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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHOS E AMANTES
FILHOS E AMANTES

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Partiriam no sábado seguinte de manhã, no comboio das sete horas. Paul sugeriu a Miriam que dormisse em casa dele, pois morava muito longe, e ela já jantou de véspera em casa dele. Estavam todos tão excitados que a vinda de Miriam até foi recebida com entusiasmo. Contudo, mal ela chegou, a família tornou-se menos expansiva e mais fechada. Paul tinha descoberto um poema de Jean Ingelow que falava em Mablethorpe, e, por isso, tinha de o mostrar a Miriam. Sem ela, o seu sentimentalismo nunca teria chegado ao ponto de ler poesia para a família ouvir. Mas agora concordavam em ouvi-lo. Miriam, sentada no sofá, escutava-o enlevada. Quando ele estava presente, ela parecia sempre presa a ele e das palavras dele. Mrs. Morel, com ciúmes, sentou-se na sua cadeirinha de baloiço para o escutar. Annie e o pai escutavam-no também; Morel tinha a cabeça mais levantada de um lado, como alguém que escuta um sermão e está consciente do mesmo. Paul espreitou por cima do livro. Tinha agora a presença de quem mais gostava. E Mrs. Morel e Annie quase competiam com Miriam, sobre qual seria a ouvinte mais atenta, a preferida dele. Paul sentia-se nos píncaros.

– Mas – interrompeu Mrs. Morel – não percebo porque é que os sinos têm que tocar A Noiva de Enderbyt...?

– É uma velha melodia que os sinos costumavam tocar como aviso contra a cheia. Penso que a tal Noiva de Enderby morreu afogada numa enchente – respondeu ele. Não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer na realidade, mas nunca se teria rebaixado ao ponto de o confessar perante o seu público feminino. Elas escutavam-no e acreditavam. Ele próprio acreditava nas coisas que dizia.

– E as pessoas sabiam o significado dessa melodia? – quis saber a mãe.

– Sim... tal e qual os escoceses quando escutam As Flores da Floresta... e quando costumavam tocar os sinos em sinal de alarme em sentido contrário.

– Ah! – exclamou Annie. – Quer dizer que os sons de um sino são sempre os mesmos quando são tocados no seu sentido correcto, ou ao contrário.

– Mas – disse ele – se começares num tom grave e subires até ao agudo... lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá! – disse ele, percorrendo a escala completa, e todos o acharam muito inteligente. Ele também. Depois, aguardando um minuto, continuou a ler o poema.

– Hum! – disse Mrs. Morel, apreciativamente, quando ele terminou. – Só espero que tudo o que se tem escrito não seja assim tão triste.

– Num consig’intender porqu’é qu’houve tantos afogamentos – disse Morel. Houve uma pausa. Annie preparou-se para levantar a mesa.

– Acho Elizabeth um belo nome – disse Miriam, em voz baixa. – «A minha nora Elizabeth...»

– Concordo – disse Paul.

– Também acho – disse a mãe. – Mas não gosto de Lizzie e abomino Liza.

Nem Paul nem Miriam achavam que Lizzie ou Liza tivessem algo a ver com o assunto.

– Ah, mas «Elizabeth»! – murmurou Miriam.

– E ainda por cima, a Rainha Elizabeth adorava que a tratassem por «Grande Eliza» – disse Paul.

– E amanhã há mais! – disse Morel, não se contendo.

Mrs. Morel e Paul deram uma gargalhada.

– Aposto que nem sapatos tinha – disse Morel, continuando com a brincadeira.

– Não seja tão insolente com uma rainha – disse Annie.

– Rainhas! – exclamou Morel. – Num pensas noutra coisa senão nas rainhas? Num fazes mai nada senão viver à grande e à francesa!

Miriam levantou-se para ajudar a lavar a loiça.

– Deixa-me ser eu a lavar a loiça – disse ela.

– Não é necessário – exclamou Annie. – Vai-te sentar. É pouca loiça.

E Miriam, que não se sentia à vontade para insistir, sentou-se a ver o livro com Paul.

Paul era o chefe do grupo... para isso, o pai não prestava. E muito ele sofreu para que o baú de latão fosse descarregado em Firsby e não em Mablethorpe. E não foi também capaz de encontrar uma carruagem com lugares. Só a genica de Mrs. Morel o conseguiu.

– Aqui! – gritou ela para um homem. – Aqui!

Paul e Annie ficaram para trás envergonhadíssimos, mas perdidos de riso.

– Quanto é a viagem até Brook Cottage? – perguntou Mrs. Morel.

– Dois xelins.

– É assim tão longe?

– Ainda é um bom bocado.

– Não acredito – disse ela.

Contudo subiu para a carruagem. Iam os oito apertados numa velha carruagem da linha costeira.

– Bem vêem – disse Mrs. Morel –, são apenas três dinheiros por pessoa, mas se fosse um eléctrico...

A viagem prosseguiu. Sempre que passavam por uma casa típica, Mrs. Morel exclamava:

– É esta?... Não, agora é que é!

Estava toda a gente morta de ansiedade. A viagem prosseguiu. Houve um suspiro em uníssono.

– Estou agradecida por não ser aquela coisa horrorosa – disse Mrs. Morel. – Estava assustada.

Passou-se ainda mais algum tempo.

– Aquela mulher repelente disse que a casa ficava a dez minutos do mar...! – exclamou Mrs. Morel.

– Pra ela uma hora deve ser um minuto – reclamou Morel.

Todos o mandaram calar.

– Será que nunca mais chegamos? – exclamou Mrs. Morel, muito alto.

– Não grite assim, mãe – disse Annie. – O que é que ele irá pensar?

Mrs. Morel olhou de um modo esquisito para o condutor, e disse:

– Não sei! Mas, pelo aspecto, penso que não pensará nada de especial.

Finalmente, desceram perto de uma casa isolada, sobre o canal que passava na estrada principal. Houve grande alvoroço quando descobriram que tinham de atravessar uma pequena ponte para chegarem ao jardim da casa. Adoraram a casa, que ficava isolada, com o mar de um lado e, do outro, uma imensa extensão de terra plana que se estendia até ao céu, e onde se distinguia o branco da cevada, o amarelo da aveia, o vermelho do trigo e o verde dos nabos.

Paul registava as despesas e ele e a mãe governavam a casa. As despesas globais, incluindo o alojamento e a alimentação ascendiam a dezasseis xelins por pessoa e por semana. De manhã, Paul e Leonard iam tomar banho ao mar. Morel saía bastante cedo para ir dar um passeio.

– Paul – chamou a mãe do quarto. – Come uma fatia de pão com manteiga.

– Está bem – respondeu ele.

Quando regressou, a mãe estava sentada à cabeceira da mesa. A dona da casa era jovem. O marido era cego e ela cuidava da roupa. Assim, Mrs. Morel lavava a loiça na cozinha e fazia as camas.

– Mas a mãe prometeu que ia fazer umas férias a sério – disse Paul – e agora está a trabalhar.

– Trabalho? – exclamou ela. – De que é que estás a falar?

Paul adorava ir passear com ela pelos campos, até à aldeia ou até ao mar. Ela tinha medo de atravessar pontes de madeira e ele acusava-a de se portar como um bebé. Era apegado à mãe como se fosse o seu marido.

Miriam raramente andava com ele – excepto, talvez, quando iam todos ouvir os Coons. Os Coons eram insuportavelmente estúpidos para Miriam e, por isso, eram-no também para Paul, que pregava sermões presunçosos a Annie sobre a perda de tempo que era irem ouvi-los. Todavia, também ele sabia todas as suas canções de cor e as cantava desbragadamente pelas ruas. E, quando reparava que os estava a ouvir, a estupidez da situação agradava-lhe imenso. Contudo dizia para Annie:

– Que porcaria!... Não há um pingo de inteligência naquilo que cantam. Ninguém que tenha mais miolos que um gafanhoto consegue aguentá-los. – E dizia a Miriam, com algum desdém, onde estavam Annie e os outros:

– Suponho que foram aos Coons.

Era ridículo ouvir Miriam trautear as canções dos Coons. Tinha um queixo talhado a direito que descia na perpendicular desde o lábio inferior até à curvatura do maxilar. Quando ela cantava, Paul achava-a parecida com um anjo triste de Botticelli, mesmo quando entoava:


«Vem pela Estrada do Amor

Vem comigo passear, falar comigo...»


Miriam só tinha Paul todo para ela quando ele desenhava, ou à noite, quando todos os outros estavam a ouvir os Coons. Ele falava-lhe então interminavelmente do seu gosto pelos planos horizontais: como é que os grandes níveis do céu e da terra significavam para ele a eternidade da vontade, tal como os arcos normandos, arredondados e em série, significavam um salto em frente da alma humana voluntariosa, não se sabe para onde; pelo contrário, as linhas perpendiculares e o arco gótico apontavam para o céu e afloravam o êxtase, perdendo-se no divino. Ele era normando, Miriam era gótica. Submissa, ela concordava com tudo o que ele dizia.

Certa tarde, ele e ela foram passear pelo extenso areal que conduzia a Theddlethorpe. As alongadas vagas quebravam-se e elevavam-se em silvos agudos de espuma ao longo da costa. A tarde estava quente e eles completamente sozinhos na imensidão da areia, a sós com o barulho do mar. Paul adorava ouvir o mar a ressoar na areia. Adorava sentir-se entre o som do mar e o silêncio do areal. Miriam estava com ele. Tudo se tornava mais intenso. Já tinha anoitecido quando regressaram. O regresso a casa fazia-se através de uma passagem nas dunas, e depois através de uma estrada pejada de ervas, rasgada entre dois diques. A aldeia estava cinzenta e calma. Por detrás das dunas soava o murmúrio do mar. Paul e Miriam caminhavam em silêncio. De repente, ele estacou. O seu sangue parecia ter-se incendiado e ele mal podia respirar. Uma enorme lua alaranjada observava-os do alto das dunas. Ele continuava parado, olhando a lua.

– Oh! – exclamou Miriam, quando a viu também.

Ele estava ali, petrificado, olhando a lua dilatada e rubra, sozinha na escuridão imensa. O seu coração batia forte e tinha os músculos dos braços contraídos.

– O que foi? – murmurou ela, esperando por ele.

Ele voltou-se e fitou-a. Ela estava ao seu lado, para sempre na escuridão. A sua face, encoberta pela sombra do chapéu, olhava-o sem que ele a visse. E ela meditava. Estava um pouco receosa... profundamente emocionada e imbuída de religiosidade. Este era o seu melhor estado de alma. Ele sentia-se impotente face a esta situação. O sangue parecia concentrar-se como uma fogueira no seu peito, mas ele não lhe conseguia transmitir o sentimento. Pareciam disparar relâmpagos do seu sangue, mas, de algum modo, ela ignorava-os. Ela esperava vê-lo atingir um estado de graça. Ainda à espera, mas meio consciente da paixão que o possuía, Miriam fitou-o, preocupada.

– O que se passa? – murmurou novamente.

– É a Lua – respondeu ele, franzindo a testa.

– Sim – concordou ela. – É maravilhosa, não é? – Ela estava intrigada. A crise tinha passado.

Ele próprio não sabia o que lhe tinha acontecido. Era ainda tão jovem e a sua intimidade tão abstracta que não se apercebeu de que desejava esmagá-la contra o peito para aliviar a dor que o trespassava. Tinha medo dela. Talvez o facto de a desejar como um homem deseja uma mulher tivesse permanecido oculto dentro dele como uma humilhação. Quando ela fugia desses pensamentos, torturando-se em extrema agitação, ele recolhia-se até ao mais recôndito da alma. E, neste momento, esta «pureza» inibia o seu primeiro beijo de amor. Era como se ela mal pudesse suportar o choque do amor físico, ou apenas um beijo apaixonado, deixando-o demasiado reprimido e sensibilizado para lho dar.

Enquanto caminhavam ao longo da negra lagoa, Paul contemplava a Lua e mantinha-se em silêncio. Miriam caminhava a seu lado devagar. Ele sentia que a odiava, pois ela parecia, de certa forma, levá-lo a autodesprezar-se. Olhando em frente, descortinou uma luz na escuridão; era a janela iluminada da sua casa.

Adorava pensar na mãe e no resto das pessoas, todos alegres.

– Bem, já todos chegaram há bastante tempo – disse a mãe quando eles entraram.

– E o que é que isso importa? – exclamou ele, irritado. Posso ir passear quando me apetecer, não posso?

– Pensei que quisesses jantar com o resto do grupo – disse Mrs. Morel.

– Tenho de agradar a mim próprio – retorquiu ele. – Não é tarde e faço o que me apetece.

– Muito bem – disse a sua mãe, sarcasticamente. – Então faz o que te apetecer!

E nessa noite não falou mais com ele. Paul fingiu não notar nem estar preocupado com o assunto, e sentou-se a ler. Miriam lia também, tentando alienar-se. Mrs. Morel detestava-a por ela pôr o filho naquele estado. Via o filho irritadiço, presumido e melancólico, e culpava Miriam.

Annie e os amigos também se voltavam contra Miriam. O único amigo de Miriam era Paul. Mas ela não se importava, pois desprezava a trivialidade de todas essas pessoas.

E Paul detestava-a, pois ela perturbava, por assim dizer, o seu bem-estar e a sua naturalidade, torturando-o com sentimentos de humilhação.

1 «Os últimos representantes de uma raça extinta.» (N. da T.)


VIII

ZANGAS DE AMOR

ARTHUR terminou o estágio e arranjou emprego na central eléctrica da mina de Minton. Ganhava muito pouco, mas tinha possibilidades de progredir. Era, porém, rebelde e impaciente. Não bebia nem tinha o vício do jogo, mas envolvia-se constantemente em rixas devido às suas reacções intempestivas. Ia caçar coelhos para a floresta, qual caçador furtivo, e passava a noite em Nottingham em vez de voltar para casa, ou então ia nadar para o canal de Bestwood e falhava os cálculos do mergulho, ficando com o peito ferido, das rochas naturais e das latas que andavam a boiar à tona.

Tinha faltado ao emprego meses a fio, e uma noite não voltou para casa.

– Sabe por onde anda o Arthur? – perguntou Paul ao pequeno-almoço.

– Não – respondeu a mãe.

– É mesmo maluco – disse Paul. – Eu já nem ligaria, se ele ao menos fizesse mesmo alguma coisa. Mas não... não consegue resistir a um jogo de cartas, ou então vai levar alguma rapariga a casa depois da patinagem, com todo o decoro... e acaba por não voltar para casa. É maluco.

– Não vejo porque seria melhor se ele fizesse mesmo alguma coisa que nos envergonhasse – disse Mrs. Morel.

– Bem... eu, pelo meu lado, passaria a respeitá-lo mais – disse Paul.

– Duvido muito – respondeu a mãe secamente.

Continuaram a tomar o pequeno-almoço.

– A mãe gosta desvairadamente dele, não gosta? – perguntou Paul.

– Porque fazes essa pergunta?

– Dizem que as mães gostam sempre mais do filho mais novo.

– Talvez... mas eu não. Não... ele irrita-me.

– E gostava que ele se portasse melhor?

– Gostava que ele mostrasse algum bom senso masculino.

Paul estava ferido e irritado. Também ele irritava a mãe frequentemente. E ela ficava triste, pois via os melhores anos a fugirem-lhe.

Estavam a acabar o pequeno-almoço, quando o carteiro lhes entregou uma carta vinda de Derby. Mrs. Morel esforçou-se para ler o endereço.

– Dê cá isso, sua pitosga! – exclamou o filho, tirando-lhe a carta da mão. Ela assustou-se e quase lhe dava uma bofetada.

– É do seu filho Arthur – informou ele.

– Mas o que vem a ser isto? – exclamou Mrs. Morel.

– «Querida mãe» – leu Paul. – «Não sei o que me deu. Quero que me venha buscar. Ontem, em vez de ir trabalhar, vim alistar-me no exército com o Jack Brendon. Ele disse que estava farto de passar a vida sentado num escritório, e eu, idiota, como já sabe que sou, resolvi vir com ele.

«Já recebi o dinheiro referente ao recrutamento, mas se me vier buscar, talvez eles me deixem ir consigo. Foi uma loucura ter feito o que fiz. Não quero ficar no exército. Querida mãe, sei que não passo de um estorvo para si, mas, se me tirar desta situação, prometo que serei mais consciente e ponderado...»

Mrs. Morel sentou-se na cadeira de baloiço.

– Vejam só! – exclamou. – Ele que assente por uns tempos!

– Também acho – disse Paul. – Ele que assente!

Fez-se silêncio. A mãe estava sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, o rosto imóvel, pensativa.

– Devo estar doente – exclamou de repente. – Doente!

– Então! – disse Paul, franzindo a testa – Não quero que se preocupe com isto, está a ouvir?

– Então queres que encare isto como uma bênção? – disse ela, de repente, virando-se para o filho.

– Agora não vai tornar isto numa tragédia, pois não? – retorquiu ele.

– Ele é maluco!... Maluquinho de todo! – gritou Mrs. Morel.

– Vai ficar todo bonito com a farda – disse Paul, para espicaçar a mãe.

Ela virou-se a ele, furiosa.

– Ah, vai? – gritou ela. – Mas não para mim!

– Devia ir para um regimento de cavalaria... Ele divertia-se à grande e nós passávamos a ser chiques.

– Chiques!... Chiques!... Muito chique, não haja dúvida!... Um soldado raso!

– Ora – disse Paul. – E o que sou eu, senão um reles escriturário?

– O que é muito mais, meu filho! – gritou a mãe, picada.

– Essa agora!

– De qualquer forma, és um homem e não uma coisa enfiada num casaco vermelho.

– Não me importava de andar enfiado num casaco vermelho... ou azul-escuro, que me ficaria melhor... se eles não me dessem muitas ordens.

Mas a mãe já não o ouvia.

– Agora que ele estava a progredir, ou poderia vir a progredir no emprego... um aborrecimento passageiro e aí vai ele... dar cabo da vida toda. Que vantagens é que tu pensas que isto lhe pode trazer?

– Vai pô-lo todo afinado! – disse Paul.

– Todo afinado!... E o que tem ele para afinar? Um soldado!... Um soldado raso!!... Nada mais do que um corpo que se mexe quando lhe dão ordens! Grande coisa!

– Não percebo porque é que isso a aborrece tanto – disse Paul.

– Não, talvez não percebas. Mas percebo eu. – E recostou-se na cadeira, de queixo apoiado numa das mãos e segurando o cotovelo com a outra, a transbordar de raiva e desilusão.

– Está a pensar ir a Derby? – perguntou Paul.

– Estou, pois.

– Não faça isso.

– Quero ver com os meus próprios olhos.

– Mas por que diabo é que não o deixa assentar? É isso mesmo que ele quer.

– Claro – exclamou a mãe. – Tu sabes muito bem o que ele quer...

Preparou-se e apanhou o primeiro comboio para Derby, onde se encontrou com o filho e com o sargento. Todavia, os seus esforços foram infrutíferos.

Morel estava a almoçar, quando ela disse de repente:

– Tenho de ir hoje a Derby.

O mineiro levantou os olhos, muito brancos numa face toda enfarruscada.

– Ah, vais, cachopa? E o que te leva lá?

– O menino Arthur!

– Qu’aprontou ele desta vez?

– Alistou-se no exército, só isso.

Morel pousou a faca e recostou-se na cadeira.

– Não – disse ele. – Num pode ser!

– E amanhã vai para Aldershot.

– Bom – exclamou o mineiro –, iss’é qu’é já uma grand’alhada.

Morel reflectiu por um momento, disse «Hum!» e continuou a jantar. Subitamente, a face contraiu-se-lhe de raiva.

– Espero qu’ele nunca mais volte a pôr as patas nesta casa – disse ele.

– Credo! – exclamou Mrs. Morel. – Isso é lá coisa que se diga!

– É o qu’eu penso – repetiu Morel. – O doidivanas pisga-se pa ser soldado... Atão é porque já tá na hora de fazer pela vida... Comigo na conta mais.

– Falar é fácil... – disse Mrs. Morel.

Nessa noite, Morel quase sentiu vergonha de ir para a taberna.

– Então, sempre lá foi? – perguntou Paul à mãe quando chegou a casa.

– Fui.

– E viu-o?

– Vi.

– E o que disse ele?

– Ficou lavado em lágrimas quando me vim embora.

– Hum!

– E eu fiz o mesmo, portanto não precisas de fazer «Hum!».

Mrs. Morel preocupava-se com o filho, pois sabia que ele não ia gostar de estar no exército. Como de facto não gostou. A disciplina era uma coisa que ele não conseguia tolerar.

– Mas o doutor disse que ele era bem proporcionado... quase na proporção exacta, e as suas medidas eram perfeitas – disse Mrs. Morel a Paul, cheia de orgulho. – Como tu sabes, ele é bem-parecido.

– Ele é muito bem-parecido. Mas não arranja raparigas como o William, pois não?

– Não... Tem uma personalidade diferente. Sai muito ao pai: é um irresponsável.

Para consolar a mãe, Paul passou nessa altura a ir muito menos a Willey Farm. No Outono, quando se realizou no castelo a habitual exposição dos trabalhos dos alunos da escola de belas-artes, ele apresentou dois trabalhos: uma paisagem a aguarela e uma natureza morta a óleo, que obtiveram dois primeiros prémios, o que o deixou deveras emocionado.

– Mãe, que lhe parece, acha que ganhei algum prémio com as minhas pinturas? – perguntou uma noite, ao chegar a casa. Pelos seus olhos, a mãe viu que ele estava feliz, e a sua face resplandeceu.

– Como queres que eu saiba, meu filho?!

– Um primeiro prémio por aquelas jarras de vidro...

– Ena!

– E outro primeiro prémio por aquele esboço que fiz em Willey Farm.

– Um primeiro prémio para cada coisa?

– Sim, senhora.

– Hum!

Mrs. Morel parecia envolvida numa aura brilhante, cor-de-rosa, mas não disse nada.

– É bem bom, não é, mãe? – disse ele.

– É, sim.

– Oh, mãe, porque não me põe nos píncaros?

Ela riu-se.

– É que depois tinha de ter o trabalho de te puxar cá para baixo outra vez.

No entanto, toda ela vibrava de alegria. William tinha-lhe trazido sempre os seus troféus desportivos. Ela ainda os guardava, e não perdoava a morte dele. Arthur era bonito e era pelo menos um belo exemplar masculino, terno e generoso, e provavelmente o futuro acabaria por lhe sorrir. Mas Paul iria destacar-se. Ela tinha uma grande fé no filho, e mais ainda por ele não ter consciência das suas capacidades. Ele tinha tanto para dar, e a vida parecia ter muito para lhe dar também. Ela iria sentir-se realizada através do filho. A sua luta não tinha sido em vão.

Durante o período da exposição, Mrs. Morel foi várias vezes ao castelo, sem que Paul a visse. Vagueava pelo longo salão, apreciando as restantes pinturas. Sim, eram muito boas. Mas faltava-lhes qualquer coisa para que a sua satisfação fosse completa. Observava-as longamente, tentando encontrar nelas alguma falha. De repente, algo lhe fazia disparar o coração. Aquela era a pintura de Paul. Conhecia-a como se a tivesse gravada no coração.

«Nome: Paul Morel. Primeiro Prémio.»

Parecia tão estranha, ali exposta ao público, nas paredes da galeria do castelo, onde já tinha visitado tantas exposições de pintura durante toda a sua vida. E, depois, olhou em volta, tentando descobrir se alguém a tinha tornado a ver em frente ao mesmo quadro.

Não cabia em si de orgulho, e quando se cruzava com senhoras bem vestidas, pensava para consigo:

«Pois sim, vocês estão muito bem vestidas... mas duvido que os vossos filhos consigam arrebatar dois primeiros prémios na exposição no castelo.»

E seguia o seu caminho, sentindo-se mais orgulhosa do que qualquer outra mãe de Nottingham. E Paul sentia que tinha feito algo por ela, mesmo não passando de uma insignificância. Todo o seu trabalho pertencia à sua mãe.

Um dia, encontrou Miriam quando se dirigia para o castelo. Tinha-a visto no domingo e não esperava encontrá-la na cidade. Vinha com ela uma mulher loura, espampanante, de expressão carregada e porte provocador. Era estranho como Miriam, tão meditativa e reverente, parecia insignificante ao lado desta mulher de ombros deslumbrantes. Miriam fitou Paul demoradamente. O olhar dele estava pregado na desconhecida, que o ignorava. Miriam via claramente o seu instinto masculino a erguer-se altaneiro.

– Olá – disse ele. – Não me disseste que vinhas à cidade.

– Pois não – retorquiu Miriam, em ar de desculpa. Fui à Feira do Gado com o meu pai.

Paul olhou para a companheira de Miriam.

– Já te tinha falado de Mrs. Dawes – disse Miriam, com a voz estrangulada. Estava nervosa. – Clara, já conheces o Paul?

– Penso que já o vi antes – respondeu Mrs. Dawes, indiferente, enquanto o cumprimentava. Tinha uns olhos cinzento-esverdeados, displicentes, a pele era mel claro, e a boca carnuda, com o lábio superior levemente levantado, não se percebendo se de desprezo por todos os homens ou desejo de ser beijada, sendo a primeira hipótese a mais provável. Tinha a cabeça inclinada para trás, como se ela se afastasse por desdém, talvez também dos homens. Usava um chapéu enorme e deselegante, de pele escura de castor, e um vestido simples levemente afectado, que lhe conferia as linhas de um saco. Obviamente era pobre e tinha falta de gosto. Miriam andava sempre bonita.

– Onde é que me viste? – perguntou Paul à outra mulher.

Ela olhou-o como se não tivesse qualquer dúvida em responder.

E depois:

– Vi-te a passear com a Louie Travers – respondeu ela.

Louie era uma das raparigas da secção Espiral da fábrica de Mr. Jordan.

– E como é que tu a conheces? – perguntou ele.

Ela não respondeu. Paul virou-se então para Miriam.

– Para onde vais agora? – perguntou.

– Para o castelo.

– A que horas é o comboio de regresso?

– Vou regressar com o meu pai. Gostava que também viesses connosco. A que horas estás livre?

– Já sabes que nunca antes das oito, que diabo!

E as duas mulheres seguiram o seu caminho.

Paul lembrou-se de que Clara Dawes era filha de um velho amigo de Mrs. Leivers. Miriam tinha-a procurado, pois ela tinha sido em tempos supervisora da secção Espiral da Jordan, e porque o marido, um tal Baxter Dawes que era ferreiro, trabalhava para a fábrica, fazendo entre outras coisas os ferros para as próteses ortopédicas. Miriam pensou que através dela pudesse contactar directamente com a fábrica, podendo assim assegurar o emprego de Paul. Mas Mrs. Dawes estava separada do marido, e agora dedicava-se à defesa dos direitos das mulheres. Era supostamente inteligente, e isso interessava a Paul.

Paul conhecia Baxter Dawes e detestava-o. O ferreiro tinha cerca de trinta e um ou trinta e dois anos. Paul encontrava-o de vez em quando: era um homem alto e bem constituído, bem-parecido, para quem dava gosto olhar. Havia uma curiosa semelhança entre ele e a mulher. Ele tinha a mesma pele clara, de tom de dourado. O seu cabelo era castanho-claro e o bigode dourado. E exalava um desprezo semelhante, pelo porte e pela conduta. Nisto surgiu a diferença. Os seus olhos castanhos, muito escuros e astuciosos, eram imorais. Eram levemente salientes e as pálpebras sobrepunham-se de uma forma tal que lhe suscitava o ódio. A boca era também sensual. A postura evidenciava um desprezo cobarde, como se estivesse preparado para derrubar o primeiro que o censurasse... talvez porque ele próprio se censurava.

O homem odiou Paul desde o primeiro dia que o viu. Ao captar o olhar deliberado e impessoal de um artista no rosto do rapaz, enfureceu-se.

– Pa’onde é que tás’olhar? – disse ele desdenhosamente, amedrontando-o.

O rapaz desviou o olhar. O ferreiro costumava encostar-se ao balcão a conversar com Mr. Pappleworth, e a sua conversa era sempre porca e depravada. Quando sentiu novamente os olhos frios e críticos do jovem pousados nele, o ferreiro virou-se, como se tivesse sido mordido por algum bicho.

– Pa’onde é que tás’olhar, ó parvalhão? – rosnou ele.

O rapaz encolheu os ombros.

– Olha que tu...! – berrou Dawes.

– Deixa-o em paz – disse Mr. Pappleworth, naquela sua voz insinuante que parecia dizer «ele é um pobre diabo, mas não faz por mal».

Desde essa altura, Paul passou a olhar para o homem, sempre que o encontrava, com o mesmo olhar crítico e curioso, desviando o olhar antes de encontrar os olhos do ferreiro, o que deixava Dawes fora de si. E, assim, odiavam-se em silêncio.

Clara Dawes não tinha filhos. Quando deixou o marido, desfizeram a casa e ela foi viver com a mãe, enquanto Dawes passou a viver em casa da irmã. Na mesma casa vivia também uma cunhada, e Paul veio a descobrir que a tal rapariga, a Louie Travers, era agora a amante de Dawes. Era uma atrevida bonitona e insolente, que escarnecia do rapaz, mas que se empolgava toda se ele a acompanhava à estação.

A vez seguinte em que Paul foi visitar Miriam era um sábado à tarde. Ela tinha a lareira acesa na sala de visitas e estava à espera dele. Os outros tinham saído, com excepção dos pais e dos irmãos mais novos, pelo que tinham a sala de visitas só para eles. A sala era comprida, de tectos baixos e aconchegada. Na parede havia três pequenos quadros de Paul e o seu retrato estava pousado ao canto da lareira. Em cima da mesa e em cima do piano de pau-rosa, estavam jarras com folhas coloridas. Ele sentou-se na poltrona e ela ajoelhou-se no tapete aos seus pés. A luz da fogueira reflectia-se na sua cara bonita e pensativa.

– O que achaste de Mrs. Dawes? – perguntou Miriam, num tom calmo.

– Não me pareceu muito amistosa – respondeu ele.

– Lá isso não, mas não a achas elegante?

– Sim... no que diz respeito à sua altura. Mas não tem um pingo de bom gosto. Gosto de algumas coisas nela. Ela é sempre assim antipática?

– Penso que não. Penso que não anda satisfeita.

– Com o quê?

– Bem, como é que te sentirias a viver com um homem daqueles?

– Então, porque é que ela casou com ele, sabendo que o ia detestar tão rapidamente?

– Sim, porque é que ela casou com ele? – repetiu Miriam, com aspereza.

– E eu que pensei que ela fosse suficientemente forte para medir forças com ele – disse Paul.

Miriam baixou a cabeça.

– Ah, sim? – perguntou, satiricamente. E o que é que te leva a pensar isso?

– Basta olhar para a boca dela... nascida para a paixão... e a maneira como estica a garganta.

E atirou a cabeça para trás imitando o jeito provocador de Clara.

Miriam baixou ainda mais a cabeça.

– Sim – disse ela.

Fez-se silêncio durante alguns momentos, e Paul pensava em Clara.

– E o que é que te agradou nela? – continuou Miriam.

– Não sei... a pele e a textura da... da... não sei... emana dela uma certa violência... Aprecio-a apenas como artista.

– Pois.

Paul não entendia por que razão Miriam estava ali sentada no chão, meditando de uma forma tão estranha, e isso irritava-o.

– Não gostas mesmo dela, pois não? – perguntou ele à rapariga.

Ela olhou-o com os seus enormes olhos escuros, encantadores.

– Gosto – respondeu.

– Não gostas, não... não podes gostar... muito.

– E pode saber-se porquê? – perguntou ela calmamente.

– Oh, não sei... Talvez gostes dela porque ela odeia os homens.

Esta era provavelmente uma das razões pelas quais ele gostava de Mrs. Dawes, mas isso não lhe tinha ocorrido. Calaram-se. Ele franziu a testa, algo que já se estava a tornar habitual, particularmente quando estava com Miriam. Ela ansiava fazer-lhe desaparecer as rugas da testa, mas tinha medo. Parecia haver um outro homem dentro de Paul Morel, mas que não era o seu.

Algumas bagas vermelhas sobressaíam entre as folhas do vaso. Ele esticou-se e arrancou um raminho.

– Porque será que, se colocares bagas vermelhas no cabelo – disse ele – pareces uma bruxa ou uma sacerdotisa, mas nunca uma libertina.

Ela rasgou um sorriso doloroso, despojado.

– Não sei – disse.

As suas mãos fortes e quentes brincavam alegremente com as bagas.

– Porque não te ris? – disse ele. – Nunca sorris abertamente. Apenas te ris quando algo é estranho ou incongruente, e até isso parece magoar-te.

Miriam baixou a cabeça como se ele a estivesse a admoestar.

– Gostaria muito que sorrisses apenas um minuto para mim... apenas por um minuto. Sinto que isso libertaria alguma coisa dentro de ti.

– Mas... – e olhou-o com uns olhos assustados e lutadores. – ... Mas eu rio-me... sim, eu rio-me.

– Mentira, nunca te ris. Só se for por algo de muito intenso. Sempre que te ris, apetece-me chorar; parece que o teu riso transmite sofrimento. Oh, só de pensar nisso, fazes com que eu enrugue a minha alma.

– Não é minha intenção fazê-lo – disse.

– Eu sou sempre tão espiritual contigo – exclamou ele.

Ela manteve-se em silêncio, a pensar: «Então porque não és de outra forma?» E ele olhou para o seu corpo dobrado, em meditação, e pareceu dividi-lo em dois.

– Estamos no Outono – disse ele – e todas as pessoas libertam o seu espírito.

Caiu novamente o silêncio. Este estranho desentendimento entre eles despedaçava a alma de Miriam. Ele parecia tão bonito, com os seus olhos escuros e um olhar tão profundo como a nascente mais funda.

– Tornas-me tão espiritual – lamentou-se ele. – E eu não quero ser espiritual.

Ela retirou o dedo da boca com um pequeno estalido, e olhou-o em tom provocador. Mas a sua alma continuava nua nos seus olhos grandes e castanhos e o mesmo desejo ardente dominava-a. Se isso fosse possível, ele tê-la-ia beijado na pureza da abstracção. Mas ele não a podia beijar assim... e ela não parecia dar-lhe qualquer outra alternativa. E, no entanto, desejava-o.

Paul sorriu.

– Bem – disse ele –, vamos lá estudar francês... vamos ler Verlaine.

– Sim – disse ela num tom profundo, quase de resignação. Levantou-se e foi buscar os livros. As suas mãos avermelhadas e nervosas metiam dó; como ele desejava confortá-la e beijá-la!! Mas não se atrevia... ou não podia. Algo o impedia. Os seus beijos eram para ela reprováveis. Continuaram a ler até às dez horas, e depois foram para a cozinha; Paul mostrava-se de novo alegre e natural para com os pais de Miriam. Os seus olhos eram escuros e brilhantes e envolvia-o uma aura de fascinação.

Quando foi buscar a bicicleta ao celeiro descobriu que o pneu dianteiro estava furado.

– Vai-me buscar uma tigela com uma pinguinha de água – pediu ele a Miriam. – Vou chegar tarde e já sei que vou ouvir um sermão.

Acendeu a lanterna à prova do vento, despiu o casaco, virou a bicicleta ao contrário e meteu mãos à obra rapidamente. Miriam trouxe-lhe a tigela com água e ficou junto dele, observando-o. Adorava ver as mãos dele em acção. Era elegante e forte, e até os seus movimentos mais rápidos eram feitos com desembaraço. Ocupado como estava, parecia tê-la esquecido. Mas ela amava-o de uma forma absorvente, desejava poder passar as mãos ao longo do seu corpo. Sempre desejara abraçá-lo, desde que ele não a quisesse.

– Já está – disse Paul, levantando-se de repente. – Mais rápido não podia ser!

– Lá isso é verdade! – concordou ela, sorrindo.

Paul endireitou-se. Estava de costas para Miriam. Ela colocou as mãos nas ancas dele, fazendo-as deslizar rapidamente ao longo das pernas.

– És tão elegante! – disse ela.

Ele sorriu. Detestava o tom da voz dela, mas o sangue incendiou-se-lhe ao sentir o contacto das mãos. Ela, pelo contrário, parecia nem dar por ele. Era como se ele fosse um objecto, como se não se apercebesse do homem que ali estava.

Paul acendeu a luz da bicicleta, experimentou-a, bateu com ela no chão do celeiro para verificar o som dos pneus, e apertou o casaco.

– Tudo em ordem! – disse ele.

Ela experimentou os travões, pois sabia que estavam avariados.

– Já os arranjaste? – perguntou ela.

– Não!

– E porque não?

– O travão traseiro funciona mais ou menos.

– Mas não é seguro.

– Posso travar com o pé.

– Era melhor que os tivesses arranjado – murmurou ela.

– Não te preocupes... Amanhã vem tomar chá a minha casa e traz o Edgar.

– A sério?

– A sério... Por volta das quatro... Vou ter convosco.

– Combinado!

Ela estava feliz. Atravessaram o pátio às escuras até ao portão. Olhando em frente, Paul viu as cabeças de Mr. e Mrs. Leivers atrás da vidraça sem cortinas da cozinha, iluminadas pelo fulgor da lareira. O ambiente parecia muito aconchegado. À sua frente, a estrada ladeada de pinheiros abria-se escura.

– Até amanhã – disse ele, montando na bicicleta.

– Vais ter cuidado, não vais? – recomendou ela, como quem pede.

– Vou.

A voz dele soou já da escuridão. Ela deixou-se ficar mais uns instantes a ver a lanterna afastar-se e entrar na noite. Depois, voltou lentamente para casa. Orion elevava-se por cima da floresta, seguida do seu cão cintilante, meio apagado. Fora essa luz, o mundo estava mergulhado na mais densa escuridão e no silêncio, quebrado apenas pelo resfolegar do gado nos estábulos. E ela rezou com devoção pela segurança dele nessa noite. Quando ele a deixava, ficava sempre num estado de extrema ansiedade, imaginando se ele teria chegado bem a casa.

Paul deixava a bicicleta embalar pelas encostas abaixo. As estradas eram escorregadias e ele não podia meter travões. Era um prazer quando a bicicleta se precipitava pelo declive mais íngreme da colina. «Cá vou eu!», dizia ele. Era arriscado por causa da curva completamente às cegas à chegada ao vale, e das carroças dos cervejeiros com os carroceiros bêbados, a dormir. A bicicleta parecia desintegrar-se debaixo dele e Paul adorava a sensação. O descuido é a vingança de um homem sobre a mulher. Sentindo que não é devidamente apreciado, arrisca a sua própria destruição, para que ela sinta a sua falta.

Ao passar veloz pelo lago, as estrelas reflectidas na água pareciam saltar da escuridão como gafanhotos prateados. Depois surgia a longa subida até casa.

– Olha, mãe! – disse ele, atirando as bagas e as folhas para cima da mesa.

– Hum! – fez ela, olhando para a mesa e desviando o olhar. Como sempre, estava sozinha, sentada a ler.

– Não são bonitas?

– São.

Ele sabia que a mãe estava aborrecida. Passados alguns minutos disse:

– O Edgar e a Miriam vêm cá tomar chá amanhã.

A mãe não respondeu.

– Não se importa?

Ela continuou sem responder.

– Então importa-se? – perguntou ele.

– Sabes bem se me importo ou não.

– Não vejo porque se há-de importar... eu como lá tantas vezes...

– Pois comes.

– Então porque lhes recusa um chá?

– A quem é que eu recuso um chá?

– Porque é que a mãe é sempre tão difícil?

– Pronto, não digas mais nada! Convidaste-a para o chá, e isso já é o suficiente. Ela não falta.

Paul ficou muito aborrecido com a mãe. Sabia que ela não gostava de Miriam. Atirou com as botas e foi deitar-se.

Paul foi abrir a porta aos amigos no dia seguinte. Estava feliz de os ver chegar. Vieram por volta das quatro horas. Tudo estava sereno e calmo para domingo à tarde. Mrs. Morel estava sentada, com o seu vestido preto e o avental branco, mas levantou-se para receber as visitas. Foi cordial com Edgar, mas fria e muito esquiva com Miriam. Todavia, Paul achava que a rapariga estava bem bonita no seu vestido castanho de caxemira.

Ajudou a mãe a preparar o chá. Miriam ter-se-ia oferecido de agrado para ajudar, mas tinha receio. Paul tinha muito orgulho da sua casa. Havia nela uma certa distinção, pensava ele. As cadeiras eram simples, de madeira, e o sofá já velho. Mas o tapete e as almofadas eram aconchegantes; os quadros eram gravuras de bom gosto; a simplicidade dominava e havia muitos livros. Nem ele nem Miriam se envergonhavam das casas que tinham, pois eram tudo aquilo que deviam ser, e ainda acolhedoras. Então na mesa tinha grande orgulho; o serviço de chá era bonito e a toalha fina; pouco importava que as colheres não fossem de prata e nem o cabo das facas de marfim; tudo estava bonito. Mrs. Morel tinha cuidado maravilhosamente de tudo enquanto os filhos cresceram. Assim, nada se encontrava fora do lugar.

Miriam falou um pouco de livros, pois era um assunto que dominava bem. Mas Mrs. Morel não se mostrou interessada, virando-se rapidamente para Edgar.

A princípio, quando Edgar e Miriam iam à igreja, sentavam-se no banco de Mrs. Morel. Morel nunca lá ia, pois preferia a taberna. Mrs. Morel, arvorando-se em chefe da família, sentava-se numa extremidade do banco e Paul na outra extremidade; a princípio, Miriam sentava-se ao lado dele. A capela lembrava a Paul a sua casa. Era um lugar bonito, com bancos escuros e pilares estreitos e elegantes, e com muitas, muitas flores. As mesmas pessoas sentavam-se sempre nos mesmos lugares desde que ele era menino. Era bastante agradável e reconfortante estar ali sentado durante uma hora e meia, ao lado de Miriam e perto da mãe, unindo os seus dois amores sob o fascínio daquele local de culto. Sentia-se a um tempo entusiasmado, feliz e religioso. Terminada a missa, acompanhava Miriam a casa, enquanto Mrs. Morel passava o resto da tarde com a sua velha amiga Mrs. Burns. Sentia-se verdadeiramente vivo durante os passeios que dava ao domingo pela tardinha com Edgar e Miriam. Sempre que passava de noite pelas minas, pelo depósito das lanternas, todo iluminado, pelas torres altas e negras e pelas filas de vagões parados em frente das ventoinhas que giravam lentamente na escuridão, tinha a sensação intensa e quase insuportável de que Miriam voltaria para si.

Mas Miriam não ocupou por muito tempo o banco da família Morel, pois o pai arranjou novamente um outro banco. Ficava mesmo por baixo da pequena galeria, em frente ao banco dos Morels. Quando Paul e a mãe chegavam à capela, o banco dos Leivers estava sempre vazio. Ele receava que não viessem: a capela ficava muito longe e eram muitos os domingos chuvosos. Mas a dado momento, quase sempre atrasada, Miriam chegava com o seu passo amplo, cabeça baixa e face oculta pelo chapéu de veludo verde-escuro. Visto sentar-se do lado oposto, a sua cara ficava sempre na sombra, o que até o fazia sentir-se bem, pois ao vê-la ali à sua frente era como se a alma se lhe agitasse dentro do corpo. Não era o mesmo calor, a mesma alegria e o mesmo orgulho que sentia ao ter a mãe a seu lado, como chefe: era algo mais maravilhoso ainda, menos humano, um sentimento intenso temperado pela dor, algo que ele sabia que não podia alcançar.

Foi nesta altura que começou a pôr em questão a doutrina ortodoxa. Ele tinha vinte e um anos e ela vinte. Miriam receava a chegada da Primavera: ele tornava-se agressivo e magoava-a muito. Tudo o que mais queria era destruir cruelmente as crenças dela. Edgar, crítico por natureza e sem sentimentos, gostava desta situação. Mas Miriam sofria amargamente, pois o homem que amava possuía uma inteligência cortante que dissecava a religião em que ela fora criada e se movimentava, e onde habitava o seu Eu. Mas ele não a poupava e mostrava-se muito cruel. Quando estavam sozinhos, tornava-se ainda mais violento, como se quisesse matar-lhe a alma, explorando as suas crenças até ela quase perder a consciência.

– Ela regozija-se... regozija-se quando afasta o meu filho de mim – gritava Mrs. Morel do fundo do coração, quando Paul saía de casa. – Ela não é como qualquer mulher comum, que permite que eu faça parte do meu filho. Ela quer absorvê-lo. Quer tirar-mo e absorvê-lo, até que nada reste dele, nem sequer para ele próprio. Assim, ele nunca será senhor de si... ela irá sugá-lo completamente. – E Mrs. Morel sentava-se, debatendo pressentimentos e meditando tristemente.

Quando regressava dos seus passeios com Miriam, Paul vinha trespassado de sofrimento. Caminhava com passo apressado, mordendo os lábios e cerrando os punhos. Quando chegava a uma cerca, parava por alguns minutos, imobilizado. À sua frente estendia-se a escuridão sem fim; as negras encostas salpicavam-se de florescências luminosas; e, nos recônditos da noite, brilhava o clarão da mina. Tudo era estranho e ameaçador. Porque estava ele tão dilacerado, quase em êxtase, incapaz de se mover? Porque estava a mãe sentada em casa a sofrer? E sabia que ela sofria bastante. Mas porquê? E porque detestava ele Miriam e era tão cruel para ela, quando pensava na mãe? Já que Miriam fazia a mãe sofrer, ele tinha de a detestar. E com facilidade a detestava. Porque o levava ela a duvidar de si próprio, deixando-o inseguro, indefinido, como se não pudesse evitar que a noite e o espaço caíssem sobre ele? Como ele a odiava! Mas logo um ímpeto de ternura e humilhação o envolvia.

De repente, precipitava-se para casa a correr. A mãe reconhecia nele as marcas da agonia, mas nada dizia. Ele, porém, tinha de obrigá-la a falar, pois via-a zangada por ele ter ido passear com Miriam para tão longe.

– Porque é que não gosta dela, mãe? – gritou ele um dia, desesperado.

– Não sei, meu filho – respondeu ela num tom comovente. – Já tentei gostar, tentei com todas as minhas forças... mas não consigo... não consigo...

E, entre ambas, ele sentia-se triste e sem esperanças. A Primavera era a pior das estações. Ele ficava instável, enérgico e cruel. Assim, decidiu afastar-se dela. Surgiam então as horas a que ele sabia que Miriam o esperava, e a mãe apercebia-se da sua impaciência. Paul não conseguia progredir no seu trabalho, não conseguia fazer nada. Era como se algo transportasse a sua alma até Willey Farm. De repente, punha o chapéu e saía sem dizer nada. E a mãe sabia que ele tinha partido. Assim que se punha a caminho respirava de alívio. Mas, mal chegava ao pé de Miriam, tornava-se novamente cruel.

Certo dia, em Março, estava Paul deitado nas margens do lago Nethermere, com Miriam sentada a seu lado. Estava um dia resplandecente, branco e azul. Nuvens grandes e brilhantes passavam altas, e as suas sombras moviam-se silenciosas sobre a água. Os espaços abertos no céu tinham um tom glacial de azul. Paul estava deitado de costas sobre a relva, olhando o céu. Não conseguia olhar para Miriam. Ela parecia desejá-lo e ele resistia. Resistia sempre. Ela queria dar-lhe a sua paixão, a sua ternura, mas não era capaz. Ele sentia que ela não o queria; que apenas queria a sua alma. Miriam retirava-lhe as forças e a energia através de um canal que os unia. Ela não queria o corpo dele, pois nesse caso seria apenas duas pessoas, homem e mulher, em comunhão. Queria absorvê-lo completamente. E ele sentia-se estimulado por um impulso quase de loucura, que o fascinava, com um fascínio de droga.

Ele falava sobre Miguel Angelo. Ao escutá-lo, ela sentia que tocava o protoplasma da vida, as próprias células palpitantes, e a sua satisfação era plena. Mas, no final, isso assustava-a. Ali estava ele deitado, na intensidade imaculada da procura, e a sua voz amedrontava-a num crescendo, levando-a quase a tocar as raias do inumano, como se num transe.

– Não digas mais nada – pediu Miriam, com ternura, pousando a mão na testa dele. Ele permanecia estático, incapaz de se mover. O seu corpo estava de algum modo abandonado.

– Porquê... estás cansada?

– Estou, e tu também vais ficar.

Ele deu uma pequena gargalhada, apercebendo-se da situação.

– Contudo, sabe-me bem – disse ele.

– Mas não é essa a minha intenção – disse ela, muito baixinho.

– Não quando já foste longe de mais e sentes que já não és capaz de te dominar. Mas o teu eu inconsciente clama por isso. E eu suponho que também quero o mesmo.

– Então como posso evitá-lo?

– Penso que não podes, pois tu fazes sempre o mesmo. Desligas-me algures e retiras-me de mim próprio. Sinto-me como um fantasma, sem corpo.

– Não! – implorou ela.

– Agora mesmo, neste momento, olho para as minhas mãos e pergunto-me o que estão elas ali a fazer. Aquela água, por exemplo, ondula através de mim. Eu sou a ondulação. Corre através de mim e eu através dela. Não há barreiras entre nós.

– Mas...! – E Miriam hesitou.

– O que resta de mim é apenas uma consciência disseminada. Sinto que o meu corpo está deitado aqui, vazio, como se eu estivesse dentro de outras coisas... das nuvens e da água...

Ela olhou para ele e reparou naquele olhar tão estranho, como se ele fosse uma coisa e não uma pessoa, o que a fascinava tanto, mas que tanto receava. E era precisamente esse receio que a impelia a ter muito mais. Mas, agora, queria que ele parasse.

– Sabes – prosseguiu – o meu eu físico está liberto. Mas, se assim for, então eu não estou vivo. Tenho a certeza de que me destruiria. O que tu queres é pores-me gordo e banal, e não uma sombra. Queres fechar bem a minha alma dentro da sua bainha. Mas ela um destes dias libertava-se, tal como a espada que se libertou de uma bainha lassa e caiu ao mar.

Miriam meditava tristemente. Nisto, levantou a cabeça e olhou-o com os olhos muito brilhantes.

– Então deixa-me ser a tua protecção – disse ela.

E estendeu as mãos para as dele.

– Se tu pudesses... – disse ele. – Mas tu és aquilo que o teu eu inconsciente te impõe, e não aquilo que queres ser. Nenhum de nós dois é completamente normal... porém, agora eu quero sê-lo, mas penso que tu não queres. Tu queres ser algo fora do comum.

– Não, não quero – exclamou ela. Mas havia medo na sua voz.

– De qualquer forma – continuou Paul, num tom apático –, isso agora não é possível. Não me podes ter dessa maneira. Neste momento eu e tu somos apenas almas desprovidas de sangue. E isso provocaria uma vibração diferente, que se entrechocaria com este estado actual numa verdadeira tortura... Se ao menos pudesses querer-me, e não apenas quereres aquilo que eu tenho para te papaguear.

– Eu! – exclamou Miriam num tom áspero. – Eu! Quando é que eu te posso ter?

