paul, estupidamente, recusava-se a amar, ou sequer a admirar uma rapariga só pelo facto de ela pertencer a uma classe mais elevada.

– Meu filho – disse-lhe a mãe –, nem toda a tua inteligência, nem todo o teu desprezo pelas tradições antigas, nem essa mania de fazeres só o que queres, parecem trazer-te grande felicidade.

– E o que é a felicidade? – exclamou ele. – Para mim não existe! Como é que eu posso ser feliz?

Esta pergunta tão directa perturbou-a.

– Isso só tu podes saber, meu filho. Mas, se pudesses encontrar uma mulher decente que te fizesse feliz... quando te bastava quereres... terias mais sossego para trabalhar... seria muito melhor para ti.

Paul franziu o sobrolho. A mãe pusera o dedo em cheio na ferida chamada Miriam. Ele afastou os cabelos da testa, com o olhar incendiado de dor.

– Isso é fácil de dizer, mãe – gritou. – Isso é a cartilha de todas as mulheres... paz de espírito e conforto físico. Para mim, isso não vale nada.

– Ah, não? – retorquiu a mãe. – Se calhar achas que o teu desencanto é divino, não?

– Acho... Lá da divindade não quero saber. Mas diabos levem a sua felicidade! Desde que se tenha uma vida cheia, não interessa se é ou não de felicidade. Receio que a sua felicidade me enchesse de tédio.

– Tu nem sequer tentas – disse a mãe. E, de repente, toda a dor que sentia por ele explodiu. – E isso é importante! – gritou ela. – Tinhas obrigação de ser feliz, tinhas obrigação de tentar ser feliz, de viver feliz. Como é que eu ia ficar, sabendo que eras infeliz?

– A sua vida foi suficientemente má, Mater, mas não a deixou muito pior do que os que foram mais felizes. Julgo que se saiu até muito bem. Comigo passa-se o mesmo. Não acha que me estou a sair bem?

– Não, meu filho, não estás. Batalhar... batalhar... e sofrer... é tudo o que fazes, pelo que eu vejo...

– E porque não, querida mãe? É o melhor que há a fazer...

– Não, não é! As pessoas têm obrigação de ser felizes!

Mrs. Morel tremia dos pés à cabeça. Discussões destas repetiam-se sempre que a mãe parecia querer lutar pela vida do filho, opondo-se à sua vontade de morrer. Paul abraçou-a. Ela estava doente, metia dó.

– Deixe lá, mãezinha! – murmurou Paul. – Desde que a vida não nos pareça mesquinha e miserável, o resto não importa... que seja feliz ou infeliz.

Ela apertou-o contra o peito.

– Mas eu quero que sejas feliz – disse, pateticamente.

– Oh, mãezinha adorada... diga antes que quer que eu viva.

Mrs. Morel sentiu o coração morrer por ele. Sabia que, por este andar, ele não duraria muito. O seu desleixo pungente, a propensão para o sofrimento, a vida que levava, eram tudo formas lentas de suicídio. Dilacerava-se-lhe o coração só de pensar. Odiava Miriam com toda a força da sua determinação por tão subtilmente ter minado a alegria de Paul. Não lhe interessava que não o fizesse por mal. Fazia-o, e ela odiava-a.

Queria tanto que o filho se apaixonasse por uma rapariga à sua altura – educada e forte. Mas ele não olhava para ninguém que considerasse superior. Parecia gostar de Mrs. Dawes. Pelo menos esse sentimento era genuíno. A mãe não se cansava de rezar por ele, para que não se perdesse. Era tudo o que pedia: não pela sua alma ou pela rectidão do seu carácter, mas para que não se perdesse. E, enquanto ele dormia, passava horas a fio a pensar nele e a rezar por ele.

Paul afastou-se de Miriam imperceptivelmente, sem o saber. Arthur só saiu do exército para se casar. O bebé nasceu seis meses após o casamento. Mrs. Morel arranjou-lhe um novo emprego na mesma firma onde trabalhara antes, a ganhar vinte e um xelins por semana. Com a ajuda da mãe de Beatrice, mobilou-lhe uma casinha de dois quartos. Agora estava definitivamente apanhado. Não importava barafustar e espernear, estava bem preso. Andou mal-humorado durante algum tempo, mostrando-se insuportável com a mulher que o amava; não ligava quando o bebé, que era franzino, chorava ou dava preocupações. Fazia à mãe queixas intermináveis, mas ela limitava-se a dizer: «Bem, meu filho, o responsável és tu, tens de aprender a tirar partido da situação.» E, finalmente, ganhou juízo. Agarrou-se ao trabalho, assumiu as suas responsabilidades, compreendeu que pertencia à mulher e ao filho e aprendeu a tirar o melhor partido da situação. Nunca se tinha sentido muito ligado à família, e agora afastava-se de vez.

Os meses iam passando devagar. Através de Clara, Paul tinha-se mais ou menos relacionado com os socialistas, as sufragistas e os sindicalistas de Nottingham. Um dia, uma amiga dele e de Clara, que morava em Bestwood, pediu-lhe que levasse um recado a Mrs. Dawes. Ao fim da tarde, Paul foi até Bluebell Hill, metendo por Sneinton Market, e lá conseguiu encontrar a casa numa ruela empedrada a granito e com passeios de tijolo azul-escuro, rugoso. Um degrau separava a porta da tosca calçada, servindo também para as pessoas limparem os pés e baterem com as botas para sacudirem a lama. A pintura castanha da porta estava tão deteriorada que se via a madeira por baixo da tinta a descascar. Paul ficou na rua, e bateu à porta. Soaram passos pesados e, por cima da sua cabeça, surgiu uma mulher alentada, por volta dos sessenta anos. Ele olhou para ela do passeio. A mulher tinha uma expressão severa.

Mandou-o entrar para a sala, que dava directamente para a rua. Era um quartinho pequeno, abafado e tétrico, com móveis de mogno e descomunais retratos a carvão de gente já falecida. Mrs. Radford saiu da sala com o seu passo imponente, quase marcial. Clara entrou logo a seguir e, ao vê-lo, corou até às orelhas, o que o deixou atrapalhado. Era como se não lhe agradasse que ele a tivesse vindo encontrar no seu ambiente doméstico.

– Parecia-me impossível ser a tua voz – disse ela.

Mas agora, perdido por cem, perdido por mil... e levou-o do mausoléu directamente para a cozinha.

A cozinha era também escura e acanhada, mas encontrava-se atafulhada de rendas brancas. A mãe tinha ido sentar-se de novo junto ao aparador, às voltas com uma emaranhada teia de renda. À sua direita, um monte solto de linha de algodão; à esquerda, tufos e mais tufos de espiguilha de renda; e, à sua frente, sobre o tapete da lareira, a tal teia emaranhada. Os fios encaracolados, puxados do emaranhado de rendas, espalhavam-se por cima do guarda-fogo e pela chaminé. Paul não se atrevia a dar um passo, não fosse tropeçar nos rolos de linha branca.

Em cima da mesa estava uma dobadoura. Havia ainda um maço de cartões castanhos e quadrados para enrolar a renda, uma caixinha de alfinetes e, em cima do sofá, um outro monte de renda.

Havia rendas por todo o lado, e a cozinha era tão escura e quente que fazia sobressair ainda mais a nuvem branca, rendada.

– Já que cá tá, num repare d’eu continuar a trabalhar – disse Mrs. Radford. – Sei que tá tudo atravancado, mas faça o favor de s’assentar.

Clara, muito atrapalhada, encostou à parede uma cadeira, para ele se sentar, em frente aos novelos de brancura, e sentou-se ela no sofá, envergonhada.

– Quer beber uma cerveja preta? – perguntou Mrs. Radford.

– Clara, vai buscar-lhe uma cerveja.

Paul protestou, mas Mrs. Radford insistiu.

– Tá cum ar de quem precisa – disse ela. – Nunca anda com melhores cores do qu’isso?

– É da minha pele, é muito grossa e não deixa ver o sangue à transparência – respondeu ele.

Clara, envergonhada e aborrecida, trouxe-lhe uma garrafa de cerveja e um copo. Paul deitou o líquido preto no copo.

– Bem – disse ele, erguendo o copo –, à nossa!

– Agradecida – disse Mrs. Radford.

Paul bebeu um gole.

– E pode fumar à vontade, desde que num deite fogo à casa – acrescentou Mrs. Radford.

– Obrigado – respondeu Paul.

– Num precisa de m’agradecer – disse ela. – Até vou gostar de sintir o cheirinho do tabaco aqui em casa outra vez. Uma casa só de mulheres é tão triste com’uma casa sem lareira, acho eu. Num sou de querer o meu canto só pra mim. Inté gosto de ver um home a andar por aí... se ele for alguma coisa que se veja.

Clara começou a trabalhar. A dobadoura rodava, chiando mansamente, e a renda branca saltava-lhe por entre os dedos para o cartão. Quando o cartão ficou cheio, ela partiu a espiguilha e, com um alfinete, prendeu a ponta à renda já enrolada. Depois, meteu novo cartão na dobadoura. Paul observava-a. Estava sentada com as costas muito direitas, magnífica. Tinha o pescoço e os braços desnudados. O sangue aflorava-lhe à face, por baixo da orelha, e mantinha a cabeça baixa, de vergonha e humilhação. Os olhos estavam pregados no trabalho. Os seus braços eram de um tom mate e pujantes de vida, comparados com a renda branca. As suas mãos, grandes e bem tratadas, trabalhavam em movimentos cadenciados, como se nada pudesse apressá-las. Ele, sem se aperceber, não tirava os olhos dela. Era a linha do seu pescoço, prolongando-se desde o ombro, quando ela se curvava; era o seu cabelo castanho-escuro; era o movimento dos seus braços resplandecentes.

– A Clara falou-me de si – continuou a mãe. – Trabalha na Jordan, não é? – E continuou a fazer renda sem parar.

– É, sim.

– Inda m’alembra de quando o Thomas Jordan costumava pedir-me caramelos.

– Ah, sim? – disse Paul, sorrindo. – E ele merecia-os?

– Umas vezes sim, outras não... sobretudo para o fim. Ele é dos que levam tudo e num dão nada, isso é qu’ele é... ou, pelo menos, costumava ser.

– Eu acho-o uma pessoa muito decente.

– Bom... folgo em saber.

Mrs. Radford olhava Paul sem pestanejar. Havia nela uma determinação que lhe agradava. A cara estava flácida, mas os olhos eram calmos, e havia nela um vigor que refutava a velhice, fazendo as rugas e as peles parecerem um mero anacronismo. Tinha a força e o sangue-frio de uma mulher na pujança da vida. Continuou a fazer renda com movimentos lentos e muita dignidade. A fofa teia amontoava-se-lhe inevitavelmente no avental, tombando depois pouco a pouco para o chão, ao seu lado. Os braços eram bem torneados, mas luzidios e amarelados, de marfim velho, e não tinham aquele tom mate que tornava, a seu ver, tão fascinantes os de Clara.

– Anda atão c’a Miriam Leivers? – perguntou a mãe de Clara.

– Bem... – disse ele.

– É boa rapariga – prosseguiu Mrs. Radford. – Boa rapariga, mas um bocado fedúncia cá prò meu gosto.

– Sim, talvez... – concordou Paul.

– Só fica satisfeita quando tiver asas pra poder voar por cima da cabeça de toda a gente – disse ela.

Clara interrompeu-os, e Paul deu-lhe o recado que o levara lá. Ela falava com ele com humildade, vendo-se surpreendida no seu antro de miséria. Ao vê-la assim, humilde, era como se ele a esperasse, ansioso.

– Gostas de dobar? – perguntou Paul.

– O que é que uma mulher há-de fazer? – respondeu ela amargamente.

– É cansativo?

– Mais ou menos. E não o é todo o trabalho feminino? Essa é outra das partidas que os homens nos pregaram, desde que conquistámos o nosso lugar no mundo do trabalho.

– Atão... num fales mal dos homes – disse a mãe. – S’as mulheres num fossem umas parvas, os homes num eram tão maus, é o qu’eu digo... Olha que nenhum home me tratou mal que não levasse o troco... Mas que são uns danados, lá isso são, num adianta negar.

– Mas boas pessoas, não concorda? – perguntou Paul.

– Bem... são um bocado diferentes das mulheres – disse ela.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – perguntou ele a Clara.

– Acho que não – respondeu ela.

– Gostava, pois! – exclamou a mãe. – Ficava toda contente se voltasse. Num lhe ligue. Ela é toda cheia de nove horas, mas qualquer dia inda vai morrer de fome.

Clara passava vergonhas com a mãe. Até Paul sentia os olhos abrirem-se-lhe de espanto. Será que não devia mesmo ligar aos remoques de Clara? Ela trabalhava com afinco. E ele sentiu um arrepio de prazer só de pensar que ela podia precisar da sua ajuda. Parecia tão carente e privada de tanta coisa. O seu braço, que não fora feito para se amarrar a um mecanismo, movia-se mecanicamente; e a cabeça, que não fora feita para andar curvada, curvava-se sobre a renda. Parecia presa à dobadoura, entre os desperdícios de uma vida. Era muito duro para ela ver-se dispensada pela vida, como se já não tivesse préstimo. Não admira que protestasse tanto.

Clara acompanhou-o à porta. Ele ficou parado na ruela miserável, a olhar para ela. Era tão soberba na figura e no porte que fazia lembrar Juno destronada. De pé, na soleira da porta, fechava os olhos à rua e à miséria que a rodeava.

– Vais a Hucknall com Mrs. Hodgkinson?

Paul dizia coisas sem sentido, de olhos postos nela. Os olhos cinzentos de Clara encontraram finalmente os seus. Estavam mudos de humilhação, contritos, com uma espécie de submissão de escrava. Ele ficou surpreendido, sem saber o que fazer. Sempre a tinha imaginado altiva e poderosa.

Quando dali saiu, só lhe apetecia fugir. Dirigiu-se para a estação, como um sonâmbulo, e chegou a casa sem consciência de já não estar na rua dela.

Estava convencido de que Susan, a supervisora da Espiral, se ia casar, e no dia seguinte perguntou-lho.

– Diz-me uma coisa, Susan, ouvi dizer que te vais casar. É verdade?

Susan corou.

– Quem te disse? – perguntou ela.

– Ninguém. Apenas ouvi dizer que estavas a pensar...

– Lá isso estou... Mas não precisas de contar a ninguém. E, ainda por cima, quem me dera não estar...!

– Julgas que eu acredito nisso, Susan?

– Pois podes acreditar. Antes queria mil vezes ficar como estou.

Paul estava chocado.

– Porquê, Susan?

A rapariga estava ruborizada e fulminava-o com o olhar.

– Porque sim!

– E tens mesmo de casar?

Em resposta, ela limitou-se a olhar para ele. Paul tinha uma candura e uma gentileza que faziam as mulheres confiar nele. Compreendeu o que ela queria dizer.

– Ah, desculpa – disse ele. Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

– Mas verás que tudo vai correr bem. Tenta ver as coisas pelo lado melhor – disse ele, melancólico.

– Nem posso fazer outra coisa.

– Podes sim, podes dar cabo da tua vida. Esforça-te por seres feliz.

Paul arranjou novo pretexto para ir a casa de Clara.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – disse ele.

Ela pousou o trabalho, apoiou os braços belíssimos em cima da mesa e fitou-o sem responder. Pouco a pouco, um rubor subiu-lhe às faces.

– Porquê? – perguntou.

Paul sentiu-se constrangido.

– Bem... É que a Susan está a pensar em ir-se embora. Clara continuou a dobar. A espiguilha branca pulava e saltava para o cartão. Ele aguardou. Sem levantar a cabeça, ela disse por fim, numa voz desusadamente baixa:

– Falaste com alguém sobre o assunto?

– Nem uma palavra... Só contigo.

Seguiu-se novo e longo silêncio.

– Quando puserem o anúncio, concorro – disse ela.

– Tens de concorrer antes. Eu digo-te quando.

Ela continuou a fazer girar a dobadoura e não o contrariou.

Clara voltou para a Jordan. Algumas das funcionárias mais antigas, entre elas Fanny, lembravam-se dela de outros tempos e não guardavam boas memórias. Clara sempre fora muito altiva, uma mulher reservada e superior. Nunca se misturava com as colegas e sempre que tinha oportunidade de as criticar, fazia-o com frieza e extrema delicadeza, o que as fazia sentirem-se mais insultadas do que agastadas. Para com Fanny, a pobre corcunda hipersensível, Clara fora sempre extremamente amável e gentil, o que fazia Fanny chorar ainda mais do que as línguas grosseiras das outras supervisoras.


CONTINUA

Era ali, naquele momento, que ela se alimentava de vida para toda uma semana. Ele mandou-a copiar o poema Le Balcon, de Baudelaire e, em seguida, leu-o para ela ouvir. A voz dele era suave e acariciante, mas nos crescendos tornava-se brutal. Paul tinha um modo apaixonado e, ao mesmo tempo, amargurado de arreganhar os lábios e mostrar os dentes sempre que as palavras o levavam ao rubro. E assim fazia agora, fazendo sentir a Miriam que ele a estava a espezinhar. Ela nem se atrevia a olhar para ele, mantendo-se sentada e de cabeça baixa. Não entendia por que razão ele se deixava arrebatar por tão tumultuosas fúrias, e isso deixava-a desfeita. Ainda por cima, nem sequer gostava muito de Baudelaire... nem de Verlaine.


«Olha-a, a cantar pelos campos,

Filha solitária das montanhas...»


Isto sim, alimentava-lhe a alma... tal como a «Linda Inês». E também:


«Caía bela a noite, doce e pura,

Em suspiros sagrados e serenos, como freira...»


Estes versos, sim, eram como ela. E ele, ali à sua frente, arrancando da garganta, em grito rouco:


«Tu te rappelleras la beauté dês caresses.»3


O poema terminou e Paul tirou os pães do forno, metendo-os no alguidar, os queimados no fundo e os bons por cima. A carcaça ressequida continuava na copa embrulhada num pano húmido.

– A Mater não precisa de saber até amanhã de manhã – disse ele. – Já não se vai zangar tanto como esta noite.

Miriam foi à estante e viu as cartas e postais que ele tinha recebido, e quais os livros que lá tinha, e tirou um em que ele se mostrara interessado. Depois, Paul desligou o gás e saíram. Paul nem se preocupou em fechar a porta à chave.

Quando voltou já faltava um quarto para as onze. A mãe estava sentada na cadeira de baloiço e Annie num banquinho junto da lareira, com o cabelo a cair-lhe pelas costas abaixo e os cotovelos apoiados nos joelhos, taciturna. Em cima da mesa, a carcaça da discórdia, já desembrulhada. Paul entrou ofegante. Ninguém abriu a boca. A mãe lia a gazeta local. Ele despiu o casaco e foi sentar-se no sofá. A mãe chegou-se para o lado com brusquidão, deixando-o passar. Ninguém abria a boca. Ele já não sabia como havia de estar. Durante alguns minutos, fingiu ler um bocado do jornal que encontrou em cima da mesa. Mas depois disse:

– Esqueci-me daquele pão no forno, mãe.

Nenhuma das mulheres lhe respondeu.

– Bem – continuou ele –, são só dois dinheiros e meio. Se quiser, eu pago.

Amuado, pôs três moedas em cima da mesa e empurrou-as na direcção da mãe. Ela voltou a cabeça para o outro lado. A boca continuava crispada.

– Pois é – disse Annie –, tu nem fazes ideia de como a mãe se sente mal!

E a rapariga continuou carrancuda a olhar para o lume.

– Sente-se mal porquê? – perguntou Paul, no seu tom autoritário.

– Essa agora – disse Annie. – Viu-se aflita para chegar a casa.

Paul olhou com atenção para a mãe. Parecia de facto doente.

– Viu-se aflita para chegar a casa porquê? – perguntou ele, ainda agreste. A irmã não respondeu.

– Vim encontrá-la aqui sentada, branca como a cera – disse Annie, com lágrimas na voz.

– Diga lá porque foi! – insistiu Paul, já de testa franzida e olhos empolgadamente dilatados.

– Era o suficiente para deixar qualquer pessoa doente – disse Mrs. Morel. – Carregar nos braços com as compras todas... a carne, os legumes e as cortinas...

– Para que carregou com tudo? Não era preciso.

– E então quem é que carregava?

– Mandava a Annie ir buscar a carne.

– Claro que eu tinha ido buscar a carne. Mas como é que eu podia adivinhar? Tu andavas a passear com a Miriam, em vez de estares em casa quando a mãe chegou.

– Mas o que é que lhe aconteceu? – perguntou Paul à mãe.

– Deve ser o coração – respondeu ela. De facto, tinha os lábios azulados.

– E já tinha sentido isso alguma vez?

– Já... e até mais de uma vez.

– Então porque não me disse, e porque é que não foi ao médico?

Mrs. Morel mexeu-se na cadeira, irritada com a prelecção.

– Tu nunca reparas em nada – disse Annie. – Só pensas em andar com a Miriam.

– Ah, sim? E tu e o Leonard... não é a mesma coisa?

– Eu cheguei a casa faltava um quarto para as dez.

Seguiram-se uns minutos de silêncio.

– Nunca imaginei que ela te deixasse tão distraído, ao ponto de queimares uma fornada inteira de pão – disse Mrs. Morel com azedume.

– A Beatrice também cá estava.

– Acredito. Mas nós sabemos porque é que o pão se queimou.

– E porque foi? – disse ele intempestivo.

– Porque tu estavas todo entretido com a Miriam – replicou Mrs. Morel acalorada.

– Pois fique sabendo que não foi nada por isso! – ripostou ele, sacudido.

Estava desgostoso e infeliz. Pegou no jornal e começou a ler. Annie, com a blusa já desabotoada e duas longas tranças, foi para cima, para a cama, dando-lhe secamente as boas-noites.

Paul continuou a fingir que estava a ler. Por um lado, sabia que a mãe lhe queria pregar um sermão. Mas, por outro, queria saber o que a pusera naquele estado, e estava preocupado. Por isso, em vez de ir a correr para a cama, como era sua vontade, ficou à espera. Sentia-se a tensão no silêncio. O tiquetaque do relógio soava forte.

– O melhor é ires deitar-te antes de o teu pai chegar – disse Mrs. Morel, com rispidez. – E se quiseres comer alguma coisa, tens de ir buscá-la.

– Não quero nada.

A mãe costumava preparar-lhe qualquer coisa para a ceia às sextas-feiras à noite, que era a noite de luxo dos mineiros. Mas ele estava demasiado irritado para ir buscar a ceia à despensa, e ela sentiu-se insultada.

– Se eu quisesse que fosses a Selby numa sexta-feira à noite, já estou a imaginar a cena – disse Mrs. Morel. – Mas quando é ela a vir buscar-te, nem sabes o que é cansaço. E já nem comes nem bebes.

– Não posso deixá-la voltar sozinha.

– Ah, não podes... E então para que é que ela vem?

– Não sou eu que lhe peço.

– Ela não vinha se tu não a quisesses cá...

– E se eu a quiser...? Hem? – repontou ele.

– Nada a opor, se fosse sensato ou razoável. Mas calcorrear milhas e milhas por cima dum lamaçal e voltar à meia-noite, para quem tem de ir logo pela manhã para Nottingham...

– E, se não tivesse de ir, para si era a mesma coisa.

– Pois era, porque isto não faz sentido nenhum. Ela é assim tão fascinante que tenhas de andar atrás dela para todo o lado? – perguntou Mrs. Morel, com acerado sarcasmo, continuando sentada, com cara de poucos amigos, esfregando o cetim preto do avental em movimentos ritmadamente repetidos. Aquele motu-contínuo quase enlouquecia Paul.

– Eu gosto muito dela – disse ele – mas...

– Gostas então dela! – disse Mrs. Morel, no mesmo tom mordaz. – Pois a mim parece-me que não gostas de mais nada nem de mais ninguém. Para ti, agora, não existe mais ninguém: nem eu, nem a Annie... nada.

– Que disparate, mãe... sabe bem que eu não amo a Miriam... eu... posso garantir-lhe que não a amo... ela não anda de braço dado comigo nem nada, porque eu não quero.

– Então porque é que vais a correr tantas vezes para ao pé dela?

– Porque gosto muito de falar com ela... Nunca disse que não gostava. Mas não a amo.

– E não tens mais ninguém com quem falar?

– Não acerca das coisas de que nós falamos. Há muitas coisas por que a mãe não se interessa e que...

– Que coisas...?

Mrs. Morel estava tão exaltada que Paul começou a gaguejar.

– Ora essa... pintura... livros... A mãe, por exemplo, não gosta de Herbert Spencer.

– Não – foi a resposta concisa. – E tu também não vais gostar, quando tiveres a minha idade.

– Está bem, mas gosto agora... e a Miriam também...

– E como é que sabes – atalhou Mrs. Morel em tom de desafio – que eu não gosto. Já experimentaste perguntar-me?

– Mas eu sei que não gosta, mãe, sabe bem que não lhe interessa discutir se um quadro é ou não decorativo... é-lhe indiferente qual o seu estilo.

– Como sabes que não me interessa... já experimentaste perguntar-me? Alguma vez conversas comigo sobre essas coisas, só para experimentar?

– Mas a mãe sabe bem que para si isso não conta, sabe bem que não.

– Então o que é, diz lá... o que é que conta para mim? – desferiu ela.

Paul franziu a testa, magoado.

– A senhora é velha, mãe, e nós somos novos.

O que ele queria dizer era que os interesses da idade dela não eram idênticos aos da sua. Mas mal acabou a frase percebeu que tinha dito o que não devia.

– Sim, sei muito bem... sou uma velha! E por isso mesmo devo manter-me afastada... já não tenho nada a ver contigo. Tu só me queres para te servir de criada... o resto é com a Miriam.

Ele já não aguentava mais. Instintivamente, apercebeu-se de que ele era toda a vida dela. E, bem vistas as coisas, ela era para ele a coisa mais importante, a única verdade suprema.

– Sabe bem que não é assim, mãe... sabe bem que não é.

O grito dele comoveu-a.

– Pois olha que parece mesmo – disse ela, deixando de certa forma de lado o desespero.

– Não, mãe... na verdade, eu não a amo. Converso com ela... mas é para a nossa casa, para ao pé de si que eu quero vir.

Paul, já sem o colarinho e a gravata, levantou-se para se ir deitar. Quando ia a dar um beijo à mãe, ela passou-lhe os braços em volta do pescoço, escondeu a cara no seu ombro e pôs-se a choramingar, com uma voz dorida, tão pouco habitual nela que o fez crispar-se de agonia.

– Eu já não aguento mais. Uma outra mulher talvez... mas ela não... ela não me daria espaço algum... nem um bocadinho...

E imediatamente sentiu que odiava Miriam amargamente.

– E eu nunca... tu sabes, Paul... eu nunca tive um marido... não um de verdade...

Ele acariciou-lhe os cabelos e os seus lábios afloraram o pescoço dela.

– E ela esforça-se tanto para te afastar de mim... ela não é como as outras raparigas.

– Bem, mãe, eu não a amo – murmurou ele, baixando a cabeça e escondendo os olhos no ombro dela, muito infeliz. A mãe deu-lhe um beijo ardente e longo.

– Meu filho! – disse, com a voz trémula de amor. E ele, sem se aperceber, acariciou-lhe suavemente o rosto.

– Pronto – disse a mãe. – Agora vai deitar-te. Senão amanhã de manhã acordas muito cansado.

Enquanto falava, Mrs. Morel sentiu o marido entrar.

– Vem aí o teu pai... vá, já para a cama... – Subitamente, olhou para o filho quase a medo. – Talvez eu esteja a ser egoísta. Se a queres, meu filho, fica com ela.

A mãe estava a comportar-se de uma forma muito estranha, pensou Paul, beijando-a, ainda a tremer.

– Oh, mãe! – disse ele meigamente.

Morel entrou aos tropeções. Trazia o chapéu tombado sobre o canto do olho. Ao transpor a porta, perdeu o equilíbrio. – Outra vez a fazeres das tuas? – disse ele, acintosamente.

As emoções de Mrs. Morel transformaram-se instantaneamente em ódio por aquele bêbado que viera intrometer-se tão intempestivamente.

– Pelo menos, ele está sóbrio – disse ela.

– Hum... hum...! Hum... hum! – fez ele, cinicamente.

Foi ao corredor e pendurou o chapéu e o casaco. Em seguida, ouviram-no descer os três degraus da despensa. Quando voltou trazia na mão uma fatia de empadão de carne de porco. Era o que Mrs. Morel tinha comprado para o filho.

– Isso não é para ti. Se não me podes dar mais de vinte e cinco xelins, certamente não te vou comprar empadão de carne de porco, para tu te regalares depois de teres enchido a barriga de cerveja.

– O quê?... O quê? – rosnou Morel, a cambalear e, num repente, atirou o empadão para a lareira, num acesso de mau génio e mesquinhez.

Paul pôs-se de pé num salto.

– Deite fora o que é seu! – gritou.

– O quê?... O quê? – berrou Morel de imediato, dando um salto atrás e cerrando os punhos. – Vais ver como elas mordem... meu menino!

– Muito bem! – disse Paul, cinicamente, deitando a cabeça de lado. – Então vamos lá ver...!

O que mais gostaria naquele momento era de poder bater em qualquer coisa, não importava o quê. Morel estava semidobrado, de punhos em riste, pronto a atacar.

O jovem estava de pé, com um sorriso nos lábios.

– Zás! – silvou o pai, desferindo um soco no ar com um gesto largo, rente à cara do filho. Apesar de tão próximo, não se atreveu a tocar-lhe realmente, passando-lhe a uma escassa polegada de distância.

– Isso! – disse Paul, de olhos pregados na boca do pai, onde a todo o momento o seu punho acertaria. Estava louco por dar aquele soco, mas ouviu um vago gemido atrás de si. A mãe estava lívida de morte e com a boca toda roxa. Morel saltitava, preparando novo ataque.

– Pai! – disse Paul, bem alto para lhe chamar a atenção.

Morel parou, assustado.

– Mãe! – gemeu o rapaz. – Mãe!

Ela começou a lutar contra si própria. Os seus olhos muito abertos observavam-no, apesar de não se poder mexer. A pouco e pouco ia voltando a si. O filho deitou-a no sofá e foi a correr buscar um pouco de uísque, de que ela por fim bebeu alguns golinhos. As lágrimas rolavam-lhe pela cara abaixo. Enquanto esteve ajoelhado ao lado da mãe não chorou, mas as lágrimas irromperam logo a seguir. Morel, sentado do outro lado da sala com os cotovelos apoiados nos joelhos, fuzilava o filho com o olhar.

– Qu’é qu’ela tem? – perguntou.

– Desmaiou! – respondeu Paul.

– Hum!

O homem mais velho começou a desapertar os atacadores das botas. Depois, foi aos tombos para o quarto. Tinha travado a sua derradeira luta naquela casa.

Paul estava ajoelhado ao lado da mãe, esfregando-lhe as mãos.

– Não fique assim, mãe... não fique assim! – não se cansava ele de repetir.

– Isto não é nada, meu filho – murmurou ela.

Finalmente, Paul levantou-se, foi buscar um grande bocado de carvão e abafou o borralho. Depois arrumou a sala, colocou tudo nos seus devidos lugares, pôs a mesa para o pequeno-almoço e foi buscar a palmatória da mãe.

– Consegue ir para a cama sozinha, mãe?

– Consigo, sim... Eu vou.

– Durma com a Annie, mãe, com ele não.

– Não... vou dormir na minha cama.

– Não durma com ele, mãe.

– Vou dormir na minha cama.

Mrs. Morel levantou-se e Paul desligou o gás, subindo depois a escada atrás dela, com a vela. Ao chegarem ao patamar, ele beijou-a ternamente.

– Boa noite, mãe.

– Boa noite – respondeu ela.

Ele enfiou a cabeça na almofada, num acesso de desespero. E, no entanto, sentia paz algures nos recônditos da alma, pois continuava a amar a mãe acima de todas as coisas. Era a paz amarga da resignação.

Os esforços do pai no dia seguinte para o cativar foram para ele uma verdadeira humilhação.

E todos tentaram esquecer o incidente.

2 «Esta manhã os pássaros acordaram-me. Ainda não era dia. Mas a janelinha do meu quarto clareou e logo ficou dourada, e todos os pássaros do bosque irromperam num canto vivo e sonoro.
E a aurora estremeceu. Tinha sonhado contigo. Será que também contemplas a aurora?

Os pássaros acordam-me quase todas as manhãs, e há sempre uma nota de terror no grito dos tordos. Está tão claro...» (N. da T.)

3 «Recordarás a beleza das carícias.» (N. da T.)


IX

A DERROTA DE MIRIAM

PAUL sentia-se descontente consigo mesmo e com tudo o que o rodeava. O seu amor mais profundo dedicava-o à mãe. Não podia suportar a sensação de a ter magoado ou de algum modo ferido o seu amor por ela. A Primavera já se anunciava e, com ela, uma batalha entre ele e Miriam. Este ano Paul tinha muitas queixas contra Miriam e ela estava vagamente consciente desse facto. O velho sentimento que experimentara ao rezar, e lhe segredara que teria de se sacrificar a este amor, misturava-se em todas as suas emoções. No fundo, Miriam não acreditava poder algum dia vir a ter Paul para si. Em primeiro lugar, não acreditava em si mesma: duvidava poder vir a ser o que ele exigiria que ela fosse. Por certo nunca se imaginara a viver a seu lado uma vida de eterna felicidade. O futuro prefigurava-lhe tragédia, dor e sacrifício. E, se no sacrifício era orgulhosa, na renúncia ela era forte; mas não confiava em si mesma para suportar a vida do dia-a-dia. Sentia-se preparada para gestos grandiosos e profundos, gestos dignos de tragédia. Não podia era confiar na sua capacidade de lidar com a pequenez do quotidiano.

As férias da Páscoa iniciaram-se num ambiente feliz. Paul mostrava-se franco, como na realidade o era. Contudo, Miriam sentia que algo iria perturbar aquela paz. No domingo à tarde, deteve-se à janela do seu quarto, olhando os carvalhos do bosque, em cuja folhagem se emaranhavam uns ténues raios de luz sob o resplandecente céu da tarde. Rosetas de folhas de madressilva verde-cinza pendiam frente à janela, algumas, pensou, já em botão. Era Primavera, tempo que Miriam amava e temia ao mesmo tempo.

Ouvindo o ranger do portão, ficou na expectativa. Estava um dia cinzento e luminoso. Paul entrou no pátio com a bicicleta, que reluzia à medida que ele andava. Era hábito tocar a campainha e sorrir em direcção à casa. Hoje, porém, caminhava de lábios cerrados, numa atitude fria e cruel que tinha algo de desprezo e indolência. Ela já o conhecia muito bem e, pela expressão penetrante e reservada do seu rosto jovial, sabia dizer o que se passava no seu íntimo. Havia um tal rigor de frieza no modo como colocou a bicicleta no lugar que o coração de Miriam soçobrou.

Desceu ao andar de baixo, nervosa. Vestia uma blusa nova de malha que, achava ela, lhe assentava muito bem. Tinha uma gola alta, debruada com um folho que lhe lembrava a Rainha Mary da Escócia e lhe dava, pensava ela, um ar encantadoramente feminino e muito digno. Com vinte anos, possuía uns seios bem desenvolvidos e formas voluptuosas. O seu rosto era ainda como uma máscara suave e rica, inalterável. Mas os seus olhos, quando os erguia, eram maravilhosos. Ela tinha medo dele. Ele iria reparar na sua blusa nova.

Paul mostrava-se de disposição dura e irónica, e divertia a família com a descrição de um sermão proferido na Capela Metodista Primitiva por um dos mais conhecidos pregadores da seita. Estava sentado à cabeceira da mesa com o seu rosto versátil e os seus olhos, que conseguiam ser tão belos, brilhando ternamente ou dançando risonhos, assumiam várias expressões, numa imitação das diversas pessoas que caricaturava. A sua veia jocosa sempre a magoara – era demasiado próxima da realidade. Paul era demasiado inteligente e cruel e ela sentia que, quando o seu olhar se enchia, como agora, de feroz ódio trocista, ele não poupava ninguém, nem mesmo a sua própria pessoa. Mas Mrs. Leivers enxugava os olhos marejados de lágrimas, de tanto rir, e Mr. Leivers, já desperto da sua sesta dominical, coçava a cabeça divertido. Os três irmãos, sentados em atitudes desleixadas e sonolentas e em mangas de camisa, soltavam uma gargalhada de vez em quando. O que a família mais adorava era, acima de tudo, uma boa caricatura.

Paul não prestou atenção a Miriam. Mais tarde, ela percebeu que ele tinha reparado na sua blusa nova, viu que o artista a aprovara, mas isso não merecera da sua parte o mínimo lampejo de ternura. Estava nervosa e mal conseguia chegar às chávenas de chá nas prateleiras do armário.

Quando os homens saíram para a ordenha, ousou dirigir-se-lhe pessoalmente:

– Vieste atrasado – disse.

– Vim? – perguntou ele.

Por um momento fez-se silêncio.

– Foi difícil vires a pedalar até aqui? – perguntou ela.

– Nem notei.

Ela continuou a pôr a mesa rapidamente. Quando acabou, disse-lhe:

– O chá só é servido dentro de alguns minutos. Queres vir ver os narcisos?

Ele ergueu-se, sem responder. Dirigiram-se para o jardim das traseiras, sob as ameixoeiras em flor. As colinas e o céu estavam límpidos e frios. Tudo parecia lavado, um pouco agreste talvez. Miriam lançou um olhar a Paul. Ele estava pálido e impassível. A ela parecia-lhe uma crueldade que aqueles olhos e sobrancelhas que ela tanto amava pudessem feri-la tanto.

– O vento cansou-te? – perguntou.

Detectou nele uma certa fadiga.

– Não, acho que não – respondeu ele.

– Deve ser cansativo na estrada... o vento sopra tão forte.

– Pelas nuvens podes ver que é vento sudoeste: até me ajudou a chegar aqui.

– Sabes que eu não ando de bicicleta, por isso não entendo o que queres dizer – murmurou ela.

– E é preciso andar de bicicleta para saber isso? – replicou ele.

Miriam pensou que o seu sarcasmo era desnecessário. Mantiveram-se em silêncio. Em redor do relvado maltratado com a erva muito alta situado nas traseiras da casa, havia uma sebe de espinheiros sob a qual os narcisos se erguiam dos seus ninhos de folhas verde-cinza. As faces das flores estavam esverdeadas de frio. Mas, mesmo assim, algumas haviam já florescido e o seu tom dourado agitava-se e resplandecia. Miriam ajoelhou-se diante de um ramalhete, tomou nas mãos um narciso de ar silvestre, voltou para si a sua face dourada e inclinou-se, acariciando-o com a boca, as faces e a fronte. Paul permaneceu de pé, ligeiramente afastado, de mãos nos bolsos, observando-a. Uma após outra, ela virou para ele as faces das flores amarelas, recém-abertas, em atitude suplicante, afagando-as com veemência.

– Não são magníficos? – murmurou.

– Magníficos?... Não será um pouco de mais?... São bonitos!

Ela inclinou-se novamente para as suas flores, perante esta censura à sua atitude de adoração. Ele ficou a vê-la adular e saborear as flores com beijos fervorosos.

– Porque tens de estar sempre a acariciar as coisas? – recriminou-a, irritado.

– Gosto de lhes tocar – replicou ela, magoada.

– Será que não podes gostar das coisas sem teres de te agarrar a elas como se quisesses arrancar-lhes o coração? Porque não tens um pouco mais de domínio ou reserva, ou o que quer que seja?

Ela ergueu para ele um olhar cheio de dor, continuando depois a pressionar os lábios, lentamente, contra uma flor ondulada. O seu aroma, quando o sentiu, era tão mais delicado do que Paul que quase a fez chorar.

– Com a tua adulação, retiras a alma às coisas – disse ele. – Eu nunca seria capaz de uma adulação... Em qualquer circunstância, seria sempre directo.

Paul não sabia o que dizia. Estas coisas saíam-lhe mecanicamente. Ela olhou para ele. O seu corpo parecia uma arma, firme e duro contra ela.

– Tu estás sempre a suplicar às coisas que te amem – disse ele – como se fosses uma pedinte de amor. Até as flores tu tens de acariciar...

Ritmadamente, Miriam agitava e amachucava a flor com a boca, inalando o perfume que daí em diante a faria estremecer sempre que penetrasse nas suas narinas.

– Tu não queres amar... a tua súplica eterna e anormal é seres amada. Não és positiva, és negativa. Absorves, absorves, como se necessitasses de te encher de amor por teres algures uma insuficiência.

Miriam estava aturdida com a crueldade de Paul, e não o escutava. Ele não tinha a mínima ideia do que estava a dizer. Era como se a sua alma inquieta e torturada, inflamada por uma paixão frustrada, fizesse jorrar aquelas palavras como centelhas brotando da electricidade. Ela não entendia nada do que ele dizia. Deixou-se ficar sentada, esmagada sob a sua crueldade e o seu ódio por ela. Nunca entendia as coisas num lampejo. Era assim com tudo, cismava e tornava a cismar.

Depois do chá, ele ficou a conversar com Edgar e os outros irmãos, não prestando atenção a Miriam. Ela, infinitamente infeliz com esta distância procurada, esperou por ele. Por fim, ele cedeu e veio ao seu encontro. Ela estava determinada a descobrir a origem do seu estado de espírito. Para ela, tudo aquilo não passava de um estado de espírito.

– Vamos passear um pouco pelo bosque? – sugeriu, sabendo que ele nunca recusava um pedido directo.

Desceram em direcção à coelheira. A meio do caminho passaram por uma armadilha, uma pequena cerca em forma de ferradura, feita com galhos de abeto entrelaçados, onde se exibiam, como isca, as vísceras de um coelho. Paul lançou-lhe um olhar, franzindo o sobrolho. Ela chamou-lhe a atenção.

– É terrível, não é? – perguntou.

– Não sei! Será pior que os dentes de uma doninha cravados no pescoço de um coelho? Ou uma doninha ou muitos coelhos. Uma das coisas vai ter de desaparecer!

Para Paul estava a ser difícil enfrentar a face amarga da vida. Miriam sentiu pena dele.

– Vamos para dentro – disse Paul. – Não me apetece andar cá fora.

Passaram pela árvore dos lilases, cujos rebentos das folhas cor de bronze principiavam agora a abrir. Apenas um fragmento restava do palheiro, um monumento quadrado e castanho, como um pilar de pedra. No meio, ainda lá perdurava uma pequena meda de feno da última ceifa.

– Sentemo-nos aqui por um minuto – pediu Miriam.

Ele sentou-se, contrariado, apoiando as costas ao sólido muro de feno. Diante deles, estendia-se o anfiteatro de colinas arredondadas, incandescente à luz do crepúsculo, as pequenas quintas brancas destacando-se na paisagem, os prados dourados, os bosques sombrios e contudo luminosos, as copas das árvores sobrepostas a outras copas de árvores, distintas na distância. A tarde clareara e o oriente suave tingia-se agora de um clarão magenta sob o qual a terra permanecia imóvel e pródiga.

– Não é uma beleza? – murmurou ela suavemente.

Mas ele limitou-se a franzir a testa, mal-humorado. Naquele momento, preferia que tudo fosse feio.

Subitamente, um grande cão veio ter com eles em louca correria, de boca escancarada, levantou as patas dianteiras e colocou-as nos ombros do jovem, lambendo-lhe o rosto. Paul recuou, rindo. Bill era um grande alívio para ele. Afastou o cão, mas este voltou, saltitante.

– Sai daqui – ordenou o rapaz. – Vê lá se queres apanhar.

Mas o cão não estava disposto a desistir facilmente. Então, Paul travou um pequena batalha com o animal, arremessando o pobre Bill para longe, apenas conseguindo contudo fazê-lo tropeçar e voltar à carga violentamente, excitadíssimo. Lutaram os dois, o homem rindo contrafeito, o cão todo ele disponibilidade. Miriam observava-os. Havia algo de patético no homem. Como ele desejava ardentemente amar e ser terno! O modo rude como brincava com o cão era realmente adorável. Paul levantou-se, ofegante de felicidade, os olhos castanhos rolando na cara branca, e de novo se deixou cair pesadamente. O animal adorava Paul. O rapaz lançou-lhe um olhar severo.

– Bill, já chega de brincadeira.

Mas o cão deixou-se ficar com as duas pesadas patas, que tremiam de carinho, assentes na sua coxa, mostrando uma língua ro-sada. O rapaz recuou.

– Não – disse. – Não... já chega.

E logo o cão se afastou, contente por variar de divertimento.

Paul continuou a olhar fixamente para as colinas, cuja beleza impassível invejava. Queria sair dali e ir andar de bicicleta com Edgar. No entanto, não tinha coragem de deixar Miriam.

– Porque estás triste? – perguntou ela, submissa.

– Não estou triste, porque havia de estar? – retorquiu ele. – Estou apenas normal.

Ela perguntava-se por que razão ele sempre afirmava estar normal quando se mostrava desagradável.

– Mas... afinal o que se passa? – perguntou, aliciando-o suavemente.

– Nada!

– Não! – murmurou ela.

Ele pegou num pau e começou a golpear a terra.

– É melhor que não digas nada – disse ele.

– Mas eu quero saber – respondeu ela.

Ele riu-se, ressentido.

– Tu queres sempre saber tudo.

– Não és leal para comigo – murmurou ela.

Ele feriu o solo vezes sem conta com o pau afiado, desprendendo pequenos torrões de terra, como se tomado por uma febre de irritação. Delicada e firmemente, ela pousou a mão sobre o seu pulso.

– Não faças isso! – pediu. – Deita isso fora.

Ele atirou o pau para cima das groselheiras e recostou-se. Já estava recomposto.

– Que se passa? – perguntou ela com suavidade.

Ele manteve-se imperturbável. Apenas o seu olhar vivia intensamente, repleto de tormento.

– Sabes – disse por fim, bastante a custo – sabes... era melhor rompermos a nossa ligação.

Era o que ela temia. Subitamente, tudo pareceu escurecer diante dos seus olhos.

– Porquê? – murmurou. – Que aconteceu?

– Não aconteceu nada... só que temos de ver o terreno que pisamos. Não vale a pena...

Ela esperou em silêncio, tristemente, cheia de paciência. Não adiantava ser impaciente com ele. De qualquer modo, ele dir-lhe-ia agora o que o afligia.

– Concordámos em ser amigos – prosseguiu ele, numa voz monótona e aborrecida. – Quantas vezes concordámos em ser amigos! E, no entanto, as coisas não param por aí, nem chegam a nenhum outro lado.

Paul calou-se. Miriam matutava. Que quereria ele dizer? Estava tão cansado. Havia algo que não queria admitir. Contudo, ela devia ser paciente.

– Eu só posso dar-te amizade... é tudo de que sou capaz... é uma falha na minha maneira de ser. As coisas pesam só para um lado... e eu odeio uma balança desequilibrada... vamos acabar com isto.

Havia um fervor de fúria nas suas últimas frases. O que ele queria dizer é que ela o amava mais a ele do que ele a ela. Talvez não conseguisse amá-la. Talvez ela não possuísse o que ele desejava. Esta falta de confiança em si mesma era o fundamento mais profundo da alma de Miriam. Tão profundo que ela não ousava entendê-lo, nem tão-pouco admiti-lo. Talvez lhe faltasse qualquer coisa. Como uma vergonha infinitamente subtil, esse sentimento sempre a fazia recuar. Se assim fosse, ela passaria sem ele. Nunca se permitiria desejá-lo. Limitar-se-ia a observar.

– Mas o que aconteceu? – perguntou.

– Nada... tinha tudo isto guardado dentro de mim... e só saiu agora. Ficamos sempre assim ao aproximarmo-nos da Páscoa.

Paul humilhou-se tão despojadamente que Miriam sentiu pena. Ela, pelo menos, nunca se tinha deixado cair de um modo tão deplorável. No fim de contas, era ele quem saía mais duramente humilhado.

– Que queres fazer? – perguntou ela.

– Bem... acho que não devo vir aqui tantas vezes... só isso. Porque deveria eu monopolizar-te, quando não sou... Bem vês, no que te diz respeito sou muito incompleto...

Ele estava a dizer-lhe que não a amava e, portanto, deveria dar-lhe uma oportunidade com outro homem. Que tolo e cego e vergonhosamente desajeitado ele era! Que lhe importavam a ela os outros homens! Que importância tinham! Mas ele, ah, ela amava a sua alma. Seria ele incompleto em alguma coisa? Talvez fosse.

– Mas eu não entendo – disse ela, com a voz rouca. – Ainda ontem...

A noite tornara-se desagradável e odiosa para ele à medida que a luz do crepúsculo se dissipava. E ela cedeu ao seu sofrimento.

– Eu sei – gritou ele. – Nem nunca entenderás. Nunca acreditarás que eu não posso... não sou fisicamente capaz, tal como não sou capaz de voar como uma cotovia...

– Capaz de quê? – perguntou ela, num murmúrio. Agora tinha medo.

– De te amar.

Paul odiou-a amargamente naquele momento, por fazê-la sofrer tanto. Amá-la! Miriam sabia que ele a amava. Ele pertencia-lhe realmente. Toda a conversa sobre não a amar fisicamente, corporalmente, era uma mera perversidade da parte dele, pois Paul sabia que ela o amava. Ele estava a ser casmurro como uma criança. Ele pertencia-lhe a ela. A sua alma desejava-a. Miriam suspeitou que alguém o tivesse influenciado. Através da sua rigidez, pressentia a estranheza de uma outra influência.

– Que te têm dito em casa? – perguntou.

– Não é nada disso – respondeu ele.

E, nesse momento, ela soube que era precisamente isso, e sentiu um profundo desprezo pela família dele e pela sua vulgaridade. Ignoravam as coisas que valiam realmente a pena.

Nessa noite, não conversaram muito mais. Por fim, ele deixou-a e foi passear de bicicleta com Edgar.

Paul voltara para a mãe, o elo mais forte da sua vida. Quando ele se embrenhava em pensamentos, Miriam quase deixava de existir, como se envolta num sentimento vago e irreal. E mais ninguém contava. Havia contudo um lugar no mundo que permanecia sólido e não se desvanecia na irrealidade: o lugar onde se encontrava a sua mãe. Todos podiam transformar-se em sombras, quase inexistentes para ele, mas não ela. Era como se o eixo ou pólo da sua vida, do qual ele não podia escapar, fosse a sua mãe.

E, da mesma forma, ela esperava por ele. Nele se concentrava agora toda a sua vida. Afinal, a vida que deixara para trás oferecera muito pouco a Mrs. Morel. Ela entendera que a nossa oportunidade para fazer está aqui, e fazer era importante para ela. Paul iria provar que ela tinha razão: iria transformar-se num homem a quem nada poderia derrubar, que iria alterar a face da terra de alguma forma importante. Onde quer que ele fosse, ela sentia que a sua alma ia junto. O que quer que ele fizesse, ela sentia que a sua alma permanecia junto dele, pronta como sempre a entregar-lhe as suas ferramentas. Não podia suportar quando ele estava com Miriam. William estava morto. Ela lutaria para ficar com Paul.

E ele voltou para ela. E na alma dele havia um sentimento de satisfação pelo auto-sacrifício, pois ele era-lhe fiel. Ela amava-o antes de tudo, ele amava-a antes de tudo. E, no entanto, isso não era o suficiente. A sua vida nova e jovem, tão forte e imperiosa, era solicitada por algo mais. Punha-o louco de agitação. Ela percebia isso e desejava amargamente que Miriam fosse uma mulher que pudesse arrancar dele esta nova vida e deixar-lhe a ela as raízes. Paul lutava contra a mãe quase tanto como lutava contra Miriam.

Passou-se uma semana antes que Paul voltasse a Willey Farm. Miriam sofrera muito e receava vê-lo novamente. Poderia ela suportar a ignomínia de ser abandonada por ele? Isso seria apenas superficial e temporário. Ele voltaria. Ela possuía a chave para entrar na sua alma. Mas, entretanto, ele iria torturá-la com a sua luta contra ela. Miriam temia sobretudo isso.

Porém, no domingo a seguir à Páscoa, Paul veio para o chá. Mrs. Leivers ficou contente ao vê-lo. Percebeu que algo o perturbava, que as coisas estavam difíceis para ele. E ele parecia refugiar-se nela para algum conforto. E ela era boa para ele. Fazia-lhe o grande favor de o tratar quase com reverência.

Paul encontrou os rapazes no jardim da frente.

– Estou contente por teres vindo – disse a mãe, olhando-o com os seus olhos castanhos, grandes e sinceros. – Está um dia tão soalheiro. Ia agora mesmo dar um passeio pelos campos pela primeira vez este ano.

Ele sentiu que ela apreciaria a sua companhia, e isso suavizou-o. Foram caminhando, falando de coisas simples, ele gentil e humilde. Quase chorou de gratidão por ela ser deferente para com ele. Sentia-se humilhado.

Ao fundo do campo de trigo, encontraram um ninho de tordos.

– Querem que vos mostre os ovos? – perguntou.

– Sim, por favor! – respondeu Mrs. Leivers. – Parecem um sinal tão real da Primavera e da esperança...

Paul afastou os espinhos e retirou os ovos, colocando-os na palma da mão.

– Estão quentinhos... parece que assustámos a mãe – disse ele.

– Ah, coitadinhos – disse Mrs. Leivers.

Miriam não pôde evitar tocar nos ovos e na mão dele, que, segundo ela, os protegia tão bem.

– É um calor tão estranho! – murmurou, para se aproximar dele.

– É o calor do sangue – retorquiu ele.

Ela viu-o colocar os ovos no seu lugar, com o corpo colado à cerca, o braço avançando lentamente através dos espinhos, a mão cuidadosamente fechada sobre os ovos. Estava concentrado no acto. Vendo-o assim, ela amava-o; ele parecia tão simples e auto-suficiente. E ela não conseguia alcançá-lo.

Durante o chá, Paul discutiu o sermão de Sexta-Feira Santa com Mrs. Leivers. A caminhada até à Capela era já muito longa para a senhora, e ela quase preferia ouvir o sermão através de Paul, acrescido dos seus comentários e argumentos. Os outros também escutavam. Até os rapazes, uns latagões rudes, se mostravam atentos e interessados, tirando uma lição do discurso.

– Ele pegou no capítulo que diz: «Aquele que acreditou na nossa história...» ... eu gosto desta passagem.

Os grandes olhos castanhos de Mrs. Leivers brilharam com o pensamento.

– E estragou-o todo... arruinou-o.

Subitamente, lançou um olhar a Miriam, para que ela estivesse do seu lado naquele momento.

– E ele disse...

Paul, sério e indignado, repetiu o sermão. Era em alturas como esta que Miriam o amava. Ao vê-lo assim, enchia-se de profunda satisfação. Amava-o do mesmo modo que Maria amou na Betânia. Só quando irrompia o homem nele existente, se instalava a guerra entre ambos. E qual era mais forte nele, o Discípulo ou o Homem? Ela acreditava que fosse o primeiro, e através do primeiro o retinha.

Enquanto ela levantava a mesa do chá, ele disse-lhe, num tom bastante forçado:

– Quando acabares, vamos dar uma volta.

Na cozinha, ajudou-a a limpar a louça. Ela tremia ligeiramente de apreensão. Mas sabia que naquela noite não tinha de temer o ressentimento dele.

– Levamos um livro? – perguntou Miriam, pegando no seu favorito, O Tesouro Dourado, de Palgrave. Os melhores momentos que passavam juntos aconteciam quando liam poesia.

– Esse não – respondeu ele.

O coração dela apertou-se. Permaneceu junto à prateleira dos livros, hesitante. Ele escolheu Tartarin de Tarascon. Sentaram-se novamente no monte de feno, na base da meda. Paul leu algumas páginas, mas sem sentimento. De novo o cão apareceu, correndo, para repetir a brincadeira anterior. Enterrou o focinho no peito do jovem. Paul acariciou-lhe a orelha de fugida. Depois, afastou-o.

– Vai-te embora, Bill – ordenou. – Não te quero aqui.

Bill retirou-se furtivamente, e Miriam perguntou-se, temerosa, o que estaria para vir. Algo no silêncio dele a fez paralisar de apreensão. Não eram as suas fúrias, mas as suas resoluções calmas que ela receava.

Voltando o rosto um pouco de lado, para que ela não pudesse vê-lo, Paul começou, falando lenta e penosamente:

– Achas que... se eu não viesse cá tantas vezes... podias gostar de outra pessoa... de outro homem?

Então era isso que ainda o incomodava.