– Então a culpa é minha – disse ele, e juntando as partes dispersas do seu eu, levantou-se e começou a falar de coisas triviais. Sentia-se irreal. De uma forma vaga, detestava-a por isso. Sabia que era ele o culpado e, no entanto, isso não o impedia de a odiar.

Certa noite, na mesma época, em que Paul tinha ido levar Miriam a casa, pararam perto do prado que se estendia até à floresta, incapazes de se separarem. Assim que as estrelas surgiram, as nuvens desapareceram e eles captaram fugazmente a sua Orion, que se dirigia para oeste. As jóias de Orion brilharam por um breve instante, com o seu cão correndo rasteiro, lutando com dificuldade para atravessar a espuma de uma nuvem.

Orion era para eles a constelação mais carregada de significado. Era nela que os seus olhos se haviam fixado nos momentos mais estranhos e intensos, até sentirem que viviam em cada uma das suas estrelas. Nessa noite, Paul mostrava-se taciturno e perverso. Orion parecia-lhe apenas uma constelação, nada mais. Lutava contra o seu brilho, o seu fascínio. Miriam observava atentamente a disposição do seu amado, mas ele nada disse que o comprometesse até ao momento da partida, quando, de testa franzida, ficou parado a olhar tristemente para o castelo de nuvens, por detrás do qual a grande constelação estaria ainda a transitar.

No dia seguinte havia uma pequena festa em casa dele, para a qual Miriam estava convidada.

– Não posso vir buscar-te – disse ele.

– Não faz mal... O tempo também não está dos melhores para andar na rua... – respondeu ela serenamente.

– Não é isso... eles é que não gostam que eu venha. Dizem que me preocupo mais contigo do que com eles. E tu compreendes, não é verdade?... Tu sabes que entre nós existe apenas amizade.

Miriam ficou perplexa e com pena dele. Como lhe devia ter custado dizer aquelas palavras. Deixou-o, para lhe poupar outra humilhação. Uma chuva fina batia-lhe no rosto enquanto caminhava. Estava profundamente magoada e desprezava-o por ele se deixar levar pelo mais leve sopro de autoridade. No fundo do seu coração, sentia inconscientemente que ele tentava afastar-se dela, mas como jamais teria a coragem de o admitir, sentia pena dele.

Por esta altura, Paul tornou-se num elemento imprescindível do armazém da Jordan. Mr. Pappleworth saiu para se estabelecer por conta própria e Paul passou a supervisor da Espiral. Se tudo corresse bem, o seu salário seria aumentado para trinta xelins no final do ano.

Miriam vinha quase todas as sextas-feiras à noite para a lição de francês. Paul já não ia tão amiúde a Willey Farm, e ela receava que a sua aprendizagem estivesse prestes a terminar; por outro lado, e apesar das discórdias, gostavam de estar um com o outro. Liam Balzac, escreviam composições e sentiam-se bastante cultos.

A noite de sexta-feira era a noite de pagamento para os mineiros. Morel «repartia o bolo», ou seja, dividia os lucros da empreitada, quer no New Inn, em Bretty, quer na sua própria casa, conforme os seus companheiros preferissem. Barker tinha deixado de beber, e agora os homens «dividiam o bolo» em casa de Morel.

Annie, que tinha estado a dar aulas longe dali, regressara de novo a casa. Era ainda uma rapariga endiabrada. Estava noiva e ia casar. Paul andava a estudar desenho.

Morel estava sempre bem-disposto às sextas-feiras à noite, a não ser que os ganhos dessa semana fossem escassos. Depois do jantar, entregava-se a longos preparativos para se lavar. A decência exigia que as mulheres se ausentassem durante as reuniões masculinas. As mulheres não deviam assistir à reunião dos sócios, que era considerada assunto estritamente masculino... e nem deviam ficar a saber qual o montante exacto dos ganhos semanais. Assim, enquanto o pai barafustava na cozinha, Annie saiu e foi por uma hora para casa da vizinha, e Mrs. Morel foi à cozinha ver se o pão já estava cozido.

– Fecha a porta! – berrou Morel, furioso.

Annie bateu com a porta e saiu.

– S’ela torna a abrir a porta enquant’eu tou a tomar banho, amando-lh’um murro que lhe parto os queixos – berrou ele, ameaçador, por entre a espuma do sabão. Paul e a mãe franziram as sobrancelhas ao ouvi-lo.

Logo depois, saiu da cozinha, tremendo de frio e pingando o chão todo de água ensaboada.

– Oh, cos diabos! – disse ele. – Onde está a minha toalha?

Estava pousada numa cadeira, frente à lareira, para aquecer, pois, se assim não fosse, ele teria feito um grande estardalhaço. Aninhou-se sobre os calcanhares frente ao lume vivo, para secar.

– Brrrr... – continuou, fingindo tremer de frio.

– Ó homem, não sejas criança! – disse Mrs. Morel. – Não está frio nenhum.

– Exprimenta despires-te e tomares banho naquela cozinha – disse o mineiro, enxugando o cabelo. – Mas que gelo de casa!

– Eu não faria com certeza tanto alarido – respondeu a mulher.

– Ah, poi não. Caías redonda no chão que nem uma pedra.

– Porque é que uma pedra há-de ser mais redonda do que outra coisa qualquer? – perguntou Paul curioso.

– Essa agora... sei lá... é o que se diz – argumentou o pai. – Nesta tua cozinha há muitas correntes de ar, e quando ele passa através das costelas parece vento a passar por uma cancela de cinco traves.

– Sempre teria alguma dificuldade em passar através das tuas costelas – disse Mrs. Morel.

Morel olhou desanimado para ambos os lados do seu corpo.

– Eu! – exclamou. – Eu cá num tenho pele de coelho. Os meus ossos vêem-se no meu corpo!

– Gostaria de saber onde – retorquiu a mulher.

– Por todo o lado! Mas também num sou nenhuma carga de ossos.

Mrs. Morel deu uma gargalhada. Ele tinha um corpo ainda belo, jovem e musculado, sem gorduras. A pele era macia e clara. Poderia bem ser o corpo de um homem com vinte e oito anos, se não fossem as várias cicatrizes azuladas, semelhantes a tatuagens, onde o pó do carvão se tinha alojado, e o seu peito peludo. Morel pôs as mãos nos quadris, desanimado. Acreditava piamente que, por não engordar, era magro como um rato esfomeado.

Paul olhou para as mãos do pai, calejadas, escuras, cobertas de cicatrizes e com as unhas partidas, a esfregarem a maciez do seu corpo, e ficou admirado, pois parecia-lhe estranho serem feitas da mesma carne.

– Suponho – disse, virando-se para o pai – que antigamente tinha uma bela figura.

– Eh, olha lá o que dizes! – exclamou o mineiro, olhando em volta, espantado e tímido, como uma criança.

– Tinha uma bela figura, sim senhor! – exclamou Mrs. Morel. – O pior foi ele andar sempre aos encontrões a tudo, como se quisesse meter-se no buraco mais pequeno que encontrava.

– Eu? – exclamou Morel. – Eu, uma bela figura! Nunca passei de um esqueleto.

– Credo, homem! – gritou a mulher. – Não sejas tão piegas!

– É ve’dade – disse ele. – Tu nunca me viste qu’eu não parecesse qu’emagrecia de dia pra dia.

Mrs. Morel sentou-se e deu uma gargalhada.

– Tens um corpo de ferro – disse ela. – No tocante ao corpo, nunca nenhum homem te levou a melhor. Devias ter visto o teu pai em novo... – exclamou, de repente, virando-se para Paul e empertigando-se, para imitar a postura outrora garbosa do marido. Morel observava-a, envergonhado. Viu novamente a paixão que ela sentia por ele, e que brilhou durante alguns momentos à volta dela. Ele era tímido, assustadiço e humilde. Agora, porém, sentia de novo a velha força de outros tempos. Mas imediatamente sentiu na carne os estragos praticados ao longo de todos estes anos e só queria desaparecer, fugir de tudo.

– Lava-me as costas – pediu ele à mulher.

Ela trouxe uma toalha ensopada e ensaboada e colocou-lha sobre os ombros. Ele deu um salto.

– Oh, desgraçada! – berrou ele. – Tá gelada como a morte!

– Devias ter nascido salamandra – disse ela a rir, lavando-lhe as costas. Só raramente o ajudava nestas tarefas tão pessoais. Geralmente, eram os filhos quem fazia este tipo de coisas.

– O outro mundo não vai ser suficientemente quente para ti – acrescentou ela.

– Poi não – disse ele. – Tu vais fazer com que sopre uma aragem pra m’arrefecer.

Mas ela já tinha terminado. Enxugou-o rapidamente e subiu ao primeiro-andar, regressando em seguida com um par de calças limpas. Assim que se secou, Morel vestiu a camisola. Depois, rosado e luzidio, com o cabelo em pé e a camisola de flanela vestida por cima das calças de mineiro, aqueceu as ceroulas que ia vestir a seguir. Virou-as, pô-las do avesso e ressequiu-as.

– Oh, homem, veste-te! – exclamou Mrs. Morel.

– Queria ver se gostavas de vestir uma roupa tão fria como a água da banheira – disse ele.

Por fim, despiu as calças e vestiu-se condignamente de preto. Fez tudo isto em cima do tapete da lareira, e teria feito o mesmo se Annie e os amigos íntimos estivessem presentes.

Mrs. Morel virou o pão no forno. Depois, retirou uma mão-cheia de massa do alguidar de barro, que se encontrava a um canto da cozinha; trabalhou a massa dando-lhe a forma adequada e meteu-a numa tigela. Enquanto fazia isto, Barker bateu à porta e entrou. Era um homem baixo, compacto e calmo, que parecia capaz de atravessar um muro de pedra. O cabelo era preto e curto e a cara bem-parecida. Tal como a maioria dos mineiros, era pálido, mas saudável e rijo.

– Boa noite, ‘nha senhora – disse o homem, curvando a cabeça e sentando-se, com um suspiro.

– Boa noite – respondeu ela, cordialmente.

– Fizeste ranger os tacões – disse Morel.

– Num dei por nada – disse Barker.

Retraído, sentou-se num dos bancos da cozinha, como os colegas normalmente faziam.

– Como está a sua senhora? – perguntou-lhe Mrs. Morel. Há algum tempo, ele tinha-lhe dito: «Sabe, estamos à espera do terceiro...»

– Bem – respondeu ele, coçando a cabeça –, penso que está tão boa quanto o possível.

– Ora deixa cá ver... para quando é? – perguntou Mrs. Morel.

– Bem... penso que está para chegar a qualquer momento...

– Ah, sim? E tem passado bem?

– Sim... tudo em ordem.

– É um milagre, pois ela não é muito forte.

– É verdade. ... E eu fiz outra asneira.

– O que foi?

Mrs. Morel sabia que Barker não teria feito nada de muito errado.

– Não consegui dar co’a alcofa das compras.

– Pode levar a minha.

– Não... óspois vossemecê pode precisar.

– Não preciso, não. Levo sempre um saco de rede.

Todas as sextas-feiras à noite, Mrs. Morel via o mineiro, baixo e desembaraçado, a comprar os legumes e a carne para toda a semana, e sentia grande admiração por ele.

– O Barker pode ser baixo, mas é dez vezes mais homem do que tu – tinha dito ela ao marido.

Nisto, entrou Nessen. Apesar de pai de sete filhos, era magro, muito frágil, com uma ingenuidade de adolescente e um sorriso levemente matreiro. Mas a mulher dele era uma mulher apaixonada.

– Estou a ver que me batest’òs pontos – disse, sorrindo sem brilho.

– Pois foi – respondeu Barker.

O recém-chegado tirou o boné e o grosso cachecol de lã. Tinha um nariz pontiagudo e vermelho.

– É capaz de ter frio, Mr. Wesson – disse Mrs. Morel.

– Aqui tá um bocado de frio – respondeu.

– Então aproxime-se do lume.

– Não, tou bem aqui.

Os dois mineiros sentaram-se um pouco mais arredados. Não queriam ficar em cima do tapete da lareira, pois esse lugar era sagrado para a família.

– Senta-te no cadeirão – exclamou Morel, alegremente.

– Não, obrigado. Tou muito bem aqui.

– Ora essa, chegue-se para aqui – insistiu Mrs. Morel.

O homem levantou-se e, avançando desajeitadamente, sentou-se no cadeirão de Morel, envergonhado. Era tomar demasiada confiança. Mas estar ao pé do lume deixava-o muito feliz.

– E então como está o seu peito? – perguntou Mrs. Morel.

Ele sorriu novamente, com uns olhos azuis muito brilhantes.

– Ora, vai indo! – disse ele.

– Como um chocalho – atalhou Barker.

– T..t..t..t – fez Mrs. Morel com a língua. – Já mandou fazer a camisa de flanela?

– Ainda não – disse ele sorrindo.

– E porque não? – perguntou ela.

– Lá chegará o dia... – disse ele, sorrindo.

– Ah, o dia de São Nunca, estou a ver – exclamou Barker.

Barker e Morel preocupavam-se com Wesson, pois fisicamente eram ambos fortes que nem touros.

Quando Morel estava quase pronto, entregou o saco do dinheiro a Paul.

– Contó lá, rapaz – pediu com humildade.

Impaciente, Paul abandonou os livros e os lápis e despejou o saco para cima da mesa. Continha cinco libras em moedas de prata, várias moedas de vinte xelins e alguns trocados. Paul contou o dinheiro rapidamente, incluindo os cheques e os papéis com os totais do carvão, e pôs as moedas por ordem. Então Barker deu uma olhadela aos cheques.

Mrs. Morel subiu ao primeiro andar e os três homens sentaram-se à mesa. Morel, como dono da casa, sentou-se no seu cadeirão com as costas viradas para a lareira. Os outros dois sentaram-se em cadeiras frias. Nenhum deles contou o dinheiro.

– Quant’é que dissemos qu’era prò Simpson? – perguntou Morel. E, durante um minuto, discutiram os ganhos diários do companheiro, sendo o valor respectivo posto de lado em seguida.

– E quant’é prò Bill Naylor?

Também este valor foi retirado do saco.

E então, visto que Wesson vivia numa casa da companhia e a renda já tinha sido deduzida, Morel e Barker retiraram quatro xelins e seis dinheiros cada um. E, para compensar o carvão que Morel já tinha trazido, Barker e Wesson receberam mais quatro xelins cada. Depois, a distribuição foi simples: Morel deu a cada um uma moeda de vinte xelins, até não restar nenhuma; mais meia coroa a cada um, até não restarem mais; e ainda uma moeda de um xelim, até acabarem. Se no fim restasse alguma coisa que não pudesse ser dividida, Morel guardava esse dinheiro para pagar uma rodada de cerveja.

Finalmente, os três homens levantaram-se e saíram. Morel tratou de se escapar antes de a mulher descer. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu. Deu uma olhadela rápida ao pão que tinha no forno e, olhando para a mesa, viu o seu dinheiro. Paul tinha estado sempre embrenhado no trabalho. Mas agora apercebia-se de que a mãe, ao contar a semanada, se enfurecia.

– T..t..t – era o barulho que ela fazia com a língua.

Paul franziu a testa. Não conseguia trabalhar quando a via aborrecida. Mrs. Morel contou novamente o dinheiro.

– Uns míseros vinte e cinco xelins! – exclamou ela. – Qual era o valor do cheque?

– Dez libras e onze xelins – disse Paul, irritado. Ele receava o que estava para vir.

– E esta semana ele dá-me uma porcaria de vinte e cinco xelins, e ainda tenho de tirar o dinheiro para o clube. Eu bem o conheço... Pensa que por tu ganhares, já não precisa de sustentar a casa. Ele que coma o dinheiro, se quiser. Mas eu digo-lhe como é...

– Oh, mãe, não... – exclamou Paul.

– Não, o quê, posso saber? – disse ela.

– Não reaja assim... senão não consigo trabalhar.

Ela continuou, mas já um pouco mais calma.

– Pronto, está certo – disse ela. – Mas como é que pensas que me vou governar?

– Eu sei, mas não adianta nada piorar a situação.

– Gostava de saber o que é que farias se tivesses de aturar isto?

– Já não será por muito tempo... Vai ter o meu dinheiro não tarda, e ele que vá para o diabo.

Retomou o trabalho, e ela apertou as fitas do chapéu com desalento.

O filho não suportava vê-la assim, quando ela estava zangada. Todavia, começava agora a tentar dar-lhe isso a perceber.

– Os dois pães do tabuleiro de cima estão prontos dentro de vinte minutos – disse Mrs. Morel. – Não te esqueças.

– Está bem – respondeu ele, e Mrs. Morel saiu para o mercado.

Paul ficou sozinho a trabalhar. Mas a sua habitual concentração estava perturbada. Ouviu bater a cancela do pátio. Cerca das sete e um quarto, bateram ao de leve na porta e Miriam entrou.

– Estás sozinho? – perguntou.

– Estou.

Como se estivesse na sua própria casa, tirou a boina escocesa e o casaco comprido e pendurou-os. Ele sentiu uma tremura. Esta podia ser a casa deles, dele e dela.

Miriam aproximou-se e espreitou o que ele estava a fazer.

– O que é? – perguntou.

– Uma natureza morta... para decorar objectos e bordados.

Ela inclinou-se mais, aproximando os olhos míopes do desenho.

– E gostas do que fazes? – inquiriu.

– Adoro. Neste momento ando em maré de convencionalizar tudo.

– Ah...

Miriam não se interessava por estudos convencionais, mas reconhecia que ele devia saber mais do que ela sobre tais coisas. Eram coisas de homens, coisas que não lhe diziam respeito. No entanto, havia de descobrir a razão por que ele andava, como dizia, em maré de convencionalizar tudo. Que fascínio poderia ter para ele o convencional?

– O que é que te faz gostar disto? – perguntou ela, intrigada.

Ele, como já era seu hábito, procurou justificar-se. Lutando com as palavras, tentou explicar-lhe a teoria de que a força de gravitação é o agente mais poderoso, o factor responsável pela forma das coisas, e que, se pudesse agir em completa liberdade, apareceria uma rosa geometricamente correcta nas linhas e nas proporções... e assim por diante. Isto fez desabrochar nela um certo conceito de desenho convencional que até aí lhe parecia ser pura mentira. Por fim, ele empurrou os livros para o lado.

– Posso...? – disse ele, ansioso e hesitante.

– Podes o quê?

– Mostrar-te isto... Não era minha intenção enquanto não estivesse pronto.

Paul não conseguia esconder-lhe nada do que fazia. Foi à sala e voltou com uma trouxa de linho cru. Desembrulhou-a cautelosamente e estendeu-a no chão. Era um cortinado, ou melhor, um portière, magnificamente decorado com rosas, estampadas a stencil.

– Ah, que bonito! – exclamou ela.

O tecido espraiou-se aos pés dela, com as suas maravilhosas rosas em tons rubros e caules em verde-escuro, tudo muito simples, mas com um não sei quê de perverso. Ela ajoelhou-se, deixando pender soltos os caracóis. Ele, ao vê-la assim, voluptuosamente debruçada sobre a sua obra, sentiu bater mais depressa o coração. De repente, ela ergueu os olhos para ele.

– Porque é que isto parece tão cruel? – perguntou.

– O quê?

– Parece haver neste padrão uma certa crueldade – disse ela.

– Haja ou não haja, a mim parece-me óptimo – replicou ele, dobrando o trabalho com mãos de amante. Ela levantou-se devagar, pensativa.

– Que vais fazer com isto? – perguntou ela.

– Mandá-lo para os armazéns Liberty. Fi-lo para a minha mãe... mas acho que ela prefere o dinheiro.

– Estou a ver... – disse Miriam. Havia na voz dele um travo de amargura, e ela ficou com pena. A ela, o dinheiro jamais lhe interessaria.

Paul levou o tecido novamente para a sala, e, quando voltou, atirou a Miriam um retalho mais pequeno. Era a fronha de uma almofada, com um padrão idêntico.

– Fi-la para ti.

Miriam apalpou o trabalho com mãos trémulas, em silêncio. Paul ficou embaraçado.

– Meu Deus, o pão! – gritou ele.

Tirou os pães do tabuleiro superior e bateu-lhes vigorosamente. Já estavam cozidos. Pô-los ao lado da lareira, para arrefecerem. Em seguida, foi à copa, molhou as mãos, retirou do alguidar a massa, muito branca, que ainda restava, e colocou-a dentro de uma forma de pão. Miriam continuava debruçada sobre o tecido pintado. Enquanto isso, Paul esfregava as mãos, esforçando-se por tirar os bocadinhos de massa que se lhe tinham agarrado.

– Gostas? – perguntou ele.

Ela levantou para ele os seus olhos profundos, inflamados de amor. Ele riu-se, contrafeito. Depois começou a falar do seu desenho. Falar com Miriam sobre os trabalhos que fazia era para ele fonte do mais intenso prazer. Punha toda a sua paixão, toda a violência do seu sangue, nestas conversas com ela, em que discutia e concebia as suas obras. Ela fazia-lhe desabrochar a imaginação, embora não entendesse, como nenhuma mulher entende, quando concebe uma criança no seu ventre. Mas isto para ela, sim, era viver. E para ele também.

Enquanto conversavam, uma rapariga que andaria pelos vinte e dois anos, baixa e descorada, de olhos encovados, mas olhar determinado, entrou na sala. Era uma amiga dos Morels.

– Põe-te à vontade – disse Paul.

– Não... não me demoro.

Sentou-se no cadeirão de braços, em frente de Paul e de Miriam, que estavam no sofá. Miriam afastou-se um pouco mais de Paul. A casa estava quente e cheirava a pão acabado de fazer: os pães tostadinhos, a estalar, pousados ao lado da chaminé.

– Não esperava vir encontrar-te hoje aqui, Miriam Leivers – disse Beatrice, maldosa.

– Não sei porquê! – resmungou Miriam, asperamente.

– Porque... Ora deixa lá ver os teus sapatos.

Miriam, constrangida, não se mexeu.

– Se não sabes, não sabes, e pronto – disse Beatrice, dando uma gargalhada.

Miriam tirou os pés de baixo do vestido. As suas botas tinham aquele ar indeciso e patético que evidenciava bem o quanto ela era insegura e complexada. E estavam, além disso, cobertas de lama.

– Santa Maria!... És mêmo um monte de lama! – exclamou Beatrice. – Quem te limp’as botas?

– Limpo-as eu.

– Então não deves ter mai nada que fazer – disse a outra. – Havia de ser preciso muitos homens pra me fazerem vir ‘té’qui esta noite... Mas o amor zomba da lama... não é, ‘Póstolo, meu lindo?

– Inter alia – disse ele.

– Valha-me Deus, não me digas que te vais pôr agora a vomitar línguas estrangeiras!... O qu’é que isso quer dizer, Miriam?

– «Entre outras coisas», julgo eu – disse ela, humildemente. Beatrice riu-se maliciosamente, com a ponta da língua a despontar entre os dentes.

– «Entre outras coisas», ‘Póstolo? – repetiu ela. – Queres tu dizer qu’o amor se ri das mães e dos pais e das irmãs e dos irmãos e dos amigos e das amigas, e se calhar até do próprio ser amado?

Estava a fazer-se de ingénua.

– Na verdade, o amor é um sorriso rasgado – retorquiu ele.

– Isso é qu’era bom, ‘Póstolo Morel... Vai por mim... – disse ela.

E riu-se de novo, com malícia, muito baixinho.

Miriam continuava calada, fechada sobre si mesma. Todas as amigas de Paul adoravam meter-se com ela, e ele deixava-a entregue a si própria, como se aproveitasse para se vingar.

– Ainda continuas na mesma escola? – perguntou Miriam a Beatrice.

– Continuo.

– Então ainda não te mandaram embora?

– Devem mandar na Páscoa.

– Não achas uma pouca-vergonha... mandarem-te embora só por não teres passado no exame?!

– Não sei – ripostou Beatrice, friamente.

– A Agatha diz que és tão boa professora como as outras. A mim parece-me ridículo. Porque será que não passaste?

– Cabeça dura, hem, ‘Póstolo? – disse Beatrice, secamente.

– Só lhe serve para morder – retorquiu Paul, a rir.

– Monstro! – gritou ela, e, saltando do lugar, atirou-se a ele e deu-lhe um puxão de orelhas. As mãos dela eram pequeninas e elegantes. Ele prendeu-lhe os pulsos enquanto ela se debatia. Conseguiu por fim libertar-se e, apanhando dois punhados do cabelo dele, castanho e espesso, puxou com toda a força.

– Oh, Bea – disse ele, alisando o cabelo com os dedos. – Odeio-te.

Ela riu, consolada.

– Com licença! – disse ela. – Quero sentar-me ao pé de ti.

– Antes estar sentado ao lado duma fera – disse ele, deixando no entanto espaço para a outra se sentar entre ele e Miriam.

– Olha, ficou com o cabelinho todo despenteado! – exclamou Beatrice, penteando-o com o seu próprio pente.

– E o bigodinho também! – continuou ela. E, atirando a cabeça para trás, com um trejeito, penteou-lho.

– Tens um bigodinho todo malandro, ‘Póstolo – disse ela. – Vermelho, sinal de perigo... Ainda tens daqueles cigarros?

Paul tirou a cigarreira do bolso. Beatrice olhou.

– Já não tens nenhum daqueles charros qu’a Connie te deu? – perguntou.

– Ainda devo ter um por aí...

Procurou no bolso e encontrou uma caixinha. Beatrice pegou-lhe.

– É isso, só tens um! – disse ela. – Devia ser para a Miriam. Não queres o charro da Connie, Miriam?

– Não, obrigada – replicou Miriam. – Quem é a Connie?

– Ele não te contou? – exclamou Beatrice, surpresa. – Bem, ‘Póstolo Morel, acho que não é bonito deixar uma menina tão linda às escuras.

– Não queres mesmo fumar? – perguntou Paul a Miriam.

– Sabes bem que não – respondeu ela.

– Imaginem só, eu a fumar o último cigarro da Connie – disse Beatrice, metendo o cigarro entre os dentes. Paul estendeu-lhe um fósforo aceso e ela aspirou sofisticadamente.

– Obrigadíssima, querido – disse, trocista.

Dizer estas coisas dava-lhe um prazer perverso a que não conseguia resistir.

– Que jeitinho que ele tem, não achas, Miriam? – perguntou.

– Se tem! – disse Miriam.

Paul tirou um cigarro.

– Lume, menino? – disse Beatrice, chegando o seu cigarro ao dele.

Ele inclinou-se para a frente, para acender o cigarro no dela. Ela piscou-lhe o olho. Miriam viu os olhos dele a brilharem de malícia e os seus lábios carnudos, quase sensuais, a tremerem. Ele já não estava em si, e isso para ela era insuportável. Aquele que ali estava agora não tinha nada a ver com ela, era como se ela não existisse para ele. Via-lhe o cigarro a bailar nos lábios cheios, bem vermelhos, e odiava aquelas madeixas espessas que lhe caíam livres sobre a testa.

– Meu torrãozinho de açúcar! – disse Beatrice, levantando-lhe o queixo e dando-lhe um beijo na face.

– Agora é a minha vez, Beat – disse ele.

– Isso é que não! – disse ela, com uma risadinha, fugindo para longe. – Ele é mesmo descarado, não achas, Miriam?

– Do pior! – disse Miriam. – A propósito, não te esqueceste do pão?

– Meu Deus! – gritou Paul, abrindo a porta do forno, de onde saiu um fumo azulado e um cheiro a pão queimado.

– Céus! – gritou Beatrice, correndo para junto dele. Paul ajoelhou-se diante do forno e ela espreitou-lhe por cima do ombro. – Aí está o resultado de só pensares no amor, meu lindo.

Paul, contrito, tirava os pães do forno. Um deles estava todo preto por baixo e o outro duro que nem uma pedra.

– Pobre Mater! – disse Paul.

– Agora tens de o raspar – disse Beatrice. – Traz-me o ralador de noz-moscada.

Ela compôs os pães que ainda estavam no forno, ele trouxe-lhe o ralador e ela raspou a parte queimada em cima da mesa, para um jornal. Paul abriu as portas, para eliminar o cheiro a queimado, e Beatrice continuou a raspar o pão, fumando enquanto arrancava a crosta carbonizada da pobre carcaça.

– Ai, ai, Miriam, desta vez estás bem arranjada – disse Beatrice.

– Eu! – exclamou Miriam, espantada.

– É melhor saíres antes de a mãe dele chegar... Agora é que eu percebo porque é que o Rei Alfred queimou os bolos. Agora, sim. O ‘Póstolo inda podia dizer que se tinha esquecido por causa do trabalho, se achasse que isso ia pegar. Se a velha da lenda tivesse chegado um nadinha mais cedo, teria dado cabo das orelhas da desavergonhada que provocou o esquecimento, e não das do pobre Alfred...

E riu-se, enquanto raspava o pão. Até Miriam, não se contendo, se riu também. Paul, pesaroso, pôs mais carvão na fogueira.

Ouviu-se bater o portão do jardim.

– Depressa! – gritou Beatrice, estendendo a Paul a carcaça já raspada. – Embrulha-a numa toalha húmida.

Paul correu para a copa. Beatrice soprou apressadamente as raspadelas para a fogueira e foi sentar-se com ar inocente. Annie entrou de rompante. Era uma rapariga muito esperta e sem rodeios. A luz intensa fê-la piscar os olhos.

– Cheira-me a queimado! – exclamou.

– É dos cigarros – explicou Beatrice, muito séria.

– Onde está o Paul?

Leonard entrou logo a seguir a Annie. Tinha uma cara comprida e engraçada, e uns olhos azuis muito tristes.

– Acho que se retirou para vocês se entenderem as duas – disse ele.

Depois, cumprimentou Miriam com ar penalizado, e mostrou-se suavemente sarcástico com Beatrice.

– Nada disso – disse Beatrice. – Foi sair com a número nove.

– Olha, vi mesmo agora a número cinco, que andava à procura dele – acrescentou Leonard.

– Pois é... Nós vamos ter de o dividir como o menino de Salomão – disse Beatrice.

Annie deu uma gargalhada.

– Ah, sim? – disse Leonard. – E com que bocado queres tu ficar?

– Sei lá – disse Beatrice. – As outras que escolham primeiro.

– E tu depois ficas com os restos? – disse Leonard, fazendo uma careta.

Annie estava às voltas com o forno. Miriam estava abandonada no seu canto. Paul entrou.

– Este pão está lindo, menino Paul – disse Annie.

– Então devias ter ficado a tomar conta dele – disse Paul.

– Tu é que devias ter feito aquilo que te compete – repontou Annie.

– Devia, não devia? – exclamou Beatrice.

– Mas se calhar estava com as mãos muito ocupadas... – atalhou Leonard.

– Viste-te aflita para cá chegar, não foi, Miriam? – disse Annie.

– Se vi... Mas tinha estado metida em casa toda a semana...

– E apeteceu-te mudar, hem? – insinuou Leonard, melífluo.

– Bem, não se pode passar a vida inteira dentro de casa – disse Annie, conciliadora. Beatrice vestiu o casaco e saiu com Leonard e Annie. Ia encontrar-se com o seu rapaz.

– Não te distraias com o pão, menino Paul – gritou Annie. – Boa noite, Miriam, acho que não vai chover mais.

Depois de todos saírem, Paul foi buscar o pão queimado, desembrulhou-o e olhou para ele com desalento.

– Está uma porcaria! – disse.

– Mas qual é o problema? – disse Miriam, enfadada. – Afinal são só... dois dinheiros e meio.

– Está bem... mas trata-se do pão da minha mãe, de que ela tanto se orgulha... e ela não vai gostar nada... Mas agora já não adianta preocuparmo-nos.

Levou o pão outra vez para a copa. Instalara-se uma certa distância entre ele e Miriam. Por uns momentos, Paul hesitou diante dela, a meditar, pesando o seu comportamento com Beatrice. No fundo, sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo contente. Não sabia explicar porquê, mas achava que era bem feito para Miriam. Não era agora que se ia arrepender. Miriam pensava no que ele estaria a cogitar, ali hesitante diante dela. Madeixas de cabelo espesso caíam-lhe ainda sobre a testa. E se lho puxasse para trás, para apagar as marcas do pente de Beatrice? E se lhe apertasse o corpo entre as suas mãos? Parecia tão rijo e palpitante. Se ele deixava as outras fazerem-lhe isso, porque não ela?

De súbito, Paul voltou à vida, e Miriam quase tremeu de susto quando ele arredou os cabelos da testa e avançou para ela.

– Oito e meia! – disse ele. – É melhor irmos a isto. Onde está o teu caderno de francês?

Miriam, contrariada, mostrou-lhe timidamente o caderno de exercícios de francês. Todas as semanas lhe entregava uma espécie de diário da sua vida íntima, escrito por ela em francês. Paul descobrira que era a única maneira de a convencer a fazer composições. O diário era acima de tudo uma carta de amor. Agora, ele ia lê-lo e era como se a história da sua alma fosse ser profanada por ele, no estado em que se encontrava. Paul sentou-se ao lado dela. Ela atentou na mão dele, firme e quente, percorrendo minuciosamente o seu trabalho.

Ele lia apenas as palavras em francês, ignorando a alma que encerravam. Mas, gradualmente, a mão esqueceu a tarefa e ele continuou a ler em silêncio, e em total imobilidade. Ela estremeceu.

– «Ce matin les oiseaux m’ont éveillé» – leu ele. – «II faisait encore un crépuscule. Mais la petite fenêtre de ma chambre était blême, et puis, jaûne, et tous les oiseaux du bois éclatèrent dans un chanson vif et résonnant. Toute l’aûbe tressaillit. J’avais rêvé de vous. Est-ce que vous voyez aussi 1’aube? Les oiseaux m’éveillent presque tous les matins, et toujours il y a quelque chose de terreur dans le cri des grives. II est si clair...».2

Miriam estava sentada, a tremer, envergonhada. Ele mantinha-se imóvel, tentando compreender. Apenas percebia que ela o amava, mas tinha medo do seu amor. Era mais do que ele merecia, e ele não era digno dela. Era ele que não a amava o suficiente, e não o contrário. Envergonhado, corrigiu-lhe o trabalho, anotando os erros timidamente por cima das palavras.

– Repara – disse ele, sereno. – Quando o particípio passado é conjugado com avoir, concorda com o complemento directo sempre que este o precede.

Ela inclinou-se para a frente, para ver melhor e poder compreender. Os seus caracóis finos e soltos roçaram-lhe ao de leve na cara, e ele deu um salto como se um ferro em brasa lhe tivesse tocado. Ao vê-la debruçada sobre a página, com os lábios rubros dolorosamente entreabertos, o cabelo negro caindo em finas madeixas sobre as faces afogueadas, corada como uma romã, a respiração tornou-se-lhe ofegante. Então, ela olhou para ele: os seus olhos negros punham a nu todo o seu amor, medo e desejo. E os olhos dele, negros também, feriram os dela. Pareciam dominá-los. E ela, perdendo o domínio de si própria, ali estava exposta, amedrontada, à mercê dele. Paul sabia, porém, que antes de a poder beijar, tinha de arrancar alguma coisa de si mesmo. E, então, um sopro de ódio por ela penetrou-lhe outra vez no coração, fazendo-o retomar as suas correcções.

De súbito, ele atirou com o lápis pelo ar e precipitou-se para o forno, para virar o pão. Era brusco de mais para o gosto dela. Miriam estremeceu em violento sobressalto, e a dor que sentiu era real. Até a maneira como ele se punha de cócoras diante do forno a magoava. Pressentia alguma crueldade nos seus gestos, alguma crueldade na brusquidão com que tirava os pães das formas, atirando-os ao ar e apanhando-os na queda. Se ao menos ele fosse gentil nos movimentos, sentir-se-ia mais rica e confortada no seu íntimo. Mas, assim, era só dor o que sentia.

Paul voltou para junto dela e acabou o exercício.

– Desta vez saíste-te bem – disse ele.

Ela percebeu que ele se sentia lisonjeado com o diário, mas isso não era recompensa suficiente.

– Sim senhora, de vez em quando fazes um brilharete – disse ele. – Devias escrever poesia.

Ela ergueu a cabeça, transbordante de alegria, mas logo a abanou desalentada.

– Falta-me confiança – disse ela.

– Mas devias tentar!

Mas ela abanou a cabeça.

– Vamos ler um bocado, ou achas que já é muito tarde? – perguntou ele.

– Lá tarde, é... mas podíamos ler só um bocadinho – pediu ela.


CONTINUA

Partiriam no sábado seguinte de manhã, no comboio das sete horas. Paul sugeriu a Miriam que dormisse em casa dele, pois morava muito longe, e ela já jantou de véspera em casa dele. Estavam todos tão excitados que a vinda de Miriam até foi recebida com entusiasmo. Contudo, mal ela chegou, a família tornou-se menos expansiva e mais fechada. Paul tinha descoberto um poema de Jean Ingelow que falava em Mablethorpe, e, por isso, tinha de o mostrar a Miriam. Sem ela, o seu sentimentalismo nunca teria chegado ao ponto de ler poesia para a família ouvir. Mas agora concordavam em ouvi-lo. Miriam, sentada no sofá, escutava-o enlevada. Quando ele estava presente, ela parecia sempre presa a ele e das palavras dele. Mrs. Morel, com ciúmes, sentou-se na sua cadeirinha de baloiço para o escutar. Annie e o pai escutavam-no também; Morel tinha a cabeça mais levantada de um lado, como alguém que escuta um sermão e está consciente do mesmo. Paul espreitou por cima do livro. Tinha agora a presença de quem mais gostava. E Mrs. Morel e Annie quase competiam com Miriam, sobre qual seria a ouvinte mais atenta, a preferida dele. Paul sentia-se nos píncaros.

– Mas – interrompeu Mrs. Morel – não percebo porque é que os sinos têm que tocar A Noiva de Enderbyt...?

– É uma velha melodia que os sinos costumavam tocar como aviso contra a cheia. Penso que a tal Noiva de Enderby morreu afogada numa enchente – respondeu ele. Não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer na realidade, mas nunca se teria rebaixado ao ponto de o confessar perante o seu público feminino. Elas escutavam-no e acreditavam. Ele próprio acreditava nas coisas que dizia.

– E as pessoas sabiam o significado dessa melodia? – quis saber a mãe.

– Sim... tal e qual os escoceses quando escutam As Flores da Floresta... e quando costumavam tocar os sinos em sinal de alarme em sentido contrário.

– Ah! – exclamou Annie. – Quer dizer que os sons de um sino são sempre os mesmos quando são tocados no seu sentido correcto, ou ao contrário.

– Mas – disse ele – se começares num tom grave e subires até ao agudo... lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá! – disse ele, percorrendo a escala completa, e todos o acharam muito inteligente. Ele também. Depois, aguardando um minuto, continuou a ler o poema.

– Hum! – disse Mrs. Morel, apreciativamente, quando ele terminou. – Só espero que tudo o que se tem escrito não seja assim tão triste.

– Num consig’intender porqu’é qu’houve tantos afogamentos – disse Morel. Houve uma pausa. Annie preparou-se para levantar a mesa.

– Acho Elizabeth um belo nome – disse Miriam, em voz baixa. – «A minha nora Elizabeth...»

– Concordo – disse Paul.

– Também acho – disse a mãe. – Mas não gosto de Lizzie e abomino Liza.

Nem Paul nem Miriam achavam que Lizzie ou Liza tivessem algo a ver com o assunto.

– Ah, mas «Elizabeth»! – murmurou Miriam.

– E ainda por cima, a Rainha Elizabeth adorava que a tratassem por «Grande Eliza» – disse Paul.

– E amanhã há mais! – disse Morel, não se contendo.

Mrs. Morel e Paul deram uma gargalhada.

– Aposto que nem sapatos tinha – disse Morel, continuando com a brincadeira.

– Não seja tão insolente com uma rainha – disse Annie.

– Rainhas! – exclamou Morel. – Num pensas noutra coisa senão nas rainhas? Num fazes mai nada senão viver à grande e à francesa!

Miriam levantou-se para ajudar a lavar a loiça.

– Deixa-me ser eu a lavar a loiça – disse ela.

– Não é necessário – exclamou Annie. – Vai-te sentar. É pouca loiça.

E Miriam, que não se sentia à vontade para insistir, sentou-se a ver o livro com Paul.

Paul era o chefe do grupo... para isso, o pai não prestava. E muito ele sofreu para que o baú de latão fosse descarregado em Firsby e não em Mablethorpe. E não foi também capaz de encontrar uma carruagem com lugares. Só a genica de Mrs. Morel o conseguiu.

– Aqui! – gritou ela para um homem. – Aqui!

Paul e Annie ficaram para trás envergonhadíssimos, mas perdidos de riso.

– Quanto é a viagem até Brook Cottage? – perguntou Mrs. Morel.

– Dois xelins.

– É assim tão longe?

– Ainda é um bom bocado.

– Não acredito – disse ela.

Contudo subiu para a carruagem. Iam os oito apertados numa velha carruagem da linha costeira.

– Bem vêem – disse Mrs. Morel –, são apenas três dinheiros por pessoa, mas se fosse um eléctrico...

A viagem prosseguiu. Sempre que passavam por uma casa típica, Mrs. Morel exclamava:

– É esta?... Não, agora é que é!

Estava toda a gente morta de ansiedade. A viagem prosseguiu. Houve um suspiro em uníssono.

– Estou agradecida por não ser aquela coisa horrorosa – disse Mrs. Morel. – Estava assustada.

Passou-se ainda mais algum tempo.

– Aquela mulher repelente disse que a casa ficava a dez minutos do mar...! – exclamou Mrs. Morel.

– Pra ela uma hora deve ser um minuto – reclamou Morel.

Todos o mandaram calar.

– Será que nunca mais chegamos? – exclamou Mrs. Morel, muito alto.

– Não grite assim, mãe – disse Annie. – O que é que ele irá pensar?

Mrs. Morel olhou de um modo esquisito para o condutor, e disse:

– Não sei! Mas, pelo aspecto, penso que não pensará nada de especial.

Finalmente, desceram perto de uma casa isolada, sobre o canal que passava na estrada principal. Houve grande alvoroço quando descobriram que tinham de atravessar uma pequena ponte para chegarem ao jardim da casa. Adoraram a casa, que ficava isolada, com o mar de um lado e, do outro, uma imensa extensão de terra plana que se estendia até ao céu, e onde se distinguia o branco da cevada, o amarelo da aveia, o vermelho do trigo e o verde dos nabos.

Paul registava as despesas e ele e a mãe governavam a casa. As despesas globais, incluindo o alojamento e a alimentação ascendiam a dezasseis xelins por pessoa e por semana. De manhã, Paul e Leonard iam tomar banho ao mar. Morel saía bastante cedo para ir dar um passeio.

– Paul – chamou a mãe do quarto. – Come uma fatia de pão com manteiga.

– Está bem – respondeu ele.

Quando regressou, a mãe estava sentada à cabeceira da mesa. A dona da casa era jovem. O marido era cego e ela cuidava da roupa. Assim, Mrs. Morel lavava a loiça na cozinha e fazia as camas.

– Mas a mãe prometeu que ia fazer umas férias a sério – disse Paul – e agora está a trabalhar.

– Trabalho? – exclamou ela. – De que é que estás a falar?

Paul adorava ir passear com ela pelos campos, até à aldeia ou até ao mar. Ela tinha medo de atravessar pontes de madeira e ele acusava-a de se portar como um bebé. Era apegado à mãe como se fosse o seu marido.

Miriam raramente andava com ele – excepto, talvez, quando iam todos ouvir os Coons. Os Coons eram insuportavelmente estúpidos para Miriam e, por isso, eram-no também para Paul, que pregava sermões presunçosos a Annie sobre a perda de tempo que era irem ouvi-los. Todavia, também ele sabia todas as suas canções de cor e as cantava desbragadamente pelas ruas. E, quando reparava que os estava a ouvir, a estupidez da situação agradava-lhe imenso. Contudo dizia para Annie:

– Que porcaria!... Não há um pingo de inteligência naquilo que cantam. Ninguém que tenha mais miolos que um gafanhoto consegue aguentá-los. – E dizia a Miriam, com algum desdém, onde estavam Annie e os outros:

– Suponho que foram aos Coons.

Era ridículo ouvir Miriam trautear as canções dos Coons. Tinha um queixo talhado a direito que descia na perpendicular desde o lábio inferior até à curvatura do maxilar. Quando ela cantava, Paul achava-a parecida com um anjo triste de Botticelli, mesmo quando entoava:


«Vem pela Estrada do Amor

Vem comigo passear, falar comigo...»


Miriam só tinha Paul todo para ela quando ele desenhava, ou à noite, quando todos os outros estavam a ouvir os Coons. Ele falava-lhe então interminavelmente do seu gosto pelos planos horizontais: como é que os grandes níveis do céu e da terra significavam para ele a eternidade da vontade, tal como os arcos normandos, arredondados e em série, significavam um salto em frente da alma humana voluntariosa, não se sabe para onde; pelo contrário, as linhas perpendiculares e o arco gótico apontavam para o céu e afloravam o êxtase, perdendo-se no divino. Ele era normando, Miriam era gótica. Submissa, ela concordava com tudo o que ele dizia.

Certa tarde, ele e ela foram passear pelo extenso areal que conduzia a Theddlethorpe. As alongadas vagas quebravam-se e elevavam-se em silvos agudos de espuma ao longo da costa. A tarde estava quente e eles completamente sozinhos na imensidão da areia, a sós com o barulho do mar. Paul adorava ouvir o mar a ressoar na areia. Adorava sentir-se entre o som do mar e o silêncio do areal. Miriam estava com ele. Tudo se tornava mais intenso. Já tinha anoitecido quando regressaram. O regresso a casa fazia-se através de uma passagem nas dunas, e depois através de uma estrada pejada de ervas, rasgada entre dois diques. A aldeia estava cinzenta e calma. Por detrás das dunas soava o murmúrio do mar. Paul e Miriam caminhavam em silêncio. De repente, ele estacou. O seu sangue parecia ter-se incendiado e ele mal podia respirar. Uma enorme lua alaranjada observava-os do alto das dunas. Ele continuava parado, olhando a lua.

– Oh! – exclamou Miriam, quando a viu também.

Ele estava ali, petrificado, olhando a lua dilatada e rubra, sozinha na escuridão imensa. O seu coração batia forte e tinha os músculos dos braços contraídos.

– O que foi? – murmurou ela, esperando por ele.

Ele voltou-se e fitou-a. Ela estava ao seu lado, para sempre na escuridão. A sua face, encoberta pela sombra do chapéu, olhava-o sem que ele a visse. E ela meditava. Estava um pouco receosa... profundamente emocionada e imbuída de religiosidade. Este era o seu melhor estado de alma. Ele sentia-se impotente face a esta situação. O sangue parecia concentrar-se como uma fogueira no seu peito, mas ele não lhe conseguia transmitir o sentimento. Pareciam disparar relâmpagos do seu sangue, mas, de algum modo, ela ignorava-os. Ela esperava vê-lo atingir um estado de graça. Ainda à espera, mas meio consciente da paixão que o possuía, Miriam fitou-o, preocupada.

– O que se passa? – murmurou novamente.

– É a Lua – respondeu ele, franzindo a testa.

– Sim – concordou ela. – É maravilhosa, não é? – Ela estava intrigada. A crise tinha passado.

Ele próprio não sabia o que lhe tinha acontecido. Era ainda tão jovem e a sua intimidade tão abstracta que não se apercebeu de que desejava esmagá-la contra o peito para aliviar a dor que o trespassava. Tinha medo dela. Talvez o facto de a desejar como um homem deseja uma mulher tivesse permanecido oculto dentro dele como uma humilhação. Quando ela fugia desses pensamentos, torturando-se em extrema agitação, ele recolhia-se até ao mais recôndito da alma. E, neste momento, esta «pureza» inibia o seu primeiro beijo de amor. Era como se ela mal pudesse suportar o choque do amor físico, ou apenas um beijo apaixonado, deixando-o demasiado reprimido e sensibilizado para lho dar.

Enquanto caminhavam ao longo da negra lagoa, Paul contemplava a Lua e mantinha-se em silêncio. Miriam caminhava a seu lado devagar. Ele sentia que a odiava, pois ela parecia, de certa forma, levá-lo a autodesprezar-se. Olhando em frente, descortinou uma luz na escuridão; era a janela iluminada da sua casa.

Adorava pensar na mãe e no resto das pessoas, todos alegres.

– Bem, já todos chegaram há bastante tempo – disse a mãe quando eles entraram.

– E o que é que isso importa? – exclamou ele, irritado. Posso ir passear quando me apetecer, não posso?

– Pensei que quisesses jantar com o resto do grupo – disse Mrs. Morel.

– Tenho de agradar a mim próprio – retorquiu ele. – Não é tarde e faço o que me apetece.

– Muito bem – disse a sua mãe, sarcasticamente. – Então faz o que te apetecer!

E nessa noite não falou mais com ele. Paul fingiu não notar nem estar preocupado com o assunto, e sentou-se a ler. Miriam lia também, tentando alienar-se. Mrs. Morel detestava-a por ela pôr o filho naquele estado. Via o filho irritadiço, presumido e melancólico, e culpava Miriam.

Annie e os amigos também se voltavam contra Miriam. O único amigo de Miriam era Paul. Mas ela não se importava, pois desprezava a trivialidade de todas essas pessoas.

E Paul detestava-a, pois ela perturbava, por assim dizer, o seu bem-estar e a sua naturalidade, torturando-o com sentimentos de humilhação.

1 «Os últimos representantes de uma raça extinta.» (N. da T.)


VIII

ZANGAS DE AMOR

ARTHUR terminou o estágio e arranjou emprego na central eléctrica da mina de Minton. Ganhava muito pouco, mas tinha possibilidades de progredir. Era, porém, rebelde e impaciente. Não bebia nem tinha o vício do jogo, mas envolvia-se constantemente em rixas devido às suas reacções intempestivas. Ia caçar coelhos para a floresta, qual caçador furtivo, e passava a noite em Nottingham em vez de voltar para casa, ou então ia nadar para o canal de Bestwood e falhava os cálculos do mergulho, ficando com o peito ferido, das rochas naturais e das latas que andavam a boiar à tona.

Tinha faltado ao emprego meses a fio, e uma noite não voltou para casa.

– Sabe por onde anda o Arthur? – perguntou Paul ao pequeno-almoço.

– Não – respondeu a mãe.

– É mesmo maluco – disse Paul. – Eu já nem ligaria, se ele ao menos fizesse mesmo alguma coisa. Mas não... não consegue resistir a um jogo de cartas, ou então vai levar alguma rapariga a casa depois da patinagem, com todo o decoro... e acaba por não voltar para casa. É maluco.

– Não vejo porque seria melhor se ele fizesse mesmo alguma coisa que nos envergonhasse – disse Mrs. Morel.

– Bem... eu, pelo meu lado, passaria a respeitá-lo mais – disse Paul.

– Duvido muito – respondeu a mãe secamente.

Continuaram a tomar o pequeno-almoço.

– A mãe gosta desvairadamente dele, não gosta? – perguntou Paul.

– Porque fazes essa pergunta?

– Dizem que as mães gostam sempre mais do filho mais novo.

– Talvez... mas eu não. Não... ele irrita-me.

– E gostava que ele se portasse melhor?

– Gostava que ele mostrasse algum bom senso masculino.

Paul estava ferido e irritado. Também ele irritava a mãe frequentemente. E ela ficava triste, pois via os melhores anos a fugirem-lhe.

Estavam a acabar o pequeno-almoço, quando o carteiro lhes entregou uma carta vinda de Derby. Mrs. Morel esforçou-se para ler o endereço.

– Dê cá isso, sua pitosga! – exclamou o filho, tirando-lhe a carta da mão. Ela assustou-se e quase lhe dava uma bofetada.

– É do seu filho Arthur – informou ele.

– Mas o que vem a ser isto? – exclamou Mrs. Morel.

– «Querida mãe» – leu Paul. – «Não sei o que me deu. Quero que me venha buscar. Ontem, em vez de ir trabalhar, vim alistar-me no exército com o Jack Brendon. Ele disse que estava farto de passar a vida sentado num escritório, e eu, idiota, como já sabe que sou, resolvi vir com ele.

«Já recebi o dinheiro referente ao recrutamento, mas se me vier buscar, talvez eles me deixem ir consigo. Foi uma loucura ter feito o que fiz. Não quero ficar no exército. Querida mãe, sei que não passo de um estorvo para si, mas, se me tirar desta situação, prometo que serei mais consciente e ponderado...»

Mrs. Morel sentou-se na cadeira de baloiço.

– Vejam só! – exclamou. – Ele que assente por uns tempos!

– Também acho – disse Paul. – Ele que assente!

Fez-se silêncio. A mãe estava sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, o rosto imóvel, pensativa.

– Devo estar doente – exclamou de repente. – Doente!

– Então! – disse Paul, franzindo a testa – Não quero que se preocupe com isto, está a ouvir?

– Então queres que encare isto como uma bênção? – disse ela, de repente, virando-se para o filho.

– Agora não vai tornar isto numa tragédia, pois não? – retorquiu ele.

– Ele é maluco!... Maluquinho de todo! – gritou Mrs. Morel.

– Vai ficar todo bonito com a farda – disse Paul, para espicaçar a mãe.

Ela virou-se a ele, furiosa.

– Ah, vai? – gritou ela. – Mas não para mim!

– Devia ir para um regimento de cavalaria... Ele divertia-se à grande e nós passávamos a ser chiques.

– Chiques!... Chiques!... Muito chique, não haja dúvida!... Um soldado raso!

– Ora – disse Paul. – E o que sou eu, senão um reles escriturário?

– O que é muito mais, meu filho! – gritou a mãe, picada.

– Essa agora!

– De qualquer forma, és um homem e não uma coisa enfiada num casaco vermelho.

– Não me importava de andar enfiado num casaco vermelho... ou azul-escuro, que me ficaria melhor... se eles não me dessem muitas ordens.

Mas a mãe já não o ouvia.

– Agora que ele estava a progredir, ou poderia vir a progredir no emprego... um aborrecimento passageiro e aí vai ele... dar cabo da vida toda. Que vantagens é que tu pensas que isto lhe pode trazer?

– Vai pô-lo todo afinado! – disse Paul.

– Todo afinado!... E o que tem ele para afinar? Um soldado!... Um soldado raso!!... Nada mais do que um corpo que se mexe quando lhe dão ordens! Grande coisa!

– Não percebo porque é que isso a aborrece tanto – disse Paul.

– Não, talvez não percebas. Mas percebo eu. – E recostou-se na cadeira, de queixo apoiado numa das mãos e segurando o cotovelo com a outra, a transbordar de raiva e desilusão.

– Está a pensar ir a Derby? – perguntou Paul.

– Estou, pois.

– Não faça isso.

– Quero ver com os meus próprios olhos.

– Mas por que diabo é que não o deixa assentar? É isso mesmo que ele quer.

– Claro – exclamou a mãe. – Tu sabes muito bem o que ele quer...

Preparou-se e apanhou o primeiro comboio para Derby, onde se encontrou com o filho e com o sargento. Todavia, os seus esforços foram infrutíferos.

Morel estava a almoçar, quando ela disse de repente:

– Tenho de ir hoje a Derby.

O mineiro levantou os olhos, muito brancos numa face toda enfarruscada.

– Ah, vais, cachopa? E o que te leva lá?

– O menino Arthur!

– Qu’aprontou ele desta vez?

– Alistou-se no exército, só isso.

Morel pousou a faca e recostou-se na cadeira.

– Não – disse ele. – Num pode ser!

– E amanhã vai para Aldershot.

– Bom – exclamou o mineiro –, iss’é qu’é já uma grand’alhada.

Morel reflectiu por um momento, disse «Hum!» e continuou a jantar. Subitamente, a face contraiu-se-lhe de raiva.

– Espero qu’ele nunca mais volte a pôr as patas nesta casa – disse ele.

– Credo! – exclamou Mrs. Morel. – Isso é lá coisa que se diga!

– É o qu’eu penso – repetiu Morel. – O doidivanas pisga-se pa ser soldado... Atão é porque já tá na hora de fazer pela vida... Comigo na conta mais.

– Falar é fácil... – disse Mrs. Morel.

Nessa noite, Morel quase sentiu vergonha de ir para a taberna.

– Então, sempre lá foi? – perguntou Paul à mãe quando chegou a casa.

– Fui.

– E viu-o?

– Vi.

– E o que disse ele?

– Ficou lavado em lágrimas quando me vim embora.

– Hum!

– E eu fiz o mesmo, portanto não precisas de fazer «Hum!».

Mrs. Morel preocupava-se com o filho, pois sabia que ele não ia gostar de estar no exército. Como de facto não gostou. A disciplina era uma coisa que ele não conseguia tolerar.

– Mas o doutor disse que ele era bem proporcionado... quase na proporção exacta, e as suas medidas eram perfeitas – disse Mrs. Morel a Paul, cheia de orgulho. – Como tu sabes, ele é bem-parecido.

– Ele é muito bem-parecido. Mas não arranja raparigas como o William, pois não?

– Não... Tem uma personalidade diferente. Sai muito ao pai: é um irresponsável.

Para consolar a mãe, Paul passou nessa altura a ir muito menos a Willey Farm. No Outono, quando se realizou no castelo a habitual exposição dos trabalhos dos alunos da escola de belas-artes, ele apresentou dois trabalhos: uma paisagem a aguarela e uma natureza morta a óleo, que obtiveram dois primeiros prémios, o que o deixou deveras emocionado.

– Mãe, que lhe parece, acha que ganhei algum prémio com as minhas pinturas? – perguntou uma noite, ao chegar a casa. Pelos seus olhos, a mãe viu que ele estava feliz, e a sua face resplandeceu.

– Como queres que eu saiba, meu filho?!

– Um primeiro prémio por aquelas jarras de vidro...

– Ena!

– E outro primeiro prémio por aquele esboço que fiz em Willey Farm.

– Um primeiro prémio para cada coisa?

– Sim, senhora.

– Hum!

Mrs. Morel parecia envolvida numa aura brilhante, cor-de-rosa, mas não disse nada.

– É bem bom, não é, mãe? – disse ele.

– É, sim.

– Oh, mãe, porque não me põe nos píncaros?

Ela riu-se.

– É que depois tinha de ter o trabalho de te puxar cá para baixo outra vez.

No entanto, toda ela vibrava de alegria. William tinha-lhe trazido sempre os seus troféus desportivos. Ela ainda os guardava, e não perdoava a morte dele. Arthur era bonito e era pelo menos um belo exemplar masculino, terno e generoso, e provavelmente o futuro acabaria por lhe sorrir. Mas Paul iria destacar-se. Ela tinha uma grande fé no filho, e mais ainda por ele não ter consciência das suas capacidades. Ele tinha tanto para dar, e a vida parecia ter muito para lhe dar também. Ela iria sentir-se realizada através do filho. A sua luta não tinha sido em vão.

Durante o período da exposição, Mrs. Morel foi várias vezes ao castelo, sem que Paul a visse. Vagueava pelo longo salão, apreciando as restantes pinturas. Sim, eram muito boas. Mas faltava-lhes qualquer coisa para que a sua satisfação fosse completa. Observava-as longamente, tentando encontrar nelas alguma falha. De repente, algo lhe fazia disparar o coração. Aquela era a pintura de Paul. Conhecia-a como se a tivesse gravada no coração.

«Nome: Paul Morel. Primeiro Prémio.»

Parecia tão estranha, ali exposta ao público, nas paredes da galeria do castelo, onde já tinha visitado tantas exposições de pintura durante toda a sua vida. E, depois, olhou em volta, tentando descobrir se alguém a tinha tornado a ver em frente ao mesmo quadro.

Não cabia em si de orgulho, e quando se cruzava com senhoras bem vestidas, pensava para consigo:

«Pois sim, vocês estão muito bem vestidas... mas duvido que os vossos filhos consigam arrebatar dois primeiros prémios na exposição no castelo.»

E seguia o seu caminho, sentindo-se mais orgulhosa do que qualquer outra mãe de Nottingham. E Paul sentia que tinha feito algo por ela, mesmo não passando de uma insignificância. Todo o seu trabalho pertencia à sua mãe.

Um dia, encontrou Miriam quando se dirigia para o castelo. Tinha-a visto no domingo e não esperava encontrá-la na cidade. Vinha com ela uma mulher loura, espampanante, de expressão carregada e porte provocador. Era estranho como Miriam, tão meditativa e reverente, parecia insignificante ao lado desta mulher de ombros deslumbrantes. Miriam fitou Paul demoradamente. O olhar dele estava pregado na desconhecida, que o ignorava. Miriam via claramente o seu instinto masculino a erguer-se altaneiro.

– Olá – disse ele. – Não me disseste que vinhas à cidade.

– Pois não – retorquiu Miriam, em ar de desculpa. Fui à Feira do Gado com o meu pai.

Paul olhou para a companheira de Miriam.

– Já te tinha falado de Mrs. Dawes – disse Miriam, com a voz estrangulada. Estava nervosa. – Clara, já conheces o Paul?

– Penso que já o vi antes – respondeu Mrs. Dawes, indiferente, enquanto o cumprimentava. Tinha uns olhos cinzento-esverdeados, displicentes, a pele era mel claro, e a boca carnuda, com o lábio superior levemente levantado, não se percebendo se de desprezo por todos os homens ou desejo de ser beijada, sendo a primeira hipótese a mais provável. Tinha a cabeça inclinada para trás, como se ela se afastasse por desdém, talvez também dos homens. Usava um chapéu enorme e deselegante, de pele escura de castor, e um vestido simples levemente afectado, que lhe conferia as linhas de um saco. Obviamente era pobre e tinha falta de gosto. Miriam andava sempre bonita.

– Onde é que me viste? – perguntou Paul à outra mulher.

Ela olhou-o como se não tivesse qualquer dúvida em responder.

E depois:

– Vi-te a passear com a Louie Travers – respondeu ela.

Louie era uma das raparigas da secção Espiral da fábrica de Mr. Jordan.

– E como é que tu a conheces? – perguntou ele.

Ela não respondeu. Paul virou-se então para Miriam.

– Para onde vais agora? – perguntou.

– Para o castelo.

– A que horas é o comboio de regresso?

– Vou regressar com o meu pai. Gostava que também viesses connosco. A que horas estás livre?

– Já sabes que nunca antes das oito, que diabo!

E as duas mulheres seguiram o seu caminho.

Paul lembrou-se de que Clara Dawes era filha de um velho amigo de Mrs. Leivers. Miriam tinha-a procurado, pois ela tinha sido em tempos supervisora da secção Espiral da Jordan, e porque o marido, um tal Baxter Dawes que era ferreiro, trabalhava para a fábrica, fazendo entre outras coisas os ferros para as próteses ortopédicas. Miriam pensou que através dela pudesse contactar directamente com a fábrica, podendo assim assegurar o emprego de Paul. Mas Mrs. Dawes estava separada do marido, e agora dedicava-se à defesa dos direitos das mulheres. Era supostamente inteligente, e isso interessava a Paul.

Paul conhecia Baxter Dawes e detestava-o. O ferreiro tinha cerca de trinta e um ou trinta e dois anos. Paul encontrava-o de vez em quando: era um homem alto e bem constituído, bem-parecido, para quem dava gosto olhar. Havia uma curiosa semelhança entre ele e a mulher. Ele tinha a mesma pele clara, de tom de dourado. O seu cabelo era castanho-claro e o bigode dourado. E exalava um desprezo semelhante, pelo porte e pela conduta. Nisto surgiu a diferença. Os seus olhos castanhos, muito escuros e astuciosos, eram imorais. Eram levemente salientes e as pálpebras sobrepunham-se de uma forma tal que lhe suscitava o ódio. A boca era também sensual. A postura evidenciava um desprezo cobarde, como se estivesse preparado para derrubar o primeiro que o censurasse... talvez porque ele próprio se censurava.

O homem odiou Paul desde o primeiro dia que o viu. Ao captar o olhar deliberado e impessoal de um artista no rosto do rapaz, enfureceu-se.

– Pa’onde é que tás’olhar? – disse ele desdenhosamente, amedrontando-o.

O rapaz desviou o olhar. O ferreiro costumava encostar-se ao balcão a conversar com Mr. Pappleworth, e a sua conversa era sempre porca e depravada. Quando sentiu novamente os olhos frios e críticos do jovem pousados nele, o ferreiro virou-se, como se tivesse sido mordido por algum bicho.

– Pa’onde é que tás’olhar, ó parvalhão? – rosnou ele.

O rapaz encolheu os ombros.

– Olha que tu...! – berrou Dawes.

– Deixa-o em paz – disse Mr. Pappleworth, naquela sua voz insinuante que parecia dizer «ele é um pobre diabo, mas não faz por mal».

Desde essa altura, Paul passou a olhar para o homem, sempre que o encontrava, com o mesmo olhar crítico e curioso, desviando o olhar antes de encontrar os olhos do ferreiro, o que deixava Dawes fora de si. E, assim, odiavam-se em silêncio.

Clara Dawes não tinha filhos. Quando deixou o marido, desfizeram a casa e ela foi viver com a mãe, enquanto Dawes passou a viver em casa da irmã. Na mesma casa vivia também uma cunhada, e Paul veio a descobrir que a tal rapariga, a Louie Travers, era agora a amante de Dawes. Era uma atrevida bonitona e insolente, que escarnecia do rapaz, mas que se empolgava toda se ele a acompanhava à estação.

A vez seguinte em que Paul foi visitar Miriam era um sábado à tarde. Ela tinha a lareira acesa na sala de visitas e estava à espera dele. Os outros tinham saído, com excepção dos pais e dos irmãos mais novos, pelo que tinham a sala de visitas só para eles. A sala era comprida, de tectos baixos e aconchegada. Na parede havia três pequenos quadros de Paul e o seu retrato estava pousado ao canto da lareira. Em cima da mesa e em cima do piano de pau-rosa, estavam jarras com folhas coloridas. Ele sentou-se na poltrona e ela ajoelhou-se no tapete aos seus pés. A luz da fogueira reflectia-se na sua cara bonita e pensativa.

– O que achaste de Mrs. Dawes? – perguntou Miriam, num tom calmo.

– Não me pareceu muito amistosa – respondeu ele.

– Lá isso não, mas não a achas elegante?

– Sim... no que diz respeito à sua altura. Mas não tem um pingo de bom gosto. Gosto de algumas coisas nela. Ela é sempre assim antipática?

– Penso que não. Penso que não anda satisfeita.

– Com o quê?

– Bem, como é que te sentirias a viver com um homem daqueles?

– Então, porque é que ela casou com ele, sabendo que o ia detestar tão rapidamente?

– Sim, porque é que ela casou com ele? – repetiu Miriam, com aspereza.

– E eu que pensei que ela fosse suficientemente forte para medir forças com ele – disse Paul.

Miriam baixou a cabeça.

– Ah, sim? – perguntou, satiricamente. E o que é que te leva a pensar isso?

– Basta olhar para a boca dela... nascida para a paixão... e a maneira como estica a garganta.

E atirou a cabeça para trás imitando o jeito provocador de Clara.

Miriam baixou ainda mais a cabeça.

– Sim – disse ela.

Fez-se silêncio durante alguns momentos, e Paul pensava em Clara.

– E o que é que te agradou nela? – continuou Miriam.

– Não sei... a pele e a textura da... da... não sei... emana dela uma certa violência... Aprecio-a apenas como artista.

– Pois.

Paul não entendia por que razão Miriam estava ali sentada no chão, meditando de uma forma tão estranha, e isso irritava-o.

– Não gostas mesmo dela, pois não? – perguntou ele à rapariga.

Ela olhou-o com os seus enormes olhos escuros, encantadores.

– Gosto – respondeu.

– Não gostas, não... não podes gostar... muito.

– E pode saber-se porquê? – perguntou ela calmamente.

– Oh, não sei... Talvez gostes dela porque ela odeia os homens.

Esta era provavelmente uma das razões pelas quais ele gostava de Mrs. Dawes, mas isso não lhe tinha ocorrido. Calaram-se. Ele franziu a testa, algo que já se estava a tornar habitual, particularmente quando estava com Miriam. Ela ansiava fazer-lhe desaparecer as rugas da testa, mas tinha medo. Parecia haver um outro homem dentro de Paul Morel, mas que não era o seu.

Algumas bagas vermelhas sobressaíam entre as folhas do vaso. Ele esticou-se e arrancou um raminho.

– Porque será que, se colocares bagas vermelhas no cabelo – disse ele – pareces uma bruxa ou uma sacerdotisa, mas nunca uma libertina.

Ela rasgou um sorriso doloroso, despojado.

– Não sei – disse.

As suas mãos fortes e quentes brincavam alegremente com as bagas.

– Porque não te ris? – disse ele. – Nunca sorris abertamente. Apenas te ris quando algo é estranho ou incongruente, e até isso parece magoar-te.

Miriam baixou a cabeça como se ele a estivesse a admoestar.

– Gostaria muito que sorrisses apenas um minuto para mim... apenas por um minuto. Sinto que isso libertaria alguma coisa dentro de ti.

– Mas... – e olhou-o com uns olhos assustados e lutadores. – ... Mas eu rio-me... sim, eu rio-me.

– Mentira, nunca te ris. Só se for por algo de muito intenso. Sempre que te ris, apetece-me chorar; parece que o teu riso transmite sofrimento. Oh, só de pensar nisso, fazes com que eu enrugue a minha alma.

– Não é minha intenção fazê-lo – disse.

– Eu sou sempre tão espiritual contigo – exclamou ele.

Ela manteve-se em silêncio, a pensar: «Então porque não és de outra forma?» E ele olhou para o seu corpo dobrado, em meditação, e pareceu dividi-lo em dois.

– Estamos no Outono – disse ele – e todas as pessoas libertam o seu espírito.

Caiu novamente o silêncio. Este estranho desentendimento entre eles despedaçava a alma de Miriam. Ele parecia tão bonito, com os seus olhos escuros e um olhar tão profundo como a nascente mais funda.

– Tornas-me tão espiritual – lamentou-se ele. – E eu não quero ser espiritual.

Ela retirou o dedo da boca com um pequeno estalido, e olhou-o em tom provocador. Mas a sua alma continuava nua nos seus olhos grandes e castanhos e o mesmo desejo ardente dominava-a. Se isso fosse possível, ele tê-la-ia beijado na pureza da abstracção. Mas ele não a podia beijar assim... e ela não parecia dar-lhe qualquer outra alternativa. E, no entanto, desejava-o.

Paul sorriu.

– Bem – disse ele –, vamos lá estudar francês... vamos ler Verlaine.

– Sim – disse ela num tom profundo, quase de resignação. Levantou-se e foi buscar os livros. As suas mãos avermelhadas e nervosas metiam dó; como ele desejava confortá-la e beijá-la!! Mas não se atrevia... ou não podia. Algo o impedia. Os seus beijos eram para ela reprováveis. Continuaram a ler até às dez horas, e depois foram para a cozinha; Paul mostrava-se de novo alegre e natural para com os pais de Miriam. Os seus olhos eram escuros e brilhantes e envolvia-o uma aura de fascinação.

Quando foi buscar a bicicleta ao celeiro descobriu que o pneu dianteiro estava furado.

– Vai-me buscar uma tigela com uma pinguinha de água – pediu ele a Miriam. – Vou chegar tarde e já sei que vou ouvir um sermão.

Acendeu a lanterna à prova do vento, despiu o casaco, virou a bicicleta ao contrário e meteu mãos à obra rapidamente. Miriam trouxe-lhe a tigela com água e ficou junto dele, observando-o. Adorava ver as mãos dele em acção. Era elegante e forte, e até os seus movimentos mais rápidos eram feitos com desembaraço. Ocupado como estava, parecia tê-la esquecido. Mas ela amava-o de uma forma absorvente, desejava poder passar as mãos ao longo do seu corpo. Sempre desejara abraçá-lo, desde que ele não a quisesse.

– Já está – disse Paul, levantando-se de repente. – Mais rápido não podia ser!

– Lá isso é verdade! – concordou ela, sorrindo.

Paul endireitou-se. Estava de costas para Miriam. Ela colocou as mãos nas ancas dele, fazendo-as deslizar rapidamente ao longo das pernas.

– És tão elegante! – disse ela.

Ele sorriu. Detestava o tom da voz dela, mas o sangue incendiou-se-lhe ao sentir o contacto das mãos. Ela, pelo contrário, parecia nem dar por ele. Era como se ele fosse um objecto, como se não se apercebesse do homem que ali estava.

Paul acendeu a luz da bicicleta, experimentou-a, bateu com ela no chão do celeiro para verificar o som dos pneus, e apertou o casaco.

– Tudo em ordem! – disse ele.

Ela experimentou os travões, pois sabia que estavam avariados.

– Já os arranjaste? – perguntou ela.

– Não!

– E porque não?

– O travão traseiro funciona mais ou menos.

– Mas não é seguro.

– Posso travar com o pé.

– Era melhor que os tivesses arranjado – murmurou ela.

– Não te preocupes... Amanhã vem tomar chá a minha casa e traz o Edgar.

– A sério?

– A sério... Por volta das quatro... Vou ter convosco.

– Combinado!

Ela estava feliz. Atravessaram o pátio às escuras até ao portão. Olhando em frente, Paul viu as cabeças de Mr. e Mrs. Leivers atrás da vidraça sem cortinas da cozinha, iluminadas pelo fulgor da lareira. O ambiente parecia muito aconchegado. À sua frente, a estrada ladeada de pinheiros abria-se escura.

– Até amanhã – disse ele, montando na bicicleta.

– Vais ter cuidado, não vais? – recomendou ela, como quem pede.

– Vou.

A voz dele soou já da escuridão. Ela deixou-se ficar mais uns instantes a ver a lanterna afastar-se e entrar na noite. Depois, voltou lentamente para casa. Orion elevava-se por cima da floresta, seguida do seu cão cintilante, meio apagado. Fora essa luz, o mundo estava mergulhado na mais densa escuridão e no silêncio, quebrado apenas pelo resfolegar do gado nos estábulos. E ela rezou com devoção pela segurança dele nessa noite. Quando ele a deixava, ficava sempre num estado de extrema ansiedade, imaginando se ele teria chegado bem a casa.

Paul deixava a bicicleta embalar pelas encostas abaixo. As estradas eram escorregadias e ele não podia meter travões. Era um prazer quando a bicicleta se precipitava pelo declive mais íngreme da colina. «Cá vou eu!», dizia ele. Era arriscado por causa da curva completamente às cegas à chegada ao vale, e das carroças dos cervejeiros com os carroceiros bêbados, a dormir. A bicicleta parecia desintegrar-se debaixo dele e Paul adorava a sensação. O descuido é a vingança de um homem sobre a mulher. Sentindo que não é devidamente apreciado, arrisca a sua própria destruição, para que ela sinta a sua falta.

Ao passar veloz pelo lago, as estrelas reflectidas na água pareciam saltar da escuridão como gafanhotos prateados. Depois surgia a longa subida até casa.

– Olha, mãe! – disse ele, atirando as bagas e as folhas para cima da mesa.

– Hum! – fez ela, olhando para a mesa e desviando o olhar. Como sempre, estava sozinha, sentada a ler.

– Não são bonitas?

– São.

Ele sabia que a mãe estava aborrecida. Passados alguns minutos disse:

– O Edgar e a Miriam vêm cá tomar chá amanhã.

A mãe não respondeu.

– Não se importa?

Ela continuou sem responder.

– Então importa-se? – perguntou ele.

– Sabes bem se me importo ou não.

– Não vejo porque se há-de importar... eu como lá tantas vezes...

– Pois comes.

– Então porque lhes recusa um chá?

– A quem é que eu recuso um chá?

– Porque é que a mãe é sempre tão difícil?

– Pronto, não digas mais nada! Convidaste-a para o chá, e isso já é o suficiente. Ela não falta.

Paul ficou muito aborrecido com a mãe. Sabia que ela não gostava de Miriam. Atirou com as botas e foi deitar-se.

Paul foi abrir a porta aos amigos no dia seguinte. Estava feliz de os ver chegar. Vieram por volta das quatro horas. Tudo estava sereno e calmo para domingo à tarde. Mrs. Morel estava sentada, com o seu vestido preto e o avental branco, mas levantou-se para receber as visitas. Foi cordial com Edgar, mas fria e muito esquiva com Miriam. Todavia, Paul achava que a rapariga estava bem bonita no seu vestido castanho de caxemira.

Ajudou a mãe a preparar o chá. Miriam ter-se-ia oferecido de agrado para ajudar, mas tinha receio. Paul tinha muito orgulho da sua casa. Havia nela uma certa distinção, pensava ele. As cadeiras eram simples, de madeira, e o sofá já velho. Mas o tapete e as almofadas eram aconchegantes; os quadros eram gravuras de bom gosto; a simplicidade dominava e havia muitos livros. Nem ele nem Miriam se envergonhavam das casas que tinham, pois eram tudo aquilo que deviam ser, e ainda acolhedoras. Então na mesa tinha grande orgulho; o serviço de chá era bonito e a toalha fina; pouco importava que as colheres não fossem de prata e nem o cabo das facas de marfim; tudo estava bonito. Mrs. Morel tinha cuidado maravilhosamente de tudo enquanto os filhos cresceram. Assim, nada se encontrava fora do lugar.

Miriam falou um pouco de livros, pois era um assunto que dominava bem. Mas Mrs. Morel não se mostrou interessada, virando-se rapidamente para Edgar.

A princípio, quando Edgar e Miriam iam à igreja, sentavam-se no banco de Mrs. Morel. Morel nunca lá ia, pois preferia a taberna. Mrs. Morel, arvorando-se em chefe da família, sentava-se numa extremidade do banco e Paul na outra extremidade; a princípio, Miriam sentava-se ao lado dele. A capela lembrava a Paul a sua casa. Era um lugar bonito, com bancos escuros e pilares estreitos e elegantes, e com muitas, muitas flores. As mesmas pessoas sentavam-se sempre nos mesmos lugares desde que ele era menino. Era bastante agradável e reconfortante estar ali sentado durante uma hora e meia, ao lado de Miriam e perto da mãe, unindo os seus dois amores sob o fascínio daquele local de culto. Sentia-se a um tempo entusiasmado, feliz e religioso. Terminada a missa, acompanhava Miriam a casa, enquanto Mrs. Morel passava o resto da tarde com a sua velha amiga Mrs. Burns. Sentia-se verdadeiramente vivo durante os passeios que dava ao domingo pela tardinha com Edgar e Miriam. Sempre que passava de noite pelas minas, pelo depósito das lanternas, todo iluminado, pelas torres altas e negras e pelas filas de vagões parados em frente das ventoinhas que giravam lentamente na escuridão, tinha a sensação intensa e quase insuportável de que Miriam voltaria para si.

Mas Miriam não ocupou por muito tempo o banco da família Morel, pois o pai arranjou novamente um outro banco. Ficava mesmo por baixo da pequena galeria, em frente ao banco dos Morels. Quando Paul e a mãe chegavam à capela, o banco dos Leivers estava sempre vazio. Ele receava que não viessem: a capela ficava muito longe e eram muitos os domingos chuvosos. Mas a dado momento, quase sempre atrasada, Miriam chegava com o seu passo amplo, cabeça baixa e face oculta pelo chapéu de veludo verde-escuro. Visto sentar-se do lado oposto, a sua cara ficava sempre na sombra, o que até o fazia sentir-se bem, pois ao vê-la ali à sua frente era como se a alma se lhe agitasse dentro do corpo. Não era o mesmo calor, a mesma alegria e o mesmo orgulho que sentia ao ter a mãe a seu lado, como chefe: era algo mais maravilhoso ainda, menos humano, um sentimento intenso temperado pela dor, algo que ele sabia que não podia alcançar.

Foi nesta altura que começou a pôr em questão a doutrina ortodoxa. Ele tinha vinte e um anos e ela vinte. Miriam receava a chegada da Primavera: ele tornava-se agressivo e magoava-a muito. Tudo o que mais queria era destruir cruelmente as crenças dela. Edgar, crítico por natureza e sem sentimentos, gostava desta situação. Mas Miriam sofria amargamente, pois o homem que amava possuía uma inteligência cortante que dissecava a religião em que ela fora criada e se movimentava, e onde habitava o seu Eu. Mas ele não a poupava e mostrava-se muito cruel. Quando estavam sozinhos, tornava-se ainda mais violento, como se quisesse matar-lhe a alma, explorando as suas crenças até ela quase perder a consciência.

– Ela regozija-se... regozija-se quando afasta o meu filho de mim – gritava Mrs. Morel do fundo do coração, quando Paul saía de casa. – Ela não é como qualquer mulher comum, que permite que eu faça parte do meu filho. Ela quer absorvê-lo. Quer tirar-mo e absorvê-lo, até que nada reste dele, nem sequer para ele próprio. Assim, ele nunca será senhor de si... ela irá sugá-lo completamente. – E Mrs. Morel sentava-se, debatendo pressentimentos e meditando tristemente.

Quando regressava dos seus passeios com Miriam, Paul vinha trespassado de sofrimento. Caminhava com passo apressado, mordendo os lábios e cerrando os punhos. Quando chegava a uma cerca, parava por alguns minutos, imobilizado. À sua frente estendia-se a escuridão sem fim; as negras encostas salpicavam-se de florescências luminosas; e, nos recônditos da noite, brilhava o clarão da mina. Tudo era estranho e ameaçador. Porque estava ele tão dilacerado, quase em êxtase, incapaz de se mover? Porque estava a mãe sentada em casa a sofrer? E sabia que ela sofria bastante. Mas porquê? E porque detestava ele Miriam e era tão cruel para ela, quando pensava na mãe? Já que Miriam fazia a mãe sofrer, ele tinha de a detestar. E com facilidade a detestava. Porque o levava ela a duvidar de si próprio, deixando-o inseguro, indefinido, como se não pudesse evitar que a noite e o espaço caíssem sobre ele? Como ele a odiava! Mas logo um ímpeto de ternura e humilhação o envolvia.

De repente, precipitava-se para casa a correr. A mãe reconhecia nele as marcas da agonia, mas nada dizia. Ele, porém, tinha de obrigá-la a falar, pois via-a zangada por ele ter ido passear com Miriam para tão longe.

– Porque é que não gosta dela, mãe? – gritou ele um dia, desesperado.

– Não sei, meu filho – respondeu ela num tom comovente. – Já tentei gostar, tentei com todas as minhas forças... mas não consigo... não consigo...

E, entre ambas, ele sentia-se triste e sem esperanças. A Primavera era a pior das estações. Ele ficava instável, enérgico e cruel. Assim, decidiu afastar-se dela. Surgiam então as horas a que ele sabia que Miriam o esperava, e a mãe apercebia-se da sua impaciência. Paul não conseguia progredir no seu trabalho, não conseguia fazer nada. Era como se algo transportasse a sua alma até Willey Farm. De repente, punha o chapéu e saía sem dizer nada. E a mãe sabia que ele tinha partido. Assim que se punha a caminho respirava de alívio. Mas, mal chegava ao pé de Miriam, tornava-se novamente cruel.

Certo dia, em Março, estava Paul deitado nas margens do lago Nethermere, com Miriam sentada a seu lado. Estava um dia resplandecente, branco e azul. Nuvens grandes e brilhantes passavam altas, e as suas sombras moviam-se silenciosas sobre a água. Os espaços abertos no céu tinham um tom glacial de azul. Paul estava deitado de costas sobre a relva, olhando o céu. Não conseguia olhar para Miriam. Ela parecia desejá-lo e ele resistia. Resistia sempre. Ela queria dar-lhe a sua paixão, a sua ternura, mas não era capaz. Ele sentia que ela não o queria; que apenas queria a sua alma. Miriam retirava-lhe as forças e a energia através de um canal que os unia. Ela não queria o corpo dele, pois nesse caso seria apenas duas pessoas, homem e mulher, em comunhão. Queria absorvê-lo completamente. E ele sentia-se estimulado por um impulso quase de loucura, que o fascinava, com um fascínio de droga.

Ele falava sobre Miguel Angelo. Ao escutá-lo, ela sentia que tocava o protoplasma da vida, as próprias células palpitantes, e a sua satisfação era plena. Mas, no final, isso assustava-a. Ali estava ele deitado, na intensidade imaculada da procura, e a sua voz amedrontava-a num crescendo, levando-a quase a tocar as raias do inumano, como se num transe.

– Não digas mais nada – pediu Miriam, com ternura, pousando a mão na testa dele. Ele permanecia estático, incapaz de se mover. O seu corpo estava de algum modo abandonado.

– Porquê... estás cansada?

– Estou, e tu também vais ficar.

Ele deu uma pequena gargalhada, apercebendo-se da situação.

– Contudo, sabe-me bem – disse ele.

– Mas não é essa a minha intenção – disse ela, muito baixinho.

– Não quando já foste longe de mais e sentes que já não és capaz de te dominar. Mas o teu eu inconsciente clama por isso. E eu suponho que também quero o mesmo.

– Então como posso evitá-lo?

– Penso que não podes, pois tu fazes sempre o mesmo. Desligas-me algures e retiras-me de mim próprio. Sinto-me como um fantasma, sem corpo.

– Não! – implorou ela.

– Agora mesmo, neste momento, olho para as minhas mãos e pergunto-me o que estão elas ali a fazer. Aquela água, por exemplo, ondula através de mim. Eu sou a ondulação. Corre através de mim e eu através dela. Não há barreiras entre nós.

– Mas...! – E Miriam hesitou.

– O que resta de mim é apenas uma consciência disseminada. Sinto que o meu corpo está deitado aqui, vazio, como se eu estivesse dentro de outras coisas... das nuvens e da água...

Ela olhou para ele e reparou naquele olhar tão estranho, como se ele fosse uma coisa e não uma pessoa, o que a fascinava tanto, mas que tanto receava. E era precisamente esse receio que a impelia a ter muito mais. Mas, agora, queria que ele parasse.

– Sabes – prosseguiu – o meu eu físico está liberto. Mas, se assim for, então eu não estou vivo. Tenho a certeza de que me destruiria. O que tu queres é pores-me gordo e banal, e não uma sombra. Queres fechar bem a minha alma dentro da sua bainha. Mas ela um destes dias libertava-se, tal como a espada que se libertou de uma bainha lassa e caiu ao mar.

Miriam meditava tristemente. Nisto, levantou a cabeça e olhou-o com os olhos muito brilhantes.

– Então deixa-me ser a tua protecção – disse ela.

E estendeu as mãos para as dele.

– Se tu pudesses... – disse ele. – Mas tu és aquilo que o teu eu inconsciente te impõe, e não aquilo que queres ser. Nenhum de nós dois é completamente normal... porém, agora eu quero sê-lo, mas penso que tu não queres. Tu queres ser algo fora do comum.

– Não, não quero – exclamou ela. Mas havia medo na sua voz.

– De qualquer forma – continuou Paul, num tom apático –, isso agora não é possível. Não me podes ter dessa maneira. Neste momento eu e tu somos apenas almas desprovidas de sangue. E isso provocaria uma vibração diferente, que se entrechocaria com este estado actual numa verdadeira tortura... Se ao menos pudesses querer-me, e não apenas quereres aquilo que eu tenho para te papaguear.

– Eu! – exclamou Miriam num tom áspero. – Eu! Quando é que eu te posso ter?

– Então a culpa é minha – disse ele, e juntando as partes dispersas do seu eu, levantou-se e começou a falar de coisas triviais. Sentia-se irreal. De uma forma vaga, detestava-a por isso. Sabia que era ele o culpado e, no entanto, isso não o impedia de a odiar.

Certa noite, na mesma época, em que Paul tinha ido levar Miriam a casa, pararam perto do prado que se estendia até à floresta, incapazes de se separarem. Assim que as estrelas surgiram, as nuvens desapareceram e eles captaram fugazmente a sua Orion, que se dirigia para oeste. As jóias de Orion brilharam por um breve instante, com o seu cão correndo rasteiro, lutando com dificuldade para atravessar a espuma de uma nuvem.

Orion era para eles a constelação mais carregada de significado. Era nela que os seus olhos se haviam fixado nos momentos mais estranhos e intensos, até sentirem que viviam em cada uma das suas estrelas. Nessa noite, Paul mostrava-se taciturno e perverso. Orion parecia-lhe apenas uma constelação, nada mais. Lutava contra o seu brilho, o seu fascínio. Miriam observava atentamente a disposição do seu amado, mas ele nada disse que o comprometesse até ao momento da partida, quando, de testa franzida, ficou parado a olhar tristemente para o castelo de nuvens, por detrás do qual a grande constelação estaria ainda a transitar.

No dia seguinte havia uma pequena festa em casa dele, para a qual Miriam estava convidada.

– Não posso vir buscar-te – disse ele.

– Não faz mal... O tempo também não está dos melhores para andar na rua... – respondeu ela serenamente.

– Não é isso... eles é que não gostam que eu venha. Dizem que me preocupo mais contigo do que com eles. E tu compreendes, não é verdade?... Tu sabes que entre nós existe apenas amizade.

Miriam ficou perplexa e com pena dele. Como lhe devia ter custado dizer aquelas palavras. Deixou-o, para lhe poupar outra humilhação. Uma chuva fina batia-lhe no rosto enquanto caminhava. Estava profundamente magoada e desprezava-o por ele se deixar levar pelo mais leve sopro de autoridade. No fundo do seu coração, sentia inconscientemente que ele tentava afastar-se dela, mas como jamais teria a coragem de o admitir, sentia pena dele.

Por esta altura, Paul tornou-se num elemento imprescindível do armazém da Jordan. Mr. Pappleworth saiu para se estabelecer por conta própria e Paul passou a supervisor da Espiral. Se tudo corresse bem, o seu salário seria aumentado para trinta xelins no final do ano.

Miriam vinha quase todas as sextas-feiras à noite para a lição de francês. Paul já não ia tão amiúde a Willey Farm, e ela receava que a sua aprendizagem estivesse prestes a terminar; por outro lado, e apesar das discórdias, gostavam de estar um com o outro. Liam Balzac, escreviam composições e sentiam-se bastante cultos.

A noite de sexta-feira era a noite de pagamento para os mineiros. Morel «repartia o bolo», ou seja, dividia os lucros da empreitada, quer no New Inn, em Bretty, quer na sua própria casa, conforme os seus companheiros preferissem. Barker tinha deixado de beber, e agora os homens «dividiam o bolo» em casa de Morel.

Annie, que tinha estado a dar aulas longe dali, regressara de novo a casa. Era ainda uma rapariga endiabrada. Estava noiva e ia casar. Paul andava a estudar desenho.

Morel estava sempre bem-disposto às sextas-feiras à noite, a não ser que os ganhos dessa semana fossem escassos. Depois do jantar, entregava-se a longos preparativos para se lavar. A decência exigia que as mulheres se ausentassem durante as reuniões masculinas. As mulheres não deviam assistir à reunião dos sócios, que era considerada assunto estritamente masculino... e nem deviam ficar a saber qual o montante exacto dos ganhos semanais. Assim, enquanto o pai barafustava na cozinha, Annie saiu e foi por uma hora para casa da vizinha, e Mrs. Morel foi à cozinha ver se o pão já estava cozido.

– Fecha a porta! – berrou Morel, furioso.

Annie bateu com a porta e saiu.

– S’ela torna a abrir a porta enquant’eu tou a tomar banho, amando-lh’um murro que lhe parto os queixos – berrou ele, ameaçador, por entre a espuma do sabão. Paul e a mãe franziram as sobrancelhas ao ouvi-lo.

Logo depois, saiu da cozinha, tremendo de frio e pingando o chão todo de água ensaboada.

– Oh, cos diabos! – disse ele. – Onde está a minha toalha?

Estava pousada numa cadeira, frente à lareira, para aquecer, pois, se assim não fosse, ele teria feito um grande estardalhaço. Aninhou-se sobre os calcanhares frente ao lume vivo, para secar.

– Brrrr... – continuou, fingindo tremer de frio.

– Ó homem, não sejas criança! – disse Mrs. Morel. – Não está frio nenhum.

– Exprimenta despires-te e tomares banho naquela cozinha – disse o mineiro, enxugando o cabelo. – Mas que gelo de casa!

– Eu não faria com certeza tanto alarido – respondeu a mulher.

– Ah, poi não. Caías redonda no chão que nem uma pedra.

– Porque é que uma pedra há-de ser mais redonda do que outra coisa qualquer? – perguntou Paul curioso.

– Essa agora... sei lá... é o que se diz – argumentou o pai. – Nesta tua cozinha há muitas correntes de ar, e quando ele passa através das costelas parece vento a passar por uma cancela de cinco traves.

– Sempre teria alguma dificuldade em passar através das tuas costelas – disse Mrs. Morel.

Morel olhou desanimado para ambos os lados do seu corpo.

– Eu! – exclamou. – Eu cá num tenho pele de coelho. Os meus ossos vêem-se no meu corpo!

– Gostaria de saber onde – retorquiu a mulher.

– Por todo o lado! Mas também num sou nenhuma carga de ossos.

Mrs. Morel deu uma gargalhada. Ele tinha um corpo ainda belo, jovem e musculado, sem gorduras. A pele era macia e clara. Poderia bem ser o corpo de um homem com vinte e oito anos, se não fossem as várias cicatrizes azuladas, semelhantes a tatuagens, onde o pó do carvão se tinha alojado, e o seu peito peludo. Morel pôs as mãos nos quadris, desanimado. Acreditava piamente que, por não engordar, era magro como um rato esfomeado.

Paul olhou para as mãos do pai, calejadas, escuras, cobertas de cicatrizes e com as unhas partidas, a esfregarem a maciez do seu corpo, e ficou admirado, pois parecia-lhe estranho serem feitas da mesma carne.

– Suponho – disse, virando-se para o pai – que antigamente tinha uma bela figura.

– Eh, olha lá o que dizes! – exclamou o mineiro, olhando em volta, espantado e tímido, como uma criança.

– Tinha uma bela figura, sim senhor! – exclamou Mrs. Morel. – O pior foi ele andar sempre aos encontrões a tudo, como se quisesse meter-se no buraco mais pequeno que encontrava.

– Eu? – exclamou Morel. – Eu, uma bela figura! Nunca passei de um esqueleto.

– Credo, homem! – gritou a mulher. – Não sejas tão piegas!

– É ve’dade – disse ele. – Tu nunca me viste qu’eu não parecesse qu’emagrecia de dia pra dia.

Mrs. Morel sentou-se e deu uma gargalhada.

– Tens um corpo de ferro – disse ela. – No tocante ao corpo, nunca nenhum homem te levou a melhor. Devias ter visto o teu pai em novo... – exclamou, de repente, virando-se para Paul e empertigando-se, para imitar a postura outrora garbosa do marido. Morel observava-a, envergonhado. Viu novamente a paixão que ela sentia por ele, e que brilhou durante alguns momentos à volta dela. Ele era tímido, assustadiço e humilde. Agora, porém, sentia de novo a velha força de outros tempos. Mas imediatamente sentiu na carne os estragos praticados ao longo de todos estes anos e só queria desaparecer, fugir de tudo.

– Lava-me as costas – pediu ele à mulher.

Ela trouxe uma toalha ensopada e ensaboada e colocou-lha sobre os ombros. Ele deu um salto.

– Oh, desgraçada! – berrou ele. – Tá gelada como a morte!

– Devias ter nascido salamandra – disse ela a rir, lavando-lhe as costas. Só raramente o ajudava nestas tarefas tão pessoais. Geralmente, eram os filhos quem fazia este tipo de coisas.

– O outro mundo não vai ser suficientemente quente para ti – acrescentou ela.

– Poi não – disse ele. – Tu vais fazer com que sopre uma aragem pra m’arrefecer.

Mas ela já tinha terminado. Enxugou-o rapidamente e subiu ao primeiro-andar, regressando em seguida com um par de calças limpas. Assim que se secou, Morel vestiu a camisola. Depois, rosado e luzidio, com o cabelo em pé e a camisola de flanela vestida por cima das calças de mineiro, aqueceu as ceroulas que ia vestir a seguir. Virou-as, pô-las do avesso e ressequiu-as.

– Oh, homem, veste-te! – exclamou Mrs. Morel.

– Queria ver se gostavas de vestir uma roupa tão fria como a água da banheira – disse ele.

Por fim, despiu as calças e vestiu-se condignamente de preto. Fez tudo isto em cima do tapete da lareira, e teria feito o mesmo se Annie e os amigos íntimos estivessem presentes.

Mrs. Morel virou o pão no forno. Depois, retirou uma mão-cheia de massa do alguidar de barro, que se encontrava a um canto da cozinha; trabalhou a massa dando-lhe a forma adequada e meteu-a numa tigela. Enquanto fazia isto, Barker bateu à porta e entrou. Era um homem baixo, compacto e calmo, que parecia capaz de atravessar um muro de pedra. O cabelo era preto e curto e a cara bem-parecida. Tal como a maioria dos mineiros, era pálido, mas saudável e rijo.

– Boa noite, ‘nha senhora – disse o homem, curvando a cabeça e sentando-se, com um suspiro.

– Boa noite – respondeu ela, cordialmente.

– Fizeste ranger os tacões – disse Morel.

– Num dei por nada – disse Barker.

Retraído, sentou-se num dos bancos da cozinha, como os colegas normalmente faziam.

– Como está a sua senhora? – perguntou-lhe Mrs. Morel. Há algum tempo, ele tinha-lhe dito: «Sabe, estamos à espera do terceiro...»

– Bem – respondeu ele, coçando a cabeça –, penso que está tão boa quanto o possível.

– Ora deixa cá ver... para quando é? – perguntou Mrs. Morel.

– Bem... penso que está para chegar a qualquer momento...

– Ah, sim? E tem passado bem?

– Sim... tudo em ordem.

– É um milagre, pois ela não é muito forte.

– É verdade. ... E eu fiz outra asneira.

– O que foi?

Mrs. Morel sabia que Barker não teria feito nada de muito errado.

– Não consegui dar co’a alcofa das compras.

– Pode levar a minha.

– Não... óspois vossemecê pode precisar.

– Não preciso, não. Levo sempre um saco de rede.

Todas as sextas-feiras à noite, Mrs. Morel via o mineiro, baixo e desembaraçado, a comprar os legumes e a carne para toda a semana, e sentia grande admiração por ele.

– O Barker pode ser baixo, mas é dez vezes mais homem do que tu – tinha dito ela ao marido.

Nisto, entrou Nessen. Apesar de pai de sete filhos, era magro, muito frágil, com uma ingenuidade de adolescente e um sorriso levemente matreiro. Mas a mulher dele era uma mulher apaixonada.

– Estou a ver que me batest’òs pontos – disse, sorrindo sem brilho.

– Pois foi – respondeu Barker.

O recém-chegado tirou o boné e o grosso cachecol de lã. Tinha um nariz pontiagudo e vermelho.

– É capaz de ter frio, Mr. Wesson – disse Mrs. Morel.

– Aqui tá um bocado de frio – respondeu.

– Então aproxime-se do lume.

– Não, tou bem aqui.

Os dois mineiros sentaram-se um pouco mais arredados. Não queriam ficar em cima do tapete da lareira, pois esse lugar era sagrado para a família.

– Senta-te no cadeirão – exclamou Morel, alegremente.

– Não, obrigado. Tou muito bem aqui.

– Ora essa, chegue-se para aqui – insistiu Mrs. Morel.

O homem levantou-se e, avançando desajeitadamente, sentou-se no cadeirão de Morel, envergonhado. Era tomar demasiada confiança. Mas estar ao pé do lume deixava-o muito feliz.

– E então como está o seu peito? – perguntou Mrs. Morel.

Ele sorriu novamente, com uns olhos azuis muito brilhantes.

– Ora, vai indo! – disse ele.

– Como um chocalho – atalhou Barker.

– T..t..t..t – fez Mrs. Morel com a língua. – Já mandou fazer a camisa de flanela?

– Ainda não – disse ele sorrindo.

– E porque não? – perguntou ela.

– Lá chegará o dia... – disse ele, sorrindo.

– Ah, o dia de São Nunca, estou a ver – exclamou Barker.

Barker e Morel preocupavam-se com Wesson, pois fisicamente eram ambos fortes que nem touros.

Quando Morel estava quase pronto, entregou o saco do dinheiro a Paul.

– Contó lá, rapaz – pediu com humildade.

Impaciente, Paul abandonou os livros e os lápis e despejou o saco para cima da mesa. Continha cinco libras em moedas de prata, várias moedas de vinte xelins e alguns trocados. Paul contou o dinheiro rapidamente, incluindo os cheques e os papéis com os totais do carvão, e pôs as moedas por ordem. Então Barker deu uma olhadela aos cheques.

Mrs. Morel subiu ao primeiro andar e os três homens sentaram-se à mesa. Morel, como dono da casa, sentou-se no seu cadeirão com as costas viradas para a lareira. Os outros dois sentaram-se em cadeiras frias. Nenhum deles contou o dinheiro.

– Quant’é que dissemos qu’era prò Simpson? – perguntou Morel. E, durante um minuto, discutiram os ganhos diários do companheiro, sendo o valor respectivo posto de lado em seguida.

– E quant’é prò Bill Naylor?

Também este valor foi retirado do saco.

E então, visto que Wesson vivia numa casa da companhia e a renda já tinha sido deduzida, Morel e Barker retiraram quatro xelins e seis dinheiros cada um. E, para compensar o carvão que Morel já tinha trazido, Barker e Wesson receberam mais quatro xelins cada. Depois, a distribuição foi simples: Morel deu a cada um uma moeda de vinte xelins, até não restar nenhuma; mais meia coroa a cada um, até não restarem mais; e ainda uma moeda de um xelim, até acabarem. Se no fim restasse alguma coisa que não pudesse ser dividida, Morel guardava esse dinheiro para pagar uma rodada de cerveja.

Finalmente, os três homens levantaram-se e saíram. Morel tratou de se escapar antes de a mulher descer. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu. Deu uma olhadela rápida ao pão que tinha no forno e, olhando para a mesa, viu o seu dinheiro. Paul tinha estado sempre embrenhado no trabalho. Mas agora apercebia-se de que a mãe, ao contar a semanada, se enfurecia.

– T..t..t – era o barulho que ela fazia com a língua.