– Mas eu não conheço outros homens... porque perguntas? – replicou ela, num tom surdo que deveria ter soado aos ouvidos dele como uma censura.

– Ora – disse ele abruptamente – porque eles dizem que eu não tenho o direito de vir aqui... sem que tenhamos intenção de casar...

Miriam estava indignada por alguém andar a forçar as coisas entre eles. Ficara furiosa com o próprio pai quando este, rindo, comentara com Paul que sabia por que razão ele os visitava tantas vezes.

– Quem diz isso? – perguntou ela, tentando perceber se a sua própria família tinha algo a ver com o assunto. Mas não tinha.

– A minha mãe... e os outros. Dizem que, assim, todos me consideram comprometido, e que eu também me devo considerar como tal, pois não é justo para ti. E eu tentei pensar melhor... e acho que não te amo como um homem deve amar a sua mulher. Que me dizes tu a isto?

Miriam baixou a cabeça, irritada. Irritava-a ter de travar aquela discussão. As pessoas deviam deixá-los em paz.

– Não sei – murmurou ela.

– Achas que nos amamos o suficiente para nos casarmos? – perguntou ele, definitivamente. Ela estremeceu.

– Não – respondeu, sinceramente. – Não acho... somos demasiado novos.

– Eu pensei – prosseguiu ele, infeliz – que talvez tu, com a intensidade que pões nas coisas, me tivesses dado mais... do que alguma vez eu te poderia compensar. E, mesmo assim, se achares que é melhor, ficamos noivos.

Naquele momento, Miriam queria chorar. Estava furiosa também. Ele era sempre tão infantil que as pessoas faziam dele o que queriam.

– Não, não acho – disse firmemente.

Paul reflectiu um minuto.

– Sabes – retomou –, para mim... eu acho que uma pessoa nunca poderá monopolizar-me, ser tudo para mim. Eu acho que isso nunca vai acontecer.

Miriam não tinha considerado este ponto.

– Não – murmurou. Após uma pausa, ela ergueu para ele os seus olhos escuros, faiscantes.

– Isto tem a ver com a tua mãe – disse ela. – Eu sei que ela nunca gostou de mim.

– Não, não é isso – apressou-se ele a dizer. – Desta vez foi para teu bem que ela falou, e só disse que, se eu continuasse, devia considerar-me comprometido. – Seguiu-se um silêncio. – E, se eu te pedir para continuares a visitar-me sempre, não dizes que não?

Miriam não respondeu. Estava agora muito zangada.

– Bem, então que fazemos? – perguntou secamente. – Assim sendo, é melhor desistir das aulas de francês. Agora que estava a começar a dar-me bem... Mas acho que posso continuar sozinha.

– Não vejo necessidade disso – considerou ele. – É claro que posso dar-te uma aula de francês.

– Bom, e há ainda as noites de domingo. Não vou deixar de ir à capela, porque gosto de ir e porque a isso se resume toda a minha vida social. Mas não precisas de ir comigo. Posso ir sozinha.

– Está bem – respondeu ele, algo surpreendido. – Mas, se eu pedir ao Edgar, ele pode vir connosco, e assim as pessoas já não podem dizer nada.

Fez-se silêncio. Afinal, ela não perderia muito. Apesar de todo o falatório em casa dele, a diferença não seria muita. Ela só desejava que eles não interferissem.

– E tu não vais pensar de mais no assunto e deixar que te perturbe, pois não? – perguntou ele.

– Oh, claro que não – retorquiu Miriam, sem se dignar olhar para ele.

Paul ficou em silêncio. Ela achava-o instável, sem um objectivo fixo, nenhuma âncora de certeza a segurá-lo.

– Porque – continuou ele – um homem pega na bicicleta... e vai para o trabalho... e faz toda a espécie de coisas. Mas uma mulher fica a cismar.

– Não, eu não vou ficar a cismar – assegurou-lhe Miriam, e estava a ser sincera.

O tempo arrefecera bastante. Juntos, encaminharam-se para casa.

– Que pálido está o Paul! – exclamou Mrs. Leivers. – Miriam, não devias tê-lo deixado sentar-se lá fora. Achas que te constipaste, Paul?

– Oh, não! – E riu-se.

Mas, na verdade, sentia-se fatigado. O conflito interior esgotara-o. Agora, Miriam sentia pena dele. Mas, muito cedo, ainda antes das nove horas, ele levantou-se para se retirar.

– Não te vais já embora, pois não? – perguntou Mrs. Leivers, ansiosa.

– Vou, sim – retorquiu ele. – Disse em casa que chegava cedo.

Paul estava muito embaraçado.

– Mas ainda é cedo – disse Mr. Leivers.

Miriam sentou-se na cadeira de baloiço e não falou. Ele hesitou, esperando que ela se erguesse para o acompanhar ao celeiro, como habitualmente, quando fosse buscar a bicicleta. Ela, porém, deixou-se ficar onde estava. Paul sentia-se perdido.

– Bem, então... boa noite a todos! – balbuciou.

Miriam deu-lhe as boas-noites, tal como os restantes. Mas, quando ia a passar diante da janela, ele olhou para dentro. Ela viu-o pálido, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas de um modo que se tornara constante nele, e o olhar ensombrado pelo sofrimento.

Ergueu-se então e foi até à porta dizer-lhe adeus, quando ele passou pelo portão. Paul pedalou lentamente sob a rama dos pinheiros, sentindo-se um cobarde e um patife miserável. A bicicleta rolava pelas colinas abaixo, à deriva. Chegou a pensar que seria um alívio partir o pescoço.

Dois dias depois, enviou-lhe um livro e um bilhete, incitando-a a ler e a manter-se ocupada.

E, contudo, nessa altura ele estava diferente. Tinha avaliado bem a situação. Sabia que não queria casar-se com ela. As razões pelas quais a amava não eram razões para se casar com ela; isso es-tava decidido. E a mãe repetira-lhe vezes sem conta que a sua actual situação não podia durar para sempre, e era bastante injusta para a rapariga. Por isso, Paul tentava agora manter a maior distância possível entre os dois. Era duro e frio para ela. Miriam ressentia-se disso amargamente, culpava a mãe dele, e esperava. Sabia que Paul não podia deixá-la sozinha. Mas ele parecia querer por força erguer muros entre eles, ele e ela, atrás dos quais pudesse refugiar-se, longe dela. Miriam sofria terrivelmente.

Durante esse tempo, Paul dedicou toda a sua amizade a Edgar. Gostava tanto da família, gostava tanto da quinta, que ela era para ele o lugar mais querido ao cimo da terra. Nem mesmo o seu lar era tão agradável. A sua mãe sim. Mas teria sido igualmente feliz com aquela mãe em qualquer outro lugar. Mas Paul amava Willey Farm apaixonadamente. Adorava a cozinha pequena e aconchegada, repisada pelas botas dos homens, e onde o cão dormia com um olho aberto e outro fechado, com medo de ser pisado; onde, à noite, a lamparina balouçava sobre a mesa e tudo ficava muito silencioso. Amava a saleta de Miriam, comprida e de tecto baixo, com a sua atmosfera romântica, as suas flores, os seus livros, o piano de pau-rosa. Amava os jardins e os edifícios que, nos limites nus dos campos, se erguiam com os seus telhados escarlate, arrastando-se em direcção ao bosque como se em busca de aconchego, onde a região selvagem cavava um vale profundo, para logo subir as encostas por cultivar do lado de lá. O simples facto de estar ali era um prazer e uma alegria para ele. Amava Mrs. Leivers, com a sua simplicidade e singular cinismo; amava Mr. Leivers, tão caloroso e jovial, e tão afável; amava Edgar, cujo olhar se iluminava quando ele chegava, e os outros rapazes e as crianças, e ainda Bill, e até a porca chamada Circe e o galo indiano de combate chamado Tippoo. Amava tudo isto além de Miriam. Não podia desistir de tudo.

Por isso, continuava a aparecer frequentemente, mas andava geralmente com Edgar. Toda a família, incluindo o pai, apenas se reunia à noite para os jogos e charadas. E, mais tarde, Miriam reunia-os a todos e liam Macbeth em edição de bolso, interpretando os vários papéis. Era muito divertido. Miriam ficava contente, Mrs. Leivers ficava contente e Mr. Leivers divertia-se. Depois, todos juntos, aprendiam a solfejar canções, cantando em círculo em redor da lareira. Mas agora, Paul raramente ficava a sós com Miriam. E ela esperava. Quando ela, Edgar e Paul regressavam a casa vindos da Capela ou do grémio literário de Bestwood, ela sabia que a conversa dele, tão apaixonada e tão pouco ortodoxa para aqueles dias, lhe era dirigida. Contudo, invejava Edgar e as suas corridas de bicicleta com Paul, as suas noites de sexta-feira, os seus dias de labuta conjunta nos campos. Para ela, as noites de sexta-feira e as aulas de francês tinham acabado. Estava quase sempre sozinha, vagueando e meditando pelo bosque, lendo, estudando, sonhando, esperando. E ele escrevia-lhe com frequência.

Num domingo à noite, conseguiram reatar a velha e rara harmonia. Edgar ficara com Mrs. Morel para a comunhão. Queria saber como era. Por isso, Paul e Miriam voltaram sozinhos para casa dele. Ele encontrava-se novamente mais ou menos sob o seu feitiço. Como era hábito, discutiram o sermão. Ele caminhava agora a passos largos para o agnosticismo, mas era um agnosticismo tão religioso que Miriam não sofria muito. Estavam na fase da Vie de Jésus de Renan. Miriam era a eira onde Paul debulhava todas as suas crenças. Enquanto repisava as suas ideias na alma dela, a verdade brotava dele. Só ela era a sua eira. Só ela o ajudava no sentido da plena realização. Quase impassível, ela submetia-se aos seus argumentos e interpretações. E, por causa dela, ele gradualmente compreendia, de algum modo, onde estava errado. E o que ele compreendia, ela compreendia. Miriam sentia que Paul não podia viver sem ela.

Chegaram à casa silenciosa. Ele tirou a chave da janela da cozinha e entraram. Durante todo o tempo, ele não interrompeu a discussão. Acendeu o gás, ateou o fogo e trouxe-lhe alguns biscoitos da despensa. Ela sentou-se no sofá, em silêncio, com um prato sobre os joelhos. Trazia um grande chapéu branco enfeitado com flores cor-de-rosa. Era um chapéu barato, mas ele gostava. Sob o chapéu, o rosto dela estava estático e pensativo, castanho-dourado e corado. Como sempre, as orelhas estavam ocultas sob os seus caracóis curtos. Ela observava-o.

Sempre gostara dele aos domingos. Nesses dias, ele usava um fato escuro que evidenciava todos os movimentos do seu corpo. Havia algo de limpo e fresco no seu ar. Paul prosseguiu o seu raciocínio dirigido a ela. De repente, pegou na Bíblia. Miriam gostou do modo como ele a alcançou, tão determinado, directo ao objectivo. Voltou as páginas rapidamente e leu-lhe um capítulo de S. João. Enquanto lia, absorto, sentado no cadeirão e apenas a sua voz pensava, ela sentia que ele estava a usá-la inconscientemente, como um homem usa as suas ferramentas em qualquer trabalho que o absorve. Adorava essa sensação. E a ânsia na sua voz era como a tentativa de alcançar algo, e era como se ela fosse o modo de o conseguir. Miriam recostou-se no sofá, longe dele, sentindo-se, todavia, o próprio instrumento que a mão dele segurava, o que lhe dava um indescritível prazer.

Pouco a pouco, a voz tornou-se hesitante e Paul ficou constrangido. E quando chegou ao versículo: «Uma mulher, quando está em trabalho de parto, sofre porque a sua hora chegou», omitiu-o. Miriam sentira o seu constrangimento a aumentar. Estremeceu quando as bem conhecidas palavras não foram proferidas. Paul continuou a ler, mas ela já não o escutava. Um sentimento de pesar e vergonha fê-la vergar a cabeça. Seis meses atrás, ele teria lido tudo naturalmente. Agora, abria-se uma brecha na relação entre os dois. Agora, ela sentia haver algo de realmente hostil entre eles, algo de que ambos se envergonhavam.

Miriam comeu o bolo mecanicamente. Ele tentou prosseguir, desenvolvendo o seu argumento, mas não conseguiu recuperar o tom certo. Edgar chegou pouco depois. Mrs. Morel tinha ido a casa de uma amiga. Os três saíram rumo a Willey Farm.

Miriam matutava sobre o afastamento dele em relação a ela. Havia algo mais que ele desejava. Paul não podia estar satisfeito, não podia dar-lhe paz. Agora haveria sempre entre eles lugar para o conflito. Ela queria pô-lo à prova. Acreditava que a maior necessidade na vida dele era ela. Se conseguisse prová-lo, tanto a si mesma como a ele, tudo o resto poderia desaparecer, e ela poderia simplesmente confiar no futuro.

Assim, em Maio, pediu-lhe para vir a Willey Farm visitar Mrs. Dawes. Havia algo que Paul procurava ardentemente. Sempre que se falava de Clara Dawes, Miriam via-o agitar-se e ficar ligeiramente irritado. Afirmou que não simpatizava com ela. Contudo, estava ansioso por saber coisas a seu respeito. Bom, ele tinha de ser posto à prova. Ela acreditava que havia nele ânsias de coisas superiores, e inferiores, e que o desejo pelas superiores venceria. De qualquer forma, deveria tentar. Miriam, porém, esqueceu-se de que os conceitos de «superior» e «inferior» eram arbitrários.

Paul estava bastante entusiasmado com a ideia de se encontrar com Clara em Willey Farm. Mrs. Dawes veio passar o dia. A sua pesada cabeleira castanho-escura estava enrolada ao alto da cabeça. Envergava uma blusa branca e uma saia azul-marinho e, de algum modo, a sua presença parecia tornar as coisas vulgares e insignificantes. Quando se encontrava por perto, a cozinha parecia ao mesmo tempo pequena e imperfeita. A bela saleta de Miriam, com a sua luz crepuscular, parecia estúpida e sem graça. Toda a família Leiver se eclipsava como velas. Eles achavam-na um pouco difícil de suportar. No entanto, ela era perfeitamente amistosa, mas indiferente e um pouco dura.

Paul só chegou da parte da tarde. Mas veio cedo. Enquanto descia da bicicleta, Miriam viu-o olhar em volta da casa, ansioso. Ficaria desapontado se a tão esperada visita não tivesse vindo. Miriam saiu ao seu encontro, baixando a cabeça devido à intensidade do sol. As abecedárias brotavam agora, encarnadas, da verde sombra fria das suas folhas. A rapariga esperou-o, de cabelo escuro, contente por vê-lo.

– A Clara não veio? – perguntou Paul.

– Veio – replicou ela, no seu timbre musical. – Está a ler.

Ele empurrou a bicicleta até ao celeiro. Pusera uma bonita gravata, na qual tinha muito orgulho, e meias a condizer.

– Chegou esta manhã? – perguntou.

– Sim – respondeu Miriam enquanto caminhava a seu lado. – Lembraste-te de trazer aquela carta do homem do Liberty?

– Oh, que chatice, não! – disse ele. – Mas podes atazanar-me até que a traga.

– Não gosto de te atazanar.

– Mas não te acanhes. E ela está mais simpática? – continuou.

– Sabes que eu sempre a achei bastante simpática.

Paul ficou em silêncio. Era evidente que a sua ânsia em chegar cedo naquele dia se devia à recém-chegada. Miriam já começara a sofrer. Encaminharam-se para casa lado a lado. Paul retirou as molas das calças, mas era muito preguiçoso para escovar o pó dos sapatos, apesar de ter requintado nas meias e na gravata.

Clara estava sentada na saleta fresca, a ler. Paul reparou na sua nuca branca e no delicado cabelo repuxado. Ela ergueu-se e olhou para ele com indiferença. Para o cumprimentar, levantou o braço de um modo que parecia, ao mesmo tempo, mantê-lo à distância e, no entanto, acenar-lhe com alguma coisa. Ele notou a forma como os seus seios inchavam dentro da blusa, e como o ombro se curvava deliciosamente sob a fina musselina no cimo do seu braço.

– Escolheste um lindo dia – disse ele.

– É... aconteceu – respondeu ela.

– É verdade – continuou ele. – Ainda bem.

Ela sentou-se, não lhe agradecendo a amabilidade.

– Que fizeste toda a manhã? – perguntou Paul, dirigindo-se a Miriam.

– Bem – disse Miriam, tossindo roucamente –, a Clara só chegou com o pai... e, por isso, não está cá há muito tempo.

Clara sentara-se encostada à mesa, mantendo-se distante. Ele notou que as suas mãos eram grandes, mas bem cuidadas. A pele parecia quase grosseira, opaca e branca, com finos pêlos dourados. Ela não se importava que ele observasse as suas mãos. Tinha intenção de o desprezar. O seu braço opulento estava negligentemente pousado sobre a mesa. A sua boca fechava-se como se estivesse ofendida, e o seu rosto mantinha-se ligeiramente desviado.

– Estiveste presente na reunião da Margaret Bonford na outra noite – disse-lhe ele. Miriam desconhecia este Paul cortês. Clara olhou-o de relance.

– Estive, sim – respondeu.

– Ora – perguntou Miriam – como é que sabes?

– Eu entrei por alguns minutos até o comboio chegar – explicou ele.

Clara desviou novamente o rosto, com uma expressão desdenhosa.

– Acho-a uma mulherzinha adorável – comentou Paul.

– A Margaret Bonford! – exclamou Clara. – Ela é muito mais esperta que a maioria dos homens.

– Bem, eu não disse que não era – disse ele, depreciativamente. – Ela é adorável por tudo isso.

– E é claro que é só isso que tem importância – disse Clara, com uma expressão fulminante.

Ele coçou a cabeça, meio perplexo, meio aborrecido.

– Acho que importa mais do que a inteligência dela – retorquiu Paul – que, afinal, nunca a levaria ao Céu.

– Não é o Céu que ela pretende... é o seu justo quinhão na terra – retorquiu Clara. Falava como se Paul fosse responsável por qualquer privação de que Miss Bonford sofresse.

– Bem – disse ele –, eu achei-a calorosa e extraordinariamente agradável... mas demasiado frágil. Só desejei que ela estivesse confortavelmente em paz...

– ... remendando as peúgas do marido – interrompeu Clara, sarcasticamente.

– Estou certo de que não se importaria de remendar até mesmo as minhas peúgas – afirmou ele. – E tenho a certeza de que o faria até muito bem. Tal como eu não me importaria de lhe engraxar as botas, se ela o desejasse.

Mas Clara recusou-se a dar troco a este tipo de comentário. Paul conversou com Miriam durante algum tempo. A outra mulher permaneceu afastada.

– Bem – disse ele –, acho que vou procurar o Edgar. Ele anda no campo?

– Acho que foi buscar um carregamento de carvão – respondeu Miriam. – Deve vir directamente para casa.

– Sendo assim – disse Paul –, vou ao encontro dele.

Miriam não ousou propor nenhum programa que envolvesse os três. Ele levantou-se e deixou-as.

No caminho de cima, onde a giesta despontava, Paul viu Edgar caminhando preguiçosamente ao lado da égua, que acenava a testa estrelada de branco enquanto arrastava o ruidoso carregamento de carvão. O rosto do jovem lavrador iluminou-se quando avistou o amigo. As suas roupas eram velhas e já bastante coçadas, mas caminhava com um orgulho considerável.

– Viva! – cumprimentou ele, vendo Paul sem chapéu. – Onde vais?

– Vim ter contigo. Não suporto a «Nunca jamais».

Os dentes de Edgar brilharam numa gargalhada divertida.

– Quem é a «Nunca jamais»? – perguntou.

– Aquela senhora – Mrs. Dawes – devia chamar-se Mrs. Corvo, aquele que disse «Nunca jamais».

Edgar riu com satisfação.

– Não gostas dela? – perguntou.

– Não morro de amores – respondeu Paul. – Porquê, tu gostas?

– Não! – A resposta veio com profunda convicção. – Não! – Edgar franziu os lábios. – Não posso dizer que seja muito o meu estilo. – Meditou um pouco. Depois: – Mas porque lhe chamas «Nunca jamais»? – perguntou.

– Bem – explicou Paul. – Se ela olha para um homem, diz arrogantemente «Nunca jamais», se se olha no espelho, diz desdenhosamente «Nunca jamais», e se pensa duas vezes, di-lo com nojo, e se olha em frente, di-lo cinicamente...

Edgar considerou o discurso de Paul, não conseguindo entendê-lo muito bem, e disse, rindo:

– Achas que ela odeia os homens?

– Ela acha que sim – retorquiu Paul.

– Mas tu não achas que assim seja?

– Não – respondeu Paul.

– Então ela não foi simpática contigo?

– Consegues imaginá-la a ser simpática com alguém? – perguntou o jovem.

Edgar riu-se. Juntos, descarregaram o carvão no pátio. Paul estava bastante contrafeito pois sabia que Clara o podia ver, se olhasse pela janela. Mas não olhou.

Nas tardes de sábado, os cavalos eram escovados e tratados. Paul e Edgar trabalharam juntos, espirrando com o pó proveniente do pêlo de Jimmy e Flower.

– Sabes alguma canção nova para me ensinar? – perguntou Edgar.

Ele continuava a trabalhar sem parar. Quando se baixava, deixava a descoberto a parte posterior do pescoço, encarniçada do sol, e os dedos que seguravam a escova eram taludos. Paul observava-o de vez em quando.

– Mary Morrison? – sugeriu o mais novo.

Edgar concordou. Era dono de uma bela voz de tenor e adorava aprender todas as canções que o amigo lhe ensinava para poder cantar enquanto conduzia a carroça. Paul possuía uma voz de barítono bastante sofrível, mas tinha bom ouvido. No entanto, cantou baixinho, com medo de Clara. Edgar repetiu o verso na sua voz límpida de tenor. Por vezes, ambos interrompiam a cantoria para espirrar e, primeiro um e depois o outro, insultarem o cavalo.

Miriam estava impaciente com os homens. Era preciso tão pouco para os divertir – até Paul. Achava pouco natural nele que pudesse ficar tão absorvido numa trivialidade.

Era hora do chá quando acabaram.

– Que canção era aquela? – perguntou Miriam.

Edgar informou-a. A conversa virou para o canto.

– Passámos momentos tão agradáveis – disse Miriam a Clara.

Mrs. Dawes tomou o seu chá devagar, com dignidade. Sempre que os homens estavam presentes, ela mostrava-se distante.

– Gostas de ouvir cantar? – perguntou-lhe Miriam.

– Se a voz for boa – disse ela.

Paul corou, naturalmente.

– Queres tu dizer, se a voz for de excepção e educada? – disse ele.

– Acho que uma voz precisa de ser educada para cantar alguma coisa que se oiça – disse Clara.

– Já agora, também podes dizer que as pessoas deviam educar a voz antes de falarem – replicou ele. – Francamente, a maior parte das pessoas canta para seu próprio prazer.

– E, quem sabe, para desprazer dos outros.

– Nesse caso, os outros que tapem os ouvidos – retorquiu Paul.

Os rapazes desataram a rir. Depois, fez-se silêncio. Ele corou violentamente e tomou o chá calado.

A conversa voltou à questão de se o salário das mulheres deveria ser igual ao dos homens. Mrs. Leivers sustentava que os homens tinham famílias a manter; Clara afirmava que trabalho igual teria de significar salário igual, para homens ou mulheres. Mr. Leivers estava inclinado a concordar com ela. O que quer que Mrs. Dawes tivesse dito, Paul teria tomado uma posição contrária à dela. Como tal, argumentou que uma mulher era apenas um acessório no mercado de trabalho e que, na maioria dos casos, não passava de uma coisa transitória, sustentando-se apenas por um ou dois anos. Clara avançou o número de mulheres que sustentavam pai, mãe, irmãs, etc.

– E quase todos os homens do mundo, acima dos trinta anos, sustentam mulher e filhos – e, regra geral, as ditas mulheres não são assalariadas – retorquiu ele.

– Eu penso, meu amigo – disse Clara muito friamente –, que já antes encontrei o teu tipo de pessoa: o jovem que pensa que sabe tudo.

– E tu és do tipo da jovem que pensa que eu não sei nada – volveu ele.

– Oh, sabes sim... sabes como te fazeres ouvir – disse ela.

Paul estava furioso. De repente, rebentou numa gargalhada.

– Isto parece mais uma reunião de sufragistas contigo no estrado a discursar – disse ele.

Clara corou até à raiz dos cabelos.

– Porque terei eu de responder pelos «Homens», quando afinal sou apenas um deles... – continuou Paul.

– Como se não fosse já suficiente – gracejou Edgar.

– E assim – retomou Paul – sou responsabilizado por todos os pecados da história de Inglaterra, desde a Rainha Boadisca até à Canção da Camisa. Não é justo. Gostava que o Homem tivesse o direito de existir na sociedade moderna... num qualquer canto onde pudesse repousar a cabeça.

– Bem – gracejou Mrs. Leivers –, no final de contas, o lugar do homem continuará a ser o mesmo enquanto formos feitos como somos.

Mas este gracejo foi demasiado subtil para todos, à excepção de Clara, que estava indignadíssima.

Após o chá, quando todos os homens, à excepção de Paul, se retiraram, Mrs. Leivers perguntou a Clara:

– E achas a vida mais feliz agora?

– Infinitamente.

– Então estás satisfeita?

– Desde que possa ser livre e independente.

– E não sentes falta de nada na tua vida? – quis saber Mrs. Leivers, delicadamente.

– Ultrapassei isso tudo.

Paul sentiu-se desconfortável perante este discurso, e levantou-se:

– Vais acabar por descobrir que tropeças constantemente nas coisas que deixaste para trás – disse ele. Depois saiu em direcção aos estábulos. Achava que tinha sido espirituoso e o seu orgulho masculino estava radiante. Pôs-se a assobiar enquanto descia o carreiro de ladrilhos.

Miriam veio procurá-lo pouco depois para saber se gostaria de as acompanhar, a Clara e a ela, num passeio. Partiram em direcção à quinta de Strelley Mill. Enquanto caminhavam ao longo da ribeira, pela margem do Willey Water, olhando através do arvoredo para a orla do bosque, onde pequeninas flores cor-de-rosa brilhavam sob uns poucos raios de sol, avistaram, para lá dos troncos das árvores e das ralas aveleiras, um homem conduzindo um grande cavalo baio pelos barrancos. O animal, enorme e cor de fogo, parecia dançar romanticamente através do verde-escuro das aveleiras até onde o ar era sombrio como o passado, por entre as campainhas emurchecidas que podiam ter florido para Deirdre ou Isolda.

Os três estacaram, encantados.

– Que prazer ser cavaleiro – disse ele – e ter aqui um pavilhão.

– E ter-nos a nós fechadas em segurança? – retorquiu Clara.

– Sim – respondeu ele –, entoando melodias com as vossas amas, entregues aos vossos bordados. Eu transportaria o vosso estandarte branco, verde e púrpura, e teria gravado no brasão do meu escudo a sigla das sufragistas, por baixo de uma mulher enfurecida...

– Não tenho qualquer dúvida – disse Clara – que muito mais depressa lutarias por uma mulher do que a deixarias lutar por si mesma.

– E lutaria mesmo! Quando a mulher luta por si mesma parece um cão diante de um espelho, enraivecido pela sua própria sombra.

– E tu és o espelho? – perguntou ela, com um franzir de lábios.

– Ou a sombra – replicou ele.

– Temo – disse ela – que sejas perigosamente inteligente.

– Bem, deixo-te a ti a tarefa de seres boazinha – retorquiu ele, rindo. – Sê boazinha, gentil donzela, e deixai-me ser inteligente.

Mas Clara cansou-se da irreverência de Paul. Subitamente, ao olhar para ela, ele viu que a expressão de superioridade que emanava do seu rosto era infelicidade e não desprezo. O coração dele enterneceu-se por todos. Voltou-se para Miriam, a quem até então negligenciara, e foi gentil com ela.

Ao aproximarem-se da orla do bosque, encontraram Limb, um homem trigueiro e franzino, de quarenta anos, rendeiro de Strelley Mill, que ele dirigia como uma quinta dedicada à pecuária. Segurava as rédeas do poderoso garanhão displicentemente, como se estivesse cansado. Os três recuaram para o deixarem passar por cima das pedras que atravessavam o primeiro regato. Paul admirou-se pelo facto de um animal tão grande caminhar sobre pedras tão escorregadias com inesgotável vigor. Limb estacou diante deles.

– Diga ao seu pai, Miss Leivers – disse ele, numa voz sibilante, pouco vulgar –, que, há três dias, as suas crias novas partiram aquela vedação do fundo e fugiram.

– Qual? – perguntou Miriam, trémula.

O grande cavalo resfolegava pesadamente, agitando os flancos encarniçados e olhando-os desconfiado, com os seus olhos grandes, maravilhosos, mantendo a cabeça baixa e a crina pendente.

– Venham comigo – respondeu Limb – qu’eu amostro-lhes.

O homem e o garanhão seguiram à frente. O cavalo dançava de lado, agitando o topete branco e parecendo assustado, como se sentisse que estava no meio do regato.

– Nada de bailaricos – disse o homem ao animal, afectuosamente.

O cavalo galgou a margem em pequenos saltos e chapinhou delicadamente entrando no segundo regato. Clara, caminhando numa espécie de abandono amuado, olhava meio fascinada, meio desdenhosa. Limb parou e apontou para uma vedação sob uns salgueiros.

– Ali, tá a ver por onde eles passaram? – disse ele. – Os meus homens trouxeram-nos de volta três vezes.

– Sim – balbuciou Miriam, corando como se a culpa fosse sua.

– Querem entrar? – convidou o homem.

– Não obrigado... mas gostaríamos de ir até ao lago.

– Se quiserem – disse ele.

O cavalo relinchou de satisfação por se ver tão próximo de casa.

– Está todo contente por estar de volta – comentou Clara, que estava interessada na criatura.

– Pois está... Hoje teve uma jornada muito cheia.

Atravessaram o portão e viram aproximar-se deles, vinda da casa grande da quinta, uma mulher morena e de baixa estatura, aparentando uma natureza emotiva e cerca de trinta e cinco anos. Tinha o cabelo já um pouco tingido de grisalho e os olhos pareciam selvagens. Avançava de mãos atrás das costas. O seu irmão continuou em frente. Ao vê-la, o grande garanhão relinchou de novo. Ela aproximou-se, excitada.

– Já estás em casa outra vez, meu rapaz! – disse, ternamente, dirigindo-se ao cavalo, não ao homem. O grande animal girou em torno dela, baixando a cabeça. A mulher meteu-lhe na boca a maçã enrugada e amarela que escondera atrás das costas e depois beijou-o perto dos olhos. O cavalo resfolegou de prazer. Ela segurou-lhe a cabeça entre os braços, e apertou-a contra o peito.

– É esplêndido! – disse Miriam.

Miss Limb ergueu os olhos. Eram escuros e dirigiram-se directamente a Paul.

– Oh, boa tarde, Miss Leivers – cumprimentou ela. – Há anos que não a vemos cá por baixo.

Miriam apresentou-lhe os amigos.

– O seu cavalo é um óptimo companheiro! – disse Clara.

– Pois é! – E beijou-o novamente. – Tão dedicado como um homem!

– Mais dedicado que a maioria dos homens, penso eu – retorquiu Clara.

– É um bom menino! – disse a mulher, abraçando de novo o cavalo.

Clara, fascinada pelo grande animal, aproximou-se para lhe afagar o pescoço.

– Ele é muito meigo – disse Miss Limb. – Não acha que todas as criaturas grandes o são?

– É uma beleza! – respondeu Clara.

Queria olhá-lo nos olhos. Queria que ele olhasse para ela.

– É uma pena que não possa falar – disse.

– Oh, mas ele pode... diz tudo – retorquiu a outra mulher.

Depois, o irmão foi-se embora com o cavalo.

– Então, não vão entrar? Faça o favor de entrar, Mr... desculpe, não percebi o seu nome...

– Morel! – disse Miriam. – Não, não vamos entrar, mas gostaríamos de passar pela represa.

– É claro, estejam à vontade. O senhor pesca, Mr. Morel?

– Não – respondeu Paul.

– Porque, se pesca, pode vir pescar quando quiser – ofereceu Miss Limb. – Raramente vemos alguém durante a semana. Até lhe agradecia.

– Que peixes há no lago? – perguntou Paul.

Passaram pelo jardim da frente da casa, sobre o açude, e subiram a margem íngreme até ao lago, que repousava na sombra, com as suas duas ilhotas de madeira. Paul caminhava ao lado de Miss Limb.

– Não me importava de vir nadar para aqui – disse ele.

– Então, venha – convidou ela. – Venha quando quiser. O meu irmão ficará muito contente por conversar consigo. Ele é assim calado porque não tem com quem falar. Venha nadar quando quiser.

Clara aproximou-se.

– Tem uma boa profundidade – comentou. – E é tão límpido.

– É verdade – disse Miss Limb.

– Sabes nadar? – perguntou Paul. – Miss Limb estava agora mesmo a dizer que podíamos vir quando quiséssemos.

– É claro que há os criados da lavoura – disse Miss Limb.

Conversaram durante alguns minutos e depois continuaram, colina acima, deixando na margem a solitária senhora de olhar esgazeado.

A vertente da colina estava amadurecida pelo sol. Era selvagem e coberta de tufos de urze, abandonada aos coelhos. Os três caminhavam em silêncio. Paul disse então:

– Ela faz-me sentir desconfortável.

– Referes-te a Miss Limb? – perguntou Miriam. – É verdade!

– Qual será o problema dela? Estará a ficar tonta por viver demasiado solitária?

– Parece que sim – concordou Miriam. – Isto não é vida para ela. Acho uma crueldade enterrá-la aqui. Eu devia vir visitá-la mais vezes. Mas... ela perturba-me.

– Faz-me sentir pena dela... é verdade, e aborrece-me – disse ele.

– Eu acho – disse Clara subitamente – que o que ela quer é um homem.

Os outros dois ficaram mudos durante alguns instantes.

– Mas é a solidão que a deixa assim amalucada – disse Paul.

Clara não respondeu, prosseguindo a caminhada colina acima. Caminhava cabisbaixa, com as pernas oscilando à medida que pisava por entre os cardos secos e os tufos de erva, e os braços pendendo soltos. Em vez de andar, o seu belo corpo parecia vaguear às cegas pela encosta acima. Uma onda de calor invadiu Paul. Estava curioso acerca dela. Talvez a vida tivesse sido cruel com Clara. Esqueceu Miriam, que caminhava a seu lado, conversando consigo. Ela olhou para ele ao ver que ele não lhe respondia. O olhar dele estava fixo em Clara.

– Ainda achas que ela é uma antipática? – perguntou Miriam.

Ele nem reparou que a pergunta era despropositada. É que também lhe andava a bailar no pensamento.

– Passa-se algo com ela – respondeu.

– Sim – concordou Miriam.

No cimo da colina encontraram uma tapada bravia, escondida dos olhares; dois dos seus lados eram delimitados pelo bosque, os outros dois por sebes altas de espinheiros e sabugueiros. Por entre estes arbustos densos, viam-se aberturas por onde o gado poderia ter passado, se ali houvesse ainda gado. Naquele sítio a relva era macia e aveludada, fofa e esburacada pelos coelhos. O campo propriamente dito nunca fora cultivado e estava inundado de primaveras grandes e altas que nunca haviam sido cortadas. As flores brotavam fortes em ramalhetes por todo o lado, erguendo-se acima dos grosseiros tufos de erva. Parecia uma angra repleta de altos mastros de navios.

– Ah! – exclamou Miriam, voltando para Paul os olhos escuros dilatados. Ele sorriu. Juntos, gozaram a visão do campo de flores. Clara, um pouco afastada, olhava as primaveras, desconsoladamente. Paul e Miriam ficaram juntos, conversando em voz baixa. Ele ajoelhou-se, colhendo rapidamente os melhores botões, movimentando-se incessantemente de ramalhete em ramalhete, falando sempre num tom suave. Miriam colhia as flores ternamente, detendo-se diante de cada uma delas. Ele parecia-lhe sempre demasiado rápido, quase científico. No entanto, os ramos dele tinham uma beleza natural, mais do que os dela. Ele amava-os, mas como se fossem seus e tivesse direito a eles. Ela tinha uma maior reverência para com as flores: tinham algo que ela não possuía.

As flores eram muito frescas e doces. Ele queria bebê-las. Enquanto as colhia, comeu até uns pequenos jasmins amarelos. Clara continuava a vaguear desconsoladamente. Dirigindo-se a ela, Paul perguntou:

– Porque não colhes algumas?

– Não acho bem. Elas parecem melhor a crescer no campo.

– Mas gostarias de algumas?

– Elas querem ser deixadas em paz.

– Não acho que queiram nada disso.

– Não quero ter cadáveres de flores à minha volta – disse ela.

– Essa é uma ideia pomposa e artificial – replicou ele. – Elas não morrem mais depressa na água do que nas próprias raízes. E, além disso, ficam bem numa jarra, parecem felizes. E só podemos chamar cadáver a uma coisa quando ela tem a aparência de cadáver.

– Mesmo sendo ou não cadáver? – argumentou ela.

– Para mim não o são. Uma flor morta não é o cadáver de uma flor.

Desta vez, Clara ignorou-o.

– Mesmo assim... que direito tens tu de as arrancar? – perguntou ela.

– Gosto delas e quero-as... e há muitas mais.

– E achas isso suficiente?

– Sim, porque não? Estou certo de que deixariam um agradável perfume no teu quarto em Nottingham.

– E eu teria o prazer de as ver morrer.

– Mas então... não te interessa se elas morrem.

Dito isto, deixou-a, pisando os maciços de flores emaranhadas, que cobriam espessamente o campo, como pálidas e luminosas formações de espuma. Miriam aproximara-se. Clara estava ajoelhada, aspirando o aroma das primaveras.

– Eu acho – disse Miriam – que se as tratarmos com reverência, não lhes fazemos mal... o que conta é o espírito com que as colhemos.

– Isso é verdade – concordou ele. – Mas nós colhemo-las porque as queremos, é tudo. E exibiu o seu ramalhete.

Miriam estava silenciosa. Paul colheu mais algumas flores.

– Olhem para estas! – continuou Paul. – Robustas e sadias como pequenas árvores ou meninos de pernas gordas...

O chapéu de Clara estava pousado na erva, não muito longe. Ela estava ajoelhada, ainda inclinada para a frente, a sentir o perfume das flores. A visão do seu pescoço fez Paul sentir uma ânsia aguda, de tão belo que era, embora naquele momento ele não se sentisse muito orgulhoso de si mesmo. Os seios dela agitavam-se ligeiramente na blusa. A curva arqueada das suas costas era bonita e forte: ela não usava corpete. Subitamente, sem saber, ele estava a espalhar uma mão-cheia de primaveras sobre o seu cabelo e o seu pescoço, dizendo:


«Cinzas às cinzas e pó ao pó será.

Se o Senhor não te receber, o Diabo o fará.»


As flores frescas caíram sobre o pescoço de Clara. Ela ergueu o rosto para ele, onde dois olhos cinzentos e assustados, quase cheios de compaixão, se interrogavam sobre o que ele estava a fazer. Sobre o seu rosto caíram flores e ela cerrou os olhos.

De súbito, ali de pé ao lado dela, ele sentiu-se estranho.

– Pensei que querias um funeral – disse, embaraçado.

Clara riu de forma estranha e levantou-se, tirando as primaveras do cabelo. Pegou no chapéu e colocou-o na cabeça. Uma flor permaneceu presa ao seu cabelo, mas Paul não lhe disse nada. Depois, recolheu as flores que espalhara sobre ela.

Nos limites do bosque, os miosótis tinham-se estendido pelo campo, aí ficando como água da corrente. Mas murchavam agora. Clara vagueava sobre eles. Ele seguiu-a. Os miosótis agradavam-lhe.

– Olha como saíram do bosque! – disse.

Nesse momento, ela voltou-se com uma centelha de calor e gratidão.

– É verdade! – sorriu.

O sangue de Paul correu mais rápido.

– Fazem-me pensar nos homens selvagens dos bosques... como eles devem ter-se sentido aterrorizados quando se defrontaram cara a cara com o espaço aberto.

– Achas que sim? – perguntou ela.

– Entre as tribos antigas, pergunto-me quais teriam mais medo: as que irrompiam da escuridão dos bosques para todo um espaço de luz, ou as das áreas abertas, penetrando pé ante pé nas florestas.

– Acho que as segundas – respondeu ela.

– Sim, tu sentes-te realmente como uma pessoa de espaços abertos... tentando forçar-se a penetrar no escuro, não é verdade?

– Como é que posso saber? – respondeu ela, de um modo singular.

A conversa ficou por aqui.

A noite adensava-se sobre a terra. O vale já se cobria de sombras. Um minúsculo quadrado de luz subsistia ainda do lado oposto à quinta de Crossleigh Bank. Um brilho incandescente inundava os cumes das colinas. Miriam subiu lentamente, com o rosto enterrado no seu grande e solto ramalhete de flores, caminhando através da espuma dispersa das primaveras que lhe cobria o tornozelo. Atrás dela, as árvores transformavam-se agora em formas, todas elas sombras.

– Vamos? – perguntou.

E os três voltaram para trás. Permaneceram em silêncio. Descendo o trilho de terra, podiam ver a luz de casa mesmo em frente e, no cume da colina, uma leve silhueta escura pontilhada de luzinhas, onde a aldeia da mina de carvão tocava o céu.

– Foi agradável, não foi? – perguntou ele.

Miriam concordou, num murmúrio. Clara ficou em silêncio.

– Não achas? – insistiu ele.

Mas ela caminhava com a cabeça erguida e não respondia. Pela sua maneira de andar, como se nada lhe importasse, ele podia adivinhar o seu sofrimento.

Por esta altura, Paul levou a mãe a Lincoln. Ela estava entusiasmada e resplandecente como nunca, mas, sentada diante dele na carruagem do comboio, parecia frágil. E Paul teve uma sensação fugaz, como se ela estivesse a deslizar para longe dele. Então, quis agarrá-la, prendê-la, quase acorrentá-la. Sentia que tinha de a segurar com as próprias mãos.

Aproximavam-se da cidade. Iam ambos à janela, procurando vislumbrar a catedral.

– Ali está ela, mãe! – gritou Paul.

Avistaram a grande catedral erguendo-se acima da planície.

– Ah! – exclamou ela. – Pois está!

Ele olhou para a mãe. Os seus olhos azuis observavam a catedral em silêncio. Novamente ela parecia para lá dele. Algo da serenidade eterna da elevada catedral, azul e nobre contra o céu, algo da sua fatalidade, estava nela reflectido. O que era, era! – mesmo com toda a sua juventude, ele não podia alterá-lo. Olhou o rosto dela: a pele era ainda fresca, cor-de-rosa e aveludada, mas notavam-se já alguns pés-de-galinha em torno dos olhos; as pálpebras eram firmes, afundando-se um pouco, e a boca sempre fechada, em desilusão; e havia nela o mesmo olhar eterno, como se, finalmente, conhecesse o destino. E ele debatia-se contra o destino com todas as forças da sua alma.

– Veja, mãe, como se eleva sobre a cidade! E pensar que há ruas e ruas abaixo dela; parece maior que toda a cidade.

– Pois parece! – exclamou a mãe, voltando novamente à vida. Mas ele vira-a sentada, olhando fixamente pela janela para a catedral, de rosto e olhar parados, reflectindo a inexorabilidade da vida. E os pés-de-galinha em redor dos seus olhos e a boca tão duramente cerrada fizeram-no sentir que enlouquecia.

Fizeram uma refeição que ela considerou desnecessariamente extravagante.

– Não penses que eu gosto disto – disse, enquanto comia a costeleta. – Não gosto, não gosto mesmo nada! Só de pensar no teu dinheiro, assim desperdiçado!

– Não se preocupe com o meu dinheiro – respondeu ele. – Esquece-se de que sou um rapaz que leva a namorada a jantar fora?

Depois, comprou-lhe violetas azuis.

– Pára já com isso, menino! – ordenou ela. – Como é que eu vou fazer uma coisa dessas?

– Não tem de fazer nada! Fique quieta.

E, em plena High Street, Paul pregou as flores no casaco da mãe.

– Uma velha como eu! – protestou ela, aspirando o perfume.

– Bem vê – explicou ele –, quero que as pessoas pensem que somos terrivelmente finos. Portanto, a mãe tem de se apresentar à altura.

– Merecias que eu te desse um tabefe – disse ela.

– Vá lá... – ordenou ele –, pavoneie-se... como um pombo de cauda em leque.

Levaram uma hora a percorrer a rua. Mrs. Morel deteve-se primeiro junto ao Glory Hole, depois diante de Stone Bow, deteve-se em todo o lado, soltando exclamações. Um homem aproximou-se, tirou o chapéu e fez-lhe uma vénia:

– Permita-me que lhe mostre a cidade, minha senhora.

– Não, obrigada – respondeu ela. – Tenho o meu filho.

Nesse momento, Paul ficou furioso com ela por não ter respondido com mais dignidade.

– Tu deixas-te levar por ti mesmo – exclamou ela. – Ah, aquela é a Casa do Judeu! Lembras-te daquele sermão, Paul...

Ela mal podia subir a colina que conduzia à catedral, mas ele não notou. De repente, porém, foi dar com ela incapaz de falar. Conduziu-a a um pequeno bar, onde descansou.

– Não é nada! – disse a mãe. – O meu coração só está a ficar velhote; é de se esperar.

Paul não respondeu, mas olhou para ela. E novamente o seu coração foi esmagado por um aperto escaldante. Queria gritar, queria desfazer tudo, em fúria.

Retomaram o passeio, passo a passo, muito lentamente. E cada passo parecia um peso no peito de Paul. Sentia-se como se o seu coração fosse explodir. Finalmente, chegaram ao topo. Ela deteve-se encantada, olhando para o portão do castelo, admirando a fachada da Catedral. Tinha-se esquecido de si mesma.

– Isto é ainda melhor do que pensei que pudesse ser! – exclamou.

Mas ele odiava tudo. Por todo o lado a seguia, cismando. Sentaram-se juntos na Catedral. Assistiram a um curto serviço religioso no coro. Ela estava hesitante.

– Estará aberto para todos? – perguntou.

– É claro que está – respondeu ele. – Pensa que iam ter a lata de nos mandar embora?

– Bem – exclamou ela –, tenho a certeza de que teriam, se ouvissem a tua linguagem!

Durante o serviço, o seu rosto parecia resplandecer novamente de alegria e tranquilidade. E durante todo esse tempo, ele tinha vontade de se enraivecer, partir coisas e gritar.

Mais tarde, quando se debruçaram da muralha, admirando a cidade lá em baixo, Paul disse intempestivamente:

– Porque é que um homem não pode ter uma mãe jovem? Porque é que há-de ser sempre velha?

– Bem – disse ela, a rir – não me parece que tenha muita escolha.

– E porque não fui eu o filho mais velho? Ora veja... os filhos mais velhos dizem que os mais novos têm vantagem... mas veja bem, eles é que tiveram a mãe jovem. A mãe devia ter-me tido como seu filho mais velho.

– Não fui eu que escolhi – replicou ela. – Se pensares bem, és tão culpado como eu.

Ele voltou-se para ela, pálido, com o olhar irado.

– Porque é que a mãe é velha? – disse ele, enlouquecido pela sua impotência. Porque é que não pode andar? Porque é que não pode acompanhar-me a todos os lugares?

– Tempos houve – respondeu ela – em que eu era capaz de correr por essa colina acima melhor do que tu.

– E de que é que isso me vale, a mim? – gritou ele, golpeando a muralha com o punho. Depois, tornou-se lamuriento: – É uma pena que esteja doente, minha pequenina, é...

– Doente! – interrompeu ela. – Estou só a ficar velha, e tu tens de te conformar, é tudo. – Ficaram em silêncio. Mas não por muito tempo, e logo retomaram a boa disposição durante o chá. Enquanto estavam sentados na margem do Brayford, observando os barcos, Paul falou-lhe de Clara. A mãe fez inúmeras perguntas.

– E com quem vive ela?

– Com a mãe, em Bluebell Hill.

– E têm o suficiente para se manterem?

– Acho que não: penso que fazem rendas.

– Afinal que encantos lhe encontras tu, meu filho?

– Não sei se ela tem encantos, mãe. Mas é simpática. E parece correcta, sabe... Nada profunda, nem um pouco.

– Mas é bastante mais velha do que tu.

– Tem trinta, e eu vou fazer vinte e três.

– Mas não me disseste porque gostas dela.

– Porque não sei... será talvez o ar provocador que ela tem, uma espécie de revolta...

Mrs. Morel pensou um pouco. Teria ficado contente se o filho se apaixonasse por uma mulher que... ela não sabia bem o quê. Mas ele enervou-se, ficando subitamente furioso, e novamente melancólico. Ela só desejava que ele conhecesse uma rapariga agradável. Nem sabia o que desejava, mas deixou o assunto no ar. De certa forma, não era hostil à ideia de Clara.

Também Annie se ia casar. Leonard fora para longe trabalhar em Birmingham. Um fim-de-semana em que ele estava lá em casa, Mrs. Morel dissera-lhe:

– Não estás com boa cara, meu filho.

– Não sei o que tenho – respondeu ele. – Sinto-me perdido, mãe.

Chamava-a já de mãe, com o seu jeito infantil.

– Tens a certeza de que as instalações são boas? – perguntou ela.

– Sim... sim. Só que... é um aborrecimento quando temos de tomar sozinhos o nosso próprio chá... sem ninguém para nos ralhar, se o deitarmos para o pires e o bebermos daí. Não sei porquê mas tira o sabor ao chá.

Mrs. Morel riu-se.

– E então isso preocupa-te? – perguntou.

– Não sei... Quero casar – disse ele, de repente, torcendo os dedos e olhando para as botas. Houve uma pausa.

– Mas – exclamou ela – pensei que tinhas dito que querias esperar mais um ano.

– Pois foi, eu disse isso – respondeu ele, teimosamente.

Mrs. Morel considerou as palavras do filho por um momento.

– Sabes – continuou – a Annie é um pouco esbanjadora. Não amealhou mais de umas onze libras... e eu sei, meu filho, que tu não tens tido muita sorte.

Ele corou até às orelhas.

– Eu tenho vinte e três libras – respondeu.

– Com isso, não vão muito longe – disse Mrs. Morel.

Ele não respondeu, limitando-se a torcer os dedos.

– E tu sabes que eu não tenho nada... – continuou ela.

– Nem eu queria, mãe...! – gritou ele, muito vermelho, sofrendo e protestando.

– Não, meu filho, eu sei. Só tenho pena de não ter dinheiro. Tirando cinco libras para o casamento e preparativos... ficam vinte e nove libras... com isso não conseguem fazer grande coisa...

Ele continuou a torcer os dedos, impotente, obstinado, sem erguer os olhos.

– Mas queres mesmo casar? – perguntou ela. – Achas que deves?

Ele olhou-a de frente com os seus olhos azuis.

– Quero! – afirmou.

– Então – continuou ela – temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance.

Quando Leonard voltou a erguer o rosto, tinha lágrimas nos olhos.

– Não quero que a Annie passe dificuldades...! – disse ele, debatendo-se.

– Meu filho – disse ela – vocês namoram há muito tempo – tu tens um emprego decente. Se um homem tivesse precisado de mim, eu teria casado com ele mesmo sem dinheiro. Para ela pode ser um pouco difícil começar a vida humildemente. As raparigas muito novas são assim. Esperam ansiosas pelo belo lar que pensam que vão ter. Mas eu tinha mobílias caras! E isso não é tudo.

Assim, o casamento teve lugar quase de imediato. Arthur veio a casa, esplêndido no seu uniforme. Annie estava muito bonita num vestido cinza peito-de-rola que podia guardar para os domingos. Morel disse-lhe que era bem parva por se casar, e mostrou-se muito frio para com o genro. Mrs. Morel tinha plumas brancas no chapéu e mais algumas na blusa, e ambos os filhos a arreliaram por se embonecar tanto. Leonard estava alegre e cordial e sentia-se um tolo amedrontado. Paul não conseguia entender por que razão Annie queria casar-se. Sentia um grande carinho por ela, e ela por ele. Esperava, por isso, talvez um pouco melancolicamente, que tudo lhe corresse pelo melhor. Arthur estava surpreendentemente elegante no seu uniforme escarlate e amarelo e tinha plena consciência disso, mas sentia-se secretamente envergonhado por estar fardado. Annie debulhou-se em lágrimas na cozinha, ao despedir-se da mãe. Mrs. Morel chorou um pouco e, depois, afagou-lhe as costas, dizendo:

– Não chores, filha, ele vai ser bom para ti.

Morel bateu com os pés no chão violentamente, afirmando que ela era uma parva por se ter amarrado tão depressa. Leonard estava pálido e exausto. Mrs. Morel disse-lhe:

– Confio-ta, meu filho, e considero-te responsável por ela.

– Pode confiar em mim – assegurou ele, quase morto com tanta confusão. E estava tudo acabado.

Quando Morel e Arthur se recolheram, Paul sentou-se a conversar com a mãe, como tantas vezes fazia.

– Não tem pena de ela se ter casado, pois não, mãe? – perguntou ele.

– Não tenho pena de ela ter casado... mas... é uma sensação estranha... vê-la partir para longe de mim. Até me parece impossível que ela prefira ir com o Leonard. Mas as mães são assim... eu sei que é tolice.

– E vai ficar triste por causa dela?

– Quando penso no dia do meu casamento – respondeu a mãe – só posso esperar que a vida dela seja diferente.

– Mas confia nele... para a tratar bem?

– Sim, sim! Há quem diga que ela podia ter arranjado melhor. Mas eu acho que, se um homem é genuíno, como é o Leonard, e uma rapariga gosta dele... então... está tudo bem... ele é tão bom quanto ela.

– Nesse caso, não se importa?

– Nunca deixaria uma filha minha casar com um homem que eu não sentisse ser completamente genuíno. E, no entanto, cá está este vazio, agora que ela se foi...

Sentiam-se ambos tristes e queriam-na de volta. Paul achava que a mãe parecia muito sozinha, na sua nova blusa de seda preta com guarnições brancas.

– De qualquer modo, mãe, eu nunca me casarei – afirmou ele.

– Ah, todos dizem o mesmo, meu filho. Ainda não encontraste a mulher ideal. Espera um ano ou dois, e vais ver.

– Mas eu não me caso, mãe... fico a viver consigo, e vamos ter uma criada.

– Ah, meu filho... falar é fácil. Veremos quando chegar a altura.

– Que altura? Eu tenho quase vinte e três anos.

– Sim... não és dos que se casam cedo. Mas daqui a três anos...

– Estarei consigo na mesma.

– Veremos, meu filho, veremos.

– Mas a mãe não quer que eu case?

– Não gostaria de pensar que vais continuar pela vida fora sem ninguém para tomar conta de ti e te fazer... não, não gostaria...

– Acha então que devo casar-me?

– Mais cedo ou mais tarde, todos os homens devem casar-se.

– Mas preferia que fosse mais tarde.

– Será difícil... muito difícil. É como o povo diz:


«Quem casa filho, perde um filho;

quem casa filha, ganha um filho.»


– E pensa que eu deixaria uma mulher afastar-me de si?

– Bem, não poderias pedir-lhe que casasse contigo e com a tua mãe – sorriu Mrs. Morel.

– Ela que fizesse o que quisesse... desde que não interferisse.

– Não o faria... até te ter apanhado... Mas depois verias...

– Então nunca vou ver. Nunca me casarei enquanto a tiver a si... Nunca.

– Mas eu não gostaria de te deixar sem ninguém, meu filho – disse Mrs. Morel, chorando.

– A mãe não vai deixar-me. A mãe tem... cinquenta e três anos! Dou-lhe até aos setenta e cinco. Ora aí tem, nessa altura, estou eu gordo e com quarenta e quatro anos, e então posso casar com uma mulher séria. A mãe vai ver...!

A mãe sentou-se, a rir.

– Vai deitar-te – disse ela –, vai deitar-te.

– E havemos de ter uma casa bem bonita, a mãe e eu, e uma criada, e tudo será perfeito. Talvez eu venha a ficar rico com a minha pintura.

– Já para a cama!

– E a mãe terá uma caleche puxada por um potro. Imagina-se... uma pequena Rainha Vitória por aí a trotar.

– Já te disse para ires para a cama – disse ela, a rir.

Ele beijou-a e saiu. Os seus planos para o futuro eram sempre os mesmos.