Paul franziu a testa. Não conseguia trabalhar quando a via aborrecida. Mrs. Morel contou novamente o dinheiro.

– Uns míseros vinte e cinco xelins! – exclamou ela. – Qual era o valor do cheque?

– Dez libras e onze xelins – disse Paul, irritado. Ele receava o que estava para vir.

– E esta semana ele dá-me uma porcaria de vinte e cinco xelins, e ainda tenho de tirar o dinheiro para o clube. Eu bem o conheço... Pensa que por tu ganhares, já não precisa de sustentar a casa. Ele que coma o dinheiro, se quiser. Mas eu digo-lhe como é...

– Oh, mãe, não... – exclamou Paul.

– Não, o quê, posso saber? – disse ela.

– Não reaja assim... senão não consigo trabalhar.

Ela continuou, mas já um pouco mais calma.

– Pronto, está certo – disse ela. – Mas como é que pensas que me vou governar?

– Eu sei, mas não adianta nada piorar a situação.

– Gostava de saber o que é que farias se tivesses de aturar isto?

– Já não será por muito tempo... Vai ter o meu dinheiro não tarda, e ele que vá para o diabo.

Retomou o trabalho, e ela apertou as fitas do chapéu com desalento.

O filho não suportava vê-la assim, quando ela estava zangada. Todavia, começava agora a tentar dar-lhe isso a perceber.

– Os dois pães do tabuleiro de cima estão prontos dentro de vinte minutos – disse Mrs. Morel. – Não te esqueças.

– Está bem – respondeu ele, e Mrs. Morel saiu para o mercado.

Paul ficou sozinho a trabalhar. Mas a sua habitual concentração estava perturbada. Ouviu bater a cancela do pátio. Cerca das sete e um quarto, bateram ao de leve na porta e Miriam entrou.

– Estás sozinho? – perguntou.

– Estou.

Como se estivesse na sua própria casa, tirou a boina escocesa e o casaco comprido e pendurou-os. Ele sentiu uma tremura. Esta podia ser a casa deles, dele e dela.

Miriam aproximou-se e espreitou o que ele estava a fazer.

– O que é? – perguntou.

– Uma natureza morta... para decorar objectos e bordados.

Ela inclinou-se mais, aproximando os olhos míopes do desenho.

– E gostas do que fazes? – inquiriu.

– Adoro. Neste momento ando em maré de convencionalizar tudo.

– Ah...

Miriam não se interessava por estudos convencionais, mas reconhecia que ele devia saber mais do que ela sobre tais coisas. Eram coisas de homens, coisas que não lhe diziam respeito. No entanto, havia de descobrir a razão por que ele andava, como dizia, em maré de convencionalizar tudo. Que fascínio poderia ter para ele o convencional?

– O que é que te faz gostar disto? – perguntou ela, intrigada.

Ele, como já era seu hábito, procurou justificar-se. Lutando com as palavras, tentou explicar-lhe a teoria de que a força de gravitação é o agente mais poderoso, o factor responsável pela forma das coisas, e que, se pudesse agir em completa liberdade, apareceria uma rosa geometricamente correcta nas linhas e nas proporções... e assim por diante. Isto fez desabrochar nela um certo conceito de desenho convencional que até aí lhe parecia ser pura mentira. Por fim, ele empurrou os livros para o lado.

– Posso...? – disse ele, ansioso e hesitante.

– Podes o quê?

– Mostrar-te isto... Não era minha intenção enquanto não estivesse pronto.

Paul não conseguia esconder-lhe nada do que fazia. Foi à sala e voltou com uma trouxa de linho cru. Desembrulhou-a cautelosamente e estendeu-a no chão. Era um cortinado, ou melhor, um portière, magnificamente decorado com rosas, estampadas a stencil.

– Ah, que bonito! – exclamou ela.

O tecido espraiou-se aos pés dela, com as suas maravilhosas rosas em tons rubros e caules em verde-escuro, tudo muito simples, mas com um não sei quê de perverso. Ela ajoelhou-se, deixando pender soltos os caracóis. Ele, ao vê-la assim, voluptuosamente debruçada sobre a sua obra, sentiu bater mais depressa o coração. De repente, ela ergueu os olhos para ele.

– Porque é que isto parece tão cruel? – perguntou.

– O quê?

– Parece haver neste padrão uma certa crueldade – disse ela.

– Haja ou não haja, a mim parece-me óptimo – replicou ele, dobrando o trabalho com mãos de amante. Ela levantou-se devagar, pensativa.

– Que vais fazer com isto? – perguntou ela.

– Mandá-lo para os armazéns Liberty. Fi-lo para a minha mãe... mas acho que ela prefere o dinheiro.

– Estou a ver... – disse Miriam. Havia na voz dele um travo de amargura, e ela ficou com pena. A ela, o dinheiro jamais lhe interessaria.

Paul levou o tecido novamente para a sala, e, quando voltou, atirou a Miriam um retalho mais pequeno. Era a fronha de uma almofada, com um padrão idêntico.

– Fi-la para ti.

Miriam apalpou o trabalho com mãos trémulas, em silêncio. Paul ficou embaraçado.

– Meu Deus, o pão! – gritou ele.

Tirou os pães do tabuleiro superior e bateu-lhes vigorosamente. Já estavam cozidos. Pô-los ao lado da lareira, para arrefecerem. Em seguida, foi à copa, molhou as mãos, retirou do alguidar a massa, muito branca, que ainda restava, e colocou-a dentro de uma forma de pão. Miriam continuava debruçada sobre o tecido pintado. Enquanto isso, Paul esfregava as mãos, esforçando-se por tirar os bocadinhos de massa que se lhe tinham agarrado.

– Gostas? – perguntou ele.

Ela levantou para ele os seus olhos profundos, inflamados de amor. Ele riu-se, contrafeito. Depois começou a falar do seu desenho. Falar com Miriam sobre os trabalhos que fazia era para ele fonte do mais intenso prazer. Punha toda a sua paixão, toda a violência do seu sangue, nestas conversas com ela, em que discutia e concebia as suas obras. Ela fazia-lhe desabrochar a imaginação, embora não entendesse, como nenhuma mulher entende, quando concebe uma criança no seu ventre. Mas isto para ela, sim, era viver. E para ele também.

Enquanto conversavam, uma rapariga que andaria pelos vinte e dois anos, baixa e descorada, de olhos encovados, mas olhar determinado, entrou na sala. Era uma amiga dos Morels.

– Põe-te à vontade – disse Paul.

– Não... não me demoro.

Sentou-se no cadeirão de braços, em frente de Paul e de Miriam, que estavam no sofá. Miriam afastou-se um pouco mais de Paul. A casa estava quente e cheirava a pão acabado de fazer: os pães tostadinhos, a estalar, pousados ao lado da chaminé.

– Não esperava vir encontrar-te hoje aqui, Miriam Leivers – disse Beatrice, maldosa.

– Não sei porquê! – resmungou Miriam, asperamente.

– Porque... Ora deixa lá ver os teus sapatos.

Miriam, constrangida, não se mexeu.

– Se não sabes, não sabes, e pronto – disse Beatrice, dando uma gargalhada.

Miriam tirou os pés de baixo do vestido. As suas botas tinham aquele ar indeciso e patético que evidenciava bem o quanto ela era insegura e complexada. E estavam, além disso, cobertas de lama.

– Santa Maria!... És mêmo um monte de lama! – exclamou Beatrice. – Quem te limp’as botas?

– Limpo-as eu.

– Então não deves ter mai nada que fazer – disse a outra. – Havia de ser preciso muitos homens pra me fazerem vir ‘té’qui esta noite... Mas o amor zomba da lama... não é, ‘Póstolo, meu lindo?

– Inter alia – disse ele.

– Valha-me Deus, não me digas que te vais pôr agora a vomitar línguas estrangeiras!... O qu’é que isso quer dizer, Miriam?

– «Entre outras coisas», julgo eu – disse ela, humildemente. Beatrice riu-se maliciosamente, com a ponta da língua a despontar entre os dentes.

– «Entre outras coisas», ‘Póstolo? – repetiu ela. – Queres tu dizer qu’o amor se ri das mães e dos pais e das irmãs e dos irmãos e dos amigos e das amigas, e se calhar até do próprio ser amado?

Estava a fazer-se de ingénua.

– Na verdade, o amor é um sorriso rasgado – retorquiu ele.

– Isso é qu’era bom, ‘Póstolo Morel... Vai por mim... – disse ela.

E riu-se de novo, com malícia, muito baixinho.

Miriam continuava calada, fechada sobre si mesma. Todas as amigas de Paul adoravam meter-se com ela, e ele deixava-a entregue a si própria, como se aproveitasse para se vingar.

– Ainda continuas na mesma escola? – perguntou Miriam a Beatrice.

– Continuo.

– Então ainda não te mandaram embora?

– Devem mandar na Páscoa.

– Não achas uma pouca-vergonha... mandarem-te embora só por não teres passado no exame?!

– Não sei – ripostou Beatrice, friamente.

– A Agatha diz que és tão boa professora como as outras. A mim parece-me ridículo. Porque será que não passaste?

– Cabeça dura, hem, ‘Póstolo? – disse Beatrice, secamente.

– Só lhe serve para morder – retorquiu Paul, a rir.

– Monstro! – gritou ela, e, saltando do lugar, atirou-se a ele e deu-lhe um puxão de orelhas. As mãos dela eram pequeninas e elegantes. Ele prendeu-lhe os pulsos enquanto ela se debatia. Conseguiu por fim libertar-se e, apanhando dois punhados do cabelo dele, castanho e espesso, puxou com toda a força.

– Oh, Bea – disse ele, alisando o cabelo com os dedos. – Odeio-te.

Ela riu, consolada.

– Com licença! – disse ela. – Quero sentar-me ao pé de ti.

– Antes estar sentado ao lado duma fera – disse ele, deixando no entanto espaço para a outra se sentar entre ele e Miriam.

– Olha, ficou com o cabelinho todo despenteado! – exclamou Beatrice, penteando-o com o seu próprio pente.

– E o bigodinho também! – continuou ela. E, atirando a cabeça para trás, com um trejeito, penteou-lho.

– Tens um bigodinho todo malandro, ‘Póstolo – disse ela. – Vermelho, sinal de perigo... Ainda tens daqueles cigarros?

Paul tirou a cigarreira do bolso. Beatrice olhou.

– Já não tens nenhum daqueles charros qu’a Connie te deu? – perguntou.

– Ainda devo ter um por aí...

Procurou no bolso e encontrou uma caixinha. Beatrice pegou-lhe.

– É isso, só tens um! – disse ela. – Devia ser para a Miriam. Não queres o charro da Connie, Miriam?

– Não, obrigada – replicou Miriam. – Quem é a Connie?

– Ele não te contou? – exclamou Beatrice, surpresa. – Bem, ‘Póstolo Morel, acho que não é bonito deixar uma menina tão linda às escuras.

– Não queres mesmo fumar? – perguntou Paul a Miriam.

– Sabes bem que não – respondeu ela.

– Imaginem só, eu a fumar o último cigarro da Connie – disse Beatrice, metendo o cigarro entre os dentes. Paul estendeu-lhe um fósforo aceso e ela aspirou sofisticadamente.

– Obrigadíssima, querido – disse, trocista.

Dizer estas coisas dava-lhe um prazer perverso a que não conseguia resistir.

– Que jeitinho que ele tem, não achas, Miriam? – perguntou.

– Se tem! – disse Miriam.

Paul tirou um cigarro.

– Lume, menino? – disse Beatrice, chegando o seu cigarro ao dele.

Ele inclinou-se para a frente, para acender o cigarro no dela. Ela piscou-lhe o olho. Miriam viu os olhos dele a brilharem de malícia e os seus lábios carnudos, quase sensuais, a tremerem. Ele já não estava em si, e isso para ela era insuportável. Aquele que ali estava agora não tinha nada a ver com ela, era como se ela não existisse para ele. Via-lhe o cigarro a bailar nos lábios cheios, bem vermelhos, e odiava aquelas madeixas espessas que lhe caíam livres sobre a testa.

– Meu torrãozinho de açúcar! – disse Beatrice, levantando-lhe o queixo e dando-lhe um beijo na face.

– Agora é a minha vez, Beat – disse ele.

– Isso é que não! – disse ela, com uma risadinha, fugindo para longe. – Ele é mesmo descarado, não achas, Miriam?

– Do pior! – disse Miriam. – A propósito, não te esqueceste do pão?

– Meu Deus! – gritou Paul, abrindo a porta do forno, de onde saiu um fumo azulado e um cheiro a pão queimado.

– Céus! – gritou Beatrice, correndo para junto dele. Paul ajoelhou-se diante do forno e ela espreitou-lhe por cima do ombro. – Aí está o resultado de só pensares no amor, meu lindo.

Paul, contrito, tirava os pães do forno. Um deles estava todo preto por baixo e o outro duro que nem uma pedra.

– Pobre Mater! – disse Paul.

– Agora tens de o raspar – disse Beatrice. – Traz-me o ralador de noz-moscada.

Ela compôs os pães que ainda estavam no forno, ele trouxe-lhe o ralador e ela raspou a parte queimada em cima da mesa, para um jornal. Paul abriu as portas, para eliminar o cheiro a queimado, e Beatrice continuou a raspar o pão, fumando enquanto arrancava a crosta carbonizada da pobre carcaça.

– Ai, ai, Miriam, desta vez estás bem arranjada – disse Beatrice.

– Eu! – exclamou Miriam, espantada.

– É melhor saíres antes de a mãe dele chegar... Agora é que eu percebo porque é que o Rei Alfred queimou os bolos. Agora, sim. O ‘Póstolo inda podia dizer que se tinha esquecido por causa do trabalho, se achasse que isso ia pegar. Se a velha da lenda tivesse chegado um nadinha mais cedo, teria dado cabo das orelhas da desavergonhada que provocou o esquecimento, e não das do pobre Alfred...

E riu-se, enquanto raspava o pão. Até Miriam, não se contendo, se riu também. Paul, pesaroso, pôs mais carvão na fogueira.

Ouviu-se bater o portão do jardim.

– Depressa! – gritou Beatrice, estendendo a Paul a carcaça já raspada. – Embrulha-a numa toalha húmida.

Paul correu para a copa. Beatrice soprou apressadamente as raspadelas para a fogueira e foi sentar-se com ar inocente. Annie entrou de rompante. Era uma rapariga muito esperta e sem rodeios. A luz intensa fê-la piscar os olhos.

– Cheira-me a queimado! – exclamou.

– É dos cigarros – explicou Beatrice, muito séria.

– Onde está o Paul?

Leonard entrou logo a seguir a Annie. Tinha uma cara comprida e engraçada, e uns olhos azuis muito tristes.

– Acho que se retirou para vocês se entenderem as duas – disse ele.

Depois, cumprimentou Miriam com ar penalizado, e mostrou-se suavemente sarcástico com Beatrice.

– Nada disso – disse Beatrice. – Foi sair com a número nove.

– Olha, vi mesmo agora a número cinco, que andava à procura dele – acrescentou Leonard.

– Pois é... Nós vamos ter de o dividir como o menino de Salomão – disse Beatrice.

Annie deu uma gargalhada.

– Ah, sim? – disse Leonard. – E com que bocado queres tu ficar?

– Sei lá – disse Beatrice. – As outras que escolham primeiro.

– E tu depois ficas com os restos? – disse Leonard, fazendo uma careta.

Annie estava às voltas com o forno. Miriam estava abandonada no seu canto. Paul entrou.

– Este pão está lindo, menino Paul – disse Annie.

– Então devias ter ficado a tomar conta dele – disse Paul.

– Tu é que devias ter feito aquilo que te compete – repontou Annie.

– Devia, não devia? – exclamou Beatrice.

– Mas se calhar estava com as mãos muito ocupadas... – atalhou Leonard.

– Viste-te aflita para cá chegar, não foi, Miriam? – disse Annie.

– Se vi... Mas tinha estado metida em casa toda a semana...

– E apeteceu-te mudar, hem? – insinuou Leonard, melífluo.

– Bem, não se pode passar a vida inteira dentro de casa – disse Annie, conciliadora. Beatrice vestiu o casaco e saiu com Leonard e Annie. Ia encontrar-se com o seu rapaz.

– Não te distraias com o pão, menino Paul – gritou Annie. – Boa noite, Miriam, acho que não vai chover mais.

Depois de todos saírem, Paul foi buscar o pão queimado, desembrulhou-o e olhou para ele com desalento.

– Está uma porcaria! – disse.

– Mas qual é o problema? – disse Miriam, enfadada. – Afinal são só... dois dinheiros e meio.

– Está bem... mas trata-se do pão da minha mãe, de que ela tanto se orgulha... e ela não vai gostar nada... Mas agora já não adianta preocuparmo-nos.

Levou o pão outra vez para a copa. Instalara-se uma certa distância entre ele e Miriam. Por uns momentos, Paul hesitou diante dela, a meditar, pesando o seu comportamento com Beatrice. No fundo, sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo contente. Não sabia explicar porquê, mas achava que era bem feito para Miriam. Não era agora que se ia arrepender. Miriam pensava no que ele estaria a cogitar, ali hesitante diante dela. Madeixas de cabelo espesso caíam-lhe ainda sobre a testa. E se lho puxasse para trás, para apagar as marcas do pente de Beatrice? E se lhe apertasse o corpo entre as suas mãos? Parecia tão rijo e palpitante. Se ele deixava as outras fazerem-lhe isso, porque não ela?

De súbito, Paul voltou à vida, e Miriam quase tremeu de susto quando ele arredou os cabelos da testa e avançou para ela.

– Oito e meia! – disse ele. – É melhor irmos a isto. Onde está o teu caderno de francês?

Miriam, contrariada, mostrou-lhe timidamente o caderno de exercícios de francês. Todas as semanas lhe entregava uma espécie de diário da sua vida íntima, escrito por ela em francês. Paul descobrira que era a única maneira de a convencer a fazer composições. O diário era acima de tudo uma carta de amor. Agora, ele ia lê-lo e era como se a história da sua alma fosse ser profanada por ele, no estado em que se encontrava. Paul sentou-se ao lado dela. Ela atentou na mão dele, firme e quente, percorrendo minuciosamente o seu trabalho.

Ele lia apenas as palavras em francês, ignorando a alma que encerravam. Mas, gradualmente, a mão esqueceu a tarefa e ele continuou a ler em silêncio, e em total imobilidade. Ela estremeceu.

– «Ce matin les oiseaux m’ont éveillé» – leu ele. – «II faisait encore un crépuscule. Mais la petite fenêtre de ma chambre était blême, et puis, jaûne, et tous les oiseaux du bois éclatèrent dans un chanson vif et résonnant. Toute l’aûbe tressaillit. J’avais rêvé de vous. Est-ce que vous voyez aussi 1’aube? Les oiseaux m’éveillent presque tous les matins, et toujours il y a quelque chose de terreur dans le cri des grives. II est si clair...».2

Miriam estava sentada, a tremer, envergonhada. Ele mantinha-se imóvel, tentando compreender. Apenas percebia que ela o amava, mas tinha medo do seu amor. Era mais do que ele merecia, e ele não era digno dela. Era ele que não a amava o suficiente, e não o contrário. Envergonhado, corrigiu-lhe o trabalho, anotando os erros timidamente por cima das palavras.

– Repara – disse ele, sereno. – Quando o particípio passado é conjugado com avoir, concorda com o complemento directo sempre que este o precede.

Ela inclinou-se para a frente, para ver melhor e poder compreender. Os seus caracóis finos e soltos roçaram-lhe ao de leve na cara, e ele deu um salto como se um ferro em brasa lhe tivesse tocado. Ao vê-la debruçada sobre a página, com os lábios rubros dolorosamente entreabertos, o cabelo negro caindo em finas madeixas sobre as faces afogueadas, corada como uma romã, a respiração tornou-se-lhe ofegante. Então, ela olhou para ele: os seus olhos negros punham a nu todo o seu amor, medo e desejo. E os olhos dele, negros também, feriram os dela. Pareciam dominá-los. E ela, perdendo o domínio de si própria, ali estava exposta, amedrontada, à mercê dele. Paul sabia, porém, que antes de a poder beijar, tinha de arrancar alguma coisa de si mesmo. E, então, um sopro de ódio por ela penetrou-lhe outra vez no coração, fazendo-o retomar as suas correcções.

De súbito, ele atirou com o lápis pelo ar e precipitou-se para o forno, para virar o pão. Era brusco de mais para o gosto dela. Miriam estremeceu em violento sobressalto, e a dor que sentiu era real. Até a maneira como ele se punha de cócoras diante do forno a magoava. Pressentia alguma crueldade nos seus gestos, alguma crueldade na brusquidão com que tirava os pães das formas, atirando-os ao ar e apanhando-os na queda. Se ao menos ele fosse gentil nos movimentos, sentir-se-ia mais rica e confortada no seu íntimo. Mas, assim, era só dor o que sentia.

Paul voltou para junto dela e acabou o exercício.

– Desta vez saíste-te bem – disse ele.

Ela percebeu que ele se sentia lisonjeado com o diário, mas isso não era recompensa suficiente.

– Sim senhora, de vez em quando fazes um brilharete – disse ele. – Devias escrever poesia.

Ela ergueu a cabeça, transbordante de alegria, mas logo a abanou desalentada.

– Falta-me confiança – disse ela.

– Mas devias tentar!

Mas ela abanou a cabeça.

– Vamos ler um bocado, ou achas que já é muito tarde? – perguntou ele.

– Lá tarde, é... mas podíamos ler só um bocadinho – pediu ela.


CONTINUA

Partiriam no sábado seguinte de manhã, no comboio das sete horas. Paul sugeriu a Miriam que dormisse em casa dele, pois morava muito longe, e ela já jantou de véspera em casa dele. Estavam todos tão excitados que a vinda de Miriam até foi recebida com entusiasmo. Contudo, mal ela chegou, a família tornou-se menos expansiva e mais fechada. Paul tinha descoberto um poema de Jean Ingelow que falava em Mablethorpe, e, por isso, tinha de o mostrar a Miriam. Sem ela, o seu sentimentalismo nunca teria chegado ao ponto de ler poesia para a família ouvir. Mas agora concordavam em ouvi-lo. Miriam, sentada no sofá, escutava-o enlevada. Quando ele estava presente, ela parecia sempre presa a ele e das palavras dele. Mrs. Morel, com ciúmes, sentou-se na sua cadeirinha de baloiço para o escutar. Annie e o pai escutavam-no também; Morel tinha a cabeça mais levantada de um lado, como alguém que escuta um sermão e está consciente do mesmo. Paul espreitou por cima do livro. Tinha agora a presença de quem mais gostava. E Mrs. Morel e Annie quase competiam com Miriam, sobre qual seria a ouvinte mais atenta, a preferida dele. Paul sentia-se nos píncaros.

– Mas – interrompeu Mrs. Morel – não percebo porque é que os sinos têm que tocar A Noiva de Enderbyt...?

– É uma velha melodia que os sinos costumavam tocar como aviso contra a cheia. Penso que a tal Noiva de Enderby morreu afogada numa enchente – respondeu ele. Não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer na realidade, mas nunca se teria rebaixado ao ponto de o confessar perante o seu público feminino. Elas escutavam-no e acreditavam. Ele próprio acreditava nas coisas que dizia.

– E as pessoas sabiam o significado dessa melodia? – quis saber a mãe.

– Sim... tal e qual os escoceses quando escutam As Flores da Floresta... e quando costumavam tocar os sinos em sinal de alarme em sentido contrário.

– Ah! – exclamou Annie. – Quer dizer que os sons de um sino são sempre os mesmos quando são tocados no seu sentido correcto, ou ao contrário.

– Mas – disse ele – se começares num tom grave e subires até ao agudo... lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá! – disse ele, percorrendo a escala completa, e todos o acharam muito inteligente. Ele também. Depois, aguardando um minuto, continuou a ler o poema.

– Hum! – disse Mrs. Morel, apreciativamente, quando ele terminou. – Só espero que tudo o que se tem escrito não seja assim tão triste.

– Num consig’intender porqu’é qu’houve tantos afogamentos – disse Morel. Houve uma pausa. Annie preparou-se para levantar a mesa.

– Acho Elizabeth um belo nome – disse Miriam, em voz baixa. – «A minha nora Elizabeth...»

– Concordo – disse Paul.

– Também acho – disse a mãe. – Mas não gosto de Lizzie e abomino Liza.

Nem Paul nem Miriam achavam que Lizzie ou Liza tivessem algo a ver com o assunto.

– Ah, mas «Elizabeth»! – murmurou Miriam.

– E ainda por cima, a Rainha Elizabeth adorava que a tratassem por «Grande Eliza» – disse Paul.

– E amanhã há mais! – disse Morel, não se contendo.

Mrs. Morel e Paul deram uma gargalhada.

– Aposto que nem sapatos tinha – disse Morel, continuando com a brincadeira.

– Não seja tão insolente com uma rainha – disse Annie.

– Rainhas! – exclamou Morel. – Num pensas noutra coisa senão nas rainhas? Num fazes mai nada senão viver à grande e à francesa!

Miriam levantou-se para ajudar a lavar a loiça.

– Deixa-me ser eu a lavar a loiça – disse ela.

– Não é necessário – exclamou Annie. – Vai-te sentar. É pouca loiça.

E Miriam, que não se sentia à vontade para insistir, sentou-se a ver o livro com Paul.

Paul era o chefe do grupo... para isso, o pai não prestava. E muito ele sofreu para que o baú de latão fosse descarregado em Firsby e não em Mablethorpe. E não foi também capaz de encontrar uma carruagem com lugares. Só a genica de Mrs. Morel o conseguiu.

– Aqui! – gritou ela para um homem. – Aqui!

Paul e Annie ficaram para trás envergonhadíssimos, mas perdidos de riso.

– Quanto é a viagem até Brook Cottage? – perguntou Mrs. Morel.

– Dois xelins.

– É assim tão longe?

– Ainda é um bom bocado.

– Não acredito – disse ela.

Contudo subiu para a carruagem. Iam os oito apertados numa velha carruagem da linha costeira.

– Bem vêem – disse Mrs. Morel –, são apenas três dinheiros por pessoa, mas se fosse um eléctrico...

A viagem prosseguiu. Sempre que passavam por uma casa típica, Mrs. Morel exclamava:

– É esta?... Não, agora é que é!

Estava toda a gente morta de ansiedade. A viagem prosseguiu. Houve um suspiro em uníssono.

– Estou agradecida por não ser aquela coisa horrorosa – disse Mrs. Morel. – Estava assustada.

Passou-se ainda mais algum tempo.

– Aquela mulher repelente disse que a casa ficava a dez minutos do mar...! – exclamou Mrs. Morel.

– Pra ela uma hora deve ser um minuto – reclamou Morel.

Todos o mandaram calar.

– Será que nunca mais chegamos? – exclamou Mrs. Morel, muito alto.

– Não grite assim, mãe – disse Annie. – O que é que ele irá pensar?

Mrs. Morel olhou de um modo esquisito para o condutor, e disse:

– Não sei! Mas, pelo aspecto, penso que não pensará nada de especial.

Finalmente, desceram perto de uma casa isolada, sobre o canal que passava na estrada principal. Houve grande alvoroço quando descobriram que tinham de atravessar uma pequena ponte para chegarem ao jardim da casa. Adoraram a casa, que ficava isolada, com o mar de um lado e, do outro, uma imensa extensão de terra plana que se estendia até ao céu, e onde se distinguia o branco da cevada, o amarelo da aveia, o vermelho do trigo e o verde dos nabos.

Paul registava as despesas e ele e a mãe governavam a casa. As despesas globais, incluindo o alojamento e a alimentação ascendiam a dezasseis xelins por pessoa e por semana. De manhã, Paul e Leonard iam tomar banho ao mar. Morel saía bastante cedo para ir dar um passeio.

– Paul – chamou a mãe do quarto. – Come uma fatia de pão com manteiga.

– Está bem – respondeu ele.

Quando regressou, a mãe estava sentada à cabeceira da mesa. A dona da casa era jovem. O marido era cego e ela cuidava da roupa. Assim, Mrs. Morel lavava a loiça na cozinha e fazia as camas.

– Mas a mãe prometeu que ia fazer umas férias a sério – disse Paul – e agora está a trabalhar.

– Trabalho? – exclamou ela. – De que é que estás a falar?

Paul adorava ir passear com ela pelos campos, até à aldeia ou até ao mar. Ela tinha medo de atravessar pontes de madeira e ele acusava-a de se portar como um bebé. Era apegado à mãe como se fosse o seu marido.

Miriam raramente andava com ele – excepto, talvez, quando iam todos ouvir os Coons. Os Coons eram insuportavelmente estúpidos para Miriam e, por isso, eram-no também para Paul, que pregava sermões presunçosos a Annie sobre a perda de tempo que era irem ouvi-los. Todavia, também ele sabia todas as suas canções de cor e as cantava desbragadamente pelas ruas. E, quando reparava que os estava a ouvir, a estupidez da situação agradava-lhe imenso. Contudo dizia para Annie:

– Que porcaria!... Não há um pingo de inteligência naquilo que cantam. Ninguém que tenha mais miolos que um gafanhoto consegue aguentá-los. – E dizia a Miriam, com algum desdém, onde estavam Annie e os outros:

– Suponho que foram aos Coons.

Era ridículo ouvir Miriam trautear as canções dos Coons. Tinha um queixo talhado a direito que descia na perpendicular desde o lábio inferior até à curvatura do maxilar. Quando ela cantava, Paul achava-a parecida com um anjo triste de Botticelli, mesmo quando entoava:


«Vem pela Estrada do Amor

Vem comigo passear, falar comigo...»


Miriam só tinha Paul todo para ela quando ele desenhava, ou à noite, quando todos os outros estavam a ouvir os Coons. Ele falava-lhe então interminavelmente do seu gosto pelos planos horizontais: como é que os grandes níveis do céu e da terra significavam para ele a eternidade da vontade, tal como os arcos normandos, arredondados e em série, significavam um salto em frente da alma humana voluntariosa, não se sabe para onde; pelo contrário, as linhas perpendiculares e o arco gótico apontavam para o céu e afloravam o êxtase, perdendo-se no divino. Ele era normando, Miriam era gótica. Submissa, ela concordava com tudo o que ele dizia.

Certa tarde, ele e ela foram passear pelo extenso areal que conduzia a Theddlethorpe. As alongadas vagas quebravam-se e elevavam-se em silvos agudos de espuma ao longo da costa. A tarde estava quente e eles completamente sozinhos na imensidão da areia, a sós com o barulho do mar. Paul adorava ouvir o mar a ressoar na areia. Adorava sentir-se entre o som do mar e o silêncio do areal. Miriam estava com ele. Tudo se tornava mais intenso. Já tinha anoitecido quando regressaram. O regresso a casa fazia-se através de uma passagem nas dunas, e depois através de uma estrada pejada de ervas, rasgada entre dois diques. A aldeia estava cinzenta e calma. Por detrás das dunas soava o murmúrio do mar. Paul e Miriam caminhavam em silêncio. De repente, ele estacou. O seu sangue parecia ter-se incendiado e ele mal podia respirar. Uma enorme lua alaranjada observava-os do alto das dunas. Ele continuava parado, olhando a lua.

– Oh! – exclamou Miriam, quando a viu também.

Ele estava ali, petrificado, olhando a lua dilatada e rubra, sozinha na escuridão imensa. O seu coração batia forte e tinha os músculos dos braços contraídos.

– O que foi? – murmurou ela, esperando por ele.

Ele voltou-se e fitou-a. Ela estava ao seu lado, para sempre na escuridão. A sua face, encoberta pela sombra do chapéu, olhava-o sem que ele a visse. E ela meditava. Estava um pouco receosa... profundamente emocionada e imbuída de religiosidade. Este era o seu melhor estado de alma. Ele sentia-se impotente face a esta situação. O sangue parecia concentrar-se como uma fogueira no seu peito, mas ele não lhe conseguia transmitir o sentimento. Pareciam disparar relâmpagos do seu sangue, mas, de algum modo, ela ignorava-os. Ela esperava vê-lo atingir um estado de graça. Ainda à espera, mas meio consciente da paixão que o possuía, Miriam fitou-o, preocupada.

– O que se passa? – murmurou novamente.

– É a Lua – respondeu ele, franzindo a testa.

– Sim – concordou ela. – É maravilhosa, não é? – Ela estava intrigada. A crise tinha passado.

Ele próprio não sabia o que lhe tinha acontecido. Era ainda tão jovem e a sua intimidade tão abstracta que não se apercebeu de que desejava esmagá-la contra o peito para aliviar a dor que o trespassava. Tinha medo dela. Talvez o facto de a desejar como um homem deseja uma mulher tivesse permanecido oculto dentro dele como uma humilhação. Quando ela fugia desses pensamentos, torturando-se em extrema agitação, ele recolhia-se até ao mais recôndito da alma. E, neste momento, esta «pureza» inibia o seu primeiro beijo de amor. Era como se ela mal pudesse suportar o choque do amor físico, ou apenas um beijo apaixonado, deixando-o demasiado reprimido e sensibilizado para lho dar.

Enquanto caminhavam ao longo da negra lagoa, Paul contemplava a Lua e mantinha-se em silêncio. Miriam caminhava a seu lado devagar. Ele sentia que a odiava, pois ela parecia, de certa forma, levá-lo a autodesprezar-se. Olhando em frente, descortinou uma luz na escuridão; era a janela iluminada da sua casa.

Adorava pensar na mãe e no resto das pessoas, todos alegres.

– Bem, já todos chegaram há bastante tempo – disse a mãe quando eles entraram.

– E o que é que isso importa? – exclamou ele, irritado. Posso ir passear quando me apetecer, não posso?

– Pensei que quisesses jantar com o resto do grupo – disse Mrs. Morel.

– Tenho de agradar a mim próprio – retorquiu ele. – Não é tarde e faço o que me apetece.

– Muito bem – disse a sua mãe, sarcasticamente. – Então faz o que te apetecer!

E nessa noite não falou mais com ele. Paul fingiu não notar nem estar preocupado com o assunto, e sentou-se a ler. Miriam lia também, tentando alienar-se. Mrs. Morel detestava-a por ela pôr o filho naquele estado. Via o filho irritadiço, presumido e melancólico, e culpava Miriam.

Annie e os amigos também se voltavam contra Miriam. O único amigo de Miriam era Paul. Mas ela não se importava, pois desprezava a trivialidade de todas essas pessoas.

E Paul detestava-a, pois ela perturbava, por assim dizer, o seu bem-estar e a sua naturalidade, torturando-o com sentimentos de humilhação.

1 «Os últimos representantes de uma raça extinta.» (N. da T.)


VIII

ZANGAS DE AMOR

ARTHUR terminou o estágio e arranjou emprego na central eléctrica da mina de Minton. Ganhava muito pouco, mas tinha possibilidades de progredir. Era, porém, rebelde e impaciente. Não bebia nem tinha o vício do jogo, mas envolvia-se constantemente em rixas devido às suas reacções intempestivas. Ia caçar coelhos para a floresta, qual caçador furtivo, e passava a noite em Nottingham em vez de voltar para casa, ou então ia nadar para o canal de Bestwood e falhava os cálculos do mergulho, ficando com o peito ferido, das rochas naturais e das latas que andavam a boiar à tona.

Tinha faltado ao emprego meses a fio, e uma noite não voltou para casa.

– Sabe por onde anda o Arthur? – perguntou Paul ao pequeno-almoço.

– Não – respondeu a mãe.

– É mesmo maluco – disse Paul. – Eu já nem ligaria, se ele ao menos fizesse mesmo alguma coisa. Mas não... não consegue resistir a um jogo de cartas, ou então vai levar alguma rapariga a casa depois da patinagem, com todo o decoro... e acaba por não voltar para casa. É maluco.

– Não vejo porque seria melhor se ele fizesse mesmo alguma coisa que nos envergonhasse – disse Mrs. Morel.

– Bem... eu, pelo meu lado, passaria a respeitá-lo mais – disse Paul.

– Duvido muito – respondeu a mãe secamente.

Continuaram a tomar o pequeno-almoço.

– A mãe gosta desvairadamente dele, não gosta? – perguntou Paul.

– Porque fazes essa pergunta?

– Dizem que as mães gostam sempre mais do filho mais novo.

– Talvez... mas eu não. Não... ele irrita-me.

– E gostava que ele se portasse melhor?

– Gostava que ele mostrasse algum bom senso masculino.

Paul estava ferido e irritado. Também ele irritava a mãe frequentemente. E ela ficava triste, pois via os melhores anos a fugirem-lhe.

Estavam a acabar o pequeno-almoço, quando o carteiro lhes entregou uma carta vinda de Derby. Mrs. Morel esforçou-se para ler o endereço.

– Dê cá isso, sua pitosga! – exclamou o filho, tirando-lhe a carta da mão. Ela assustou-se e quase lhe dava uma bofetada.

– É do seu filho Arthur – informou ele.

– Mas o que vem a ser isto? – exclamou Mrs. Morel.

– «Querida mãe» – leu Paul. – «Não sei o que me deu. Quero que me venha buscar. Ontem, em vez de ir trabalhar, vim alistar-me no exército com o Jack Brendon. Ele disse que estava farto de passar a vida sentado num escritório, e eu, idiota, como já sabe que sou, resolvi vir com ele.

«Já recebi o dinheiro referente ao recrutamento, mas se me vier buscar, talvez eles me deixem ir consigo. Foi uma loucura ter feito o que fiz. Não quero ficar no exército. Querida mãe, sei que não passo de um estorvo para si, mas, se me tirar desta situação, prometo que serei mais consciente e ponderado...»

Mrs. Morel sentou-se na cadeira de baloiço.

– Vejam só! – exclamou. – Ele que assente por uns tempos!

– Também acho – disse Paul. – Ele que assente!

Fez-se silêncio. A mãe estava sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, o rosto imóvel, pensativa.

– Devo estar doente – exclamou de repente. – Doente!

– Então! – disse Paul, franzindo a testa – Não quero que se preocupe com isto, está a ouvir?

– Então queres que encare isto como uma bênção? – disse ela, de repente, virando-se para o filho.

– Agora não vai tornar isto numa tragédia, pois não? – retorquiu ele.

– Ele é maluco!... Maluquinho de todo! – gritou Mrs. Morel.

– Vai ficar todo bonito com a farda – disse Paul, para espicaçar a mãe.

Ela virou-se a ele, furiosa.

– Ah, vai? – gritou ela. – Mas não para mim!

– Devia ir para um regimento de cavalaria... Ele divertia-se à grande e nós passávamos a ser chiques.

– Chiques!... Chiques!... Muito chique, não haja dúvida!... Um soldado raso!

– Ora – disse Paul. – E o que sou eu, senão um reles escriturário?

– O que é muito mais, meu filho! – gritou a mãe, picada.

– Essa agora!

– De qualquer forma, és um homem e não uma coisa enfiada num casaco vermelho.

– Não me importava de andar enfiado num casaco vermelho... ou azul-escuro, que me ficaria melhor... se eles não me dessem muitas ordens.

Mas a mãe já não o ouvia.

– Agora que ele estava a progredir, ou poderia vir a progredir no emprego... um aborrecimento passageiro e aí vai ele... dar cabo da vida toda. Que vantagens é que tu pensas que isto lhe pode trazer?

– Vai pô-lo todo afinado! – disse Paul.

– Todo afinado!... E o que tem ele para afinar? Um soldado!... Um soldado raso!!... Nada mais do que um corpo que se mexe quando lhe dão ordens! Grande coisa!

– Não percebo porque é que isso a aborrece tanto – disse Paul.

– Não, talvez não percebas. Mas percebo eu. – E recostou-se na cadeira, de queixo apoiado numa das mãos e segurando o cotovelo com a outra, a transbordar de raiva e desilusão.

– Está a pensar ir a Derby? – perguntou Paul.

– Estou, pois.

– Não faça isso.

– Quero ver com os meus próprios olhos.

– Mas por que diabo é que não o deixa assentar? É isso mesmo que ele quer.

– Claro – exclamou a mãe. – Tu sabes muito bem o que ele quer...

Preparou-se e apanhou o primeiro comboio para Derby, onde se encontrou com o filho e com o sargento. Todavia, os seus esforços foram infrutíferos.

Morel estava a almoçar, quando ela disse de repente:

– Tenho de ir hoje a Derby.

O mineiro levantou os olhos, muito brancos numa face toda enfarruscada.

– Ah, vais, cachopa? E o que te leva lá?

– O menino Arthur!

– Qu’aprontou ele desta vez?

– Alistou-se no exército, só isso.

Morel pousou a faca e recostou-se na cadeira.

– Não – disse ele. – Num pode ser!

– E amanhã vai para Aldershot.

– Bom – exclamou o mineiro –, iss’é qu’é já uma grand’alhada.

Morel reflectiu por um momento, disse «Hum!» e continuou a jantar. Subitamente, a face contraiu-se-lhe de raiva.

– Espero qu’ele nunca mais volte a pôr as patas nesta casa – disse ele.

– Credo! – exclamou Mrs. Morel. – Isso é lá coisa que se diga!

– É o qu’eu penso – repetiu Morel. – O doidivanas pisga-se pa ser soldado... Atão é porque já tá na hora de fazer pela vida... Comigo na conta mais.

– Falar é fácil... – disse Mrs. Morel.

Nessa noite, Morel quase sentiu vergonha de ir para a taberna.

– Então, sempre lá foi? – perguntou Paul à mãe quando chegou a casa.

– Fui.

– E viu-o?

– Vi.

– E o que disse ele?

– Ficou lavado em lágrimas quando me vim embora.

– Hum!

– E eu fiz o mesmo, portanto não precisas de fazer «Hum!».

Mrs. Morel preocupava-se com o filho, pois sabia que ele não ia gostar de estar no exército. Como de facto não gostou. A disciplina era uma coisa que ele não conseguia tolerar.

– Mas o doutor disse que ele era bem proporcionado... quase na proporção exacta, e as suas medidas eram perfeitas – disse Mrs. Morel a Paul, cheia de orgulho. – Como tu sabes, ele é bem-parecido.

– Ele é muito bem-parecido. Mas não arranja raparigas como o William, pois não?

– Não... Tem uma personalidade diferente. Sai muito ao pai: é um irresponsável.

Para consolar a mãe, Paul passou nessa altura a ir muito menos a Willey Farm. No Outono, quando se realizou no castelo a habitual exposição dos trabalhos dos alunos da escola de belas-artes, ele apresentou dois trabalhos: uma paisagem a aguarela e uma natureza morta a óleo, que obtiveram dois primeiros prémios, o que o deixou deveras emocionado.

– Mãe, que lhe parece, acha que ganhei algum prémio com as minhas pinturas? – perguntou uma noite, ao chegar a casa. Pelos seus olhos, a mãe viu que ele estava feliz, e a sua face resplandeceu.

– Como queres que eu saiba, meu filho?!

– Um primeiro prémio por aquelas jarras de vidro...

– Ena!

– E outro primeiro prémio por aquele esboço que fiz em Willey Farm.

– Um primeiro prémio para cada coisa?

– Sim, senhora.

– Hum!

Mrs. Morel parecia envolvida numa aura brilhante, cor-de-rosa, mas não disse nada.

– É bem bom, não é, mãe? – disse ele.

– É, sim.

– Oh, mãe, porque não me põe nos píncaros?

Ela riu-se.

– É que depois tinha de ter o trabalho de te puxar cá para baixo outra vez.

No entanto, toda ela vibrava de alegria. William tinha-lhe trazido sempre os seus troféus desportivos. Ela ainda os guardava, e não perdoava a morte dele. Arthur era bonito e era pelo menos um belo exemplar masculino, terno e generoso, e provavelmente o futuro acabaria por lhe sorrir. Mas Paul iria destacar-se. Ela tinha uma grande fé no filho, e mais ainda por ele não ter consciência das suas capacidades. Ele tinha tanto para dar, e a vida parecia ter muito para lhe dar também. Ela iria sentir-se realizada através do filho. A sua luta não tinha sido em vão.

Durante o período da exposição, Mrs. Morel foi várias vezes ao castelo, sem que Paul a visse. Vagueava pelo longo salão, apreciando as restantes pinturas. Sim, eram muito boas. Mas faltava-lhes qualquer coisa para que a sua satisfação fosse completa. Observava-as longamente, tentando encontrar nelas alguma falha. De repente, algo lhe fazia disparar o coração. Aquela era a pintura de Paul. Conhecia-a como se a tivesse gravada no coração.

«Nome: Paul Morel. Primeiro Prémio.»

Parecia tão estranha, ali exposta ao público, nas paredes da galeria do castelo, onde já tinha visitado tantas exposições de pintura durante toda a sua vida. E, depois, olhou em volta, tentando descobrir se alguém a tinha tornado a ver em frente ao mesmo quadro.

Não cabia em si de orgulho, e quando se cruzava com senhoras bem vestidas, pensava para consigo:

«Pois sim, vocês estão muito bem vestidas... mas duvido que os vossos filhos consigam arrebatar dois primeiros prémios na exposição no castelo.»

E seguia o seu caminho, sentindo-se mais orgulhosa do que qualquer outra mãe de Nottingham. E Paul sentia que tinha feito algo por ela, mesmo não passando de uma insignificância. Todo o seu trabalho pertencia à sua mãe.

Um dia, encontrou Miriam quando se dirigia para o castelo. Tinha-a visto no domingo e não esperava encontrá-la na cidade. Vinha com ela uma mulher loura, espampanante, de expressão carregada e porte provocador. Era estranho como Miriam, tão meditativa e reverente, parecia insignificante ao lado desta mulher de ombros deslumbrantes. Miriam fitou Paul demoradamente. O olhar dele estava pregado na desconhecida, que o ignorava. Miriam via claramente o seu instinto masculino a erguer-se altaneiro.

– Olá – disse ele. – Não me disseste que vinhas à cidade.

– Pois não – retorquiu Miriam, em ar de desculpa. Fui à Feira do Gado com o meu pai.

Paul olhou para a companheira de Miriam.

– Já te tinha falado de Mrs. Dawes – disse Miriam, com a voz estrangulada. Estava nervosa. – Clara, já conheces o Paul?

– Penso que já o vi antes – respondeu Mrs. Dawes, indiferente, enquanto o cumprimentava. Tinha uns olhos cinzento-esverdeados, displicentes, a pele era mel claro, e a boca carnuda, com o lábio superior levemente levantado, não se percebendo se de desprezo por todos os homens ou desejo de ser beijada, sendo a primeira hipótese a mais provável. Tinha a cabeça inclinada para trás, como se ela se afastasse por desdém, talvez também dos homens. Usava um chapéu enorme e deselegante, de pele escura de castor, e um vestido simples levemente afectado, que lhe conferia as linhas de um saco. Obviamente era pobre e tinha falta de gosto. Miriam andava sempre bonita.

– Onde é que me viste? – perguntou Paul à outra mulher.

Ela olhou-o como se não tivesse qualquer dúvida em responder.

E depois:

– Vi-te a passear com a Louie Travers – respondeu ela.

Louie era uma das raparigas da secção Espiral da fábrica de Mr. Jordan.

– E como é que tu a conheces? – perguntou ele.

Ela não respondeu. Paul virou-se então para Miriam.

– Para onde vais agora? – perguntou.

– Para o castelo.

– A que horas é o comboio de regresso?

– Vou regressar com o meu pai. Gostava que também viesses connosco. A que horas estás livre?

– Já sabes que nunca antes das oito, que diabo!

E as duas mulheres seguiram o seu caminho.

Paul lembrou-se de que Clara Dawes era filha de um velho amigo de Mrs. Leivers. Miriam tinha-a procurado, pois ela tinha sido em tempos supervisora da secção Espiral da Jordan, e porque o marido, um tal Baxter Dawes que era ferreiro, trabalhava para a fábrica, fazendo entre outras coisas os ferros para as próteses ortopédicas. Miriam pensou que através dela pudesse contactar directamente com a fábrica, podendo assim assegurar o emprego de Paul. Mas Mrs. Dawes estava separada do marido, e agora dedicava-se à defesa dos direitos das mulheres. Era supostamente inteligente, e isso interessava a Paul.

Paul conhecia Baxter Dawes e detestava-o. O ferreiro tinha cerca de trinta e um ou trinta e dois anos. Paul encontrava-o de vez em quando: era um homem alto e bem constituído, bem-parecido, para quem dava gosto olhar. Havia uma curiosa semelhança entre ele e a mulher. Ele tinha a mesma pele clara, de tom de dourado. O seu cabelo era castanho-claro e o bigode dourado. E exalava um desprezo semelhante, pelo porte e pela conduta. Nisto surgiu a diferença. Os seus olhos castanhos, muito escuros e astuciosos, eram imorais. Eram levemente salientes e as pálpebras sobrepunham-se de uma forma tal que lhe suscitava o ódio. A boca era também sensual. A postura evidenciava um desprezo cobarde, como se estivesse preparado para derrubar o primeiro que o censurasse... talvez porque ele próprio se censurava.

O homem odiou Paul desde o primeiro dia que o viu. Ao captar o olhar deliberado e impessoal de um artista no rosto do rapaz, enfureceu-se.

– Pa’onde é que tás’olhar? – disse ele desdenhosamente, amedrontando-o.

O rapaz desviou o olhar. O ferreiro costumava encostar-se ao balcão a conversar com Mr. Pappleworth, e a sua conversa era sempre porca e depravada. Quando sentiu novamente os olhos frios e críticos do jovem pousados nele, o ferreiro virou-se, como se tivesse sido mordido por algum bicho.

– Pa’onde é que tás’olhar, ó parvalhão? – rosnou ele.

O rapaz encolheu os ombros.

– Olha que tu...! – berrou Dawes.

– Deixa-o em paz – disse Mr. Pappleworth, naquela sua voz insinuante que parecia dizer «ele é um pobre diabo, mas não faz por mal».

Desde essa altura, Paul passou a olhar para o homem, sempre que o encontrava, com o mesmo olhar crítico e curioso, desviando o olhar antes de encontrar os olhos do ferreiro, o que deixava Dawes fora de si. E, assim, odiavam-se em silêncio.

Clara Dawes não tinha filhos. Quando deixou o marido, desfizeram a casa e ela foi viver com a mãe, enquanto Dawes passou a viver em casa da irmã. Na mesma casa vivia também uma cunhada, e Paul veio a descobrir que a tal rapariga, a Louie Travers, era agora a amante de Dawes. Era uma atrevida bonitona e insolente, que escarnecia do rapaz, mas que se empolgava toda se ele a acompanhava à estação.

A vez seguinte em que Paul foi visitar Miriam era um sábado à tarde. Ela tinha a lareira acesa na sala de visitas e estava à espera dele. Os outros tinham saído, com excepção dos pais e dos irmãos mais novos, pelo que tinham a sala de visitas só para eles. A sala era comprida, de tectos baixos e aconchegada. Na parede havia três pequenos quadros de Paul e o seu retrato estava pousado ao canto da lareira. Em cima da mesa e em cima do piano de pau-rosa, estavam jarras com folhas coloridas. Ele sentou-se na poltrona e ela ajoelhou-se no tapete aos seus pés. A luz da fogueira reflectia-se na sua cara bonita e pensativa.