Mrs. Morel ficou a matutar sobre a filha, sobre Paul, sobre Arthur. Lamentava-se por ter perdido Annie. A família era muito unida, e ela sentia que agora tinha de viver, para estar com os filhos. A vida tinha-lhe dado tanta coisa. Paul amava-a e Arthur também. Arthur nunca soube o quanto a amava. Era uma criatura de momentos. Até agora, nunca tinha sido obrigado a compreender--se a si mesmo. O exército disciplinara o seu corpo, mas não a sua alma. Estava de perfeita saúde e era muito atraente. O seu cabelo negro e espesso assentava-lhe bem na cabeça pequena. Havia algo de infantil no seu nariz, algo quase feminino nos seus olhos azuis, muito escuros. Mas tinha a boca vermelha e cheia de um homem, sublinhando o bigode, e o queixo era vigoroso. A boca era do pai, e o nariz e os olhos da família da mãe, gente bonita, de fracos princípios. Mrs. Morel andava ansiosa, preocupada com o filho. Desde que assumisse realmente o uniforme, estava seguro. Mas até onde iria ele?

Na verdade, o exército não lhe tinha feito nenhum bem. Ressentia-se amargamente da autoridade dos oficiais subalternos. Detestava ter de obedecer, como se fosse um animal. Mas tinha o bom senso de não protestar. Por isso, concentrara toda a sua atenção na tentativa de tirar o melhor partido da situação. Sabia cantar, era um companheiro alegre. Por vezes, envolvia-se em situações difíceis, mas eram as dificuldades próprias de um homem, facilmente perdoáveis. Assim, tirava disso o melhor partido, enquanto o seu autorespeito se ia recalcando. Confiava na sua boa aparência e elegância, no seu requinte e boa educação, para conseguir quase tudo o que desejava, e não estava desiludido. No entanto, sentia-se inquieto. Algo parecia atormentá-lo por dentro. Nunca estava quieto, nunca estava sozinho. Com a mãe, mostrava-se bastante humilde. Admirava Paul, amava-o até, mas desprezava-o ligeiramente. E Paul, por sua vez, admirava e amava o irmão, mas desprezava-o ligeiramente.

Mrs. Morel recebera algumas libras da herança do pai, e decidiu comprar a saída do filho do exército. Ele não cabia em si de contente. Parecia um garoto em férias.

Sempre gostara de Beatrice Wyld e, durante a sua licença, reatou a velha amizade. Ela estava agora mais forte e de melhor saúde. Os dois davam frequentemente longos passeios, e Arthur levava-a pelo braço à boa maneira dos soldados, com alguma rigidez. Beatrice tocava piano enquanto ele cantava. Arthur desapertava, então, o colarinho da túnica, ia ficando cada vez mais corado, com o olhar brilhante, e cantava com uma voz máscula de tenor. Depois, sentavam-se juntos no sofá. Ele parecia exibir o seu corpo, e ela mostrava-se bem consciente dele, do peito forte, dos flancos, das coxas cingidas nas calças justas.

Ele gostava de se resvalar para o dialecto quando conversava com ela. Por vezes, Beatrice acompanhava-o e fumava também um cigarro. Noutras ocasiões, tirava apenas umas passas do cigarro dele.

– Não – disse ele uma noite, quando ela lhe pediu o cigarro: – Nem penses. Se quiseres, dou-te um beijo com fumo.

– Quero uma passa, não quero beijo nenhum – respondeu ela.

– Então... é isso que vais ter – disse ele – juntamente com o beijo.

– Quero dar uma passa no teu cigarro – irritou-se ela, tentando tirar-lhe o cigarro dos lábios.

Arthur estava sentado com o ombro encostado ao dela. Ela era pequena e rápida como um raio. Só a custo ele conseguiu escapar-lhe.

– Dou-te um beijo de fumo – disse ele.

– És um descarado impertinente, Arty Morel – disse ela, recostando-se no sofá.

– Deixa-me dar-te um beijo de fumo!

O soldado inclinou-se, sorrindo. O seu rosto estava próximo do dela.

– Olha o disparate! – replicou ela, virando a cabeça.

Arthur aspirou uma longa fumaça, fechou a boca e pôs os lábios perto dela. O seu bigode escuro e bem aparado sobressaía como uma escova. Beatrice olhou para os lábios rubros, pregueados, e depois, subitamente, conseguiu arrancar-lhe o cigarro dos dedos e fugiu para longe. Ele, correndo atrás dela, tirou-lhe a travessa que lhe prendia os cabelos. Ela voltou-se e atirou-lhe o cigarro. Ele apanhou-o, pô-lo na boca e sentou-se.

– Parvalhão! – gritou ela. – Dá-me a minha travessa!

Receava que o seu cabelo, especialmente penteado para ele, se desmanchasse, e conservou as mãos na cabeça. Ele escondeu a travessa entre os joelhos.

– Não a tenho – disse.

Com o riso, o cigarro tremia-lhe entre os lábios enquanto falava.

– Mentiroso! – acusou ela.

– Tão certo como eu estar aqui! – E riu-se, mostrando as mãos.

– Seu demónio desavergonhado! – exclamou ela, precipitando-se para ele, lutando para recuperar a travessa que ele tinha entre os joelhos. Enquanto Beatrice lutava com ele, puxando-lhe as coxas macias e apertadamente cingidas, Arthur riu-se até cair para trás no sofá, sacudido pelas gargalhadas. O cigarro caiu-lhe da boca e quase lhe queimou a garganta. Sob o delicado bronzeado, o sangue subiu à superfície, e ele riu até os seus olhos azuis ficarem cegos e a garganta inchada, quase sufocando. Depois, endireitou-se. Beatrice estava a colocar a travessa no lugar.

– Fizeste-me cócegas, Beat – disse ele, com a voz rouca.

Como um relâmpago, a mão dela, pequena e branca, voou e esbofeteou-lhe a face. Ele ergueu-se de um salto, com um olhar feroz. Entreolharam-se. Lentamente, um rubor subiu às faces dela; baixou os olhos, depois a cabeça. Ele sentou-se novamente, amuado. Ela entrou na cozinha para compor o cabelo. Aí, sozinha, verteu algumas lágrimas, não sabendo bem por que razão.

Quando regressou, estava recomposta. Mas era apenas uma capa sobre o seu fogo interior. Arthur, com a cabeleira revolta, continuava amuado no sofá. Beatrice sentou-se diante dele, no cadeirão, e nenhum dos dois falou. O relógio martelava no silêncio, com pancadas secas.

– És uma gatinha arisca, Beat – disse ele devagar, quase como um pedido de desculpas.

– Bem, e tu não devias ser tão atrevido – retorquiu ela.

Seguiu-se novamente um longo silêncio. Ele assobiava para si mesmo, como um homem muito agitado, mas provocador. Subitamente, ela atravessou a sala direita a ele e beijou-o.

– Então, dei ou não dei? – troçou ela.

Ele levantou o rosto para ela, sorrindo de forma singular.

– Dás-me outro? – convidou ele.

– Julgas que não me atrevo? – perguntou ela.

– Coragem! – desafiou-a ele, com a boca estendida na sua direcção.

Deliberadamente, e com um sorriso fremente que parecia espalhar-se a todo o corpo, ela colocou a boca sobre a dele. Imediatamente, os braços de Arthur se fecharam em torno dela. Assim que o longo beijo acabou, ela afastou a cabeça, e meteu os dedos delicados no pescoço dele, por dentro do colarinho aberto. Depois, fechando os olhos, abandonou-se de novo num beijo.

Agia agora de livre vontade. O que desejava fazer, fizera-o e não responsabilizava ninguém.

Paul sentia a vida mudar à sua volta. As condições da juventude tinham desaparecido. Agora, a sua era uma casa de pessoas adultas. Annie era uma mulher casada, Arthur seguia o seu próprio prazer de um modo que a família ignorava. Durante muito tempo, tinham vivido em casa, saindo para passar o tempo. Mas agora, para Annie e Arthur, a vida desenrolava-se fora de casa da mãe. Só vinha a casa de férias ou para descansar. Por isso, pairava no ar aquela sensação estranha de vazio, como se os passarinhos tivessem levantado voo. Paul andava cada vez mais inquieto. Annie e Arthur haviam partido. Ele estava ansioso por lhes seguir o exemplo. No entanto, a casa era, para ele, ao lado de sua mãe. E, contudo, havia algo mais, algo cá fora, algo que ele desejava.

Andava cada vez mais desassossegado. Miriam não o satisfazia. O seu antigo desejo, quase loucura, de estar com ela, enfraquecera. Por vezes, encontrava Clara em Nottingham, por vezes acompanhava-a a reuniões, por vezes via-a em Willey Farm. Mas ultimamente a situação tornara-se constrangedora. Havia um triângulo de antagonismo entre Paul, Clara e Miriam. Com Clara, ele adoptava um tom vivo, mundano e trocista que era muito desagradável para Miriam. Não lhe importava o que acontecera antes. Ela podia ser íntima e estar triste com ele. Depois, assim que Clara aparecia, tudo desaparecia, e ele representava para a recém-chegada.

Miriam disfrutara de uma bela noite na companhia de Paul, sentados no feno. Ele estivera ocupado na cavalariça e, quando acabou, veio ajudá-la a colocar o feno em pequenos molhes. Depois, falou-lhe das suas esperanças e desesperos, e toda a sua alma parecia estar ali, desnuda diante dela. Ela sentiu-se como se visse nele a própria essência trémula da vida. A Lua despontou; regressaram juntos a casa; parecia que ele a procurara porque precisava desesperadamente dela, e ela escutou-o, deu-lhe todo o seu amor e confiança. A Miriam parecia que ele lhe trouxera o melhor que havia em si para guardar, e que ela o guardaria enquanto vivesse. Não, o céu não cuidaria das estrelas melhor e mais eternamente do que ela guardaria o que de bom havia na alma de Paul Morel. Entrou em casa sozinha, sentindo-se exaltada, satisfeita com a sua confiança.

E depois, no dia seguinte, Clara chegou. Estava combinado tomarem o chá no campo de feno. Miriam viu a tarde vestir-se de dourado e depois de sombras. Durante todo esse tempo, Paul brincava com Clara. Fazia montes de feno cada vez maiores sobre os quais saltavam. Miriam não se interessava pelo jogo e manteve-se afastada. Edgar, Geoffrey, Maurice, Clara e Paul não paravam de saltar. Paul venceu, pois era muito leve. O sangue de Clara estava inflamado. Ela corria como uma amazona. Paul adorava a forma determinada como ela se precipitava para o monte de feno e saltava, aterrando do outro lado, com os seios sacudidos e o cabelo espesso em desalinho.

– Tocaste! – gritou ele. – Tocaste!

– Não toquei nada! – dardejou ela, voltando-se para Edgar. – Não toquei, pois não? Não achas que passei bem?

– Não sei. – E Edgar riu-se.

Nenhum deles sabia dizer.

– Mas tu tocaste – insistiu Paul. – E perdeste.

– Não toquei! – gritou ela.

– Tão claro como água – teimou Paul.

– Dá-lhe um puxão de orelhas por mim – gritou ela a Edgar.

– Não – disse Edgar a rir –, não me atrevo. Tens de ser tu a fazê-lo.

– Nada vai alterar o facto de teres tocado – insistiu Paul, trocista.

Ela estava furiosa. O seu pequeno triunfo diante de homens e rapazes desvanecera-se. Ela esquecera-se de si durante o jogo. Agora, ele queria humilhá-la.

– Acho que és desprezível! – disse-lhe ela.

Ele riu novamente, de um modo que torturou Miriam.

– Eu já sabia que não conseguias saltar aquele monte – provocou Paul.

Clara voltou-lhe as costas. Contudo, todos podiam ver que a única pessoa que ela escutava, ou da qual estava consciente, era ele, e ele dela. Agradava aos homens assistir a esta batalha entre eles. Mas Miriam torturava-se.

Via agora que Paul podia escolher o inferior em vez do superior. Ele conseguia ser infiel a si próprio, infiel ao verdadeiro e profundo Paul Morel. Havia o perigo de ele se tornar frívolo, de correr atrás das suas satisfações como qualquer Arthur, ou como o seu próprio pai. Pensar que ele pudesse desperdiçar a sua alma em troca desta irreverente relação de trivialidade com Clara era algo que atormentava Miriam. Caminhava amargurada e em silêncio, enquanto os outros dois brigavam entre si e Paul se divertia.

Mais tarde, embora se recusasse a admiti-lo, Paul sentiu-se envergonhado de si mesmo e prostrou-se diante de Miriam. Então, de novo se revoltou.

– Não é religioso ser-se religioso – disse. – Considero que um corvo é religioso quando cruza os céus. Mas só o faz porque se sente levado para onde vai, não porque pense que está a ser eterno.

Mas Miriam sabia que uma pessoa podia ser religiosa em tudo, ter Deus, fosse Ele quem fosse, presente em tudo.

– Não acredito que Deus saiba assim tanto sobre Si mesmo – bradou Paul. – Deus não sabe as coisas, Ele é as coisas... E estou certo de que não é sentimental.

A ela parecia-lhe que Paul tentava pôr Deus do seu lado, porque queria que as coisas fossem à sua maneira e desejava apenas o seu prazer. Travou-se uma longa batalha entre ambos. Ele era-lhe absolutamente infiel até mesmo na sua presença; depois ficava envergonhado, arrependido, para logo em seguida a odiar e fugir novamente. Essa era a situação eternamente repetida.

Ela irritava-o até ao mais fundo da sua alma. Depois, ali ficava, triste, pensativa, em adoração. E ele fazia-a sofrer. Metade do tempo, ele sofria por ela, metade do tempo, odiava-a. Ela era a sua consciência, e ele sentia que, de algum modo, tinha uma consciência que era de mais para si. Não podia deixá-la, porque, de certa forma, ela detinha em seu poder o melhor que havia nele. Não podia ficar com ela, porque ela não recebia tudo o resto, o que vinha por acréscimo, e eram três quartos. Por isso, desgastava-se em crueldade para com ela.

Quando ela fez vinte e um anos, ele escreveu-lhe uma carta que apenas podia ter sido escrita para ela.

«Será que devo escrever-te uma carta de aniversário? Parece um pouco pernicioso fazê-lo deliberadamente, não achas? Porque é certo que vou ser presunçoso e sentencioso.» Seguia-se então uma boa dose de presunção:

«A minha última carta preparava-te, não é verdade, para as alegrias da idade que se aproximava. Não te sentes como uma herdeira ao tomar posse da sua herança? É que agora, tornas-te publicamente dona de ti mesma. Querias mais?... Impossível!»

Paul começava a sentir o sentimento de culpa a torturá-lo. Parecia despedaçado por dentro, como se não pudesse manter-se de pé, mas devesse esforçar-se por não cair.

«Deixa-me falar do nosso velho e desgastado amor, pela última vez. Também ele está a mudar, não te parece? É como se o corpo desse amor tivesse morrido, deixando-te a sua alma invulnerável! Sabes, eu posso dar-te um amor espiritual, como sempre fiz du-rante estes longos, longos anos; mas não uma paixão encarniçada. Sabes, tu és uma freira. Eu dei-te aquilo que teria dado a uma freira sagrada... como um monge místico dá a uma freira mística; certamente que o estimas mais. No entanto, lamentas... não, lamentaste, melhor dizendo... o outro. Em todas as nossas relações, não entra o corpo. Não estou a falar-te através dos sentidos... mas através do espírito. É por isso que não somos capazes de amar no sentido comum. Muitas vezes, quando me dirijo a ti, não te olho de frente, porque, vê se entendes, eu não falo para os teus olhos, embora eles sejam escuros e belos, não falo para os teus ouvidos, ocultos sob uma delicada mecha de cabelo sedoso... mas para o teu íntimo, para lá de tudo isso. E assim continuarei a fazer a vida inteira, se o destino não intervier. Estás a ver? Compreendes agora porque só te beijo debaixo do azevinho. Entendes? E eu, será que entendo? Será talvez melhor, pensarás tu. Eu acho que sou demasiado educado, demasiado civilizado. Acho que muita gente o é.

«Tu ocupas um lugar na minha natureza que ninguém mais poderia preencher. Tu tens desempenhado um papel fundamental no meu desenvolvimento. E esta dor, que tem sido como uma nuvem ensombrando as nossas almas, não se começa ela a dissipar? A nossa não é uma afeição banal. E, no entanto, somos mortais, e viver lado a lado um com o outro seria terrível, pois, de algum modo, contigo não posso já ser trivial e, sabes, estar sempre para além deste estado mortal seria perdê-lo. Se as pessoas casam, devem viver juntas como seres humanos afectuosos que podem ser banais um com o outro sem se sentirem estranhos... não como duas almas. É assim que penso.

«Talvez me case nos próximos anos. Terá de ser uma mulher a quem possa beijar e abraçar, a quem possa fazer mãe dos meus filhos, com quem possa falar divertidamente, trivialmente, sinceramente, mas nunca com esta terrível seriedade. Vê como o destino dispôs as coisas. Tu... tu podes casar com um homem que não se derrame como fogo diante de ti. Pergunto-me se entendes... pergunto-me se eu próprio me entendo. Mas tu sabes que estas coisas me perturbam, e agora eis um final para a nossa conversa sobre este assunto. Perdoa-me por tudo o que disse – não é natural, eu sei – e queima esta carta, e não penses nela nem me faças pensar nela, e Deus nos ajude a suportar o fardo de nós próprios.

«Gostarias de um Manual de Ética? Acho que gostarias, sim, e podemos falar disso e aprender... oh, sim. E tu ficarás mais culta, não é? Como vês, a nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro.

«Agora tens vinte e um anos. Estou tão feliz por seres uma mulher independente. És tão forte quanto eu, não és? Sim, ainda mais forte. Oh, se temos de viver, temos de ser sensatos, e não nos podemos permitir ir longe de mais. Devemos ser triviais e procurar a beleza e não a dor, pois de outro modo ficamos numa situação difícil. Vá lá, nem uma palavra sobre os lugares sensíveis, por enquanto.

«Oh, como estaremos alegres na tua festa, no sábado! Eu, agora, não sinto nem um pouco de tristeza dentro do meu coração.

«Será que devo enviar-te esta carta? Duvido. Mas, afinal... é melhor, para que possas compreender. Adeus...»

Miriam leu a carta duas vezes, fechando-a em seguida. Um ano mais tarde, quebrou o selo para a mostrar à sua mãe.

«Tu és uma freira... tu és uma freira» – as palavras penetravam-lhe no coração uma e outra vez. Nada do que ele alguma vez dissera a penetrara tão profunda e firmemente, como se de uma ferida mortal se tratasse.

Ela respondeu-lhe dois dias depois da festa. «A nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro», citou. «Terá esse erro sido meu?»

Quase de imediato, ele respondeu-lhe de Nottingham, enviando-lhe ao mesmo tempo um pequeno Omar Khayyam.

«Vais encontrar muita coisa entre as finas capas deste pequeno livro, mas a lição a retirar é que devemos beber o vinho tinto da vida e deixá-lo embriagar-nos por um instante. Foi essa a razão por que o comprei. Também quero levar-te The Blessed Damosel, para passar um serão contigo e com Rossetti.

«Se o pequeno erro foi teu, perguntas tu. Bem, ninguém erra sozinho! A tua quota-parte do erro foi gloriosa, digna da imortalidade. Mas a minha foi um reconhecimento indomável do barro do vaso... frágil... rígido... confinador. E eu, alternadamente, amei e odiei a matéria mundana de mim mesmo. Quando a amava, era cruel para ti, quando a odiava, era cruel para mim, e para tudo o mais. Não tenho eu a faculdade de ser muito cruel?

«Se, na festa dos teus anos, eu estava ainda algo tempestuoso, foi porque reconheci no teu sol de quarta-feira o brilho lavado do teu longo dia de chuva de terça-feira. Eu não me sento e travo a descoberto as minhas batalhas, como tu fazes. Eu sacudo o inimigo pela garganta e grito-lhe que ele é um vilão e um cão. Com isso, ordeno-lhe que vá para longe de mim e, por um momento, fico em liberdade. Depois, digo a mim mesmo que se tratava de um pobre coitado e rio. Pouco depois, mergulho novamente nas trevas, ao descobrir que ele não se foi nem tão-pouco está morto... E, quando tudo isto se torna insuportável, travo com ele nova luta feroz. Através destas batalhas violentas venço, ou não venço. Sem triunfos, sem Waterloos. Assim, não sofro tão intensamente, e fico menos estável. Afinal de contas, é uma brincadeira, esta coisa de “nós”, não é?

«Estou feliz por teres respondido... És tão calma e natural que me envergonhas. Que oco que eu sou! Tenho de jogar duro... Tu não entendes como eu posso dançar em redor dos meus inimigos, invectivando-os e espiando-os, lançando mão de tudo o que me aparece no caminho, travando contendas ocasionais. Se eu me fechasse a tudo e mantivesse a dor apertada no peito, como tu fazes, morreria de exaustão. Nisso, as nossas naturezas são radicalmente opostas.

«Por isso, estamos tantas vezes em desacordo. Mas, no fundamental, estaremos sempre juntos, penso eu.

«Tenho de agradecer-te pela tua simpatia para com a minha pintura e os meus desenhos. Muitos dos esboços são dedicados a ti. Espero ansiosamente as tuas críticas, que, para minha vergonha e glória, são sempre grandes apreciações. Que deliciosa brincadeira que isso é.

«Adeus. Agora tenho de saldar uma maldita conta. Espero que queimes estas cartas. É minha regra queimá-las todas... pois nenhuma me dá prazer a não ser pela lembrança do prazer a que se referem, e muitas estão cheias de lágrimas secretas das quais devo fugir...»

Este foi o fim da primeira fase dos amores de Paul Morel. Estava agora com vinte e três anos e, embora virgem, o instinto sexual que Miriam refinara nele durante tanto tempo estava agora cada vez mais fortalecido. Muitas vezes, quando falava com Clara Dawes, sentia o sangue engrossar e alvoroçar-se, aquela concentração peculiar no peito, como se algo estivesse vivo lá dentro, um novo ser ou um novo centro de consciência, avisando-o de que, mais cedo ou mais tarde, teria de decidir-se por uma mulher ou por outra. Mas ele pertencia a Miriam. Disso ela estava absolutamente segura, de que ele lhe concedia esse direito.


X

CLARA

COM VINTE E TRÊS anos, Paul mandou uma paisagem sua para a Exposição de Inverno de Newcastle. Miss Jordan tinha-se interessado muito por ele e convidara-o para ir a sua casa, onde conheceu outros artistas. Paul começava a ter ambições.

Uma manhã, estava ele a lavar-se na copa, quando chegou o carteiro. Paul ouviu a mãe numa gritaria desenfreada. Correu para a cozinha e viu-a de pé diante da lareira, a agitar uma carta, como louca, e a gritar «Vivas!». Ficou chocado e assustado.

– Oh, mãe! – exclamou.

A mãe correu para ele e atirou-se-lhe ao pescoço, enquanto agitava a carta, gritando:

– Parabéns, meu filho... Eu sabia que havíamos de vencer!

Paul estava cheio de medo daquela mulher pequenina e bem-comportada, já de cabelos grisalhos, que de repente desatara naquele chinfrim. Até o carteiro voltou para trás a correr, pensando que tinha acontecido alguma desgraça. Viram-lhe o cocuruto do boné por detrás da cortina. Mrs. Morel precipitou-se para a porta.

– O quadro dele ganhou o primeiro prémio, Fred, e foi vendido por vinte guinéus!

– Ena pá! G’ande acontecimento! – disse o carteiro, um rapaz novo, que ela conhecia desde pequeno.

– Quem o comprou foi o major Moreton – acrescentou Mrs. Morel.

– Isso vale muito, olá se vale, Mrs. Morel – disse o carteiro, de olhos azuis a luzir. Não cabia em si de contente por ter sido o portador de tão boas notícias. Mrs. Morel voltou para dentro e sentou-se. Tremia dos pés à cabeça. Paul só tinha medo de que ela tivesse lido mal a carta e sofresse uma desilusão. Releu-a uma, duas vezes, e convenceu-se de que era mesmo verdade. Então, sentou-se, com o coração a pulsar forte, de alegria.

– Oh, mãe! – exclamou.

– Eu não te disse que havíamos de vencer? – disse ela, disfarçando as lágrimas.

Paul tirou a chaleira do lume e escaldou o chá.

– A mãe não imaginava que... – começou ele, hesitante.

– Não, meu filho... assim tanto não... mas esperava bastante.

– Mas tanto não – disse ele.

– Não... isso não... mas sabia que íamos vencer.

E logo recuperou a compostura, pelo menos aparentemente. Ele estava sentado, de camisa aberta, deixando-lhe a descoberto um pescoço quase feminino, de toalha na mão e cabelo em pé.

– Vinte guinéus, mãe! Exactamente o que a mãe precisava para resgatar o Arthur. Agora já não precisa de pedir emprestado. É mesmo à conta.

– Nem pensar nisso, não te vou ficar com o dinheiro todo! – disse ela.

– Ora essa, porquê?

– Porque não devo.

– Bem... então a mãe fica com onze libras... e eu com nove.

Continuaram a discutir a divisão dos vinte guinéus. Ela só queria as cinco libras de que precisava. Ele não concordava de maneira nenhuma. E, assim, a discussão serviu para descarregarem a tensão.

Morel, quando à noite chegou da mina, disse, mal entrou:

– Ouvi dizer qu’o quadro do Paul ganhou o primeiro prémio e foi vindido a Lorde Henry Bentley por cinquenta libras.

– As histórias que as pessoas contam! – exclamou Mrs. Morel.

– Ah! – disse ele. – Eu bem sabia qu’era mentira. Mas impingiram-me que tu é que tinhas contado ò Fred Hodgkisson.

– Como se eu lhe fosse dizer uma coisa dessas!

– Ah! – aquiesceu o mineiro.

Via-se que estava desapontado.

– Lá que ganhou o primeiro prémio... isso é verdade – disse Mrs. Morel.

O mineiro deixou-se cair pesadamente na cadeira.

– Conseguiu! – exclamou o mineiro.

Estava perplexo, de olhar pregado algures, no outro lado da sala.

– Mas, quanto às cinquenta libras, que disparate! – E Mrs. Morel calou-se por um instante. – Enfim... o major Moreton comprou-o por vinte guinéus...

– Vinte guinéus! Num pode ser! – exclamou Morel.

– Pois foi, e bem os merece.

– Tá bem! – disse ele. – Num duvido... Mas vinte guinéus por uma pintura qualquer qu’ele fez numa ou duas horas...! – Depois calou-se, cheio de respeito pelo filho. Mrs. Morel fungou ligeiramente, como se isso não fosse nada de importante.

– E quand’é qu’ele põe as mãos na massa? – perguntou o mineiro.

– Isso não sei... quando o quadro for entregue, suponho.

Fez-se silêncio. Morel olhava para o açucareiro em vez de comer, com o braço enfarruscado e a mão desfigurada pelo trabalho apoiados em cima da mesa. A mulher fingiu não ver quando ele limpou os olhos com as costas da mão, com a cara toda esborratada do pó da mina.

– Pois é, e o outro tamém havia de ter feito o mêmo, se num o tivessem matado – disse ele, em voz baixa.

A lembrança de William retalhou Mrs. Morel como uma lâmina gelada, deixando-a fatigada e a precisar de se ir deitar.

Paul foi convidado para jantar em casa de Mr. Jordan. Ao chegar a casa, disse:

– Mãe, preciso de um smoking.

– Sim, já calculava – disse ela. Estava contente. Fez uma pausa. – Tens o do William – prosseguiu. – Sei que custou quatro libras e dez xelins, e ele só o vestiu três vezes...

– E a mãe gostava que eu o usasse? – perguntou Paul.

– Com certeza. Acho que te deve servir... pelo menos o casaco. As calças têm de ser subidas.

Paul foi para o quarto e vestiu o casaco e o colete. Quando desceu estava bastante bizarro, com o colarinho e o peitilho de flanela e o casaco e colete de cerimónia. Estava-lhe tudo muito largo.

– O alfaiate aperta-te isso – disse a mãe, alisando-lhe o casaco no ombro. – O tecido é muito bonito. Nunca tive coragem para deixar o teu pai usar as calças e bem contente estou agora de o ter feito.

Enquanto passava a mão nas bandas de seda do casaco, pensou no filho mais velho. Mas este outro filho estava bem vivo dentro do fato, e ela passou-lhe a mão nas costas para o sentir. Estava vivo e era dela. O outro estava morto.

Paul foi a vários jantares com o smoking que tinha sido de William. De cada vez que isso acontecia, o coração da mãe exultava de orgulho e alegria. O filho estava lançado na vida. Os botões que ela e os irmãos tinham comprado para William trazia-os ele no peitilho, aplicados numa das camisas de cerimónia de William. Paul tinha uma bela figura. As suas feições eram algo rudes, mas era simpático e muito amável. Não seria propriamente um cavalheiro, mas via-se que estava ali um homem genuíno.

Paul contava à mãe tudo o que se passava, tudo o que se dizia. Era como se ela lá tivesse estado. E ele estava morto por lhe apresentar os novos amigos com quem ia jantar às sete e meia.

– Ir contigo? – disse ela. – Para que hão-de querer eles conhecer-me?

– Mas querem! – exclamou, indignado. – Se querem conhecer-me, como dizem, então querem conhecê-la a si também... porque a mãe é tão inteligente como eu.

– Ir contigo, meu filho... – E riu-se.

Mas começou a poupar mais as mãos. Também as dela estavam muito calejadas do trabalho. A pele estava lustrosa da água quente e os nós dos dedos inchados. Mas começou a ter o cuidado de não as meter em lixívia. Tinha saudades das suas mãos de outros tempos, pequenas e delicadas. E quando Annie começou a insistir com ela para usar blusas mais requintadas, de acordo com a sua idade, ela fez-lhe a vontade. Permitiu até que lhe pusessem um laço preto de veludo no cabelo. Depois, deu uma fungadela sarcástica, mas sabia que lhe ficava bem. Parecia uma senhora da sociedade, afirmava Paul, tão fina como Mrs. Moreton, e muito, muito mais bonita. A família estava a subir na escala social. Só Morel continuava na mesma, ou melhor, piorava lentamente.

Paul e a mãe discutiam longamente sobre a essência da vida. A religião ia desaparecendo da vida de Paul. Tinha-se desembaraçado de todas as crenças que o pudessem aperrear, fizera uma limpeza geral, e chegara mais ou menos ao âmago da fé, ou seja, que cada um deve procurar o bem e o mal dentro de si mesmo, e ir, com paciência, construindo a sua própria ideia de Deus. E, a partir dessa altura, passou a interessar-se mais pela vida.

– Sabe – disse ele à mãe –, não quero pertencer a uma burguesia abastada. Prefiro o povo. Eu sou do povo.

– Mas se fosse outra pessoa a dizê-lo, meu filho, ias ficar furioso. Tu sabes que te consideras igual a qualquer grande senhor.

– No íntimo, talvez – respondeu ele. – Não na classe ou na educação, ou nas maneiras. Mas no íntimo, isso sim.

– Muito bem... Então para quê falar no povo?

– Porque... a diferença entre as pessoas não está nas classes sociais, mas nelas mesmas... Só que às classes médias vão-se buscar as ideias, e ao povo... a própria vida, o calor humano. No povo sentem-se vibrar o ódio e o amor...

– Isso é tudo muito bonito, meu filho... mas então porque não vais conversar com os amigos do teu pai?

– Esses são muito diferentes.

– Não concordo. São gente do povo. Afinal, com que pessoas do povo é que te dás agora? Com as que gostam de trocar ideias, falar das mesmas coisas que a burguesia. As outras não te interessam.

– Mas... há a vida...

– Não creio que a Miriam te dê mais vida do que qualquer rapariga culta... Miss Moreton, por exemplo. Tu é que tens preconceitos de classe, estás a ficar um snob.

A mãe desejava francamente que o filho ascendesse à burguesia, o que ela sabia não ser difícil. E desejava vê-lo, no fim, casado com uma senhora da sociedade.

Empenhava-se agora em combater no filho a sua incessante inquietação. Ele ainda mantinha a ligação com Miriam, não conseguindo nem acabar com tudo nem assumir o compromisso em definitivo, e a indecisão parecia consumir-lhe as energias. Além disso, a mãe pressentia nele uma inclinação inconsciente para Clara, e sendo ela uma mulher casada, Mrs. Morel só desejava que o filho se apaixonasse por alguém em situação menos complicada. Mas Paul, estupidamente, recusava-se a amar, ou sequer a admirar uma rapariga só pelo facto de ela pertencer a uma classe mais elevada.

– Meu filho – disse-lhe a mãe –, nem toda a tua inteligência, nem todo o teu desprezo pelas tradições antigas, nem essa mania de fazeres só o que queres, parecem trazer-te grande felicidade.

– E o que é a felicidade? – exclamou ele. – Para mim não existe! Como é que eu posso ser feliz?

Esta pergunta tão directa perturbou-a.

– Isso só tu podes saber, meu filho. Mas, se pudesses encontrar uma mulher decente que te fizesse feliz... quando te bastava quereres... terias mais sossego para trabalhar... seria muito melhor para ti.

Paul franziu o sobrolho. A mãe pusera o dedo em cheio na ferida chamada Miriam. Ele afastou os cabelos da testa, com o olhar incendiado de dor.

– Isso é fácil de dizer, mãe – gritou. – Isso é a cartilha de todas as mulheres... paz de espírito e conforto físico. Para mim, isso não vale nada.

– Ah, não? – retorquiu a mãe. – Se calhar achas que o teu desencanto é divino, não?

– Acho... Lá da divindade não quero saber. Mas diabos levem a sua felicidade! Desde que se tenha uma vida cheia, não interessa se é ou não de felicidade. Receio que a sua felicidade me enchesse de tédio.

– Tu nem sequer tentas – disse a mãe. E, de repente, toda a dor que sentia por ele explodiu. – E isso é importante! – gritou ela. – Tinhas obrigação de ser feliz, tinhas obrigação de tentar ser feliz, de viver feliz. Como é que eu ia ficar, sabendo que eras infeliz?

– A sua vida foi suficientemente má, Mater, mas não a deixou muito pior do que os que foram mais felizes. Julgo que se saiu até muito bem. Comigo passa-se o mesmo. Não acha que me estou a sair bem?

– Não, meu filho, não estás. Batalhar... batalhar... e sofrer... é tudo o que fazes, pelo que eu vejo...

– E porque não, querida mãe? É o melhor que há a fazer...

– Não, não é! As pessoas têm obrigação de ser felizes!

Mrs. Morel tremia dos pés à cabeça. Discussões destas repetiam-se sempre que a mãe parecia querer lutar pela vida do filho, opondo-se à sua vontade de morrer. Paul abraçou-a. Ela estava doente, metia dó.

– Deixe lá, mãezinha! – murmurou Paul. – Desde que a vida não nos pareça mesquinha e miserável, o resto não importa... que seja feliz ou infeliz.

Ela apertou-o contra o peito.

– Mas eu quero que sejas feliz – disse, pateticamente.

– Oh, mãezinha adorada... diga antes que quer que eu viva.

Mrs. Morel sentiu o coração morrer por ele. Sabia que, por este andar, ele não duraria muito. O seu desleixo pungente, a propensão para o sofrimento, a vida que levava, eram tudo formas lentas de suicídio. Dilacerava-se-lhe o coração só de pensar. Odiava Miriam com toda a força da sua determinação por tão subtilmente ter minado a alegria de Paul. Não lhe interessava que não o fizesse por mal. Fazia-o, e ela odiava-a.

Queria tanto que o filho se apaixonasse por uma rapariga à sua altura – educada e forte. Mas ele não olhava para ninguém que considerasse superior. Parecia gostar de Mrs. Dawes. Pelo menos esse sentimento era genuíno. A mãe não se cansava de rezar por ele, para que não se perdesse. Era tudo o que pedia: não pela sua alma ou pela rectidão do seu carácter, mas para que não se perdesse. E, enquanto ele dormia, passava horas a fio a pensar nele e a rezar por ele.

Paul afastou-se de Miriam imperceptivelmente, sem o saber. Arthur só saiu do exército para se casar. O bebé nasceu seis meses após o casamento. Mrs. Morel arranjou-lhe um novo emprego na mesma firma onde trabalhara antes, a ganhar vinte e um xelins por semana. Com a ajuda da mãe de Beatrice, mobilou-lhe uma casinha de dois quartos. Agora estava definitivamente apanhado. Não importava barafustar e espernear, estava bem preso. Andou mal-humorado durante algum tempo, mostrando-se insuportável com a mulher que o amava; não ligava quando o bebé, que era franzino, chorava ou dava preocupações. Fazia à mãe queixas intermináveis, mas ela limitava-se a dizer: «Bem, meu filho, o responsável és tu, tens de aprender a tirar partido da situação.» E, finalmente, ganhou juízo. Agarrou-se ao trabalho, assumiu as suas responsabilidades, compreendeu que pertencia à mulher e ao filho e aprendeu a tirar o melhor partido da situação. Nunca se tinha sentido muito ligado à família, e agora afastava-se de vez.

Os meses iam passando devagar. Através de Clara, Paul tinha-se mais ou menos relacionado com os socialistas, as sufragistas e os sindicalistas de Nottingham. Um dia, uma amiga dele e de Clara, que morava em Bestwood, pediu-lhe que levasse um recado a Mrs. Dawes. Ao fim da tarde, Paul foi até Bluebell Hill, metendo por Sneinton Market, e lá conseguiu encontrar a casa numa ruela empedrada a granito e com passeios de tijolo azul-escuro, rugoso. Um degrau separava a porta da tosca calçada, servindo também para as pessoas limparem os pés e baterem com as botas para sacudirem a lama. A pintura castanha da porta estava tão deteriorada que se via a madeira por baixo da tinta a descascar. Paul ficou na rua, e bateu à porta. Soaram passos pesados e, por cima da sua cabeça, surgiu uma mulher alentada, por volta dos sessenta anos. Ele olhou para ela do passeio. A mulher tinha uma expressão severa.

Mandou-o entrar para a sala, que dava directamente para a rua. Era um quartinho pequeno, abafado e tétrico, com móveis de mogno e descomunais retratos a carvão de gente já falecida. Mrs. Radford saiu da sala com o seu passo imponente, quase marcial. Clara entrou logo a seguir e, ao vê-lo, corou até às orelhas, o que o deixou atrapalhado. Era como se não lhe agradasse que ele a tivesse vindo encontrar no seu ambiente doméstico.

– Parecia-me impossível ser a tua voz – disse ela.

Mas agora, perdido por cem, perdido por mil... e levou-o do mausoléu directamente para a cozinha.

A cozinha era também escura e acanhada, mas encontrava-se atafulhada de rendas brancas. A mãe tinha ido sentar-se de novo junto ao aparador, às voltas com uma emaranhada teia de renda. À sua direita, um monte solto de linha de algodão; à esquerda, tufos e mais tufos de espiguilha de renda; e, à sua frente, sobre o tapete da lareira, a tal teia emaranhada. Os fios encaracolados, puxados do emaranhado de rendas, espalhavam-se por cima do guarda-fogo e pela chaminé. Paul não se atrevia a dar um passo, não fosse tropeçar nos rolos de linha branca.

Em cima da mesa estava uma dobadoura. Havia ainda um maço de cartões castanhos e quadrados para enrolar a renda, uma caixinha de alfinetes e, em cima do sofá, um outro monte de renda.

Havia rendas por todo o lado, e a cozinha era tão escura e quente que fazia sobressair ainda mais a nuvem branca, rendada.

– Já que cá tá, num repare d’eu continuar a trabalhar – disse Mrs. Radford. – Sei que tá tudo atravancado, mas faça o favor de s’assentar.

Clara, muito atrapalhada, encostou à parede uma cadeira, para ele se sentar, em frente aos novelos de brancura, e sentou-se ela no sofá, envergonhada.

– Quer beber uma cerveja preta? – perguntou Mrs. Radford.

– Clara, vai buscar-lhe uma cerveja.

Paul protestou, mas Mrs. Radford insistiu.

– Tá cum ar de quem precisa – disse ela. – Nunca anda com melhores cores do qu’isso?

– É da minha pele, é muito grossa e não deixa ver o sangue à transparência – respondeu ele.

Clara, envergonhada e aborrecida, trouxe-lhe uma garrafa de cerveja e um copo. Paul deitou o líquido preto no copo.

– Bem – disse ele, erguendo o copo –, à nossa!

– Agradecida – disse Mrs. Radford.

Paul bebeu um gole.

– E pode fumar à vontade, desde que num deite fogo à casa – acrescentou Mrs. Radford.

– Obrigado – respondeu Paul.

– Num precisa de m’agradecer – disse ela. – Até vou gostar de sintir o cheirinho do tabaco aqui em casa outra vez. Uma casa só de mulheres é tão triste com’uma casa sem lareira, acho eu. Num sou de querer o meu canto só pra mim. Inté gosto de ver um home a andar por aí... se ele for alguma coisa que se veja.

Clara começou a trabalhar. A dobadoura rodava, chiando mansamente, e a renda branca saltava-lhe por entre os dedos para o cartão. Quando o cartão ficou cheio, ela partiu a espiguilha e, com um alfinete, prendeu a ponta à renda já enrolada. Depois, meteu novo cartão na dobadoura. Paul observava-a. Estava sentada com as costas muito direitas, magnífica. Tinha o pescoço e os braços desnudados. O sangue aflorava-lhe à face, por baixo da orelha, e mantinha a cabeça baixa, de vergonha e humilhação. Os olhos estavam pregados no trabalho. Os seus braços eram de um tom mate e pujantes de vida, comparados com a renda branca. As suas mãos, grandes e bem tratadas, trabalhavam em movimentos cadenciados, como se nada pudesse apressá-las. Ele, sem se aperceber, não tirava os olhos dela. Era a linha do seu pescoço, prolongando-se desde o ombro, quando ela se curvava; era o seu cabelo castanho-escuro; era o movimento dos seus braços resplandecentes.

– A Clara falou-me de si – continuou a mãe. – Trabalha na Jordan, não é? – E continuou a fazer renda sem parar.

– É, sim.

– Inda m’alembra de quando o Thomas Jordan costumava pedir-me caramelos.

– Ah, sim? – disse Paul, sorrindo. – E ele merecia-os?

– Umas vezes sim, outras não... sobretudo para o fim. Ele é dos que levam tudo e num dão nada, isso é qu’ele é... ou, pelo menos, costumava ser.

– Eu acho-o uma pessoa muito decente.

– Bom... folgo em saber.

Mrs. Radford olhava Paul sem pestanejar. Havia nela uma determinação que lhe agradava. A cara estava flácida, mas os olhos eram calmos, e havia nela um vigor que refutava a velhice, fazendo as rugas e as peles parecerem um mero anacronismo. Tinha a força e o sangue-frio de uma mulher na pujança da vida. Continuou a fazer renda com movimentos lentos e muita dignidade. A fofa teia amontoava-se-lhe inevitavelmente no avental, tombando depois pouco a pouco para o chão, ao seu lado. Os braços eram bem torneados, mas luzidios e amarelados, de marfim velho, e não tinham aquele tom mate que tornava, a seu ver, tão fascinantes os de Clara.

– Anda atão c’a Miriam Leivers? – perguntou a mãe de Clara.

– Bem... – disse ele.

– É boa rapariga – prosseguiu Mrs. Radford. – Boa rapariga, mas um bocado fedúncia cá prò meu gosto.

– Sim, talvez... – concordou Paul.

– Só fica satisfeita quando tiver asas pra poder voar por cima da cabeça de toda a gente – disse ela.

Clara interrompeu-os, e Paul deu-lhe o recado que o levara lá. Ela falava com ele com humildade, vendo-se surpreendida no seu antro de miséria. Ao vê-la assim, humilde, era como se ele a esperasse, ansioso.

– Gostas de dobar? – perguntou Paul.

– O que é que uma mulher há-de fazer? – respondeu ela amargamente.

– É cansativo?

– Mais ou menos. E não o é todo o trabalho feminino? Essa é outra das partidas que os homens nos pregaram, desde que conquistámos o nosso lugar no mundo do trabalho.

– Atão... num fales mal dos homes – disse a mãe. – S’as mulheres num fossem umas parvas, os homes num eram tão maus, é o qu’eu digo... Olha que nenhum home me tratou mal que não levasse o troco... Mas que são uns danados, lá isso são, num adianta negar.

– Mas boas pessoas, não concorda? – perguntou Paul.

– Bem... são um bocado diferentes das mulheres – disse ela.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – perguntou ele a Clara.

– Acho que não – respondeu ela.

– Gostava, pois! – exclamou a mãe. – Ficava toda contente se voltasse. Num lhe ligue. Ela é toda cheia de nove horas, mas qualquer dia inda vai morrer de fome.

Clara passava vergonhas com a mãe. Até Paul sentia os olhos abrirem-se-lhe de espanto. Será que não devia mesmo ligar aos remoques de Clara? Ela trabalhava com afinco. E ele sentiu um arrepio de prazer só de pensar que ela podia precisar da sua ajuda. Parecia tão carente e privada de tanta coisa. O seu braço, que não fora feito para se amarrar a um mecanismo, movia-se mecanicamente; e a cabeça, que não fora feita para andar curvada, curvava-se sobre a renda. Parecia presa à dobadoura, entre os desperdícios de uma vida. Era muito duro para ela ver-se dispensada pela vida, como se já não tivesse préstimo. Não admira que protestasse tanto.

Clara acompanhou-o à porta. Ele ficou parado na ruela miserável, a olhar para ela. Era tão soberba na figura e no porte que fazia lembrar Juno destronada. De pé, na soleira da porta, fechava os olhos à rua e à miséria que a rodeava.

– Vais a Hucknall com Mrs. Hodgkinson?

Paul dizia coisas sem sentido, de olhos postos nela. Os olhos cinzentos de Clara encontraram finalmente os seus. Estavam mudos de humilhação, contritos, com uma espécie de submissão de escrava. Ele ficou surpreendido, sem saber o que fazer. Sempre a tinha imaginado altiva e poderosa.

Quando dali saiu, só lhe apetecia fugir. Dirigiu-se para a estação, como um sonâmbulo, e chegou a casa sem consciência de já não estar na rua dela.

Estava convencido de que Susan, a supervisora da Espiral, se ia casar, e no dia seguinte perguntou-lho.

– Diz-me uma coisa, Susan, ouvi dizer que te vais casar. É verdade?

Susan corou.

– Quem te disse? – perguntou ela.

– Ninguém. Apenas ouvi dizer que estavas a pensar...

– Lá isso estou... Mas não precisas de contar a ninguém. E, ainda por cima, quem me dera não estar...!

– Julgas que eu acredito nisso, Susan?

– Pois podes acreditar. Antes queria mil vezes ficar como estou.

Paul estava chocado.

– Porquê, Susan?

A rapariga estava ruborizada e fulminava-o com o olhar.

– Porque sim!

– E tens mesmo de casar?

Em resposta, ela limitou-se a olhar para ele. Paul tinha uma candura e uma gentileza que faziam as mulheres confiar nele. Compreendeu o que ela queria dizer.

– Ah, desculpa – disse ele. Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

– Mas verás que tudo vai correr bem. Tenta ver as coisas pelo lado melhor – disse ele, melancólico.

– Nem posso fazer outra coisa.

– Podes sim, podes dar cabo da tua vida. Esforça-te por seres feliz.

Paul arranjou novo pretexto para ir a casa de Clara.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – disse ele.

Ela pousou o trabalho, apoiou os braços belíssimos em cima da mesa e fitou-o sem responder. Pouco a pouco, um rubor subiu-lhe às faces.

– Porquê? – perguntou.

Paul sentiu-se constrangido.

– Bem... É que a Susan está a pensar em ir-se embora. Clara continuou a dobar. A espiguilha branca pulava e saltava para o cartão. Ele aguardou. Sem levantar a cabeça, ela disse por fim, numa voz desusadamente baixa:

– Falaste com alguém sobre o assunto?

– Nem uma palavra... Só contigo.

Seguiu-se novo e longo silêncio.

– Quando puserem o anúncio, concorro – disse ela.

– Tens de concorrer antes. Eu digo-te quando.

Ela continuou a fazer girar a dobadoura e não o contrariou.

Clara voltou para a Jordan. Algumas das funcionárias mais antigas, entre elas Fanny, lembravam-se dela de outros tempos e não guardavam boas memórias. Clara sempre fora muito altiva, uma mulher reservada e superior. Nunca se misturava com as colegas e sempre que tinha oportunidade de as criticar, fazia-o com frieza e extrema delicadeza, o que as fazia sentirem-se mais insultadas do que agastadas. Para com Fanny, a pobre corcunda hipersensível, Clara fora sempre extremamente amável e gentil, o que fazia Fanny chorar ainda mais do que as línguas grosseiras das outras supervisoras.


CONTINUA

Era ali, naquele momento, que ela se alimentava de vida para toda uma semana. Ele mandou-a copiar o poema Le Balcon, de Baudelaire e, em seguida, leu-o para ela ouvir. A voz dele era suave e acariciante, mas nos crescendos tornava-se brutal. Paul tinha um modo apaixonado e, ao mesmo tempo, amargurado de arreganhar os lábios e mostrar os dentes sempre que as palavras o levavam ao rubro. E assim fazia agora, fazendo sentir a Miriam que ele a estava a espezinhar. Ela nem se atrevia a olhar para ele, mantendo-se sentada e de cabeça baixa. Não entendia por que razão ele se deixava arrebatar por tão tumultuosas fúrias, e isso deixava-a desfeita. Ainda por cima, nem sequer gostava muito de Baudelaire... nem de Verlaine.


«Olha-a, a cantar pelos campos,

Filha solitária das montanhas...»


Isto sim, alimentava-lhe a alma... tal como a «Linda Inês». E também:


«Caía bela a noite, doce e pura,

Em suspiros sagrados e serenos, como freira...»


Estes versos, sim, eram como ela. E ele, ali à sua frente, arrancando da garganta, em grito rouco:


«Tu te rappelleras la beauté dês caresses.»3


O poema terminou e Paul tirou os pães do forno, metendo-os no alguidar, os queimados no fundo e os bons por cima. A carcaça ressequida continuava na copa embrulhada num pano húmido.

– A Mater não precisa de saber até amanhã de manhã – disse ele. – Já não se vai zangar tanto como esta noite.

Miriam foi à estante e viu as cartas e postais que ele tinha recebido, e quais os livros que lá tinha, e tirou um em que ele se mostrara interessado. Depois, Paul desligou o gás e saíram. Paul nem se preocupou em fechar a porta à chave.

Quando voltou já faltava um quarto para as onze. A mãe estava sentada na cadeira de baloiço e Annie num banquinho junto da lareira, com o cabelo a cair-lhe pelas costas abaixo e os cotovelos apoiados nos joelhos, taciturna. Em cima da mesa, a carcaça da discórdia, já desembrulhada. Paul entrou ofegante. Ninguém abriu a boca. A mãe lia a gazeta local. Ele despiu o casaco e foi sentar-se no sofá. A mãe chegou-se para o lado com brusquidão, deixando-o passar. Ninguém abria a boca. Ele já não sabia como havia de estar. Durante alguns minutos, fingiu ler um bocado do jornal que encontrou em cima da mesa. Mas depois disse:

– Esqueci-me daquele pão no forno, mãe.

Nenhuma das mulheres lhe respondeu.

– Bem – continuou ele –, são só dois dinheiros e meio. Se quiser, eu pago.

Amuado, pôs três moedas em cima da mesa e empurrou-as na direcção da mãe. Ela voltou a cabeça para o outro lado. A boca continuava crispada.

– Pois é – disse Annie –, tu nem fazes ideia de como a mãe se sente mal!

E a rapariga continuou carrancuda a olhar para o lume.

– Sente-se mal porquê? – perguntou Paul, no seu tom autoritário.

– Essa agora – disse Annie. – Viu-se aflita para chegar a casa.

Paul olhou com atenção para a mãe. Parecia de facto doente.

– Viu-se aflita para chegar a casa porquê? – perguntou ele, ainda agreste. A irmã não respondeu.

– Vim encontrá-la aqui sentada, branca como a cera – disse Annie, com lágrimas na voz.

– Diga lá porque foi! – insistiu Paul, já de testa franzida e olhos empolgadamente dilatados.

– Era o suficiente para deixar qualquer pessoa doente – disse Mrs. Morel. – Carregar nos braços com as compras todas... a carne, os legumes e as cortinas...

– Para que carregou com tudo? Não era preciso.

– E então quem é que carregava?

– Mandava a Annie ir buscar a carne.

– Claro que eu tinha ido buscar a carne. Mas como é que eu podia adivinhar? Tu andavas a passear com a Miriam, em vez de estares em casa quando a mãe chegou.

– Mas o que é que lhe aconteceu? – perguntou Paul à mãe.

– Deve ser o coração – respondeu ela. De facto, tinha os lábios azulados.

– E já tinha sentido isso alguma vez?

– Já... e até mais de uma vez.

– Então porque não me disse, e porque é que não foi ao médico?

Mrs. Morel mexeu-se na cadeira, irritada com a prelecção.

– Tu nunca reparas em nada – disse Annie. – Só pensas em andar com a Miriam.

– Ah, sim? E tu e o Leonard... não é a mesma coisa?

– Eu cheguei a casa faltava um quarto para as dez.

Seguiram-se uns minutos de silêncio.

– Nunca imaginei que ela te deixasse tão distraído, ao ponto de queimares uma fornada inteira de pão – disse Mrs. Morel com azedume.

– A Beatrice também cá estava.

– Acredito. Mas nós sabemos porque é que o pão se queimou.

– E porque foi? – disse ele intempestivo.

– Porque tu estavas todo entretido com a Miriam – replicou Mrs. Morel acalorada.

– Pois fique sabendo que não foi nada por isso! – ripostou ele, sacudido.

Estava desgostoso e infeliz. Pegou no jornal e começou a ler. Annie, com a blusa já desabotoada e duas longas tranças, foi para cima, para a cama, dando-lhe secamente as boas-noites.

Paul continuou a fingir que estava a ler. Por um lado, sabia que a mãe lhe queria pregar um sermão. Mas, por outro, queria saber o que a pusera naquele estado, e estava preocupado. Por isso, em vez de ir a correr para a cama, como era sua vontade, ficou à espera. Sentia-se a tensão no silêncio. O tiquetaque do relógio soava forte.

– O melhor é ires deitar-te antes de o teu pai chegar – disse Mrs. Morel, com rispidez. – E se quiseres comer alguma coisa, tens de ir buscá-la.

– Não quero nada.

A mãe costumava preparar-lhe qualquer coisa para a ceia às sextas-feiras à noite, que era a noite de luxo dos mineiros. Mas ele estava demasiado irritado para ir buscar a ceia à despensa, e ela sentiu-se insultada.

– Se eu quisesse que fosses a Selby numa sexta-feira à noite, já estou a imaginar a cena – disse Mrs. Morel. – Mas quando é ela a vir buscar-te, nem sabes o que é cansaço. E já nem comes nem bebes.

– Não posso deixá-la voltar sozinha.

– Ah, não podes... E então para que é que ela vem?

– Não sou eu que lhe peço.

– Ela não vinha se tu não a quisesses cá...

– E se eu a quiser...? Hem? – repontou ele.

– Nada a opor, se fosse sensato ou razoável. Mas calcorrear milhas e milhas por cima dum lamaçal e voltar à meia-noite, para quem tem de ir logo pela manhã para Nottingham...

– E, se não tivesse de ir, para si era a mesma coisa.

– Pois era, porque isto não faz sentido nenhum. Ela é assim tão fascinante que tenhas de andar atrás dela para todo o lado? – perguntou Mrs. Morel, com acerado sarcasmo, continuando sentada, com cara de poucos amigos, esfregando o cetim preto do avental em movimentos ritmadamente repetidos. Aquele motu-contínuo quase enlouquecia Paul.

– Eu gosto muito dela – disse ele – mas...

– Gostas então dela! – disse Mrs. Morel, no mesmo tom mordaz. – Pois a mim parece-me que não gostas de mais nada nem de mais ninguém. Para ti, agora, não existe mais ninguém: nem eu, nem a Annie... nada.

– Que disparate, mãe... sabe bem que eu não amo a Miriam... eu... posso garantir-lhe que não a amo... ela não anda de braço dado comigo nem nada, porque eu não quero.

– Então porque é que vais a correr tantas vezes para ao pé dela?

– Porque gosto muito de falar com ela... Nunca disse que não gostava. Mas não a amo.

– E não tens mais ninguém com quem falar?

– Não acerca das coisas de que nós falamos. Há muitas coisas por que a mãe não se interessa e que...

– Que coisas...?

Mrs. Morel estava tão exaltada que Paul começou a gaguejar.

– Ora essa... pintura... livros... A mãe, por exemplo, não gosta de Herbert Spencer.

– Não – foi a resposta concisa. – E tu também não vais gostar, quando tiveres a minha idade.

– Está bem, mas gosto agora... e a Miriam também...

– E como é que sabes – atalhou Mrs. Morel em tom de desafio – que eu não gosto. Já experimentaste perguntar-me?

– Mas eu sei que não gosta, mãe, sabe bem que não lhe interessa discutir se um quadro é ou não decorativo... é-lhe indiferente qual o seu estilo.

– Como sabes que não me interessa... já experimentaste perguntar-me? Alguma vez conversas comigo sobre essas coisas, só para experimentar?

– Mas a mãe sabe bem que para si isso não conta, sabe bem que não.

– Então o que é, diz lá... o que é que conta para mim? – desferiu ela.

Paul franziu a testa, magoado.

– A senhora é velha, mãe, e nós somos novos.

O que ele queria dizer era que os interesses da idade dela não eram idênticos aos da sua. Mas mal acabou a frase percebeu que tinha dito o que não devia.

– Sim, sei muito bem... sou uma velha! E por isso mesmo devo manter-me afastada... já não tenho nada a ver contigo. Tu só me queres para te servir de criada... o resto é com a Miriam.

Ele já não aguentava mais. Instintivamente, apercebeu-se de que ele era toda a vida dela. E, bem vistas as coisas, ela era para ele a coisa mais importante, a única verdade suprema.

– Sabe bem que não é assim, mãe... sabe bem que não é.

O grito dele comoveu-a.

– Pois olha que parece mesmo – disse ela, deixando de certa forma de lado o desespero.

– Não, mãe... na verdade, eu não a amo. Converso com ela... mas é para a nossa casa, para ao pé de si que eu quero vir.

Paul, já sem o colarinho e a gravata, levantou-se para se ir deitar. Quando ia a dar um beijo à mãe, ela passou-lhe os braços em volta do pescoço, escondeu a cara no seu ombro e pôs-se a choramingar, com uma voz dorida, tão pouco habitual nela que o fez crispar-se de agonia.

– Eu já não aguento mais. Uma outra mulher talvez... mas ela não... ela não me daria espaço algum... nem um bocadinho...

E imediatamente sentiu que odiava Miriam amargamente.

– E eu nunca... tu sabes, Paul... eu nunca tive um marido... não um de verdade...

Ele acariciou-lhe os cabelos e os seus lábios afloraram o pescoço dela.

– E ela esforça-se tanto para te afastar de mim... ela não é como as outras raparigas.

– Bem, mãe, eu não a amo – murmurou ele, baixando a cabeça e escondendo os olhos no ombro dela, muito infeliz. A mãe deu-lhe um beijo ardente e longo.

– Meu filho! – disse, com a voz trémula de amor. E ele, sem se aperceber, acariciou-lhe suavemente o rosto.

– Pronto – disse a mãe. – Agora vai deitar-te. Senão amanhã de manhã acordas muito cansado.

Enquanto falava, Mrs. Morel sentiu o marido entrar.

– Vem aí o teu pai... vá, já para a cama... – Subitamente, olhou para o filho quase a medo. – Talvez eu esteja a ser egoísta. Se a queres, meu filho, fica com ela.

A mãe estava a comportar-se de uma forma muito estranha, pensou Paul, beijando-a, ainda a tremer.

– Oh, mãe! – disse ele meigamente.

Morel entrou aos tropeções. Trazia o chapéu tombado sobre o canto do olho. Ao transpor a porta, perdeu o equilíbrio. – Outra vez a fazeres das tuas? – disse ele, acintosamente.

As emoções de Mrs. Morel transformaram-se instantaneamente em ódio por aquele bêbado que viera intrometer-se tão intempestivamente.

– Pelo menos, ele está sóbrio – disse ela.

– Hum... hum...! Hum... hum! – fez ele, cinicamente.

Foi ao corredor e pendurou o chapéu e o casaco. Em seguida, ouviram-no descer os três degraus da despensa. Quando voltou trazia na mão uma fatia de empadão de carne de porco. Era o que Mrs. Morel tinha comprado para o filho.

– Isso não é para ti. Se não me podes dar mais de vinte e cinco xelins, certamente não te vou comprar empadão de carne de porco, para tu te regalares depois de teres enchido a barriga de cerveja.

– O quê?... O quê? – rosnou Morel, a cambalear e, num repente, atirou o empadão para a lareira, num acesso de mau génio e mesquinhez.

Paul pôs-se de pé num salto.

– Deite fora o que é seu! – gritou.

– O quê?... O quê? – berrou Morel de imediato, dando um salto atrás e cerrando os punhos. – Vais ver como elas mordem... meu menino!

– Muito bem! – disse Paul, cinicamente, deitando a cabeça de lado. – Então vamos lá ver...!

O que mais gostaria naquele momento era de poder bater em qualquer coisa, não importava o quê. Morel estava semidobrado, de punhos em riste, pronto a atacar.

O jovem estava de pé, com um sorriso nos lábios.

– Zás! – silvou o pai, desferindo um soco no ar com um gesto largo, rente à cara do filho. Apesar de tão próximo, não se atreveu a tocar-lhe realmente, passando-lhe a uma escassa polegada de distância.

– Isso! – disse Paul, de olhos pregados na boca do pai, onde a todo o momento o seu punho acertaria. Estava louco por dar aquele soco, mas ouviu um vago gemido atrás de si. A mãe estava lívida de morte e com a boca toda roxa. Morel saltitava, preparando novo ataque.

– Pai! – disse Paul, bem alto para lhe chamar a atenção.

Morel parou, assustado.

– Mãe! – gemeu o rapaz. – Mãe!

Ela começou a lutar contra si própria. Os seus olhos muito abertos observavam-no, apesar de não se poder mexer. A pouco e pouco ia voltando a si. O filho deitou-a no sofá e foi a correr buscar um pouco de uísque, de que ela por fim bebeu alguns golinhos. As lágrimas rolavam-lhe pela cara abaixo. Enquanto esteve ajoelhado ao lado da mãe não chorou, mas as lágrimas irromperam logo a seguir. Morel, sentado do outro lado da sala com os cotovelos apoiados nos joelhos, fuzilava o filho com o olhar.

– Qu’é qu’ela tem? – perguntou.

– Desmaiou! – respondeu Paul.

– Hum!

O homem mais velho começou a desapertar os atacadores das botas. Depois, foi aos tombos para o quarto. Tinha travado a sua derradeira luta naquela casa.

Paul estava ajoelhado ao lado da mãe, esfregando-lhe as mãos.

– Não fique assim, mãe... não fique assim! – não se cansava ele de repetir.

– Isto não é nada, meu filho – murmurou ela.

Finalmente, Paul levantou-se, foi buscar um grande bocado de carvão e abafou o borralho. Depois arrumou a sala, colocou tudo nos seus devidos lugares, pôs a mesa para o pequeno-almoço e foi buscar a palmatória da mãe.

– Consegue ir para a cama sozinha, mãe?

– Consigo, sim... Eu vou.

– Durma com a Annie, mãe, com ele não.

– Não... vou dormir na minha cama.

– Não durma com ele, mãe.

– Vou dormir na minha cama.

Mrs. Morel levantou-se e Paul desligou o gás, subindo depois a escada atrás dela, com a vela. Ao chegarem ao patamar, ele beijou-a ternamente.

– Boa noite, mãe.

– Boa noite – respondeu ela.

Ele enfiou a cabeça na almofada, num acesso de desespero. E, no entanto, sentia paz algures nos recônditos da alma, pois continuava a amar a mãe acima de todas as coisas. Era a paz amarga da resignação.

Os esforços do pai no dia seguinte para o cativar foram para ele uma verdadeira humilhação.

E todos tentaram esquecer o incidente.

2 «Esta manhã os pássaros acordaram-me. Ainda não era dia. Mas a janelinha do meu quarto clareou e logo ficou dourada, e todos os pássaros do bosque irromperam num canto vivo e sonoro.
E a aurora estremeceu. Tinha sonhado contigo. Será que também contemplas a aurora?

Os pássaros acordam-me quase todas as manhãs, e há sempre uma nota de terror no grito dos tordos. Está tão claro...» (N. da T.)

3 «Recordarás a beleza das carícias.» (N. da T.)


IX

A DERROTA DE MIRIAM

PAUL sentia-se descontente consigo mesmo e com tudo o que o rodeava. O seu amor mais profundo dedicava-o à mãe. Não podia suportar a sensação de a ter magoado ou de algum modo ferido o seu amor por ela. A Primavera já se anunciava e, com ela, uma batalha entre ele e Miriam. Este ano Paul tinha muitas queixas contra Miriam e ela estava vagamente consciente desse facto. O velho sentimento que experimentara ao rezar, e lhe segredara que teria de se sacrificar a este amor, misturava-se em todas as suas emoções. No fundo, Miriam não acreditava poder algum dia vir a ter Paul para si. Em primeiro lugar, não acreditava em si mesma: duvidava poder vir a ser o que ele exigiria que ela fosse. Por certo nunca se imaginara a viver a seu lado uma vida de eterna felicidade. O futuro prefigurava-lhe tragédia, dor e sacrifício. E, se no sacrifício era orgulhosa, na renúncia ela era forte; mas não confiava em si mesma para suportar a vida do dia-a-dia. Sentia-se preparada para gestos grandiosos e profundos, gestos dignos de tragédia. Não podia era confiar na sua capacidade de lidar com a pequenez do quotidiano.

As férias da Páscoa iniciaram-se num ambiente feliz. Paul mostrava-se franco, como na realidade o era. Contudo, Miriam sentia que algo iria perturbar aquela paz. No domingo à tarde, deteve-se à janela do seu quarto, olhando os carvalhos do bosque, em cuja folhagem se emaranhavam uns ténues raios de luz sob o resplandecente céu da tarde. Rosetas de folhas de madressilva verde-cinza pendiam frente à janela, algumas, pensou, já em botão. Era Primavera, tempo que Miriam amava e temia ao mesmo tempo.

Ouvindo o ranger do portão, ficou na expectativa. Estava um dia cinzento e luminoso. Paul entrou no pátio com a bicicleta, que reluzia à medida que ele andava. Era hábito tocar a campainha e sorrir em direcção à casa. Hoje, porém, caminhava de lábios cerrados, numa atitude fria e cruel que tinha algo de desprezo e indolência. Ela já o conhecia muito bem e, pela expressão penetrante e reservada do seu rosto jovial, sabia dizer o que se passava no seu íntimo. Havia um tal rigor de frieza no modo como colocou a bicicleta no lugar que o coração de Miriam soçobrou.

Desceu ao andar de baixo, nervosa. Vestia uma blusa nova de malha que, achava ela, lhe assentava muito bem. Tinha uma gola alta, debruada com um folho que lhe lembrava a Rainha Mary da Escócia e lhe dava, pensava ela, um ar encantadoramente feminino e muito digno. Com vinte anos, possuía uns seios bem desenvolvidos e formas voluptuosas. O seu rosto era ainda como uma máscara suave e rica, inalterável. Mas os seus olhos, quando os erguia, eram maravilhosos. Ela tinha medo dele. Ele iria reparar na sua blusa nova.

Paul mostrava-se de disposição dura e irónica, e divertia a família com a descrição de um sermão proferido na Capela Metodista Primitiva por um dos mais conhecidos pregadores da seita. Estava sentado à cabeceira da mesa com o seu rosto versátil e os seus olhos, que conseguiam ser tão belos, brilhando ternamente ou dançando risonhos, assumiam várias expressões, numa imitação das diversas pessoas que caricaturava. A sua veia jocosa sempre a magoara – era demasiado próxima da realidade. Paul era demasiado inteligente e cruel e ela sentia que, quando o seu olhar se enchia, como agora, de feroz ódio trocista, ele não poupava ninguém, nem mesmo a sua própria pessoa. Mas Mrs. Leivers enxugava os olhos marejados de lágrimas, de tanto rir, e Mr. Leivers, já desperto da sua sesta dominical, coçava a cabeça divertido. Os três irmãos, sentados em atitudes desleixadas e sonolentas e em mangas de camisa, soltavam uma gargalhada de vez em quando. O que a família mais adorava era, acima de tudo, uma boa caricatura.

Paul não prestou atenção a Miriam. Mais tarde, ela percebeu que ele tinha reparado na sua blusa nova, viu que o artista a aprovara, mas isso não merecera da sua parte o mínimo lampejo de ternura. Estava nervosa e mal conseguia chegar às chávenas de chá nas prateleiras do armário.

Quando os homens saíram para a ordenha, ousou dirigir-se-lhe pessoalmente:

– Vieste atrasado – disse.

– Vim? – perguntou ele.

Por um momento fez-se silêncio.

– Foi difícil vires a pedalar até aqui? – perguntou ela.

– Nem notei.

Ela continuou a pôr a mesa rapidamente. Quando acabou, disse-lhe:

– O chá só é servido dentro de alguns minutos. Queres vir ver os narcisos?

Ele ergueu-se, sem responder. Dirigiram-se para o jardim das traseiras, sob as ameixoeiras em flor. As colinas e o céu estavam límpidos e frios. Tudo parecia lavado, um pouco agreste talvez. Miriam lançou um olhar a Paul. Ele estava pálido e impassível. A ela parecia-lhe uma crueldade que aqueles olhos e sobrancelhas que ela tanto amava pudessem feri-la tanto.

– O vento cansou-te? – perguntou.

Detectou nele uma certa fadiga.

– Não, acho que não – respondeu ele.

– Deve ser cansativo na estrada... o vento sopra tão forte.

– Pelas nuvens podes ver que é vento sudoeste: até me ajudou a chegar aqui.

– Sabes que eu não ando de bicicleta, por isso não entendo o que queres dizer – murmurou ela.

– E é preciso andar de bicicleta para saber isso? – replicou ele.

Miriam pensou que o seu sarcasmo era desnecessário. Mantiveram-se em silêncio. Em redor do relvado maltratado com a erva muito alta situado nas traseiras da casa, havia uma sebe de espinheiros sob a qual os narcisos se erguiam dos seus ninhos de folhas verde-cinza. As faces das flores estavam esverdeadas de frio. Mas, mesmo assim, algumas haviam já florescido e o seu tom dourado agitava-se e resplandecia. Miriam ajoelhou-se diante de um ramalhete, tomou nas mãos um narciso de ar silvestre, voltou para si a sua face dourada e inclinou-se, acariciando-o com a boca, as faces e a fronte. Paul permaneceu de pé, ligeiramente afastado, de mãos nos bolsos, observando-a. Uma após outra, ela virou para ele as faces das flores amarelas, recém-abertas, em atitude suplicante, afagando-as com veemência.

– Não são magníficos? – murmurou.

– Magníficos?... Não será um pouco de mais?... São bonitos!

Ela inclinou-se novamente para as suas flores, perante esta censura à sua atitude de adoração. Ele ficou a vê-la adular e saborear as flores com beijos fervorosos.

– Porque tens de estar sempre a acariciar as coisas? – recriminou-a, irritado.

– Gosto de lhes tocar – replicou ela, magoada.

– Será que não podes gostar das coisas sem teres de te agarrar a elas como se quisesses arrancar-lhes o coração? Porque não tens um pouco mais de domínio ou reserva, ou o que quer que seja?

Ela ergueu para ele um olhar cheio de dor, continuando depois a pressionar os lábios, lentamente, contra uma flor ondulada. O seu aroma, quando o sentiu, era tão mais delicado do que Paul que quase a fez chorar.

– Com a tua adulação, retiras a alma às coisas – disse ele. – Eu nunca seria capaz de uma adulação... Em qualquer circunstância, seria sempre directo.

Paul não sabia o que dizia. Estas coisas saíam-lhe mecanicamente. Ela olhou para ele. O seu corpo parecia uma arma, firme e duro contra ela.

– Tu estás sempre a suplicar às coisas que te amem – disse ele – como se fosses uma pedinte de amor. Até as flores tu tens de acariciar...

Ritmadamente, Miriam agitava e amachucava a flor com a boca, inalando o perfume que daí em diante a faria estremecer sempre que penetrasse nas suas narinas.

– Tu não queres amar... a tua súplica eterna e anormal é seres amada. Não és positiva, és negativa. Absorves, absorves, como se necessitasses de te encher de amor por teres algures uma insuficiência.

Miriam estava aturdida com a crueldade de Paul, e não o escutava. Ele não tinha a mínima ideia do que estava a dizer. Era como se a sua alma inquieta e torturada, inflamada por uma paixão frustrada, fizesse jorrar aquelas palavras como centelhas brotando da electricidade. Ela não entendia nada do que ele dizia. Deixou-se ficar sentada, esmagada sob a sua crueldade e o seu ódio por ela. Nunca entendia as coisas num lampejo. Era assim com tudo, cismava e tornava a cismar.

Depois do chá, ele ficou a conversar com Edgar e os outros irmãos, não prestando atenção a Miriam. Ela, infinitamente infeliz com esta distância procurada, esperou por ele. Por fim, ele cedeu e veio ao seu encontro. Ela estava determinada a descobrir a origem do seu estado de espírito. Para ela, tudo aquilo não passava de um estado de espírito.

– Vamos passear um pouco pelo bosque? – sugeriu, sabendo que ele nunca recusava um pedido directo.

Desceram em direcção à coelheira. A meio do caminho passaram por uma armadilha, uma pequena cerca em forma de ferradura, feita com galhos de abeto entrelaçados, onde se exibiam, como isca, as vísceras de um coelho. Paul lançou-lhe um olhar, franzindo o sobrolho. Ela chamou-lhe a atenção.

– É terrível, não é? – perguntou.

– Não sei! Será pior que os dentes de uma doninha cravados no pescoço de um coelho? Ou uma doninha ou muitos coelhos. Uma das coisas vai ter de desaparecer!

Para Paul estava a ser difícil enfrentar a face amarga da vida. Miriam sentiu pena dele.

– Vamos para dentro – disse Paul. – Não me apetece andar cá fora.

Passaram pela árvore dos lilases, cujos rebentos das folhas cor de bronze principiavam agora a abrir. Apenas um fragmento restava do palheiro, um monumento quadrado e castanho, como um pilar de pedra. No meio, ainda lá perdurava uma pequena meda de feno da última ceifa.

– Sentemo-nos aqui por um minuto – pediu Miriam.

Ele sentou-se, contrariado, apoiando as costas ao sólido muro de feno. Diante deles, estendia-se o anfiteatro de colinas arredondadas, incandescente à luz do crepúsculo, as pequenas quintas brancas destacando-se na paisagem, os prados dourados, os bosques sombrios e contudo luminosos, as copas das árvores sobrepostas a outras copas de árvores, distintas na distância. A tarde clareara e o oriente suave tingia-se agora de um clarão magenta sob o qual a terra permanecia imóvel e pródiga.

– Não é uma beleza? – murmurou ela suavemente.

Mas ele limitou-se a franzir a testa, mal-humorado. Naquele momento, preferia que tudo fosse feio.

Subitamente, um grande cão veio ter com eles em louca correria, de boca escancarada, levantou as patas dianteiras e colocou-as nos ombros do jovem, lambendo-lhe o rosto. Paul recuou, rindo. Bill era um grande alívio para ele. Afastou o cão, mas este voltou, saltitante.

– Sai daqui – ordenou o rapaz. – Vê lá se queres apanhar.

Mas o cão não estava disposto a desistir facilmente. Então, Paul travou um pequena batalha com o animal, arremessando o pobre Bill para longe, apenas conseguindo contudo fazê-lo tropeçar e voltar à carga violentamente, excitadíssimo. Lutaram os dois, o homem rindo contrafeito, o cão todo ele disponibilidade. Miriam observava-os. Havia algo de patético no homem. Como ele desejava ardentemente amar e ser terno! O modo rude como brincava com o cão era realmente adorável. Paul levantou-se, ofegante de felicidade, os olhos castanhos rolando na cara branca, e de novo se deixou cair pesadamente. O animal adorava Paul. O rapaz lançou-lhe um olhar severo.

– Bill, já chega de brincadeira.

Mas o cão deixou-se ficar com as duas pesadas patas, que tremiam de carinho, assentes na sua coxa, mostrando uma língua ro-sada. O rapaz recuou.

– Não – disse. – Não... já chega.

E logo o cão se afastou, contente por variar de divertimento.

Paul continuou a olhar fixamente para as colinas, cuja beleza impassível invejava. Queria sair dali e ir andar de bicicleta com Edgar. No entanto, não tinha coragem de deixar Miriam.

– Porque estás triste? – perguntou ela, submissa.

– Não estou triste, porque havia de estar? – retorquiu ele. – Estou apenas normal.

Ela perguntava-se por que razão ele sempre afirmava estar normal quando se mostrava desagradável.

– Mas... afinal o que se passa? – perguntou, aliciando-o suavemente.

– Nada!

– Não! – murmurou ela.

Ele pegou num pau e começou a golpear a terra.

– É melhor que não digas nada – disse ele.

– Mas eu quero saber – respondeu ela.

Ele riu-se, ressentido.

– Tu queres sempre saber tudo.

– Não és leal para comigo – murmurou ela.

Ele feriu o solo vezes sem conta com o pau afiado, desprendendo pequenos torrões de terra, como se tomado por uma febre de irritação. Delicada e firmemente, ela pousou a mão sobre o seu pulso.

– Não faças isso! – pediu. – Deita isso fora.

Ele atirou o pau para cima das groselheiras e recostou-se. Já estava recomposto.

– Que se passa? – perguntou ela com suavidade.

Ele manteve-se imperturbável. Apenas o seu olhar vivia intensamente, repleto de tormento.

– Sabes – disse por fim, bastante a custo – sabes... era melhor rompermos a nossa ligação.

Era o que ela temia. Subitamente, tudo pareceu escurecer diante dos seus olhos.

– Porquê? – murmurou. – Que aconteceu?

– Não aconteceu nada... só que temos de ver o terreno que pisamos. Não vale a pena...

Ela esperou em silêncio, tristemente, cheia de paciência. Não adiantava ser impaciente com ele. De qualquer modo, ele dir-lhe-ia agora o que o afligia.

– Concordámos em ser amigos – prosseguiu ele, numa voz monótona e aborrecida. – Quantas vezes concordámos em ser amigos! E, no entanto, as coisas não param por aí, nem chegam a nenhum outro lado.

Paul calou-se. Miriam matutava. Que quereria ele dizer? Estava tão cansado. Havia algo que não queria admitir. Contudo, ela devia ser paciente.

– Eu só posso dar-te amizade... é tudo de que sou capaz... é uma falha na minha maneira de ser. As coisas pesam só para um lado... e eu odeio uma balança desequilibrada... vamos acabar com isto.

Havia um fervor de fúria nas suas últimas frases. O que ele queria dizer é que ela o amava mais a ele do que ele a ela. Talvez não conseguisse amá-la. Talvez ela não possuísse o que ele desejava. Esta falta de confiança em si mesma era o fundamento mais profundo da alma de Miriam. Tão profundo que ela não ousava entendê-lo, nem tão-pouco admiti-lo. Talvez lhe faltasse qualquer coisa. Como uma vergonha infinitamente subtil, esse sentimento sempre a fazia recuar. Se assim fosse, ela passaria sem ele. Nunca se permitiria desejá-lo. Limitar-se-ia a observar.

– Mas o que aconteceu? – perguntou.

– Nada... tinha tudo isto guardado dentro de mim... e só saiu agora. Ficamos sempre assim ao aproximarmo-nos da Páscoa.

Paul humilhou-se tão despojadamente que Miriam sentiu pena. Ela, pelo menos, nunca se tinha deixado cair de um modo tão deplorável. No fim de contas, era ele quem saía mais duramente humilhado.

– Que queres fazer? – perguntou ela.

– Bem... acho que não devo vir aqui tantas vezes... só isso. Porque deveria eu monopolizar-te, quando não sou... Bem vês, no que te diz respeito sou muito incompleto...

Ele estava a dizer-lhe que não a amava e, portanto, deveria dar-lhe uma oportunidade com outro homem. Que tolo e cego e vergonhosamente desajeitado ele era! Que lhe importavam a ela os outros homens! Que importância tinham! Mas ele, ah, ela amava a sua alma. Seria ele incompleto em alguma coisa? Talvez fosse.

– Mas eu não entendo – disse ela, com a voz rouca. – Ainda ontem...

A noite tornara-se desagradável e odiosa para ele à medida que a luz do crepúsculo se dissipava. E ela cedeu ao seu sofrimento.

– Eu sei – gritou ele. – Nem nunca entenderás. Nunca acreditarás que eu não posso... não sou fisicamente capaz, tal como não sou capaz de voar como uma cotovia...

– Capaz de quê? – perguntou ela, num murmúrio. Agora tinha medo.

– De te amar.

Paul odiou-a amargamente naquele momento, por fazê-la sofrer tanto. Amá-la! Miriam sabia que ele a amava. Ele pertencia-lhe realmente. Toda a conversa sobre não a amar fisicamente, corporalmente, era uma mera perversidade da parte dele, pois Paul sabia que ela o amava. Ele estava a ser casmurro como uma criança. Ele pertencia-lhe a ela. A sua alma desejava-a. Miriam suspeitou que alguém o tivesse influenciado. Através da sua rigidez, pressentia a estranheza de uma outra influência.

– Que te têm dito em casa? – perguntou.

– Não é nada disso – respondeu ele.

E, nesse momento, ela soube que era precisamente isso, e sentiu um profundo desprezo pela família dele e pela sua vulgaridade. Ignoravam as coisas que valiam realmente a pena.

Nessa noite, não conversaram muito mais. Por fim, ele deixou-a e foi passear de bicicleta com Edgar.

Paul voltara para a mãe, o elo mais forte da sua vida. Quando ele se embrenhava em pensamentos, Miriam quase deixava de existir, como se envolta num sentimento vago e irreal. E mais ninguém contava. Havia contudo um lugar no mundo que permanecia sólido e não se desvanecia na irrealidade: o lugar onde se encontrava a sua mãe. Todos podiam transformar-se em sombras, quase inexistentes para ele, mas não ela. Era como se o eixo ou pólo da sua vida, do qual ele não podia escapar, fosse a sua mãe.

E, da mesma forma, ela esperava por ele. Nele se concentrava agora toda a sua vida. Afinal, a vida que deixara para trás oferecera muito pouco a Mrs. Morel. Ela entendera que a nossa oportunidade para fazer está aqui, e fazer era importante para ela. Paul iria provar que ela tinha razão: iria transformar-se num homem a quem nada poderia derrubar, que iria alterar a face da terra de alguma forma importante. Onde quer que ele fosse, ela sentia que a sua alma ia junto. O que quer que ele fizesse, ela sentia que a sua alma permanecia junto dele, pronta como sempre a entregar-lhe as suas ferramentas. Não podia suportar quando ele estava com Miriam. William estava morto. Ela lutaria para ficar com Paul.

E ele voltou para ela. E na alma dele havia um sentimento de satisfação pelo auto-sacrifício, pois ele era-lhe fiel. Ela amava-o antes de tudo, ele amava-a antes de tudo. E, no entanto, isso não era o suficiente. A sua vida nova e jovem, tão forte e imperiosa, era solicitada por algo mais. Punha-o louco de agitação. Ela percebia isso e desejava amargamente que Miriam fosse uma mulher que pudesse arrancar dele esta nova vida e deixar-lhe a ela as raízes. Paul lutava contra a mãe quase tanto como lutava contra Miriam.

Passou-se uma semana antes que Paul voltasse a Willey Farm. Miriam sofrera muito e receava vê-lo novamente. Poderia ela suportar a ignomínia de ser abandonada por ele? Isso seria apenas superficial e temporário. Ele voltaria. Ela possuía a chave para entrar na sua alma. Mas, entretanto, ele iria torturá-la com a sua luta contra ela. Miriam temia sobretudo isso.

Porém, no domingo a seguir à Páscoa, Paul veio para o chá. Mrs. Leivers ficou contente ao vê-lo. Percebeu que algo o perturbava, que as coisas estavam difíceis para ele. E ele parecia refugiar-se nela para algum conforto. E ela era boa para ele. Fazia-lhe o grande favor de o tratar quase com reverência.

Paul encontrou os rapazes no jardim da frente.

– Estou contente por teres vindo – disse a mãe, olhando-o com os seus olhos castanhos, grandes e sinceros. – Está um dia tão soalheiro. Ia agora mesmo dar um passeio pelos campos pela primeira vez este ano.

Ele sentiu que ela apreciaria a sua companhia, e isso suavizou-o. Foram caminhando, falando de coisas simples, ele gentil e humilde. Quase chorou de gratidão por ela ser deferente para com ele. Sentia-se humilhado.

Ao fundo do campo de trigo, encontraram um ninho de tordos.

– Querem que vos mostre os ovos? – perguntou.

– Sim, por favor! – respondeu Mrs. Leivers. – Parecem um sinal tão real da Primavera e da esperança...

Paul afastou os espinhos e retirou os ovos, colocando-os na palma da mão.

– Estão quentinhos... parece que assustámos a mãe – disse ele.

– Ah, coitadinhos – disse Mrs. Leivers.

Miriam não pôde evitar tocar nos ovos e na mão dele, que, segundo ela, os protegia tão bem.

– É um calor tão estranho! – murmurou, para se aproximar dele.

– É o calor do sangue – retorquiu ele.

Ela viu-o colocar os ovos no seu lugar, com o corpo colado à cerca, o braço avançando lentamente através dos espinhos, a mão cuidadosamente fechada sobre os ovos. Estava concentrado no acto. Vendo-o assim, ela amava-o; ele parecia tão simples e auto-suficiente. E ela não conseguia alcançá-lo.

Durante o chá, Paul discutiu o sermão de Sexta-Feira Santa com Mrs. Leivers. A caminhada até à Capela era já muito longa para a senhora, e ela quase preferia ouvir o sermão através de Paul, acrescido dos seus comentários e argumentos. Os outros também escutavam. Até os rapazes, uns latagões rudes, se mostravam atentos e interessados, tirando uma lição do discurso.

– Ele pegou no capítulo que diz: «Aquele que acreditou na nossa história...» ... eu gosto desta passagem.

Os grandes olhos castanhos de Mrs. Leivers brilharam com o pensamento.

– E estragou-o todo... arruinou-o.

Subitamente, lançou um olhar a Miriam, para que ela estivesse do seu lado naquele momento.

– E ele disse...

Paul, sério e indignado, repetiu o sermão. Era em alturas como esta que Miriam o amava. Ao vê-lo assim, enchia-se de profunda satisfação. Amava-o do mesmo modo que Maria amou na Betânia. Só quando irrompia o homem nele existente, se instalava a guerra entre ambos. E qual era mais forte nele, o Discípulo ou o Homem? Ela acreditava que fosse o primeiro, e através do primeiro o retinha.

Enquanto ela levantava a mesa do chá, ele disse-lhe, num tom bastante forçado:

– Quando acabares, vamos dar uma volta.

Na cozinha, ajudou-a a limpar a louça. Ela tremia ligeiramente de apreensão. Mas sabia que naquela noite não tinha de temer o ressentimento dele.

– Levamos um livro? – perguntou Miriam, pegando no seu favorito, O Tesouro Dourado, de Palgrave. Os melhores momentos que passavam juntos aconteciam quando liam poesia.

– Esse não – respondeu ele.

O coração dela apertou-se. Permaneceu junto à prateleira dos livros, hesitante. Ele escolheu Tartarin de Tarascon. Sentaram-se novamente no monte de feno, na base da meda. Paul leu algumas páginas, mas sem sentimento. De novo o cão apareceu, correndo, para repetir a brincadeira anterior. Enterrou o focinho no peito do jovem. Paul acariciou-lhe a orelha de fugida. Depois, afastou-o.

– Vai-te embora, Bill – ordenou. – Não te quero aqui.

Bill retirou-se furtivamente, e Miriam perguntou-se, temerosa, o que estaria para vir. Algo no silêncio dele a fez paralisar de apreensão. Não eram as suas fúrias, mas as suas resoluções calmas que ela receava.

Voltando o rosto um pouco de lado, para que ela não pudesse vê-lo, Paul começou, falando lenta e penosamente:

– Achas que... se eu não viesse cá tantas vezes... podias gostar de outra pessoa... de outro homem?

Então era isso que ainda o incomodava.

– Mas eu não conheço outros homens... porque perguntas? – replicou ela, num tom surdo que deveria ter soado aos ouvidos dele como uma censura.

– Ora – disse ele abruptamente – porque eles dizem que eu não tenho o direito de vir aqui... sem que tenhamos intenção de casar...

Miriam estava indignada por alguém andar a forçar as coisas entre eles. Ficara furiosa com o próprio pai quando este, rindo, comentara com Paul que sabia por que razão ele os visitava tantas vezes.

– Quem diz isso? – perguntou ela, tentando perceber se a sua própria família tinha algo a ver com o assunto. Mas não tinha.

– A minha mãe... e os outros. Dizem que, assim, todos me consideram comprometido, e que eu também me devo considerar como tal, pois não é justo para ti. E eu tentei pensar melhor... e acho que não te amo como um homem deve amar a sua mulher. Que me dizes tu a isto?

Miriam baixou a cabeça, irritada. Irritava-a ter de travar aquela discussão. As pessoas deviam deixá-los em paz.

– Não sei – murmurou ela.

– Achas que nos amamos o suficiente para nos casarmos? – perguntou ele, definitivamente. Ela estremeceu.

– Não – respondeu, sinceramente. – Não acho... somos demasiado novos.

– Eu pensei – prosseguiu ele, infeliz – que talvez tu, com a intensidade que pões nas coisas, me tivesses dado mais... do que alguma vez eu te poderia compensar. E, mesmo assim, se achares que é melhor, ficamos noivos.

Naquele momento, Miriam queria chorar. Estava furiosa também. Ele era sempre tão infantil que as pessoas faziam dele o que queriam.

– Não, não acho – disse firmemente.

Paul reflectiu um minuto.

– Sabes – retomou –, para mim... eu acho que uma pessoa nunca poderá monopolizar-me, ser tudo para mim. Eu acho que isso nunca vai acontecer.

Miriam não tinha considerado este ponto.

– Não – murmurou. Após uma pausa, ela ergueu para ele os seus olhos escuros, faiscantes.

– Isto tem a ver com a tua mãe – disse ela. – Eu sei que ela nunca gostou de mim.

– Não, não é isso – apressou-se ele a dizer. – Desta vez foi para teu bem que ela falou, e só disse que, se eu continuasse, devia considerar-me comprometido. – Seguiu-se um silêncio. – E, se eu te pedir para continuares a visitar-me sempre, não dizes que não?

Miriam não respondeu. Estava agora muito zangada.

– Bem, então que fazemos? – perguntou secamente. – Assim sendo, é melhor desistir das aulas de francês. Agora que estava a começar a dar-me bem... Mas acho que posso continuar sozinha.

– Não vejo necessidade disso – considerou ele. – É claro que posso dar-te uma aula de francês.

– Bom, e há ainda as noites de domingo. Não vou deixar de ir à capela, porque gosto de ir e porque a isso se resume toda a minha vida social. Mas não precisas de ir comigo. Posso ir sozinha.

– Está bem – respondeu ele, algo surpreendido. – Mas, se eu pedir ao Edgar, ele pode vir connosco, e assim as pessoas já não podem dizer nada.

Fez-se silêncio. Afinal, ela não perderia muito. Apesar de todo o falatório em casa dele, a diferença não seria muita. Ela só desejava que eles não interferissem.

– E tu não vais pensar de mais no assunto e deixar que te perturbe, pois não? – perguntou ele.

– Oh, claro que não – retorquiu Miriam, sem se dignar olhar para ele.

Paul ficou em silêncio. Ela achava-o instável, sem um objectivo fixo, nenhuma âncora de certeza a segurá-lo.

– Porque – continuou ele – um homem pega na bicicleta... e vai para o trabalho... e faz toda a espécie de coisas. Mas uma mulher fica a cismar.

– Não, eu não vou ficar a cismar – assegurou-lhe Miriam, e estava a ser sincera.

O tempo arrefecera bastante. Juntos, encaminharam-se para casa.

– Que pálido está o Paul! – exclamou Mrs. Leivers. – Miriam, não devias tê-lo deixado sentar-se lá fora. Achas que te constipaste, Paul?

– Oh, não! – E riu-se.

Mas, na verdade, sentia-se fatigado. O conflito interior esgotara-o. Agora, Miriam sentia pena dele. Mas, muito cedo, ainda antes das nove horas, ele levantou-se para se retirar.

– Não te vais já embora, pois não? – perguntou Mrs. Leivers, ansiosa.

– Vou, sim – retorquiu ele. – Disse em casa que chegava cedo.

Paul estava muito embaraçado.

– Mas ainda é cedo – disse Mr. Leivers.

Miriam sentou-se na cadeira de baloiço e não falou. Ele hesitou, esperando que ela se erguesse para o acompanhar ao celeiro, como habitualmente, quando fosse buscar a bicicleta. Ela, porém, deixou-se ficar onde estava. Paul sentia-se perdido.

– Bem, então... boa noite a todos! – balbuciou.

Miriam deu-lhe as boas-noites, tal como os restantes. Mas, quando ia a passar diante da janela, ele olhou para dentro. Ela viu-o pálido, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas de um modo que se tornara constante nele, e o olhar ensombrado pelo sofrimento.

Ergueu-se então e foi até à porta dizer-lhe adeus, quando ele passou pelo portão. Paul pedalou lentamente sob a rama dos pinheiros, sentindo-se um cobarde e um patife miserável. A bicicleta rolava pelas colinas abaixo, à deriva. Chegou a pensar que seria um alívio partir o pescoço.

Dois dias depois, enviou-lhe um livro e um bilhete, incitando-a a ler e a manter-se ocupada.

E, contudo, nessa altura ele estava diferente. Tinha avaliado bem a situação. Sabia que não queria casar-se com ela. As razões pelas quais a amava não eram razões para se casar com ela; isso es-tava decidido. E a mãe repetira-lhe vezes sem conta que a sua actual situação não podia durar para sempre, e era bastante injusta para a rapariga. Por isso, Paul tentava agora manter a maior distância possível entre os dois. Era duro e frio para ela. Miriam ressentia-se disso amargamente, culpava a mãe dele, e esperava. Sabia que Paul não podia deixá-la sozinha. Mas ele parecia querer por força erguer muros entre eles, ele e ela, atrás dos quais pudesse refugiar-se, longe dela. Miriam sofria terrivelmente.

Durante esse tempo, Paul dedicou toda a sua amizade a Edgar. Gostava tanto da família, gostava tanto da quinta, que ela era para ele o lugar mais querido ao cimo da terra. Nem mesmo o seu lar era tão agradável. A sua mãe sim. Mas teria sido igualmente feliz com aquela mãe em qualquer outro lugar. Mas Paul amava Willey Farm apaixonadamente. Adorava a cozinha pequena e aconchegada, repisada pelas botas dos homens, e onde o cão dormia com um olho aberto e outro fechado, com medo de ser pisado; onde, à noite, a lamparina balouçava sobre a mesa e tudo ficava muito silencioso. Amava a saleta de Miriam, comprida e de tecto baixo, com a sua atmosfera romântica, as suas flores, os seus livros, o piano de pau-rosa. Amava os jardins e os edifícios que, nos limites nus dos campos, se erguiam com os seus telhados escarlate, arrastando-se em direcção ao bosque como se em busca de aconchego, onde a região selvagem cavava um vale profundo, para logo subir as encostas por cultivar do lado de lá. O simples facto de estar ali era um prazer e uma alegria para ele. Amava Mrs. Leivers, com a sua simplicidade e singular cinismo; amava Mr. Leivers, tão caloroso e jovial, e tão afável; amava Edgar, cujo olhar se iluminava quando ele chegava, e os outros rapazes e as crianças, e ainda Bill, e até a porca chamada Circe e o galo indiano de combate chamado Tippoo. Amava tudo isto além de Miriam. Não podia desistir de tudo.

Por isso, continuava a aparecer frequentemente, mas andava geralmente com Edgar. Toda a família, incluindo o pai, apenas se reunia à noite para os jogos e charadas. E, mais tarde, Miriam reunia-os a todos e liam Macbeth em edição de bolso, interpretando os vários papéis. Era muito divertido. Miriam ficava contente, Mrs. Leivers ficava contente e Mr. Leivers divertia-se. Depois, todos juntos, aprendiam a solfejar canções, cantando em círculo em redor da lareira. Mas agora, Paul raramente ficava a sós com Miriam. E ela esperava. Quando ela, Edgar e Paul regressavam a casa vindos da Capela ou do grémio literário de Bestwood, ela sabia que a conversa dele, tão apaixonada e tão pouco ortodoxa para aqueles dias, lhe era dirigida. Contudo, invejava Edgar e as suas corridas de bicicleta com Paul, as suas noites de sexta-feira, os seus dias de labuta conjunta nos campos. Para ela, as noites de sexta-feira e as aulas de francês tinham acabado. Estava quase sempre sozinha, vagueando e meditando pelo bosque, lendo, estudando, sonhando, esperando. E ele escrevia-lhe com frequência.

Num domingo à noite, conseguiram reatar a velha e rara harmonia. Edgar ficara com Mrs. Morel para a comunhão. Queria saber como era. Por isso, Paul e Miriam voltaram sozinhos para casa dele. Ele encontrava-se novamente mais ou menos sob o seu feitiço. Como era hábito, discutiram o sermão. Ele caminhava agora a passos largos para o agnosticismo, mas era um agnosticismo tão religioso que Miriam não sofria muito. Estavam na fase da Vie de Jésus de Renan. Miriam era a eira onde Paul debulhava todas as suas crenças. Enquanto repisava as suas ideias na alma dela, a verdade brotava dele. Só ela era a sua eira. Só ela o ajudava no sentido da plena realização. Quase impassível, ela submetia-se aos seus argumentos e interpretações. E, por causa dela, ele gradualmente compreendia, de algum modo, onde estava errado. E o que ele compreendia, ela compreendia. Miriam sentia que Paul não podia viver sem ela.

Chegaram à casa silenciosa. Ele tirou a chave da janela da cozinha e entraram. Durante todo o tempo, ele não interrompeu a discussão. Acendeu o gás, ateou o fogo e trouxe-lhe alguns biscoitos da despensa. Ela sentou-se no sofá, em silêncio, com um prato sobre os joelhos. Trazia um grande chapéu branco enfeitado com flores cor-de-rosa. Era um chapéu barato, mas ele gostava. Sob o chapéu, o rosto dela estava estático e pensativo, castanho-dourado e corado. Como sempre, as orelhas estavam ocultas sob os seus caracóis curtos. Ela observava-o.

Sempre gostara dele aos domingos. Nesses dias, ele usava um fato escuro que evidenciava todos os movimentos do seu corpo. Havia algo de limpo e fresco no seu ar. Paul prosseguiu o seu raciocínio dirigido a ela. De repente, pegou na Bíblia. Miriam gostou do modo como ele a alcançou, tão determinado, directo ao objectivo. Voltou as páginas rapidamente e leu-lhe um capítulo de S. João. Enquanto lia, absorto, sentado no cadeirão e apenas a sua voz pensava, ela sentia que ele estava a usá-la inconscientemente, como um homem usa as suas ferramentas em qualquer trabalho que o absorve. Adorava essa sensação. E a ânsia na sua voz era como a tentativa de alcançar algo, e era como se ela fosse o modo de o conseguir. Miriam recostou-se no sofá, longe dele, sentindo-se, todavia, o próprio instrumento que a mão dele segurava, o que lhe dava um indescritível prazer.

Pouco a pouco, a voz tornou-se hesitante e Paul ficou constrangido. E quando chegou ao versículo: «Uma mulher, quando está em trabalho de parto, sofre porque a sua hora chegou», omitiu-o. Miriam sentira o seu constrangimento a aumentar. Estremeceu quando as bem conhecidas palavras não foram proferidas. Paul continuou a ler, mas ela já não o escutava. Um sentimento de pesar e vergonha fê-la vergar a cabeça. Seis meses atrás, ele teria lido tudo naturalmente. Agora, abria-se uma brecha na relação entre os dois. Agora, ela sentia haver algo de realmente hostil entre eles, algo de que ambos se envergonhavam.

Miriam comeu o bolo mecanicamente. Ele tentou prosseguir, desenvolvendo o seu argumento, mas não conseguiu recuperar o tom certo. Edgar chegou pouco depois. Mrs. Morel tinha ido a casa de uma amiga. Os três saíram rumo a Willey Farm.

Miriam matutava sobre o afastamento dele em relação a ela. Havia algo mais que ele desejava. Paul não podia estar satisfeito, não podia dar-lhe paz. Agora haveria sempre entre eles lugar para o conflito. Ela queria pô-lo à prova. Acreditava que a maior necessidade na vida dele era ela. Se conseguisse prová-lo, tanto a si mesma como a ele, tudo o resto poderia desaparecer, e ela poderia simplesmente confiar no futuro.

Assim, em Maio, pediu-lhe para vir a Willey Farm visitar Mrs. Dawes. Havia algo que Paul procurava ardentemente. Sempre que se falava de Clara Dawes, Miriam via-o agitar-se e ficar ligeiramente irritado. Afirmou que não simpatizava com ela. Contudo, estava ansioso por saber coisas a seu respeito. Bom, ele tinha de ser posto à prova. Ela acreditava que havia nele ânsias de coisas superiores, e inferiores, e que o desejo pelas superiores venceria. De qualquer forma, deveria tentar. Miriam, porém, esqueceu-se de que os conceitos de «superior» e «inferior» eram arbitrários.

Paul estava bastante entusiasmado com a ideia de se encontrar com Clara em Willey Farm. Mrs. Dawes veio passar o dia. A sua pesada cabeleira castanho-escura estava enrolada ao alto da cabeça. Envergava uma blusa branca e uma saia azul-marinho e, de algum modo, a sua presença parecia tornar as coisas vulgares e insignificantes. Quando se encontrava por perto, a cozinha parecia ao mesmo tempo pequena e imperfeita. A bela saleta de Miriam, com a sua luz crepuscular, parecia estúpida e sem graça. Toda a família Leiver se eclipsava como velas. Eles achavam-na um pouco difícil de suportar. No entanto, ela era perfeitamente amistosa, mas indiferente e um pouco dura.

Paul só chegou da parte da tarde. Mas veio cedo. Enquanto descia da bicicleta, Miriam viu-o olhar em volta da casa, ansioso. Ficaria desapontado se a tão esperada visita não tivesse vindo. Miriam saiu ao seu encontro, baixando a cabeça devido à intensidade do sol. As abecedárias brotavam agora, encarnadas, da verde sombra fria das suas folhas. A rapariga esperou-o, de cabelo escuro, contente por vê-lo.

– A Clara não veio? – perguntou Paul.

– Veio – replicou ela, no seu timbre musical. – Está a ler.

Ele empurrou a bicicleta até ao celeiro. Pusera uma bonita gravata, na qual tinha muito orgulho, e meias a condizer.

– Chegou esta manhã? – perguntou.

– Sim – respondeu Miriam enquanto caminhava a seu lado. – Lembraste-te de trazer aquela carta do homem do Liberty?

– Oh, que chatice, não! – disse ele. – Mas podes atazanar-me até que a traga.

– Não gosto de te atazanar.

– Mas não te acanhes. E ela está mais simpática? – continuou.

– Sabes que eu sempre a achei bastante simpática.

Paul ficou em silêncio. Era evidente que a sua ânsia em chegar cedo naquele dia se devia à recém-chegada. Miriam já começara a sofrer. Encaminharam-se para casa lado a lado. Paul retirou as molas das calças, mas era muito preguiçoso para escovar o pó dos sapatos, apesar de ter requintado nas meias e na gravata.

Clara estava sentada na saleta fresca, a ler. Paul reparou na sua nuca branca e no delicado cabelo repuxado. Ela ergueu-se e olhou para ele com indiferença. Para o cumprimentar, levantou o braço de um modo que parecia, ao mesmo tempo, mantê-lo à distância e, no entanto, acenar-lhe com alguma coisa. Ele notou a forma como os seus seios inchavam dentro da blusa, e como o ombro se curvava deliciosamente sob a fina musselina no cimo do seu braço.

– Escolheste um lindo dia – disse ele.

– É... aconteceu – respondeu ela.

– É verdade – continuou ele. – Ainda bem.

Ela sentou-se, não lhe agradecendo a amabilidade.

– Que fizeste toda a manhã? – perguntou Paul, dirigindo-se a Miriam.

– Bem – disse Miriam, tossindo roucamente –, a Clara só chegou com o pai... e, por isso, não está cá há muito tempo.

Clara sentara-se encostada à mesa, mantendo-se distante. Ele notou que as suas mãos eram grandes, mas bem cuidadas. A pele parecia quase grosseira, opaca e branca, com finos pêlos dourados. Ela não se importava que ele observasse as suas mãos. Tinha intenção de o desprezar. O seu braço opulento estava negligentemente pousado sobre a mesa. A sua boca fechava-se como se estivesse ofendida, e o seu rosto mantinha-se ligeiramente desviado.

– Estiveste presente na reunião da Margaret Bonford na outra noite – disse-lhe ele. Miriam desconhecia este Paul cortês. Clara olhou-o de relance.

– Estive, sim – respondeu.

– Ora – perguntou Miriam – como é que sabes?

– Eu entrei por alguns minutos até o comboio chegar – explicou ele.

Clara desviou novamente o rosto, com uma expressão desdenhosa.

– Acho-a uma mulherzinha adorável – comentou Paul.

– A Margaret Bonford! – exclamou Clara. – Ela é muito mais esperta que a maioria dos homens.

– Bem, eu não disse que não era – disse ele, depreciativamente. – Ela é adorável por tudo isso.

– E é claro que é só isso que tem importância – disse Clara, com uma expressão fulminante.

Ele coçou a cabeça, meio perplexo, meio aborrecido.

– Acho que importa mais do que a inteligência dela – retorquiu Paul – que, afinal, nunca a levaria ao Céu.

– Não é o Céu que ela pretende... é o seu justo quinhão na terra – retorquiu Clara. Falava como se Paul fosse responsável por qualquer privação de que Miss Bonford sofresse.

– Bem – disse ele –, eu achei-a calorosa e extraordinariamente agradável... mas demasiado frágil. Só desejei que ela estivesse confortavelmente em paz...

– ... remendando as peúgas do marido – interrompeu Clara, sarcasticamente.

– Estou certo de que não se importaria de remendar até mesmo as minhas peúgas – afirmou ele. – E tenho a certeza de que o faria até muito bem. Tal como eu não me importaria de lhe engraxar as botas, se ela o desejasse.

Mas Clara recusou-se a dar troco a este tipo de comentário. Paul conversou com Miriam durante algum tempo. A outra mulher permaneceu afastada.

– Bem – disse ele –, acho que vou procurar o Edgar. Ele anda no campo?

– Acho que foi buscar um carregamento de carvão – respondeu Miriam. – Deve vir directamente para casa.

– Sendo assim – disse Paul –, vou ao encontro dele.

Miriam não ousou propor nenhum programa que envolvesse os três. Ele levantou-se e deixou-as.

No caminho de cima, onde a giesta despontava, Paul viu Edgar caminhando preguiçosamente ao lado da égua, que acenava a testa estrelada de branco enquanto arrastava o ruidoso carregamento de carvão. O rosto do jovem lavrador iluminou-se quando avistou o amigo. As suas roupas eram velhas e já bastante coçadas, mas caminhava com um orgulho considerável.

– Viva! – cumprimentou ele, vendo Paul sem chapéu. – Onde vais?

– Vim ter contigo. Não suporto a «Nunca jamais».

Os dentes de Edgar brilharam numa gargalhada divertida.

– Quem é a «Nunca jamais»? – perguntou.

– Aquela senhora – Mrs. Dawes – devia chamar-se Mrs. Corvo, aquele que disse «Nunca jamais».

Edgar riu com satisfação.

– Não gostas dela? – perguntou.

– Não morro de amores – respondeu Paul. – Porquê, tu gostas?

– Não! – A resposta veio com profunda convicção. – Não! – Edgar franziu os lábios. – Não posso dizer que seja muito o meu estilo. – Meditou um pouco. Depois: – Mas porque lhe chamas «Nunca jamais»? – perguntou.

– Bem – explicou Paul. – Se ela olha para um homem, diz arrogantemente «Nunca jamais», se se olha no espelho, diz desdenhosamente «Nunca jamais», e se pensa duas vezes, di-lo com nojo, e se olha em frente, di-lo cinicamente...

Edgar considerou o discurso de Paul, não conseguindo entendê-lo muito bem, e disse, rindo:

– Achas que ela odeia os homens?

– Ela acha que sim – retorquiu Paul.

– Mas tu não achas que assim seja?

– Não – respondeu Paul.

– Então ela não foi simpática contigo?

– Consegues imaginá-la a ser simpática com alguém? – perguntou o jovem.

Edgar riu-se. Juntos, descarregaram o carvão no pátio. Paul estava bastante contrafeito pois sabia que Clara o podia ver, se olhasse pela janela. Mas não olhou.

Nas tardes de sábado, os cavalos eram escovados e tratados. Paul e Edgar trabalharam juntos, espirrando com o pó proveniente do pêlo de Jimmy e Flower.

– Sabes alguma canção nova para me ensinar? – perguntou Edgar.

Ele continuava a trabalhar sem parar. Quando se baixava, deixava a descoberto a parte posterior do pescoço, encarniçada do sol, e os dedos que seguravam a escova eram taludos. Paul observava-o de vez em quando.

– Mary Morrison? – sugeriu o mais novo.

Edgar concordou. Era dono de uma bela voz de tenor e adorava aprender todas as canções que o amigo lhe ensinava para poder cantar enquanto conduzia a carroça. Paul possuía uma voz de barítono bastante sofrível, mas tinha bom ouvido. No entanto, cantou baixinho, com medo de Clara. Edgar repetiu o verso na sua voz límpida de tenor. Por vezes, ambos interrompiam a cantoria para espirrar e, primeiro um e depois o outro, insultarem o cavalo.

Miriam estava impaciente com os homens. Era preciso tão pouco para os divertir – até Paul. Achava pouco natural nele que pudesse ficar tão absorvido numa trivialidade.

Era hora do chá quando acabaram.

– Que canção era aquela? – perguntou Miriam.

Edgar informou-a. A conversa virou para o canto.

– Passámos momentos tão agradáveis – disse Miriam a Clara.

Mrs. Dawes tomou o seu chá devagar, com dignidade. Sempre que os homens estavam presentes, ela mostrava-se distante.

– Gostas de ouvir cantar? – perguntou-lhe Miriam.

– Se a voz for boa – disse ela.

Paul corou, naturalmente.

– Queres tu dizer, se a voz for de excepção e educada? – disse ele.

– Acho que uma voz precisa de ser educada para cantar alguma coisa que se oiça – disse Clara.

– Já agora, também podes dizer que as pessoas deviam educar a voz antes de falarem – replicou ele. – Francamente, a maior parte das pessoas canta para seu próprio prazer.

– E, quem sabe, para desprazer dos outros.

– Nesse caso, os outros que tapem os ouvidos – retorquiu Paul.

Os rapazes desataram a rir. Depois, fez-se silêncio. Ele corou violentamente e tomou o chá calado.

A conversa voltou à questão de se o salário das mulheres deveria ser igual ao dos homens. Mrs. Leivers sustentava que os homens tinham famílias a manter; Clara afirmava que trabalho igual teria de significar salário igual, para homens ou mulheres. Mr. Leivers estava inclinado a concordar com ela. O que quer que Mrs. Dawes tivesse dito, Paul teria tomado uma posição contrária à dela. Como tal, argumentou que uma mulher era apenas um acessório no mercado de trabalho e que, na maioria dos casos, não passava de uma coisa transitória, sustentando-se apenas por um ou dois anos. Clara avançou o número de mulheres que sustentavam pai, mãe, irmãs, etc.

– E quase todos os homens do mundo, acima dos trinta anos, sustentam mulher e filhos – e, regra geral, as ditas mulheres não são assalariadas – retorquiu ele.

– Eu penso, meu amigo – disse Clara muito friamente –, que já antes encontrei o teu tipo de pessoa: o jovem que pensa que sabe tudo.

– E tu és do tipo da jovem que pensa que eu não sei nada – volveu ele.

– Oh, sabes sim... sabes como te fazeres ouvir – disse ela.

Paul estava furioso. De repente, rebentou numa gargalhada.

– Isto parece mais uma reunião de sufragistas contigo no estrado a discursar – disse ele.

Clara corou até à raiz dos cabelos.

– Porque terei eu de responder pelos «Homens», quando afinal sou apenas um deles... – continuou Paul.