– O que achaste de Mrs. Dawes? – perguntou Miriam, num tom calmo.

– Não me pareceu muito amistosa – respondeu ele.

– Lá isso não, mas não a achas elegante?

– Sim... no que diz respeito à sua altura. Mas não tem um pingo de bom gosto. Gosto de algumas coisas nela. Ela é sempre assim antipática?

– Penso que não. Penso que não anda satisfeita.

– Com o quê?

– Bem, como é que te sentirias a viver com um homem daqueles?

– Então, porque é que ela casou com ele, sabendo que o ia detestar tão rapidamente?

– Sim, porque é que ela casou com ele? – repetiu Miriam, com aspereza.

– E eu que pensei que ela fosse suficientemente forte para medir forças com ele – disse Paul.

Miriam baixou a cabeça.

– Ah, sim? – perguntou, satiricamente. E o que é que te leva a pensar isso?

– Basta olhar para a boca dela... nascida para a paixão... e a maneira como estica a garganta.

E atirou a cabeça para trás imitando o jeito provocador de Clara.

Miriam baixou ainda mais a cabeça.

– Sim – disse ela.

Fez-se silêncio durante alguns momentos, e Paul pensava em Clara.

– E o que é que te agradou nela? – continuou Miriam.

– Não sei... a pele e a textura da... da... não sei... emana dela uma certa violência... Aprecio-a apenas como artista.

– Pois.

Paul não entendia por que razão Miriam estava ali sentada no chão, meditando de uma forma tão estranha, e isso irritava-o.

– Não gostas mesmo dela, pois não? – perguntou ele à rapariga.

Ela olhou-o com os seus enormes olhos escuros, encantadores.

– Gosto – respondeu.

– Não gostas, não... não podes gostar... muito.

– E pode saber-se porquê? – perguntou ela calmamente.

– Oh, não sei... Talvez gostes dela porque ela odeia os homens.

Esta era provavelmente uma das razões pelas quais ele gostava de Mrs. Dawes, mas isso não lhe tinha ocorrido. Calaram-se. Ele franziu a testa, algo que já se estava a tornar habitual, particularmente quando estava com Miriam. Ela ansiava fazer-lhe desaparecer as rugas da testa, mas tinha medo. Parecia haver um outro homem dentro de Paul Morel, mas que não era o seu.

Algumas bagas vermelhas sobressaíam entre as folhas do vaso. Ele esticou-se e arrancou um raminho.

– Porque será que, se colocares bagas vermelhas no cabelo – disse ele – pareces uma bruxa ou uma sacerdotisa, mas nunca uma libertina.

Ela rasgou um sorriso doloroso, despojado.

– Não sei – disse.

As suas mãos fortes e quentes brincavam alegremente com as bagas.

– Porque não te ris? – disse ele. – Nunca sorris abertamente. Apenas te ris quando algo é estranho ou incongruente, e até isso parece magoar-te.

Miriam baixou a cabeça como se ele a estivesse a admoestar.

– Gostaria muito que sorrisses apenas um minuto para mim... apenas por um minuto. Sinto que isso libertaria alguma coisa dentro de ti.

– Mas... – e olhou-o com uns olhos assustados e lutadores. – ... Mas eu rio-me... sim, eu rio-me.

– Mentira, nunca te ris. Só se for por algo de muito intenso. Sempre que te ris, apetece-me chorar; parece que o teu riso transmite sofrimento. Oh, só de pensar nisso, fazes com que eu enrugue a minha alma.

– Não é minha intenção fazê-lo – disse.

– Eu sou sempre tão espiritual contigo – exclamou ele.

Ela manteve-se em silêncio, a pensar: «Então porque não és de outra forma?» E ele olhou para o seu corpo dobrado, em meditação, e pareceu dividi-lo em dois.

– Estamos no Outono – disse ele – e todas as pessoas libertam o seu espírito.

Caiu novamente o silêncio. Este estranho desentendimento entre eles despedaçava a alma de Miriam. Ele parecia tão bonito, com os seus olhos escuros e um olhar tão profundo como a nascente mais funda.

– Tornas-me tão espiritual – lamentou-se ele. – E eu não quero ser espiritual.

Ela retirou o dedo da boca com um pequeno estalido, e olhou-o em tom provocador. Mas a sua alma continuava nua nos seus olhos grandes e castanhos e o mesmo desejo ardente dominava-a. Se isso fosse possível, ele tê-la-ia beijado na pureza da abstracção. Mas ele não a podia beijar assim... e ela não parecia dar-lhe qualquer outra alternativa. E, no entanto, desejava-o.

Paul sorriu.

– Bem – disse ele –, vamos lá estudar francês... vamos ler Verlaine.

– Sim – disse ela num tom profundo, quase de resignação. Levantou-se e foi buscar os livros. As suas mãos avermelhadas e nervosas metiam dó; como ele desejava confortá-la e beijá-la!! Mas não se atrevia... ou não podia. Algo o impedia. Os seus beijos eram para ela reprováveis. Continuaram a ler até às dez horas, e depois foram para a cozinha; Paul mostrava-se de novo alegre e natural para com os pais de Miriam. Os seus olhos eram escuros e brilhantes e envolvia-o uma aura de fascinação.

Quando foi buscar a bicicleta ao celeiro descobriu que o pneu dianteiro estava furado.

– Vai-me buscar uma tigela com uma pinguinha de água – pediu ele a Miriam. – Vou chegar tarde e já sei que vou ouvir um sermão.

Acendeu a lanterna à prova do vento, despiu o casaco, virou a bicicleta ao contrário e meteu mãos à obra rapidamente. Miriam trouxe-lhe a tigela com água e ficou junto dele, observando-o. Adorava ver as mãos dele em acção. Era elegante e forte, e até os seus movimentos mais rápidos eram feitos com desembaraço. Ocupado como estava, parecia tê-la esquecido. Mas ela amava-o de uma forma absorvente, desejava poder passar as mãos ao longo do seu corpo. Sempre desejara abraçá-lo, desde que ele não a quisesse.

– Já está – disse Paul, levantando-se de repente. – Mais rápido não podia ser!

– Lá isso é verdade! – concordou ela, sorrindo.

Paul endireitou-se. Estava de costas para Miriam. Ela colocou as mãos nas ancas dele, fazendo-as deslizar rapidamente ao longo das pernas.

– És tão elegante! – disse ela.

Ele sorriu. Detestava o tom da voz dela, mas o sangue incendiou-se-lhe ao sentir o contacto das mãos. Ela, pelo contrário, parecia nem dar por ele. Era como se ele fosse um objecto, como se não se apercebesse do homem que ali estava.

Paul acendeu a luz da bicicleta, experimentou-a, bateu com ela no chão do celeiro para verificar o som dos pneus, e apertou o casaco.

– Tudo em ordem! – disse ele.

Ela experimentou os travões, pois sabia que estavam avariados.

– Já os arranjaste? – perguntou ela.

– Não!

– E porque não?

– O travão traseiro funciona mais ou menos.

– Mas não é seguro.

– Posso travar com o pé.

– Era melhor que os tivesses arranjado – murmurou ela.

– Não te preocupes... Amanhã vem tomar chá a minha casa e traz o Edgar.

– A sério?

– A sério... Por volta das quatro... Vou ter convosco.

– Combinado!

Ela estava feliz. Atravessaram o pátio às escuras até ao portão. Olhando em frente, Paul viu as cabeças de Mr. e Mrs. Leivers atrás da vidraça sem cortinas da cozinha, iluminadas pelo fulgor da lareira. O ambiente parecia muito aconchegado. À sua frente, a estrada ladeada de pinheiros abria-se escura.

– Até amanhã – disse ele, montando na bicicleta.

– Vais ter cuidado, não vais? – recomendou ela, como quem pede.

– Vou.

A voz dele soou já da escuridão. Ela deixou-se ficar mais uns instantes a ver a lanterna afastar-se e entrar na noite. Depois, voltou lentamente para casa. Orion elevava-se por cima da floresta, seguida do seu cão cintilante, meio apagado. Fora essa luz, o mundo estava mergulhado na mais densa escuridão e no silêncio, quebrado apenas pelo resfolegar do gado nos estábulos. E ela rezou com devoção pela segurança dele nessa noite. Quando ele a deixava, ficava sempre num estado de extrema ansiedade, imaginando se ele teria chegado bem a casa.

Paul deixava a bicicleta embalar pelas encostas abaixo. As estradas eram escorregadias e ele não podia meter travões. Era um prazer quando a bicicleta se precipitava pelo declive mais íngreme da colina. «Cá vou eu!», dizia ele. Era arriscado por causa da curva completamente às cegas à chegada ao vale, e das carroças dos cervejeiros com os carroceiros bêbados, a dormir. A bicicleta parecia desintegrar-se debaixo dele e Paul adorava a sensação. O descuido é a vingança de um homem sobre a mulher. Sentindo que não é devidamente apreciado, arrisca a sua própria destruição, para que ela sinta a sua falta.

Ao passar veloz pelo lago, as estrelas reflectidas na água pareciam saltar da escuridão como gafanhotos prateados. Depois surgia a longa subida até casa.

– Olha, mãe! – disse ele, atirando as bagas e as folhas para cima da mesa.

– Hum! – fez ela, olhando para a mesa e desviando o olhar. Como sempre, estava sozinha, sentada a ler.

– Não são bonitas?

– São.

Ele sabia que a mãe estava aborrecida. Passados alguns minutos disse:

– O Edgar e a Miriam vêm cá tomar chá amanhã.

A mãe não respondeu.

– Não se importa?

Ela continuou sem responder.

– Então importa-se? – perguntou ele.

– Sabes bem se me importo ou não.

– Não vejo porque se há-de importar... eu como lá tantas vezes...

– Pois comes.

– Então porque lhes recusa um chá?

– A quem é que eu recuso um chá?

– Porque é que a mãe é sempre tão difícil?

– Pronto, não digas mais nada! Convidaste-a para o chá, e isso já é o suficiente. Ela não falta.

Paul ficou muito aborrecido com a mãe. Sabia que ela não gostava de Miriam. Atirou com as botas e foi deitar-se.

Paul foi abrir a porta aos amigos no dia seguinte. Estava feliz de os ver chegar. Vieram por volta das quatro horas. Tudo estava sereno e calmo para domingo à tarde. Mrs. Morel estava sentada, com o seu vestido preto e o avental branco, mas levantou-se para receber as visitas. Foi cordial com Edgar, mas fria e muito esquiva com Miriam. Todavia, Paul achava que a rapariga estava bem bonita no seu vestido castanho de caxemira.

Ajudou a mãe a preparar o chá. Miriam ter-se-ia oferecido de agrado para ajudar, mas tinha receio. Paul tinha muito orgulho da sua casa. Havia nela uma certa distinção, pensava ele. As cadeiras eram simples, de madeira, e o sofá já velho. Mas o tapete e as almofadas eram aconchegantes; os quadros eram gravuras de bom gosto; a simplicidade dominava e havia muitos livros. Nem ele nem Miriam se envergonhavam das casas que tinham, pois eram tudo aquilo que deviam ser, e ainda acolhedoras. Então na mesa tinha grande orgulho; o serviço de chá era bonito e a toalha fina; pouco importava que as colheres não fossem de prata e nem o cabo das facas de marfim; tudo estava bonito. Mrs. Morel tinha cuidado maravilhosamente de tudo enquanto os filhos cresceram. Assim, nada se encontrava fora do lugar.

Miriam falou um pouco de livros, pois era um assunto que dominava bem. Mas Mrs. Morel não se mostrou interessada, virando-se rapidamente para Edgar.

A princípio, quando Edgar e Miriam iam à igreja, sentavam-se no banco de Mrs. Morel. Morel nunca lá ia, pois preferia a taberna. Mrs. Morel, arvorando-se em chefe da família, sentava-se numa extremidade do banco e Paul na outra extremidade; a princípio, Miriam sentava-se ao lado dele. A capela lembrava a Paul a sua casa. Era um lugar bonito, com bancos escuros e pilares estreitos e elegantes, e com muitas, muitas flores. As mesmas pessoas sentavam-se sempre nos mesmos lugares desde que ele era menino. Era bastante agradável e reconfortante estar ali sentado durante uma hora e meia, ao lado de Miriam e perto da mãe, unindo os seus dois amores sob o fascínio daquele local de culto. Sentia-se a um tempo entusiasmado, feliz e religioso. Terminada a missa, acompanhava Miriam a casa, enquanto Mrs. Morel passava o resto da tarde com a sua velha amiga Mrs. Burns. Sentia-se verdadeiramente vivo durante os passeios que dava ao domingo pela tardinha com Edgar e Miriam. Sempre que passava de noite pelas minas, pelo depósito das lanternas, todo iluminado, pelas torres altas e negras e pelas filas de vagões parados em frente das ventoinhas que giravam lentamente na escuridão, tinha a sensação intensa e quase insuportável de que Miriam voltaria para si.

Mas Miriam não ocupou por muito tempo o banco da família Morel, pois o pai arranjou novamente um outro banco. Ficava mesmo por baixo da pequena galeria, em frente ao banco dos Morels. Quando Paul e a mãe chegavam à capela, o banco dos Leivers estava sempre vazio. Ele receava que não viessem: a capela ficava muito longe e eram muitos os domingos chuvosos. Mas a dado momento, quase sempre atrasada, Miriam chegava com o seu passo amplo, cabeça baixa e face oculta pelo chapéu de veludo verde-escuro. Visto sentar-se do lado oposto, a sua cara ficava sempre na sombra, o que até o fazia sentir-se bem, pois ao vê-la ali à sua frente era como se a alma se lhe agitasse dentro do corpo. Não era o mesmo calor, a mesma alegria e o mesmo orgulho que sentia ao ter a mãe a seu lado, como chefe: era algo mais maravilhoso ainda, menos humano, um sentimento intenso temperado pela dor, algo que ele sabia que não podia alcançar.

Foi nesta altura que começou a pôr em questão a doutrina ortodoxa. Ele tinha vinte e um anos e ela vinte. Miriam receava a chegada da Primavera: ele tornava-se agressivo e magoava-a muito. Tudo o que mais queria era destruir cruelmente as crenças dela. Edgar, crítico por natureza e sem sentimentos, gostava desta situação. Mas Miriam sofria amargamente, pois o homem que amava possuía uma inteligência cortante que dissecava a religião em que ela fora criada e se movimentava, e onde habitava o seu Eu. Mas ele não a poupava e mostrava-se muito cruel. Quando estavam sozinhos, tornava-se ainda mais violento, como se quisesse matar-lhe a alma, explorando as suas crenças até ela quase perder a consciência.

– Ela regozija-se... regozija-se quando afasta o meu filho de mim – gritava Mrs. Morel do fundo do coração, quando Paul saía de casa. – Ela não é como qualquer mulher comum, que permite que eu faça parte do meu filho. Ela quer absorvê-lo. Quer tirar-mo e absorvê-lo, até que nada reste dele, nem sequer para ele próprio. Assim, ele nunca será senhor de si... ela irá sugá-lo completamente. – E Mrs. Morel sentava-se, debatendo pressentimentos e meditando tristemente.

Quando regressava dos seus passeios com Miriam, Paul vinha trespassado de sofrimento. Caminhava com passo apressado, mordendo os lábios e cerrando os punhos. Quando chegava a uma cerca, parava por alguns minutos, imobilizado. À sua frente estendia-se a escuridão sem fim; as negras encostas salpicavam-se de florescências luminosas; e, nos recônditos da noite, brilhava o clarão da mina. Tudo era estranho e ameaçador. Porque estava ele tão dilacerado, quase em êxtase, incapaz de se mover? Porque estava a mãe sentada em casa a sofrer? E sabia que ela sofria bastante. Mas porquê? E porque detestava ele Miriam e era tão cruel para ela, quando pensava na mãe? Já que Miriam fazia a mãe sofrer, ele tinha de a detestar. E com facilidade a detestava. Porque o levava ela a duvidar de si próprio, deixando-o inseguro, indefinido, como se não pudesse evitar que a noite e o espaço caíssem sobre ele? Como ele a odiava! Mas logo um ímpeto de ternura e humilhação o envolvia.

De repente, precipitava-se para casa a correr. A mãe reconhecia nele as marcas da agonia, mas nada dizia. Ele, porém, tinha de obrigá-la a falar, pois via-a zangada por ele ter ido passear com Miriam para tão longe.

– Porque é que não gosta dela, mãe? – gritou ele um dia, desesperado.

– Não sei, meu filho – respondeu ela num tom comovente. – Já tentei gostar, tentei com todas as minhas forças... mas não consigo... não consigo...

E, entre ambas, ele sentia-se triste e sem esperanças. A Primavera era a pior das estações. Ele ficava instável, enérgico e cruel. Assim, decidiu afastar-se dela. Surgiam então as horas a que ele sabia que Miriam o esperava, e a mãe apercebia-se da sua impaciência. Paul não conseguia progredir no seu trabalho, não conseguia fazer nada. Era como se algo transportasse a sua alma até Willey Farm. De repente, punha o chapéu e saía sem dizer nada. E a mãe sabia que ele tinha partido. Assim que se punha a caminho respirava de alívio. Mas, mal chegava ao pé de Miriam, tornava-se novamente cruel.

Certo dia, em Março, estava Paul deitado nas margens do lago Nethermere, com Miriam sentada a seu lado. Estava um dia resplandecente, branco e azul. Nuvens grandes e brilhantes passavam altas, e as suas sombras moviam-se silenciosas sobre a água. Os espaços abertos no céu tinham um tom glacial de azul. Paul estava deitado de costas sobre a relva, olhando o céu. Não conseguia olhar para Miriam. Ela parecia desejá-lo e ele resistia. Resistia sempre. Ela queria dar-lhe a sua paixão, a sua ternura, mas não era capaz. Ele sentia que ela não o queria; que apenas queria a sua alma. Miriam retirava-lhe as forças e a energia através de um canal que os unia. Ela não queria o corpo dele, pois nesse caso seria apenas duas pessoas, homem e mulher, em comunhão. Queria absorvê-lo completamente. E ele sentia-se estimulado por um impulso quase de loucura, que o fascinava, com um fascínio de droga.

Ele falava sobre Miguel Angelo. Ao escutá-lo, ela sentia que tocava o protoplasma da vida, as próprias células palpitantes, e a sua satisfação era plena. Mas, no final, isso assustava-a. Ali estava ele deitado, na intensidade imaculada da procura, e a sua voz amedrontava-a num crescendo, levando-a quase a tocar as raias do inumano, como se num transe.

– Não digas mais nada – pediu Miriam, com ternura, pousando a mão na testa dele. Ele permanecia estático, incapaz de se mover. O seu corpo estava de algum modo abandonado.

– Porquê... estás cansada?

– Estou, e tu também vais ficar.

Ele deu uma pequena gargalhada, apercebendo-se da situação.

– Contudo, sabe-me bem – disse ele.

– Mas não é essa a minha intenção – disse ela, muito baixinho.

– Não quando já foste longe de mais e sentes que já não és capaz de te dominar. Mas o teu eu inconsciente clama por isso. E eu suponho que também quero o mesmo.

– Então como posso evitá-lo?

– Penso que não podes, pois tu fazes sempre o mesmo. Desligas-me algures e retiras-me de mim próprio. Sinto-me como um fantasma, sem corpo.

– Não! – implorou ela.

– Agora mesmo, neste momento, olho para as minhas mãos e pergunto-me o que estão elas ali a fazer. Aquela água, por exemplo, ondula através de mim. Eu sou a ondulação. Corre através de mim e eu através dela. Não há barreiras entre nós.

– Mas...! – E Miriam hesitou.

– O que resta de mim é apenas uma consciência disseminada. Sinto que o meu corpo está deitado aqui, vazio, como se eu estivesse dentro de outras coisas... das nuvens e da água...

Ela olhou para ele e reparou naquele olhar tão estranho, como se ele fosse uma coisa e não uma pessoa, o que a fascinava tanto, mas que tanto receava. E era precisamente esse receio que a impelia a ter muito mais. Mas, agora, queria que ele parasse.

– Sabes – prosseguiu – o meu eu físico está liberto. Mas, se assim for, então eu não estou vivo. Tenho a certeza de que me destruiria. O que tu queres é pores-me gordo e banal, e não uma sombra. Queres fechar bem a minha alma dentro da sua bainha. Mas ela um destes dias libertava-se, tal como a espada que se libertou de uma bainha lassa e caiu ao mar.

Miriam meditava tristemente. Nisto, levantou a cabeça e olhou-o com os olhos muito brilhantes.

– Então deixa-me ser a tua protecção – disse ela.

E estendeu as mãos para as dele.

– Se tu pudesses... – disse ele. – Mas tu és aquilo que o teu eu inconsciente te impõe, e não aquilo que queres ser. Nenhum de nós dois é completamente normal... porém, agora eu quero sê-lo, mas penso que tu não queres. Tu queres ser algo fora do comum.

– Não, não quero – exclamou ela. Mas havia medo na sua voz.

– De qualquer forma – continuou Paul, num tom apático –, isso agora não é possível. Não me podes ter dessa maneira. Neste momento eu e tu somos apenas almas desprovidas de sangue. E isso provocaria uma vibração diferente, que se entrechocaria com este estado actual numa verdadeira tortura... Se ao menos pudesses querer-me, e não apenas quereres aquilo que eu tenho para te papaguear.

– Eu! – exclamou Miriam num tom áspero. – Eu! Quando é que eu te posso ter?

– Então a culpa é minha – disse ele, e juntando as partes dispersas do seu eu, levantou-se e começou a falar de coisas triviais. Sentia-se irreal. De uma forma vaga, detestava-a por isso. Sabia que era ele o culpado e, no entanto, isso não o impedia de a odiar.

Certa noite, na mesma época, em que Paul tinha ido levar Miriam a casa, pararam perto do prado que se estendia até à floresta, incapazes de se separarem. Assim que as estrelas surgiram, as nuvens desapareceram e eles captaram fugazmente a sua Orion, que se dirigia para oeste. As jóias de Orion brilharam por um breve instante, com o seu cão correndo rasteiro, lutando com dificuldade para atravessar a espuma de uma nuvem.

Orion era para eles a constelação mais carregada de significado. Era nela que os seus olhos se haviam fixado nos momentos mais estranhos e intensos, até sentirem que viviam em cada uma das suas estrelas. Nessa noite, Paul mostrava-se taciturno e perverso. Orion parecia-lhe apenas uma constelação, nada mais. Lutava contra o seu brilho, o seu fascínio. Miriam observava atentamente a disposição do seu amado, mas ele nada disse que o comprometesse até ao momento da partida, quando, de testa franzida, ficou parado a olhar tristemente para o castelo de nuvens, por detrás do qual a grande constelação estaria ainda a transitar.

No dia seguinte havia uma pequena festa em casa dele, para a qual Miriam estava convidada.

– Não posso vir buscar-te – disse ele.

– Não faz mal... O tempo também não está dos melhores para andar na rua... – respondeu ela serenamente.

– Não é isso... eles é que não gostam que eu venha. Dizem que me preocupo mais contigo do que com eles. E tu compreendes, não é verdade?... Tu sabes que entre nós existe apenas amizade.

Miriam ficou perplexa e com pena dele. Como lhe devia ter custado dizer aquelas palavras. Deixou-o, para lhe poupar outra humilhação. Uma chuva fina batia-lhe no rosto enquanto caminhava. Estava profundamente magoada e desprezava-o por ele se deixar levar pelo mais leve sopro de autoridade. No fundo do seu coração, sentia inconscientemente que ele tentava afastar-se dela, mas como jamais teria a coragem de o admitir, sentia pena dele.

Por esta altura, Paul tornou-se num elemento imprescindível do armazém da Jordan. Mr. Pappleworth saiu para se estabelecer por conta própria e Paul passou a supervisor da Espiral. Se tudo corresse bem, o seu salário seria aumentado para trinta xelins no final do ano.

Miriam vinha quase todas as sextas-feiras à noite para a lição de francês. Paul já não ia tão amiúde a Willey Farm, e ela receava que a sua aprendizagem estivesse prestes a terminar; por outro lado, e apesar das discórdias, gostavam de estar um com o outro. Liam Balzac, escreviam composições e sentiam-se bastante cultos.

A noite de sexta-feira era a noite de pagamento para os mineiros. Morel «repartia o bolo», ou seja, dividia os lucros da empreitada, quer no New Inn, em Bretty, quer na sua própria casa, conforme os seus companheiros preferissem. Barker tinha deixado de beber, e agora os homens «dividiam o bolo» em casa de Morel.

Annie, que tinha estado a dar aulas longe dali, regressara de novo a casa. Era ainda uma rapariga endiabrada. Estava noiva e ia casar. Paul andava a estudar desenho.

Morel estava sempre bem-disposto às sextas-feiras à noite, a não ser que os ganhos dessa semana fossem escassos. Depois do jantar, entregava-se a longos preparativos para se lavar. A decência exigia que as mulheres se ausentassem durante as reuniões masculinas. As mulheres não deviam assistir à reunião dos sócios, que era considerada assunto estritamente masculino... e nem deviam ficar a saber qual o montante exacto dos ganhos semanais. Assim, enquanto o pai barafustava na cozinha, Annie saiu e foi por uma hora para casa da vizinha, e Mrs. Morel foi à cozinha ver se o pão já estava cozido.

– Fecha a porta! – berrou Morel, furioso.

Annie bateu com a porta e saiu.

– S’ela torna a abrir a porta enquant’eu tou a tomar banho, amando-lh’um murro que lhe parto os queixos – berrou ele, ameaçador, por entre a espuma do sabão. Paul e a mãe franziram as sobrancelhas ao ouvi-lo.

Logo depois, saiu da cozinha, tremendo de frio e pingando o chão todo de água ensaboada.

– Oh, cos diabos! – disse ele. – Onde está a minha toalha?

Estava pousada numa cadeira, frente à lareira, para aquecer, pois, se assim não fosse, ele teria feito um grande estardalhaço. Aninhou-se sobre os calcanhares frente ao lume vivo, para secar.

– Brrrr... – continuou, fingindo tremer de frio.

– Ó homem, não sejas criança! – disse Mrs. Morel. – Não está frio nenhum.

– Exprimenta despires-te e tomares banho naquela cozinha – disse o mineiro, enxugando o cabelo. – Mas que gelo de casa!

– Eu não faria com certeza tanto alarido – respondeu a mulher.

– Ah, poi não. Caías redonda no chão que nem uma pedra.

– Porque é que uma pedra há-de ser mais redonda do que outra coisa qualquer? – perguntou Paul curioso.

– Essa agora... sei lá... é o que se diz – argumentou o pai. – Nesta tua cozinha há muitas correntes de ar, e quando ele passa através das costelas parece vento a passar por uma cancela de cinco traves.

– Sempre teria alguma dificuldade em passar através das tuas costelas – disse Mrs. Morel.

Morel olhou desanimado para ambos os lados do seu corpo.

– Eu! – exclamou. – Eu cá num tenho pele de coelho. Os meus ossos vêem-se no meu corpo!

– Gostaria de saber onde – retorquiu a mulher.

– Por todo o lado! Mas também num sou nenhuma carga de ossos.

Mrs. Morel deu uma gargalhada. Ele tinha um corpo ainda belo, jovem e musculado, sem gorduras. A pele era macia e clara. Poderia bem ser o corpo de um homem com vinte e oito anos, se não fossem as várias cicatrizes azuladas, semelhantes a tatuagens, onde o pó do carvão se tinha alojado, e o seu peito peludo. Morel pôs as mãos nos quadris, desanimado. Acreditava piamente que, por não engordar, era magro como um rato esfomeado.

Paul olhou para as mãos do pai, calejadas, escuras, cobertas de cicatrizes e com as unhas partidas, a esfregarem a maciez do seu corpo, e ficou admirado, pois parecia-lhe estranho serem feitas da mesma carne.

– Suponho – disse, virando-se para o pai – que antigamente tinha uma bela figura.

– Eh, olha lá o que dizes! – exclamou o mineiro, olhando em volta, espantado e tímido, como uma criança.

– Tinha uma bela figura, sim senhor! – exclamou Mrs. Morel. – O pior foi ele andar sempre aos encontrões a tudo, como se quisesse meter-se no buraco mais pequeno que encontrava.

– Eu? – exclamou Morel. – Eu, uma bela figura! Nunca passei de um esqueleto.

– Credo, homem! – gritou a mulher. – Não sejas tão piegas!

– É ve’dade – disse ele. – Tu nunca me viste qu’eu não parecesse qu’emagrecia de dia pra dia.

Mrs. Morel sentou-se e deu uma gargalhada.

– Tens um corpo de ferro – disse ela. – No tocante ao corpo, nunca nenhum homem te levou a melhor. Devias ter visto o teu pai em novo... – exclamou, de repente, virando-se para Paul e empertigando-se, para imitar a postura outrora garbosa do marido. Morel observava-a, envergonhado. Viu novamente a paixão que ela sentia por ele, e que brilhou durante alguns momentos à volta dela. Ele era tímido, assustadiço e humilde. Agora, porém, sentia de novo a velha força de outros tempos. Mas imediatamente sentiu na carne os estragos praticados ao longo de todos estes anos e só queria desaparecer, fugir de tudo.

– Lava-me as costas – pediu ele à mulher.

Ela trouxe uma toalha ensopada e ensaboada e colocou-lha sobre os ombros. Ele deu um salto.

– Oh, desgraçada! – berrou ele. – Tá gelada como a morte!

– Devias ter nascido salamandra – disse ela a rir, lavando-lhe as costas. Só raramente o ajudava nestas tarefas tão pessoais. Geralmente, eram os filhos quem fazia este tipo de coisas.

– O outro mundo não vai ser suficientemente quente para ti – acrescentou ela.

– Poi não – disse ele. – Tu vais fazer com que sopre uma aragem pra m’arrefecer.

Mas ela já tinha terminado. Enxugou-o rapidamente e subiu ao primeiro-andar, regressando em seguida com um par de calças limpas. Assim que se secou, Morel vestiu a camisola. Depois, rosado e luzidio, com o cabelo em pé e a camisola de flanela vestida por cima das calças de mineiro, aqueceu as ceroulas que ia vestir a seguir. Virou-as, pô-las do avesso e ressequiu-as.

– Oh, homem, veste-te! – exclamou Mrs. Morel.

– Queria ver se gostavas de vestir uma roupa tão fria como a água da banheira – disse ele.

Por fim, despiu as calças e vestiu-se condignamente de preto. Fez tudo isto em cima do tapete da lareira, e teria feito o mesmo se Annie e os amigos íntimos estivessem presentes.

Mrs. Morel virou o pão no forno. Depois, retirou uma mão-cheia de massa do alguidar de barro, que se encontrava a um canto da cozinha; trabalhou a massa dando-lhe a forma adequada e meteu-a numa tigela. Enquanto fazia isto, Barker bateu à porta e entrou. Era um homem baixo, compacto e calmo, que parecia capaz de atravessar um muro de pedra. O cabelo era preto e curto e a cara bem-parecida. Tal como a maioria dos mineiros, era pálido, mas saudável e rijo.

– Boa noite, ‘nha senhora – disse o homem, curvando a cabeça e sentando-se, com um suspiro.

– Boa noite – respondeu ela, cordialmente.

– Fizeste ranger os tacões – disse Morel.

– Num dei por nada – disse Barker.

Retraído, sentou-se num dos bancos da cozinha, como os colegas normalmente faziam.

– Como está a sua senhora? – perguntou-lhe Mrs. Morel. Há algum tempo, ele tinha-lhe dito: «Sabe, estamos à espera do terceiro...»

– Bem – respondeu ele, coçando a cabeça –, penso que está tão boa quanto o possível.

– Ora deixa cá ver... para quando é? – perguntou Mrs. Morel.

– Bem... penso que está para chegar a qualquer momento...

– Ah, sim? E tem passado bem?

– Sim... tudo em ordem.

– É um milagre, pois ela não é muito forte.

– É verdade. ... E eu fiz outra asneira.

– O que foi?

Mrs. Morel sabia que Barker não teria feito nada de muito errado.

– Não consegui dar co’a alcofa das compras.

– Pode levar a minha.

– Não... óspois vossemecê pode precisar.

– Não preciso, não. Levo sempre um saco de rede.

Todas as sextas-feiras à noite, Mrs. Morel via o mineiro, baixo e desembaraçado, a comprar os legumes e a carne para toda a semana, e sentia grande admiração por ele.

– O Barker pode ser baixo, mas é dez vezes mais homem do que tu – tinha dito ela ao marido.

Nisto, entrou Nessen. Apesar de pai de sete filhos, era magro, muito frágil, com uma ingenuidade de adolescente e um sorriso levemente matreiro. Mas a mulher dele era uma mulher apaixonada.

– Estou a ver que me batest’òs pontos – disse, sorrindo sem brilho.

– Pois foi – respondeu Barker.

O recém-chegado tirou o boné e o grosso cachecol de lã. Tinha um nariz pontiagudo e vermelho.

– É capaz de ter frio, Mr. Wesson – disse Mrs. Morel.

– Aqui tá um bocado de frio – respondeu.

– Então aproxime-se do lume.

– Não, tou bem aqui.

Os dois mineiros sentaram-se um pouco mais arredados. Não queriam ficar em cima do tapete da lareira, pois esse lugar era sagrado para a família.

– Senta-te no cadeirão – exclamou Morel, alegremente.

– Não, obrigado. Tou muito bem aqui.

– Ora essa, chegue-se para aqui – insistiu Mrs. Morel.

O homem levantou-se e, avançando desajeitadamente, sentou-se no cadeirão de Morel, envergonhado. Era tomar demasiada confiança. Mas estar ao pé do lume deixava-o muito feliz.

– E então como está o seu peito? – perguntou Mrs. Morel.

Ele sorriu novamente, com uns olhos azuis muito brilhantes.

– Ora, vai indo! – disse ele.

– Como um chocalho – atalhou Barker.

– T..t..t..t – fez Mrs. Morel com a língua. – Já mandou fazer a camisa de flanela?

– Ainda não – disse ele sorrindo.

– E porque não? – perguntou ela.

– Lá chegará o dia... – disse ele, sorrindo.

– Ah, o dia de São Nunca, estou a ver – exclamou Barker.

Barker e Morel preocupavam-se com Wesson, pois fisicamente eram ambos fortes que nem touros.

Quando Morel estava quase pronto, entregou o saco do dinheiro a Paul.

– Contó lá, rapaz – pediu com humildade.

Impaciente, Paul abandonou os livros e os lápis e despejou o saco para cima da mesa. Continha cinco libras em moedas de prata, várias moedas de vinte xelins e alguns trocados. Paul contou o dinheiro rapidamente, incluindo os cheques e os papéis com os totais do carvão, e pôs as moedas por ordem. Então Barker deu uma olhadela aos cheques.

Mrs. Morel subiu ao primeiro andar e os três homens sentaram-se à mesa. Morel, como dono da casa, sentou-se no seu cadeirão com as costas viradas para a lareira. Os outros dois sentaram-se em cadeiras frias. Nenhum deles contou o dinheiro.

– Quant’é que dissemos qu’era prò Simpson? – perguntou Morel. E, durante um minuto, discutiram os ganhos diários do companheiro, sendo o valor respectivo posto de lado em seguida.

– E quant’é prò Bill Naylor?

Também este valor foi retirado do saco.

E então, visto que Wesson vivia numa casa da companhia e a renda já tinha sido deduzida, Morel e Barker retiraram quatro xelins e seis dinheiros cada um. E, para compensar o carvão que Morel já tinha trazido, Barker e Wesson receberam mais quatro xelins cada. Depois, a distribuição foi simples: Morel deu a cada um uma moeda de vinte xelins, até não restar nenhuma; mais meia coroa a cada um, até não restarem mais; e ainda uma moeda de um xelim, até acabarem. Se no fim restasse alguma coisa que não pudesse ser dividida, Morel guardava esse dinheiro para pagar uma rodada de cerveja.

Finalmente, os três homens levantaram-se e saíram. Morel tratou de se escapar antes de a mulher descer. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu. Deu uma olhadela rápida ao pão que tinha no forno e, olhando para a mesa, viu o seu dinheiro. Paul tinha estado sempre embrenhado no trabalho. Mas agora apercebia-se de que a mãe, ao contar a semanada, se enfurecia.

– T..t..t – era o barulho que ela fazia com a língua.

Paul franziu a testa. Não conseguia trabalhar quando a via aborrecida. Mrs. Morel contou novamente o dinheiro.

– Uns míseros vinte e cinco xelins! – exclamou ela. – Qual era o valor do cheque?

– Dez libras e onze xelins – disse Paul, irritado. Ele receava o que estava para vir.

– E esta semana ele dá-me uma porcaria de vinte e cinco xelins, e ainda tenho de tirar o dinheiro para o clube. Eu bem o conheço... Pensa que por tu ganhares, já não precisa de sustentar a casa. Ele que coma o dinheiro, se quiser. Mas eu digo-lhe como é...

– Oh, mãe, não... – exclamou Paul.

– Não, o quê, posso saber? – disse ela.

– Não reaja assim... senão não consigo trabalhar.

Ela continuou, mas já um pouco mais calma.

– Pronto, está certo – disse ela. – Mas como é que pensas que me vou governar?

– Eu sei, mas não adianta nada piorar a situação.

– Gostava de saber o que é que farias se tivesses de aturar isto?

– Já não será por muito tempo... Vai ter o meu dinheiro não tarda, e ele que vá para o diabo.

Retomou o trabalho, e ela apertou as fitas do chapéu com desalento.

O filho não suportava vê-la assim, quando ela estava zangada. Todavia, começava agora a tentar dar-lhe isso a perceber.

– Os dois pães do tabuleiro de cima estão prontos dentro de vinte minutos – disse Mrs. Morel. – Não te esqueças.

– Está bem – respondeu ele, e Mrs. Morel saiu para o mercado.

Paul ficou sozinho a trabalhar. Mas a sua habitual concentração estava perturbada. Ouviu bater a cancela do pátio. Cerca das sete e um quarto, bateram ao de leve na porta e Miriam entrou.

– Estás sozinho? – perguntou.

– Estou.

Como se estivesse na sua própria casa, tirou a boina escocesa e o casaco comprido e pendurou-os. Ele sentiu uma tremura. Esta podia ser a casa deles, dele e dela.

Miriam aproximou-se e espreitou o que ele estava a fazer.

– O que é? – perguntou.

– Uma natureza morta... para decorar objectos e bordados.

Ela inclinou-se mais, aproximando os olhos míopes do desenho.

– E gostas do que fazes? – inquiriu.

– Adoro. Neste momento ando em maré de convencionalizar tudo.

– Ah...

Miriam não se interessava por estudos convencionais, mas reconhecia que ele devia saber mais do que ela sobre tais coisas. Eram coisas de homens, coisas que não lhe diziam respeito. No entanto, havia de descobrir a razão por que ele andava, como dizia, em maré de convencionalizar tudo. Que fascínio poderia ter para ele o convencional?

– O que é que te faz gostar disto? – perguntou ela, intrigada.

Ele, como já era seu hábito, procurou justificar-se. Lutando com as palavras, tentou explicar-lhe a teoria de que a força de gravitação é o agente mais poderoso, o factor responsável pela forma das coisas, e que, se pudesse agir em completa liberdade, apareceria uma rosa geometricamente correcta nas linhas e nas proporções... e assim por diante. Isto fez desabrochar nela um certo conceito de desenho convencional que até aí lhe parecia ser pura mentira. Por fim, ele empurrou os livros para o lado.

– Posso...? – disse ele, ansioso e hesitante.

– Podes o quê?

– Mostrar-te isto... Não era minha intenção enquanto não estivesse pronto.

Paul não conseguia esconder-lhe nada do que fazia. Foi à sala e voltou com uma trouxa de linho cru. Desembrulhou-a cautelosamente e estendeu-a no chão. Era um cortinado, ou melhor, um portière, magnificamente decorado com rosas, estampadas a stencil.

– Ah, que bonito! – exclamou ela.

O tecido espraiou-se aos pés dela, com as suas maravilhosas rosas em tons rubros e caules em verde-escuro, tudo muito simples, mas com um não sei quê de perverso. Ela ajoelhou-se, deixando pender soltos os caracóis. Ele, ao vê-la assim, voluptuosamente debruçada sobre a sua obra, sentiu bater mais depressa o coração. De repente, ela ergueu os olhos para ele.

– Porque é que isto parece tão cruel? – perguntou.

– O quê?

– Parece haver neste padrão uma certa crueldade – disse ela.

– Haja ou não haja, a mim parece-me óptimo – replicou ele, dobrando o trabalho com mãos de amante. Ela levantou-se devagar, pensativa.

– Que vais fazer com isto? – perguntou ela.

– Mandá-lo para os armazéns Liberty. Fi-lo para a minha mãe... mas acho que ela prefere o dinheiro.

– Estou a ver... – disse Miriam. Havia na voz dele um travo de amargura, e ela ficou com pena. A ela, o dinheiro jamais lhe interessaria.

Paul levou o tecido novamente para a sala, e, quando voltou, atirou a Miriam um retalho mais pequeno. Era a fronha de uma almofada, com um padrão idêntico.

– Fi-la para ti.

Miriam apalpou o trabalho com mãos trémulas, em silêncio. Paul ficou embaraçado.

– Meu Deus, o pão! – gritou ele.

Tirou os pães do tabuleiro superior e bateu-lhes vigorosamente. Já estavam cozidos. Pô-los ao lado da lareira, para arrefecerem. Em seguida, foi à copa, molhou as mãos, retirou do alguidar a massa, muito branca, que ainda restava, e colocou-a dentro de uma forma de pão. Miriam continuava debruçada sobre o tecido pintado. Enquanto isso, Paul esfregava as mãos, esforçando-se por tirar os bocadinhos de massa que se lhe tinham agarrado.

– Gostas? – perguntou ele.

Ela levantou para ele os seus olhos profundos, inflamados de amor. Ele riu-se, contrafeito. Depois começou a falar do seu desenho. Falar com Miriam sobre os trabalhos que fazia era para ele fonte do mais intenso prazer. Punha toda a sua paixão, toda a violência do seu sangue, nestas conversas com ela, em que discutia e concebia as suas obras. Ela fazia-lhe desabrochar a imaginação, embora não entendesse, como nenhuma mulher entende, quando concebe uma criança no seu ventre. Mas isto para ela, sim, era viver. E para ele também.

Enquanto conversavam, uma rapariga que andaria pelos vinte e dois anos, baixa e descorada, de olhos encovados, mas olhar determinado, entrou na sala. Era uma amiga dos Morels.

– Põe-te à vontade – disse Paul.

– Não... não me demoro.

Sentou-se no cadeirão de braços, em frente de Paul e de Miriam, que estavam no sofá. Miriam afastou-se um pouco mais de Paul. A casa estava quente e cheirava a pão acabado de fazer: os pães tostadinhos, a estalar, pousados ao lado da chaminé.

– Não esperava vir encontrar-te hoje aqui, Miriam Leivers – disse Beatrice, maldosa.

– Não sei porquê! – resmungou Miriam, asperamente.

– Porque... Ora deixa lá ver os teus sapatos.

Miriam, constrangida, não se mexeu.

– Se não sabes, não sabes, e pronto – disse Beatrice, dando uma gargalhada.

Miriam tirou os pés de baixo do vestido. As suas botas tinham aquele ar indeciso e patético que evidenciava bem o quanto ela era insegura e complexada. E estavam, além disso, cobertas de lama.

– Santa Maria!... És mêmo um monte de lama! – exclamou Beatrice. – Quem te limp’as botas?

– Limpo-as eu.

– Então não deves ter mai nada que fazer – disse a outra. – Havia de ser preciso muitos homens pra me fazerem vir ‘té’qui esta noite... Mas o amor zomba da lama... não é, ‘Póstolo, meu lindo?

– Inter alia – disse ele.

– Valha-me Deus, não me digas que te vais pôr agora a vomitar línguas estrangeiras!... O qu’é que isso quer dizer, Miriam?

– «Entre outras coisas», julgo eu – disse ela, humildemente. Beatrice riu-se maliciosamente, com a ponta da língua a despontar entre os dentes.

– «Entre outras coisas», ‘Póstolo? – repetiu ela. – Queres tu dizer qu’o amor se ri das mães e dos pais e das irmãs e dos irmãos e dos amigos e das amigas, e se calhar até do próprio ser amado?

Estava a fazer-se de ingénua.

– Na verdade, o amor é um sorriso rasgado – retorquiu ele.

– Isso é qu’era bom, ‘Póstolo Morel... Vai por mim... – disse ela.

E riu-se de novo, com malícia, muito baixinho.

Miriam continuava calada, fechada sobre si mesma. Todas as amigas de Paul adoravam meter-se com ela, e ele deixava-a entregue a si própria, como se aproveitasse para se vingar.

– Ainda continuas na mesma escola? – perguntou Miriam a Beatrice.

– Continuo.

– Então ainda não te mandaram embora?

– Devem mandar na Páscoa.

– Não achas uma pouca-vergonha... mandarem-te embora só por não teres passado no exame?!

– Não sei – ripostou Beatrice, friamente.

– A Agatha diz que és tão boa professora como as outras. A mim parece-me ridículo. Porque será que não passaste?

– Cabeça dura, hem, ‘Póstolo? – disse Beatrice, secamente.

– Só lhe serve para morder – retorquiu Paul, a rir.

– Monstro! – gritou ela, e, saltando do lugar, atirou-se a ele e deu-lhe um puxão de orelhas. As mãos dela eram pequeninas e elegantes. Ele prendeu-lhe os pulsos enquanto ela se debatia. Conseguiu por fim libertar-se e, apanhando dois punhados do cabelo dele, castanho e espesso, puxou com toda a força.

– Oh, Bea – disse ele, alisando o cabelo com os dedos. – Odeio-te.

Ela riu, consolada.

– Com licença! – disse ela. – Quero sentar-me ao pé de ti.

– Antes estar sentado ao lado duma fera – disse ele, deixando no entanto espaço para a outra se sentar entre ele e Miriam.

– Olha, ficou com o cabelinho todo despenteado! – exclamou Beatrice, penteando-o com o seu próprio pente.

– E o bigodinho também! – continuou ela. E, atirando a cabeça para trás, com um trejeito, penteou-lho.

– Tens um bigodinho todo malandro, ‘Póstolo – disse ela. – Vermelho, sinal de perigo... Ainda tens daqueles cigarros?

Paul tirou a cigarreira do bolso. Beatrice olhou.

– Já não tens nenhum daqueles charros qu’a Connie te deu? – perguntou.

– Ainda devo ter um por aí...

Procurou no bolso e encontrou uma caixinha. Beatrice pegou-lhe.

– É isso, só tens um! – disse ela. – Devia ser para a Miriam. Não queres o charro da Connie, Miriam?

– Não, obrigada – replicou Miriam. – Quem é a Connie?

– Ele não te contou? – exclamou Beatrice, surpresa. – Bem, ‘Póstolo Morel, acho que não é bonito deixar uma menina tão linda às escuras.

– Não queres mesmo fumar? – perguntou Paul a Miriam.

– Sabes bem que não – respondeu ela.

– Imaginem só, eu a fumar o último cigarro da Connie – disse Beatrice, metendo o cigarro entre os dentes. Paul estendeu-lhe um fósforo aceso e ela aspirou sofisticadamente.

– Obrigadíssima, querido – disse, trocista.

Dizer estas coisas dava-lhe um prazer perverso a que não conseguia resistir.

– Que jeitinho que ele tem, não achas, Miriam? – perguntou.

– Se tem! – disse Miriam.

Paul tirou um cigarro.

– Lume, menino? – disse Beatrice, chegando o seu cigarro ao dele.

Ele inclinou-se para a frente, para acender o cigarro no dela. Ela piscou-lhe o olho. Miriam viu os olhos dele a brilharem de malícia e os seus lábios carnudos, quase sensuais, a tremerem. Ele já não estava em si, e isso para ela era insuportável. Aquele que ali estava agora não tinha nada a ver com ela, era como se ela não existisse para ele. Via-lhe o cigarro a bailar nos lábios cheios, bem vermelhos, e odiava aquelas madeixas espessas que lhe caíam livres sobre a testa.

– Meu torrãozinho de açúcar! – disse Beatrice, levantando-lhe o queixo e dando-lhe um beijo na face.

– Agora é a minha vez, Beat – disse ele.

– Isso é que não! – disse ela, com uma risadinha, fugindo para longe. – Ele é mesmo descarado, não achas, Miriam?

– Do pior! – disse Miriam. – A propósito, não te esqueceste do pão?

– Meu Deus! – gritou Paul, abrindo a porta do forno, de onde saiu um fumo azulado e um cheiro a pão queimado.

– Céus! – gritou Beatrice, correndo para junto dele. Paul ajoelhou-se diante do forno e ela espreitou-lhe por cima do ombro. – Aí está o resultado de só pensares no amor, meu lindo.

Paul, contrito, tirava os pães do forno. Um deles estava todo preto por baixo e o outro duro que nem uma pedra.

– Pobre Mater! – disse Paul.

– Agora tens de o raspar – disse Beatrice. – Traz-me o ralador de noz-moscada.

Ela compôs os pães que ainda estavam no forno, ele trouxe-lhe o ralador e ela raspou a parte queimada em cima da mesa, para um jornal. Paul abriu as portas, para eliminar o cheiro a queimado, e Beatrice continuou a raspar o pão, fumando enquanto arrancava a crosta carbonizada da pobre carcaça.

– Ai, ai, Miriam, desta vez estás bem arranjada – disse Beatrice.

– Eu! – exclamou Miriam, espantada.

– É melhor saíres antes de a mãe dele chegar... Agora é que eu percebo porque é que o Rei Alfred queimou os bolos. Agora, sim. O ‘Póstolo inda podia dizer que se tinha esquecido por causa do trabalho, se achasse que isso ia pegar. Se a velha da lenda tivesse chegado um nadinha mais cedo, teria dado cabo das orelhas da desavergonhada que provocou o esquecimento, e não das do pobre Alfred...

E riu-se, enquanto raspava o pão. Até Miriam, não se contendo, se riu também. Paul, pesaroso, pôs mais carvão na fogueira.

Ouviu-se bater o portão do jardim.

– Depressa! – gritou Beatrice, estendendo a Paul a carcaça já raspada. – Embrulha-a numa toalha húmida.

Paul correu para a copa. Beatrice soprou apressadamente as raspadelas para a fogueira e foi sentar-se com ar inocente. Annie entrou de rompante. Era uma rapariga muito esperta e sem rodeios. A luz intensa fê-la piscar os olhos.

– Cheira-me a queimado! – exclamou.

– É dos cigarros – explicou Beatrice, muito séria.

– Onde está o Paul?

Leonard entrou logo a seguir a Annie. Tinha uma cara comprida e engraçada, e uns olhos azuis muito tristes.

– Acho que se retirou para vocês se entenderem as duas – disse ele.

Depois, cumprimentou Miriam com ar penalizado, e mostrou-se suavemente sarcástico com Beatrice.

– Nada disso – disse Beatrice. – Foi sair com a número nove.

– Olha, vi mesmo agora a número cinco, que andava à procura dele – acrescentou Leonard.