– Como se não fosse já suficiente – gracejou Edgar.

– E assim – retomou Paul – sou responsabilizado por todos os pecados da história de Inglaterra, desde a Rainha Boadisca até à Canção da Camisa. Não é justo. Gostava que o Homem tivesse o direito de existir na sociedade moderna... num qualquer canto onde pudesse repousar a cabeça.

– Bem – gracejou Mrs. Leivers –, no final de contas, o lugar do homem continuará a ser o mesmo enquanto formos feitos como somos.

Mas este gracejo foi demasiado subtil para todos, à excepção de Clara, que estava indignadíssima.

Após o chá, quando todos os homens, à excepção de Paul, se retiraram, Mrs. Leivers perguntou a Clara:

– E achas a vida mais feliz agora?

– Infinitamente.

– Então estás satisfeita?

– Desde que possa ser livre e independente.

– E não sentes falta de nada na tua vida? – quis saber Mrs. Leivers, delicadamente.

– Ultrapassei isso tudo.

Paul sentiu-se desconfortável perante este discurso, e levantou-se:

– Vais acabar por descobrir que tropeças constantemente nas coisas que deixaste para trás – disse ele. Depois saiu em direcção aos estábulos. Achava que tinha sido espirituoso e o seu orgulho masculino estava radiante. Pôs-se a assobiar enquanto descia o carreiro de ladrilhos.

Miriam veio procurá-lo pouco depois para saber se gostaria de as acompanhar, a Clara e a ela, num passeio. Partiram em direcção à quinta de Strelley Mill. Enquanto caminhavam ao longo da ribeira, pela margem do Willey Water, olhando através do arvoredo para a orla do bosque, onde pequeninas flores cor-de-rosa brilhavam sob uns poucos raios de sol, avistaram, para lá dos troncos das árvores e das ralas aveleiras, um homem conduzindo um grande cavalo baio pelos barrancos. O animal, enorme e cor de fogo, parecia dançar romanticamente através do verde-escuro das aveleiras até onde o ar era sombrio como o passado, por entre as campainhas emurchecidas que podiam ter florido para Deirdre ou Isolda.

Os três estacaram, encantados.

– Que prazer ser cavaleiro – disse ele – e ter aqui um pavilhão.

– E ter-nos a nós fechadas em segurança? – retorquiu Clara.

– Sim – respondeu ele –, entoando melodias com as vossas amas, entregues aos vossos bordados. Eu transportaria o vosso estandarte branco, verde e púrpura, e teria gravado no brasão do meu escudo a sigla das sufragistas, por baixo de uma mulher enfurecida...

– Não tenho qualquer dúvida – disse Clara – que muito mais depressa lutarias por uma mulher do que a deixarias lutar por si mesma.

– E lutaria mesmo! Quando a mulher luta por si mesma parece um cão diante de um espelho, enraivecido pela sua própria sombra.

– E tu és o espelho? – perguntou ela, com um franzir de lábios.

– Ou a sombra – replicou ele.

– Temo – disse ela – que sejas perigosamente inteligente.

– Bem, deixo-te a ti a tarefa de seres boazinha – retorquiu ele, rindo. – Sê boazinha, gentil donzela, e deixai-me ser inteligente.

Mas Clara cansou-se da irreverência de Paul. Subitamente, ao olhar para ela, ele viu que a expressão de superioridade que emanava do seu rosto era infelicidade e não desprezo. O coração dele enterneceu-se por todos. Voltou-se para Miriam, a quem até então negligenciara, e foi gentil com ela.

Ao aproximarem-se da orla do bosque, encontraram Limb, um homem trigueiro e franzino, de quarenta anos, rendeiro de Strelley Mill, que ele dirigia como uma quinta dedicada à pecuária. Segurava as rédeas do poderoso garanhão displicentemente, como se estivesse cansado. Os três recuaram para o deixarem passar por cima das pedras que atravessavam o primeiro regato. Paul admirou-se pelo facto de um animal tão grande caminhar sobre pedras tão escorregadias com inesgotável vigor. Limb estacou diante deles.

– Diga ao seu pai, Miss Leivers – disse ele, numa voz sibilante, pouco vulgar –, que, há três dias, as suas crias novas partiram aquela vedação do fundo e fugiram.

– Qual? – perguntou Miriam, trémula.

O grande cavalo resfolegava pesadamente, agitando os flancos encarniçados e olhando-os desconfiado, com os seus olhos grandes, maravilhosos, mantendo a cabeça baixa e a crina pendente.

– Venham comigo – respondeu Limb – qu’eu amostro-lhes.

O homem e o garanhão seguiram à frente. O cavalo dançava de lado, agitando o topete branco e parecendo assustado, como se sentisse que estava no meio do regato.

– Nada de bailaricos – disse o homem ao animal, afectuosamente.

O cavalo galgou a margem em pequenos saltos e chapinhou delicadamente entrando no segundo regato. Clara, caminhando numa espécie de abandono amuado, olhava meio fascinada, meio desdenhosa. Limb parou e apontou para uma vedação sob uns salgueiros.

– Ali, tá a ver por onde eles passaram? – disse ele. – Os meus homens trouxeram-nos de volta três vezes.

– Sim – balbuciou Miriam, corando como se a culpa fosse sua.

– Querem entrar? – convidou o homem.

– Não obrigado... mas gostaríamos de ir até ao lago.

– Se quiserem – disse ele.

O cavalo relinchou de satisfação por se ver tão próximo de casa.

– Está todo contente por estar de volta – comentou Clara, que estava interessada na criatura.

– Pois está... Hoje teve uma jornada muito cheia.

Atravessaram o portão e viram aproximar-se deles, vinda da casa grande da quinta, uma mulher morena e de baixa estatura, aparentando uma natureza emotiva e cerca de trinta e cinco anos. Tinha o cabelo já um pouco tingido de grisalho e os olhos pareciam selvagens. Avançava de mãos atrás das costas. O seu irmão continuou em frente. Ao vê-la, o grande garanhão relinchou de novo. Ela aproximou-se, excitada.

– Já estás em casa outra vez, meu rapaz! – disse, ternamente, dirigindo-se ao cavalo, não ao homem. O grande animal girou em torno dela, baixando a cabeça. A mulher meteu-lhe na boca a maçã enrugada e amarela que escondera atrás das costas e depois beijou-o perto dos olhos. O cavalo resfolegou de prazer. Ela segurou-lhe a cabeça entre os braços, e apertou-a contra o peito.

– É esplêndido! – disse Miriam.

Miss Limb ergueu os olhos. Eram escuros e dirigiram-se directamente a Paul.

– Oh, boa tarde, Miss Leivers – cumprimentou ela. – Há anos que não a vemos cá por baixo.

Miriam apresentou-lhe os amigos.

– O seu cavalo é um óptimo companheiro! – disse Clara.

– Pois é! – E beijou-o novamente. – Tão dedicado como um homem!

– Mais dedicado que a maioria dos homens, penso eu – retorquiu Clara.

– É um bom menino! – disse a mulher, abraçando de novo o cavalo.

Clara, fascinada pelo grande animal, aproximou-se para lhe afagar o pescoço.

– Ele é muito meigo – disse Miss Limb. – Não acha que todas as criaturas grandes o são?

– É uma beleza! – respondeu Clara.

Queria olhá-lo nos olhos. Queria que ele olhasse para ela.

– É uma pena que não possa falar – disse.

– Oh, mas ele pode... diz tudo – retorquiu a outra mulher.

Depois, o irmão foi-se embora com o cavalo.

– Então, não vão entrar? Faça o favor de entrar, Mr... desculpe, não percebi o seu nome...

– Morel! – disse Miriam. – Não, não vamos entrar, mas gostaríamos de passar pela represa.

– É claro, estejam à vontade. O senhor pesca, Mr. Morel?

– Não – respondeu Paul.

– Porque, se pesca, pode vir pescar quando quiser – ofereceu Miss Limb. – Raramente vemos alguém durante a semana. Até lhe agradecia.

– Que peixes há no lago? – perguntou Paul.

Passaram pelo jardim da frente da casa, sobre o açude, e subiram a margem íngreme até ao lago, que repousava na sombra, com as suas duas ilhotas de madeira. Paul caminhava ao lado de Miss Limb.

– Não me importava de vir nadar para aqui – disse ele.

– Então, venha – convidou ela. – Venha quando quiser. O meu irmão ficará muito contente por conversar consigo. Ele é assim calado porque não tem com quem falar. Venha nadar quando quiser.

Clara aproximou-se.

– Tem uma boa profundidade – comentou. – E é tão límpido.

– É verdade – disse Miss Limb.

– Sabes nadar? – perguntou Paul. – Miss Limb estava agora mesmo a dizer que podíamos vir quando quiséssemos.

– É claro que há os criados da lavoura – disse Miss Limb.

Conversaram durante alguns minutos e depois continuaram, colina acima, deixando na margem a solitária senhora de olhar esgazeado.

A vertente da colina estava amadurecida pelo sol. Era selvagem e coberta de tufos de urze, abandonada aos coelhos. Os três caminhavam em silêncio. Paul disse então:

– Ela faz-me sentir desconfortável.

– Referes-te a Miss Limb? – perguntou Miriam. – É verdade!

– Qual será o problema dela? Estará a ficar tonta por viver demasiado solitária?

– Parece que sim – concordou Miriam. – Isto não é vida para ela. Acho uma crueldade enterrá-la aqui. Eu devia vir visitá-la mais vezes. Mas... ela perturba-me.

– Faz-me sentir pena dela... é verdade, e aborrece-me – disse ele.

– Eu acho – disse Clara subitamente – que o que ela quer é um homem.

Os outros dois ficaram mudos durante alguns instantes.

– Mas é a solidão que a deixa assim amalucada – disse Paul.

Clara não respondeu, prosseguindo a caminhada colina acima. Caminhava cabisbaixa, com as pernas oscilando à medida que pisava por entre os cardos secos e os tufos de erva, e os braços pendendo soltos. Em vez de andar, o seu belo corpo parecia vaguear às cegas pela encosta acima. Uma onda de calor invadiu Paul. Estava curioso acerca dela. Talvez a vida tivesse sido cruel com Clara. Esqueceu Miriam, que caminhava a seu lado, conversando consigo. Ela olhou para ele ao ver que ele não lhe respondia. O olhar dele estava fixo em Clara.

– Ainda achas que ela é uma antipática? – perguntou Miriam.

Ele nem reparou que a pergunta era despropositada. É que também lhe andava a bailar no pensamento.

– Passa-se algo com ela – respondeu.

– Sim – concordou Miriam.

No cimo da colina encontraram uma tapada bravia, escondida dos olhares; dois dos seus lados eram delimitados pelo bosque, os outros dois por sebes altas de espinheiros e sabugueiros. Por entre estes arbustos densos, viam-se aberturas por onde o gado poderia ter passado, se ali houvesse ainda gado. Naquele sítio a relva era macia e aveludada, fofa e esburacada pelos coelhos. O campo propriamente dito nunca fora cultivado e estava inundado de primaveras grandes e altas que nunca haviam sido cortadas. As flores brotavam fortes em ramalhetes por todo o lado, erguendo-se acima dos grosseiros tufos de erva. Parecia uma angra repleta de altos mastros de navios.

– Ah! – exclamou Miriam, voltando para Paul os olhos escuros dilatados. Ele sorriu. Juntos, gozaram a visão do campo de flores. Clara, um pouco afastada, olhava as primaveras, desconsoladamente. Paul e Miriam ficaram juntos, conversando em voz baixa. Ele ajoelhou-se, colhendo rapidamente os melhores botões, movimentando-se incessantemente de ramalhete em ramalhete, falando sempre num tom suave. Miriam colhia as flores ternamente, detendo-se diante de cada uma delas. Ele parecia-lhe sempre demasiado rápido, quase científico. No entanto, os ramos dele tinham uma beleza natural, mais do que os dela. Ele amava-os, mas como se fossem seus e tivesse direito a eles. Ela tinha uma maior reverência para com as flores: tinham algo que ela não possuía.

As flores eram muito frescas e doces. Ele queria bebê-las. Enquanto as colhia, comeu até uns pequenos jasmins amarelos. Clara continuava a vaguear desconsoladamente. Dirigindo-se a ela, Paul perguntou:

– Porque não colhes algumas?

– Não acho bem. Elas parecem melhor a crescer no campo.

– Mas gostarias de algumas?

– Elas querem ser deixadas em paz.

– Não acho que queiram nada disso.

– Não quero ter cadáveres de flores à minha volta – disse ela.

– Essa é uma ideia pomposa e artificial – replicou ele. – Elas não morrem mais depressa na água do que nas próprias raízes. E, além disso, ficam bem numa jarra, parecem felizes. E só podemos chamar cadáver a uma coisa quando ela tem a aparência de cadáver.

– Mesmo sendo ou não cadáver? – argumentou ela.

– Para mim não o são. Uma flor morta não é o cadáver de uma flor.

Desta vez, Clara ignorou-o.

– Mesmo assim... que direito tens tu de as arrancar? – perguntou ela.

– Gosto delas e quero-as... e há muitas mais.

– E achas isso suficiente?

– Sim, porque não? Estou certo de que deixariam um agradável perfume no teu quarto em Nottingham.

– E eu teria o prazer de as ver morrer.

– Mas então... não te interessa se elas morrem.

Dito isto, deixou-a, pisando os maciços de flores emaranhadas, que cobriam espessamente o campo, como pálidas e luminosas formações de espuma. Miriam aproximara-se. Clara estava ajoelhada, aspirando o aroma das primaveras.

– Eu acho – disse Miriam – que se as tratarmos com reverência, não lhes fazemos mal... o que conta é o espírito com que as colhemos.

– Isso é verdade – concordou ele. – Mas nós colhemo-las porque as queremos, é tudo. E exibiu o seu ramalhete.

Miriam estava silenciosa. Paul colheu mais algumas flores.

– Olhem para estas! – continuou Paul. – Robustas e sadias como pequenas árvores ou meninos de pernas gordas...

O chapéu de Clara estava pousado na erva, não muito longe. Ela estava ajoelhada, ainda inclinada para a frente, a sentir o perfume das flores. A visão do seu pescoço fez Paul sentir uma ânsia aguda, de tão belo que era, embora naquele momento ele não se sentisse muito orgulhoso de si mesmo. Os seios dela agitavam-se ligeiramente na blusa. A curva arqueada das suas costas era bonita e forte: ela não usava corpete. Subitamente, sem saber, ele estava a espalhar uma mão-cheia de primaveras sobre o seu cabelo e o seu pescoço, dizendo:


«Cinzas às cinzas e pó ao pó será.

Se o Senhor não te receber, o Diabo o fará.»


As flores frescas caíram sobre o pescoço de Clara. Ela ergueu o rosto para ele, onde dois olhos cinzentos e assustados, quase cheios de compaixão, se interrogavam sobre o que ele estava a fazer. Sobre o seu rosto caíram flores e ela cerrou os olhos.

De súbito, ali de pé ao lado dela, ele sentiu-se estranho.

– Pensei que querias um funeral – disse, embaraçado.

Clara riu de forma estranha e levantou-se, tirando as primaveras do cabelo. Pegou no chapéu e colocou-o na cabeça. Uma flor permaneceu presa ao seu cabelo, mas Paul não lhe disse nada. Depois, recolheu as flores que espalhara sobre ela.

Nos limites do bosque, os miosótis tinham-se estendido pelo campo, aí ficando como água da corrente. Mas murchavam agora. Clara vagueava sobre eles. Ele seguiu-a. Os miosótis agradavam-lhe.

– Olha como saíram do bosque! – disse.

Nesse momento, ela voltou-se com uma centelha de calor e gratidão.

– É verdade! – sorriu.

O sangue de Paul correu mais rápido.

– Fazem-me pensar nos homens selvagens dos bosques... como eles devem ter-se sentido aterrorizados quando se defrontaram cara a cara com o espaço aberto.

– Achas que sim? – perguntou ela.

– Entre as tribos antigas, pergunto-me quais teriam mais medo: as que irrompiam da escuridão dos bosques para todo um espaço de luz, ou as das áreas abertas, penetrando pé ante pé nas florestas.

– Acho que as segundas – respondeu ela.

– Sim, tu sentes-te realmente como uma pessoa de espaços abertos... tentando forçar-se a penetrar no escuro, não é verdade?

– Como é que posso saber? – respondeu ela, de um modo singular.

A conversa ficou por aqui.

A noite adensava-se sobre a terra. O vale já se cobria de sombras. Um minúsculo quadrado de luz subsistia ainda do lado oposto à quinta de Crossleigh Bank. Um brilho incandescente inundava os cumes das colinas. Miriam subiu lentamente, com o rosto enterrado no seu grande e solto ramalhete de flores, caminhando através da espuma dispersa das primaveras que lhe cobria o tornozelo. Atrás dela, as árvores transformavam-se agora em formas, todas elas sombras.

– Vamos? – perguntou.

E os três voltaram para trás. Permaneceram em silêncio. Descendo o trilho de terra, podiam ver a luz de casa mesmo em frente e, no cume da colina, uma leve silhueta escura pontilhada de luzinhas, onde a aldeia da mina de carvão tocava o céu.

– Foi agradável, não foi? – perguntou ele.

Miriam concordou, num murmúrio. Clara ficou em silêncio.

– Não achas? – insistiu ele.

Mas ela caminhava com a cabeça erguida e não respondia. Pela sua maneira de andar, como se nada lhe importasse, ele podia adivinhar o seu sofrimento.

Por esta altura, Paul levou a mãe a Lincoln. Ela estava entusiasmada e resplandecente como nunca, mas, sentada diante dele na carruagem do comboio, parecia frágil. E Paul teve uma sensação fugaz, como se ela estivesse a deslizar para longe dele. Então, quis agarrá-la, prendê-la, quase acorrentá-la. Sentia que tinha de a segurar com as próprias mãos.

Aproximavam-se da cidade. Iam ambos à janela, procurando vislumbrar a catedral.

– Ali está ela, mãe! – gritou Paul.

Avistaram a grande catedral erguendo-se acima da planície.

– Ah! – exclamou ela. – Pois está!

Ele olhou para a mãe. Os seus olhos azuis observavam a catedral em silêncio. Novamente ela parecia para lá dele. Algo da serenidade eterna da elevada catedral, azul e nobre contra o céu, algo da sua fatalidade, estava nela reflectido. O que era, era! – mesmo com toda a sua juventude, ele não podia alterá-lo. Olhou o rosto dela: a pele era ainda fresca, cor-de-rosa e aveludada, mas notavam-se já alguns pés-de-galinha em torno dos olhos; as pálpebras eram firmes, afundando-se um pouco, e a boca sempre fechada, em desilusão; e havia nela o mesmo olhar eterno, como se, finalmente, conhecesse o destino. E ele debatia-se contra o destino com todas as forças da sua alma.

– Veja, mãe, como se eleva sobre a cidade! E pensar que há ruas e ruas abaixo dela; parece maior que toda a cidade.

– Pois parece! – exclamou a mãe, voltando novamente à vida. Mas ele vira-a sentada, olhando fixamente pela janela para a catedral, de rosto e olhar parados, reflectindo a inexorabilidade da vida. E os pés-de-galinha em redor dos seus olhos e a boca tão duramente cerrada fizeram-no sentir que enlouquecia.

Fizeram uma refeição que ela considerou desnecessariamente extravagante.

– Não penses que eu gosto disto – disse, enquanto comia a costeleta. – Não gosto, não gosto mesmo nada! Só de pensar no teu dinheiro, assim desperdiçado!

– Não se preocupe com o meu dinheiro – respondeu ele. – Esquece-se de que sou um rapaz que leva a namorada a jantar fora?

Depois, comprou-lhe violetas azuis.

– Pára já com isso, menino! – ordenou ela. – Como é que eu vou fazer uma coisa dessas?

– Não tem de fazer nada! Fique quieta.

E, em plena High Street, Paul pregou as flores no casaco da mãe.

– Uma velha como eu! – protestou ela, aspirando o perfume.

– Bem vê – explicou ele –, quero que as pessoas pensem que somos terrivelmente finos. Portanto, a mãe tem de se apresentar à altura.

– Merecias que eu te desse um tabefe – disse ela.

– Vá lá... – ordenou ele –, pavoneie-se... como um pombo de cauda em leque.

Levaram uma hora a percorrer a rua. Mrs. Morel deteve-se primeiro junto ao Glory Hole, depois diante de Stone Bow, deteve-se em todo o lado, soltando exclamações. Um homem aproximou-se, tirou o chapéu e fez-lhe uma vénia:

– Permita-me que lhe mostre a cidade, minha senhora.

– Não, obrigada – respondeu ela. – Tenho o meu filho.

Nesse momento, Paul ficou furioso com ela por não ter respondido com mais dignidade.

– Tu deixas-te levar por ti mesmo – exclamou ela. – Ah, aquela é a Casa do Judeu! Lembras-te daquele sermão, Paul...

Ela mal podia subir a colina que conduzia à catedral, mas ele não notou. De repente, porém, foi dar com ela incapaz de falar. Conduziu-a a um pequeno bar, onde descansou.

– Não é nada! – disse a mãe. – O meu coração só está a ficar velhote; é de se esperar.

Paul não respondeu, mas olhou para ela. E novamente o seu coração foi esmagado por um aperto escaldante. Queria gritar, queria desfazer tudo, em fúria.

Retomaram o passeio, passo a passo, muito lentamente. E cada passo parecia um peso no peito de Paul. Sentia-se como se o seu coração fosse explodir. Finalmente, chegaram ao topo. Ela deteve-se encantada, olhando para o portão do castelo, admirando a fachada da Catedral. Tinha-se esquecido de si mesma.

– Isto é ainda melhor do que pensei que pudesse ser! – exclamou.

Mas ele odiava tudo. Por todo o lado a seguia, cismando. Sentaram-se juntos na Catedral. Assistiram a um curto serviço religioso no coro. Ela estava hesitante.

– Estará aberto para todos? – perguntou.

– É claro que está – respondeu ele. – Pensa que iam ter a lata de nos mandar embora?

– Bem – exclamou ela –, tenho a certeza de que teriam, se ouvissem a tua linguagem!

Durante o serviço, o seu rosto parecia resplandecer novamente de alegria e tranquilidade. E durante todo esse tempo, ele tinha vontade de se enraivecer, partir coisas e gritar.

Mais tarde, quando se debruçaram da muralha, admirando a cidade lá em baixo, Paul disse intempestivamente:

– Porque é que um homem não pode ter uma mãe jovem? Porque é que há-de ser sempre velha?

– Bem – disse ela, a rir – não me parece que tenha muita escolha.

– E porque não fui eu o filho mais velho? Ora veja... os filhos mais velhos dizem que os mais novos têm vantagem... mas veja bem, eles é que tiveram a mãe jovem. A mãe devia ter-me tido como seu filho mais velho.

– Não fui eu que escolhi – replicou ela. – Se pensares bem, és tão culpado como eu.

Ele voltou-se para ela, pálido, com o olhar irado.

– Porque é que a mãe é velha? – disse ele, enlouquecido pela sua impotência. Porque é que não pode andar? Porque é que não pode acompanhar-me a todos os lugares?

– Tempos houve – respondeu ela – em que eu era capaz de correr por essa colina acima melhor do que tu.

– E de que é que isso me vale, a mim? – gritou ele, golpeando a muralha com o punho. Depois, tornou-se lamuriento: – É uma pena que esteja doente, minha pequenina, é...

– Doente! – interrompeu ela. – Estou só a ficar velha, e tu tens de te conformar, é tudo. – Ficaram em silêncio. Mas não por muito tempo, e logo retomaram a boa disposição durante o chá. Enquanto estavam sentados na margem do Brayford, observando os barcos, Paul falou-lhe de Clara. A mãe fez inúmeras perguntas.

– E com quem vive ela?

– Com a mãe, em Bluebell Hill.

– E têm o suficiente para se manterem?

– Acho que não: penso que fazem rendas.

– Afinal que encantos lhe encontras tu, meu filho?

– Não sei se ela tem encantos, mãe. Mas é simpática. E parece correcta, sabe... Nada profunda, nem um pouco.

– Mas é bastante mais velha do que tu.

– Tem trinta, e eu vou fazer vinte e três.

– Mas não me disseste porque gostas dela.

– Porque não sei... será talvez o ar provocador que ela tem, uma espécie de revolta...

Mrs. Morel pensou um pouco. Teria ficado contente se o filho se apaixonasse por uma mulher que... ela não sabia bem o quê. Mas ele enervou-se, ficando subitamente furioso, e novamente melancólico. Ela só desejava que ele conhecesse uma rapariga agradável. Nem sabia o que desejava, mas deixou o assunto no ar. De certa forma, não era hostil à ideia de Clara.

Também Annie se ia casar. Leonard fora para longe trabalhar em Birmingham. Um fim-de-semana em que ele estava lá em casa, Mrs. Morel dissera-lhe:

– Não estás com boa cara, meu filho.

– Não sei o que tenho – respondeu ele. – Sinto-me perdido, mãe.

Chamava-a já de mãe, com o seu jeito infantil.

– Tens a certeza de que as instalações são boas? – perguntou ela.

– Sim... sim. Só que... é um aborrecimento quando temos de tomar sozinhos o nosso próprio chá... sem ninguém para nos ralhar, se o deitarmos para o pires e o bebermos daí. Não sei porquê mas tira o sabor ao chá.

Mrs. Morel riu-se.

– E então isso preocupa-te? – perguntou.

– Não sei... Quero casar – disse ele, de repente, torcendo os dedos e olhando para as botas. Houve uma pausa.

– Mas – exclamou ela – pensei que tinhas dito que querias esperar mais um ano.

– Pois foi, eu disse isso – respondeu ele, teimosamente.

Mrs. Morel considerou as palavras do filho por um momento.

– Sabes – continuou – a Annie é um pouco esbanjadora. Não amealhou mais de umas onze libras... e eu sei, meu filho, que tu não tens tido muita sorte.

Ele corou até às orelhas.

– Eu tenho vinte e três libras – respondeu.

– Com isso, não vão muito longe – disse Mrs. Morel.

Ele não respondeu, limitando-se a torcer os dedos.

– E tu sabes que eu não tenho nada... – continuou ela.

– Nem eu queria, mãe...! – gritou ele, muito vermelho, sofrendo e protestando.

– Não, meu filho, eu sei. Só tenho pena de não ter dinheiro. Tirando cinco libras para o casamento e preparativos... ficam vinte e nove libras... com isso não conseguem fazer grande coisa...

Ele continuou a torcer os dedos, impotente, obstinado, sem erguer os olhos.

– Mas queres mesmo casar? – perguntou ela. – Achas que deves?

Ele olhou-a de frente com os seus olhos azuis.

– Quero! – afirmou.

– Então – continuou ela – temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance.

Quando Leonard voltou a erguer o rosto, tinha lágrimas nos olhos.

– Não quero que a Annie passe dificuldades...! – disse ele, debatendo-se.

– Meu filho – disse ela – vocês namoram há muito tempo – tu tens um emprego decente. Se um homem tivesse precisado de mim, eu teria casado com ele mesmo sem dinheiro. Para ela pode ser um pouco difícil começar a vida humildemente. As raparigas muito novas são assim. Esperam ansiosas pelo belo lar que pensam que vão ter. Mas eu tinha mobílias caras! E isso não é tudo.

Assim, o casamento teve lugar quase de imediato. Arthur veio a casa, esplêndido no seu uniforme. Annie estava muito bonita num vestido cinza peito-de-rola que podia guardar para os domingos. Morel disse-lhe que era bem parva por se casar, e mostrou-se muito frio para com o genro. Mrs. Morel tinha plumas brancas no chapéu e mais algumas na blusa, e ambos os filhos a arreliaram por se embonecar tanto. Leonard estava alegre e cordial e sentia-se um tolo amedrontado. Paul não conseguia entender por que razão Annie queria casar-se. Sentia um grande carinho por ela, e ela por ele. Esperava, por isso, talvez um pouco melancolicamente, que tudo lhe corresse pelo melhor. Arthur estava surpreendentemente elegante no seu uniforme escarlate e amarelo e tinha plena consciência disso, mas sentia-se secretamente envergonhado por estar fardado. Annie debulhou-se em lágrimas na cozinha, ao despedir-se da mãe. Mrs. Morel chorou um pouco e, depois, afagou-lhe as costas, dizendo:

– Não chores, filha, ele vai ser bom para ti.

Morel bateu com os pés no chão violentamente, afirmando que ela era uma parva por se ter amarrado tão depressa. Leonard estava pálido e exausto. Mrs. Morel disse-lhe:

– Confio-ta, meu filho, e considero-te responsável por ela.

– Pode confiar em mim – assegurou ele, quase morto com tanta confusão. E estava tudo acabado.

Quando Morel e Arthur se recolheram, Paul sentou-se a conversar com a mãe, como tantas vezes fazia.

– Não tem pena de ela se ter casado, pois não, mãe? – perguntou ele.

– Não tenho pena de ela ter casado... mas... é uma sensação estranha... vê-la partir para longe de mim. Até me parece impossível que ela prefira ir com o Leonard. Mas as mães são assim... eu sei que é tolice.

– E vai ficar triste por causa dela?

– Quando penso no dia do meu casamento – respondeu a mãe – só posso esperar que a vida dela seja diferente.

– Mas confia nele... para a tratar bem?

– Sim, sim! Há quem diga que ela podia ter arranjado melhor. Mas eu acho que, se um homem é genuíno, como é o Leonard, e uma rapariga gosta dele... então... está tudo bem... ele é tão bom quanto ela.

– Nesse caso, não se importa?

– Nunca deixaria uma filha minha casar com um homem que eu não sentisse ser completamente genuíno. E, no entanto, cá está este vazio, agora que ela se foi...

Sentiam-se ambos tristes e queriam-na de volta. Paul achava que a mãe parecia muito sozinha, na sua nova blusa de seda preta com guarnições brancas.

– De qualquer modo, mãe, eu nunca me casarei – afirmou ele.

– Ah, todos dizem o mesmo, meu filho. Ainda não encontraste a mulher ideal. Espera um ano ou dois, e vais ver.

– Mas eu não me caso, mãe... fico a viver consigo, e vamos ter uma criada.

– Ah, meu filho... falar é fácil. Veremos quando chegar a altura.

– Que altura? Eu tenho quase vinte e três anos.

– Sim... não és dos que se casam cedo. Mas daqui a três anos...

– Estarei consigo na mesma.

– Veremos, meu filho, veremos.

– Mas a mãe não quer que eu case?

– Não gostaria de pensar que vais continuar pela vida fora sem ninguém para tomar conta de ti e te fazer... não, não gostaria...

– Acha então que devo casar-me?

– Mais cedo ou mais tarde, todos os homens devem casar-se.

– Mas preferia que fosse mais tarde.

– Será difícil... muito difícil. É como o povo diz:


«Quem casa filho, perde um filho;

quem casa filha, ganha um filho.»


– E pensa que eu deixaria uma mulher afastar-me de si?

– Bem, não poderias pedir-lhe que casasse contigo e com a tua mãe – sorriu Mrs. Morel.

– Ela que fizesse o que quisesse... desde que não interferisse.

– Não o faria... até te ter apanhado... Mas depois verias...

– Então nunca vou ver. Nunca me casarei enquanto a tiver a si... Nunca.

– Mas eu não gostaria de te deixar sem ninguém, meu filho – disse Mrs. Morel, chorando.

– A mãe não vai deixar-me. A mãe tem... cinquenta e três anos! Dou-lhe até aos setenta e cinco. Ora aí tem, nessa altura, estou eu gordo e com quarenta e quatro anos, e então posso casar com uma mulher séria. A mãe vai ver...!

A mãe sentou-se, a rir.

– Vai deitar-te – disse ela –, vai deitar-te.

– E havemos de ter uma casa bem bonita, a mãe e eu, e uma criada, e tudo será perfeito. Talvez eu venha a ficar rico com a minha pintura.

– Já para a cama!

– E a mãe terá uma caleche puxada por um potro. Imagina-se... uma pequena Rainha Vitória por aí a trotar.

– Já te disse para ires para a cama – disse ela, a rir.

Ele beijou-a e saiu. Os seus planos para o futuro eram sempre os mesmos.

Mrs. Morel ficou a matutar sobre a filha, sobre Paul, sobre Arthur. Lamentava-se por ter perdido Annie. A família era muito unida, e ela sentia que agora tinha de viver, para estar com os filhos. A vida tinha-lhe dado tanta coisa. Paul amava-a e Arthur também. Arthur nunca soube o quanto a amava. Era uma criatura de momentos. Até agora, nunca tinha sido obrigado a compreender--se a si mesmo. O exército disciplinara o seu corpo, mas não a sua alma. Estava de perfeita saúde e era muito atraente. O seu cabelo negro e espesso assentava-lhe bem na cabeça pequena. Havia algo de infantil no seu nariz, algo quase feminino nos seus olhos azuis, muito escuros. Mas tinha a boca vermelha e cheia de um homem, sublinhando o bigode, e o queixo era vigoroso. A boca era do pai, e o nariz e os olhos da família da mãe, gente bonita, de fracos princípios. Mrs. Morel andava ansiosa, preocupada com o filho. Desde que assumisse realmente o uniforme, estava seguro. Mas até onde iria ele?

Na verdade, o exército não lhe tinha feito nenhum bem. Ressentia-se amargamente da autoridade dos oficiais subalternos. Detestava ter de obedecer, como se fosse um animal. Mas tinha o bom senso de não protestar. Por isso, concentrara toda a sua atenção na tentativa de tirar o melhor partido da situação. Sabia cantar, era um companheiro alegre. Por vezes, envolvia-se em situações difíceis, mas eram as dificuldades próprias de um homem, facilmente perdoáveis. Assim, tirava disso o melhor partido, enquanto o seu autorespeito se ia recalcando. Confiava na sua boa aparência e elegância, no seu requinte e boa educação, para conseguir quase tudo o que desejava, e não estava desiludido. No entanto, sentia-se inquieto. Algo parecia atormentá-lo por dentro. Nunca estava quieto, nunca estava sozinho. Com a mãe, mostrava-se bastante humilde. Admirava Paul, amava-o até, mas desprezava-o ligeiramente. E Paul, por sua vez, admirava e amava o irmão, mas desprezava-o ligeiramente.

Mrs. Morel recebera algumas libras da herança do pai, e decidiu comprar a saída do filho do exército. Ele não cabia em si de contente. Parecia um garoto em férias.

Sempre gostara de Beatrice Wyld e, durante a sua licença, reatou a velha amizade. Ela estava agora mais forte e de melhor saúde. Os dois davam frequentemente longos passeios, e Arthur levava-a pelo braço à boa maneira dos soldados, com alguma rigidez. Beatrice tocava piano enquanto ele cantava. Arthur desapertava, então, o colarinho da túnica, ia ficando cada vez mais corado, com o olhar brilhante, e cantava com uma voz máscula de tenor. Depois, sentavam-se juntos no sofá. Ele parecia exibir o seu corpo, e ela mostrava-se bem consciente dele, do peito forte, dos flancos, das coxas cingidas nas calças justas.

Ele gostava de se resvalar para o dialecto quando conversava com ela. Por vezes, Beatrice acompanhava-o e fumava também um cigarro. Noutras ocasiões, tirava apenas umas passas do cigarro dele.

– Não – disse ele uma noite, quando ela lhe pediu o cigarro: – Nem penses. Se quiseres, dou-te um beijo com fumo.

– Quero uma passa, não quero beijo nenhum – respondeu ela.

– Então... é isso que vais ter – disse ele – juntamente com o beijo.

– Quero dar uma passa no teu cigarro – irritou-se ela, tentando tirar-lhe o cigarro dos lábios.

Arthur estava sentado com o ombro encostado ao dela. Ela era pequena e rápida como um raio. Só a custo ele conseguiu escapar-lhe.

– Dou-te um beijo de fumo – disse ele.

– És um descarado impertinente, Arty Morel – disse ela, recostando-se no sofá.

– Deixa-me dar-te um beijo de fumo!

O soldado inclinou-se, sorrindo. O seu rosto estava próximo do dela.

– Olha o disparate! – replicou ela, virando a cabeça.

Arthur aspirou uma longa fumaça, fechou a boca e pôs os lábios perto dela. O seu bigode escuro e bem aparado sobressaía como uma escova. Beatrice olhou para os lábios rubros, pregueados, e depois, subitamente, conseguiu arrancar-lhe o cigarro dos dedos e fugiu para longe. Ele, correndo atrás dela, tirou-lhe a travessa que lhe prendia os cabelos. Ela voltou-se e atirou-lhe o cigarro. Ele apanhou-o, pô-lo na boca e sentou-se.

– Parvalhão! – gritou ela. – Dá-me a minha travessa!

Receava que o seu cabelo, especialmente penteado para ele, se desmanchasse, e conservou as mãos na cabeça. Ele escondeu a travessa entre os joelhos.

– Não a tenho – disse.

Com o riso, o cigarro tremia-lhe entre os lábios enquanto falava.

– Mentiroso! – acusou ela.

– Tão certo como eu estar aqui! – E riu-se, mostrando as mãos.

– Seu demónio desavergonhado! – exclamou ela, precipitando-se para ele, lutando para recuperar a travessa que ele tinha entre os joelhos. Enquanto Beatrice lutava com ele, puxando-lhe as coxas macias e apertadamente cingidas, Arthur riu-se até cair para trás no sofá, sacudido pelas gargalhadas. O cigarro caiu-lhe da boca e quase lhe queimou a garganta. Sob o delicado bronzeado, o sangue subiu à superfície, e ele riu até os seus olhos azuis ficarem cegos e a garganta inchada, quase sufocando. Depois, endireitou-se. Beatrice estava a colocar a travessa no lugar.

– Fizeste-me cócegas, Beat – disse ele, com a voz rouca.

Como um relâmpago, a mão dela, pequena e branca, voou e esbofeteou-lhe a face. Ele ergueu-se de um salto, com um olhar feroz. Entreolharam-se. Lentamente, um rubor subiu às faces dela; baixou os olhos, depois a cabeça. Ele sentou-se novamente, amuado. Ela entrou na cozinha para compor o cabelo. Aí, sozinha, verteu algumas lágrimas, não sabendo bem por que razão.

Quando regressou, estava recomposta. Mas era apenas uma capa sobre o seu fogo interior. Arthur, com a cabeleira revolta, continuava amuado no sofá. Beatrice sentou-se diante dele, no cadeirão, e nenhum dos dois falou. O relógio martelava no silêncio, com pancadas secas.

– És uma gatinha arisca, Beat – disse ele devagar, quase como um pedido de desculpas.

– Bem, e tu não devias ser tão atrevido – retorquiu ela.

Seguiu-se novamente um longo silêncio. Ele assobiava para si mesmo, como um homem muito agitado, mas provocador. Subitamente, ela atravessou a sala direita a ele e beijou-o.

– Então, dei ou não dei? – troçou ela.

Ele levantou o rosto para ela, sorrindo de forma singular.

– Dás-me outro? – convidou ele.

– Julgas que não me atrevo? – perguntou ela.

– Coragem! – desafiou-a ele, com a boca estendida na sua direcção.

Deliberadamente, e com um sorriso fremente que parecia espalhar-se a todo o corpo, ela colocou a boca sobre a dele. Imediatamente, os braços de Arthur se fecharam em torno dela. Assim que o longo beijo acabou, ela afastou a cabeça, e meteu os dedos delicados no pescoço dele, por dentro do colarinho aberto. Depois, fechando os olhos, abandonou-se de novo num beijo.

Agia agora de livre vontade. O que desejava fazer, fizera-o e não responsabilizava ninguém.

Paul sentia a vida mudar à sua volta. As condições da juventude tinham desaparecido. Agora, a sua era uma casa de pessoas adultas. Annie era uma mulher casada, Arthur seguia o seu próprio prazer de um modo que a família ignorava. Durante muito tempo, tinham vivido em casa, saindo para passar o tempo. Mas agora, para Annie e Arthur, a vida desenrolava-se fora de casa da mãe. Só vinha a casa de férias ou para descansar. Por isso, pairava no ar aquela sensação estranha de vazio, como se os passarinhos tivessem levantado voo. Paul andava cada vez mais inquieto. Annie e Arthur haviam partido. Ele estava ansioso por lhes seguir o exemplo. No entanto, a casa era, para ele, ao lado de sua mãe. E, contudo, havia algo mais, algo cá fora, algo que ele desejava.

Andava cada vez mais desassossegado. Miriam não o satisfazia. O seu antigo desejo, quase loucura, de estar com ela, enfraquecera. Por vezes, encontrava Clara em Nottingham, por vezes acompanhava-a a reuniões, por vezes via-a em Willey Farm. Mas ultimamente a situação tornara-se constrangedora. Havia um triângulo de antagonismo entre Paul, Clara e Miriam. Com Clara, ele adoptava um tom vivo, mundano e trocista que era muito desagradável para Miriam. Não lhe importava o que acontecera antes. Ela podia ser íntima e estar triste com ele. Depois, assim que Clara aparecia, tudo desaparecia, e ele representava para a recém-chegada.

Miriam disfrutara de uma bela noite na companhia de Paul, sentados no feno. Ele estivera ocupado na cavalariça e, quando acabou, veio ajudá-la a colocar o feno em pequenos molhes. Depois, falou-lhe das suas esperanças e desesperos, e toda a sua alma parecia estar ali, desnuda diante dela. Ela sentiu-se como se visse nele a própria essência trémula da vida. A Lua despontou; regressaram juntos a casa; parecia que ele a procurara porque precisava desesperadamente dela, e ela escutou-o, deu-lhe todo o seu amor e confiança. A Miriam parecia que ele lhe trouxera o melhor que havia em si para guardar, e que ela o guardaria enquanto vivesse. Não, o céu não cuidaria das estrelas melhor e mais eternamente do que ela guardaria o que de bom havia na alma de Paul Morel. Entrou em casa sozinha, sentindo-se exaltada, satisfeita com a sua confiança.

E depois, no dia seguinte, Clara chegou. Estava combinado tomarem o chá no campo de feno. Miriam viu a tarde vestir-se de dourado e depois de sombras. Durante todo esse tempo, Paul brincava com Clara. Fazia montes de feno cada vez maiores sobre os quais saltavam. Miriam não se interessava pelo jogo e manteve-se afastada. Edgar, Geoffrey, Maurice, Clara e Paul não paravam de saltar. Paul venceu, pois era muito leve. O sangue de Clara estava inflamado. Ela corria como uma amazona. Paul adorava a forma determinada como ela se precipitava para o monte de feno e saltava, aterrando do outro lado, com os seios sacudidos e o cabelo espesso em desalinho.

– Tocaste! – gritou ele. – Tocaste!

– Não toquei nada! – dardejou ela, voltando-se para Edgar. – Não toquei, pois não? Não achas que passei bem?

– Não sei. – E Edgar riu-se.

Nenhum deles sabia dizer.

– Mas tu tocaste – insistiu Paul. – E perdeste.

– Não toquei! – gritou ela.

– Tão claro como água – teimou Paul.

– Dá-lhe um puxão de orelhas por mim – gritou ela a Edgar.

– Não – disse Edgar a rir –, não me atrevo. Tens de ser tu a fazê-lo.

– Nada vai alterar o facto de teres tocado – insistiu Paul, trocista.

Ela estava furiosa. O seu pequeno triunfo diante de homens e rapazes desvanecera-se. Ela esquecera-se de si durante o jogo. Agora, ele queria humilhá-la.

– Acho que és desprezível! – disse-lhe ela.

Ele riu novamente, de um modo que torturou Miriam.

– Eu já sabia que não conseguias saltar aquele monte – provocou Paul.

Clara voltou-lhe as costas. Contudo, todos podiam ver que a única pessoa que ela escutava, ou da qual estava consciente, era ele, e ele dela. Agradava aos homens assistir a esta batalha entre eles. Mas Miriam torturava-se.

Via agora que Paul podia escolher o inferior em vez do superior. Ele conseguia ser infiel a si próprio, infiel ao verdadeiro e profundo Paul Morel. Havia o perigo de ele se tornar frívolo, de correr atrás das suas satisfações como qualquer Arthur, ou como o seu próprio pai. Pensar que ele pudesse desperdiçar a sua alma em troca desta irreverente relação de trivialidade com Clara era algo que atormentava Miriam. Caminhava amargurada e em silêncio, enquanto os outros dois brigavam entre si e Paul se divertia.

Mais tarde, embora se recusasse a admiti-lo, Paul sentiu-se envergonhado de si mesmo e prostrou-se diante de Miriam. Então, de novo se revoltou.

– Não é religioso ser-se religioso – disse. – Considero que um corvo é religioso quando cruza os céus. Mas só o faz porque se sente levado para onde vai, não porque pense que está a ser eterno.

Mas Miriam sabia que uma pessoa podia ser religiosa em tudo, ter Deus, fosse Ele quem fosse, presente em tudo.

– Não acredito que Deus saiba assim tanto sobre Si mesmo – bradou Paul. – Deus não sabe as coisas, Ele é as coisas... E estou certo de que não é sentimental.

A ela parecia-lhe que Paul tentava pôr Deus do seu lado, porque queria que as coisas fossem à sua maneira e desejava apenas o seu prazer. Travou-se uma longa batalha entre ambos. Ele era-lhe absolutamente infiel até mesmo na sua presença; depois ficava envergonhado, arrependido, para logo em seguida a odiar e fugir novamente. Essa era a situação eternamente repetida.

Ela irritava-o até ao mais fundo da sua alma. Depois, ali ficava, triste, pensativa, em adoração. E ele fazia-a sofrer. Metade do tempo, ele sofria por ela, metade do tempo, odiava-a. Ela era a sua consciência, e ele sentia que, de algum modo, tinha uma consciência que era de mais para si. Não podia deixá-la, porque, de certa forma, ela detinha em seu poder o melhor que havia nele. Não podia ficar com ela, porque ela não recebia tudo o resto, o que vinha por acréscimo, e eram três quartos. Por isso, desgastava-se em crueldade para com ela.

Quando ela fez vinte e um anos, ele escreveu-lhe uma carta que apenas podia ter sido escrita para ela.

«Será que devo escrever-te uma carta de aniversário? Parece um pouco pernicioso fazê-lo deliberadamente, não achas? Porque é certo que vou ser presunçoso e sentencioso.» Seguia-se então uma boa dose de presunção:

«A minha última carta preparava-te, não é verdade, para as alegrias da idade que se aproximava. Não te sentes como uma herdeira ao tomar posse da sua herança? É que agora, tornas-te publicamente dona de ti mesma. Querias mais?... Impossível!»

Paul começava a sentir o sentimento de culpa a torturá-lo. Parecia despedaçado por dentro, como se não pudesse manter-se de pé, mas devesse esforçar-se por não cair.

«Deixa-me falar do nosso velho e desgastado amor, pela última vez. Também ele está a mudar, não te parece? É como se o corpo desse amor tivesse morrido, deixando-te a sua alma invulnerável! Sabes, eu posso dar-te um amor espiritual, como sempre fiz du-rante estes longos, longos anos; mas não uma paixão encarniçada. Sabes, tu és uma freira. Eu dei-te aquilo que teria dado a uma freira sagrada... como um monge místico dá a uma freira mística; certamente que o estimas mais. No entanto, lamentas... não, lamentaste, melhor dizendo... o outro. Em todas as nossas relações, não entra o corpo. Não estou a falar-te através dos sentidos... mas através do espírito. É por isso que não somos capazes de amar no sentido comum. Muitas vezes, quando me dirijo a ti, não te olho de frente, porque, vê se entendes, eu não falo para os teus olhos, embora eles sejam escuros e belos, não falo para os teus ouvidos, ocultos sob uma delicada mecha de cabelo sedoso... mas para o teu íntimo, para lá de tudo isso. E assim continuarei a fazer a vida inteira, se o destino não intervier. Estás a ver? Compreendes agora porque só te beijo debaixo do azevinho. Entendes? E eu, será que entendo? Será talvez melhor, pensarás tu. Eu acho que sou demasiado educado, demasiado civilizado. Acho que muita gente o é.

«Tu ocupas um lugar na minha natureza que ninguém mais poderia preencher. Tu tens desempenhado um papel fundamental no meu desenvolvimento. E esta dor, que tem sido como uma nuvem ensombrando as nossas almas, não se começa ela a dissipar? A nossa não é uma afeição banal. E, no entanto, somos mortais, e viver lado a lado um com o outro seria terrível, pois, de algum modo, contigo não posso já ser trivial e, sabes, estar sempre para além deste estado mortal seria perdê-lo. Se as pessoas casam, devem viver juntas como seres humanos afectuosos que podem ser banais um com o outro sem se sentirem estranhos... não como duas almas. É assim que penso.

«Talvez me case nos próximos anos. Terá de ser uma mulher a quem possa beijar e abraçar, a quem possa fazer mãe dos meus filhos, com quem possa falar divertidamente, trivialmente, sinceramente, mas nunca com esta terrível seriedade. Vê como o destino dispôs as coisas. Tu... tu podes casar com um homem que não se derrame como fogo diante de ti. Pergunto-me se entendes... pergunto-me se eu próprio me entendo. Mas tu sabes que estas coisas me perturbam, e agora eis um final para a nossa conversa sobre este assunto. Perdoa-me por tudo o que disse – não é natural, eu sei – e queima esta carta, e não penses nela nem me faças pensar nela, e Deus nos ajude a suportar o fardo de nós próprios.

«Gostarias de um Manual de Ética? Acho que gostarias, sim, e podemos falar disso e aprender... oh, sim. E tu ficarás mais culta, não é? Como vês, a nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro.

«Agora tens vinte e um anos. Estou tão feliz por seres uma mulher independente. És tão forte quanto eu, não és? Sim, ainda mais forte. Oh, se temos de viver, temos de ser sensatos, e não nos podemos permitir ir longe de mais. Devemos ser triviais e procurar a beleza e não a dor, pois de outro modo ficamos numa situação difícil. Vá lá, nem uma palavra sobre os lugares sensíveis, por enquanto.

«Oh, como estaremos alegres na tua festa, no sábado! Eu, agora, não sinto nem um pouco de tristeza dentro do meu coração.

«Será que devo enviar-te esta carta? Duvido. Mas, afinal... é melhor, para que possas compreender. Adeus...»

Miriam leu a carta duas vezes, fechando-a em seguida. Um ano mais tarde, quebrou o selo para a mostrar à sua mãe.

«Tu és uma freira... tu és uma freira» – as palavras penetravam-lhe no coração uma e outra vez. Nada do que ele alguma vez dissera a penetrara tão profunda e firmemente, como se de uma ferida mortal se tratasse.

Ela respondeu-lhe dois dias depois da festa. «A nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro», citou. «Terá esse erro sido meu?»

Quase de imediato, ele respondeu-lhe de Nottingham, enviando-lhe ao mesmo tempo um pequeno Omar Khayyam.

«Vais encontrar muita coisa entre as finas capas deste pequeno livro, mas a lição a retirar é que devemos beber o vinho tinto da vida e deixá-lo embriagar-nos por um instante. Foi essa a razão por que o comprei. Também quero levar-te The Blessed Damosel, para passar um serão contigo e com Rossetti.

«Se o pequeno erro foi teu, perguntas tu. Bem, ninguém erra sozinho! A tua quota-parte do erro foi gloriosa, digna da imortalidade. Mas a minha foi um reconhecimento indomável do barro do vaso... frágil... rígido... confinador. E eu, alternadamente, amei e odiei a matéria mundana de mim mesmo. Quando a amava, era cruel para ti, quando a odiava, era cruel para mim, e para tudo o mais. Não tenho eu a faculdade de ser muito cruel?

«Se, na festa dos teus anos, eu estava ainda algo tempestuoso, foi porque reconheci no teu sol de quarta-feira o brilho lavado do teu longo dia de chuva de terça-feira. Eu não me sento e travo a descoberto as minhas batalhas, como tu fazes. Eu sacudo o inimigo pela garganta e grito-lhe que ele é um vilão e um cão. Com isso, ordeno-lhe que vá para longe de mim e, por um momento, fico em liberdade. Depois, digo a mim mesmo que se tratava de um pobre coitado e rio. Pouco depois, mergulho novamente nas trevas, ao descobrir que ele não se foi nem tão-pouco está morto... E, quando tudo isto se torna insuportável, travo com ele nova luta feroz. Através destas batalhas violentas venço, ou não venço. Sem triunfos, sem Waterloos. Assim, não sofro tão intensamente, e fico menos estável. Afinal de contas, é uma brincadeira, esta coisa de “nós”, não é?

«Estou feliz por teres respondido... És tão calma e natural que me envergonhas. Que oco que eu sou! Tenho de jogar duro... Tu não entendes como eu posso dançar em redor dos meus inimigos, invectivando-os e espiando-os, lançando mão de tudo o que me aparece no caminho, travando contendas ocasionais. Se eu me fechasse a tudo e mantivesse a dor apertada no peito, como tu fazes, morreria de exaustão. Nisso, as nossas naturezas são radicalmente opostas.

«Por isso, estamos tantas vezes em desacordo. Mas, no fundamental, estaremos sempre juntos, penso eu.

«Tenho de agradecer-te pela tua simpatia para com a minha pintura e os meus desenhos. Muitos dos esboços são dedicados a ti. Espero ansiosamente as tuas críticas, que, para minha vergonha e glória, são sempre grandes apreciações. Que deliciosa brincadeira que isso é.

«Adeus. Agora tenho de saldar uma maldita conta. Espero que queimes estas cartas. É minha regra queimá-las todas... pois nenhuma me dá prazer a não ser pela lembrança do prazer a que se referem, e muitas estão cheias de lágrimas secretas das quais devo fugir...»

Este foi o fim da primeira fase dos amores de Paul Morel. Estava agora com vinte e três anos e, embora virgem, o instinto sexual que Miriam refinara nele durante tanto tempo estava agora cada vez mais fortalecido. Muitas vezes, quando falava com Clara Dawes, sentia o sangue engrossar e alvoroçar-se, aquela concentração peculiar no peito, como se algo estivesse vivo lá dentro, um novo ser ou um novo centro de consciência, avisando-o de que, mais cedo ou mais tarde, teria de decidir-se por uma mulher ou por outra. Mas ele pertencia a Miriam. Disso ela estava absolutamente segura, de que ele lhe concedia esse direito.


X

CLARA

COM VINTE E TRÊS anos, Paul mandou uma paisagem sua para a Exposição de Inverno de Newcastle. Miss Jordan tinha-se interessado muito por ele e convidara-o para ir a sua casa, onde conheceu outros artistas. Paul começava a ter ambições.

Uma manhã, estava ele a lavar-se na copa, quando chegou o carteiro. Paul ouviu a mãe numa gritaria desenfreada. Correu para a cozinha e viu-a de pé diante da lareira, a agitar uma carta, como louca, e a gritar «Vivas!». Ficou chocado e assustado.

– Oh, mãe! – exclamou.

A mãe correu para ele e atirou-se-lhe ao pescoço, enquanto agitava a carta, gritando:

– Parabéns, meu filho... Eu sabia que havíamos de vencer!

Paul estava cheio de medo daquela mulher pequenina e bem-comportada, já de cabelos grisalhos, que de repente desatara naquele chinfrim. Até o carteiro voltou para trás a correr, pensando que tinha acontecido alguma desgraça. Viram-lhe o cocuruto do boné por detrás da cortina. Mrs. Morel precipitou-se para a porta.

– O quadro dele ganhou o primeiro prémio, Fred, e foi vendido por vinte guinéus!

– Ena pá! G’ande acontecimento! – disse o carteiro, um rapaz novo, que ela conhecia desde pequeno.

– Quem o comprou foi o major Moreton – acrescentou Mrs. Morel.

– Isso vale muito, olá se vale, Mrs. Morel – disse o carteiro, de olhos azuis a luzir. Não cabia em si de contente por ter sido o portador de tão boas notícias. Mrs. Morel voltou para dentro e sentou-se. Tremia dos pés à cabeça. Paul só tinha medo de que ela tivesse lido mal a carta e sofresse uma desilusão. Releu-a uma, duas vezes, e convenceu-se de que era mesmo verdade. Então, sentou-se, com o coração a pulsar forte, de alegria.

– Oh, mãe! – exclamou.

– Eu não te disse que havíamos de vencer? – disse ela, disfarçando as lágrimas.

Paul tirou a chaleira do lume e escaldou o chá.

– A mãe não imaginava que... – começou ele, hesitante.

– Não, meu filho... assim tanto não... mas esperava bastante.

– Mas tanto não – disse ele.

– Não... isso não... mas sabia que íamos vencer.

E logo recuperou a compostura, pelo menos aparentemente. Ele estava sentado, de camisa aberta, deixando-lhe a descoberto um pescoço quase feminino, de toalha na mão e cabelo em pé.

– Vinte guinéus, mãe! Exactamente o que a mãe precisava para resgatar o Arthur. Agora já não precisa de pedir emprestado. É mesmo à conta.

– Nem pensar nisso, não te vou ficar com o dinheiro todo! – disse ela.

– Ora essa, porquê?

– Porque não devo.

– Bem... então a mãe fica com onze libras... e eu com nove.

Continuaram a discutir a divisão dos vinte guinéus. Ela só queria as cinco libras de que precisava. Ele não concordava de maneira nenhuma. E, assim, a discussão serviu para descarregarem a tensão.

Morel, quando à noite chegou da mina, disse, mal entrou:

– Ouvi dizer qu’o quadro do Paul ganhou o primeiro prémio e foi vindido a Lorde Henry Bentley por cinquenta libras.

– As histórias que as pessoas contam! – exclamou Mrs. Morel.

– Ah! – disse ele. – Eu bem sabia qu’era mentira. Mas impingiram-me que tu é que tinhas contado ò Fred Hodgkisson.

– Como se eu lhe fosse dizer uma coisa dessas!

– Ah! – aquiesceu o mineiro.

Via-se que estava desapontado.

– Lá que ganhou o primeiro prémio... isso é verdade – disse Mrs. Morel.

O mineiro deixou-se cair pesadamente na cadeira.

– Conseguiu! – exclamou o mineiro.

Estava perplexo, de olhar pregado algures, no outro lado da sala.

– Mas, quanto às cinquenta libras, que disparate! – E Mrs. Morel calou-se por um instante. – Enfim... o major Moreton comprou-o por vinte guinéus...

– Vinte guinéus! Num pode ser! – exclamou Morel.

– Pois foi, e bem os merece.

– Tá bem! – disse ele. – Num duvido... Mas vinte guinéus por uma pintura qualquer qu’ele fez numa ou duas horas...! – Depois calou-se, cheio de respeito pelo filho. Mrs. Morel fungou ligeiramente, como se isso não fosse nada de importante.

– E quand’é qu’ele põe as mãos na massa? – perguntou o mineiro.

– Isso não sei... quando o quadro for entregue, suponho.

Fez-se silêncio. Morel olhava para o açucareiro em vez de comer, com o braço enfarruscado e a mão desfigurada pelo trabalho apoiados em cima da mesa. A mulher fingiu não ver quando ele limpou os olhos com as costas da mão, com a cara toda esborratada do pó da mina.

– Pois é, e o outro tamém havia de ter feito o mêmo, se num o tivessem matado – disse ele, em voz baixa.

A lembrança de William retalhou Mrs. Morel como uma lâmina gelada, deixando-a fatigada e a precisar de se ir deitar.

Paul foi convidado para jantar em casa de Mr. Jordan. Ao chegar a casa, disse:

– Mãe, preciso de um smoking.

– Sim, já calculava – disse ela. Estava contente. Fez uma pausa. – Tens o do William – prosseguiu. – Sei que custou quatro libras e dez xelins, e ele só o vestiu três vezes...

– E a mãe gostava que eu o usasse? – perguntou Paul.

– Com certeza. Acho que te deve servir... pelo menos o casaco. As calças têm de ser subidas.

Paul foi para o quarto e vestiu o casaco e o colete. Quando desceu estava bastante bizarro, com o colarinho e o peitilho de flanela e o casaco e colete de cerimónia. Estava-lhe tudo muito largo.

– O alfaiate aperta-te isso – disse a mãe, alisando-lhe o casaco no ombro. – O tecido é muito bonito. Nunca tive coragem para deixar o teu pai usar as calças e bem contente estou agora de o ter feito.

Enquanto passava a mão nas bandas de seda do casaco, pensou no filho mais velho. Mas este outro filho estava bem vivo dentro do fato, e ela passou-lhe a mão nas costas para o sentir. Estava vivo e era dela. O outro estava morto.

Paul foi a vários jantares com o smoking que tinha sido de William. De cada vez que isso acontecia, o coração da mãe exultava de orgulho e alegria. O filho estava lançado na vida. Os botões que ela e os irmãos tinham comprado para William trazia-os ele no peitilho, aplicados numa das camisas de cerimónia de William. Paul tinha uma bela figura. As suas feições eram algo rudes, mas era simpático e muito amável. Não seria propriamente um cavalheiro, mas via-se que estava ali um homem genuíno.

Paul contava à mãe tudo o que se passava, tudo o que se dizia. Era como se ela lá tivesse estado. E ele estava morto por lhe apresentar os novos amigos com quem ia jantar às sete e meia.

– Ir contigo? – disse ela. – Para que hão-de querer eles conhecer-me?

– Mas querem! – exclamou, indignado. – Se querem conhecer-me, como dizem, então querem conhecê-la a si também... porque a mãe é tão inteligente como eu.

– Ir contigo, meu filho... – E riu-se.

Mas começou a poupar mais as mãos. Também as dela estavam muito calejadas do trabalho. A pele estava lustrosa da água quente e os nós dos dedos inchados. Mas começou a ter o cuidado de não as meter em lixívia. Tinha saudades das suas mãos de outros tempos, pequenas e delicadas. E quando Annie começou a insistir com ela para usar blusas mais requintadas, de acordo com a sua idade, ela fez-lhe a vontade. Permitiu até que lhe pusessem um laço preto de veludo no cabelo. Depois, deu uma fungadela sarcástica, mas sabia que lhe ficava bem. Parecia uma senhora da sociedade, afirmava Paul, tão fina como Mrs. Moreton, e muito, muito mais bonita. A família estava a subir na escala social. Só Morel continuava na mesma, ou melhor, piorava lentamente.

Paul e a mãe discutiam longamente sobre a essência da vida. A religião ia desaparecendo da vida de Paul. Tinha-se desembaraçado de todas as crenças que o pudessem aperrear, fizera uma limpeza geral, e chegara mais ou menos ao âmago da fé, ou seja, que cada um deve procurar o bem e o mal dentro de si mesmo, e ir, com paciência, construindo a sua própria ideia de Deus. E, a partir dessa altura, passou a interessar-se mais pela vida.

– Sabe – disse ele à mãe –, não quero pertencer a uma burguesia abastada. Prefiro o povo. Eu sou do povo.

– Mas se fosse outra pessoa a dizê-lo, meu filho, ias ficar furioso. Tu sabes que te consideras igual a qualquer grande senhor.

– No íntimo, talvez – respondeu ele. – Não na classe ou na educação, ou nas maneiras. Mas no íntimo, isso sim.

– Muito bem... Então para quê falar no povo?

– Porque... a diferença entre as pessoas não está nas classes sociais, mas nelas mesmas... Só que às classes médias vão-se buscar as ideias, e ao povo... a própria vida, o calor humano. No povo sentem-se vibrar o ódio e o amor...

– Isso é tudo muito bonito, meu filho... mas então porque não vais conversar com os amigos do teu pai?

– Esses são muito diferentes.

– Não concordo. São gente do povo. Afinal, com que pessoas do povo é que te dás agora? Com as que gostam de trocar ideias, falar das mesmas coisas que a burguesia. As outras não te interessam.

– Mas... há a vida...

– Não creio que a Miriam te dê mais vida do que qualquer rapariga culta... Miss Moreton, por exemplo. Tu é que tens preconceitos de classe, estás a ficar um snob.

A mãe desejava francamente que o filho ascendesse à burguesia, o que ela sabia não ser difícil. E desejava vê-lo, no fim, casado com uma senhora da sociedade.

Empenhava-se agora em combater no filho a sua incessante inquietação. Ele ainda mantinha a ligação com Miriam, não conseguindo nem acabar com tudo nem assumir o compromisso em definitivo, e a indecisão parecia consumir-lhe as energias. Além disso, a mãe pressentia nele uma inclinação inconsciente para Clara, e sendo ela uma mulher casada, Mrs. Morel só desejava que o filho se apaixonasse por alguém em situação menos complicada. Mas Paul, estupidamente, recusava-se a amar, ou sequer a admirar uma rapariga só pelo facto de ela pertencer a uma classe mais elevada.

– Meu filho – disse-lhe a mãe –, nem toda a tua inteligência, nem todo o teu desprezo pelas tradições antigas, nem essa mania de fazeres só o que queres, parecem trazer-te grande felicidade.

– E o que é a felicidade? – exclamou ele. – Para mim não existe! Como é que eu posso ser feliz?

Esta pergunta tão directa perturbou-a.

– Isso só tu podes saber, meu filho. Mas, se pudesses encontrar uma mulher decente que te fizesse feliz... quando te bastava quereres... terias mais sossego para trabalhar... seria muito melhor para ti.

Paul franziu o sobrolho. A mãe pusera o dedo em cheio na ferida chamada Miriam. Ele afastou os cabelos da testa, com o olhar incendiado de dor.

– Isso é fácil de dizer, mãe – gritou. – Isso é a cartilha de todas as mulheres... paz de espírito e conforto físico. Para mim, isso não vale nada.

– Ah, não? – retorquiu a mãe. – Se calhar achas que o teu desencanto é divino, não?

– Acho... Lá da divindade não quero saber. Mas diabos levem a sua felicidade! Desde que se tenha uma vida cheia, não interessa se é ou não de felicidade. Receio que a sua felicidade me enchesse de tédio.

– Tu nem sequer tentas – disse a mãe. E, de repente, toda a dor que sentia por ele explodiu. – E isso é importante! – gritou ela. – Tinhas obrigação de ser feliz, tinhas obrigação de tentar ser feliz, de viver feliz. Como é que eu ia ficar, sabendo que eras infeliz?

– A sua vida foi suficientemente má, Mater, mas não a deixou muito pior do que os que foram mais felizes. Julgo que se saiu até muito bem. Comigo passa-se o mesmo. Não acha que me estou a sair bem?

– Não, meu filho, não estás. Batalhar... batalhar... e sofrer... é tudo o que fazes, pelo que eu vejo...

– E porque não, querida mãe? É o melhor que há a fazer...

– Não, não é! As pessoas têm obrigação de ser felizes!

Mrs. Morel tremia dos pés à cabeça. Discussões destas repetiam-se sempre que a mãe parecia querer lutar pela vida do filho, opondo-se à sua vontade de morrer. Paul abraçou-a. Ela estava doente, metia dó.

– Deixe lá, mãezinha! – murmurou Paul. – Desde que a vida não nos pareça mesquinha e miserável, o resto não importa... que seja feliz ou infeliz.

Ela apertou-o contra o peito.

– Mas eu quero que sejas feliz – disse, pateticamente.

– Oh, mãezinha adorada... diga antes que quer que eu viva.

Mrs. Morel sentiu o coração morrer por ele. Sabia que, por este andar, ele não duraria muito. O seu desleixo pungente, a propensão para o sofrimento, a vida que levava, eram tudo formas lentas de suicídio. Dilacerava-se-lhe o coração só de pensar. Odiava Miriam com toda a força da sua determinação por tão subtilmente ter minado a alegria de Paul. Não lhe interessava que não o fizesse por mal. Fazia-o, e ela odiava-a.

Queria tanto que o filho se apaixonasse por uma rapariga à sua altura – educada e forte. Mas ele não olhava para ninguém que considerasse superior. Parecia gostar de Mrs. Dawes. Pelo menos esse sentimento era genuíno. A mãe não se cansava de rezar por ele, para que não se perdesse. Era tudo o que pedia: não pela sua alma ou pela rectidão do seu carácter, mas para que não se perdesse. E, enquanto ele dormia, passava horas a fio a pensar nele e a rezar por ele.

Paul afastou-se de Miriam imperceptivelmente, sem o saber. Arthur só saiu do exército para se casar. O bebé nasceu seis meses após o casamento. Mrs. Morel arranjou-lhe um novo emprego na mesma firma onde trabalhara antes, a ganhar vinte e um xelins por semana. Com a ajuda da mãe de Beatrice, mobilou-lhe uma casinha de dois quartos. Agora estava definitivamente apanhado. Não importava barafustar e espernear, estava bem preso. Andou mal-humorado durante algum tempo, mostrando-se insuportável com a mulher que o amava; não ligava quando o bebé, que era franzino, chorava ou dava preocupações. Fazia à mãe queixas intermináveis, mas ela limitava-se a dizer: «Bem, meu filho, o responsável és tu, tens de aprender a tirar partido da situação.» E, finalmente, ganhou juízo. Agarrou-se ao trabalho, assumiu as suas responsabilidades, compreendeu que pertencia à mulher e ao filho e aprendeu a tirar o melhor partido da situação. Nunca se tinha sentido muito ligado à família, e agora afastava-se de vez.

Os meses iam passando devagar. Através de Clara, Paul tinha-se mais ou menos relacionado com os socialistas, as sufragistas e os sindicalistas de Nottingham. Um dia, uma amiga dele e de Clara, que morava em Bestwood, pediu-lhe que levasse um recado a Mrs. Dawes. Ao fim da tarde, Paul foi até Bluebell Hill, metendo por Sneinton Market, e lá conseguiu encontrar a casa numa ruela empedrada a granito e com passeios de tijolo azul-escuro, rugoso. Um degrau separava a porta da tosca calçada, servindo também para as pessoas limparem os pés e baterem com as botas para sacudirem a lama. A pintura castanha da porta estava tão deteriorada que se via a madeira por baixo da tinta a descascar. Paul ficou na rua, e bateu à porta. Soaram passos pesados e, por cima da sua cabeça, surgiu uma mulher alentada, por volta dos sessenta anos. Ele olhou para ela do passeio. A mulher tinha uma expressão severa.

Mandou-o entrar para a sala, que dava directamente para a rua. Era um quartinho pequeno, abafado e tétrico, com móveis de mogno e descomunais retratos a carvão de gente já falecida. Mrs. Radford saiu da sala com o seu passo imponente, quase marcial. Clara entrou logo a seguir e, ao vê-lo, corou até às orelhas, o que o deixou atrapalhado. Era como se não lhe agradasse que ele a tivesse vindo encontrar no seu ambiente doméstico.

– Parecia-me impossível ser a tua voz – disse ela.

Mas agora, perdido por cem, perdido por mil... e levou-o do mausoléu directamente para a cozinha.

A cozinha era também escura e acanhada, mas encontrava-se atafulhada de rendas brancas. A mãe tinha ido sentar-se de novo junto ao aparador, às voltas com uma emaranhada teia de renda. À sua direita, um monte solto de linha de algodão; à esquerda, tufos e mais tufos de espiguilha de renda; e, à sua frente, sobre o tapete da lareira, a tal teia emaranhada. Os fios encaracolados, puxados do emaranhado de rendas, espalhavam-se por cima do guarda-fogo e pela chaminé. Paul não se atrevia a dar um passo, não fosse tropeçar nos rolos de linha branca.

Em cima da mesa estava uma dobadoura. Havia ainda um maço de cartões castanhos e quadrados para enrolar a renda, uma caixinha de alfinetes e, em cima do sofá, um outro monte de renda.

Havia rendas por todo o lado, e a cozinha era tão escura e quente que fazia sobressair ainda mais a nuvem branca, rendada.

– Já que cá tá, num repare d’eu continuar a trabalhar – disse Mrs. Radford. – Sei que tá tudo atravancado, mas faça o favor de s’assentar.

Clara, muito atrapalhada, encostou à parede uma cadeira, para ele se sentar, em frente aos novelos de brancura, e sentou-se ela no sofá, envergonhada.

– Quer beber uma cerveja preta? – perguntou Mrs. Radford.

– Clara, vai buscar-lhe uma cerveja.

Paul protestou, mas Mrs. Radford insistiu.

– Tá cum ar de quem precisa – disse ela. – Nunca anda com melhores cores do qu’isso?

– É da minha pele, é muito grossa e não deixa ver o sangue à transparência – respondeu ele.

Clara, envergonhada e aborrecida, trouxe-lhe uma garrafa de cerveja e um copo. Paul deitou o líquido preto no copo.

– Bem – disse ele, erguendo o copo –, à nossa!

– Agradecida – disse Mrs. Radford.

Paul bebeu um gole.

– E pode fumar à vontade, desde que num deite fogo à casa – acrescentou Mrs. Radford.

– Obrigado – respondeu Paul.

– Num precisa de m’agradecer – disse ela. – Até vou gostar de sintir o cheirinho do tabaco aqui em casa outra vez. Uma casa só de mulheres é tão triste com’uma casa sem lareira, acho eu. Num sou de querer o meu canto só pra mim. Inté gosto de ver um home a andar por aí... se ele for alguma coisa que se veja.

Clara começou a trabalhar. A dobadoura rodava, chiando mansamente, e a renda branca saltava-lhe por entre os dedos para o cartão. Quando o cartão ficou cheio, ela partiu a espiguilha e, com um alfinete, prendeu a ponta à renda já enrolada. Depois, meteu novo cartão na dobadoura. Paul observava-a. Estava sentada com as costas muito direitas, magnífica. Tinha o pescoço e os braços desnudados. O sangue aflorava-lhe à face, por baixo da orelha, e mantinha a cabeça baixa, de vergonha e humilhação. Os olhos estavam pregados no trabalho. Os seus braços eram de um tom mate e pujantes de vida, comparados com a renda branca. As suas mãos, grandes e bem tratadas, trabalhavam em movimentos cadenciados, como se nada pudesse apressá-las. Ele, sem se aperceber, não tirava os olhos dela. Era a linha do seu pescoço, prolongando-se desde o ombro, quando ela se curvava; era o seu cabelo castanho-escuro; era o movimento dos seus braços resplandecentes.

– A Clara falou-me de si – continuou a mãe. – Trabalha na Jordan, não é? – E continuou a fazer renda sem parar.

– É, sim.

– Inda m’alembra de quando o Thomas Jordan costumava pedir-me caramelos.

– Ah, sim? – disse Paul, sorrindo. – E ele merecia-os?

– Umas vezes sim, outras não... sobretudo para o fim. Ele é dos que levam tudo e num dão nada, isso é qu’ele é... ou, pelo menos, costumava ser.

– Eu acho-o uma pessoa muito decente.

– Bom... folgo em saber.

Mrs. Radford olhava Paul sem pestanejar. Havia nela uma determinação que lhe agradava. A cara estava flácida, mas os olhos eram calmos, e havia nela um vigor que refutava a velhice, fazendo as rugas e as peles parecerem um mero anacronismo. Tinha a força e o sangue-frio de uma mulher na pujança da vida. Continuou a fazer renda com movimentos lentos e muita dignidade. A fofa teia amontoava-se-lhe inevitavelmente no avental, tombando depois pouco a pouco para o chão, ao seu lado. Os braços eram bem torneados, mas luzidios e amarelados, de marfim velho, e não tinham aquele tom mate que tornava, a seu ver, tão fascinantes os de Clara.

– Anda atão c’a Miriam Leivers? – perguntou a mãe de Clara.

– Bem... – disse ele.

– É boa rapariga – prosseguiu Mrs. Radford. – Boa rapariga, mas um bocado fedúncia cá prò meu gosto.

– Sim, talvez... – concordou Paul.

– Só fica satisfeita quando tiver asas pra poder voar por cima da cabeça de toda a gente – disse ela.

Clara interrompeu-os, e Paul deu-lhe o recado que o levara lá. Ela falava com ele com humildade, vendo-se surpreendida no seu antro de miséria. Ao vê-la assim, humilde, era como se ele a esperasse, ansioso.

– Gostas de dobar? – perguntou Paul.

– O que é que uma mulher há-de fazer? – respondeu ela amargamente.

– É cansativo?

– Mais ou menos. E não o é todo o trabalho feminino? Essa é outra das partidas que os homens nos pregaram, desde que conquistámos o nosso lugar no mundo do trabalho.

– Atão... num fales mal dos homes – disse a mãe. – S’as mulheres num fossem umas parvas, os homes num eram tão maus, é o qu’eu digo... Olha que nenhum home me tratou mal que não levasse o troco... Mas que são uns danados, lá isso são, num adianta negar.

– Mas boas pessoas, não concorda? – perguntou Paul.

– Bem... são um bocado diferentes das mulheres – disse ela.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – perguntou ele a Clara.

– Acho que não – respondeu ela.

– Gostava, pois! – exclamou a mãe. – Ficava toda contente se voltasse. Num lhe ligue. Ela é toda cheia de nove horas, mas qualquer dia inda vai morrer de fome.

Clara passava vergonhas com a mãe. Até Paul sentia os olhos abrirem-se-lhe de espanto. Será que não devia mesmo ligar aos remoques de Clara? Ela trabalhava com afinco. E ele sentiu um arrepio de prazer só de pensar que ela podia precisar da sua ajuda. Parecia tão carente e privada de tanta coisa. O seu braço, que não fora feito para se amarrar a um mecanismo, movia-se mecanicamente; e a cabeça, que não fora feita para andar curvada, curvava-se sobre a renda. Parecia presa à dobadoura, entre os desperdícios de uma vida. Era muito duro para ela ver-se dispensada pela vida, como se já não tivesse préstimo. Não admira que protestasse tanto.

Clara acompanhou-o à porta. Ele ficou parado na ruela miserável, a olhar para ela. Era tão soberba na figura e no porte que fazia lembrar Juno destronada. De pé, na soleira da porta, fechava os olhos à rua e à miséria que a rodeava.

– Vais a Hucknall com Mrs. Hodgkinson?

Paul dizia coisas sem sentido, de olhos postos nela. Os olhos cinzentos de Clara encontraram finalmente os seus. Estavam mudos de humilhação, contritos, com uma espécie de submissão de escrava. Ele ficou surpreendido, sem saber o que fazer. Sempre a tinha imaginado altiva e poderosa.

Quando dali saiu, só lhe apetecia fugir. Dirigiu-se para a estação, como um sonâmbulo, e chegou a casa sem consciência de já não estar na rua dela.

Estava convencido de que Susan, a supervisora da Espiral, se ia casar, e no dia seguinte perguntou-lho.

– Diz-me uma coisa, Susan, ouvi dizer que te vais casar. É verdade?

Susan corou.

– Quem te disse? – perguntou ela.

– Ninguém. Apenas ouvi dizer que estavas a pensar...

– Lá isso estou... Mas não precisas de contar a ninguém. E, ainda por cima, quem me dera não estar...!

– Julgas que eu acredito nisso, Susan?

– Pois podes acreditar. Antes queria mil vezes ficar como estou.

Paul estava chocado.

– Porquê, Susan?

A rapariga estava ruborizada e fulminava-o com o olhar.

– Porque sim!

– E tens mesmo de casar?

Em resposta, ela limitou-se a olhar para ele. Paul tinha uma candura e uma gentileza que faziam as mulheres confiar nele. Compreendeu o que ela queria dizer.

– Ah, desculpa – disse ele. Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

– Mas verás que tudo vai correr bem. Tenta ver as coisas pelo lado melhor – disse ele, melancólico.

– Nem posso fazer outra coisa.

– Podes sim, podes dar cabo da tua vida. Esforça-te por seres feliz.

Paul arranjou novo pretexto para ir a casa de Clara.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – disse ele.

Ela pousou o trabalho, apoiou os braços belíssimos em cima da mesa e fitou-o sem responder. Pouco a pouco, um rubor subiu-lhe às faces.

– Porquê? – perguntou.

Paul sentiu-se constrangido.

– Bem... É que a Susan está a pensar em ir-se embora. Clara continuou a dobar. A espiguilha branca pulava e saltava para o cartão. Ele aguardou. Sem levantar a cabeça, ela disse por fim, numa voz desusadamente baixa:

– Falaste com alguém sobre o assunto?

– Nem uma palavra... Só contigo.

Seguiu-se novo e longo silêncio.

– Quando puserem o anúncio, concorro – disse ela.

– Tens de concorrer antes. Eu digo-te quando.

Ela continuou a fazer girar a dobadoura e não o contrariou.

Clara voltou para a Jordan. Algumas das funcionárias mais antigas, entre elas Fanny, lembravam-se dela de outros tempos e não guardavam boas memórias. Clara sempre fora muito altiva, uma mulher reservada e superior. Nunca se misturava com as colegas e sempre que tinha oportunidade de as criticar, fazia-o com frieza e extrema delicadeza, o que as fazia sentirem-se mais insultadas do que agastadas. Para com Fanny, a pobre corcunda hipersensível, Clara fora sempre extremamente amável e gentil, o que fazia Fanny chorar ainda mais do que as línguas grosseiras das outras supervisoras.


CONTINUA

Era ali, naquele momento, que ela se alimentava de vida para toda uma semana. Ele mandou-a copiar o poema Le Balcon, de Baudelaire e, em seguida, leu-o para ela ouvir. A voz dele era suave e acariciante, mas nos crescendos tornava-se brutal. Paul tinha um modo apaixonado e, ao mesmo tempo, amargurado de arreganhar os lábios e mostrar os dentes sempre que as palavras o levavam ao rubro. E assim fazia agora, fazendo sentir a Miriam que ele a estava a espezinhar. Ela nem se atrevia a olhar para ele, mantendo-se sentada e de cabeça baixa. Não entendia por que razão ele se deixava arrebatar por tão tumultuosas fúrias, e isso deixava-a desfeita. Ainda por cima, nem sequer gostava muito de Baudelaire... nem de Verlaine.


«Olha-a, a cantar pelos campos,

Filha solitária das montanhas...»


Isto sim, alimentava-lhe a alma... tal como a «Linda Inês». E também:


«Caía bela a noite, doce e pura,

Em suspiros sagrados e serenos, como freira...»


Estes versos, sim, eram como ela. E ele, ali à sua frente, arrancando da garganta, em grito rouco:


«Tu te rappelleras la beauté dês caresses.»3


O poema terminou e Paul tirou os pães do forno, metendo-os no alguidar, os queimados no fundo e os bons por cima. A carcaça ressequida continuava na copa embrulhada num pano húmido.

– A Mater não precisa de saber até amanhã de manhã – disse ele. – Já não se vai zangar tanto como esta noite.

Miriam foi à estante e viu as cartas e postais que ele tinha recebido, e quais os livros que lá tinha, e tirou um em que ele se mostrara interessado. Depois, Paul desligou o gás e saíram. Paul nem se preocupou em fechar a porta à chave.

Quando voltou já faltava um quarto para as onze. A mãe estava sentada na cadeira de baloiço e Annie num banquinho junto da lareira, com o cabelo a cair-lhe pelas costas abaixo e os cotovelos apoiados nos joelhos, taciturna. Em cima da mesa, a carcaça da discórdia, já desembrulhada. Paul entrou ofegante. Ninguém abriu a boca. A mãe lia a gazeta local. Ele despiu o casaco e foi sentar-se no sofá. A mãe chegou-se para o lado com brusquidão, deixando-o passar. Ninguém abria a boca. Ele já não sabia como havia de estar. Durante alguns minutos, fingiu ler um bocado do jornal que encontrou em cima da mesa. Mas depois disse:

– Esqueci-me daquele pão no forno, mãe.

Nenhuma das mulheres lhe respondeu.

– Bem – continuou ele –, são só dois dinheiros e meio. Se quiser, eu pago.

Amuado, pôs três moedas em cima da mesa e empurrou-as na direcção da mãe. Ela voltou a cabeça para o outro lado. A boca continuava crispada.

– Pois é – disse Annie –, tu nem fazes ideia de como a mãe se sente mal!

E a rapariga continuou carrancuda a olhar para o lume.

– Sente-se mal porquê? – perguntou Paul, no seu tom autoritário.

– Essa agora – disse Annie. – Viu-se aflita para chegar a casa.

Paul olhou com atenção para a mãe. Parecia de facto doente.

– Viu-se aflita para chegar a casa porquê? – perguntou ele, ainda agreste. A irmã não respondeu.

– Vim encontrá-la aqui sentada, branca como a cera – disse Annie, com lágrimas na voz.

– Diga lá porque foi! – insistiu Paul, já de testa franzida e olhos empolgadamente dilatados.

– Era o suficiente para deixar qualquer pessoa doente – disse Mrs. Morel. – Carregar nos braços com as compras todas... a carne, os legumes e as cortinas...

– Para que carregou com tudo? Não era preciso.

– E então quem é que carregava?

– Mandava a Annie ir buscar a carne.

– Claro que eu tinha ido buscar a carne. Mas como é que eu podia adivinhar? Tu andavas a passear com a Miriam, em vez de estares em casa quando a mãe chegou.

– Mas o que é que lhe aconteceu? – perguntou Paul à mãe.

– Deve ser o coração – respondeu ela. De facto, tinha os lábios azulados.

– E já tinha sentido isso alguma vez?

– Já... e até mais de uma vez.

– Então porque não me disse, e porque é que não foi ao médico?

Mrs. Morel mexeu-se na cadeira, irritada com a prelecção.

– Tu nunca reparas em nada – disse Annie. – Só pensas em andar com a Miriam.

– Ah, sim? E tu e o Leonard... não é a mesma coisa?

– Eu cheguei a casa faltava um quarto para as dez.

Seguiram-se uns minutos de silêncio.

– Nunca imaginei que ela te deixasse tão distraído, ao ponto de queimares uma fornada inteira de pão – disse Mrs. Morel com azedume.

– A Beatrice também cá estava.

– Acredito. Mas nós sabemos porque é que o pão se queimou.

– E porque foi? – disse ele intempestivo.

– Porque tu estavas todo entretido com a Miriam – replicou Mrs. Morel acalorada.

– Pois fique sabendo que não foi nada por isso! – ripostou ele, sacudido.

Estava desgostoso e infeliz. Pegou no jornal e começou a ler. Annie, com a blusa já desabotoada e duas longas tranças, foi para cima, para a cama, dando-lhe secamente as boas-noites.

Paul continuou a fingir que estava a ler. Por um lado, sabia que a mãe lhe queria pregar um sermão. Mas, por outro, queria saber o que a pusera naquele estado, e estava preocupado. Por isso, em vez de ir a correr para a cama, como era sua vontade, ficou à espera. Sentia-se a tensão no silêncio. O tiquetaque do relógio soava forte.

– O melhor é ires deitar-te antes de o teu pai chegar – disse Mrs. Morel, com rispidez. – E se quiseres comer alguma coisa, tens de ir buscá-la.

– Não quero nada.

A mãe costumava preparar-lhe qualquer coisa para a ceia às sextas-feiras à noite, que era a noite de luxo dos mineiros. Mas ele estava demasiado irritado para ir buscar a ceia à despensa, e ela sentiu-se insultada.

– Se eu quisesse que fosses a Selby numa sexta-feira à noite, já estou a imaginar a cena – disse Mrs. Morel. – Mas quando é ela a vir buscar-te, nem sabes o que é cansaço. E já nem comes nem bebes.

– Não posso deixá-la voltar sozinha.

– Ah, não podes... E então para que é que ela vem?

– Não sou eu que lhe peço.

– Ela não vinha se tu não a quisesses cá...

– E se eu a quiser...? Hem? – repontou ele.

– Nada a opor, se fosse sensato ou razoável. Mas calcorrear milhas e milhas por cima dum lamaçal e voltar à meia-noite, para quem tem de ir logo pela manhã para Nottingham...

– E, se não tivesse de ir, para si era a mesma coisa.

– Pois era, porque isto não faz sentido nenhum. Ela é assim tão fascinante que tenhas de andar atrás dela para todo o lado? – perguntou Mrs. Morel, com acerado sarcasmo, continuando sentada, com cara de poucos amigos, esfregando o cetim preto do avental em movimentos ritmadamente repetidos. Aquele motu-contínuo quase enlouquecia Paul.

– Eu gosto muito dela – disse ele – mas...

– Gostas então dela! – disse Mrs. Morel, no mesmo tom mordaz. – Pois a mim parece-me que não gostas de mais nada nem de mais ninguém. Para ti, agora, não existe mais ninguém: nem eu, nem a Annie... nada.

– Que disparate, mãe... sabe bem que eu não amo a Miriam... eu... posso garantir-lhe que não a amo... ela não anda de braço dado comigo nem nada, porque eu não quero.

– Então porque é que vais a correr tantas vezes para ao pé dela?

– Porque gosto muito de falar com ela... Nunca disse que não gostava. Mas não a amo.

– E não tens mais ninguém com quem falar?

– Não acerca das coisas de que nós falamos. Há muitas coisas por que a mãe não se interessa e que...

– Que coisas...?

Mrs. Morel estava tão exaltada que Paul começou a gaguejar.

– Ora essa... pintura... livros... A mãe, por exemplo, não gosta de Herbert Spencer.

– Não – foi a resposta concisa. – E tu também não vais gostar, quando tiveres a minha idade.

– Está bem, mas gosto agora... e a Miriam também...

– E como é que sabes – atalhou Mrs. Morel em tom de desafio – que eu não gosto. Já experimentaste perguntar-me?

– Mas eu sei que não gosta, mãe, sabe bem que não lhe interessa discutir se um quadro é ou não decorativo... é-lhe indiferente qual o seu estilo.

– Como sabes que não me interessa... já experimentaste perguntar-me? Alguma vez conversas comigo sobre essas coisas, só para experimentar?

– Mas a mãe sabe bem que para si isso não conta, sabe bem que não.

– Então o que é, diz lá... o que é que conta para mim? – desferiu ela.

Paul franziu a testa, magoado.

– A senhora é velha, mãe, e nós somos novos.

O que ele queria dizer era que os interesses da idade dela não eram idênticos aos da sua. Mas mal acabou a frase percebeu que tinha dito o que não devia.

– Sim, sei muito bem... sou uma velha! E por isso mesmo devo manter-me afastada... já não tenho nada a ver contigo. Tu só me queres para te servir de criada... o resto é com a Miriam.

Ele já não aguentava mais. Instintivamente, apercebeu-se de que ele era toda a vida dela. E, bem vistas as coisas, ela era para ele a coisa mais importante, a única verdade suprema.

– Sabe bem que não é assim, mãe... sabe bem que não é.

O grito dele comoveu-a.

– Pois olha que parece mesmo – disse ela, deixando de certa forma de lado o desespero.

– Não, mãe... na verdade, eu não a amo. Converso com ela... mas é para a nossa casa, para ao pé de si que eu quero vir.

Paul, já sem o colarinho e a gravata, levantou-se para se ir deitar. Quando ia a dar um beijo à mãe, ela passou-lhe os braços em volta do pescoço, escondeu a cara no seu ombro e pôs-se a choramingar, com uma voz dorida, tão pouco habitual nela que o fez crispar-se de agonia.

– Eu já não aguento mais. Uma outra mulher talvez... mas ela não... ela não me daria espaço algum... nem um bocadinho...

E imediatamente sentiu que odiava Miriam amargamente.

– E eu nunca... tu sabes, Paul... eu nunca tive um marido... não um de verdade...

Ele acariciou-lhe os cabelos e os seus lábios afloraram o pescoço dela.

– E ela esforça-se tanto para te afastar de mim... ela não é como as outras raparigas.

– Bem, mãe, eu não a amo – murmurou ele, baixando a cabeça e escondendo os olhos no ombro dela, muito infeliz. A mãe deu-lhe um beijo ardente e longo.

– Meu filho! – disse, com a voz trémula de amor. E ele, sem se aperceber, acariciou-lhe suavemente o rosto.

– Pronto – disse a mãe. – Agora vai deitar-te. Senão amanhã de manhã acordas muito cansado.

Enquanto falava, Mrs. Morel sentiu o marido entrar.

– Vem aí o teu pai... vá, já para a cama... – Subitamente, olhou para o filho quase a medo. – Talvez eu esteja a ser egoísta. Se a queres, meu filho, fica com ela.

A mãe estava a comportar-se de uma forma muito estranha, pensou Paul, beijando-a, ainda a tremer.

– Oh, mãe! – disse ele meigamente.

Morel entrou aos tropeções. Trazia o chapéu tombado sobre o canto do olho. Ao transpor a porta, perdeu o equilíbrio. – Outra vez a fazeres das tuas? – disse ele, acintosamente.

As emoções de Mrs. Morel transformaram-se instantaneamente em ódio por aquele bêbado que viera intrometer-se tão intempestivamente.

– Pelo menos, ele está sóbrio – disse ela.

– Hum... hum...! Hum... hum! – fez ele, cinicamente.

Foi ao corredor e pendurou o chapéu e o casaco. Em seguida, ouviram-no descer os três degraus da despensa. Quando voltou trazia na mão uma fatia de empadão de carne de porco. Era o que Mrs. Morel tinha comprado para o filho.

– Isso não é para ti. Se não me podes dar mais de vinte e cinco xelins, certamente não te vou comprar empadão de carne de porco, para tu te regalares depois de teres enchido a barriga de cerveja.

– O quê?... O quê? – rosnou Morel, a cambalear e, num repente, atirou o empadão para a lareira, num acesso de mau génio e mesquinhez.

Paul pôs-se de pé num salto.

– Deite fora o que é seu! – gritou.

– O quê?... O quê? – berrou Morel de imediato, dando um salto atrás e cerrando os punhos. – Vais ver como elas mordem... meu menino!

– Muito bem! – disse Paul, cinicamente, deitando a cabeça de lado. – Então vamos lá ver...!

O que mais gostaria naquele momento era de poder bater em qualquer coisa, não importava o quê. Morel estava semidobrado, de punhos em riste, pronto a atacar.

O jovem estava de pé, com um sorriso nos lábios.

– Zás! – silvou o pai, desferindo um soco no ar com um gesto largo, rente à cara do filho. Apesar de tão próximo, não se atreveu a tocar-lhe realmente, passando-lhe a uma escassa polegada de distância.

– Isso! – disse Paul, de olhos pregados na boca do pai, onde a todo o momento o seu punho acertaria. Estava louco por dar aquele soco, mas ouviu um vago gemido atrás de si. A mãe estava lívida de morte e com a boca toda roxa. Morel saltitava, preparando novo ataque.

– Pai! – disse Paul, bem alto para lhe chamar a atenção.

Morel parou, assustado.

– Mãe! – gemeu o rapaz. – Mãe!

Ela começou a lutar contra si própria. Os seus olhos muito abertos observavam-no, apesar de não se poder mexer. A pouco e pouco ia voltando a si. O filho deitou-a no sofá e foi a correr buscar um pouco de uísque, de que ela por fim bebeu alguns golinhos. As lágrimas rolavam-lhe pela cara abaixo. Enquanto esteve ajoelhado ao lado da mãe não chorou, mas as lágrimas irromperam logo a seguir. Morel, sentado do outro lado da sala com os cotovelos apoiados nos joelhos, fuzilava o filho com o olhar.

– Qu’é qu’ela tem? – perguntou.

– Desmaiou! – respondeu Paul.

– Hum!

O homem mais velho começou a desapertar os atacadores das botas. Depois, foi aos tombos para o quarto. Tinha travado a sua derradeira luta naquela casa.

Paul estava ajoelhado ao lado da mãe, esfregando-lhe as mãos.

– Não fique assim, mãe... não fique assim! – não se cansava ele de repetir.

– Isto não é nada, meu filho – murmurou ela.

Finalmente, Paul levantou-se, foi buscar um grande bocado de carvão e abafou o borralho. Depois arrumou a sala, colocou tudo nos seus devidos lugares, pôs a mesa para o pequeno-almoço e foi buscar a palmatória da mãe.

– Consegue ir para a cama sozinha, mãe?

– Consigo, sim... Eu vou.

– Durma com a Annie, mãe, com ele não.

– Não... vou dormir na minha cama.

– Não durma com ele, mãe.

– Vou dormir na minha cama.

Mrs. Morel levantou-se e Paul desligou o gás, subindo depois a escada atrás dela, com a vela. Ao chegarem ao patamar, ele beijou-a ternamente.

– Boa noite, mãe.

– Boa noite – respondeu ela.

Ele enfiou a cabeça na almofada, num acesso de desespero. E, no entanto, sentia paz algures nos recônditos da alma, pois continuava a amar a mãe acima de todas as coisas. Era a paz amarga da resignação.

Os esforços do pai no dia seguinte para o cativar foram para ele uma verdadeira humilhação.

E todos tentaram esquecer o incidente.

2 «Esta manhã os pássaros acordaram-me. Ainda não era dia. Mas a janelinha do meu quarto clareou e logo ficou dourada, e todos os pássaros do bosque irromperam num canto vivo e sonoro.
E a aurora estremeceu. Tinha sonhado contigo. Será que também contemplas a aurora?

Os pássaros acordam-me quase todas as manhãs, e há sempre uma nota de terror no grito dos tordos. Está tão claro...» (N. da T.)

3 «Recordarás a beleza das carícias.» (N. da T.)


IX

A DERROTA DE MIRIAM

PAUL sentia-se descontente consigo mesmo e com tudo o que o rodeava. O seu amor mais profundo dedicava-o à mãe. Não podia suportar a sensação de a ter magoado ou de algum modo ferido o seu amor por ela. A Primavera já se anunciava e, com ela, uma batalha entre ele e Miriam. Este ano Paul tinha muitas queixas contra Miriam e ela estava vagamente consciente desse facto. O velho sentimento que experimentara ao rezar, e lhe segredara que teria de se sacrificar a este amor, misturava-se em todas as suas emoções. No fundo, Miriam não acreditava poder algum dia vir a ter Paul para si. Em primeiro lugar, não acreditava em si mesma: duvidava poder vir a ser o que ele exigiria que ela fosse. Por certo nunca se imaginara a viver a seu lado uma vida de eterna felicidade. O futuro prefigurava-lhe tragédia, dor e sacrifício. E, se no sacrifício era orgulhosa, na renúncia ela era forte; mas não confiava em si mesma para suportar a vida do dia-a-dia. Sentia-se preparada para gestos grandiosos e profundos, gestos dignos de tragédia. Não podia era confiar na sua capacidade de lidar com a pequenez do quotidiano.

As férias da Páscoa iniciaram-se num ambiente feliz. Paul mostrava-se franco, como na realidade o era. Contudo, Miriam sentia que algo iria perturbar aquela paz. No domingo à tarde, deteve-se à janela do seu quarto, olhando os carvalhos do bosque, em cuja folhagem se emaranhavam uns ténues raios de luz sob o resplandecente céu da tarde. Rosetas de folhas de madressilva verde-cinza pendiam frente à janela, algumas, pensou, já em botão. Era Primavera, tempo que Miriam amava e temia ao mesmo tempo.

Ouvindo o ranger do portão, ficou na expectativa. Estava um dia cinzento e luminoso. Paul entrou no pátio com a bicicleta, que reluzia à medida que ele andava. Era hábito tocar a campainha e sorrir em direcção à casa. Hoje, porém, caminhava de lábios cerrados, numa atitude fria e cruel que tinha algo de desprezo e indolência. Ela já o conhecia muito bem e, pela expressão penetrante e reservada do seu rosto jovial, sabia dizer o que se passava no seu íntimo. Havia um tal rigor de frieza no modo como colocou a bicicleta no lugar que o coração de Miriam soçobrou.

Desceu ao andar de baixo, nervosa. Vestia uma blusa nova de malha que, achava ela, lhe assentava muito bem. Tinha uma gola alta, debruada com um folho que lhe lembrava a Rainha Mary da Escócia e lhe dava, pensava ela, um ar encantadoramente feminino e muito digno. Com vinte anos, possuía uns seios bem desenvolvidos e formas voluptuosas. O seu rosto era ainda como uma máscara suave e rica, inalterável. Mas os seus olhos, quando os erguia, eram maravilhosos. Ela tinha medo dele. Ele iria reparar na sua blusa nova.

Paul mostrava-se de disposição dura e irónica, e divertia a família com a descrição de um sermão proferido na Capela Metodista Primitiva por um dos mais conhecidos pregadores da seita. Estava sentado à cabeceira da mesa com o seu rosto versátil e os seus olhos, que conseguiam ser tão belos, brilhando ternamente ou dançando risonhos, assumiam várias expressões, numa imitação das diversas pessoas que caricaturava. A sua veia jocosa sempre a magoara – era demasiado próxima da realidade. Paul era demasiado inteligente e cruel e ela sentia que, quando o seu olhar se enchia, como agora, de feroz ódio trocista, ele não poupava ninguém, nem mesmo a sua própria pessoa. Mas Mrs. Leivers enxugava os olhos marejados de lágrimas, de tanto rir, e Mr. Leivers, já desperto da sua sesta dominical, coçava a cabeça divertido. Os três irmãos, sentados em atitudes desleixadas e sonolentas e em mangas de camisa, soltavam uma gargalhada de vez em quando. O que a família mais adorava era, acima de tudo, uma boa caricatura.

Paul não prestou atenção a Miriam. Mais tarde, ela percebeu que ele tinha reparado na sua blusa nova, viu que o artista a aprovara, mas isso não merecera da sua parte o mínimo lampejo de ternura. Estava nervosa e mal conseguia chegar às chávenas de chá nas prateleiras do armário.

Quando os homens saíram para a ordenha, ousou dirigir-se-lhe pessoalmente:

– Vieste atrasado – disse.

– Vim? – perguntou ele.

Por um momento fez-se silêncio.

– Foi difícil vires a pedalar até aqui? – perguntou ela.

– Nem notei.

Ela continuou a pôr a mesa rapidamente. Quando acabou, disse-lhe:

– O chá só é servido dentro de alguns minutos. Queres vir ver os narcisos?

Ele ergueu-se, sem responder. Dirigiram-se para o jardim das traseiras, sob as ameixoeiras em flor. As colinas e o céu estavam límpidos e frios. Tudo parecia lavado, um pouco agreste talvez. Miriam lançou um olhar a Paul. Ele estava pálido e impassível. A ela parecia-lhe uma crueldade que aqueles olhos e sobrancelhas que ela tanto amava pudessem feri-la tanto.

– O vento cansou-te? – perguntou.

Detectou nele uma certa fadiga.

– Não, acho que não – respondeu ele.

– Deve ser cansativo na estrada... o vento sopra tão forte.

– Pelas nuvens podes ver que é vento sudoeste: até me ajudou a chegar aqui.

– Sabes que eu não ando de bicicleta, por isso não entendo o que queres dizer – murmurou ela.

– E é preciso andar de bicicleta para saber isso? – replicou ele.

Miriam pensou que o seu sarcasmo era desnecessário. Mantiveram-se em silêncio. Em redor do relvado maltratado com a erva muito alta situado nas traseiras da casa, havia uma sebe de espinheiros sob a qual os narcisos se erguiam dos seus ninhos de folhas verde-cinza. As faces das flores estavam esverdeadas de frio. Mas, mesmo assim, algumas haviam já florescido e o seu tom dourado agitava-se e resplandecia. Miriam ajoelhou-se diante de um ramalhete, tomou nas mãos um narciso de ar silvestre, voltou para si a sua face dourada e inclinou-se, acariciando-o com a boca, as faces e a fronte. Paul permaneceu de pé, ligeiramente afastado, de mãos nos bolsos, observando-a. Uma após outra, ela virou para ele as faces das flores amarelas, recém-abertas, em atitude suplicante, afagando-as com veemência.

– Não são magníficos? – murmurou.

– Magníficos?... Não será um pouco de mais?... São bonitos!

Ela inclinou-se novamente para as suas flores, perante esta censura à sua atitude de adoração. Ele ficou a vê-la adular e saborear as flores com beijos fervorosos.

– Porque tens de estar sempre a acariciar as coisas? – recriminou-a, irritado.

– Gosto de lhes tocar – replicou ela, magoada.

– Será que não podes gostar das coisas sem teres de te agarrar a elas como se quisesses arrancar-lhes o coração? Porque não tens um pouco mais de domínio ou reserva, ou o que quer que seja?

Ela ergueu para ele um olhar cheio de dor, continuando depois a pressionar os lábios, lentamente, contra uma flor ondulada. O seu aroma, quando o sentiu, era tão mais delicado do que Paul que quase a fez chorar.

– Com a tua adulação, retiras a alma às coisas – disse ele. – Eu nunca seria capaz de uma adulação... Em qualquer circunstância, seria sempre directo.

Paul não sabia o que dizia. Estas coisas saíam-lhe mecanicamente. Ela olhou para ele. O seu corpo parecia uma arma, firme e duro contra ela.

– Tu estás sempre a suplicar às coisas que te amem – disse ele – como se fosses uma pedinte de amor. Até as flores tu tens de acariciar...

Ritmadamente, Miriam agitava e amachucava a flor com a boca, inalando o perfume que daí em diante a faria estremecer sempre que penetrasse nas suas narinas.

– Tu não queres amar... a tua súplica eterna e anormal é seres amada. Não és positiva, és negativa. Absorves, absorves, como se necessitasses de te encher de amor por teres algures uma insuficiência.

Miriam estava aturdida com a crueldade de Paul, e não o escutava. Ele não tinha a mínima ideia do que estava a dizer. Era como se a sua alma inquieta e torturada, inflamada por uma paixão frustrada, fizesse jorrar aquelas palavras como centelhas brotando da electricidade. Ela não entendia nada do que ele dizia. Deixou-se ficar sentada, esmagada sob a sua crueldade e o seu ódio por ela. Nunca entendia as coisas num lampejo. Era assim com tudo, cismava e tornava a cismar.

Depois do chá, ele ficou a conversar com Edgar e os outros irmãos, não prestando atenção a Miriam. Ela, infinitamente infeliz com esta distância procurada, esperou por ele. Por fim, ele cedeu e veio ao seu encontro. Ela estava determinada a descobrir a origem do seu estado de espírito. Para ela, tudo aquilo não passava de um estado de espírito.

– Vamos passear um pouco pelo bosque? – sugeriu, sabendo que ele nunca recusava um pedido directo.

Desceram em direcção à coelheira. A meio do caminho passaram por uma armadilha, uma pequena cerca em forma de ferradura, feita com galhos de abeto entrelaçados, onde se exibiam, como isca, as vísceras de um coelho. Paul lançou-lhe um olhar, franzindo o sobrolho. Ela chamou-lhe a atenção.

– É terrível, não é? – perguntou.

– Não sei! Será pior que os dentes de uma doninha cravados no pescoço de um coelho? Ou uma doninha ou muitos coelhos. Uma das coisas vai ter de desaparecer!

Para Paul estava a ser difícil enfrentar a face amarga da vida. Miriam sentiu pena dele.

– Vamos para dentro – disse Paul. – Não me apetece andar cá fora.

Passaram pela árvore dos lilases, cujos rebentos das folhas cor de bronze principiavam agora a abrir. Apenas um fragmento restava do palheiro, um monumento quadrado e castanho, como um pilar de pedra. No meio, ainda lá perdurava uma pequena meda de feno da última ceifa.

– Sentemo-nos aqui por um minuto – pediu Miriam.

Ele sentou-se, contrariado, apoiando as costas ao sólido muro de feno. Diante deles, estendia-se o anfiteatro de colinas arredondadas, incandescente à luz do crepúsculo, as pequenas quintas brancas destacando-se na paisagem, os prados dourados, os bosques sombrios e contudo luminosos, as copas das árvores sobrepostas a outras copas de árvores, distintas na distância. A tarde clareara e o oriente suave tingia-se agora de um clarão magenta sob o qual a terra permanecia imóvel e pródiga.

– Não é uma beleza? – murmurou ela suavemente.

Mas ele limitou-se a franzir a testa, mal-humorado. Naquele momento, preferia que tudo fosse feio.

Subitamente, um grande cão veio ter com eles em louca correria, de boca escancarada, levantou as patas dianteiras e colocou-as nos ombros do jovem, lambendo-lhe o rosto. Paul recuou, rindo. Bill era um grande alívio para ele. Afastou o cão, mas este voltou, saltitante.

– Sai daqui – ordenou o rapaz. – Vê lá se queres apanhar.

Mas o cão não estava disposto a desistir facilmente. Então, Paul travou um pequena batalha com o animal, arremessando o pobre Bill para longe, apenas conseguindo contudo fazê-lo tropeçar e voltar à carga violentamente, excitadíssimo. Lutaram os dois, o homem rindo contrafeito, o cão todo ele disponibilidade. Miriam observava-os. Havia algo de patético no homem. Como ele desejava ardentemente amar e ser terno! O modo rude como brincava com o cão era realmente adorável. Paul levantou-se, ofegante de felicidade, os olhos castanhos rolando na cara branca, e de novo se deixou cair pesadamente. O animal adorava Paul. O rapaz lançou-lhe um olhar severo.

– Bill, já chega de brincadeira.

Mas o cão deixou-se ficar com as duas pesadas patas, que tremiam de carinho, assentes na sua coxa, mostrando uma língua ro-sada. O rapaz recuou.

– Não – disse. – Não... já chega.

E logo o cão se afastou, contente por variar de divertimento.

Paul continuou a olhar fixamente para as colinas, cuja beleza impassível invejava. Queria sair dali e ir andar de bicicleta com Edgar. No entanto, não tinha coragem de deixar Miriam.

– Porque estás triste? – perguntou ela, submissa.

– Não estou triste, porque havia de estar? – retorquiu ele. – Estou apenas normal.

Ela perguntava-se por que razão ele sempre afirmava estar normal quando se mostrava desagradável.

– Mas... afinal o que se passa? – perguntou, aliciando-o suavemente.

– Nada!

– Não! – murmurou ela.

Ele pegou num pau e começou a golpear a terra.

– É melhor que não digas nada – disse ele.

– Mas eu quero saber – respondeu ela.

Ele riu-se, ressentido.

– Tu queres sempre saber tudo.

– Não és leal para comigo – murmurou ela.

Ele feriu o solo vezes sem conta com o pau afiado, desprendendo pequenos torrões de terra, como se tomado por uma febre de irritação. Delicada e firmemente, ela pousou a mão sobre o seu pulso.

– Não faças isso! – pediu. – Deita isso fora.

Ele atirou o pau para cima das groselheiras e recostou-se. Já estava recomposto.

– Que se passa? – perguntou ela com suavidade.

Ele manteve-se imperturbável. Apenas o seu olhar vivia intensamente, repleto de tormento.

– Sabes – disse por fim, bastante a custo – sabes... era melhor rompermos a nossa ligação.

Era o que ela temia. Subitamente, tudo pareceu escurecer diante dos seus olhos.

– Porquê? – murmurou. – Que aconteceu?

– Não aconteceu nada... só que temos de ver o terreno que pisamos. Não vale a pena...

Ela esperou em silêncio, tristemente, cheia de paciência. Não adiantava ser impaciente com ele. De qualquer modo, ele dir-lhe-ia agora o que o afligia.

– Concordámos em ser amigos – prosseguiu ele, numa voz monótona e aborrecida. – Quantas vezes concordámos em ser amigos! E, no entanto, as coisas não param por aí, nem chegam a nenhum outro lado.

Paul calou-se. Miriam matutava. Que quereria ele dizer? Estava tão cansado. Havia algo que não queria admitir. Contudo, ela devia ser paciente.

– Eu só posso dar-te amizade... é tudo de que sou capaz... é uma falha na minha maneira de ser. As coisas pesam só para um lado... e eu odeio uma balança desequilibrada... vamos acabar com isto.

Havia um fervor de fúria nas suas últimas frases. O que ele queria dizer é que ela o amava mais a ele do que ele a ela. Talvez não conseguisse amá-la. Talvez ela não possuísse o que ele desejava. Esta falta de confiança em si mesma era o fundamento mais profundo da alma de Miriam. Tão profundo que ela não ousava entendê-lo, nem tão-pouco admiti-lo. Talvez lhe faltasse qualquer coisa. Como uma vergonha infinitamente subtil, esse sentimento sempre a fazia recuar. Se assim fosse, ela passaria sem ele. Nunca se permitiria desejá-lo. Limitar-se-ia a observar.

– Mas o que aconteceu? – perguntou.

– Nada... tinha tudo isto guardado dentro de mim... e só saiu agora. Ficamos sempre assim ao aproximarmo-nos da Páscoa.

Paul humilhou-se tão despojadamente que Miriam sentiu pena. Ela, pelo menos, nunca se tinha deixado cair de um modo tão deplorável. No fim de contas, era ele quem saía mais duramente humilhado.

– Que queres fazer? – perguntou ela.

– Bem... acho que não devo vir aqui tantas vezes... só isso. Porque deveria eu monopolizar-te, quando não sou... Bem vês, no que te diz respeito sou muito incompleto...

Ele estava a dizer-lhe que não a amava e, portanto, deveria dar-lhe uma oportunidade com outro homem. Que tolo e cego e vergonhosamente desajeitado ele era! Que lhe importavam a ela os outros homens! Que importância tinham! Mas ele, ah, ela amava a sua alma. Seria ele incompleto em alguma coisa? Talvez fosse.

– Mas eu não entendo – disse ela, com a voz rouca. – Ainda ontem...

A noite tornara-se desagradável e odiosa para ele à medida que a luz do crepúsculo se dissipava. E ela cedeu ao seu sofrimento.