– Pois é... Nós vamos ter de o dividir como o menino de Salomão – disse Beatrice.

Annie deu uma gargalhada.

– Ah, sim? – disse Leonard. – E com que bocado queres tu ficar?

– Sei lá – disse Beatrice. – As outras que escolham primeiro.

– E tu depois ficas com os restos? – disse Leonard, fazendo uma careta.

Annie estava às voltas com o forno. Miriam estava abandonada no seu canto. Paul entrou.

– Este pão está lindo, menino Paul – disse Annie.

– Então devias ter ficado a tomar conta dele – disse Paul.

– Tu é que devias ter feito aquilo que te compete – repontou Annie.

– Devia, não devia? – exclamou Beatrice.

– Mas se calhar estava com as mãos muito ocupadas... – atalhou Leonard.

– Viste-te aflita para cá chegar, não foi, Miriam? – disse Annie.

– Se vi... Mas tinha estado metida em casa toda a semana...

– E apeteceu-te mudar, hem? – insinuou Leonard, melífluo.

– Bem, não se pode passar a vida inteira dentro de casa – disse Annie, conciliadora. Beatrice vestiu o casaco e saiu com Leonard e Annie. Ia encontrar-se com o seu rapaz.

– Não te distraias com o pão, menino Paul – gritou Annie. – Boa noite, Miriam, acho que não vai chover mais.

Depois de todos saírem, Paul foi buscar o pão queimado, desembrulhou-o e olhou para ele com desalento.

– Está uma porcaria! – disse.

– Mas qual é o problema? – disse Miriam, enfadada. – Afinal são só... dois dinheiros e meio.

– Está bem... mas trata-se do pão da minha mãe, de que ela tanto se orgulha... e ela não vai gostar nada... Mas agora já não adianta preocuparmo-nos.

Levou o pão outra vez para a copa. Instalara-se uma certa distância entre ele e Miriam. Por uns momentos, Paul hesitou diante dela, a meditar, pesando o seu comportamento com Beatrice. No fundo, sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo contente. Não sabia explicar porquê, mas achava que era bem feito para Miriam. Não era agora que se ia arrepender. Miriam pensava no que ele estaria a cogitar, ali hesitante diante dela. Madeixas de cabelo espesso caíam-lhe ainda sobre a testa. E se lho puxasse para trás, para apagar as marcas do pente de Beatrice? E se lhe apertasse o corpo entre as suas mãos? Parecia tão rijo e palpitante. Se ele deixava as outras fazerem-lhe isso, porque não ela?

De súbito, Paul voltou à vida, e Miriam quase tremeu de susto quando ele arredou os cabelos da testa e avançou para ela.

– Oito e meia! – disse ele. – É melhor irmos a isto. Onde está o teu caderno de francês?

Miriam, contrariada, mostrou-lhe timidamente o caderno de exercícios de francês. Todas as semanas lhe entregava uma espécie de diário da sua vida íntima, escrito por ela em francês. Paul descobrira que era a única maneira de a convencer a fazer composições. O diário era acima de tudo uma carta de amor. Agora, ele ia lê-lo e era como se a história da sua alma fosse ser profanada por ele, no estado em que se encontrava. Paul sentou-se ao lado dela. Ela atentou na mão dele, firme e quente, percorrendo minuciosamente o seu trabalho.

Ele lia apenas as palavras em francês, ignorando a alma que encerravam. Mas, gradualmente, a mão esqueceu a tarefa e ele continuou a ler em silêncio, e em total imobilidade. Ela estremeceu.

– «Ce matin les oiseaux m’ont éveillé» – leu ele. – «II faisait encore un crépuscule. Mais la petite fenêtre de ma chambre était blême, et puis, jaûne, et tous les oiseaux du bois éclatèrent dans un chanson vif et résonnant. Toute l’aûbe tressaillit. J’avais rêvé de vous. Est-ce que vous voyez aussi 1’aube? Les oiseaux m’éveillent presque tous les matins, et toujours il y a quelque chose de terreur dans le cri des grives. II est si clair...».2

Miriam estava sentada, a tremer, envergonhada. Ele mantinha-se imóvel, tentando compreender. Apenas percebia que ela o amava, mas tinha medo do seu amor. Era mais do que ele merecia, e ele não era digno dela. Era ele que não a amava o suficiente, e não o contrário. Envergonhado, corrigiu-lhe o trabalho, anotando os erros timidamente por cima das palavras.

– Repara – disse ele, sereno. – Quando o particípio passado é conjugado com avoir, concorda com o complemento directo sempre que este o precede.

Ela inclinou-se para a frente, para ver melhor e poder compreender. Os seus caracóis finos e soltos roçaram-lhe ao de leve na cara, e ele deu um salto como se um ferro em brasa lhe tivesse tocado. Ao vê-la debruçada sobre a página, com os lábios rubros dolorosamente entreabertos, o cabelo negro caindo em finas madeixas sobre as faces afogueadas, corada como uma romã, a respiração tornou-se-lhe ofegante. Então, ela olhou para ele: os seus olhos negros punham a nu todo o seu amor, medo e desejo. E os olhos dele, negros também, feriram os dela. Pareciam dominá-los. E ela, perdendo o domínio de si própria, ali estava exposta, amedrontada, à mercê dele. Paul sabia, porém, que antes de a poder beijar, tinha de arrancar alguma coisa de si mesmo. E, então, um sopro de ódio por ela penetrou-lhe outra vez no coração, fazendo-o retomar as suas correcções.

De súbito, ele atirou com o lápis pelo ar e precipitou-se para o forno, para virar o pão. Era brusco de mais para o gosto dela. Miriam estremeceu em violento sobressalto, e a dor que sentiu era real. Até a maneira como ele se punha de cócoras diante do forno a magoava. Pressentia alguma crueldade nos seus gestos, alguma crueldade na brusquidão com que tirava os pães das formas, atirando-os ao ar e apanhando-os na queda. Se ao menos ele fosse gentil nos movimentos, sentir-se-ia mais rica e confortada no seu íntimo. Mas, assim, era só dor o que sentia.

Paul voltou para junto dela e acabou o exercício.

– Desta vez saíste-te bem – disse ele.

Ela percebeu que ele se sentia lisonjeado com o diário, mas isso não era recompensa suficiente.

– Sim senhora, de vez em quando fazes um brilharete – disse ele. – Devias escrever poesia.

Ela ergueu a cabeça, transbordante de alegria, mas logo a abanou desalentada.

– Falta-me confiança – disse ela.

– Mas devias tentar!

Mas ela abanou a cabeça.

– Vamos ler um bocado, ou achas que já é muito tarde? – perguntou ele.

– Lá tarde, é... mas podíamos ler só um bocadinho – pediu ela.


CONTINUA

Partiriam no sábado seguinte de manhã, no comboio das sete horas. Paul sugeriu a Miriam que dormisse em casa dele, pois morava muito longe, e ela já jantou de véspera em casa dele. Estavam todos tão excitados que a vinda de Miriam até foi recebida com entusiasmo. Contudo, mal ela chegou, a família tornou-se menos expansiva e mais fechada. Paul tinha descoberto um poema de Jean Ingelow que falava em Mablethorpe, e, por isso, tinha de o mostrar a Miriam. Sem ela, o seu sentimentalismo nunca teria chegado ao ponto de ler poesia para a família ouvir. Mas agora concordavam em ouvi-lo. Miriam, sentada no sofá, escutava-o enlevada. Quando ele estava presente, ela parecia sempre presa a ele e das palavras dele. Mrs. Morel, com ciúmes, sentou-se na sua cadeirinha de baloiço para o escutar. Annie e o pai escutavam-no também; Morel tinha a cabeça mais levantada de um lado, como alguém que escuta um sermão e está consciente do mesmo. Paul espreitou por cima do livro. Tinha agora a presença de quem mais gostava. E Mrs. Morel e Annie quase competiam com Miriam, sobre qual seria a ouvinte mais atenta, a preferida dele. Paul sentia-se nos píncaros.

– Mas – interrompeu Mrs. Morel – não percebo porque é que os sinos têm que tocar A Noiva de Enderbyt...?

– É uma velha melodia que os sinos costumavam tocar como aviso contra a cheia. Penso que a tal Noiva de Enderby morreu afogada numa enchente – respondeu ele. Não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer na realidade, mas nunca se teria rebaixado ao ponto de o confessar perante o seu público feminino. Elas escutavam-no e acreditavam. Ele próprio acreditava nas coisas que dizia.

– E as pessoas sabiam o significado dessa melodia? – quis saber a mãe.

– Sim... tal e qual os escoceses quando escutam As Flores da Floresta... e quando costumavam tocar os sinos em sinal de alarme em sentido contrário.

– Ah! – exclamou Annie. – Quer dizer que os sons de um sino são sempre os mesmos quando são tocados no seu sentido correcto, ou ao contrário.

– Mas – disse ele – se começares num tom grave e subires até ao agudo... lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá! – disse ele, percorrendo a escala completa, e todos o acharam muito inteligente. Ele também. Depois, aguardando um minuto, continuou a ler o poema.

– Hum! – disse Mrs. Morel, apreciativamente, quando ele terminou. – Só espero que tudo o que se tem escrito não seja assim tão triste.

– Num consig’intender porqu’é qu’houve tantos afogamentos – disse Morel. Houve uma pausa. Annie preparou-se para levantar a mesa.

– Acho Elizabeth um belo nome – disse Miriam, em voz baixa. – «A minha nora Elizabeth...»

– Concordo – disse Paul.

– Também acho – disse a mãe. – Mas não gosto de Lizzie e abomino Liza.

Nem Paul nem Miriam achavam que Lizzie ou Liza tivessem algo a ver com o assunto.

– Ah, mas «Elizabeth»! – murmurou Miriam.

– E ainda por cima, a Rainha Elizabeth adorava que a tratassem por «Grande Eliza» – disse Paul.

– E amanhã há mais! – disse Morel, não se contendo.

Mrs. Morel e Paul deram uma gargalhada.

– Aposto que nem sapatos tinha – disse Morel, continuando com a brincadeira.

– Não seja tão insolente com uma rainha – disse Annie.

– Rainhas! – exclamou Morel. – Num pensas noutra coisa senão nas rainhas? Num fazes mai nada senão viver à grande e à francesa!

Miriam levantou-se para ajudar a lavar a loiça.

– Deixa-me ser eu a lavar a loiça – disse ela.

– Não é necessário – exclamou Annie. – Vai-te sentar. É pouca loiça.

E Miriam, que não se sentia à vontade para insistir, sentou-se a ver o livro com Paul.

Paul era o chefe do grupo... para isso, o pai não prestava. E muito ele sofreu para que o baú de latão fosse descarregado em Firsby e não em Mablethorpe. E não foi também capaz de encontrar uma carruagem com lugares. Só a genica de Mrs. Morel o conseguiu.

– Aqui! – gritou ela para um homem. – Aqui!

Paul e Annie ficaram para trás envergonhadíssimos, mas perdidos de riso.

– Quanto é a viagem até Brook Cottage? – perguntou Mrs. Morel.

– Dois xelins.

– É assim tão longe?

– Ainda é um bom bocado.

– Não acredito – disse ela.

Contudo subiu para a carruagem. Iam os oito apertados numa velha carruagem da linha costeira.

– Bem vêem – disse Mrs. Morel –, são apenas três dinheiros por pessoa, mas se fosse um eléctrico...

A viagem prosseguiu. Sempre que passavam por uma casa típica, Mrs. Morel exclamava:

– É esta?... Não, agora é que é!

Estava toda a gente morta de ansiedade. A viagem prosseguiu. Houve um suspiro em uníssono.

– Estou agradecida por não ser aquela coisa horrorosa – disse Mrs. Morel. – Estava assustada.

Passou-se ainda mais algum tempo.

– Aquela mulher repelente disse que a casa ficava a dez minutos do mar...! – exclamou Mrs. Morel.

– Pra ela uma hora deve ser um minuto – reclamou Morel.

Todos o mandaram calar.

– Será que nunca mais chegamos? – exclamou Mrs. Morel, muito alto.

– Não grite assim, mãe – disse Annie. – O que é que ele irá pensar?

Mrs. Morel olhou de um modo esquisito para o condutor, e disse:

– Não sei! Mas, pelo aspecto, penso que não pensará nada de especial.

Finalmente, desceram perto de uma casa isolada, sobre o canal que passava na estrada principal. Houve grande alvoroço quando descobriram que tinham de atravessar uma pequena ponte para chegarem ao jardim da casa. Adoraram a casa, que ficava isolada, com o mar de um lado e, do outro, uma imensa extensão de terra plana que se estendia até ao céu, e onde se distinguia o branco da cevada, o amarelo da aveia, o vermelho do trigo e o verde dos nabos.

Paul registava as despesas e ele e a mãe governavam a casa. As despesas globais, incluindo o alojamento e a alimentação ascendiam a dezasseis xelins por pessoa e por semana. De manhã, Paul e Leonard iam tomar banho ao mar. Morel saía bastante cedo para ir dar um passeio.

– Paul – chamou a mãe do quarto. – Come uma fatia de pão com manteiga.

– Está bem – respondeu ele.

Quando regressou, a mãe estava sentada à cabeceira da mesa. A dona da casa era jovem. O marido era cego e ela cuidava da roupa. Assim, Mrs. Morel lavava a loiça na cozinha e fazia as camas.

– Mas a mãe prometeu que ia fazer umas férias a sério – disse Paul – e agora está a trabalhar.

– Trabalho? – exclamou ela. – De que é que estás a falar?

Paul adorava ir passear com ela pelos campos, até à aldeia ou até ao mar. Ela tinha medo de atravessar pontes de madeira e ele acusava-a de se portar como um bebé. Era apegado à mãe como se fosse o seu marido.

Miriam raramente andava com ele – excepto, talvez, quando iam todos ouvir os Coons. Os Coons eram insuportavelmente estúpidos para Miriam e, por isso, eram-no também para Paul, que pregava sermões presunçosos a Annie sobre a perda de tempo que era irem ouvi-los. Todavia, também ele sabia todas as suas canções de cor e as cantava desbragadamente pelas ruas. E, quando reparava que os estava a ouvir, a estupidez da situação agradava-lhe imenso. Contudo dizia para Annie:

– Que porcaria!... Não há um pingo de inteligência naquilo que cantam. Ninguém que tenha mais miolos que um gafanhoto consegue aguentá-los. – E dizia a Miriam, com algum desdém, onde estavam Annie e os outros:

– Suponho que foram aos Coons.

Era ridículo ouvir Miriam trautear as canções dos Coons. Tinha um queixo talhado a direito que descia na perpendicular desde o lábio inferior até à curvatura do maxilar. Quando ela cantava, Paul achava-a parecida com um anjo triste de Botticelli, mesmo quando entoava:


«Vem pela Estrada do Amor

Vem comigo passear, falar comigo...»


Miriam só tinha Paul todo para ela quando ele desenhava, ou à noite, quando todos os outros estavam a ouvir os Coons. Ele falava-lhe então interminavelmente do seu gosto pelos planos horizontais: como é que os grandes níveis do céu e da terra significavam para ele a eternidade da vontade, tal como os arcos normandos, arredondados e em série, significavam um salto em frente da alma humana voluntariosa, não se sabe para onde; pelo contrário, as linhas perpendiculares e o arco gótico apontavam para o céu e afloravam o êxtase, perdendo-se no divino. Ele era normando, Miriam era gótica. Submissa, ela concordava com tudo o que ele dizia.

Certa tarde, ele e ela foram passear pelo extenso areal que conduzia a Theddlethorpe. As alongadas vagas quebravam-se e elevavam-se em silvos agudos de espuma ao longo da costa. A tarde estava quente e eles completamente sozinhos na imensidão da areia, a sós com o barulho do mar. Paul adorava ouvir o mar a ressoar na areia. Adorava sentir-se entre o som do mar e o silêncio do areal. Miriam estava com ele. Tudo se tornava mais intenso. Já tinha anoitecido quando regressaram. O regresso a casa fazia-se através de uma passagem nas dunas, e depois através de uma estrada pejada de ervas, rasgada entre dois diques. A aldeia estava cinzenta e calma. Por detrás das dunas soava o murmúrio do mar. Paul e Miriam caminhavam em silêncio. De repente, ele estacou. O seu sangue parecia ter-se incendiado e ele mal podia respirar. Uma enorme lua alaranjada observava-os do alto das dunas. Ele continuava parado, olhando a lua.

– Oh! – exclamou Miriam, quando a viu também.

Ele estava ali, petrificado, olhando a lua dilatada e rubra, sozinha na escuridão imensa. O seu coração batia forte e tinha os músculos dos braços contraídos.

– O que foi? – murmurou ela, esperando por ele.

Ele voltou-se e fitou-a. Ela estava ao seu lado, para sempre na escuridão. A sua face, encoberta pela sombra do chapéu, olhava-o sem que ele a visse. E ela meditava. Estava um pouco receosa... profundamente emocionada e imbuída de religiosidade. Este era o seu melhor estado de alma. Ele sentia-se impotente face a esta situação. O sangue parecia concentrar-se como uma fogueira no seu peito, mas ele não lhe conseguia transmitir o sentimento. Pareciam disparar relâmpagos do seu sangue, mas, de algum modo, ela ignorava-os. Ela esperava vê-lo atingir um estado de graça. Ainda à espera, mas meio consciente da paixão que o possuía, Miriam fitou-o, preocupada.

– O que se passa? – murmurou novamente.

– É a Lua – respondeu ele, franzindo a testa.

– Sim – concordou ela. – É maravilhosa, não é? – Ela estava intrigada. A crise tinha passado.

Ele próprio não sabia o que lhe tinha acontecido. Era ainda tão jovem e a sua intimidade tão abstracta que não se apercebeu de que desejava esmagá-la contra o peito para aliviar a dor que o trespassava. Tinha medo dela. Talvez o facto de a desejar como um homem deseja uma mulher tivesse permanecido oculto dentro dele como uma humilhação. Quando ela fugia desses pensamentos, torturando-se em extrema agitação, ele recolhia-se até ao mais recôndito da alma. E, neste momento, esta «pureza» inibia o seu primeiro beijo de amor. Era como se ela mal pudesse suportar o choque do amor físico, ou apenas um beijo apaixonado, deixando-o demasiado reprimido e sensibilizado para lho dar.

Enquanto caminhavam ao longo da negra lagoa, Paul contemplava a Lua e mantinha-se em silêncio. Miriam caminhava a seu lado devagar. Ele sentia que a odiava, pois ela parecia, de certa forma, levá-lo a autodesprezar-se. Olhando em frente, descortinou uma luz na escuridão; era a janela iluminada da sua casa.

Adorava pensar na mãe e no resto das pessoas, todos alegres.

– Bem, já todos chegaram há bastante tempo – disse a mãe quando eles entraram.

– E o que é que isso importa? – exclamou ele, irritado. Posso ir passear quando me apetecer, não posso?

– Pensei que quisesses jantar com o resto do grupo – disse Mrs. Morel.

– Tenho de agradar a mim próprio – retorquiu ele. – Não é tarde e faço o que me apetece.

– Muito bem – disse a sua mãe, sarcasticamente. – Então faz o que te apetecer!

E nessa noite não falou mais com ele. Paul fingiu não notar nem estar preocupado com o assunto, e sentou-se a ler. Miriam lia também, tentando alienar-se. Mrs. Morel detestava-a por ela pôr o filho naquele estado. Via o filho irritadiço, presumido e melancólico, e culpava Miriam.

Annie e os amigos também se voltavam contra Miriam. O único amigo de Miriam era Paul. Mas ela não se importava, pois desprezava a trivialidade de todas essas pessoas.

E Paul detestava-a, pois ela perturbava, por assim dizer, o seu bem-estar e a sua naturalidade, torturando-o com sentimentos de humilhação.

1 «Os últimos representantes de uma raça extinta.» (N. da T.)


VIII

ZANGAS DE AMOR

ARTHUR terminou o estágio e arranjou emprego na central eléctrica da mina de Minton. Ganhava muito pouco, mas tinha possibilidades de progredir. Era, porém, rebelde e impaciente. Não bebia nem tinha o vício do jogo, mas envolvia-se constantemente em rixas devido às suas reacções intempestivas. Ia caçar coelhos para a floresta, qual caçador furtivo, e passava a noite em Nottingham em vez de voltar para casa, ou então ia nadar para o canal de Bestwood e falhava os cálculos do mergulho, ficando com o peito ferido, das rochas naturais e das latas que andavam a boiar à tona.

Tinha faltado ao emprego meses a fio, e uma noite não voltou para casa.

– Sabe por onde anda o Arthur? – perguntou Paul ao pequeno-almoço.

– Não – respondeu a mãe.

– É mesmo maluco – disse Paul. – Eu já nem ligaria, se ele ao menos fizesse mesmo alguma coisa. Mas não... não consegue resistir a um jogo de cartas, ou então vai levar alguma rapariga a casa depois da patinagem, com todo o decoro... e acaba por não voltar para casa. É maluco.

– Não vejo porque seria melhor se ele fizesse mesmo alguma coisa que nos envergonhasse – disse Mrs. Morel.

– Bem... eu, pelo meu lado, passaria a respeitá-lo mais – disse Paul.

– Duvido muito – respondeu a mãe secamente.

Continuaram a tomar o pequeno-almoço.

– A mãe gosta desvairadamente dele, não gosta? – perguntou Paul.

– Porque fazes essa pergunta?

– Dizem que as mães gostam sempre mais do filho mais novo.

– Talvez... mas eu não. Não... ele irrita-me.

– E gostava que ele se portasse melhor?

– Gostava que ele mostrasse algum bom senso masculino.

Paul estava ferido e irritado. Também ele irritava a mãe frequentemente. E ela ficava triste, pois via os melhores anos a fugirem-lhe.

Estavam a acabar o pequeno-almoço, quando o carteiro lhes entregou uma carta vinda de Derby. Mrs. Morel esforçou-se para ler o endereço.

– Dê cá isso, sua pitosga! – exclamou o filho, tirando-lhe a carta da mão. Ela assustou-se e quase lhe dava uma bofetada.

– É do seu filho Arthur – informou ele.

– Mas o que vem a ser isto? – exclamou Mrs. Morel.

– «Querida mãe» – leu Paul. – «Não sei o que me deu. Quero que me venha buscar. Ontem, em vez de ir trabalhar, vim alistar-me no exército com o Jack Brendon. Ele disse que estava farto de passar a vida sentado num escritório, e eu, idiota, como já sabe que sou, resolvi vir com ele.

«Já recebi o dinheiro referente ao recrutamento, mas se me vier buscar, talvez eles me deixem ir consigo. Foi uma loucura ter feito o que fiz. Não quero ficar no exército. Querida mãe, sei que não passo de um estorvo para si, mas, se me tirar desta situação, prometo que serei mais consciente e ponderado...»

Mrs. Morel sentou-se na cadeira de baloiço.

– Vejam só! – exclamou. – Ele que assente por uns tempos!

– Também acho – disse Paul. – Ele que assente!

Fez-se silêncio. A mãe estava sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, o rosto imóvel, pensativa.

– Devo estar doente – exclamou de repente. – Doente!

– Então! – disse Paul, franzindo a testa – Não quero que se preocupe com isto, está a ouvir?

– Então queres que encare isto como uma bênção? – disse ela, de repente, virando-se para o filho.

– Agora não vai tornar isto numa tragédia, pois não? – retorquiu ele.

– Ele é maluco!... Maluquinho de todo! – gritou Mrs. Morel.

– Vai ficar todo bonito com a farda – disse Paul, para espicaçar a mãe.

Ela virou-se a ele, furiosa.

– Ah, vai? – gritou ela. – Mas não para mim!

– Devia ir para um regimento de cavalaria... Ele divertia-se à grande e nós passávamos a ser chiques.

– Chiques!... Chiques!... Muito chique, não haja dúvida!... Um soldado raso!

– Ora – disse Paul. – E o que sou eu, senão um reles escriturário?

– O que é muito mais, meu filho! – gritou a mãe, picada.

– Essa agora!

– De qualquer forma, és um homem e não uma coisa enfiada num casaco vermelho.

– Não me importava de andar enfiado num casaco vermelho... ou azul-escuro, que me ficaria melhor... se eles não me dessem muitas ordens.

Mas a mãe já não o ouvia.

– Agora que ele estava a progredir, ou poderia vir a progredir no emprego... um aborrecimento passageiro e aí vai ele... dar cabo da vida toda. Que vantagens é que tu pensas que isto lhe pode trazer?

– Vai pô-lo todo afinado! – disse Paul.

– Todo afinado!... E o que tem ele para afinar? Um soldado!... Um soldado raso!!... Nada mais do que um corpo que se mexe quando lhe dão ordens! Grande coisa!

– Não percebo porque é que isso a aborrece tanto – disse Paul.

– Não, talvez não percebas. Mas percebo eu. – E recostou-se na cadeira, de queixo apoiado numa das mãos e segurando o cotovelo com a outra, a transbordar de raiva e desilusão.

– Está a pensar ir a Derby? – perguntou Paul.

– Estou, pois.

– Não faça isso.

– Quero ver com os meus próprios olhos.

– Mas por que diabo é que não o deixa assentar? É isso mesmo que ele quer.

– Claro – exclamou a mãe. – Tu sabes muito bem o que ele quer...

Preparou-se e apanhou o primeiro comboio para Derby, onde se encontrou com o filho e com o sargento. Todavia, os seus esforços foram infrutíferos.

Morel estava a almoçar, quando ela disse de repente:

– Tenho de ir hoje a Derby.

O mineiro levantou os olhos, muito brancos numa face toda enfarruscada.

– Ah, vais, cachopa? E o que te leva lá?

– O menino Arthur!

– Qu’aprontou ele desta vez?

– Alistou-se no exército, só isso.

Morel pousou a faca e recostou-se na cadeira.

– Não – disse ele. – Num pode ser!

– E amanhã vai para Aldershot.

– Bom – exclamou o mineiro –, iss’é qu’é já uma grand’alhada.

Morel reflectiu por um momento, disse «Hum!» e continuou a jantar. Subitamente, a face contraiu-se-lhe de raiva.

– Espero qu’ele nunca mais volte a pôr as patas nesta casa – disse ele.

– Credo! – exclamou Mrs. Morel. – Isso é lá coisa que se diga!

– É o qu’eu penso – repetiu Morel. – O doidivanas pisga-se pa ser soldado... Atão é porque já tá na hora de fazer pela vida... Comigo na conta mais.

– Falar é fácil... – disse Mrs. Morel.

Nessa noite, Morel quase sentiu vergonha de ir para a taberna.

– Então, sempre lá foi? – perguntou Paul à mãe quando chegou a casa.

– Fui.

– E viu-o?

– Vi.

– E o que disse ele?

– Ficou lavado em lágrimas quando me vim embora.

– Hum!

– E eu fiz o mesmo, portanto não precisas de fazer «Hum!».

Mrs. Morel preocupava-se com o filho, pois sabia que ele não ia gostar de estar no exército. Como de facto não gostou. A disciplina era uma coisa que ele não conseguia tolerar.

– Mas o doutor disse que ele era bem proporcionado... quase na proporção exacta, e as suas medidas eram perfeitas – disse Mrs. Morel a Paul, cheia de orgulho. – Como tu sabes, ele é bem-parecido.

– Ele é muito bem-parecido. Mas não arranja raparigas como o William, pois não?

– Não... Tem uma personalidade diferente. Sai muito ao pai: é um irresponsável.

Para consolar a mãe, Paul passou nessa altura a ir muito menos a Willey Farm. No Outono, quando se realizou no castelo a habitual exposição dos trabalhos dos alunos da escola de belas-artes, ele apresentou dois trabalhos: uma paisagem a aguarela e uma natureza morta a óleo, que obtiveram dois primeiros prémios, o que o deixou deveras emocionado.

– Mãe, que lhe parece, acha que ganhei algum prémio com as minhas pinturas? – perguntou uma noite, ao chegar a casa. Pelos seus olhos, a mãe viu que ele estava feliz, e a sua face resplandeceu.

– Como queres que eu saiba, meu filho?!

– Um primeiro prémio por aquelas jarras de vidro...

– Ena!

– E outro primeiro prémio por aquele esboço que fiz em Willey Farm.

– Um primeiro prémio para cada coisa?

– Sim, senhora.

– Hum!

Mrs. Morel parecia envolvida numa aura brilhante, cor-de-rosa, mas não disse nada.

– É bem bom, não é, mãe? – disse ele.

– É, sim.

– Oh, mãe, porque não me põe nos píncaros?

Ela riu-se.

– É que depois tinha de ter o trabalho de te puxar cá para baixo outra vez.

No entanto, toda ela vibrava de alegria. William tinha-lhe trazido sempre os seus troféus desportivos. Ela ainda os guardava, e não perdoava a morte dele. Arthur era bonito e era pelo menos um belo exemplar masculino, terno e generoso, e provavelmente o futuro acabaria por lhe sorrir. Mas Paul iria destacar-se. Ela tinha uma grande fé no filho, e mais ainda por ele não ter consciência das suas capacidades. Ele tinha tanto para dar, e a vida parecia ter muito para lhe dar também. Ela iria sentir-se realizada através do filho. A sua luta não tinha sido em vão.

Durante o período da exposição, Mrs. Morel foi várias vezes ao castelo, sem que Paul a visse. Vagueava pelo longo salão, apreciando as restantes pinturas. Sim, eram muito boas. Mas faltava-lhes qualquer coisa para que a sua satisfação fosse completa. Observava-as longamente, tentando encontrar nelas alguma falha. De repente, algo lhe fazia disparar o coração. Aquela era a pintura de Paul. Conhecia-a como se a tivesse gravada no coração.

«Nome: Paul Morel. Primeiro Prémio.»

Parecia tão estranha, ali exposta ao público, nas paredes da galeria do castelo, onde já tinha visitado tantas exposições de pintura durante toda a sua vida. E, depois, olhou em volta, tentando descobrir se alguém a tinha tornado a ver em frente ao mesmo quadro.

Não cabia em si de orgulho, e quando se cruzava com senhoras bem vestidas, pensava para consigo:

«Pois sim, vocês estão muito bem vestidas... mas duvido que os vossos filhos consigam arrebatar dois primeiros prémios na exposição no castelo.»

E seguia o seu caminho, sentindo-se mais orgulhosa do que qualquer outra mãe de Nottingham. E Paul sentia que tinha feito algo por ela, mesmo não passando de uma insignificância. Todo o seu trabalho pertencia à sua mãe.

Um dia, encontrou Miriam quando se dirigia para o castelo. Tinha-a visto no domingo e não esperava encontrá-la na cidade. Vinha com ela uma mulher loura, espampanante, de expressão carregada e porte provocador. Era estranho como Miriam, tão meditativa e reverente, parecia insignificante ao lado desta mulher de ombros deslumbrantes. Miriam fitou Paul demoradamente. O olhar dele estava pregado na desconhecida, que o ignorava. Miriam via claramente o seu instinto masculino a erguer-se altaneiro.

– Olá – disse ele. – Não me disseste que vinhas à cidade.

– Pois não – retorquiu Miriam, em ar de desculpa. Fui à Feira do Gado com o meu pai.

Paul olhou para a companheira de Miriam.

– Já te tinha falado de Mrs. Dawes – disse Miriam, com a voz estrangulada. Estava nervosa. – Clara, já conheces o Paul?

– Penso que já o vi antes – respondeu Mrs. Dawes, indiferente, enquanto o cumprimentava. Tinha uns olhos cinzento-esverdeados, displicentes, a pele era mel claro, e a boca carnuda, com o lábio superior levemente levantado, não se percebendo se de desprezo por todos os homens ou desejo de ser beijada, sendo a primeira hipótese a mais provável. Tinha a cabeça inclinada para trás, como se ela se afastasse por desdém, talvez também dos homens. Usava um chapéu enorme e deselegante, de pele escura de castor, e um vestido simples levemente afectado, que lhe conferia as linhas de um saco. Obviamente era pobre e tinha falta de gosto. Miriam andava sempre bonita.

– Onde é que me viste? – perguntou Paul à outra mulher.

Ela olhou-o como se não tivesse qualquer dúvida em responder.

E depois:

– Vi-te a passear com a Louie Travers – respondeu ela.

Louie era uma das raparigas da secção Espiral da fábrica de Mr. Jordan.

– E como é que tu a conheces? – perguntou ele.

Ela não respondeu. Paul virou-se então para Miriam.

– Para onde vais agora? – perguntou.

– Para o castelo.

– A que horas é o comboio de regresso?

– Vou regressar com o meu pai. Gostava que também viesses connosco. A que horas estás livre?

– Já sabes que nunca antes das oito, que diabo!

E as duas mulheres seguiram o seu caminho.

Paul lembrou-se de que Clara Dawes era filha de um velho amigo de Mrs. Leivers. Miriam tinha-a procurado, pois ela tinha sido em tempos supervisora da secção Espiral da Jordan, e porque o marido, um tal Baxter Dawes que era ferreiro, trabalhava para a fábrica, fazendo entre outras coisas os ferros para as próteses ortopédicas. Miriam pensou que através dela pudesse contactar directamente com a fábrica, podendo assim assegurar o emprego de Paul. Mas Mrs. Dawes estava separada do marido, e agora dedicava-se à defesa dos direitos das mulheres. Era supostamente inteligente, e isso interessava a Paul.

Paul conhecia Baxter Dawes e detestava-o. O ferreiro tinha cerca de trinta e um ou trinta e dois anos. Paul encontrava-o de vez em quando: era um homem alto e bem constituído, bem-parecido, para quem dava gosto olhar. Havia uma curiosa semelhança entre ele e a mulher. Ele tinha a mesma pele clara, de tom de dourado. O seu cabelo era castanho-claro e o bigode dourado. E exalava um desprezo semelhante, pelo porte e pela conduta. Nisto surgiu a diferença. Os seus olhos castanhos, muito escuros e astuciosos, eram imorais. Eram levemente salientes e as pálpebras sobrepunham-se de uma forma tal que lhe suscitava o ódio. A boca era também sensual. A postura evidenciava um desprezo cobarde, como se estivesse preparado para derrubar o primeiro que o censurasse... talvez porque ele próprio se censurava.

O homem odiou Paul desde o primeiro dia que o viu. Ao captar o olhar deliberado e impessoal de um artista no rosto do rapaz, enfureceu-se.

– Pa’onde é que tás’olhar? – disse ele desdenhosamente, amedrontando-o.

O rapaz desviou o olhar. O ferreiro costumava encostar-se ao balcão a conversar com Mr. Pappleworth, e a sua conversa era sempre porca e depravada. Quando sentiu novamente os olhos frios e críticos do jovem pousados nele, o ferreiro virou-se, como se tivesse sido mordido por algum bicho.

– Pa’onde é que tás’olhar, ó parvalhão? – rosnou ele.

O rapaz encolheu os ombros.

– Olha que tu...! – berrou Dawes.

– Deixa-o em paz – disse Mr. Pappleworth, naquela sua voz insinuante que parecia dizer «ele é um pobre diabo, mas não faz por mal».

Desde essa altura, Paul passou a olhar para o homem, sempre que o encontrava, com o mesmo olhar crítico e curioso, desviando o olhar antes de encontrar os olhos do ferreiro, o que deixava Dawes fora de si. E, assim, odiavam-se em silêncio.

Clara Dawes não tinha filhos. Quando deixou o marido, desfizeram a casa e ela foi viver com a mãe, enquanto Dawes passou a viver em casa da irmã. Na mesma casa vivia também uma cunhada, e Paul veio a descobrir que a tal rapariga, a Louie Travers, era agora a amante de Dawes. Era uma atrevida bonitona e insolente, que escarnecia do rapaz, mas que se empolgava toda se ele a acompanhava à estação.

A vez seguinte em que Paul foi visitar Miriam era um sábado à tarde. Ela tinha a lareira acesa na sala de visitas e estava à espera dele. Os outros tinham saído, com excepção dos pais e dos irmãos mais novos, pelo que tinham a sala de visitas só para eles. A sala era comprida, de tectos baixos e aconchegada. Na parede havia três pequenos quadros de Paul e o seu retrato estava pousado ao canto da lareira. Em cima da mesa e em cima do piano de pau-rosa, estavam jarras com folhas coloridas. Ele sentou-se na poltrona e ela ajoelhou-se no tapete aos seus pés. A luz da fogueira reflectia-se na sua cara bonita e pensativa.

– O que achaste de Mrs. Dawes? – perguntou Miriam, num tom calmo.

– Não me pareceu muito amistosa – respondeu ele.

– Lá isso não, mas não a achas elegante?

– Sim... no que diz respeito à sua altura. Mas não tem um pingo de bom gosto. Gosto de algumas coisas nela. Ela é sempre assim antipática?

– Penso que não. Penso que não anda satisfeita.

– Com o quê?

– Bem, como é que te sentirias a viver com um homem daqueles?

– Então, porque é que ela casou com ele, sabendo que o ia detestar tão rapidamente?

– Sim, porque é que ela casou com ele? – repetiu Miriam, com aspereza.

– E eu que pensei que ela fosse suficientemente forte para medir forças com ele – disse Paul.

Miriam baixou a cabeça.

– Ah, sim? – perguntou, satiricamente. E o que é que te leva a pensar isso?

– Basta olhar para a boca dela... nascida para a paixão... e a maneira como estica a garganta.

E atirou a cabeça para trás imitando o jeito provocador de Clara.

Miriam baixou ainda mais a cabeça.

– Sim – disse ela.

Fez-se silêncio durante alguns momentos, e Paul pensava em Clara.

– E o que é que te agradou nela? – continuou Miriam.

– Não sei... a pele e a textura da... da... não sei... emana dela uma certa violência... Aprecio-a apenas como artista.

– Pois.

Paul não entendia por que razão Miriam estava ali sentada no chão, meditando de uma forma tão estranha, e isso irritava-o.

– Não gostas mesmo dela, pois não? – perguntou ele à rapariga.

Ela olhou-o com os seus enormes olhos escuros, encantadores.

– Gosto – respondeu.

– Não gostas, não... não podes gostar... muito.

– E pode saber-se porquê? – perguntou ela calmamente.

– Oh, não sei... Talvez gostes dela porque ela odeia os homens.

Esta era provavelmente uma das razões pelas quais ele gostava de Mrs. Dawes, mas isso não lhe tinha ocorrido. Calaram-se. Ele franziu a testa, algo que já se estava a tornar habitual, particularmente quando estava com Miriam. Ela ansiava fazer-lhe desaparecer as rugas da testa, mas tinha medo. Parecia haver um outro homem dentro de Paul Morel, mas que não era o seu.

Algumas bagas vermelhas sobressaíam entre as folhas do vaso. Ele esticou-se e arrancou um raminho.

– Porque será que, se colocares bagas vermelhas no cabelo – disse ele – pareces uma bruxa ou uma sacerdotisa, mas nunca uma libertina.

Ela rasgou um sorriso doloroso, despojado.

– Não sei – disse.

As suas mãos fortes e quentes brincavam alegremente com as bagas.

– Porque não te ris? – disse ele. – Nunca sorris abertamente. Apenas te ris quando algo é estranho ou incongruente, e até isso parece magoar-te.

Miriam baixou a cabeça como se ele a estivesse a admoestar.

– Gostaria muito que sorrisses apenas um minuto para mim... apenas por um minuto. Sinto que isso libertaria alguma coisa dentro de ti.

– Mas... – e olhou-o com uns olhos assustados e lutadores. – ... Mas eu rio-me... sim, eu rio-me.

– Mentira, nunca te ris. Só se for por algo de muito intenso. Sempre que te ris, apetece-me chorar; parece que o teu riso transmite sofrimento. Oh, só de pensar nisso, fazes com que eu enrugue a minha alma.

– Não é minha intenção fazê-lo – disse.

– Eu sou sempre tão espiritual contigo – exclamou ele.

Ela manteve-se em silêncio, a pensar: «Então porque não és de outra forma?» E ele olhou para o seu corpo dobrado, em meditação, e pareceu dividi-lo em dois.

– Estamos no Outono – disse ele – e todas as pessoas libertam o seu espírito.

Caiu novamente o silêncio. Este estranho desentendimento entre eles despedaçava a alma de Miriam. Ele parecia tão bonito, com os seus olhos escuros e um olhar tão profundo como a nascente mais funda.

– Tornas-me tão espiritual – lamentou-se ele. – E eu não quero ser espiritual.

Ela retirou o dedo da boca com um pequeno estalido, e olhou-o em tom provocador. Mas a sua alma continuava nua nos seus olhos grandes e castanhos e o mesmo desejo ardente dominava-a. Se isso fosse possível, ele tê-la-ia beijado na pureza da abstracção. Mas ele não a podia beijar assim... e ela não parecia dar-lhe qualquer outra alternativa. E, no entanto, desejava-o.

Paul sorriu.

– Bem – disse ele –, vamos lá estudar francês... vamos ler Verlaine.

– Sim – disse ela num tom profundo, quase de resignação. Levantou-se e foi buscar os livros. As suas mãos avermelhadas e nervosas metiam dó; como ele desejava confortá-la e beijá-la!! Mas não se atrevia... ou não podia. Algo o impedia. Os seus beijos eram para ela reprováveis. Continuaram a ler até às dez horas, e depois foram para a cozinha; Paul mostrava-se de novo alegre e natural para com os pais de Miriam. Os seus olhos eram escuros e brilhantes e envolvia-o uma aura de fascinação.

Quando foi buscar a bicicleta ao celeiro descobriu que o pneu dianteiro estava furado.

– Vai-me buscar uma tigela com uma pinguinha de água – pediu ele a Miriam. – Vou chegar tarde e já sei que vou ouvir um sermão.

Acendeu a lanterna à prova do vento, despiu o casaco, virou a bicicleta ao contrário e meteu mãos à obra rapidamente. Miriam trouxe-lhe a tigela com água e ficou junto dele, observando-o. Adorava ver as mãos dele em acção. Era elegante e forte, e até os seus movimentos mais rápidos eram feitos com desembaraço. Ocupado como estava, parecia tê-la esquecido. Mas ela amava-o de uma forma absorvente, desejava poder passar as mãos ao longo do seu corpo. Sempre desejara abraçá-lo, desde que ele não a quisesse.

– Já está – disse Paul, levantando-se de repente. – Mais rápido não podia ser!

– Lá isso é verdade! – concordou ela, sorrindo.

Paul endireitou-se. Estava de costas para Miriam. Ela colocou as mãos nas ancas dele, fazendo-as deslizar rapidamente ao longo das pernas.

– És tão elegante! – disse ela.

Ele sorriu. Detestava o tom da voz dela, mas o sangue incendiou-se-lhe ao sentir o contacto das mãos. Ela, pelo contrário, parecia nem dar por ele. Era como se ele fosse um objecto, como se não se apercebesse do homem que ali estava.

Paul acendeu a luz da bicicleta, experimentou-a, bateu com ela no chão do celeiro para verificar o som dos pneus, e apertou o casaco.

– Tudo em ordem! – disse ele.

Ela experimentou os travões, pois sabia que estavam avariados.

– Já os arranjaste? – perguntou ela.

– Não!

– E porque não?

– O travão traseiro funciona mais ou menos.

– Mas não é seguro.

– Posso travar com o pé.

– Era melhor que os tivesses arranjado – murmurou ela.

– Não te preocupes... Amanhã vem tomar chá a minha casa e traz o Edgar.

– A sério?

– A sério... Por volta das quatro... Vou ter convosco.

– Combinado!

Ela estava feliz. Atravessaram o pátio às escuras até ao portão. Olhando em frente, Paul viu as cabeças de Mr. e Mrs. Leivers atrás da vidraça sem cortinas da cozinha, iluminadas pelo fulgor da lareira. O ambiente parecia muito aconchegado. À sua frente, a estrada ladeada de pinheiros abria-se escura.

– Até amanhã – disse ele, montando na bicicleta.

– Vais ter cuidado, não vais? – recomendou ela, como quem pede.

– Vou.

A voz dele soou já da escuridão. Ela deixou-se ficar mais uns instantes a ver a lanterna afastar-se e entrar na noite. Depois, voltou lentamente para casa. Orion elevava-se por cima da floresta, seguida do seu cão cintilante, meio apagado. Fora essa luz, o mundo estava mergulhado na mais densa escuridão e no silêncio, quebrado apenas pelo resfolegar do gado nos estábulos. E ela rezou com devoção pela segurança dele nessa noite. Quando ele a deixava, ficava sempre num estado de extrema ansiedade, imaginando se ele teria chegado bem a casa.

Paul deixava a bicicleta embalar pelas encostas abaixo. As estradas eram escorregadias e ele não podia meter travões. Era um prazer quando a bicicleta se precipitava pelo declive mais íngreme da colina. «Cá vou eu!», dizia ele. Era arriscado por causa da curva completamente às cegas à chegada ao vale, e das carroças dos cervejeiros com os carroceiros bêbados, a dormir. A bicicleta parecia desintegrar-se debaixo dele e Paul adorava a sensação. O descuido é a vingança de um homem sobre a mulher. Sentindo que não é devidamente apreciado, arrisca a sua própria destruição, para que ela sinta a sua falta.

Ao passar veloz pelo lago, as estrelas reflectidas na água pareciam saltar da escuridão como gafanhotos prateados. Depois surgia a longa subida até casa.

– Olha, mãe! – disse ele, atirando as bagas e as folhas para cima da mesa.

– Hum! – fez ela, olhando para a mesa e desviando o olhar. Como sempre, estava sozinha, sentada a ler.

– Não são bonitas?

– São.

Ele sabia que a mãe estava aborrecida. Passados alguns minutos disse:

– O Edgar e a Miriam vêm cá tomar chá amanhã.

A mãe não respondeu.

– Não se importa?

Ela continuou sem responder.

– Então importa-se? – perguntou ele.

– Sabes bem se me importo ou não.

– Não vejo porque se há-de importar... eu como lá tantas vezes...

– Pois comes.

– Então porque lhes recusa um chá?

– A quem é que eu recuso um chá?

– Porque é que a mãe é sempre tão difícil?

– Pronto, não digas mais nada! Convidaste-a para o chá, e isso já é o suficiente. Ela não falta.

Paul ficou muito aborrecido com a mãe. Sabia que ela não gostava de Miriam. Atirou com as botas e foi deitar-se.

Paul foi abrir a porta aos amigos no dia seguinte. Estava feliz de os ver chegar. Vieram por volta das quatro horas. Tudo estava sereno e calmo para domingo à tarde. Mrs. Morel estava sentada, com o seu vestido preto e o avental branco, mas levantou-se para receber as visitas. Foi cordial com Edgar, mas fria e muito esquiva com Miriam. Todavia, Paul achava que a rapariga estava bem bonita no seu vestido castanho de caxemira.

Ajudou a mãe a preparar o chá. Miriam ter-se-ia oferecido de agrado para ajudar, mas tinha receio. Paul tinha muito orgulho da sua casa. Havia nela uma certa distinção, pensava ele. As cadeiras eram simples, de madeira, e o sofá já velho. Mas o tapete e as almofadas eram aconchegantes; os quadros eram gravuras de bom gosto; a simplicidade dominava e havia muitos livros. Nem ele nem Miriam se envergonhavam das casas que tinham, pois eram tudo aquilo que deviam ser, e ainda acolhedoras. Então na mesa tinha grande orgulho; o serviço de chá era bonito e a toalha fina; pouco importava que as colheres não fossem de prata e nem o cabo das facas de marfim; tudo estava bonito. Mrs. Morel tinha cuidado maravilhosamente de tudo enquanto os filhos cresceram. Assim, nada se encontrava fora do lugar.

Miriam falou um pouco de livros, pois era um assunto que dominava bem. Mas Mrs. Morel não se mostrou interessada, virando-se rapidamente para Edgar.

A princípio, quando Edgar e Miriam iam à igreja, sentavam-se no banco de Mrs. Morel. Morel nunca lá ia, pois preferia a taberna. Mrs. Morel, arvorando-se em chefe da família, sentava-se numa extremidade do banco e Paul na outra extremidade; a princípio, Miriam sentava-se ao lado dele. A capela lembrava a Paul a sua casa. Era um lugar bonito, com bancos escuros e pilares estreitos e elegantes, e com muitas, muitas flores. As mesmas pessoas sentavam-se sempre nos mesmos lugares desde que ele era menino. Era bastante agradável e reconfortante estar ali sentado durante uma hora e meia, ao lado de Miriam e perto da mãe, unindo os seus dois amores sob o fascínio daquele local de culto. Sentia-se a um tempo entusiasmado, feliz e religioso. Terminada a missa, acompanhava Miriam a casa, enquanto Mrs. Morel passava o resto da tarde com a sua velha amiga Mrs. Burns. Sentia-se verdadeiramente vivo durante os passeios que dava ao domingo pela tardinha com Edgar e Miriam. Sempre que passava de noite pelas minas, pelo depósito das lanternas, todo iluminado, pelas torres altas e negras e pelas filas de vagões parados em frente das ventoinhas que giravam lentamente na escuridão, tinha a sensação intensa e quase insuportável de que Miriam voltaria para si.

Mas Miriam não ocupou por muito tempo o banco da família Morel, pois o pai arranjou novamente um outro banco. Ficava mesmo por baixo da pequena galeria, em frente ao banco dos Morels. Quando Paul e a mãe chegavam à capela, o banco dos Leivers estava sempre vazio. Ele receava que não viessem: a capela ficava muito longe e eram muitos os domingos chuvosos. Mas a dado momento, quase sempre atrasada, Miriam chegava com o seu passo amplo, cabeça baixa e face oculta pelo chapéu de veludo verde-escuro. Visto sentar-se do lado oposto, a sua cara ficava sempre na sombra, o que até o fazia sentir-se bem, pois ao vê-la ali à sua frente era como se a alma se lhe agitasse dentro do corpo. Não era o mesmo calor, a mesma alegria e o mesmo orgulho que sentia ao ter a mãe a seu lado, como chefe: era algo mais maravilhoso ainda, menos humano, um sentimento intenso temperado pela dor, algo que ele sabia que não podia alcançar.

Foi nesta altura que começou a pôr em questão a doutrina ortodoxa. Ele tinha vinte e um anos e ela vinte. Miriam receava a chegada da Primavera: ele tornava-se agressivo e magoava-a muito. Tudo o que mais queria era destruir cruelmente as crenças dela. Edgar, crítico por natureza e sem sentimentos, gostava desta situação. Mas Miriam sofria amargamente, pois o homem que amava possuía uma inteligência cortante que dissecava a religião em que ela fora criada e se movimentava, e onde habitava o seu Eu. Mas ele não a poupava e mostrava-se muito cruel. Quando estavam sozinhos, tornava-se ainda mais violento, como se quisesse matar-lhe a alma, explorando as suas crenças até ela quase perder a consciência.

– Ela regozija-se... regozija-se quando afasta o meu filho de mim – gritava Mrs. Morel do fundo do coração, quando Paul saía de casa. – Ela não é como qualquer mulher comum, que permite que eu faça parte do meu filho. Ela quer absorvê-lo. Quer tirar-mo e absorvê-lo, até que nada reste dele, nem sequer para ele próprio. Assim, ele nunca será senhor de si... ela irá sugá-lo completamente. – E Mrs. Morel sentava-se, debatendo pressentimentos e meditando tristemente.

Quando regressava dos seus passeios com Miriam, Paul vinha trespassado de sofrimento. Caminhava com passo apressado, mordendo os lábios e cerrando os punhos. Quando chegava a uma cerca, parava por alguns minutos, imobilizado. À sua frente estendia-se a escuridão sem fim; as negras encostas salpicavam-se de florescências luminosas; e, nos recônditos da noite, brilhava o clarão da mina. Tudo era estranho e ameaçador. Porque estava ele tão dilacerado, quase em êxtase, incapaz de se mover? Porque estava a mãe sentada em casa a sofrer? E sabia que ela sofria bastante. Mas porquê? E porque detestava ele Miriam e era tão cruel para ela, quando pensava na mãe? Já que Miriam fazia a mãe sofrer, ele tinha de a detestar. E com facilidade a detestava. Porque o levava ela a duvidar de si próprio, deixando-o inseguro, indefinido, como se não pudesse evitar que a noite e o espaço caíssem sobre ele? Como ele a odiava! Mas logo um ímpeto de ternura e humilhação o envolvia.

De repente, precipitava-se para casa a correr. A mãe reconhecia nele as marcas da agonia, mas nada dizia. Ele, porém, tinha de obrigá-la a falar, pois via-a zangada por ele ter ido passear com Miriam para tão longe.

– Porque é que não gosta dela, mãe? – gritou ele um dia, desesperado.

– Não sei, meu filho – respondeu ela num tom comovente. – Já tentei gostar, tentei com todas as minhas forças... mas não consigo... não consigo...

E, entre ambas, ele sentia-se triste e sem esperanças. A Primavera era a pior das estações. Ele ficava instável, enérgico e cruel. Assim, decidiu afastar-se dela. Surgiam então as horas a que ele sabia que Miriam o esperava, e a mãe apercebia-se da sua impaciência. Paul não conseguia progredir no seu trabalho, não conseguia fazer nada. Era como se algo transportasse a sua alma até Willey Farm. De repente, punha o chapéu e saía sem dizer nada. E a mãe sabia que ele tinha partido. Assim que se punha a caminho respirava de alívio. Mas, mal chegava ao pé de Miriam, tornava-se novamente cruel.

Certo dia, em Março, estava Paul deitado nas margens do lago Nethermere, com Miriam sentada a seu lado. Estava um dia resplandecente, branco e azul. Nuvens grandes e brilhantes passavam altas, e as suas sombras moviam-se silenciosas sobre a água. Os espaços abertos no céu tinham um tom glacial de azul. Paul estava deitado de costas sobre a relva, olhando o céu. Não conseguia olhar para Miriam. Ela parecia desejá-lo e ele resistia. Resistia sempre. Ela queria dar-lhe a sua paixão, a sua ternura, mas não era capaz. Ele sentia que ela não o queria; que apenas queria a sua alma. Miriam retirava-lhe as forças e a energia através de um canal que os unia. Ela não queria o corpo dele, pois nesse caso seria apenas duas pessoas, homem e mulher, em comunhão. Queria absorvê-lo completamente. E ele sentia-se estimulado por um impulso quase de loucura, que o fascinava, com um fascínio de droga.

Ele falava sobre Miguel Angelo. Ao escutá-lo, ela sentia que tocava o protoplasma da vida, as próprias células palpitantes, e a sua satisfação era plena. Mas, no final, isso assustava-a. Ali estava ele deitado, na intensidade imaculada da procura, e a sua voz amedrontava-a num crescendo, levando-a quase a tocar as raias do inumano, como se num transe.

– Não digas mais nada – pediu Miriam, com ternura, pousando a mão na testa dele. Ele permanecia estático, incapaz de se mover. O seu corpo estava de algum modo abandonado.

– Porquê... estás cansada?

– Estou, e tu também vais ficar.

Ele deu uma pequena gargalhada, apercebendo-se da situação.

– Contudo, sabe-me bem – disse ele.

– Mas não é essa a minha intenção – disse ela, muito baixinho.

– Não quando já foste longe de mais e sentes que já não és capaz de te dominar. Mas o teu eu inconsciente clama por isso. E eu suponho que também quero o mesmo.

– Então como posso evitá-lo?

– Penso que não podes, pois tu fazes sempre o mesmo. Desligas-me algures e retiras-me de mim próprio. Sinto-me como um fantasma, sem corpo.

– Não! – implorou ela.

– Agora mesmo, neste momento, olho para as minhas mãos e pergunto-me o que estão elas ali a fazer. Aquela água, por exemplo, ondula através de mim. Eu sou a ondulação. Corre através de mim e eu através dela. Não há barreiras entre nós.

– Mas...! – E Miriam hesitou.

– O que resta de mim é apenas uma consciência disseminada. Sinto que o meu corpo está deitado aqui, vazio, como se eu estivesse dentro de outras coisas... das nuvens e da água...

Ela olhou para ele e reparou naquele olhar tão estranho, como se ele fosse uma coisa e não uma pessoa, o que a fascinava tanto, mas que tanto receava. E era precisamente esse receio que a impelia a ter muito mais. Mas, agora, queria que ele parasse.

– Sabes – prosseguiu – o meu eu físico está liberto. Mas, se assim for, então eu não estou vivo. Tenho a certeza de que me destruiria. O que tu queres é pores-me gordo e banal, e não uma sombra. Queres fechar bem a minha alma dentro da sua bainha. Mas ela um destes dias libertava-se, tal como a espada que se libertou de uma bainha lassa e caiu ao mar.

Miriam meditava tristemente. Nisto, levantou a cabeça e olhou-o com os olhos muito brilhantes.

– Então deixa-me ser a tua protecção – disse ela.

E estendeu as mãos para as dele.

– Se tu pudesses... – disse ele. – Mas tu és aquilo que o teu eu inconsciente te impõe, e não aquilo que queres ser. Nenhum de nós dois é completamente normal... porém, agora eu quero sê-lo, mas penso que tu não queres. Tu queres ser algo fora do comum.

– Não, não quero – exclamou ela. Mas havia medo na sua voz.

– De qualquer forma – continuou Paul, num tom apático –, isso agora não é possível. Não me podes ter dessa maneira. Neste momento eu e tu somos apenas almas desprovidas de sangue. E isso provocaria uma vibração diferente, que se entrechocaria com este estado actual numa verdadeira tortura... Se ao menos pudesses querer-me, e não apenas quereres aquilo que eu tenho para te papaguear.

– Eu! – exclamou Miriam num tom áspero. – Eu! Quando é que eu te posso ter?

– Então a culpa é minha – disse ele, e juntando as partes dispersas do seu eu, levantou-se e começou a falar de coisas triviais. Sentia-se irreal. De uma forma vaga, detestava-a por isso. Sabia que era ele o culpado e, no entanto, isso não o impedia de a odiar.

Certa noite, na mesma época, em que Paul tinha ido levar Miriam a casa, pararam perto do prado que se estendia até à floresta, incapazes de se separarem. Assim que as estrelas surgiram, as nuvens desapareceram e eles captaram fugazmente a sua Orion, que se dirigia para oeste. As jóias de Orion brilharam por um breve instante, com o seu cão correndo rasteiro, lutando com dificuldade para atravessar a espuma de uma nuvem.

Orion era para eles a constelação mais carregada de significado. Era nela que os seus olhos se haviam fixado nos momentos mais estranhos e intensos, até sentirem que viviam em cada uma das suas estrelas. Nessa noite, Paul mostrava-se taciturno e perverso. Orion parecia-lhe apenas uma constelação, nada mais. Lutava contra o seu brilho, o seu fascínio. Miriam observava atentamente a disposição do seu amado, mas ele nada disse que o comprometesse até ao momento da partida, quando, de testa franzida, ficou parado a olhar tristemente para o castelo de nuvens, por detrás do qual a grande constelação estaria ainda a transitar.

No dia seguinte havia uma pequena festa em casa dele, para a qual Miriam estava convidada.

– Não posso vir buscar-te – disse ele.

– Não faz mal... O tempo também não está dos melhores para andar na rua... – respondeu ela serenamente.

– Não é isso... eles é que não gostam que eu venha. Dizem que me preocupo mais contigo do que com eles. E tu compreendes, não é verdade?... Tu sabes que entre nós existe apenas amizade.

Miriam ficou perplexa e com pena dele. Como lhe devia ter custado dizer aquelas palavras. Deixou-o, para lhe poupar outra humilhação. Uma chuva fina batia-lhe no rosto enquanto caminhava. Estava profundamente magoada e desprezava-o por ele se deixar levar pelo mais leve sopro de autoridade. No fundo do seu coração, sentia inconscientemente que ele tentava afastar-se dela, mas como jamais teria a coragem de o admitir, sentia pena dele.

Por esta altura, Paul tornou-se num elemento imprescindível do armazém da Jordan. Mr. Pappleworth saiu para se estabelecer por conta própria e Paul passou a supervisor da Espiral. Se tudo corresse bem, o seu salário seria aumentado para trinta xelins no final do ano.

Miriam vinha quase todas as sextas-feiras à noite para a lição de francês. Paul já não ia tão amiúde a Willey Farm, e ela receava que a sua aprendizagem estivesse prestes a terminar; por outro lado, e apesar das discórdias, gostavam de estar um com o outro. Liam Balzac, escreviam composições e sentiam-se bastante cultos.

A noite de sexta-feira era a noite de pagamento para os mineiros. Morel «repartia o bolo», ou seja, dividia os lucros da empreitada, quer no New Inn, em Bretty, quer na sua própria casa, conforme os seus companheiros preferissem. Barker tinha deixado de beber, e agora os homens «dividiam o bolo» em casa de Morel.

Annie, que tinha estado a dar aulas longe dali, regressara de novo a casa. Era ainda uma rapariga endiabrada. Estava noiva e ia casar. Paul andava a estudar desenho.

Morel estava sempre bem-disposto às sextas-feiras à noite, a não ser que os ganhos dessa semana fossem escassos. Depois do jantar, entregava-se a longos preparativos para se lavar. A decência exigia que as mulheres se ausentassem durante as reuniões masculinas. As mulheres não deviam assistir à reunião dos sócios, que era considerada assunto estritamente masculino... e nem deviam ficar a saber qual o montante exacto dos ganhos semanais. Assim, enquanto o pai barafustava na cozinha, Annie saiu e foi por uma hora para casa da vizinha, e Mrs. Morel foi à cozinha ver se o pão já estava cozido.

– Fecha a porta! – berrou Morel, furioso.

Annie bateu com a porta e saiu.

– S’ela torna a abrir a porta enquant’eu tou a tomar banho, amando-lh’um murro que lhe parto os queixos – berrou ele, ameaçador, por entre a espuma do sabão. Paul e a mãe franziram as sobrancelhas ao ouvi-lo.

Logo depois, saiu da cozinha, tremendo de frio e pingando o chão todo de água ensaboada.

– Oh, cos diabos! – disse ele. – Onde está a minha toalha?

Estava pousada numa cadeira, frente à lareira, para aquecer, pois, se assim não fosse, ele teria feito um grande estardalhaço. Aninhou-se sobre os calcanhares frente ao lume vivo, para secar.

– Brrrr... – continuou, fingindo tremer de frio.

– Ó homem, não sejas criança! – disse Mrs. Morel. – Não está frio nenhum.

– Exprimenta despires-te e tomares banho naquela cozinha – disse o mineiro, enxugando o cabelo. – Mas que gelo de casa!

– Eu não faria com certeza tanto alarido – respondeu a mulher.

– Ah, poi não. Caías redonda no chão que nem uma pedra.

– Porque é que uma pedra há-de ser mais redonda do que outra coisa qualquer? – perguntou Paul curioso.

– Essa agora... sei lá... é o que se diz – argumentou o pai. – Nesta tua cozinha há muitas correntes de ar, e quando ele passa através das costelas parece vento a passar por uma cancela de cinco traves.

– Sempre teria alguma dificuldade em passar através das tuas costelas – disse Mrs. Morel.

Morel olhou desanimado para ambos os lados do seu corpo.

– Eu! – exclamou. – Eu cá num tenho pele de coelho. Os meus ossos vêem-se no meu corpo!

– Gostaria de saber onde – retorquiu a mulher.

– Por todo o lado! Mas também num sou nenhuma carga de ossos.

Mrs. Morel deu uma gargalhada. Ele tinha um corpo ainda belo, jovem e musculado, sem gorduras. A pele era macia e clara. Poderia bem ser o corpo de um homem com vinte e oito anos, se não fossem as várias cicatrizes azuladas, semelhantes a tatuagens, onde o pó do carvão se tinha alojado, e o seu peito peludo. Morel pôs as mãos nos quadris, desanimado. Acreditava piamente que, por não engordar, era magro como um rato esfomeado.

Paul olhou para as mãos do pai, calejadas, escuras, cobertas de cicatrizes e com as unhas partidas, a esfregarem a maciez do seu corpo, e ficou admirado, pois parecia-lhe estranho serem feitas da mesma carne.

– Suponho – disse, virando-se para o pai – que antigamente tinha uma bela figura.

– Eh, olha lá o que dizes! – exclamou o mineiro, olhando em volta, espantado e tímido, como uma criança.

– Tinha uma bela figura, sim senhor! – exclamou Mrs. Morel. – O pior foi ele andar sempre aos encontrões a tudo, como se quisesse meter-se no buraco mais pequeno que encontrava.

– Eu? – exclamou Morel. – Eu, uma bela figura! Nunca passei de um esqueleto.

– Credo, homem! – gritou a mulher. – Não sejas tão piegas!

– É ve’dade – disse ele. – Tu nunca me viste qu’eu não parecesse qu’emagrecia de dia pra dia.

Mrs. Morel sentou-se e deu uma gargalhada.

– Tens um corpo de ferro – disse ela. – No tocante ao corpo, nunca nenhum homem te levou a melhor. Devias ter visto o teu pai em novo... – exclamou, de repente, virando-se para Paul e empertigando-se, para imitar a postura outrora garbosa do marido. Morel observava-a, envergonhado. Viu novamente a paixão que ela sentia por ele, e que brilhou durante alguns momentos à volta dela. Ele era tímido, assustadiço e humilde. Agora, porém, sentia de novo a velha força de outros tempos. Mas imediatamente sentiu na carne os estragos praticados ao longo de todos estes anos e só queria desaparecer, fugir de tudo.

– Lava-me as costas – pediu ele à mulher.

Ela trouxe uma toalha ensopada e ensaboada e colocou-lha sobre os ombros. Ele deu um salto.

– Oh, desgraçada! – berrou ele. – Tá gelada como a morte!

– Devias ter nascido salamandra – disse ela a rir, lavando-lhe as costas. Só raramente o ajudava nestas tarefas tão pessoais. Geralmente, eram os filhos quem fazia este tipo de coisas.

– O outro mundo não vai ser suficientemente quente para ti – acrescentou ela.

– Poi não – disse ele. – Tu vais fazer com que sopre uma aragem pra m’arrefecer.

Mas ela já tinha terminado. Enxugou-o rapidamente e subiu ao primeiro-andar, regressando em seguida com um par de calças limpas. Assim que se secou, Morel vestiu a camisola. Depois, rosado e luzidio, com o cabelo em pé e a camisola de flanela vestida por cima das calças de mineiro, aqueceu as ceroulas que ia vestir a seguir. Virou-as, pô-las do avesso e ressequiu-as.

– Oh, homem, veste-te! – exclamou Mrs. Morel.

– Queria ver se gostavas de vestir uma roupa tão fria como a água da banheira – disse ele.

Por fim, despiu as calças e vestiu-se condignamente de preto. Fez tudo isto em cima do tapete da lareira, e teria feito o mesmo se Annie e os amigos íntimos estivessem presentes.

Mrs. Morel virou o pão no forno. Depois, retirou uma mão-cheia de massa do alguidar de barro, que se encontrava a um canto da cozinha; trabalhou a massa dando-lhe a forma adequada e meteu-a numa tigela. Enquanto fazia isto, Barker bateu à porta e entrou. Era um homem baixo, compacto e calmo, que parecia capaz de atravessar um muro de pedra. O cabelo era preto e curto e a cara bem-parecida. Tal como a maioria dos mineiros, era pálido, mas saudável e rijo.

– Boa noite, ‘nha senhora – disse o homem, curvando a cabeça e sentando-se, com um suspiro.

– Boa noite – respondeu ela, cordialmente.

– Fizeste ranger os tacões – disse Morel.

– Num dei por nada – disse Barker.

Retraído, sentou-se num dos bancos da cozinha, como os colegas normalmente faziam.

– Como está a sua senhora? – perguntou-lhe Mrs. Morel. Há algum tempo, ele tinha-lhe dito: «Sabe, estamos à espera do terceiro...»

– Bem – respondeu ele, coçando a cabeça –, penso que está tão boa quanto o possível.

– Ora deixa cá ver... para quando é? – perguntou Mrs. Morel.

– Bem... penso que está para chegar a qualquer momento...

– Ah, sim? E tem passado bem?

– Sim... tudo em ordem.

– É um milagre, pois ela não é muito forte.

– É verdade. ... E eu fiz outra asneira.

– O que foi?

Mrs. Morel sabia que Barker não teria feito nada de muito errado.

– Não consegui dar co’a alcofa das compras.

– Pode levar a minha.

– Não... óspois vossemecê pode precisar.

– Não preciso, não. Levo sempre um saco de rede.

Todas as sextas-feiras à noite, Mrs. Morel via o mineiro, baixo e desembaraçado, a comprar os legumes e a carne para toda a semana, e sentia grande admiração por ele.

– O Barker pode ser baixo, mas é dez vezes mais homem do que tu – tinha dito ela ao marido.

Nisto, entrou Nessen. Apesar de pai de sete filhos, era magro, muito frágil, com uma ingenuidade de adolescente e um sorriso levemente matreiro. Mas a mulher dele era uma mulher apaixonada.

– Estou a ver que me batest’òs pontos – disse, sorrindo sem brilho.

– Pois foi – respondeu Barker.

O recém-chegado tirou o boné e o grosso cachecol de lã. Tinha um nariz pontiagudo e vermelho.

– É capaz de ter frio, Mr. Wesson – disse Mrs. Morel.

– Aqui tá um bocado de frio – respondeu.

– Então aproxime-se do lume.

– Não, tou bem aqui.

Os dois mineiros sentaram-se um pouco mais arredados. Não queriam ficar em cima do tapete da lareira, pois esse lugar era sagrado para a família.

– Senta-te no cadeirão – exclamou Morel, alegremente.

– Não, obrigado. Tou muito bem aqui.

– Ora essa, chegue-se para aqui – insistiu Mrs. Morel.

O homem levantou-se e, avançando desajeitadamente, sentou-se no cadeirão de Morel, envergonhado. Era tomar demasiada confiança. Mas estar ao pé do lume deixava-o muito feliz.

– E então como está o seu peito? – perguntou Mrs. Morel.

Ele sorriu novamente, com uns olhos azuis muito brilhantes.

– Ora, vai indo! – disse ele.

– Como um chocalho – atalhou Barker.

– T..t..t..t – fez Mrs. Morel com a língua. – Já mandou fazer a camisa de flanela?

– Ainda não – disse ele sorrindo.

– E porque não? – perguntou ela.

– Lá chegará o dia... – disse ele, sorrindo.

– Ah, o dia de São Nunca, estou a ver – exclamou Barker.

Barker e Morel preocupavam-se com Wesson, pois fisicamente eram ambos fortes que nem touros.

Quando Morel estava quase pronto, entregou o saco do dinheiro a Paul.

– Contó lá, rapaz – pediu com humildade.

Impaciente, Paul abandonou os livros e os lápis e despejou o saco para cima da mesa. Continha cinco libras em moedas de prata, várias moedas de vinte xelins e alguns trocados. Paul contou o dinheiro rapidamente, incluindo os cheques e os papéis com os totais do carvão, e pôs as moedas por ordem. Então Barker deu uma olhadela aos cheques.

Mrs. Morel subiu ao primeiro andar e os três homens sentaram-se à mesa. Morel, como dono da casa, sentou-se no seu cadeirão com as costas viradas para a lareira. Os outros dois sentaram-se em cadeiras frias. Nenhum deles contou o dinheiro.

– Quant’é que dissemos qu’era prò Simpson? – perguntou Morel. E, durante um minuto, discutiram os ganhos diários do companheiro, sendo o valor respectivo posto de lado em seguida.

– E quant’é prò Bill Naylor?

Também este valor foi retirado do saco.

E então, visto que Wesson vivia numa casa da companhia e a renda já tinha sido deduzida, Morel e Barker retiraram quatro xelins e seis dinheiros cada um. E, para compensar o carvão que Morel já tinha trazido, Barker e Wesson receberam mais quatro xelins cada. Depois, a distribuição foi simples: Morel deu a cada um uma moeda de vinte xelins, até não restar nenhuma; mais meia coroa a cada um, até não restarem mais; e ainda uma moeda de um xelim, até acabarem. Se no fim restasse alguma coisa que não pudesse ser dividida, Morel guardava esse dinheiro para pagar uma rodada de cerveja.

Finalmente, os três homens levantaram-se e saíram. Morel tratou de se escapar antes de a mulher descer. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu. Deu uma olhadela rápida ao pão que tinha no forno e, olhando para a mesa, viu o seu dinheiro. Paul tinha estado sempre embrenhado no trabalho. Mas agora apercebia-se de que a mãe, ao contar a semanada, se enfurecia.

– T..t..t – era o barulho que ela fazia com a língua.

Paul franziu a testa. Não conseguia trabalhar quando a via aborrecida. Mrs. Morel contou novamente o dinheiro.

– Uns míseros vinte e cinco xelins! – exclamou ela. – Qual era o valor do cheque?

– Dez libras e onze xelins – disse Paul, irritado. Ele receava o que estava para vir.

– E esta semana ele dá-me uma porcaria de vinte e cinco xelins, e ainda tenho de tirar o dinheiro para o clube. Eu bem o conheço... Pensa que por tu ganhares, já não precisa de sustentar a casa. Ele que coma o dinheiro, se quiser. Mas eu digo-lhe como é...

– Oh, mãe, não... – exclamou Paul.

– Não, o quê, posso saber? – disse ela.

– Não reaja assim... senão não consigo trabalhar.

Ela continuou, mas já um pouco mais calma.

– Pronto, está certo – disse ela. – Mas como é que pensas que me vou governar?

– Eu sei, mas não adianta nada piorar a situação.

– Gostava de saber o que é que farias se tivesses de aturar isto?

– Já não será por muito tempo... Vai ter o meu dinheiro não tarda, e ele que vá para o diabo.

Retomou o trabalho, e ela apertou as fitas do chapéu com desalento.

O filho não suportava vê-la assim, quando ela estava zangada. Todavia, começava agora a tentar dar-lhe isso a perceber.

– Os dois pães do tabuleiro de cima estão prontos dentro de vinte minutos – disse Mrs. Morel. – Não te esqueças.

– Está bem – respondeu ele, e Mrs. Morel saiu para o mercado.

Paul ficou sozinho a trabalhar. Mas a sua habitual concentração estava perturbada. Ouviu bater a cancela do pátio. Cerca das sete e um quarto, bateram ao de leve na porta e Miriam entrou.

– Estás sozinho? – perguntou.

– Estou.

Como se estivesse na sua própria casa, tirou a boina escocesa e o casaco comprido e pendurou-os. Ele sentiu uma tremura. Esta podia ser a casa deles, dele e dela.

Miriam aproximou-se e espreitou o que ele estava a fazer.

– O que é? – perguntou.

– Uma natureza morta... para decorar objectos e bordados.

Ela inclinou-se mais, aproximando os olhos míopes do desenho.

– E gostas do que fazes? – inquiriu.

– Adoro. Neste momento ando em maré de convencionalizar tudo.

– Ah...

Miriam não se interessava por estudos convencionais, mas reconhecia que ele devia saber mais do que ela sobre tais coisas. Eram coisas de homens, coisas que não lhe diziam respeito. No entanto, havia de descobrir a razão por que ele andava, como dizia, em maré de convencionalizar tudo. Que fascínio poderia ter para ele o convencional?

– O que é que te faz gostar disto? – perguntou ela, intrigada.

Ele, como já era seu hábito, procurou justificar-se. Lutando com as palavras, tentou explicar-lhe a teoria de que a força de gravitação é o agente mais poderoso, o factor responsável pela forma das coisas, e que, se pudesse agir em completa liberdade, apareceria uma rosa geometricamente correcta nas linhas e nas proporções... e assim por diante. Isto fez desabrochar nela um certo conceito de desenho convencional que até aí lhe parecia ser pura mentira. Por fim, ele empurrou os livros para o lado.

– Posso...? – disse ele, ansioso e hesitante.

– Podes o quê?

– Mostrar-te isto... Não era minha intenção enquanto não estivesse pronto.

Paul não conseguia esconder-lhe nada do que fazia. Foi à sala e voltou com uma trouxa de linho cru. Desembrulhou-a cautelosamente e estendeu-a no chão. Era um cortinado, ou melhor, um portière, magnificamente decorado com rosas, estampadas a stencil.

– Ah, que bonito! – exclamou ela.

O tecido espraiou-se aos pés dela, com as suas maravilhosas rosas em tons rubros e caules em verde-escuro, tudo muito simples, mas com um não sei quê de perverso. Ela ajoelhou-se, deixando pender soltos os caracóis. Ele, ao vê-la assim, voluptuosamente debruçada sobre a sua obra, sentiu bater mais depressa o coração. De repente, ela ergueu os olhos para ele.

– Porque é que isto parece tão cruel? – perguntou.

– O quê?

– Parece haver neste padrão uma certa crueldade – disse ela.

– Haja ou não haja, a mim parece-me óptimo – replicou ele, dobrando o trabalho com mãos de amante. Ela levantou-se devagar, pensativa.

– Que vais fazer com isto? – perguntou ela.

– Mandá-lo para os armazéns Liberty. Fi-lo para a minha mãe... mas acho que ela prefere o dinheiro.

– Estou a ver... – disse Miriam. Havia na voz dele um travo de amargura, e ela ficou com pena. A ela, o dinheiro jamais lhe interessaria.

Paul levou o tecido novamente para a sala, e, quando voltou, atirou a Miriam um retalho mais pequeno. Era a fronha de uma almofada, com um padrão idêntico.

– Fi-la para ti.

Miriam apalpou o trabalho com mãos trémulas, em silêncio. Paul ficou embaraçado.

– Meu Deus, o pão! – gritou ele.

Tirou os pães do tabuleiro superior e bateu-lhes vigorosamente. Já estavam cozidos. Pô-los ao lado da lareira, para arrefecerem. Em seguida, foi à copa, molhou as mãos, retirou do alguidar a massa, muito branca, que ainda restava, e colocou-a dentro de uma forma de pão. Miriam continuava debruçada sobre o tecido pintado. Enquanto isso, Paul esfregava as mãos, esforçando-se por tirar os bocadinhos de massa que se lhe tinham agarrado.

– Gostas? – perguntou ele.

Ela levantou para ele os seus olhos profundos, inflamados de amor. Ele riu-se, contrafeito. Depois começou a falar do seu desenho. Falar com Miriam sobre os trabalhos que fazia era para ele fonte do mais intenso prazer. Punha toda a sua paixão, toda a violência do seu sangue, nestas conversas com ela, em que discutia e concebia as suas obras. Ela fazia-lhe desabrochar a imaginação, embora não entendesse, como nenhuma mulher entende, quando concebe uma criança no seu ventre. Mas isto para ela, sim, era viver. E para ele também.

Enquanto conversavam, uma rapariga que andaria pelos vinte e dois anos, baixa e descorada, de olhos encovados, mas olhar determinado, entrou na sala. Era uma amiga dos Morels.

– Põe-te à vontade – disse Paul.

– Não... não me demoro.

Sentou-se no cadeirão de braços, em frente de Paul e de Miriam, que estavam no sofá. Miriam afastou-se um pouco mais de Paul. A casa estava quente e cheirava a pão acabado de fazer: os pães tostadinhos, a estalar, pousados ao lado da chaminé.

– Não esperava vir encontrar-te hoje aqui, Miriam Leivers – disse Beatrice, maldosa.

– Não sei porquê! – resmungou Miriam, asperamente.

– Porque... Ora deixa lá ver os teus sapatos.

Miriam, constrangida, não se mexeu.

– Se não sabes, não sabes, e pronto – disse Beatrice, dando uma gargalhada.

Miriam tirou os pés de baixo do vestido. As suas botas tinham aquele ar indeciso e patético que evidenciava bem o quanto ela era insegura e complexada. E estavam, além disso, cobertas de lama.

– Santa Maria!... És mêmo um monte de lama! – exclamou Beatrice. – Quem te limp’as botas?

– Limpo-as eu.

– Então não deves ter mai nada que fazer – disse a outra. – Havia de ser preciso muitos homens pra me fazerem vir ‘té’qui esta noite... Mas o amor zomba da lama... não é, ‘Póstolo, meu lindo?

– Inter alia – disse ele.

– Valha-me Deus, não me digas que te vais pôr agora a vomitar línguas estrangeiras!... O qu’é que isso quer dizer, Miriam?

– «Entre outras coisas», julgo eu – disse ela, humildemente. Beatrice riu-se maliciosamente, com a ponta da língua a despontar entre os dentes.

– «Entre outras coisas», ‘Póstolo? – repetiu ela. – Queres tu dizer qu’o amor se ri das mães e dos pais e das irmãs e dos irmãos e dos amigos e das amigas, e se calhar até do próprio ser amado?

Estava a fazer-se de ingénua.

– Na verdade, o amor é um sorriso rasgado – retorquiu ele.

– Isso é qu’era bom, ‘Póstolo Morel... Vai por mim... – disse ela.

E riu-se de novo, com malícia, muito baixinho.

Miriam continuava calada, fechada sobre si mesma. Todas as amigas de Paul adoravam meter-se com ela, e ele deixava-a entregue a si própria, como se aproveitasse para se vingar.

– Ainda continuas na mesma escola? – perguntou Miriam a Beatrice.

– Continuo.

– Então ainda não te mandaram embora?

– Devem mandar na Páscoa.

– Não achas uma pouca-vergonha... mandarem-te embora só por não teres passado no exame?!

– Não sei – ripostou Beatrice, friamente.

– A Agatha diz que és tão boa professora como as outras. A mim parece-me ridículo. Porque será que não passaste?

– Cabeça dura, hem, ‘Póstolo? – disse Beatrice, secamente.

– Só lhe serve para morder – retorquiu Paul, a rir.

– Monstro! – gritou ela, e, saltando do lugar, atirou-se a ele e deu-lhe um puxão de orelhas. As mãos dela eram pequeninas e elegantes. Ele prendeu-lhe os pulsos enquanto ela se debatia. Conseguiu por fim libertar-se e, apanhando dois punhados do cabelo dele, castanho e espesso, puxou com toda a força.

– Oh, Bea – disse ele, alisando o cabelo com os dedos. – Odeio-te.

Ela riu, consolada.

– Com licença! – disse ela. – Quero sentar-me ao pé de ti.

– Antes estar sentado ao lado duma fera – disse ele, deixando no entanto espaço para a outra se sentar entre ele e Miriam.

– Olha, ficou com o cabelinho todo despenteado! – exclamou Beatrice, penteando-o com o seu próprio pente.

– E o bigodinho também! – continuou ela. E, atirando a cabeça para trás, com um trejeito, penteou-lho.

– Tens um bigodinho todo malandro, ‘Póstolo – disse ela. – Vermelho, sinal de perigo... Ainda tens daqueles cigarros?

Paul tirou a cigarreira do bolso. Beatrice olhou.

– Já não tens nenhum daqueles charros qu’a Connie te deu? – perguntou.

– Ainda devo ter um por aí...

Procurou no bolso e encontrou uma caixinha. Beatrice pegou-lhe.

– É isso, só tens um! – disse ela. – Devia ser para a Miriam. Não queres o charro da Connie, Miriam?

– Não, obrigada – replicou Miriam. – Quem é a Connie?

– Ele não te contou? – exclamou Beatrice, surpresa. – Bem, ‘Póstolo Morel, acho que não é bonito deixar uma menina tão linda às escuras.

– Não queres mesmo fumar? – perguntou Paul a Miriam.

– Sabes bem que não – respondeu ela.

– Imaginem só, eu a fumar o último cigarro da Connie – disse Beatrice, metendo o cigarro entre os dentes. Paul estendeu-lhe um fósforo aceso e ela aspirou sofisticadamente.

– Obrigadíssima, querido – disse, trocista.

Dizer estas coisas dava-lhe um prazer perverso a que não conseguia resistir.

– Que jeitinho que ele tem, não achas, Miriam? – perguntou.

– Se tem! – disse Miriam.

Paul tirou um cigarro.

– Lume, menino? – disse Beatrice, chegando o seu cigarro ao dele.

Ele inclinou-se para a frente, para acender o cigarro no dela. Ela piscou-lhe o olho. Miriam viu os olhos dele a brilharem de malícia e os seus lábios carnudos, quase sensuais, a tremerem. Ele já não estava em si, e isso para ela era insuportável. Aquele que ali estava agora não tinha nada a ver com ela, era como se ela não existisse para ele. Via-lhe o cigarro a bailar nos lábios cheios, bem vermelhos, e odiava aquelas madeixas espessas que lhe caíam livres sobre a testa.

– Meu torrãozinho de açúcar! – disse Beatrice, levantando-lhe o queixo e dando-lhe um beijo na face.

– Agora é a minha vez, Beat – disse ele.

– Isso é que não! – disse ela, com uma risadinha, fugindo para longe. – Ele é mesmo descarado, não achas, Miriam?

– Do pior! – disse Miriam. – A propósito, não te esqueceste do pão?

– Meu Deus! – gritou Paul, abrindo a porta do forno, de onde saiu um fumo azulado e um cheiro a pão queimado.

– Céus! – gritou Beatrice, correndo para junto dele. Paul ajoelhou-se diante do forno e ela espreitou-lhe por cima do ombro. – Aí está o resultado de só pensares no amor, meu lindo.

Paul, contrito, tirava os pães do forno. Um deles estava todo preto por baixo e o outro duro que nem uma pedra.

– Pobre Mater! – disse Paul.

– Agora tens de o raspar – disse Beatrice. – Traz-me o ralador de noz-moscada.

Ela compôs os pães que ainda estavam no forno, ele trouxe-lhe o ralador e ela raspou a parte queimada em cima da mesa, para um jornal. Paul abriu as portas, para eliminar o cheiro a queimado, e Beatrice continuou a raspar o pão, fumando enquanto arrancava a crosta carbonizada da pobre carcaça.

– Ai, ai, Miriam, desta vez estás bem arranjada – disse Beatrice.

– Eu! – exclamou Miriam, espantada.

– É melhor saíres antes de a mãe dele chegar... Agora é que eu percebo porque é que o Rei Alfred queimou os bolos. Agora, sim. O ‘Póstolo inda podia dizer que se tinha esquecido por causa do trabalho, se achasse que isso ia pegar. Se a velha da lenda tivesse chegado um nadinha mais cedo, teria dado cabo das orelhas da desavergonhada que provocou o esquecimento, e não das do pobre Alfred...

E riu-se, enquanto raspava o pão. Até Miriam, não se contendo, se riu também. Paul, pesaroso, pôs mais carvão na fogueira.

Ouviu-se bater o portão do jardim.

– Depressa! – gritou Beatrice, estendendo a Paul a carcaça já raspada. – Embrulha-a numa toalha húmida.

Paul correu para a copa. Beatrice soprou apressadamente as raspadelas para a fogueira e foi sentar-se com ar inocente. Annie entrou de rompante. Era uma rapariga muito esperta e sem rodeios. A luz intensa fê-la piscar os olhos.

– Cheira-me a queimado! – exclamou.

– É dos cigarros – explicou Beatrice, muito séria.

– Onde está o Paul?

Leonard entrou logo a seguir a Annie. Tinha uma cara comprida e engraçada, e uns olhos azuis muito tristes.

– Acho que se retirou para vocês se entenderem as duas – disse ele.

Depois, cumprimentou Miriam com ar penalizado, e mostrou-se suavemente sarcástico com Beatrice.

– Nada disso – disse Beatrice. – Foi sair com a número nove.

– Olha, vi mesmo agora a número cinco, que andava à procura dele – acrescentou Leonard.

– Pois é... Nós vamos ter de o dividir como o menino de Salomão – disse Beatrice.

Annie deu uma gargalhada.

– Ah, sim? – disse Leonard. – E com que bocado queres tu ficar?

– Sei lá – disse Beatrice. – As outras que escolham primeiro.

– E tu depois ficas com os restos? – disse Leonard, fazendo uma careta.

Annie estava às voltas com o forno. Miriam estava abandonada no seu canto. Paul entrou.

– Este pão está lindo, menino Paul – disse Annie.

– Então devias ter ficado a tomar conta dele – disse Paul.

– Tu é que devias ter feito aquilo que te compete – repontou Annie.

– Devia, não devia? – exclamou Beatrice.

– Mas se calhar estava com as mãos muito ocupadas... – atalhou Leonard.

– Viste-te aflita para cá chegar, não foi, Miriam? – disse Annie.

– Se vi... Mas tinha estado metida em casa toda a semana...

– E apeteceu-te mudar, hem? – insinuou Leonard, melífluo.

– Bem, não se pode passar a vida inteira dentro de casa – disse Annie, conciliadora. Beatrice vestiu o casaco e saiu com Leonard e Annie. Ia encontrar-se com o seu rapaz.

– Não te distraias com o pão, menino Paul – gritou Annie. – Boa noite, Miriam, acho que não vai chover mais.

Depois de todos saírem, Paul foi buscar o pão queimado, desembrulhou-o e olhou para ele com desalento.

– Está uma porcaria! – disse.

– Mas qual é o problema? – disse Miriam, enfadada. – Afinal são só... dois dinheiros e meio.

– Está bem... mas trata-se do pão da minha mãe, de que ela tanto se orgulha... e ela não vai gostar nada... Mas agora já não adianta preocuparmo-nos.

Levou o pão outra vez para a copa. Instalara-se uma certa distância entre ele e Miriam. Por uns momentos, Paul hesitou diante dela, a meditar, pesando o seu comportamento com Beatrice. No fundo, sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo contente. Não sabia explicar porquê, mas achava que era bem feito para Miriam. Não era agora que se ia arrepender. Miriam pensava no que ele estaria a cogitar, ali hesitante diante dela. Madeixas de cabelo espesso caíam-lhe ainda sobre a testa. E se lho puxasse para trás, para apagar as marcas do pente de Beatrice? E se lhe apertasse o corpo entre as suas mãos? Parecia tão rijo e palpitante. Se ele deixava as outras fazerem-lhe isso, porque não ela?

De súbito, Paul voltou à vida, e Miriam quase tremeu de susto quando ele arredou os cabelos da testa e avançou para ela.

– Oito e meia! – disse ele. – É melhor irmos a isto. Onde está o teu caderno de francês?

Miriam, contrariada, mostrou-lhe timidamente o caderno de exercícios de francês. Todas as semanas lhe entregava uma espécie de diário da sua vida íntima, escrito por ela em francês. Paul descobrira que era a única maneira de a convencer a fazer composições. O diário era acima de tudo uma carta de amor. Agora, ele ia lê-lo e era como se a história da sua alma fosse ser profanada por ele, no estado em que se encontrava. Paul sentou-se ao lado dela. Ela atentou na mão dele, firme e quente, percorrendo minuciosamente o seu trabalho.

Ele lia apenas as palavras em francês, ignorando a alma que encerravam. Mas, gradualmente, a mão esqueceu a tarefa e ele continuou a ler em silêncio, e em total imobilidade. Ela estremeceu.

– «Ce matin les oiseaux m’ont éveillé» – leu ele. – «II faisait encore un crépuscule. Mais la petite fenêtre de ma chambre était blême, et puis, jaûne, et tous les oiseaux du bois éclatèrent dans un chanson vif et résonnant. Toute l’aûbe tressaillit. J’avais rêvé de vous. Est-ce que vous voyez aussi 1’aube? Les oiseaux m’éveillent presque tous les matins, et toujours il y a quelque chose de terreur dans le cri des grives. II est si clair...».2

Miriam estava sentada, a tremer, envergonhada. Ele mantinha-se imóvel, tentando compreender. Apenas percebia que ela o amava, mas tinha medo do seu amor. Era mais do que ele merecia, e ele não era digno dela. Era ele que não a amava o suficiente, e não o contrário. Envergonhado, corrigiu-lhe o trabalho, anotando os erros timidamente por cima das palavras.

– Repara – disse ele, sereno. – Quando o particípio passado é conjugado com avoir, concorda com o complemento directo sempre que este o precede.

Ela inclinou-se para a frente, para ver melhor e poder compreender. Os seus caracóis finos e soltos roçaram-lhe ao de leve na cara, e ele deu um salto como se um ferro em brasa lhe tivesse tocado. Ao vê-la debruçada sobre a página, com os lábios rubros dolorosamente entreabertos, o cabelo negro caindo em finas madeixas sobre as faces afogueadas, corada como uma romã, a respiração tornou-se-lhe ofegante. Então, ela olhou para ele: os seus olhos negros punham a nu todo o seu amor, medo e desejo. E os olhos dele, negros também, feriram os dela. Pareciam dominá-los. E ela, perdendo o domínio de si própria, ali estava exposta, amedrontada, à mercê dele. Paul sabia, porém, que antes de a poder beijar, tinha de arrancar alguma coisa de si mesmo. E, então, um sopro de ódio por ela penetrou-lhe outra vez no coração, fazendo-o retomar as suas correcções.

De súbito, ele atirou com o lápis pelo ar e precipitou-se para o forno, para virar o pão. Era brusco de mais para o gosto dela. Miriam estremeceu em violento sobressalto, e a dor que sentiu era real. Até a maneira como ele se punha de cócoras diante do forno a magoava. Pressentia alguma crueldade nos seus gestos, alguma crueldade na brusquidão com que tirava os pães das formas, atirando-os ao ar e apanhando-os na queda. Se ao menos ele fosse gentil nos movimentos, sentir-se-ia mais rica e confortada no seu íntimo. Mas, assim, era só dor o que sentia.

Paul voltou para junto dela e acabou o exercício.

– Desta vez saíste-te bem – disse ele.

Ela percebeu que ele se sentia lisonjeado com o diário, mas isso não era recompensa suficiente.

– Sim senhora, de vez em quando fazes um brilharete – disse ele. – Devias escrever poesia.

Ela ergueu a cabeça, transbordante de alegria, mas logo a abanou desalentada.

– Falta-me confiança – disse ela.

– Mas devias tentar!

Mas ela abanou a cabeça.

– Vamos ler um bocado, ou achas que já é muito tarde? – perguntou ele.

– Lá tarde, é... mas podíamos ler só um bocadinho – pediu ela.


CONTINUA

Partiriam no sábado seguinte de manhã, no comboio das sete horas. Paul sugeriu a Miriam que dormisse em casa dele, pois morava muito longe, e ela já jantou de véspera em casa dele. Estavam todos tão excitados que a vinda de Miriam até foi recebida com entusiasmo. Contudo, mal ela chegou, a família tornou-se menos expansiva e mais fechada. Paul tinha descoberto um poema de Jean Ingelow que falava em Mablethorpe, e, por isso, tinha de o mostrar a Miriam. Sem ela, o seu sentimentalismo nunca teria chegado ao ponto de ler poesia para a família ouvir. Mas agora concordavam em ouvi-lo. Miriam, sentada no sofá, escutava-o enlevada. Quando ele estava presente, ela parecia sempre presa a ele e das palavras dele. Mrs. Morel, com ciúmes, sentou-se na sua cadeirinha de baloiço para o escutar. Annie e o pai escutavam-no também; Morel tinha a cabeça mais levantada de um lado, como alguém que escuta um sermão e está consciente do mesmo. Paul espreitou por cima do livro. Tinha agora a presença de quem mais gostava. E Mrs. Morel e Annie quase competiam com Miriam, sobre qual seria a ouvinte mais atenta, a preferida dele. Paul sentia-se nos píncaros.

– Mas – interrompeu Mrs. Morel – não percebo porque é que os sinos têm que tocar A Noiva de Enderbyt...?

– É uma velha melodia que os sinos costumavam tocar como aviso contra a cheia. Penso que a tal Noiva de Enderby morreu afogada numa enchente – respondeu ele. Não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer na realidade, mas nunca se teria rebaixado ao ponto de o confessar perante o seu público feminino. Elas escutavam-no e acreditavam. Ele próprio acreditava nas coisas que dizia.

– E as pessoas sabiam o significado dessa melodia? – quis saber a mãe.

– Sim... tal e qual os escoceses quando escutam As Flores da Floresta... e quando costumavam tocar os sinos em sinal de alarme em sentido contrário.

– Ah! – exclamou Annie. – Quer dizer que os sons de um sino são sempre os mesmos quando são tocados no seu sentido correcto, ou ao contrário.

– Mas – disse ele – se começares num tom grave e subires até ao agudo... lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá! – disse ele, percorrendo a escala completa, e todos o acharam muito inteligente. Ele também. Depois, aguardando um minuto, continuou a ler o poema.

– Hum! – disse Mrs. Morel, apreciativamente, quando ele terminou. – Só espero que tudo o que se tem escrito não seja assim tão triste.

– Num consig’intender porqu’é qu’houve tantos afogamentos – disse Morel. Houve uma pausa. Annie preparou-se para levantar a mesa.

– Acho Elizabeth um belo nome – disse Miriam, em voz baixa. – «A minha nora Elizabeth...»

– Concordo – disse Paul.

– Também acho – disse a mãe. – Mas não gosto de Lizzie e abomino Liza.

Nem Paul nem Miriam achavam que Lizzie ou Liza tivessem algo a ver com o assunto.

– Ah, mas «Elizabeth»! – murmurou Miriam.

– E ainda por cima, a Rainha Elizabeth adorava que a tratassem por «Grande Eliza» – disse Paul.

– E amanhã há mais! – disse Morel, não se contendo.

Mrs. Morel e Paul deram uma gargalhada.

– Aposto que nem sapatos tinha – disse Morel, continuando com a brincadeira.

– Não seja tão insolente com uma rainha – disse Annie.

– Rainhas! – exclamou Morel. – Num pensas noutra coisa senão nas rainhas? Num fazes mai nada senão viver à grande e à francesa!

Miriam levantou-se para ajudar a lavar a loiça.

– Deixa-me ser eu a lavar a loiça – disse ela.

– Não é necessário – exclamou Annie. – Vai-te sentar. É pouca loiça.

E Miriam, que não se sentia à vontade para insistir, sentou-se a ver o livro com Paul.

Paul era o chefe do grupo... para isso, o pai não prestava. E muito ele sofreu para que o baú de latão fosse descarregado em Firsby e não em Mablethorpe. E não foi também capaz de encontrar uma carruagem com lugares. Só a genica de Mrs. Morel o conseguiu.

– Aqui! – gritou ela para um homem. – Aqui!

Paul e Annie ficaram para trás envergonhadíssimos, mas perdidos de riso.

– Quanto é a viagem até Brook Cottage? – perguntou Mrs. Morel.

– Dois xelins.

– É assim tão longe?

– Ainda é um bom bocado.

– Não acredito – disse ela.

Contudo subiu para a carruagem. Iam os oito apertados numa velha carruagem da linha costeira.

– Bem vêem – disse Mrs. Morel –, são apenas três dinheiros por pessoa, mas se fosse um eléctrico...

A viagem prosseguiu. Sempre que passavam por uma casa típica, Mrs. Morel exclamava:

– É esta?... Não, agora é que é!

Estava toda a gente morta de ansiedade. A viagem prosseguiu. Houve um suspiro em uníssono.

– Estou agradecida por não ser aquela coisa horrorosa – disse Mrs. Morel. – Estava assustada.

Passou-se ainda mais algum tempo.

– Aquela mulher repelente disse que a casa ficava a dez minutos do mar...! – exclamou Mrs. Morel.

– Pra ela uma hora deve ser um minuto – reclamou Morel.

Todos o mandaram calar.

– Será que nunca mais chegamos? – exclamou Mrs. Morel, muito alto.

– Não grite assim, mãe – disse Annie. – O que é que ele irá pensar?

Mrs. Morel olhou de um modo esquisito para o condutor, e disse:

– Não sei! Mas, pelo aspecto, penso que não pensará nada de especial.

Finalmente, desceram perto de uma casa isolada, sobre o canal que passava na estrada principal. Houve grande alvoroço quando descobriram que tinham de atravessar uma pequena ponte para chegarem ao jardim da casa. Adoraram a casa, que ficava isolada, com o mar de um lado e, do outro, uma imensa extensão de terra plana que se estendia até ao céu, e onde se distinguia o branco da cevada, o amarelo da aveia, o vermelho do trigo e o verde dos nabos.

Paul registava as despesas e ele e a mãe governavam a casa. As despesas globais, incluindo o alojamento e a alimentação ascendiam a dezasseis xelins por pessoa e por semana. De manhã, Paul e Leonard iam tomar banho ao mar. Morel saía bastante cedo para ir dar um passeio.

– Paul – chamou a mãe do quarto. – Come uma fatia de pão com manteiga.

– Está bem – respondeu ele.

Quando regressou, a mãe estava sentada à cabeceira da mesa. A dona da casa era jovem. O marido era cego e ela cuidava da roupa. Assim, Mrs. Morel lavava a loiça na cozinha e fazia as camas.

– Mas a mãe prometeu que ia fazer umas férias a sério – disse Paul – e agora está a trabalhar.

– Trabalho? – exclamou ela. – De que é que estás a falar?

Paul adorava ir passear com ela pelos campos, até à aldeia ou até ao mar. Ela tinha medo de atravessar pontes de madeira e ele acusava-a de se portar como um bebé. Era apegado à mãe como se fosse o seu marido.

Miriam raramente andava com ele – excepto, talvez, quando iam todos ouvir os Coons. Os Coons eram insuportavelmente estúpidos para Miriam e, por isso, eram-no também para Paul, que pregava sermões presunçosos a Annie sobre a perda de tempo que era irem ouvi-los. Todavia, também ele sabia todas as suas canções de cor e as cantava desbragadamente pelas ruas. E, quando reparava que os estava a ouvir, a estupidez da situação agradava-lhe imenso. Contudo dizia para Annie:

– Que porcaria!... Não há um pingo de inteligência naquilo que cantam. Ninguém que tenha mais miolos que um gafanhoto consegue aguentá-los. – E dizia a Miriam, com algum desdém, onde estavam Annie e os outros:

– Suponho que foram aos Coons.

Era ridículo ouvir Miriam trautear as canções dos Coons. Tinha um queixo talhado a direito que descia na perpendicular desde o lábio inferior até à curvatura do maxilar. Quando ela cantava, Paul achava-a parecida com um anjo triste de Botticelli, mesmo quando entoava:


«Vem pela Estrada do Amor

Vem comigo passear, falar comigo...»