– Eu sei – gritou ele. – Nem nunca entenderás. Nunca acreditarás que eu não posso... não sou fisicamente capaz, tal como não sou capaz de voar como uma cotovia...

– Capaz de quê? – perguntou ela, num murmúrio. Agora tinha medo.

– De te amar.

Paul odiou-a amargamente naquele momento, por fazê-la sofrer tanto. Amá-la! Miriam sabia que ele a amava. Ele pertencia-lhe realmente. Toda a conversa sobre não a amar fisicamente, corporalmente, era uma mera perversidade da parte dele, pois Paul sabia que ela o amava. Ele estava a ser casmurro como uma criança. Ele pertencia-lhe a ela. A sua alma desejava-a. Miriam suspeitou que alguém o tivesse influenciado. Através da sua rigidez, pressentia a estranheza de uma outra influência.

– Que te têm dito em casa? – perguntou.

– Não é nada disso – respondeu ele.

E, nesse momento, ela soube que era precisamente isso, e sentiu um profundo desprezo pela família dele e pela sua vulgaridade. Ignoravam as coisas que valiam realmente a pena.

Nessa noite, não conversaram muito mais. Por fim, ele deixou-a e foi passear de bicicleta com Edgar.

Paul voltara para a mãe, o elo mais forte da sua vida. Quando ele se embrenhava em pensamentos, Miriam quase deixava de existir, como se envolta num sentimento vago e irreal. E mais ninguém contava. Havia contudo um lugar no mundo que permanecia sólido e não se desvanecia na irrealidade: o lugar onde se encontrava a sua mãe. Todos podiam transformar-se em sombras, quase inexistentes para ele, mas não ela. Era como se o eixo ou pólo da sua vida, do qual ele não podia escapar, fosse a sua mãe.

E, da mesma forma, ela esperava por ele. Nele se concentrava agora toda a sua vida. Afinal, a vida que deixara para trás oferecera muito pouco a Mrs. Morel. Ela entendera que a nossa oportunidade para fazer está aqui, e fazer era importante para ela. Paul iria provar que ela tinha razão: iria transformar-se num homem a quem nada poderia derrubar, que iria alterar a face da terra de alguma forma importante. Onde quer que ele fosse, ela sentia que a sua alma ia junto. O que quer que ele fizesse, ela sentia que a sua alma permanecia junto dele, pronta como sempre a entregar-lhe as suas ferramentas. Não podia suportar quando ele estava com Miriam. William estava morto. Ela lutaria para ficar com Paul.

E ele voltou para ela. E na alma dele havia um sentimento de satisfação pelo auto-sacrifício, pois ele era-lhe fiel. Ela amava-o antes de tudo, ele amava-a antes de tudo. E, no entanto, isso não era o suficiente. A sua vida nova e jovem, tão forte e imperiosa, era solicitada por algo mais. Punha-o louco de agitação. Ela percebia isso e desejava amargamente que Miriam fosse uma mulher que pudesse arrancar dele esta nova vida e deixar-lhe a ela as raízes. Paul lutava contra a mãe quase tanto como lutava contra Miriam.

Passou-se uma semana antes que Paul voltasse a Willey Farm. Miriam sofrera muito e receava vê-lo novamente. Poderia ela suportar a ignomínia de ser abandonada por ele? Isso seria apenas superficial e temporário. Ele voltaria. Ela possuía a chave para entrar na sua alma. Mas, entretanto, ele iria torturá-la com a sua luta contra ela. Miriam temia sobretudo isso.

Porém, no domingo a seguir à Páscoa, Paul veio para o chá. Mrs. Leivers ficou contente ao vê-lo. Percebeu que algo o perturbava, que as coisas estavam difíceis para ele. E ele parecia refugiar-se nela para algum conforto. E ela era boa para ele. Fazia-lhe o grande favor de o tratar quase com reverência.

Paul encontrou os rapazes no jardim da frente.

– Estou contente por teres vindo – disse a mãe, olhando-o com os seus olhos castanhos, grandes e sinceros. – Está um dia tão soalheiro. Ia agora mesmo dar um passeio pelos campos pela primeira vez este ano.

Ele sentiu que ela apreciaria a sua companhia, e isso suavizou-o. Foram caminhando, falando de coisas simples, ele gentil e humilde. Quase chorou de gratidão por ela ser deferente para com ele. Sentia-se humilhado.

Ao fundo do campo de trigo, encontraram um ninho de tordos.

– Querem que vos mostre os ovos? – perguntou.

– Sim, por favor! – respondeu Mrs. Leivers. – Parecem um sinal tão real da Primavera e da esperança...

Paul afastou os espinhos e retirou os ovos, colocando-os na palma da mão.

– Estão quentinhos... parece que assustámos a mãe – disse ele.

– Ah, coitadinhos – disse Mrs. Leivers.

Miriam não pôde evitar tocar nos ovos e na mão dele, que, segundo ela, os protegia tão bem.

– É um calor tão estranho! – murmurou, para se aproximar dele.

– É o calor do sangue – retorquiu ele.

Ela viu-o colocar os ovos no seu lugar, com o corpo colado à cerca, o braço avançando lentamente através dos espinhos, a mão cuidadosamente fechada sobre os ovos. Estava concentrado no acto. Vendo-o assim, ela amava-o; ele parecia tão simples e auto-suficiente. E ela não conseguia alcançá-lo.

Durante o chá, Paul discutiu o sermão de Sexta-Feira Santa com Mrs. Leivers. A caminhada até à Capela era já muito longa para a senhora, e ela quase preferia ouvir o sermão através de Paul, acrescido dos seus comentários e argumentos. Os outros também escutavam. Até os rapazes, uns latagões rudes, se mostravam atentos e interessados, tirando uma lição do discurso.

– Ele pegou no capítulo que diz: «Aquele que acreditou na nossa história...» ... eu gosto desta passagem.

Os grandes olhos castanhos de Mrs. Leivers brilharam com o pensamento.

– E estragou-o todo... arruinou-o.

Subitamente, lançou um olhar a Miriam, para que ela estivesse do seu lado naquele momento.

– E ele disse...

Paul, sério e indignado, repetiu o sermão. Era em alturas como esta que Miriam o amava. Ao vê-lo assim, enchia-se de profunda satisfação. Amava-o do mesmo modo que Maria amou na Betânia. Só quando irrompia o homem nele existente, se instalava a guerra entre ambos. E qual era mais forte nele, o Discípulo ou o Homem? Ela acreditava que fosse o primeiro, e através do primeiro o retinha.

Enquanto ela levantava a mesa do chá, ele disse-lhe, num tom bastante forçado:

– Quando acabares, vamos dar uma volta.

Na cozinha, ajudou-a a limpar a louça. Ela tremia ligeiramente de apreensão. Mas sabia que naquela noite não tinha de temer o ressentimento dele.

– Levamos um livro? – perguntou Miriam, pegando no seu favorito, O Tesouro Dourado, de Palgrave. Os melhores momentos que passavam juntos aconteciam quando liam poesia.

– Esse não – respondeu ele.

O coração dela apertou-se. Permaneceu junto à prateleira dos livros, hesitante. Ele escolheu Tartarin de Tarascon. Sentaram-se novamente no monte de feno, na base da meda. Paul leu algumas páginas, mas sem sentimento. De novo o cão apareceu, correndo, para repetir a brincadeira anterior. Enterrou o focinho no peito do jovem. Paul acariciou-lhe a orelha de fugida. Depois, afastou-o.

– Vai-te embora, Bill – ordenou. – Não te quero aqui.

Bill retirou-se furtivamente, e Miriam perguntou-se, temerosa, o que estaria para vir. Algo no silêncio dele a fez paralisar de apreensão. Não eram as suas fúrias, mas as suas resoluções calmas que ela receava.

Voltando o rosto um pouco de lado, para que ela não pudesse vê-lo, Paul começou, falando lenta e penosamente:

– Achas que... se eu não viesse cá tantas vezes... podias gostar de outra pessoa... de outro homem?

Então era isso que ainda o incomodava.

– Mas eu não conheço outros homens... porque perguntas? – replicou ela, num tom surdo que deveria ter soado aos ouvidos dele como uma censura.

– Ora – disse ele abruptamente – porque eles dizem que eu não tenho o direito de vir aqui... sem que tenhamos intenção de casar...

Miriam estava indignada por alguém andar a forçar as coisas entre eles. Ficara furiosa com o próprio pai quando este, rindo, comentara com Paul que sabia por que razão ele os visitava tantas vezes.

– Quem diz isso? – perguntou ela, tentando perceber se a sua própria família tinha algo a ver com o assunto. Mas não tinha.

– A minha mãe... e os outros. Dizem que, assim, todos me consideram comprometido, e que eu também me devo considerar como tal, pois não é justo para ti. E eu tentei pensar melhor... e acho que não te amo como um homem deve amar a sua mulher. Que me dizes tu a isto?

Miriam baixou a cabeça, irritada. Irritava-a ter de travar aquela discussão. As pessoas deviam deixá-los em paz.

– Não sei – murmurou ela.

– Achas que nos amamos o suficiente para nos casarmos? – perguntou ele, definitivamente. Ela estremeceu.

– Não – respondeu, sinceramente. – Não acho... somos demasiado novos.

– Eu pensei – prosseguiu ele, infeliz – que talvez tu, com a intensidade que pões nas coisas, me tivesses dado mais... do que alguma vez eu te poderia compensar. E, mesmo assim, se achares que é melhor, ficamos noivos.

Naquele momento, Miriam queria chorar. Estava furiosa também. Ele era sempre tão infantil que as pessoas faziam dele o que queriam.

– Não, não acho – disse firmemente.

Paul reflectiu um minuto.

– Sabes – retomou –, para mim... eu acho que uma pessoa nunca poderá monopolizar-me, ser tudo para mim. Eu acho que isso nunca vai acontecer.

Miriam não tinha considerado este ponto.

– Não – murmurou. Após uma pausa, ela ergueu para ele os seus olhos escuros, faiscantes.

– Isto tem a ver com a tua mãe – disse ela. – Eu sei que ela nunca gostou de mim.

– Não, não é isso – apressou-se ele a dizer. – Desta vez foi para teu bem que ela falou, e só disse que, se eu continuasse, devia considerar-me comprometido. – Seguiu-se um silêncio. – E, se eu te pedir para continuares a visitar-me sempre, não dizes que não?

Miriam não respondeu. Estava agora muito zangada.

– Bem, então que fazemos? – perguntou secamente. – Assim sendo, é melhor desistir das aulas de francês. Agora que estava a começar a dar-me bem... Mas acho que posso continuar sozinha.

– Não vejo necessidade disso – considerou ele. – É claro que posso dar-te uma aula de francês.

– Bom, e há ainda as noites de domingo. Não vou deixar de ir à capela, porque gosto de ir e porque a isso se resume toda a minha vida social. Mas não precisas de ir comigo. Posso ir sozinha.

– Está bem – respondeu ele, algo surpreendido. – Mas, se eu pedir ao Edgar, ele pode vir connosco, e assim as pessoas já não podem dizer nada.

Fez-se silêncio. Afinal, ela não perderia muito. Apesar de todo o falatório em casa dele, a diferença não seria muita. Ela só desejava que eles não interferissem.

– E tu não vais pensar de mais no assunto e deixar que te perturbe, pois não? – perguntou ele.

– Oh, claro que não – retorquiu Miriam, sem se dignar olhar para ele.

Paul ficou em silêncio. Ela achava-o instável, sem um objectivo fixo, nenhuma âncora de certeza a segurá-lo.

– Porque – continuou ele – um homem pega na bicicleta... e vai para o trabalho... e faz toda a espécie de coisas. Mas uma mulher fica a cismar.

– Não, eu não vou ficar a cismar – assegurou-lhe Miriam, e estava a ser sincera.

O tempo arrefecera bastante. Juntos, encaminharam-se para casa.

– Que pálido está o Paul! – exclamou Mrs. Leivers. – Miriam, não devias tê-lo deixado sentar-se lá fora. Achas que te constipaste, Paul?

– Oh, não! – E riu-se.

Mas, na verdade, sentia-se fatigado. O conflito interior esgotara-o. Agora, Miriam sentia pena dele. Mas, muito cedo, ainda antes das nove horas, ele levantou-se para se retirar.

– Não te vais já embora, pois não? – perguntou Mrs. Leivers, ansiosa.

– Vou, sim – retorquiu ele. – Disse em casa que chegava cedo.

Paul estava muito embaraçado.

– Mas ainda é cedo – disse Mr. Leivers.

Miriam sentou-se na cadeira de baloiço e não falou. Ele hesitou, esperando que ela se erguesse para o acompanhar ao celeiro, como habitualmente, quando fosse buscar a bicicleta. Ela, porém, deixou-se ficar onde estava. Paul sentia-se perdido.

– Bem, então... boa noite a todos! – balbuciou.

Miriam deu-lhe as boas-noites, tal como os restantes. Mas, quando ia a passar diante da janela, ele olhou para dentro. Ela viu-o pálido, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas de um modo que se tornara constante nele, e o olhar ensombrado pelo sofrimento.

Ergueu-se então e foi até à porta dizer-lhe adeus, quando ele passou pelo portão. Paul pedalou lentamente sob a rama dos pinheiros, sentindo-se um cobarde e um patife miserável. A bicicleta rolava pelas colinas abaixo, à deriva. Chegou a pensar que seria um alívio partir o pescoço.

Dois dias depois, enviou-lhe um livro e um bilhete, incitando-a a ler e a manter-se ocupada.

E, contudo, nessa altura ele estava diferente. Tinha avaliado bem a situação. Sabia que não queria casar-se com ela. As razões pelas quais a amava não eram razões para se casar com ela; isso es-tava decidido. E a mãe repetira-lhe vezes sem conta que a sua actual situação não podia durar para sempre, e era bastante injusta para a rapariga. Por isso, Paul tentava agora manter a maior distância possível entre os dois. Era duro e frio para ela. Miriam ressentia-se disso amargamente, culpava a mãe dele, e esperava. Sabia que Paul não podia deixá-la sozinha. Mas ele parecia querer por força erguer muros entre eles, ele e ela, atrás dos quais pudesse refugiar-se, longe dela. Miriam sofria terrivelmente.

Durante esse tempo, Paul dedicou toda a sua amizade a Edgar. Gostava tanto da família, gostava tanto da quinta, que ela era para ele o lugar mais querido ao cimo da terra. Nem mesmo o seu lar era tão agradável. A sua mãe sim. Mas teria sido igualmente feliz com aquela mãe em qualquer outro lugar. Mas Paul amava Willey Farm apaixonadamente. Adorava a cozinha pequena e aconchegada, repisada pelas botas dos homens, e onde o cão dormia com um olho aberto e outro fechado, com medo de ser pisado; onde, à noite, a lamparina balouçava sobre a mesa e tudo ficava muito silencioso. Amava a saleta de Miriam, comprida e de tecto baixo, com a sua atmosfera romântica, as suas flores, os seus livros, o piano de pau-rosa. Amava os jardins e os edifícios que, nos limites nus dos campos, se erguiam com os seus telhados escarlate, arrastando-se em direcção ao bosque como se em busca de aconchego, onde a região selvagem cavava um vale profundo, para logo subir as encostas por cultivar do lado de lá. O simples facto de estar ali era um prazer e uma alegria para ele. Amava Mrs. Leivers, com a sua simplicidade e singular cinismo; amava Mr. Leivers, tão caloroso e jovial, e tão afável; amava Edgar, cujo olhar se iluminava quando ele chegava, e os outros rapazes e as crianças, e ainda Bill, e até a porca chamada Circe e o galo indiano de combate chamado Tippoo. Amava tudo isto além de Miriam. Não podia desistir de tudo.

Por isso, continuava a aparecer frequentemente, mas andava geralmente com Edgar. Toda a família, incluindo o pai, apenas se reunia à noite para os jogos e charadas. E, mais tarde, Miriam reunia-os a todos e liam Macbeth em edição de bolso, interpretando os vários papéis. Era muito divertido. Miriam ficava contente, Mrs. Leivers ficava contente e Mr. Leivers divertia-se. Depois, todos juntos, aprendiam a solfejar canções, cantando em círculo em redor da lareira. Mas agora, Paul raramente ficava a sós com Miriam. E ela esperava. Quando ela, Edgar e Paul regressavam a casa vindos da Capela ou do grémio literário de Bestwood, ela sabia que a conversa dele, tão apaixonada e tão pouco ortodoxa para aqueles dias, lhe era dirigida. Contudo, invejava Edgar e as suas corridas de bicicleta com Paul, as suas noites de sexta-feira, os seus dias de labuta conjunta nos campos. Para ela, as noites de sexta-feira e as aulas de francês tinham acabado. Estava quase sempre sozinha, vagueando e meditando pelo bosque, lendo, estudando, sonhando, esperando. E ele escrevia-lhe com frequência.

Num domingo à noite, conseguiram reatar a velha e rara harmonia. Edgar ficara com Mrs. Morel para a comunhão. Queria saber como era. Por isso, Paul e Miriam voltaram sozinhos para casa dele. Ele encontrava-se novamente mais ou menos sob o seu feitiço. Como era hábito, discutiram o sermão. Ele caminhava agora a passos largos para o agnosticismo, mas era um agnosticismo tão religioso que Miriam não sofria muito. Estavam na fase da Vie de Jésus de Renan. Miriam era a eira onde Paul debulhava todas as suas crenças. Enquanto repisava as suas ideias na alma dela, a verdade brotava dele. Só ela era a sua eira. Só ela o ajudava no sentido da plena realização. Quase impassível, ela submetia-se aos seus argumentos e interpretações. E, por causa dela, ele gradualmente compreendia, de algum modo, onde estava errado. E o que ele compreendia, ela compreendia. Miriam sentia que Paul não podia viver sem ela.

Chegaram à casa silenciosa. Ele tirou a chave da janela da cozinha e entraram. Durante todo o tempo, ele não interrompeu a discussão. Acendeu o gás, ateou o fogo e trouxe-lhe alguns biscoitos da despensa. Ela sentou-se no sofá, em silêncio, com um prato sobre os joelhos. Trazia um grande chapéu branco enfeitado com flores cor-de-rosa. Era um chapéu barato, mas ele gostava. Sob o chapéu, o rosto dela estava estático e pensativo, castanho-dourado e corado. Como sempre, as orelhas estavam ocultas sob os seus caracóis curtos. Ela observava-o.

Sempre gostara dele aos domingos. Nesses dias, ele usava um fato escuro que evidenciava todos os movimentos do seu corpo. Havia algo de limpo e fresco no seu ar. Paul prosseguiu o seu raciocínio dirigido a ela. De repente, pegou na Bíblia. Miriam gostou do modo como ele a alcançou, tão determinado, directo ao objectivo. Voltou as páginas rapidamente e leu-lhe um capítulo de S. João. Enquanto lia, absorto, sentado no cadeirão e apenas a sua voz pensava, ela sentia que ele estava a usá-la inconscientemente, como um homem usa as suas ferramentas em qualquer trabalho que o absorve. Adorava essa sensação. E a ânsia na sua voz era como a tentativa de alcançar algo, e era como se ela fosse o modo de o conseguir. Miriam recostou-se no sofá, longe dele, sentindo-se, todavia, o próprio instrumento que a mão dele segurava, o que lhe dava um indescritível prazer.

Pouco a pouco, a voz tornou-se hesitante e Paul ficou constrangido. E quando chegou ao versículo: «Uma mulher, quando está em trabalho de parto, sofre porque a sua hora chegou», omitiu-o. Miriam sentira o seu constrangimento a aumentar. Estremeceu quando as bem conhecidas palavras não foram proferidas. Paul continuou a ler, mas ela já não o escutava. Um sentimento de pesar e vergonha fê-la vergar a cabeça. Seis meses atrás, ele teria lido tudo naturalmente. Agora, abria-se uma brecha na relação entre os dois. Agora, ela sentia haver algo de realmente hostil entre eles, algo de que ambos se envergonhavam.

Miriam comeu o bolo mecanicamente. Ele tentou prosseguir, desenvolvendo o seu argumento, mas não conseguiu recuperar o tom certo. Edgar chegou pouco depois. Mrs. Morel tinha ido a casa de uma amiga. Os três saíram rumo a Willey Farm.

Miriam matutava sobre o afastamento dele em relação a ela. Havia algo mais que ele desejava. Paul não podia estar satisfeito, não podia dar-lhe paz. Agora haveria sempre entre eles lugar para o conflito. Ela queria pô-lo à prova. Acreditava que a maior necessidade na vida dele era ela. Se conseguisse prová-lo, tanto a si mesma como a ele, tudo o resto poderia desaparecer, e ela poderia simplesmente confiar no futuro.

Assim, em Maio, pediu-lhe para vir a Willey Farm visitar Mrs. Dawes. Havia algo que Paul procurava ardentemente. Sempre que se falava de Clara Dawes, Miriam via-o agitar-se e ficar ligeiramente irritado. Afirmou que não simpatizava com ela. Contudo, estava ansioso por saber coisas a seu respeito. Bom, ele tinha de ser posto à prova. Ela acreditava que havia nele ânsias de coisas superiores, e inferiores, e que o desejo pelas superiores venceria. De qualquer forma, deveria tentar. Miriam, porém, esqueceu-se de que os conceitos de «superior» e «inferior» eram arbitrários.

Paul estava bastante entusiasmado com a ideia de se encontrar com Clara em Willey Farm. Mrs. Dawes veio passar o dia. A sua pesada cabeleira castanho-escura estava enrolada ao alto da cabeça. Envergava uma blusa branca e uma saia azul-marinho e, de algum modo, a sua presença parecia tornar as coisas vulgares e insignificantes. Quando se encontrava por perto, a cozinha parecia ao mesmo tempo pequena e imperfeita. A bela saleta de Miriam, com a sua luz crepuscular, parecia estúpida e sem graça. Toda a família Leiver se eclipsava como velas. Eles achavam-na um pouco difícil de suportar. No entanto, ela era perfeitamente amistosa, mas indiferente e um pouco dura.

Paul só chegou da parte da tarde. Mas veio cedo. Enquanto descia da bicicleta, Miriam viu-o olhar em volta da casa, ansioso. Ficaria desapontado se a tão esperada visita não tivesse vindo. Miriam saiu ao seu encontro, baixando a cabeça devido à intensidade do sol. As abecedárias brotavam agora, encarnadas, da verde sombra fria das suas folhas. A rapariga esperou-o, de cabelo escuro, contente por vê-lo.

– A Clara não veio? – perguntou Paul.

– Veio – replicou ela, no seu timbre musical. – Está a ler.

Ele empurrou a bicicleta até ao celeiro. Pusera uma bonita gravata, na qual tinha muito orgulho, e meias a condizer.

– Chegou esta manhã? – perguntou.

– Sim – respondeu Miriam enquanto caminhava a seu lado. – Lembraste-te de trazer aquela carta do homem do Liberty?

– Oh, que chatice, não! – disse ele. – Mas podes atazanar-me até que a traga.

– Não gosto de te atazanar.

– Mas não te acanhes. E ela está mais simpática? – continuou.

– Sabes que eu sempre a achei bastante simpática.

Paul ficou em silêncio. Era evidente que a sua ânsia em chegar cedo naquele dia se devia à recém-chegada. Miriam já começara a sofrer. Encaminharam-se para casa lado a lado. Paul retirou as molas das calças, mas era muito preguiçoso para escovar o pó dos sapatos, apesar de ter requintado nas meias e na gravata.

Clara estava sentada na saleta fresca, a ler. Paul reparou na sua nuca branca e no delicado cabelo repuxado. Ela ergueu-se e olhou para ele com indiferença. Para o cumprimentar, levantou o braço de um modo que parecia, ao mesmo tempo, mantê-lo à distância e, no entanto, acenar-lhe com alguma coisa. Ele notou a forma como os seus seios inchavam dentro da blusa, e como o ombro se curvava deliciosamente sob a fina musselina no cimo do seu braço.

– Escolheste um lindo dia – disse ele.

– É... aconteceu – respondeu ela.

– É verdade – continuou ele. – Ainda bem.

Ela sentou-se, não lhe agradecendo a amabilidade.

– Que fizeste toda a manhã? – perguntou Paul, dirigindo-se a Miriam.

– Bem – disse Miriam, tossindo roucamente –, a Clara só chegou com o pai... e, por isso, não está cá há muito tempo.

Clara sentara-se encostada à mesa, mantendo-se distante. Ele notou que as suas mãos eram grandes, mas bem cuidadas. A pele parecia quase grosseira, opaca e branca, com finos pêlos dourados. Ela não se importava que ele observasse as suas mãos. Tinha intenção de o desprezar. O seu braço opulento estava negligentemente pousado sobre a mesa. A sua boca fechava-se como se estivesse ofendida, e o seu rosto mantinha-se ligeiramente desviado.

– Estiveste presente na reunião da Margaret Bonford na outra noite – disse-lhe ele. Miriam desconhecia este Paul cortês. Clara olhou-o de relance.

– Estive, sim – respondeu.

– Ora – perguntou Miriam – como é que sabes?

– Eu entrei por alguns minutos até o comboio chegar – explicou ele.

Clara desviou novamente o rosto, com uma expressão desdenhosa.

– Acho-a uma mulherzinha adorável – comentou Paul.

– A Margaret Bonford! – exclamou Clara. – Ela é muito mais esperta que a maioria dos homens.

– Bem, eu não disse que não era – disse ele, depreciativamente. – Ela é adorável por tudo isso.

– E é claro que é só isso que tem importância – disse Clara, com uma expressão fulminante.

Ele coçou a cabeça, meio perplexo, meio aborrecido.

– Acho que importa mais do que a inteligência dela – retorquiu Paul – que, afinal, nunca a levaria ao Céu.

– Não é o Céu que ela pretende... é o seu justo quinhão na terra – retorquiu Clara. Falava como se Paul fosse responsável por qualquer privação de que Miss Bonford sofresse.

– Bem – disse ele –, eu achei-a calorosa e extraordinariamente agradável... mas demasiado frágil. Só desejei que ela estivesse confortavelmente em paz...

– ... remendando as peúgas do marido – interrompeu Clara, sarcasticamente.

– Estou certo de que não se importaria de remendar até mesmo as minhas peúgas – afirmou ele. – E tenho a certeza de que o faria até muito bem. Tal como eu não me importaria de lhe engraxar as botas, se ela o desejasse.

Mas Clara recusou-se a dar troco a este tipo de comentário. Paul conversou com Miriam durante algum tempo. A outra mulher permaneceu afastada.

– Bem – disse ele –, acho que vou procurar o Edgar. Ele anda no campo?

– Acho que foi buscar um carregamento de carvão – respondeu Miriam. – Deve vir directamente para casa.

– Sendo assim – disse Paul –, vou ao encontro dele.

Miriam não ousou propor nenhum programa que envolvesse os três. Ele levantou-se e deixou-as.

No caminho de cima, onde a giesta despontava, Paul viu Edgar caminhando preguiçosamente ao lado da égua, que acenava a testa estrelada de branco enquanto arrastava o ruidoso carregamento de carvão. O rosto do jovem lavrador iluminou-se quando avistou o amigo. As suas roupas eram velhas e já bastante coçadas, mas caminhava com um orgulho considerável.

– Viva! – cumprimentou ele, vendo Paul sem chapéu. – Onde vais?

– Vim ter contigo. Não suporto a «Nunca jamais».

Os dentes de Edgar brilharam numa gargalhada divertida.

– Quem é a «Nunca jamais»? – perguntou.

– Aquela senhora – Mrs. Dawes – devia chamar-se Mrs. Corvo, aquele que disse «Nunca jamais».

Edgar riu com satisfação.

– Não gostas dela? – perguntou.

– Não morro de amores – respondeu Paul. – Porquê, tu gostas?

– Não! – A resposta veio com profunda convicção. – Não! – Edgar franziu os lábios. – Não posso dizer que seja muito o meu estilo. – Meditou um pouco. Depois: – Mas porque lhe chamas «Nunca jamais»? – perguntou.

– Bem – explicou Paul. – Se ela olha para um homem, diz arrogantemente «Nunca jamais», se se olha no espelho, diz desdenhosamente «Nunca jamais», e se pensa duas vezes, di-lo com nojo, e se olha em frente, di-lo cinicamente...

Edgar considerou o discurso de Paul, não conseguindo entendê-lo muito bem, e disse, rindo:

– Achas que ela odeia os homens?

– Ela acha que sim – retorquiu Paul.

– Mas tu não achas que assim seja?

– Não – respondeu Paul.

– Então ela não foi simpática contigo?

– Consegues imaginá-la a ser simpática com alguém? – perguntou o jovem.

Edgar riu-se. Juntos, descarregaram o carvão no pátio. Paul estava bastante contrafeito pois sabia que Clara o podia ver, se olhasse pela janela. Mas não olhou.

Nas tardes de sábado, os cavalos eram escovados e tratados. Paul e Edgar trabalharam juntos, espirrando com o pó proveniente do pêlo de Jimmy e Flower.

– Sabes alguma canção nova para me ensinar? – perguntou Edgar.

Ele continuava a trabalhar sem parar. Quando se baixava, deixava a descoberto a parte posterior do pescoço, encarniçada do sol, e os dedos que seguravam a escova eram taludos. Paul observava-o de vez em quando.

– Mary Morrison? – sugeriu o mais novo.

Edgar concordou. Era dono de uma bela voz de tenor e adorava aprender todas as canções que o amigo lhe ensinava para poder cantar enquanto conduzia a carroça. Paul possuía uma voz de barítono bastante sofrível, mas tinha bom ouvido. No entanto, cantou baixinho, com medo de Clara. Edgar repetiu o verso na sua voz límpida de tenor. Por vezes, ambos interrompiam a cantoria para espirrar e, primeiro um e depois o outro, insultarem o cavalo.

Miriam estava impaciente com os homens. Era preciso tão pouco para os divertir – até Paul. Achava pouco natural nele que pudesse ficar tão absorvido numa trivialidade.

Era hora do chá quando acabaram.

– Que canção era aquela? – perguntou Miriam.

Edgar informou-a. A conversa virou para o canto.

– Passámos momentos tão agradáveis – disse Miriam a Clara.

Mrs. Dawes tomou o seu chá devagar, com dignidade. Sempre que os homens estavam presentes, ela mostrava-se distante.

– Gostas de ouvir cantar? – perguntou-lhe Miriam.

– Se a voz for boa – disse ela.

Paul corou, naturalmente.

– Queres tu dizer, se a voz for de excepção e educada? – disse ele.

– Acho que uma voz precisa de ser educada para cantar alguma coisa que se oiça – disse Clara.

– Já agora, também podes dizer que as pessoas deviam educar a voz antes de falarem – replicou ele. – Francamente, a maior parte das pessoas canta para seu próprio prazer.

– E, quem sabe, para desprazer dos outros.

– Nesse caso, os outros que tapem os ouvidos – retorquiu Paul.

Os rapazes desataram a rir. Depois, fez-se silêncio. Ele corou violentamente e tomou o chá calado.

A conversa voltou à questão de se o salário das mulheres deveria ser igual ao dos homens. Mrs. Leivers sustentava que os homens tinham famílias a manter; Clara afirmava que trabalho igual teria de significar salário igual, para homens ou mulheres. Mr. Leivers estava inclinado a concordar com ela. O que quer que Mrs. Dawes tivesse dito, Paul teria tomado uma posição contrária à dela. Como tal, argumentou que uma mulher era apenas um acessório no mercado de trabalho e que, na maioria dos casos, não passava de uma coisa transitória, sustentando-se apenas por um ou dois anos. Clara avançou o número de mulheres que sustentavam pai, mãe, irmãs, etc.

– E quase todos os homens do mundo, acima dos trinta anos, sustentam mulher e filhos – e, regra geral, as ditas mulheres não são assalariadas – retorquiu ele.

– Eu penso, meu amigo – disse Clara muito friamente –, que já antes encontrei o teu tipo de pessoa: o jovem que pensa que sabe tudo.

– E tu és do tipo da jovem que pensa que eu não sei nada – volveu ele.

– Oh, sabes sim... sabes como te fazeres ouvir – disse ela.

Paul estava furioso. De repente, rebentou numa gargalhada.

– Isto parece mais uma reunião de sufragistas contigo no estrado a discursar – disse ele.

Clara corou até à raiz dos cabelos.

– Porque terei eu de responder pelos «Homens», quando afinal sou apenas um deles... – continuou Paul.

– Como se não fosse já suficiente – gracejou Edgar.

– E assim – retomou Paul – sou responsabilizado por todos os pecados da história de Inglaterra, desde a Rainha Boadisca até à Canção da Camisa. Não é justo. Gostava que o Homem tivesse o direito de existir na sociedade moderna... num qualquer canto onde pudesse repousar a cabeça.

– Bem – gracejou Mrs. Leivers –, no final de contas, o lugar do homem continuará a ser o mesmo enquanto formos feitos como somos.

Mas este gracejo foi demasiado subtil para todos, à excepção de Clara, que estava indignadíssima.

Após o chá, quando todos os homens, à excepção de Paul, se retiraram, Mrs. Leivers perguntou a Clara:

– E achas a vida mais feliz agora?

– Infinitamente.

– Então estás satisfeita?

– Desde que possa ser livre e independente.

– E não sentes falta de nada na tua vida? – quis saber Mrs. Leivers, delicadamente.

– Ultrapassei isso tudo.

Paul sentiu-se desconfortável perante este discurso, e levantou-se:

– Vais acabar por descobrir que tropeças constantemente nas coisas que deixaste para trás – disse ele. Depois saiu em direcção aos estábulos. Achava que tinha sido espirituoso e o seu orgulho masculino estava radiante. Pôs-se a assobiar enquanto descia o carreiro de ladrilhos.

Miriam veio procurá-lo pouco depois para saber se gostaria de as acompanhar, a Clara e a ela, num passeio. Partiram em direcção à quinta de Strelley Mill. Enquanto caminhavam ao longo da ribeira, pela margem do Willey Water, olhando através do arvoredo para a orla do bosque, onde pequeninas flores cor-de-rosa brilhavam sob uns poucos raios de sol, avistaram, para lá dos troncos das árvores e das ralas aveleiras, um homem conduzindo um grande cavalo baio pelos barrancos. O animal, enorme e cor de fogo, parecia dançar romanticamente através do verde-escuro das aveleiras até onde o ar era sombrio como o passado, por entre as campainhas emurchecidas que podiam ter florido para Deirdre ou Isolda.

Os três estacaram, encantados.

– Que prazer ser cavaleiro – disse ele – e ter aqui um pavilhão.

– E ter-nos a nós fechadas em segurança? – retorquiu Clara.

– Sim – respondeu ele –, entoando melodias com as vossas amas, entregues aos vossos bordados. Eu transportaria o vosso estandarte branco, verde e púrpura, e teria gravado no brasão do meu escudo a sigla das sufragistas, por baixo de uma mulher enfurecida...

– Não tenho qualquer dúvida – disse Clara – que muito mais depressa lutarias por uma mulher do que a deixarias lutar por si mesma.

– E lutaria mesmo! Quando a mulher luta por si mesma parece um cão diante de um espelho, enraivecido pela sua própria sombra.

– E tu és o espelho? – perguntou ela, com um franzir de lábios.

– Ou a sombra – replicou ele.

– Temo – disse ela – que sejas perigosamente inteligente.

– Bem, deixo-te a ti a tarefa de seres boazinha – retorquiu ele, rindo. – Sê boazinha, gentil donzela, e deixai-me ser inteligente.

Mas Clara cansou-se da irreverência de Paul. Subitamente, ao olhar para ela, ele viu que a expressão de superioridade que emanava do seu rosto era infelicidade e não desprezo. O coração dele enterneceu-se por todos. Voltou-se para Miriam, a quem até então negligenciara, e foi gentil com ela.

Ao aproximarem-se da orla do bosque, encontraram Limb, um homem trigueiro e franzino, de quarenta anos, rendeiro de Strelley Mill, que ele dirigia como uma quinta dedicada à pecuária. Segurava as rédeas do poderoso garanhão displicentemente, como se estivesse cansado. Os três recuaram para o deixarem passar por cima das pedras que atravessavam o primeiro regato. Paul admirou-se pelo facto de um animal tão grande caminhar sobre pedras tão escorregadias com inesgotável vigor. Limb estacou diante deles.

– Diga ao seu pai, Miss Leivers – disse ele, numa voz sibilante, pouco vulgar –, que, há três dias, as suas crias novas partiram aquela vedação do fundo e fugiram.

– Qual? – perguntou Miriam, trémula.

O grande cavalo resfolegava pesadamente, agitando os flancos encarniçados e olhando-os desconfiado, com os seus olhos grandes, maravilhosos, mantendo a cabeça baixa e a crina pendente.

– Venham comigo – respondeu Limb – qu’eu amostro-lhes.

O homem e o garanhão seguiram à frente. O cavalo dançava de lado, agitando o topete branco e parecendo assustado, como se sentisse que estava no meio do regato.

– Nada de bailaricos – disse o homem ao animal, afectuosamente.

O cavalo galgou a margem em pequenos saltos e chapinhou delicadamente entrando no segundo regato. Clara, caminhando numa espécie de abandono amuado, olhava meio fascinada, meio desdenhosa. Limb parou e apontou para uma vedação sob uns salgueiros.

– Ali, tá a ver por onde eles passaram? – disse ele. – Os meus homens trouxeram-nos de volta três vezes.

– Sim – balbuciou Miriam, corando como se a culpa fosse sua.

– Querem entrar? – convidou o homem.

– Não obrigado... mas gostaríamos de ir até ao lago.

– Se quiserem – disse ele.

O cavalo relinchou de satisfação por se ver tão próximo de casa.

– Está todo contente por estar de volta – comentou Clara, que estava interessada na criatura.

– Pois está... Hoje teve uma jornada muito cheia.

Atravessaram o portão e viram aproximar-se deles, vinda da casa grande da quinta, uma mulher morena e de baixa estatura, aparentando uma natureza emotiva e cerca de trinta e cinco anos. Tinha o cabelo já um pouco tingido de grisalho e os olhos pareciam selvagens. Avançava de mãos atrás das costas. O seu irmão continuou em frente. Ao vê-la, o grande garanhão relinchou de novo. Ela aproximou-se, excitada.

– Já estás em casa outra vez, meu rapaz! – disse, ternamente, dirigindo-se ao cavalo, não ao homem. O grande animal girou em torno dela, baixando a cabeça. A mulher meteu-lhe na boca a maçã enrugada e amarela que escondera atrás das costas e depois beijou-o perto dos olhos. O cavalo resfolegou de prazer. Ela segurou-lhe a cabeça entre os braços, e apertou-a contra o peito.

– É esplêndido! – disse Miriam.

Miss Limb ergueu os olhos. Eram escuros e dirigiram-se directamente a Paul.

– Oh, boa tarde, Miss Leivers – cumprimentou ela. – Há anos que não a vemos cá por baixo.

Miriam apresentou-lhe os amigos.

– O seu cavalo é um óptimo companheiro! – disse Clara.

– Pois é! – E beijou-o novamente. – Tão dedicado como um homem!

– Mais dedicado que a maioria dos homens, penso eu – retorquiu Clara.

– É um bom menino! – disse a mulher, abraçando de novo o cavalo.

Clara, fascinada pelo grande animal, aproximou-se para lhe afagar o pescoço.

– Ele é muito meigo – disse Miss Limb. – Não acha que todas as criaturas grandes o são?

– É uma beleza! – respondeu Clara.

Queria olhá-lo nos olhos. Queria que ele olhasse para ela.

– É uma pena que não possa falar – disse.

– Oh, mas ele pode... diz tudo – retorquiu a outra mulher.

Depois, o irmão foi-se embora com o cavalo.

– Então, não vão entrar? Faça o favor de entrar, Mr... desculpe, não percebi o seu nome...

– Morel! – disse Miriam. – Não, não vamos entrar, mas gostaríamos de passar pela represa.

– É claro, estejam à vontade. O senhor pesca, Mr. Morel?

– Não – respondeu Paul.

– Porque, se pesca, pode vir pescar quando quiser – ofereceu Miss Limb. – Raramente vemos alguém durante a semana. Até lhe agradecia.

– Que peixes há no lago? – perguntou Paul.

Passaram pelo jardim da frente da casa, sobre o açude, e subiram a margem íngreme até ao lago, que repousava na sombra, com as suas duas ilhotas de madeira. Paul caminhava ao lado de Miss Limb.

– Não me importava de vir nadar para aqui – disse ele.

– Então, venha – convidou ela. – Venha quando quiser. O meu irmão ficará muito contente por conversar consigo. Ele é assim calado porque não tem com quem falar. Venha nadar quando quiser.

Clara aproximou-se.

– Tem uma boa profundidade – comentou. – E é tão límpido.

– É verdade – disse Miss Limb.

– Sabes nadar? – perguntou Paul. – Miss Limb estava agora mesmo a dizer que podíamos vir quando quiséssemos.

– É claro que há os criados da lavoura – disse Miss Limb.

Conversaram durante alguns minutos e depois continuaram, colina acima, deixando na margem a solitária senhora de olhar esgazeado.

A vertente da colina estava amadurecida pelo sol. Era selvagem e coberta de tufos de urze, abandonada aos coelhos. Os três caminhavam em silêncio. Paul disse então:

– Ela faz-me sentir desconfortável.

– Referes-te a Miss Limb? – perguntou Miriam. – É verdade!

– Qual será o problema dela? Estará a ficar tonta por viver demasiado solitária?

– Parece que sim – concordou Miriam. – Isto não é vida para ela. Acho uma crueldade enterrá-la aqui. Eu devia vir visitá-la mais vezes. Mas... ela perturba-me.

– Faz-me sentir pena dela... é verdade, e aborrece-me – disse ele.

– Eu acho – disse Clara subitamente – que o que ela quer é um homem.

Os outros dois ficaram mudos durante alguns instantes.

– Mas é a solidão que a deixa assim amalucada – disse Paul.

Clara não respondeu, prosseguindo a caminhada colina acima. Caminhava cabisbaixa, com as pernas oscilando à medida que pisava por entre os cardos secos e os tufos de erva, e os braços pendendo soltos. Em vez de andar, o seu belo corpo parecia vaguear às cegas pela encosta acima. Uma onda de calor invadiu Paul. Estava curioso acerca dela. Talvez a vida tivesse sido cruel com Clara. Esqueceu Miriam, que caminhava a seu lado, conversando consigo. Ela olhou para ele ao ver que ele não lhe respondia. O olhar dele estava fixo em Clara.

– Ainda achas que ela é uma antipática? – perguntou Miriam.

Ele nem reparou que a pergunta era despropositada. É que também lhe andava a bailar no pensamento.

– Passa-se algo com ela – respondeu.

– Sim – concordou Miriam.

No cimo da colina encontraram uma tapada bravia, escondida dos olhares; dois dos seus lados eram delimitados pelo bosque, os outros dois por sebes altas de espinheiros e sabugueiros. Por entre estes arbustos densos, viam-se aberturas por onde o gado poderia ter passado, se ali houvesse ainda gado. Naquele sítio a relva era macia e aveludada, fofa e esburacada pelos coelhos. O campo propriamente dito nunca fora cultivado e estava inundado de primaveras grandes e altas que nunca haviam sido cortadas. As flores brotavam fortes em ramalhetes por todo o lado, erguendo-se acima dos grosseiros tufos de erva. Parecia uma angra repleta de altos mastros de navios.

– Ah! – exclamou Miriam, voltando para Paul os olhos escuros dilatados. Ele sorriu. Juntos, gozaram a visão do campo de flores. Clara, um pouco afastada, olhava as primaveras, desconsoladamente. Paul e Miriam ficaram juntos, conversando em voz baixa. Ele ajoelhou-se, colhendo rapidamente os melhores botões, movimentando-se incessantemente de ramalhete em ramalhete, falando sempre num tom suave. Miriam colhia as flores ternamente, detendo-se diante de cada uma delas. Ele parecia-lhe sempre demasiado rápido, quase científico. No entanto, os ramos dele tinham uma beleza natural, mais do que os dela. Ele amava-os, mas como se fossem seus e tivesse direito a eles. Ela tinha uma maior reverência para com as flores: tinham algo que ela não possuía.

As flores eram muito frescas e doces. Ele queria bebê-las. Enquanto as colhia, comeu até uns pequenos jasmins amarelos. Clara continuava a vaguear desconsoladamente. Dirigindo-se a ela, Paul perguntou:

– Porque não colhes algumas?

– Não acho bem. Elas parecem melhor a crescer no campo.

– Mas gostarias de algumas?

– Elas querem ser deixadas em paz.

– Não acho que queiram nada disso.

– Não quero ter cadáveres de flores à minha volta – disse ela.

– Essa é uma ideia pomposa e artificial – replicou ele. – Elas não morrem mais depressa na água do que nas próprias raízes. E, além disso, ficam bem numa jarra, parecem felizes. E só podemos chamar cadáver a uma coisa quando ela tem a aparência de cadáver.

– Mesmo sendo ou não cadáver? – argumentou ela.

– Para mim não o são. Uma flor morta não é o cadáver de uma flor.

Desta vez, Clara ignorou-o.

– Mesmo assim... que direito tens tu de as arrancar? – perguntou ela.

– Gosto delas e quero-as... e há muitas mais.

– E achas isso suficiente?

– Sim, porque não? Estou certo de que deixariam um agradável perfume no teu quarto em Nottingham.

– E eu teria o prazer de as ver morrer.

– Mas então... não te interessa se elas morrem.

Dito isto, deixou-a, pisando os maciços de flores emaranhadas, que cobriam espessamente o campo, como pálidas e luminosas formações de espuma. Miriam aproximara-se. Clara estava ajoelhada, aspirando o aroma das primaveras.

– Eu acho – disse Miriam – que se as tratarmos com reverência, não lhes fazemos mal... o que conta é o espírito com que as colhemos.

– Isso é verdade – concordou ele. – Mas nós colhemo-las porque as queremos, é tudo. E exibiu o seu ramalhete.

Miriam estava silenciosa. Paul colheu mais algumas flores.

– Olhem para estas! – continuou Paul. – Robustas e sadias como pequenas árvores ou meninos de pernas gordas...

O chapéu de Clara estava pousado na erva, não muito longe. Ela estava ajoelhada, ainda inclinada para a frente, a sentir o perfume das flores. A visão do seu pescoço fez Paul sentir uma ânsia aguda, de tão belo que era, embora naquele momento ele não se sentisse muito orgulhoso de si mesmo. Os seios dela agitavam-se ligeiramente na blusa. A curva arqueada das suas costas era bonita e forte: ela não usava corpete. Subitamente, sem saber, ele estava a espalhar uma mão-cheia de primaveras sobre o seu cabelo e o seu pescoço, dizendo:


«Cinzas às cinzas e pó ao pó será.

Se o Senhor não te receber, o Diabo o fará.»


As flores frescas caíram sobre o pescoço de Clara. Ela ergueu o rosto para ele, onde dois olhos cinzentos e assustados, quase cheios de compaixão, se interrogavam sobre o que ele estava a fazer. Sobre o seu rosto caíram flores e ela cerrou os olhos.

De súbito, ali de pé ao lado dela, ele sentiu-se estranho.

– Pensei que querias um funeral – disse, embaraçado.

Clara riu de forma estranha e levantou-se, tirando as primaveras do cabelo. Pegou no chapéu e colocou-o na cabeça. Uma flor permaneceu presa ao seu cabelo, mas Paul não lhe disse nada. Depois, recolheu as flores que espalhara sobre ela.

Nos limites do bosque, os miosótis tinham-se estendido pelo campo, aí ficando como água da corrente. Mas murchavam agora. Clara vagueava sobre eles. Ele seguiu-a. Os miosótis agradavam-lhe.

– Olha como saíram do bosque! – disse.

Nesse momento, ela voltou-se com uma centelha de calor e gratidão.

– É verdade! – sorriu.

O sangue de Paul correu mais rápido.

– Fazem-me pensar nos homens selvagens dos bosques... como eles devem ter-se sentido aterrorizados quando se defrontaram cara a cara com o espaço aberto.

– Achas que sim? – perguntou ela.

– Entre as tribos antigas, pergunto-me quais teriam mais medo: as que irrompiam da escuridão dos bosques para todo um espaço de luz, ou as das áreas abertas, penetrando pé ante pé nas florestas.

– Acho que as segundas – respondeu ela.

– Sim, tu sentes-te realmente como uma pessoa de espaços abertos... tentando forçar-se a penetrar no escuro, não é verdade?

– Como é que posso saber? – respondeu ela, de um modo singular.

A conversa ficou por aqui.

A noite adensava-se sobre a terra. O vale já se cobria de sombras. Um minúsculo quadrado de luz subsistia ainda do lado oposto à quinta de Crossleigh Bank. Um brilho incandescente inundava os cumes das colinas. Miriam subiu lentamente, com o rosto enterrado no seu grande e solto ramalhete de flores, caminhando através da espuma dispersa das primaveras que lhe cobria o tornozelo. Atrás dela, as árvores transformavam-se agora em formas, todas elas sombras.

– Vamos? – perguntou.

E os três voltaram para trás. Permaneceram em silêncio. Descendo o trilho de terra, podiam ver a luz de casa mesmo em frente e, no cume da colina, uma leve silhueta escura pontilhada de luzinhas, onde a aldeia da mina de carvão tocava o céu.

– Foi agradável, não foi? – perguntou ele.

Miriam concordou, num murmúrio. Clara ficou em silêncio.

– Não achas? – insistiu ele.

Mas ela caminhava com a cabeça erguida e não respondia. Pela sua maneira de andar, como se nada lhe importasse, ele podia adivinhar o seu sofrimento.

Por esta altura, Paul levou a mãe a Lincoln. Ela estava entusiasmada e resplandecente como nunca, mas, sentada diante dele na carruagem do comboio, parecia frágil. E Paul teve uma sensação fugaz, como se ela estivesse a deslizar para longe dele. Então, quis agarrá-la, prendê-la, quase acorrentá-la. Sentia que tinha de a segurar com as próprias mãos.

Aproximavam-se da cidade. Iam ambos à janela, procurando vislumbrar a catedral.

– Ali está ela, mãe! – gritou Paul.

Avistaram a grande catedral erguendo-se acima da planície.

– Ah! – exclamou ela. – Pois está!

Ele olhou para a mãe. Os seus olhos azuis observavam a catedral em silêncio. Novamente ela parecia para lá dele. Algo da serenidade eterna da elevada catedral, azul e nobre contra o céu, algo da sua fatalidade, estava nela reflectido. O que era, era! – mesmo com toda a sua juventude, ele não podia alterá-lo. Olhou o rosto dela: a pele era ainda fresca, cor-de-rosa e aveludada, mas notavam-se já alguns pés-de-galinha em torno dos olhos; as pálpebras eram firmes, afundando-se um pouco, e a boca sempre fechada, em desilusão; e havia nela o mesmo olhar eterno, como se, finalmente, conhecesse o destino. E ele debatia-se contra o destino com todas as forças da sua alma.

– Veja, mãe, como se eleva sobre a cidade! E pensar que há ruas e ruas abaixo dela; parece maior que toda a cidade.

– Pois parece! – exclamou a mãe, voltando novamente à vida. Mas ele vira-a sentada, olhando fixamente pela janela para a catedral, de rosto e olhar parados, reflectindo a inexorabilidade da vida. E os pés-de-galinha em redor dos seus olhos e a boca tão duramente cerrada fizeram-no sentir que enlouquecia.

Fizeram uma refeição que ela considerou desnecessariamente extravagante.

– Não penses que eu gosto disto – disse, enquanto comia a costeleta. – Não gosto, não gosto mesmo nada! Só de pensar no teu dinheiro, assim desperdiçado!

– Não se preocupe com o meu dinheiro – respondeu ele. – Esquece-se de que sou um rapaz que leva a namorada a jantar fora?

Depois, comprou-lhe violetas azuis.

– Pára já com isso, menino! – ordenou ela. – Como é que eu vou fazer uma coisa dessas?

– Não tem de fazer nada! Fique quieta.

E, em plena High Street, Paul pregou as flores no casaco da mãe.

– Uma velha como eu! – protestou ela, aspirando o perfume.

– Bem vê – explicou ele –, quero que as pessoas pensem que somos terrivelmente finos. Portanto, a mãe tem de se apresentar à altura.

– Merecias que eu te desse um tabefe – disse ela.

– Vá lá... – ordenou ele –, pavoneie-se... como um pombo de cauda em leque.

Levaram uma hora a percorrer a rua. Mrs. Morel deteve-se primeiro junto ao Glory Hole, depois diante de Stone Bow, deteve-se em todo o lado, soltando exclamações. Um homem aproximou-se, tirou o chapéu e fez-lhe uma vénia:

– Permita-me que lhe mostre a cidade, minha senhora.

– Não, obrigada – respondeu ela. – Tenho o meu filho.

Nesse momento, Paul ficou furioso com ela por não ter respondido com mais dignidade.

– Tu deixas-te levar por ti mesmo – exclamou ela. – Ah, aquela é a Casa do Judeu! Lembras-te daquele sermão, Paul...

Ela mal podia subir a colina que conduzia à catedral, mas ele não notou. De repente, porém, foi dar com ela incapaz de falar. Conduziu-a a um pequeno bar, onde descansou.

– Não é nada! – disse a mãe. – O meu coração só está a ficar velhote; é de se esperar.

Paul não respondeu, mas olhou para ela. E novamente o seu coração foi esmagado por um aperto escaldante. Queria gritar, queria desfazer tudo, em fúria.

Retomaram o passeio, passo a passo, muito lentamente. E cada passo parecia um peso no peito de Paul. Sentia-se como se o seu coração fosse explodir. Finalmente, chegaram ao topo. Ela deteve-se encantada, olhando para o portão do castelo, admirando a fachada da Catedral. Tinha-se esquecido de si mesma.

– Isto é ainda melhor do que pensei que pudesse ser! – exclamou.

Mas ele odiava tudo. Por todo o lado a seguia, cismando. Sentaram-se juntos na Catedral. Assistiram a um curto serviço religioso no coro. Ela estava hesitante.

– Estará aberto para todos? – perguntou.

– É claro que está – respondeu ele. – Pensa que iam ter a lata de nos mandar embora?

– Bem – exclamou ela –, tenho a certeza de que teriam, se ouvissem a tua linguagem!

Durante o serviço, o seu rosto parecia resplandecer novamente de alegria e tranquilidade. E durante todo esse tempo, ele tinha vontade de se enraivecer, partir coisas e gritar.

Mais tarde, quando se debruçaram da muralha, admirando a cidade lá em baixo, Paul disse intempestivamente:

– Porque é que um homem não pode ter uma mãe jovem? Porque é que há-de ser sempre velha?

– Bem – disse ela, a rir – não me parece que tenha muita escolha.

– E porque não fui eu o filho mais velho? Ora veja... os filhos mais velhos dizem que os mais novos têm vantagem... mas veja bem, eles é que tiveram a mãe jovem. A mãe devia ter-me tido como seu filho mais velho.

– Não fui eu que escolhi – replicou ela. – Se pensares bem, és tão culpado como eu.

Ele voltou-se para ela, pálido, com o olhar irado.

– Porque é que a mãe é velha? – disse ele, enlouquecido pela sua impotência. Porque é que não pode andar? Porque é que não pode acompanhar-me a todos os lugares?

– Tempos houve – respondeu ela – em que eu era capaz de correr por essa colina acima melhor do que tu.

– E de que é que isso me vale, a mim? – gritou ele, golpeando a muralha com o punho. Depois, tornou-se lamuriento: – É uma pena que esteja doente, minha pequenina, é...

– Doente! – interrompeu ela. – Estou só a ficar velha, e tu tens de te conformar, é tudo. – Ficaram em silêncio. Mas não por muito tempo, e logo retomaram a boa disposição durante o chá. Enquanto estavam sentados na margem do Brayford, observando os barcos, Paul falou-lhe de Clara. A mãe fez inúmeras perguntas.

– E com quem vive ela?

– Com a mãe, em Bluebell Hill.

– E têm o suficiente para se manterem?

– Acho que não: penso que fazem rendas.

– Afinal que encantos lhe encontras tu, meu filho?

– Não sei se ela tem encantos, mãe. Mas é simpática. E parece correcta, sabe... Nada profunda, nem um pouco.

– Mas é bastante mais velha do que tu.

– Tem trinta, e eu vou fazer vinte e três.

– Mas não me disseste porque gostas dela.

– Porque não sei... será talvez o ar provocador que ela tem, uma espécie de revolta...

Mrs. Morel pensou um pouco. Teria ficado contente se o filho se apaixonasse por uma mulher que... ela não sabia bem o quê. Mas ele enervou-se, ficando subitamente furioso, e novamente melancólico. Ela só desejava que ele conhecesse uma rapariga agradável. Nem sabia o que desejava, mas deixou o assunto no ar. De certa forma, não era hostil à ideia de Clara.

Também Annie se ia casar. Leonard fora para longe trabalhar em Birmingham. Um fim-de-semana em que ele estava lá em casa, Mrs. Morel dissera-lhe:

– Não estás com boa cara, meu filho.

– Não sei o que tenho – respondeu ele. – Sinto-me perdido, mãe.

Chamava-a já de mãe, com o seu jeito infantil.

– Tens a certeza de que as instalações são boas? – perguntou ela.

– Sim... sim. Só que... é um aborrecimento quando temos de tomar sozinhos o nosso próprio chá... sem ninguém para nos ralhar, se o deitarmos para o pires e o bebermos daí. Não sei porquê mas tira o sabor ao chá.

Mrs. Morel riu-se.

– E então isso preocupa-te? – perguntou.

– Não sei... Quero casar – disse ele, de repente, torcendo os dedos e olhando para as botas. Houve uma pausa.

– Mas – exclamou ela – pensei que tinhas dito que querias esperar mais um ano.

– Pois foi, eu disse isso – respondeu ele, teimosamente.

Mrs. Morel considerou as palavras do filho por um momento.

– Sabes – continuou – a Annie é um pouco esbanjadora. Não amealhou mais de umas onze libras... e eu sei, meu filho, que tu não tens tido muita sorte.

Ele corou até às orelhas.

– Eu tenho vinte e três libras – respondeu.

– Com isso, não vão muito longe – disse Mrs. Morel.

Ele não respondeu, limitando-se a torcer os dedos.

– E tu sabes que eu não tenho nada... – continuou ela.

– Nem eu queria, mãe...! – gritou ele, muito vermelho, sofrendo e protestando.

– Não, meu filho, eu sei. Só tenho pena de não ter dinheiro. Tirando cinco libras para o casamento e preparativos... ficam vinte e nove libras... com isso não conseguem fazer grande coisa...

Ele continuou a torcer os dedos, impotente, obstinado, sem erguer os olhos.

– Mas queres mesmo casar? – perguntou ela. – Achas que deves?

Ele olhou-a de frente com os seus olhos azuis.

– Quero! – afirmou.

– Então – continuou ela – temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance.

Quando Leonard voltou a erguer o rosto, tinha lágrimas nos olhos.

– Não quero que a Annie passe dificuldades...! – disse ele, debatendo-se.

– Meu filho – disse ela – vocês namoram há muito tempo – tu tens um emprego decente. Se um homem tivesse precisado de mim, eu teria casado com ele mesmo sem dinheiro. Para ela pode ser um pouco difícil começar a vida humildemente. As raparigas muito novas são assim. Esperam ansiosas pelo belo lar que pensam que vão ter. Mas eu tinha mobílias caras! E isso não é tudo.

Assim, o casamento teve lugar quase de imediato. Arthur veio a casa, esplêndido no seu uniforme. Annie estava muito bonita num vestido cinza peito-de-rola que podia guardar para os domingos. Morel disse-lhe que era bem parva por se casar, e mostrou-se muito frio para com o genro. Mrs. Morel tinha plumas brancas no chapéu e mais algumas na blusa, e ambos os filhos a arreliaram por se embonecar tanto. Leonard estava alegre e cordial e sentia-se um tolo amedrontado. Paul não conseguia entender por que razão Annie queria casar-se. Sentia um grande carinho por ela, e ela por ele. Esperava, por isso, talvez um pouco melancolicamente, que tudo lhe corresse pelo melhor. Arthur estava surpreendentemente elegante no seu uniforme escarlate e amarelo e tinha plena consciência disso, mas sentia-se secretamente envergonhado por estar fardado. Annie debulhou-se em lágrimas na cozinha, ao despedir-se da mãe. Mrs. Morel chorou um pouco e, depois, afagou-lhe as costas, dizendo:

– Não chores, filha, ele vai ser bom para ti.

Morel bateu com os pés no chão violentamente, afirmando que ela era uma parva por se ter amarrado tão depressa. Leonard estava pálido e exausto. Mrs. Morel disse-lhe:

– Confio-ta, meu filho, e considero-te responsável por ela.

– Pode confiar em mim – assegurou ele, quase morto com tanta confusão. E estava tudo acabado.

Quando Morel e Arthur se recolheram, Paul sentou-se a conversar com a mãe, como tantas vezes fazia.

– Não tem pena de ela se ter casado, pois não, mãe? – perguntou ele.

– Não tenho pena de ela ter casado... mas... é uma sensação estranha... vê-la partir para longe de mim. Até me parece impossível que ela prefira ir com o Leonard. Mas as mães são assim... eu sei que é tolice.

– E vai ficar triste por causa dela?

– Quando penso no dia do meu casamento – respondeu a mãe – só posso esperar que a vida dela seja diferente.

– Mas confia nele... para a tratar bem?

– Sim, sim! Há quem diga que ela podia ter arranjado melhor. Mas eu acho que, se um homem é genuíno, como é o Leonard, e uma rapariga gosta dele... então... está tudo bem... ele é tão bom quanto ela.

– Nesse caso, não se importa?

– Nunca deixaria uma filha minha casar com um homem que eu não sentisse ser completamente genuíno. E, no entanto, cá está este vazio, agora que ela se foi...

Sentiam-se ambos tristes e queriam-na de volta. Paul achava que a mãe parecia muito sozinha, na sua nova blusa de seda preta com guarnições brancas.

– De qualquer modo, mãe, eu nunca me casarei – afirmou ele.

– Ah, todos dizem o mesmo, meu filho. Ainda não encontraste a mulher ideal. Espera um ano ou dois, e vais ver.

– Mas eu não me caso, mãe... fico a viver consigo, e vamos ter uma criada.

– Ah, meu filho... falar é fácil. Veremos quando chegar a altura.

– Que altura? Eu tenho quase vinte e três anos.

– Sim... não és dos que se casam cedo. Mas daqui a três anos...

– Estarei consigo na mesma.

– Veremos, meu filho, veremos.

– Mas a mãe não quer que eu case?

– Não gostaria de pensar que vais continuar pela vida fora sem ninguém para tomar conta de ti e te fazer... não, não gostaria...

– Acha então que devo casar-me?

– Mais cedo ou mais tarde, todos os homens devem casar-se.

– Mas preferia que fosse mais tarde.

– Será difícil... muito difícil. É como o povo diz:


«Quem casa filho, perde um filho;

quem casa filha, ganha um filho.»


– E pensa que eu deixaria uma mulher afastar-me de si?

– Bem, não poderias pedir-lhe que casasse contigo e com a tua mãe – sorriu Mrs. Morel.

– Ela que fizesse o que quisesse... desde que não interferisse.

– Não o faria... até te ter apanhado... Mas depois verias...

– Então nunca vou ver. Nunca me casarei enquanto a tiver a si... Nunca.

– Mas eu não gostaria de te deixar sem ninguém, meu filho – disse Mrs. Morel, chorando.

– A mãe não vai deixar-me. A mãe tem... cinquenta e três anos! Dou-lhe até aos setenta e cinco. Ora aí tem, nessa altura, estou eu gordo e com quarenta e quatro anos, e então posso casar com uma mulher séria. A mãe vai ver...!

A mãe sentou-se, a rir.

– Vai deitar-te – disse ela –, vai deitar-te.

– E havemos de ter uma casa bem bonita, a mãe e eu, e uma criada, e tudo será perfeito. Talvez eu venha a ficar rico com a minha pintura.

– Já para a cama!

– E a mãe terá uma caleche puxada por um potro. Imagina-se... uma pequena Rainha Vitória por aí a trotar.

– Já te disse para ires para a cama – disse ela, a rir.

Ele beijou-a e saiu. Os seus planos para o futuro eram sempre os mesmos.

Mrs. Morel ficou a matutar sobre a filha, sobre Paul, sobre Arthur. Lamentava-se por ter perdido Annie. A família era muito unida, e ela sentia que agora tinha de viver, para estar com os filhos. A vida tinha-lhe dado tanta coisa. Paul amava-a e Arthur também. Arthur nunca soube o quanto a amava. Era uma criatura de momentos. Até agora, nunca tinha sido obrigado a compreender--se a si mesmo. O exército disciplinara o seu corpo, mas não a sua alma. Estava de perfeita saúde e era muito atraente. O seu cabelo negro e espesso assentava-lhe bem na cabeça pequena. Havia algo de infantil no seu nariz, algo quase feminino nos seus olhos azuis, muito escuros. Mas tinha a boca vermelha e cheia de um homem, sublinhando o bigode, e o queixo era vigoroso. A boca era do pai, e o nariz e os olhos da família da mãe, gente bonita, de fracos princípios. Mrs. Morel andava ansiosa, preocupada com o filho. Desde que assumisse realmente o uniforme, estava seguro. Mas até onde iria ele?

Na verdade, o exército não lhe tinha feito nenhum bem. Ressentia-se amargamente da autoridade dos oficiais subalternos. Detestava ter de obedecer, como se fosse um animal. Mas tinha o bom senso de não protestar. Por isso, concentrara toda a sua atenção na tentativa de tirar o melhor partido da situação. Sabia cantar, era um companheiro alegre. Por vezes, envolvia-se em situações difíceis, mas eram as dificuldades próprias de um homem, facilmente perdoáveis. Assim, tirava disso o melhor partido, enquanto o seu autorespeito se ia recalcando. Confiava na sua boa aparência e elegância, no seu requinte e boa educação, para conseguir quase tudo o que desejava, e não estava desiludido. No entanto, sentia-se inquieto. Algo parecia atormentá-lo por dentro. Nunca estava quieto, nunca estava sozinho. Com a mãe, mostrava-se bastante humilde. Admirava Paul, amava-o até, mas desprezava-o ligeiramente. E Paul, por sua vez, admirava e amava o irmão, mas desprezava-o ligeiramente.

Mrs. Morel recebera algumas libras da herança do pai, e decidiu comprar a saída do filho do exército. Ele não cabia em si de contente. Parecia um garoto em férias.

Sempre gostara de Beatrice Wyld e, durante a sua licença, reatou a velha amizade. Ela estava agora mais forte e de melhor saúde. Os dois davam frequentemente longos passeios, e Arthur levava-a pelo braço à boa maneira dos soldados, com alguma rigidez. Beatrice tocava piano enquanto ele cantava. Arthur desapertava, então, o colarinho da túnica, ia ficando cada vez mais corado, com o olhar brilhante, e cantava com uma voz máscula de tenor. Depois, sentavam-se juntos no sofá. Ele parecia exibir o seu corpo, e ela mostrava-se bem consciente dele, do peito forte, dos flancos, das coxas cingidas nas calças justas.

Ele gostava de se resvalar para o dialecto quando conversava com ela. Por vezes, Beatrice acompanhava-o e fumava também um cigarro. Noutras ocasiões, tirava apenas umas passas do cigarro dele.

– Não – disse ele uma noite, quando ela lhe pediu o cigarro: – Nem penses. Se quiseres, dou-te um beijo com fumo.

– Quero uma passa, não quero beijo nenhum – respondeu ela.

– Então... é isso que vais ter – disse ele – juntamente com o beijo.

– Quero dar uma passa no teu cigarro – irritou-se ela, tentando tirar-lhe o cigarro dos lábios.

Arthur estava sentado com o ombro encostado ao dela. Ela era pequena e rápida como um raio. Só a custo ele conseguiu escapar-lhe.

– Dou-te um beijo de fumo – disse ele.

– És um descarado impertinente, Arty Morel – disse ela, recostando-se no sofá.

– Deixa-me dar-te um beijo de fumo!

O soldado inclinou-se, sorrindo. O seu rosto estava próximo do dela.

– Olha o disparate! – replicou ela, virando a cabeça.

Arthur aspirou uma longa fumaça, fechou a boca e pôs os lábios perto dela. O seu bigode escuro e bem aparado sobressaía como uma escova. Beatrice olhou para os lábios rubros, pregueados, e depois, subitamente, conseguiu arrancar-lhe o cigarro dos dedos e fugiu para longe. Ele, correndo atrás dela, tirou-lhe a travessa que lhe prendia os cabelos. Ela voltou-se e atirou-lhe o cigarro. Ele apanhou-o, pô-lo na boca e sentou-se.

– Parvalhão! – gritou ela. – Dá-me a minha travessa!

Receava que o seu cabelo, especialmente penteado para ele, se desmanchasse, e conservou as mãos na cabeça. Ele escondeu a travessa entre os joelhos.

– Não a tenho – disse.

Com o riso, o cigarro tremia-lhe entre os lábios enquanto falava.

– Mentiroso! – acusou ela.

– Tão certo como eu estar aqui! – E riu-se, mostrando as mãos.

– Seu demónio desavergonhado! – exclamou ela, precipitando-se para ele, lutando para recuperar a travessa que ele tinha entre os joelhos. Enquanto Beatrice lutava com ele, puxando-lhe as coxas macias e apertadamente cingidas, Arthur riu-se até cair para trás no sofá, sacudido pelas gargalhadas. O cigarro caiu-lhe da boca e quase lhe queimou a garganta. Sob o delicado bronzeado, o sangue subiu à superfície, e ele riu até os seus olhos azuis ficarem cegos e a garganta inchada, quase sufocando. Depois, endireitou-se. Beatrice estava a colocar a travessa no lugar.

– Fizeste-me cócegas, Beat – disse ele, com a voz rouca.

Como um relâmpago, a mão dela, pequena e branca, voou e esbofeteou-lhe a face. Ele ergueu-se de um salto, com um olhar feroz. Entreolharam-se. Lentamente, um rubor subiu às faces dela; baixou os olhos, depois a cabeça. Ele sentou-se novamente, amuado. Ela entrou na cozinha para compor o cabelo. Aí, sozinha, verteu algumas lágrimas, não sabendo bem por que razão.

Quando regressou, estava recomposta. Mas era apenas uma capa sobre o seu fogo interior. Arthur, com a cabeleira revolta, continuava amuado no sofá. Beatrice sentou-se diante dele, no cadeirão, e nenhum dos dois falou. O relógio martelava no silêncio, com pancadas secas.

– És uma gatinha arisca, Beat – disse ele devagar, quase como um pedido de desculpas.

– Bem, e tu não devias ser tão atrevido – retorquiu ela.

Seguiu-se novamente um longo silêncio. Ele assobiava para si mesmo, como um homem muito agitado, mas provocador. Subitamente, ela atravessou a sala direita a ele e beijou-o.

– Então, dei ou não dei? – troçou ela.

Ele levantou o rosto para ela, sorrindo de forma singular.

– Dás-me outro? – convidou ele.

– Julgas que não me atrevo? – perguntou ela.

– Coragem! – desafiou-a ele, com a boca estendida na sua direcção.

Deliberadamente, e com um sorriso fremente que parecia espalhar-se a todo o corpo, ela colocou a boca sobre a dele. Imediatamente, os braços de Arthur se fecharam em torno dela. Assim que o longo beijo acabou, ela afastou a cabeça, e meteu os dedos delicados no pescoço dele, por dentro do colarinho aberto. Depois, fechando os olhos, abandonou-se de novo num beijo.

Agia agora de livre vontade. O que desejava fazer, fizera-o e não responsabilizava ninguém.

Paul sentia a vida mudar à sua volta. As condições da juventude tinham desaparecido. Agora, a sua era uma casa de pessoas adultas. Annie era uma mulher casada, Arthur seguia o seu próprio prazer de um modo que a família ignorava. Durante muito tempo, tinham vivido em casa, saindo para passar o tempo. Mas agora, para Annie e Arthur, a vida desenrolava-se fora de casa da mãe. Só vinha a casa de férias ou para descansar. Por isso, pairava no ar aquela sensação estranha de vazio, como se os passarinhos tivessem levantado voo. Paul andava cada vez mais inquieto. Annie e Arthur haviam partido. Ele estava ansioso por lhes seguir o exemplo. No entanto, a casa era, para ele, ao lado de sua mãe. E, contudo, havia algo mais, algo cá fora, algo que ele desejava.

Andava cada vez mais desassossegado. Miriam não o satisfazia. O seu antigo desejo, quase loucura, de estar com ela, enfraquecera. Por vezes, encontrava Clara em Nottingham, por vezes acompanhava-a a reuniões, por vezes via-a em Willey Farm. Mas ultimamente a situação tornara-se constrangedora. Havia um triângulo de antagonismo entre Paul, Clara e Miriam. Com Clara, ele adoptava um tom vivo, mundano e trocista que era muito desagradável para Miriam. Não lhe importava o que acontecera antes. Ela podia ser íntima e estar triste com ele. Depois, assim que Clara aparecia, tudo desaparecia, e ele representava para a recém-chegada.

Miriam disfrutara de uma bela noite na companhia de Paul, sentados no feno. Ele estivera ocupado na cavalariça e, quando acabou, veio ajudá-la a colocar o feno em pequenos molhes. Depois, falou-lhe das suas esperanças e desesperos, e toda a sua alma parecia estar ali, desnuda diante dela. Ela sentiu-se como se visse nele a própria essência trémula da vida. A Lua despontou; regressaram juntos a casa; parecia que ele a procurara porque precisava desesperadamente dela, e ela escutou-o, deu-lhe todo o seu amor e confiança. A Miriam parecia que ele lhe trouxera o melhor que havia em si para guardar, e que ela o guardaria enquanto vivesse. Não, o céu não cuidaria das estrelas melhor e mais eternamente do que ela guardaria o que de bom havia na alma de Paul Morel. Entrou em casa sozinha, sentindo-se exaltada, satisfeita com a sua confiança.

E depois, no dia seguinte, Clara chegou. Estava combinado tomarem o chá no campo de feno. Miriam viu a tarde vestir-se de dourado e depois de sombras. Durante todo esse tempo, Paul brincava com Clara. Fazia montes de feno cada vez maiores sobre os quais saltavam. Miriam não se interessava pelo jogo e manteve-se afastada. Edgar, Geoffrey, Maurice, Clara e Paul não paravam de saltar. Paul venceu, pois era muito leve. O sangue de Clara estava inflamado. Ela corria como uma amazona. Paul adorava a forma determinada como ela se precipitava para o monte de feno e saltava, aterrando do outro lado, com os seios sacudidos e o cabelo espesso em desalinho.

– Tocaste! – gritou ele. – Tocaste!

– Não toquei nada! – dardejou ela, voltando-se para Edgar. – Não toquei, pois não? Não achas que passei bem?

– Não sei. – E Edgar riu-se.

Nenhum deles sabia dizer.

– Mas tu tocaste – insistiu Paul. – E perdeste.

– Não toquei! – gritou ela.

– Tão claro como água – teimou Paul.

– Dá-lhe um puxão de orelhas por mim – gritou ela a Edgar.

– Não – disse Edgar a rir –, não me atrevo. Tens de ser tu a fazê-lo.

– Nada vai alterar o facto de teres tocado – insistiu Paul, trocista.

Ela estava furiosa. O seu pequeno triunfo diante de homens e rapazes desvanecera-se. Ela esquecera-se de si durante o jogo. Agora, ele queria humilhá-la.

– Acho que és desprezível! – disse-lhe ela.

Ele riu novamente, de um modo que torturou Miriam.

– Eu já sabia que não conseguias saltar aquele monte – provocou Paul.

Clara voltou-lhe as costas. Contudo, todos podiam ver que a única pessoa que ela escutava, ou da qual estava consciente, era ele, e ele dela. Agradava aos homens assistir a esta batalha entre eles. Mas Miriam torturava-se.

Via agora que Paul podia escolher o inferior em vez do superior. Ele conseguia ser infiel a si próprio, infiel ao verdadeiro e profundo Paul Morel. Havia o perigo de ele se tornar frívolo, de correr atrás das suas satisfações como qualquer Arthur, ou como o seu próprio pai. Pensar que ele pudesse desperdiçar a sua alma em troca desta irreverente relação de trivialidade com Clara era algo que atormentava Miriam. Caminhava amargurada e em silêncio, enquanto os outros dois brigavam entre si e Paul se divertia.

Mais tarde, embora se recusasse a admiti-lo, Paul sentiu-se envergonhado de si mesmo e prostrou-se diante de Miriam. Então, de novo se revoltou.

– Não é religioso ser-se religioso – disse. – Considero que um corvo é religioso quando cruza os céus. Mas só o faz porque se sente levado para onde vai, não porque pense que está a ser eterno.

Mas Miriam sabia que uma pessoa podia ser religiosa em tudo, ter Deus, fosse Ele quem fosse, presente em tudo.

– Não acredito que Deus saiba assim tanto sobre Si mesmo – bradou Paul. – Deus não sabe as coisas, Ele é as coisas... E estou certo de que não é sentimental.

A ela parecia-lhe que Paul tentava pôr Deus do seu lado, porque queria que as coisas fossem à sua maneira e desejava apenas o seu prazer. Travou-se uma longa batalha entre ambos. Ele era-lhe absolutamente infiel até mesmo na sua presença; depois ficava envergonhado, arrependido, para logo em seguida a odiar e fugir novamente. Essa era a situação eternamente repetida.

Ela irritava-o até ao mais fundo da sua alma. Depois, ali ficava, triste, pensativa, em adoração. E ele fazia-a sofrer. Metade do tempo, ele sofria por ela, metade do tempo, odiava-a. Ela era a sua consciência, e ele sentia que, de algum modo, tinha uma consciência que era de mais para si. Não podia deixá-la, porque, de certa forma, ela detinha em seu poder o melhor que havia nele. Não podia ficar com ela, porque ela não recebia tudo o resto, o que vinha por acréscimo, e eram três quartos. Por isso, desgastava-se em crueldade para com ela.

Quando ela fez vinte e um anos, ele escreveu-lhe uma carta que apenas podia ter sido escrita para ela.

«Será que devo escrever-te uma carta de aniversário? Parece um pouco pernicioso fazê-lo deliberadamente, não achas? Porque é certo que vou ser presunçoso e sentencioso.» Seguia-se então uma boa dose de presunção:

«A minha última carta preparava-te, não é verdade, para as alegrias da idade que se aproximava. Não te sentes como uma herdeira ao tomar posse da sua herança? É que agora, tornas-te publicamente dona de ti mesma. Querias mais?... Impossível!»

Paul começava a sentir o sentimento de culpa a torturá-lo. Parecia despedaçado por dentro, como se não pudesse manter-se de pé, mas devesse esforçar-se por não cair.

«Deixa-me falar do nosso velho e desgastado amor, pela última vez. Também ele está a mudar, não te parece? É como se o corpo desse amor tivesse morrido, deixando-te a sua alma invulnerável! Sabes, eu posso dar-te um amor espiritual, como sempre fiz du-rante estes longos, longos anos; mas não uma paixão encarniçada. Sabes, tu és uma freira. Eu dei-te aquilo que teria dado a uma freira sagrada... como um monge místico dá a uma freira mística; certamente que o estimas mais. No entanto, lamentas... não, lamentaste, melhor dizendo... o outro. Em todas as nossas relações, não entra o corpo. Não estou a falar-te através dos sentidos... mas através do espírito. É por isso que não somos capazes de amar no sentido comum. Muitas vezes, quando me dirijo a ti, não te olho de frente, porque, vê se entendes, eu não falo para os teus olhos, embora eles sejam escuros e belos, não falo para os teus ouvidos, ocultos sob uma delicada mecha de cabelo sedoso... mas para o teu íntimo, para lá de tudo isso. E assim continuarei a fazer a vida inteira, se o destino não intervier. Estás a ver? Compreendes agora porque só te beijo debaixo do azevinho. Entendes? E eu, será que entendo? Será talvez melhor, pensarás tu. Eu acho que sou demasiado educado, demasiado civilizado. Acho que muita gente o é.

«Tu ocupas um lugar na minha natureza que ninguém mais poderia preencher. Tu tens desempenhado um papel fundamental no meu desenvolvimento. E esta dor, que tem sido como uma nuvem ensombrando as nossas almas, não se começa ela a dissipar? A nossa não é uma afeição banal. E, no entanto, somos mortais, e viver lado a lado um com o outro seria terrível, pois, de algum modo, contigo não posso já ser trivial e, sabes, estar sempre para além deste estado mortal seria perdê-lo. Se as pessoas casam, devem viver juntas como seres humanos afectuosos que podem ser banais um com o outro sem se sentirem estranhos... não como duas almas. É assim que penso.

«Talvez me case nos próximos anos. Terá de ser uma mulher a quem possa beijar e abraçar, a quem possa fazer mãe dos meus filhos, com quem possa falar divertidamente, trivialmente, sinceramente, mas nunca com esta terrível seriedade. Vê como o destino dispôs as coisas. Tu... tu podes casar com um homem que não se derrame como fogo diante de ti. Pergunto-me se entendes... pergunto-me se eu próprio me entendo. Mas tu sabes que estas coisas me perturbam, e agora eis um final para a nossa conversa sobre este assunto. Perdoa-me por tudo o que disse – não é natural, eu sei – e queima esta carta, e não penses nela nem me faças pensar nela, e Deus nos ajude a suportar o fardo de nós próprios.

«Gostarias de um Manual de Ética? Acho que gostarias, sim, e podemos falar disso e aprender... oh, sim. E tu ficarás mais culta, não é? Como vês, a nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro.

«Agora tens vinte e um anos. Estou tão feliz por seres uma mulher independente. És tão forte quanto eu, não és? Sim, ainda mais forte. Oh, se temos de viver, temos de ser sensatos, e não nos podemos permitir ir longe de mais. Devemos ser triviais e procurar a beleza e não a dor, pois de outro modo ficamos numa situação difícil. Vá lá, nem uma palavra sobre os lugares sensíveis, por enquanto.

«Oh, como estaremos alegres na tua festa, no sábado! Eu, agora, não sinto nem um pouco de tristeza dentro do meu coração.

«Será que devo enviar-te esta carta? Duvido. Mas, afinal... é melhor, para que possas compreender. Adeus...»

Miriam leu a carta duas vezes, fechando-a em seguida. Um ano mais tarde, quebrou o selo para a mostrar à sua mãe.

«Tu és uma freira... tu és uma freira» – as palavras penetravam-lhe no coração uma e outra vez. Nada do que ele alguma vez dissera a penetrara tão profunda e firmemente, como se de uma ferida mortal se tratasse.

Ela respondeu-lhe dois dias depois da festa. «A nossa intimidade teria sido completamente bela, se não fosse um pequeníssimo erro», citou. «Terá esse erro sido meu?»

Quase de imediato, ele respondeu-lhe de Nottingham, enviando-lhe ao mesmo tempo um pequeno Omar Khayyam.

«Vais encontrar muita coisa entre as finas capas deste pequeno livro, mas a lição a retirar é que devemos beber o vinho tinto da vida e deixá-lo embriagar-nos por um instante. Foi essa a razão por que o comprei. Também quero levar-te The Blessed Damosel, para passar um serão contigo e com Rossetti.

«Se o pequeno erro foi teu, perguntas tu. Bem, ninguém erra sozinho! A tua quota-parte do erro foi gloriosa, digna da imortalidade. Mas a minha foi um reconhecimento indomável do barro do vaso... frágil... rígido... confinador. E eu, alternadamente, amei e odiei a matéria mundana de mim mesmo. Quando a amava, era cruel para ti, quando a odiava, era cruel para mim, e para tudo o mais. Não tenho eu a faculdade de ser muito cruel?

«Se, na festa dos teus anos, eu estava ainda algo tempestuoso, foi porque reconheci no teu sol de quarta-feira o brilho lavado do teu longo dia de chuva de terça-feira. Eu não me sento e travo a descoberto as minhas batalhas, como tu fazes. Eu sacudo o inimigo pela garganta e grito-lhe que ele é um vilão e um cão. Com isso, ordeno-lhe que vá para longe de mim e, por um momento, fico em liberdade. Depois, digo a mim mesmo que se tratava de um pobre coitado e rio. Pouco depois, mergulho novamente nas trevas, ao descobrir que ele não se foi nem tão-pouco está morto... E, quando tudo isto se torna insuportável, travo com ele nova luta feroz. Através destas batalhas violentas venço, ou não venço. Sem triunfos, sem Waterloos. Assim, não sofro tão intensamente, e fico menos estável. Afinal de contas, é uma brincadeira, esta coisa de “nós”, não é?

«Estou feliz por teres respondido... És tão calma e natural que me envergonhas. Que oco que eu sou! Tenho de jogar duro... Tu não entendes como eu posso dançar em redor dos meus inimigos, invectivando-os e espiando-os, lançando mão de tudo o que me aparece no caminho, travando contendas ocasionais. Se eu me fechasse a tudo e mantivesse a dor apertada no peito, como tu fazes, morreria de exaustão. Nisso, as nossas naturezas são radicalmente opostas.

«Por isso, estamos tantas vezes em desacordo. Mas, no fundamental, estaremos sempre juntos, penso eu.

«Tenho de agradecer-te pela tua simpatia para com a minha pintura e os meus desenhos. Muitos dos esboços são dedicados a ti. Espero ansiosamente as tuas críticas, que, para minha vergonha e glória, são sempre grandes apreciações. Que deliciosa brincadeira que isso é.

«Adeus. Agora tenho de saldar uma maldita conta. Espero que queimes estas cartas. É minha regra queimá-las todas... pois nenhuma me dá prazer a não ser pela lembrança do prazer a que se referem, e muitas estão cheias de lágrimas secretas das quais devo fugir...»

Este foi o fim da primeira fase dos amores de Paul Morel. Estava agora com vinte e três anos e, embora virgem, o instinto sexual que Miriam refinara nele durante tanto tempo estava agora cada vez mais fortalecido. Muitas vezes, quando falava com Clara Dawes, sentia o sangue engrossar e alvoroçar-se, aquela concentração peculiar no peito, como se algo estivesse vivo lá dentro, um novo ser ou um novo centro de consciência, avisando-o de que, mais cedo ou mais tarde, teria de decidir-se por uma mulher ou por outra. Mas ele pertencia a Miriam. Disso ela estava absolutamente segura, de que ele lhe concedia esse direito.


X

CLARA

COM VINTE E TRÊS anos, Paul mandou uma paisagem sua para a Exposição de Inverno de Newcastle. Miss Jordan tinha-se interessado muito por ele e convidara-o para ir a sua casa, onde conheceu outros artistas. Paul começava a ter ambições.

Uma manhã, estava ele a lavar-se na copa, quando chegou o carteiro. Paul ouviu a mãe numa gritaria desenfreada. Correu para a cozinha e viu-a de pé diante da lareira, a agitar uma carta, como louca, e a gritar «Vivas!». Ficou chocado e assustado.

– Oh, mãe! – exclamou.

A mãe correu para ele e atirou-se-lhe ao pescoço, enquanto agitava a carta, gritando:

– Parabéns, meu filho... Eu sabia que havíamos de vencer!

Paul estava cheio de medo daquela mulher pequenina e bem-comportada, já de cabelos grisalhos, que de repente desatara naquele chinfrim. Até o carteiro voltou para trás a correr, pensando que tinha acontecido alguma desgraça. Viram-lhe o cocuruto do boné por detrás da cortina. Mrs. Morel precipitou-se para a porta.

– O quadro dele ganhou o primeiro prémio, Fred, e foi vendido por vinte guinéus!

– Ena pá! G’ande acontecimento! – disse o carteiro, um rapaz novo, que ela conhecia desde pequeno.

– Quem o comprou foi o major Moreton – acrescentou Mrs. Morel.

– Isso vale muito, olá se vale, Mrs. Morel – disse o carteiro, de olhos azuis a luzir. Não cabia em si de contente por ter sido o portador de tão boas notícias. Mrs. Morel voltou para dentro e sentou-se. Tremia dos pés à cabeça. Paul só tinha medo de que ela tivesse lido mal a carta e sofresse uma desilusão. Releu-a uma, duas vezes, e convenceu-se de que era mesmo verdade. Então, sentou-se, com o coração a pulsar forte, de alegria.

– Oh, mãe! – exclamou.

– Eu não te disse que havíamos de vencer? – disse ela, disfarçando as lágrimas.

Paul tirou a chaleira do lume e escaldou o chá.

– A mãe não imaginava que... – começou ele, hesitante.

– Não, meu filho... assim tanto não... mas esperava bastante.

– Mas tanto não – disse ele.

– Não... isso não... mas sabia que íamos vencer.

E logo recuperou a compostura, pelo menos aparentemente. Ele estava sentado, de camisa aberta, deixando-lhe a descoberto um pescoço quase feminino, de toalha na mão e cabelo em pé.

– Vinte guinéus, mãe! Exactamente o que a mãe precisava para resgatar o Arthur. Agora já não precisa de pedir emprestado. É mesmo à conta.

– Nem pensar nisso, não te vou ficar com o dinheiro todo! – disse ela.

– Ora essa, porquê?

– Porque não devo.

– Bem... então a mãe fica com onze libras... e eu com nove.

Continuaram a discutir a divisão dos vinte guinéus. Ela só queria as cinco libras de que precisava. Ele não concordava de maneira nenhuma. E, assim, a discussão serviu para descarregarem a tensão.

Morel, quando à noite chegou da mina, disse, mal entrou:

– Ouvi dizer qu’o quadro do Paul ganhou o primeiro prémio e foi vindido a Lorde Henry Bentley por cinquenta libras.

– As histórias que as pessoas contam! – exclamou Mrs. Morel.

– Ah! – disse ele. – Eu bem sabia qu’era mentira. Mas impingiram-me que tu é que tinhas contado ò Fred Hodgkisson.

– Como se eu lhe fosse dizer uma coisa dessas!

– Ah! – aquiesceu o mineiro.

Via-se que estava desapontado.

– Lá que ganhou o primeiro prémio... isso é verdade – disse Mrs. Morel.

O mineiro deixou-se cair pesadamente na cadeira.

– Conseguiu! – exclamou o mineiro.

Estava perplexo, de olhar pregado algures, no outro lado da sala.

– Mas, quanto às cinquenta libras, que disparate! – E Mrs. Morel calou-se por um instante. – Enfim... o major Moreton comprou-o por vinte guinéus...

– Vinte guinéus! Num pode ser! – exclamou Morel.

– Pois foi, e bem os merece.

– Tá bem! – disse ele. – Num duvido... Mas vinte guinéus por uma pintura qualquer qu’ele fez numa ou duas horas...! – Depois calou-se, cheio de respeito pelo filho. Mrs. Morel fungou ligeiramente, como se isso não fosse nada de importante.

– E quand’é qu’ele põe as mãos na massa? – perguntou o mineiro.

– Isso não sei... quando o quadro for entregue, suponho.

Fez-se silêncio. Morel olhava para o açucareiro em vez de comer, com o braço enfarruscado e a mão desfigurada pelo trabalho apoiados em cima da mesa. A mulher fingiu não ver quando ele limpou os olhos com as costas da mão, com a cara toda esborratada do pó da mina.

– Pois é, e o outro tamém havia de ter feito o mêmo, se num o tivessem matado – disse ele, em voz baixa.

A lembrança de William retalhou Mrs. Morel como uma lâmina gelada, deixando-a fatigada e a precisar de se ir deitar.

Paul foi convidado para jantar em casa de Mr. Jordan. Ao chegar a casa, disse:

– Mãe, preciso de um smoking.

– Sim, já calculava – disse ela. Estava contente. Fez uma pausa. – Tens o do William – prosseguiu. – Sei que custou quatro libras e dez xelins, e ele só o vestiu três vezes...

– E a mãe gostava que eu o usasse? – perguntou Paul.

– Com certeza. Acho que te deve servir... pelo menos o casaco. As calças têm de ser subidas.

Paul foi para o quarto e vestiu o casaco e o colete. Quando desceu estava bastante bizarro, com o colarinho e o peitilho de flanela e o casaco e colete de cerimónia. Estava-lhe tudo muito largo.

– O alfaiate aperta-te isso – disse a mãe, alisando-lhe o casaco no ombro. – O tecido é muito bonito. Nunca tive coragem para deixar o teu pai usar as calças e bem contente estou agora de o ter feito.

Enquanto passava a mão nas bandas de seda do casaco, pensou no filho mais velho. Mas este outro filho estava bem vivo dentro do fato, e ela passou-lhe a mão nas costas para o sentir. Estava vivo e era dela. O outro estava morto.

Paul foi a vários jantares com o smoking que tinha sido de William. De cada vez que isso acontecia, o coração da mãe exultava de orgulho e alegria. O filho estava lançado na vida. Os botões que ela e os irmãos tinham comprado para William trazia-os ele no peitilho, aplicados numa das camisas de cerimónia de William. Paul tinha uma bela figura. As suas feições eram algo rudes, mas era simpático e muito amável. Não seria propriamente um cavalheiro, mas via-se que estava ali um homem genuíno.

Paul contava à mãe tudo o que se passava, tudo o que se dizia. Era como se ela lá tivesse estado. E ele estava morto por lhe apresentar os novos amigos com quem ia jantar às sete e meia.

– Ir contigo? – disse ela. – Para que hão-de querer eles conhecer-me?

– Mas querem! – exclamou, indignado. – Se querem conhecer-me, como dizem, então querem conhecê-la a si também... porque a mãe é tão inteligente como eu.

– Ir contigo, meu filho... – E riu-se.

Mas começou a poupar mais as mãos. Também as dela estavam muito calejadas do trabalho. A pele estava lustrosa da água quente e os nós dos dedos inchados. Mas começou a ter o cuidado de não as meter em lixívia. Tinha saudades das suas mãos de outros tempos, pequenas e delicadas. E quando Annie começou a insistir com ela para usar blusas mais requintadas, de acordo com a sua idade, ela fez-lhe a vontade. Permitiu até que lhe pusessem um laço preto de veludo no cabelo. Depois, deu uma fungadela sarcástica, mas sabia que lhe ficava bem. Parecia uma senhora da sociedade, afirmava Paul, tão fina como Mrs. Moreton, e muito, muito mais bonita. A família estava a subir na escala social. Só Morel continuava na mesma, ou melhor, piorava lentamente.

Paul e a mãe discutiam longamente sobre a essência da vida. A religião ia desaparecendo da vida de Paul. Tinha-se desembaraçado de todas as crenças que o pudessem aperrear, fizera uma limpeza geral, e chegara mais ou menos ao âmago da fé, ou seja, que cada um deve procurar o bem e o mal dentro de si mesmo, e ir, com paciência, construindo a sua própria ideia de Deus. E, a partir dessa altura, passou a interessar-se mais pela vida.

– Sabe – disse ele à mãe –, não quero pertencer a uma burguesia abastada. Prefiro o povo. Eu sou do povo.

– Mas se fosse outra pessoa a dizê-lo, meu filho, ias ficar furioso. Tu sabes que te consideras igual a qualquer grande senhor.

– No íntimo, talvez – respondeu ele. – Não na classe ou na educação, ou nas maneiras. Mas no íntimo, isso sim.

– Muito bem... Então para quê falar no povo?

– Porque... a diferença entre as pessoas não está nas classes sociais, mas nelas mesmas... Só que às classes médias vão-se buscar as ideias, e ao povo... a própria vida, o calor humano. No povo sentem-se vibrar o ódio e o amor...

– Isso é tudo muito bonito, meu filho... mas então porque não vais conversar com os amigos do teu pai?

– Esses são muito diferentes.

– Não concordo. São gente do povo. Afinal, com que pessoas do povo é que te dás agora? Com as que gostam de trocar ideias, falar das mesmas coisas que a burguesia. As outras não te interessam.

– Mas... há a vida...

– Não creio que a Miriam te dê mais vida do que qualquer rapariga culta... Miss Moreton, por exemplo. Tu é que tens preconceitos de classe, estás a ficar um snob.

A mãe desejava francamente que o filho ascendesse à burguesia, o que ela sabia não ser difícil. E desejava vê-lo, no fim, casado com uma senhora da sociedade.

Empenhava-se agora em combater no filho a sua incessante inquietação. Ele ainda mantinha a ligação com Miriam, não conseguindo nem acabar com tudo nem assumir o compromisso em definitivo, e a indecisão parecia consumir-lhe as energias. Além disso, a mãe pressentia nele uma inclinação inconsciente para Clara, e sendo ela uma mulher casada, Mrs. Morel só desejava que o filho se apaixonasse por alguém em situação menos complicada. Mas Paul, estupidamente, recusava-se a amar, ou sequer a admirar uma rapariga só pelo facto de ela pertencer a uma classe mais elevada.

– Meu filho – disse-lhe a mãe –, nem toda a tua inteligência, nem todo o teu desprezo pelas tradições antigas, nem essa mania de fazeres só o que queres, parecem trazer-te grande felicidade.

– E o que é a felicidade? – exclamou ele. – Para mim não existe! Como é que eu posso ser feliz?

Esta pergunta tão directa perturbou-a.

– Isso só tu podes saber, meu filho. Mas, se pudesses encontrar uma mulher decente que te fizesse feliz... quando te bastava quereres... terias mais sossego para trabalhar... seria muito melhor para ti.

Paul franziu o sobrolho. A mãe pusera o dedo em cheio na ferida chamada Miriam. Ele afastou os cabelos da testa, com o olhar incendiado de dor.

– Isso é fácil de dizer, mãe – gritou. – Isso é a cartilha de todas as mulheres... paz de espírito e conforto físico. Para mim, isso não vale nada.

– Ah, não? – retorquiu a mãe. – Se calhar achas que o teu desencanto é divino, não?

– Acho... Lá da divindade não quero saber. Mas diabos levem a sua felicidade! Desde que se tenha uma vida cheia, não interessa se é ou não de felicidade. Receio que a sua felicidade me enchesse de tédio.

– Tu nem sequer tentas – disse a mãe. E, de repente, toda a dor que sentia por ele explodiu. – E isso é importante! – gritou ela. – Tinhas obrigação de ser feliz, tinhas obrigação de tentar ser feliz, de viver feliz. Como é que eu ia ficar, sabendo que eras infeliz?

– A sua vida foi suficientemente má, Mater, mas não a deixou muito pior do que os que foram mais felizes. Julgo que se saiu até muito bem. Comigo passa-se o mesmo. Não acha que me estou a sair bem?

– Não, meu filho, não estás. Batalhar... batalhar... e sofrer... é tudo o que fazes, pelo que eu vejo...

– E porque não, querida mãe? É o melhor que há a fazer...

– Não, não é! As pessoas têm obrigação de ser felizes!

Mrs. Morel tremia dos pés à cabeça. Discussões destas repetiam-se sempre que a mãe parecia querer lutar pela vida do filho, opondo-se à sua vontade de morrer. Paul abraçou-a. Ela estava doente, metia dó.

– Deixe lá, mãezinha! – murmurou Paul. – Desde que a vida não nos pareça mesquinha e miserável, o resto não importa... que seja feliz ou infeliz.

Ela apertou-o contra o peito.

– Mas eu quero que sejas feliz – disse, pateticamente.

– Oh, mãezinha adorada... diga antes que quer que eu viva.

Mrs. Morel sentiu o coração morrer por ele. Sabia que, por este andar, ele não duraria muito. O seu desleixo pungente, a propensão para o sofrimento, a vida que levava, eram tudo formas lentas de suicídio. Dilacerava-se-lhe o coração só de pensar. Odiava Miriam com toda a força da sua determinação por tão subtilmente ter minado a alegria de Paul. Não lhe interessava que não o fizesse por mal. Fazia-o, e ela odiava-a.

Queria tanto que o filho se apaixonasse por uma rapariga à sua altura – educada e forte. Mas ele não olhava para ninguém que considerasse superior. Parecia gostar de Mrs. Dawes. Pelo menos esse sentimento era genuíno. A mãe não se cansava de rezar por ele, para que não se perdesse. Era tudo o que pedia: não pela sua alma ou pela rectidão do seu carácter, mas para que não se perdesse. E, enquanto ele dormia, passava horas a fio a pensar nele e a rezar por ele.

Paul afastou-se de Miriam imperceptivelmente, sem o saber. Arthur só saiu do exército para se casar. O bebé nasceu seis meses após o casamento. Mrs. Morel arranjou-lhe um novo emprego na mesma firma onde trabalhara antes, a ganhar vinte e um xelins por semana. Com a ajuda da mãe de Beatrice, mobilou-lhe uma casinha de dois quartos. Agora estava definitivamente apanhado. Não importava barafustar e espernear, estava bem preso. Andou mal-humorado durante algum tempo, mostrando-se insuportável com a mulher que o amava; não ligava quando o bebé, que era franzino, chorava ou dava preocupações. Fazia à mãe queixas intermináveis, mas ela limitava-se a dizer: «Bem, meu filho, o responsável és tu, tens de aprender a tirar partido da situação.» E, finalmente, ganhou juízo. Agarrou-se ao trabalho, assumiu as suas responsabilidades, compreendeu que pertencia à mulher e ao filho e aprendeu a tirar o melhor partido da situação. Nunca se tinha sentido muito ligado à família, e agora afastava-se de vez.

Os meses iam passando devagar. Através de Clara, Paul tinha-se mais ou menos relacionado com os socialistas, as sufragistas e os sindicalistas de Nottingham. Um dia, uma amiga dele e de Clara, que morava em Bestwood, pediu-lhe que levasse um recado a Mrs. Dawes. Ao fim da tarde, Paul foi até Bluebell Hill, metendo por Sneinton Market, e lá conseguiu encontrar a casa numa ruela empedrada a granito e com passeios de tijolo azul-escuro, rugoso. Um degrau separava a porta da tosca calçada, servindo também para as pessoas limparem os pés e baterem com as botas para sacudirem a lama. A pintura castanha da porta estava tão deteriorada que se via a madeira por baixo da tinta a descascar. Paul ficou na rua, e bateu à porta. Soaram passos pesados e, por cima da sua cabeça, surgiu uma mulher alentada, por volta dos sessenta anos. Ele olhou para ela do passeio. A mulher tinha uma expressão severa.

Mandou-o entrar para a sala, que dava directamente para a rua. Era um quartinho pequeno, abafado e tétrico, com móveis de mogno e descomunais retratos a carvão de gente já falecida. Mrs. Radford saiu da sala com o seu passo imponente, quase marcial. Clara entrou logo a seguir e, ao vê-lo, corou até às orelhas, o que o deixou atrapalhado. Era como se não lhe agradasse que ele a tivesse vindo encontrar no seu ambiente doméstico.

– Parecia-me impossível ser a tua voz – disse ela.

Mas agora, perdido por cem, perdido por mil... e levou-o do mausoléu directamente para a cozinha.

A cozinha era também escura e acanhada, mas encontrava-se atafulhada de rendas brancas. A mãe tinha ido sentar-se de novo junto ao aparador, às voltas com uma emaranhada teia de renda. À sua direita, um monte solto de linha de algodão; à esquerda, tufos e mais tufos de espiguilha de renda; e, à sua frente, sobre o tapete da lareira, a tal teia emaranhada. Os fios encaracolados, puxados do emaranhado de rendas, espalhavam-se por cima do guarda-fogo e pela chaminé. Paul não se atrevia a dar um passo, não fosse tropeçar nos rolos de linha branca.

Em cima da mesa estava uma dobadoura. Havia ainda um maço de cartões castanhos e quadrados para enrolar a renda, uma caixinha de alfinetes e, em cima do sofá, um outro monte de renda.

Havia rendas por todo o lado, e a cozinha era tão escura e quente que fazia sobressair ainda mais a nuvem branca, rendada.

– Já que cá tá, num repare d’eu continuar a trabalhar – disse Mrs. Radford. – Sei que tá tudo atravancado, mas faça o favor de s’assentar.

Clara, muito atrapalhada, encostou à parede uma cadeira, para ele se sentar, em frente aos novelos de brancura, e sentou-se ela no sofá, envergonhada.

– Quer beber uma cerveja preta? – perguntou Mrs. Radford.

– Clara, vai buscar-lhe uma cerveja.

Paul protestou, mas Mrs. Radford insistiu.

– Tá cum ar de quem precisa – disse ela. – Nunca anda com melhores cores do qu’isso?

– É da minha pele, é muito grossa e não deixa ver o sangue à transparência – respondeu ele.

Clara, envergonhada e aborrecida, trouxe-lhe uma garrafa de cerveja e um copo. Paul deitou o líquido preto no copo.

– Bem – disse ele, erguendo o copo –, à nossa!

– Agradecida – disse Mrs. Radford.

Paul bebeu um gole.

– E pode fumar à vontade, desde que num deite fogo à casa – acrescentou Mrs. Radford.

– Obrigado – respondeu Paul.

– Num precisa de m’agradecer – disse ela. – Até vou gostar de sintir o cheirinho do tabaco aqui em casa outra vez. Uma casa só de mulheres é tão triste com’uma casa sem lareira, acho eu. Num sou de querer o meu canto só pra mim. Inté gosto de ver um home a andar por aí... se ele for alguma coisa que se veja.

Clara começou a trabalhar. A dobadoura rodava, chiando mansamente, e a renda branca saltava-lhe por entre os dedos para o cartão. Quando o cartão ficou cheio, ela partiu a espiguilha e, com um alfinete, prendeu a ponta à renda já enrolada. Depois, meteu novo cartão na dobadoura. Paul observava-a. Estava sentada com as costas muito direitas, magnífica. Tinha o pescoço e os braços desnudados. O sangue aflorava-lhe à face, por baixo da orelha, e mantinha a cabeça baixa, de vergonha e humilhação. Os olhos estavam pregados no trabalho. Os seus braços eram de um tom mate e pujantes de vida, comparados com a renda branca. As suas mãos, grandes e bem tratadas, trabalhavam em movimentos cadenciados, como se nada pudesse apressá-las. Ele, sem se aperceber, não tirava os olhos dela. Era a linha do seu pescoço, prolongando-se desde o ombro, quando ela se curvava; era o seu cabelo castanho-escuro; era o movimento dos seus braços resplandecentes.

– A Clara falou-me de si – continuou a mãe. – Trabalha na Jordan, não é? – E continuou a fazer renda sem parar.

– É, sim.

– Inda m’alembra de quando o Thomas Jordan costumava pedir-me caramelos.

– Ah, sim? – disse Paul, sorrindo. – E ele merecia-os?

– Umas vezes sim, outras não... sobretudo para o fim. Ele é dos que levam tudo e num dão nada, isso é qu’ele é... ou, pelo menos, costumava ser.

– Eu acho-o uma pessoa muito decente.

– Bom... folgo em saber.

Mrs. Radford olhava Paul sem pestanejar. Havia nela uma determinação que lhe agradava. A cara estava flácida, mas os olhos eram calmos, e havia nela um vigor que refutava a velhice, fazendo as rugas e as peles parecerem um mero anacronismo. Tinha a força e o sangue-frio de uma mulher na pujança da vida. Continuou a fazer renda com movimentos lentos e muita dignidade. A fofa teia amontoava-se-lhe inevitavelmente no avental, tombando depois pouco a pouco para o chão, ao seu lado. Os braços eram bem torneados, mas luzidios e amarelados, de marfim velho, e não tinham aquele tom mate que tornava, a seu ver, tão fascinantes os de Clara.

– Anda atão c’a Miriam Leivers? – perguntou a mãe de Clara.

– Bem... – disse ele.

– É boa rapariga – prosseguiu Mrs. Radford. – Boa rapariga, mas um bocado fedúncia cá prò meu gosto.

– Sim, talvez... – concordou Paul.

– Só fica satisfeita quando tiver asas pra poder voar por cima da cabeça de toda a gente – disse ela.

Clara interrompeu-os, e Paul deu-lhe o recado que o levara lá. Ela falava com ele com humildade, vendo-se surpreendida no seu antro de miséria. Ao vê-la assim, humilde, era como se ele a esperasse, ansioso.

– Gostas de dobar? – perguntou Paul.

– O que é que uma mulher há-de fazer? – respondeu ela amargamente.

– É cansativo?

– Mais ou menos. E não o é todo o trabalho feminino? Essa é outra das partidas que os homens nos pregaram, desde que conquistámos o nosso lugar no mundo do trabalho.

– Atão... num fales mal dos homes – disse a mãe. – S’as mulheres num fossem umas parvas, os homes num eram tão maus, é o qu’eu digo... Olha que nenhum home me tratou mal que não levasse o troco... Mas que são uns danados, lá isso são, num adianta negar.

– Mas boas pessoas, não concorda? – perguntou Paul.

– Bem... são um bocado diferentes das mulheres – disse ela.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – perguntou ele a Clara.

– Acho que não – respondeu ela.

– Gostava, pois! – exclamou a mãe. – Ficava toda contente se voltasse. Num lhe ligue. Ela é toda cheia de nove horas, mas qualquer dia inda vai morrer de fome.

Clara passava vergonhas com a mãe. Até Paul sentia os olhos abrirem-se-lhe de espanto. Será que não devia mesmo ligar aos remoques de Clara? Ela trabalhava com afinco. E ele sentiu um arrepio de prazer só de pensar que ela podia precisar da sua ajuda. Parecia tão carente e privada de tanta coisa. O seu braço, que não fora feito para se amarrar a um mecanismo, movia-se mecanicamente; e a cabeça, que não fora feita para andar curvada, curvava-se sobre a renda. Parecia presa à dobadoura, entre os desperdícios de uma vida. Era muito duro para ela ver-se dispensada pela vida, como se já não tivesse préstimo. Não admira que protestasse tanto.

Clara acompanhou-o à porta. Ele ficou parado na ruela miserável, a olhar para ela. Era tão soberba na figura e no porte que fazia lembrar Juno destronada. De pé, na soleira da porta, fechava os olhos à rua e à miséria que a rodeava.

– Vais a Hucknall com Mrs. Hodgkinson?

Paul dizia coisas sem sentido, de olhos postos nela. Os olhos cinzentos de Clara encontraram finalmente os seus. Estavam mudos de humilhação, contritos, com uma espécie de submissão de escrava. Ele ficou surpreendido, sem saber o que fazer. Sempre a tinha imaginado altiva e poderosa.

Quando dali saiu, só lhe apetecia fugir. Dirigiu-se para a estação, como um sonâmbulo, e chegou a casa sem consciência de já não estar na rua dela.

Estava convencido de que Susan, a supervisora da Espiral, se ia casar, e no dia seguinte perguntou-lho.

– Diz-me uma coisa, Susan, ouvi dizer que te vais casar. É verdade?

Susan corou.

– Quem te disse? – perguntou ela.

– Ninguém. Apenas ouvi dizer que estavas a pensar...

– Lá isso estou... Mas não precisas de contar a ninguém. E, ainda por cima, quem me dera não estar...!

– Julgas que eu acredito nisso, Susan?

– Pois podes acreditar. Antes queria mil vezes ficar como estou.

Paul estava chocado.

– Porquê, Susan?

A rapariga estava ruborizada e fulminava-o com o olhar.

– Porque sim!

– E tens mesmo de casar?

Em resposta, ela limitou-se a olhar para ele. Paul tinha uma candura e uma gentileza que faziam as mulheres confiar nele. Compreendeu o que ela queria dizer.

– Ah, desculpa – disse ele. Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

– Mas verás que tudo vai correr bem. Tenta ver as coisas pelo lado melhor – disse ele, melancólico.

– Nem posso fazer outra coisa.

– Podes sim, podes dar cabo da tua vida. Esforça-te por seres feliz.

Paul arranjou novo pretexto para ir a casa de Clara.

– Gostavas de voltar para a Jordan? – disse ele.

Ela pousou o trabalho, apoiou os braços belíssimos em cima da mesa e fitou-o sem responder. Pouco a pouco, um rubor subiu-lhe às faces.

– Porquê? – perguntou.

Paul sentiu-se constrangido.

– Bem... É que a Susan está a pensar em ir-se embora. Clara continuou a dobar. A espiguilha branca pulava e saltava para o cartão. Ele aguardou. Sem levantar a cabeça, ela disse por fim, numa voz desusadamente baixa:

– Falaste com alguém sobre o assunto?

– Nem uma palavra... Só contigo.

Seguiu-se novo e longo silêncio.

– Quando puserem o anúncio, concorro – disse ela.

– Tens de concorrer antes. Eu digo-te quando.

Ela continuou a fazer girar a dobadoura e não o contrariou.

Clara voltou para a Jordan. Algumas das funcionárias mais antigas, entre elas Fanny, lembravam-se dela de outros tempos e não guardavam boas memórias. Clara sempre fora muito altiva, uma mulher reservada e superior. Nunca se misturava com as colegas e sempre que tinha oportunidade de as criticar, fazia-o com frieza e extrema delicadeza, o que as fazia sentirem-se mais insultadas do que agastadas. Para com Fanny, a pobre corcunda hipersensível, Clara fora sempre extremamente amável e gentil, o que fazia Fanny chorar ainda mais do que as línguas grosseiras das outras supervisoras.

 

 


                            CONTINUA

 

 

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