Miriam só tinha Paul todo para ela quando ele desenhava, ou à noite, quando todos os outros estavam a ouvir os Coons. Ele falava-lhe então interminavelmente do seu gosto pelos planos horizontais: como é que os grandes níveis do céu e da terra significavam para ele a eternidade da vontade, tal como os arcos normandos, arredondados e em série, significavam um salto em frente da alma humana voluntariosa, não se sabe para onde; pelo contrário, as linhas perpendiculares e o arco gótico apontavam para o céu e afloravam o êxtase, perdendo-se no divino. Ele era normando, Miriam era gótica. Submissa, ela concordava com tudo o que ele dizia.

Certa tarde, ele e ela foram passear pelo extenso areal que conduzia a Theddlethorpe. As alongadas vagas quebravam-se e elevavam-se em silvos agudos de espuma ao longo da costa. A tarde estava quente e eles completamente sozinhos na imensidão da areia, a sós com o barulho do mar. Paul adorava ouvir o mar a ressoar na areia. Adorava sentir-se entre o som do mar e o silêncio do areal. Miriam estava com ele. Tudo se tornava mais intenso. Já tinha anoitecido quando regressaram. O regresso a casa fazia-se através de uma passagem nas dunas, e depois através de uma estrada pejada de ervas, rasgada entre dois diques. A aldeia estava cinzenta e calma. Por detrás das dunas soava o murmúrio do mar. Paul e Miriam caminhavam em silêncio. De repente, ele estacou. O seu sangue parecia ter-se incendiado e ele mal podia respirar. Uma enorme lua alaranjada observava-os do alto das dunas. Ele continuava parado, olhando a lua.

– Oh! – exclamou Miriam, quando a viu também.

Ele estava ali, petrificado, olhando a lua dilatada e rubra, sozinha na escuridão imensa. O seu coração batia forte e tinha os músculos dos braços contraídos.

– O que foi? – murmurou ela, esperando por ele.

Ele voltou-se e fitou-a. Ela estava ao seu lado, para sempre na escuridão. A sua face, encoberta pela sombra do chapéu, olhava-o sem que ele a visse. E ela meditava. Estava um pouco receosa... profundamente emocionada e imbuída de religiosidade. Este era o seu melhor estado de alma. Ele sentia-se impotente face a esta situação. O sangue parecia concentrar-se como uma fogueira no seu peito, mas ele não lhe conseguia transmitir o sentimento. Pareciam disparar relâmpagos do seu sangue, mas, de algum modo, ela ignorava-os. Ela esperava vê-lo atingir um estado de graça. Ainda à espera, mas meio consciente da paixão que o possuía, Miriam fitou-o, preocupada.

– O que se passa? – murmurou novamente.

– É a Lua – respondeu ele, franzindo a testa.

– Sim – concordou ela. – É maravilhosa, não é? – Ela estava intrigada. A crise tinha passado.

Ele próprio não sabia o que lhe tinha acontecido. Era ainda tão jovem e a sua intimidade tão abstracta que não se apercebeu de que desejava esmagá-la contra o peito para aliviar a dor que o trespassava. Tinha medo dela. Talvez o facto de a desejar como um homem deseja uma mulher tivesse permanecido oculto dentro dele como uma humilhação. Quando ela fugia desses pensamentos, torturando-se em extrema agitação, ele recolhia-se até ao mais recôndito da alma. E, neste momento, esta «pureza» inibia o seu primeiro beijo de amor. Era como se ela mal pudesse suportar o choque do amor físico, ou apenas um beijo apaixonado, deixando-o demasiado reprimido e sensibilizado para lho dar.

Enquanto caminhavam ao longo da negra lagoa, Paul contemplava a Lua e mantinha-se em silêncio. Miriam caminhava a seu lado devagar. Ele sentia que a odiava, pois ela parecia, de certa forma, levá-lo a autodesprezar-se. Olhando em frente, descortinou uma luz na escuridão; era a janela iluminada da sua casa.

Adorava pensar na mãe e no resto das pessoas, todos alegres.

– Bem, já todos chegaram há bastante tempo – disse a mãe quando eles entraram.

– E o que é que isso importa? – exclamou ele, irritado. Posso ir passear quando me apetecer, não posso?

– Pensei que quisesses jantar com o resto do grupo – disse Mrs. Morel.

– Tenho de agradar a mim próprio – retorquiu ele. – Não é tarde e faço o que me apetece.

– Muito bem – disse a sua mãe, sarcasticamente. – Então faz o que te apetecer!

E nessa noite não falou mais com ele. Paul fingiu não notar nem estar preocupado com o assunto, e sentou-se a ler. Miriam lia também, tentando alienar-se. Mrs. Morel detestava-a por ela pôr o filho naquele estado. Via o filho irritadiço, presumido e melancólico, e culpava Miriam.

Annie e os amigos também se voltavam contra Miriam. O único amigo de Miriam era Paul. Mas ela não se importava, pois desprezava a trivialidade de todas essas pessoas.

E Paul detestava-a, pois ela perturbava, por assim dizer, o seu bem-estar e a sua naturalidade, torturando-o com sentimentos de humilhação.

1 «Os últimos representantes de uma raça extinta.» (N. da T.)


VIII

ZANGAS DE AMOR

ARTHUR terminou o estágio e arranjou emprego na central eléctrica da mina de Minton. Ganhava muito pouco, mas tinha possibilidades de progredir. Era, porém, rebelde e impaciente. Não bebia nem tinha o vício do jogo, mas envolvia-se constantemente em rixas devido às suas reacções intempestivas. Ia caçar coelhos para a floresta, qual caçador furtivo, e passava a noite em Nottingham em vez de voltar para casa, ou então ia nadar para o canal de Bestwood e falhava os cálculos do mergulho, ficando com o peito ferido, das rochas naturais e das latas que andavam a boiar à tona.

Tinha faltado ao emprego meses a fio, e uma noite não voltou para casa.

– Sabe por onde anda o Arthur? – perguntou Paul ao pequeno-almoço.

– Não – respondeu a mãe.

– É mesmo maluco – disse Paul. – Eu já nem ligaria, se ele ao menos fizesse mesmo alguma coisa. Mas não... não consegue resistir a um jogo de cartas, ou então vai levar alguma rapariga a casa depois da patinagem, com todo o decoro... e acaba por não voltar para casa. É maluco.

– Não vejo porque seria melhor se ele fizesse mesmo alguma coisa que nos envergonhasse – disse Mrs. Morel.

– Bem... eu, pelo meu lado, passaria a respeitá-lo mais – disse Paul.

– Duvido muito – respondeu a mãe secamente.

Continuaram a tomar o pequeno-almoço.

– A mãe gosta desvairadamente dele, não gosta? – perguntou Paul.

– Porque fazes essa pergunta?

– Dizem que as mães gostam sempre mais do filho mais novo.

– Talvez... mas eu não. Não... ele irrita-me.

– E gostava que ele se portasse melhor?

– Gostava que ele mostrasse algum bom senso masculino.

Paul estava ferido e irritado. Também ele irritava a mãe frequentemente. E ela ficava triste, pois via os melhores anos a fugirem-lhe.

Estavam a acabar o pequeno-almoço, quando o carteiro lhes entregou uma carta vinda de Derby. Mrs. Morel esforçou-se para ler o endereço.

– Dê cá isso, sua pitosga! – exclamou o filho, tirando-lhe a carta da mão. Ela assustou-se e quase lhe dava uma bofetada.

– É do seu filho Arthur – informou ele.

– Mas o que vem a ser isto? – exclamou Mrs. Morel.

– «Querida mãe» – leu Paul. – «Não sei o que me deu. Quero que me venha buscar. Ontem, em vez de ir trabalhar, vim alistar-me no exército com o Jack Brendon. Ele disse que estava farto de passar a vida sentado num escritório, e eu, idiota, como já sabe que sou, resolvi vir com ele.

«Já recebi o dinheiro referente ao recrutamento, mas se me vier buscar, talvez eles me deixem ir consigo. Foi uma loucura ter feito o que fiz. Não quero ficar no exército. Querida mãe, sei que não passo de um estorvo para si, mas, se me tirar desta situação, prometo que serei mais consciente e ponderado...»

Mrs. Morel sentou-se na cadeira de baloiço.

– Vejam só! – exclamou. – Ele que assente por uns tempos!

– Também acho – disse Paul. – Ele que assente!

Fez-se silêncio. A mãe estava sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, o rosto imóvel, pensativa.

– Devo estar doente – exclamou de repente. – Doente!

– Então! – disse Paul, franzindo a testa – Não quero que se preocupe com isto, está a ouvir?

– Então queres que encare isto como uma bênção? – disse ela, de repente, virando-se para o filho.

– Agora não vai tornar isto numa tragédia, pois não? – retorquiu ele.

– Ele é maluco!... Maluquinho de todo! – gritou Mrs. Morel.

– Vai ficar todo bonito com a farda – disse Paul, para espicaçar a mãe.

Ela virou-se a ele, furiosa.

– Ah, vai? – gritou ela. – Mas não para mim!

– Devia ir para um regimento de cavalaria... Ele divertia-se à grande e nós passávamos a ser chiques.

– Chiques!... Chiques!... Muito chique, não haja dúvida!... Um soldado raso!

– Ora – disse Paul. – E o que sou eu, senão um reles escriturário?

– O que é muito mais, meu filho! – gritou a mãe, picada.

– Essa agora!

– De qualquer forma, és um homem e não uma coisa enfiada num casaco vermelho.

– Não me importava de andar enfiado num casaco vermelho... ou azul-escuro, que me ficaria melhor... se eles não me dessem muitas ordens.

Mas a mãe já não o ouvia.

– Agora que ele estava a progredir, ou poderia vir a progredir no emprego... um aborrecimento passageiro e aí vai ele... dar cabo da vida toda. Que vantagens é que tu pensas que isto lhe pode trazer?

– Vai pô-lo todo afinado! – disse Paul.

– Todo afinado!... E o que tem ele para afinar? Um soldado!... Um soldado raso!!... Nada mais do que um corpo que se mexe quando lhe dão ordens! Grande coisa!

– Não percebo porque é que isso a aborrece tanto – disse Paul.

– Não, talvez não percebas. Mas percebo eu. – E recostou-se na cadeira, de queixo apoiado numa das mãos e segurando o cotovelo com a outra, a transbordar de raiva e desilusão.

– Está a pensar ir a Derby? – perguntou Paul.

– Estou, pois.

– Não faça isso.

– Quero ver com os meus próprios olhos.

– Mas por que diabo é que não o deixa assentar? É isso mesmo que ele quer.

– Claro – exclamou a mãe. – Tu sabes muito bem o que ele quer...

Preparou-se e apanhou o primeiro comboio para Derby, onde se encontrou com o filho e com o sargento. Todavia, os seus esforços foram infrutíferos.

Morel estava a almoçar, quando ela disse de repente:

– Tenho de ir hoje a Derby.

O mineiro levantou os olhos, muito brancos numa face toda enfarruscada.

– Ah, vais, cachopa? E o que te leva lá?

– O menino Arthur!

– Qu’aprontou ele desta vez?

– Alistou-se no exército, só isso.

Morel pousou a faca e recostou-se na cadeira.

– Não – disse ele. – Num pode ser!

– E amanhã vai para Aldershot.

– Bom – exclamou o mineiro –, iss’é qu’é já uma grand’alhada.

Morel reflectiu por um momento, disse «Hum!» e continuou a jantar. Subitamente, a face contraiu-se-lhe de raiva.

– Espero qu’ele nunca mais volte a pôr as patas nesta casa – disse ele.

– Credo! – exclamou Mrs. Morel. – Isso é lá coisa que se diga!

– É o qu’eu penso – repetiu Morel. – O doidivanas pisga-se pa ser soldado... Atão é porque já tá na hora de fazer pela vida... Comigo na conta mais.

– Falar é fácil... – disse Mrs. Morel.

Nessa noite, Morel quase sentiu vergonha de ir para a taberna.

– Então, sempre lá foi? – perguntou Paul à mãe quando chegou a casa.

– Fui.

– E viu-o?

– Vi.

– E o que disse ele?

– Ficou lavado em lágrimas quando me vim embora.

– Hum!

– E eu fiz o mesmo, portanto não precisas de fazer «Hum!».

Mrs. Morel preocupava-se com o filho, pois sabia que ele não ia gostar de estar no exército. Como de facto não gostou. A disciplina era uma coisa que ele não conseguia tolerar.

– Mas o doutor disse que ele era bem proporcionado... quase na proporção exacta, e as suas medidas eram perfeitas – disse Mrs. Morel a Paul, cheia de orgulho. – Como tu sabes, ele é bem-parecido.

– Ele é muito bem-parecido. Mas não arranja raparigas como o William, pois não?

– Não... Tem uma personalidade diferente. Sai muito ao pai: é um irresponsável.

Para consolar a mãe, Paul passou nessa altura a ir muito menos a Willey Farm. No Outono, quando se realizou no castelo a habitual exposição dos trabalhos dos alunos da escola de belas-artes, ele apresentou dois trabalhos: uma paisagem a aguarela e uma natureza morta a óleo, que obtiveram dois primeiros prémios, o que o deixou deveras emocionado.

– Mãe, que lhe parece, acha que ganhei algum prémio com as minhas pinturas? – perguntou uma noite, ao chegar a casa. Pelos seus olhos, a mãe viu que ele estava feliz, e a sua face resplandeceu.

– Como queres que eu saiba, meu filho?!

– Um primeiro prémio por aquelas jarras de vidro...

– Ena!

– E outro primeiro prémio por aquele esboço que fiz em Willey Farm.

– Um primeiro prémio para cada coisa?

– Sim, senhora.

– Hum!

Mrs. Morel parecia envolvida numa aura brilhante, cor-de-rosa, mas não disse nada.

– É bem bom, não é, mãe? – disse ele.

– É, sim.

– Oh, mãe, porque não me põe nos píncaros?

Ela riu-se.

– É que depois tinha de ter o trabalho de te puxar cá para baixo outra vez.

No entanto, toda ela vibrava de alegria. William tinha-lhe trazido sempre os seus troféus desportivos. Ela ainda os guardava, e não perdoava a morte dele. Arthur era bonito e era pelo menos um belo exemplar masculino, terno e generoso, e provavelmente o futuro acabaria por lhe sorrir. Mas Paul iria destacar-se. Ela tinha uma grande fé no filho, e mais ainda por ele não ter consciência das suas capacidades. Ele tinha tanto para dar, e a vida parecia ter muito para lhe dar também. Ela iria sentir-se realizada através do filho. A sua luta não tinha sido em vão.

Durante o período da exposição, Mrs. Morel foi várias vezes ao castelo, sem que Paul a visse. Vagueava pelo longo salão, apreciando as restantes pinturas. Sim, eram muito boas. Mas faltava-lhes qualquer coisa para que a sua satisfação fosse completa. Observava-as longamente, tentando encontrar nelas alguma falha. De repente, algo lhe fazia disparar o coração. Aquela era a pintura de Paul. Conhecia-a como se a tivesse gravada no coração.

«Nome: Paul Morel. Primeiro Prémio.»

Parecia tão estranha, ali exposta ao público, nas paredes da galeria do castelo, onde já tinha visitado tantas exposições de pintura durante toda a sua vida. E, depois, olhou em volta, tentando descobrir se alguém a tinha tornado a ver em frente ao mesmo quadro.

Não cabia em si de orgulho, e quando se cruzava com senhoras bem vestidas, pensava para consigo:

«Pois sim, vocês estão muito bem vestidas... mas duvido que os vossos filhos consigam arrebatar dois primeiros prémios na exposição no castelo.»

E seguia o seu caminho, sentindo-se mais orgulhosa do que qualquer outra mãe de Nottingham. E Paul sentia que tinha feito algo por ela, mesmo não passando de uma insignificância. Todo o seu trabalho pertencia à sua mãe.

Um dia, encontrou Miriam quando se dirigia para o castelo. Tinha-a visto no domingo e não esperava encontrá-la na cidade. Vinha com ela uma mulher loura, espampanante, de expressão carregada e porte provocador. Era estranho como Miriam, tão meditativa e reverente, parecia insignificante ao lado desta mulher de ombros deslumbrantes. Miriam fitou Paul demoradamente. O olhar dele estava pregado na desconhecida, que o ignorava. Miriam via claramente o seu instinto masculino a erguer-se altaneiro.

– Olá – disse ele. – Não me disseste que vinhas à cidade.

– Pois não – retorquiu Miriam, em ar de desculpa. Fui à Feira do Gado com o meu pai.

Paul olhou para a companheira de Miriam.

– Já te tinha falado de Mrs. Dawes – disse Miriam, com a voz estrangulada. Estava nervosa. – Clara, já conheces o Paul?

– Penso que já o vi antes – respondeu Mrs. Dawes, indiferente, enquanto o cumprimentava. Tinha uns olhos cinzento-esverdeados, displicentes, a pele era mel claro, e a boca carnuda, com o lábio superior levemente levantado, não se percebendo se de desprezo por todos os homens ou desejo de ser beijada, sendo a primeira hipótese a mais provável. Tinha a cabeça inclinada para trás, como se ela se afastasse por desdém, talvez também dos homens. Usava um chapéu enorme e deselegante, de pele escura de castor, e um vestido simples levemente afectado, que lhe conferia as linhas de um saco. Obviamente era pobre e tinha falta de gosto. Miriam andava sempre bonita.

– Onde é que me viste? – perguntou Paul à outra mulher.

Ela olhou-o como se não tivesse qualquer dúvida em responder.

E depois:

– Vi-te a passear com a Louie Travers – respondeu ela.

Louie era uma das raparigas da secção Espiral da fábrica de Mr. Jordan.

– E como é que tu a conheces? – perguntou ele.

Ela não respondeu. Paul virou-se então para Miriam.

– Para onde vais agora? – perguntou.

– Para o castelo.

– A que horas é o comboio de regresso?

– Vou regressar com o meu pai. Gostava que também viesses connosco. A que horas estás livre?

– Já sabes que nunca antes das oito, que diabo!

E as duas mulheres seguiram o seu caminho.

Paul lembrou-se de que Clara Dawes era filha de um velho amigo de Mrs. Leivers. Miriam tinha-a procurado, pois ela tinha sido em tempos supervisora da secção Espiral da Jordan, e porque o marido, um tal Baxter Dawes que era ferreiro, trabalhava para a fábrica, fazendo entre outras coisas os ferros para as próteses ortopédicas. Miriam pensou que através dela pudesse contactar directamente com a fábrica, podendo assim assegurar o emprego de Paul. Mas Mrs. Dawes estava separada do marido, e agora dedicava-se à defesa dos direitos das mulheres. Era supostamente inteligente, e isso interessava a Paul.

Paul conhecia Baxter Dawes e detestava-o. O ferreiro tinha cerca de trinta e um ou trinta e dois anos. Paul encontrava-o de vez em quando: era um homem alto e bem constituído, bem-parecido, para quem dava gosto olhar. Havia uma curiosa semelhança entre ele e a mulher. Ele tinha a mesma pele clara, de tom de dourado. O seu cabelo era castanho-claro e o bigode dourado. E exalava um desprezo semelhante, pelo porte e pela conduta. Nisto surgiu a diferença. Os seus olhos castanhos, muito escuros e astuciosos, eram imorais. Eram levemente salientes e as pálpebras sobrepunham-se de uma forma tal que lhe suscitava o ódio. A boca era também sensual. A postura evidenciava um desprezo cobarde, como se estivesse preparado para derrubar o primeiro que o censurasse... talvez porque ele próprio se censurava.

O homem odiou Paul desde o primeiro dia que o viu. Ao captar o olhar deliberado e impessoal de um artista no rosto do rapaz, enfureceu-se.

– Pa’onde é que tás’olhar? – disse ele desdenhosamente, amedrontando-o.

O rapaz desviou o olhar. O ferreiro costumava encostar-se ao balcão a conversar com Mr. Pappleworth, e a sua conversa era sempre porca e depravada. Quando sentiu novamente os olhos frios e críticos do jovem pousados nele, o ferreiro virou-se, como se tivesse sido mordido por algum bicho.

– Pa’onde é que tás’olhar, ó parvalhão? – rosnou ele.

O rapaz encolheu os ombros.

– Olha que tu...! – berrou Dawes.

– Deixa-o em paz – disse Mr. Pappleworth, naquela sua voz insinuante que parecia dizer «ele é um pobre diabo, mas não faz por mal».

Desde essa altura, Paul passou a olhar para o homem, sempre que o encontrava, com o mesmo olhar crítico e curioso, desviando o olhar antes de encontrar os olhos do ferreiro, o que deixava Dawes fora de si. E, assim, odiavam-se em silêncio.

Clara Dawes não tinha filhos. Quando deixou o marido, desfizeram a casa e ela foi viver com a mãe, enquanto Dawes passou a viver em casa da irmã. Na mesma casa vivia também uma cunhada, e Paul veio a descobrir que a tal rapariga, a Louie Travers, era agora a amante de Dawes. Era uma atrevida bonitona e insolente, que escarnecia do rapaz, mas que se empolgava toda se ele a acompanhava à estação.

A vez seguinte em que Paul foi visitar Miriam era um sábado à tarde. Ela tinha a lareira acesa na sala de visitas e estava à espera dele. Os outros tinham saído, com excepção dos pais e dos irmãos mais novos, pelo que tinham a sala de visitas só para eles. A sala era comprida, de tectos baixos e aconchegada. Na parede havia três pequenos quadros de Paul e o seu retrato estava pousado ao canto da lareira. Em cima da mesa e em cima do piano de pau-rosa, estavam jarras com folhas coloridas. Ele sentou-se na poltrona e ela ajoelhou-se no tapete aos seus pés. A luz da fogueira reflectia-se na sua cara bonita e pensativa.

– O que achaste de Mrs. Dawes? – perguntou Miriam, num tom calmo.

– Não me pareceu muito amistosa – respondeu ele.

– Lá isso não, mas não a achas elegante?

– Sim... no que diz respeito à sua altura. Mas não tem um pingo de bom gosto. Gosto de algumas coisas nela. Ela é sempre assim antipática?

– Penso que não. Penso que não anda satisfeita.

– Com o quê?

– Bem, como é que te sentirias a viver com um homem daqueles?

– Então, porque é que ela casou com ele, sabendo que o ia detestar tão rapidamente?

– Sim, porque é que ela casou com ele? – repetiu Miriam, com aspereza.

– E eu que pensei que ela fosse suficientemente forte para medir forças com ele – disse Paul.

Miriam baixou a cabeça.

– Ah, sim? – perguntou, satiricamente. E o que é que te leva a pensar isso?

– Basta olhar para a boca dela... nascida para a paixão... e a maneira como estica a garganta.

E atirou a cabeça para trás imitando o jeito provocador de Clara.

Miriam baixou ainda mais a cabeça.

– Sim – disse ela.

Fez-se silêncio durante alguns momentos, e Paul pensava em Clara.

– E o que é que te agradou nela? – continuou Miriam.

– Não sei... a pele e a textura da... da... não sei... emana dela uma certa violência... Aprecio-a apenas como artista.

– Pois.

Paul não entendia por que razão Miriam estava ali sentada no chão, meditando de uma forma tão estranha, e isso irritava-o.

– Não gostas mesmo dela, pois não? – perguntou ele à rapariga.

Ela olhou-o com os seus enormes olhos escuros, encantadores.

– Gosto – respondeu.

– Não gostas, não... não podes gostar... muito.

– E pode saber-se porquê? – perguntou ela calmamente.

– Oh, não sei... Talvez gostes dela porque ela odeia os homens.

Esta era provavelmente uma das razões pelas quais ele gostava de Mrs. Dawes, mas isso não lhe tinha ocorrido. Calaram-se. Ele franziu a testa, algo que já se estava a tornar habitual, particularmente quando estava com Miriam. Ela ansiava fazer-lhe desaparecer as rugas da testa, mas tinha medo. Parecia haver um outro homem dentro de Paul Morel, mas que não era o seu.

Algumas bagas vermelhas sobressaíam entre as folhas do vaso. Ele esticou-se e arrancou um raminho.

– Porque será que, se colocares bagas vermelhas no cabelo – disse ele – pareces uma bruxa ou uma sacerdotisa, mas nunca uma libertina.

Ela rasgou um sorriso doloroso, despojado.

– Não sei – disse.

As suas mãos fortes e quentes brincavam alegremente com as bagas.

– Porque não te ris? – disse ele. – Nunca sorris abertamente. Apenas te ris quando algo é estranho ou incongruente, e até isso parece magoar-te.

Miriam baixou a cabeça como se ele a estivesse a admoestar.

– Gostaria muito que sorrisses apenas um minuto para mim... apenas por um minuto. Sinto que isso libertaria alguma coisa dentro de ti.

– Mas... – e olhou-o com uns olhos assustados e lutadores. – ... Mas eu rio-me... sim, eu rio-me.

– Mentira, nunca te ris. Só se for por algo de muito intenso. Sempre que te ris, apetece-me chorar; parece que o teu riso transmite sofrimento. Oh, só de pensar nisso, fazes com que eu enrugue a minha alma.

– Não é minha intenção fazê-lo – disse.

– Eu sou sempre tão espiritual contigo – exclamou ele.

Ela manteve-se em silêncio, a pensar: «Então porque não és de outra forma?» E ele olhou para o seu corpo dobrado, em meditação, e pareceu dividi-lo em dois.

– Estamos no Outono – disse ele – e todas as pessoas libertam o seu espírito.

Caiu novamente o silêncio. Este estranho desentendimento entre eles despedaçava a alma de Miriam. Ele parecia tão bonito, com os seus olhos escuros e um olhar tão profundo como a nascente mais funda.

– Tornas-me tão espiritual – lamentou-se ele. – E eu não quero ser espiritual.

Ela retirou o dedo da boca com um pequeno estalido, e olhou-o em tom provocador. Mas a sua alma continuava nua nos seus olhos grandes e castanhos e o mesmo desejo ardente dominava-a. Se isso fosse possível, ele tê-la-ia beijado na pureza da abstracção. Mas ele não a podia beijar assim... e ela não parecia dar-lhe qualquer outra alternativa. E, no entanto, desejava-o.

Paul sorriu.

– Bem – disse ele –, vamos lá estudar francês... vamos ler Verlaine.

– Sim – disse ela num tom profundo, quase de resignação. Levantou-se e foi buscar os livros. As suas mãos avermelhadas e nervosas metiam dó; como ele desejava confortá-la e beijá-la!! Mas não se atrevia... ou não podia. Algo o impedia. Os seus beijos eram para ela reprováveis. Continuaram a ler até às dez horas, e depois foram para a cozinha; Paul mostrava-se de novo alegre e natural para com os pais de Miriam. Os seus olhos eram escuros e brilhantes e envolvia-o uma aura de fascinação.

Quando foi buscar a bicicleta ao celeiro descobriu que o pneu dianteiro estava furado.

– Vai-me buscar uma tigela com uma pinguinha de água – pediu ele a Miriam. – Vou chegar tarde e já sei que vou ouvir um sermão.

Acendeu a lanterna à prova do vento, despiu o casaco, virou a bicicleta ao contrário e meteu mãos à obra rapidamente. Miriam trouxe-lhe a tigela com água e ficou junto dele, observando-o. Adorava ver as mãos dele em acção. Era elegante e forte, e até os seus movimentos mais rápidos eram feitos com desembaraço. Ocupado como estava, parecia tê-la esquecido. Mas ela amava-o de uma forma absorvente, desejava poder passar as mãos ao longo do seu corpo. Sempre desejara abraçá-lo, desde que ele não a quisesse.

– Já está – disse Paul, levantando-se de repente. – Mais rápido não podia ser!

– Lá isso é verdade! – concordou ela, sorrindo.

Paul endireitou-se. Estava de costas para Miriam. Ela colocou as mãos nas ancas dele, fazendo-as deslizar rapidamente ao longo das pernas.

– És tão elegante! – disse ela.

Ele sorriu. Detestava o tom da voz dela, mas o sangue incendiou-se-lhe ao sentir o contacto das mãos. Ela, pelo contrário, parecia nem dar por ele. Era como se ele fosse um objecto, como se não se apercebesse do homem que ali estava.

Paul acendeu a luz da bicicleta, experimentou-a, bateu com ela no chão do celeiro para verificar o som dos pneus, e apertou o casaco.

– Tudo em ordem! – disse ele.

Ela experimentou os travões, pois sabia que estavam avariados.

– Já os arranjaste? – perguntou ela.

– Não!

– E porque não?

– O travão traseiro funciona mais ou menos.

– Mas não é seguro.

– Posso travar com o pé.

– Era melhor que os tivesses arranjado – murmurou ela.

– Não te preocupes... Amanhã vem tomar chá a minha casa e traz o Edgar.

– A sério?

– A sério... Por volta das quatro... Vou ter convosco.

– Combinado!

Ela estava feliz. Atravessaram o pátio às escuras até ao portão. Olhando em frente, Paul viu as cabeças de Mr. e Mrs. Leivers atrás da vidraça sem cortinas da cozinha, iluminadas pelo fulgor da lareira. O ambiente parecia muito aconchegado. À sua frente, a estrada ladeada de pinheiros abria-se escura.

– Até amanhã – disse ele, montando na bicicleta.

– Vais ter cuidado, não vais? – recomendou ela, como quem pede.

– Vou.

A voz dele soou já da escuridão. Ela deixou-se ficar mais uns instantes a ver a lanterna afastar-se e entrar na noite. Depois, voltou lentamente para casa. Orion elevava-se por cima da floresta, seguida do seu cão cintilante, meio apagado. Fora essa luz, o mundo estava mergulhado na mais densa escuridão e no silêncio, quebrado apenas pelo resfolegar do gado nos estábulos. E ela rezou com devoção pela segurança dele nessa noite. Quando ele a deixava, ficava sempre num estado de extrema ansiedade, imaginando se ele teria chegado bem a casa.

Paul deixava a bicicleta embalar pelas encostas abaixo. As estradas eram escorregadias e ele não podia meter travões. Era um prazer quando a bicicleta se precipitava pelo declive mais íngreme da colina. «Cá vou eu!», dizia ele. Era arriscado por causa da curva completamente às cegas à chegada ao vale, e das carroças dos cervejeiros com os carroceiros bêbados, a dormir. A bicicleta parecia desintegrar-se debaixo dele e Paul adorava a sensação. O descuido é a vingança de um homem sobre a mulher. Sentindo que não é devidamente apreciado, arrisca a sua própria destruição, para que ela sinta a sua falta.

Ao passar veloz pelo lago, as estrelas reflectidas na água pareciam saltar da escuridão como gafanhotos prateados. Depois surgia a longa subida até casa.

– Olha, mãe! – disse ele, atirando as bagas e as folhas para cima da mesa.

– Hum! – fez ela, olhando para a mesa e desviando o olhar. Como sempre, estava sozinha, sentada a ler.

– Não são bonitas?

– São.

Ele sabia que a mãe estava aborrecida. Passados alguns minutos disse:

– O Edgar e a Miriam vêm cá tomar chá amanhã.

A mãe não respondeu.

– Não se importa?

Ela continuou sem responder.

– Então importa-se? – perguntou ele.

– Sabes bem se me importo ou não.

– Não vejo porque se há-de importar... eu como lá tantas vezes...

– Pois comes.

– Então porque lhes recusa um chá?

– A quem é que eu recuso um chá?

– Porque é que a mãe é sempre tão difícil?

– Pronto, não digas mais nada! Convidaste-a para o chá, e isso já é o suficiente. Ela não falta.

Paul ficou muito aborrecido com a mãe. Sabia que ela não gostava de Miriam. Atirou com as botas e foi deitar-se.

Paul foi abrir a porta aos amigos no dia seguinte. Estava feliz de os ver chegar. Vieram por volta das quatro horas. Tudo estava sereno e calmo para domingo à tarde. Mrs. Morel estava sentada, com o seu vestido preto e o avental branco, mas levantou-se para receber as visitas. Foi cordial com Edgar, mas fria e muito esquiva com Miriam. Todavia, Paul achava que a rapariga estava bem bonita no seu vestido castanho de caxemira.

Ajudou a mãe a preparar o chá. Miriam ter-se-ia oferecido de agrado para ajudar, mas tinha receio. Paul tinha muito orgulho da sua casa. Havia nela uma certa distinção, pensava ele. As cadeiras eram simples, de madeira, e o sofá já velho. Mas o tapete e as almofadas eram aconchegantes; os quadros eram gravuras de bom gosto; a simplicidade dominava e havia muitos livros. Nem ele nem Miriam se envergonhavam das casas que tinham, pois eram tudo aquilo que deviam ser, e ainda acolhedoras. Então na mesa tinha grande orgulho; o serviço de chá era bonito e a toalha fina; pouco importava que as colheres não fossem de prata e nem o cabo das facas de marfim; tudo estava bonito. Mrs. Morel tinha cuidado maravilhosamente de tudo enquanto os filhos cresceram. Assim, nada se encontrava fora do lugar.

Miriam falou um pouco de livros, pois era um assunto que dominava bem. Mas Mrs. Morel não se mostrou interessada, virando-se rapidamente para Edgar.

A princípio, quando Edgar e Miriam iam à igreja, sentavam-se no banco de Mrs. Morel. Morel nunca lá ia, pois preferia a taberna. Mrs. Morel, arvorando-se em chefe da família, sentava-se numa extremidade do banco e Paul na outra extremidade; a princípio, Miriam sentava-se ao lado dele. A capela lembrava a Paul a sua casa. Era um lugar bonito, com bancos escuros e pilares estreitos e elegantes, e com muitas, muitas flores. As mesmas pessoas sentavam-se sempre nos mesmos lugares desde que ele era menino. Era bastante agradável e reconfortante estar ali sentado durante uma hora e meia, ao lado de Miriam e perto da mãe, unindo os seus dois amores sob o fascínio daquele local de culto. Sentia-se a um tempo entusiasmado, feliz e religioso. Terminada a missa, acompanhava Miriam a casa, enquanto Mrs. Morel passava o resto da tarde com a sua velha amiga Mrs. Burns. Sentia-se verdadeiramente vivo durante os passeios que dava ao domingo pela tardinha com Edgar e Miriam. Sempre que passava de noite pelas minas, pelo depósito das lanternas, todo iluminado, pelas torres altas e negras e pelas filas de vagões parados em frente das ventoinhas que giravam lentamente na escuridão, tinha a sensação intensa e quase insuportável de que Miriam voltaria para si.

Mas Miriam não ocupou por muito tempo o banco da família Morel, pois o pai arranjou novamente um outro banco. Ficava mesmo por baixo da pequena galeria, em frente ao banco dos Morels. Quando Paul e a mãe chegavam à capela, o banco dos Leivers estava sempre vazio. Ele receava que não viessem: a capela ficava muito longe e eram muitos os domingos chuvosos. Mas a dado momento, quase sempre atrasada, Miriam chegava com o seu passo amplo, cabeça baixa e face oculta pelo chapéu de veludo verde-escuro. Visto sentar-se do lado oposto, a sua cara ficava sempre na sombra, o que até o fazia sentir-se bem, pois ao vê-la ali à sua frente era como se a alma se lhe agitasse dentro do corpo. Não era o mesmo calor, a mesma alegria e o mesmo orgulho que sentia ao ter a mãe a seu lado, como chefe: era algo mais maravilhoso ainda, menos humano, um sentimento intenso temperado pela dor, algo que ele sabia que não podia alcançar.

Foi nesta altura que começou a pôr em questão a doutrina ortodoxa. Ele tinha vinte e um anos e ela vinte. Miriam receava a chegada da Primavera: ele tornava-se agressivo e magoava-a muito. Tudo o que mais queria era destruir cruelmente as crenças dela. Edgar, crítico por natureza e sem sentimentos, gostava desta situação. Mas Miriam sofria amargamente, pois o homem que amava possuía uma inteligência cortante que dissecava a religião em que ela fora criada e se movimentava, e onde habitava o seu Eu. Mas ele não a poupava e mostrava-se muito cruel. Quando estavam sozinhos, tornava-se ainda mais violento, como se quisesse matar-lhe a alma, explorando as suas crenças até ela quase perder a consciência.

– Ela regozija-se... regozija-se quando afasta o meu filho de mim – gritava Mrs. Morel do fundo do coração, quando Paul saía de casa. – Ela não é como qualquer mulher comum, que permite que eu faça parte do meu filho. Ela quer absorvê-lo. Quer tirar-mo e absorvê-lo, até que nada reste dele, nem sequer para ele próprio. Assim, ele nunca será senhor de si... ela irá sugá-lo completamente. – E Mrs. Morel sentava-se, debatendo pressentimentos e meditando tristemente.

Quando regressava dos seus passeios com Miriam, Paul vinha trespassado de sofrimento. Caminhava com passo apressado, mordendo os lábios e cerrando os punhos. Quando chegava a uma cerca, parava por alguns minutos, imobilizado. À sua frente estendia-se a escuridão sem fim; as negras encostas salpicavam-se de florescências luminosas; e, nos recônditos da noite, brilhava o clarão da mina. Tudo era estranho e ameaçador. Porque estava ele tão dilacerado, quase em êxtase, incapaz de se mover? Porque estava a mãe sentada em casa a sofrer? E sabia que ela sofria bastante. Mas porquê? E porque detestava ele Miriam e era tão cruel para ela, quando pensava na mãe? Já que Miriam fazia a mãe sofrer, ele tinha de a detestar. E com facilidade a detestava. Porque o levava ela a duvidar de si próprio, deixando-o inseguro, indefinido, como se não pudesse evitar que a noite e o espaço caíssem sobre ele? Como ele a odiava! Mas logo um ímpeto de ternura e humilhação o envolvia.

De repente, precipitava-se para casa a correr. A mãe reconhecia nele as marcas da agonia, mas nada dizia. Ele, porém, tinha de obrigá-la a falar, pois via-a zangada por ele ter ido passear com Miriam para tão longe.

– Porque é que não gosta dela, mãe? – gritou ele um dia, desesperado.

– Não sei, meu filho – respondeu ela num tom comovente. – Já tentei gostar, tentei com todas as minhas forças... mas não consigo... não consigo...

E, entre ambas, ele sentia-se triste e sem esperanças. A Primavera era a pior das estações. Ele ficava instável, enérgico e cruel. Assim, decidiu afastar-se dela. Surgiam então as horas a que ele sabia que Miriam o esperava, e a mãe apercebia-se da sua impaciência. Paul não conseguia progredir no seu trabalho, não conseguia fazer nada. Era como se algo transportasse a sua alma até Willey Farm. De repente, punha o chapéu e saía sem dizer nada. E a mãe sabia que ele tinha partido. Assim que se punha a caminho respirava de alívio. Mas, mal chegava ao pé de Miriam, tornava-se novamente cruel.

Certo dia, em Março, estava Paul deitado nas margens do lago Nethermere, com Miriam sentada a seu lado. Estava um dia resplandecente, branco e azul. Nuvens grandes e brilhantes passavam altas, e as suas sombras moviam-se silenciosas sobre a água. Os espaços abertos no céu tinham um tom glacial de azul. Paul estava deitado de costas sobre a relva, olhando o céu. Não conseguia olhar para Miriam. Ela parecia desejá-lo e ele resistia. Resistia sempre. Ela queria dar-lhe a sua paixão, a sua ternura, mas não era capaz. Ele sentia que ela não o queria; que apenas queria a sua alma. Miriam retirava-lhe as forças e a energia através de um canal que os unia. Ela não queria o corpo dele, pois nesse caso seria apenas duas pessoas, homem e mulher, em comunhão. Queria absorvê-lo completamente. E ele sentia-se estimulado por um impulso quase de loucura, que o fascinava, com um fascínio de droga.

Ele falava sobre Miguel Angelo. Ao escutá-lo, ela sentia que tocava o protoplasma da vida, as próprias células palpitantes, e a sua satisfação era plena. Mas, no final, isso assustava-a. Ali estava ele deitado, na intensidade imaculada da procura, e a sua voz amedrontava-a num crescendo, levando-a quase a tocar as raias do inumano, como se num transe.

– Não digas mais nada – pediu Miriam, com ternura, pousando a mão na testa dele. Ele permanecia estático, incapaz de se mover. O seu corpo estava de algum modo abandonado.

– Porquê... estás cansada?

– Estou, e tu também vais ficar.

Ele deu uma pequena gargalhada, apercebendo-se da situação.

– Contudo, sabe-me bem – disse ele.

– Mas não é essa a minha intenção – disse ela, muito baixinho.

– Não quando já foste longe de mais e sentes que já não és capaz de te dominar. Mas o teu eu inconsciente clama por isso. E eu suponho que também quero o mesmo.

– Então como posso evitá-lo?

– Penso que não podes, pois tu fazes sempre o mesmo. Desligas-me algures e retiras-me de mim próprio. Sinto-me como um fantasma, sem corpo.

– Não! – implorou ela.

– Agora mesmo, neste momento, olho para as minhas mãos e pergunto-me o que estão elas ali a fazer. Aquela água, por exemplo, ondula através de mim. Eu sou a ondulação. Corre através de mim e eu através dela. Não há barreiras entre nós.

– Mas...! – E Miriam hesitou.

– O que resta de mim é apenas uma consciência disseminada. Sinto que o meu corpo está deitado aqui, vazio, como se eu estivesse dentro de outras coisas... das nuvens e da água...

Ela olhou para ele e reparou naquele olhar tão estranho, como se ele fosse uma coisa e não uma pessoa, o que a fascinava tanto, mas que tanto receava. E era precisamente esse receio que a impelia a ter muito mais. Mas, agora, queria que ele parasse.

– Sabes – prosseguiu – o meu eu físico está liberto. Mas, se assim for, então eu não estou vivo. Tenho a certeza de que me destruiria. O que tu queres é pores-me gordo e banal, e não uma sombra. Queres fechar bem a minha alma dentro da sua bainha. Mas ela um destes dias libertava-se, tal como a espada que se libertou de uma bainha lassa e caiu ao mar.

Miriam meditava tristemente. Nisto, levantou a cabeça e olhou-o com os olhos muito brilhantes.

– Então deixa-me ser a tua protecção – disse ela.

E estendeu as mãos para as dele.

– Se tu pudesses... – disse ele. – Mas tu és aquilo que o teu eu inconsciente te impõe, e não aquilo que queres ser. Nenhum de nós dois é completamente normal... porém, agora eu quero sê-lo, mas penso que tu não queres. Tu queres ser algo fora do comum.

– Não, não quero – exclamou ela. Mas havia medo na sua voz.

– De qualquer forma – continuou Paul, num tom apático –, isso agora não é possível. Não me podes ter dessa maneira. Neste momento eu e tu somos apenas almas desprovidas de sangue. E isso provocaria uma vibração diferente, que se entrechocaria com este estado actual numa verdadeira tortura... Se ao menos pudesses querer-me, e não apenas quereres aquilo que eu tenho para te papaguear.

– Eu! – exclamou Miriam num tom áspero. – Eu! Quando é que eu te posso ter?

– Então a culpa é minha – disse ele, e juntando as partes dispersas do seu eu, levantou-se e começou a falar de coisas triviais. Sentia-se irreal. De uma forma vaga, detestava-a por isso. Sabia que era ele o culpado e, no entanto, isso não o impedia de a odiar.

Certa noite, na mesma época, em que Paul tinha ido levar Miriam a casa, pararam perto do prado que se estendia até à floresta, incapazes de se separarem. Assim que as estrelas surgiram, as nuvens desapareceram e eles captaram fugazmente a sua Orion, que se dirigia para oeste. As jóias de Orion brilharam por um breve instante, com o seu cão correndo rasteiro, lutando com dificuldade para atravessar a espuma de uma nuvem.

Orion era para eles a constelação mais carregada de significado. Era nela que os seus olhos se haviam fixado nos momentos mais estranhos e intensos, até sentirem que viviam em cada uma das suas estrelas. Nessa noite, Paul mostrava-se taciturno e perverso. Orion parecia-lhe apenas uma constelação, nada mais. Lutava contra o seu brilho, o seu fascínio. Miriam observava atentamente a disposição do seu amado, mas ele nada disse que o comprometesse até ao momento da partida, quando, de testa franzida, ficou parado a olhar tristemente para o castelo de nuvens, por detrás do qual a grande constelação estaria ainda a transitar.

No dia seguinte havia uma pequena festa em casa dele, para a qual Miriam estava convidada.

– Não posso vir buscar-te – disse ele.

– Não faz mal... O tempo também não está dos melhores para andar na rua... – respondeu ela serenamente.

– Não é isso... eles é que não gostam que eu venha. Dizem que me preocupo mais contigo do que com eles. E tu compreendes, não é verdade?... Tu sabes que entre nós existe apenas amizade.

Miriam ficou perplexa e com pena dele. Como lhe devia ter custado dizer aquelas palavras. Deixou-o, para lhe poupar outra humilhação. Uma chuva fina batia-lhe no rosto enquanto caminhava. Estava profundamente magoada e desprezava-o por ele se deixar levar pelo mais leve sopro de autoridade. No fundo do seu coração, sentia inconscientemente que ele tentava afastar-se dela, mas como jamais teria a coragem de o admitir, sentia pena dele.

Por esta altura, Paul tornou-se num elemento imprescindível do armazém da Jordan. Mr. Pappleworth saiu para se estabelecer por conta própria e Paul passou a supervisor da Espiral. Se tudo corresse bem, o seu salário seria aumentado para trinta xelins no final do ano.

Miriam vinha quase todas as sextas-feiras à noite para a lição de francês. Paul já não ia tão amiúde a Willey Farm, e ela receava que a sua aprendizagem estivesse prestes a terminar; por outro lado, e apesar das discórdias, gostavam de estar um com o outro. Liam Balzac, escreviam composições e sentiam-se bastante cultos.

A noite de sexta-feira era a noite de pagamento para os mineiros. Morel «repartia o bolo», ou seja, dividia os lucros da empreitada, quer no New Inn, em Bretty, quer na sua própria casa, conforme os seus companheiros preferissem. Barker tinha deixado de beber, e agora os homens «dividiam o bolo» em casa de Morel.

Annie, que tinha estado a dar aulas longe dali, regressara de novo a casa. Era ainda uma rapariga endiabrada. Estava noiva e ia casar. Paul andava a estudar desenho.

Morel estava sempre bem-disposto às sextas-feiras à noite, a não ser que os ganhos dessa semana fossem escassos. Depois do jantar, entregava-se a longos preparativos para se lavar. A decência exigia que as mulheres se ausentassem durante as reuniões masculinas. As mulheres não deviam assistir à reunião dos sócios, que era considerada assunto estritamente masculino... e nem deviam ficar a saber qual o montante exacto dos ganhos semanais. Assim, enquanto o pai barafustava na cozinha, Annie saiu e foi por uma hora para casa da vizinha, e Mrs. Morel foi à cozinha ver se o pão já estava cozido.

– Fecha a porta! – berrou Morel, furioso.

Annie bateu com a porta e saiu.

– S’ela torna a abrir a porta enquant’eu tou a tomar banho, amando-lh’um murro que lhe parto os queixos – berrou ele, ameaçador, por entre a espuma do sabão. Paul e a mãe franziram as sobrancelhas ao ouvi-lo.

Logo depois, saiu da cozinha, tremendo de frio e pingando o chão todo de água ensaboada.

– Oh, cos diabos! – disse ele. – Onde está a minha toalha?

Estava pousada numa cadeira, frente à lareira, para aquecer, pois, se assim não fosse, ele teria feito um grande estardalhaço. Aninhou-se sobre os calcanhares frente ao lume vivo, para secar.

– Brrrr... – continuou, fingindo tremer de frio.

– Ó homem, não sejas criança! – disse Mrs. Morel. – Não está frio nenhum.

– Exprimenta despires-te e tomares banho naquela cozinha – disse o mineiro, enxugando o cabelo. – Mas que gelo de casa!

– Eu não faria com certeza tanto alarido – respondeu a mulher.

– Ah, poi não. Caías redonda no chão que nem uma pedra.

– Porque é que uma pedra há-de ser mais redonda do que outra coisa qualquer? – perguntou Paul curioso.

– Essa agora... sei lá... é o que se diz – argumentou o pai. – Nesta tua cozinha há muitas correntes de ar, e quando ele passa através das costelas parece vento a passar por uma cancela de cinco traves.

– Sempre teria alguma dificuldade em passar através das tuas costelas – disse Mrs. Morel.

Morel olhou desanimado para ambos os lados do seu corpo.

– Eu! – exclamou. – Eu cá num tenho pele de coelho. Os meus ossos vêem-se no meu corpo!

– Gostaria de saber onde – retorquiu a mulher.

– Por todo o lado! Mas também num sou nenhuma carga de ossos.

Mrs. Morel deu uma gargalhada. Ele tinha um corpo ainda belo, jovem e musculado, sem gorduras. A pele era macia e clara. Poderia bem ser o corpo de um homem com vinte e oito anos, se não fossem as várias cicatrizes azuladas, semelhantes a tatuagens, onde o pó do carvão se tinha alojado, e o seu peito peludo. Morel pôs as mãos nos quadris, desanimado. Acreditava piamente que, por não engordar, era magro como um rato esfomeado.

Paul olhou para as mãos do pai, calejadas, escuras, cobertas de cicatrizes e com as unhas partidas, a esfregarem a maciez do seu corpo, e ficou admirado, pois parecia-lhe estranho serem feitas da mesma carne.

– Suponho – disse, virando-se para o pai – que antigamente tinha uma bela figura.

– Eh, olha lá o que dizes! – exclamou o mineiro, olhando em volta, espantado e tímido, como uma criança.

– Tinha uma bela figura, sim senhor! – exclamou Mrs. Morel. – O pior foi ele andar sempre aos encontrões a tudo, como se quisesse meter-se no buraco mais pequeno que encontrava.

– Eu? – exclamou Morel. – Eu, uma bela figura! Nunca passei de um esqueleto.

– Credo, homem! – gritou a mulher. – Não sejas tão piegas!

– É ve’dade – disse ele. – Tu nunca me viste qu’eu não parecesse qu’emagrecia de dia pra dia.

Mrs. Morel sentou-se e deu uma gargalhada.

– Tens um corpo de ferro – disse ela. – No tocante ao corpo, nunca nenhum homem te levou a melhor. Devias ter visto o teu pai em novo... – exclamou, de repente, virando-se para Paul e empertigando-se, para imitar a postura outrora garbosa do marido. Morel observava-a, envergonhado. Viu novamente a paixão que ela sentia por ele, e que brilhou durante alguns momentos à volta dela. Ele era tímido, assustadiço e humilde. Agora, porém, sentia de novo a velha força de outros tempos. Mas imediatamente sentiu na carne os estragos praticados ao longo de todos estes anos e só queria desaparecer, fugir de tudo.

– Lava-me as costas – pediu ele à mulher.

Ela trouxe uma toalha ensopada e ensaboada e colocou-lha sobre os ombros. Ele deu um salto.

– Oh, desgraçada! – berrou ele. – Tá gelada como a morte!

– Devias ter nascido salamandra – disse ela a rir, lavando-lhe as costas. Só raramente o ajudava nestas tarefas tão pessoais. Geralmente, eram os filhos quem fazia este tipo de coisas.

– O outro mundo não vai ser suficientemente quente para ti – acrescentou ela.

– Poi não – disse ele. – Tu vais fazer com que sopre uma aragem pra m’arrefecer.

Mas ela já tinha terminado. Enxugou-o rapidamente e subiu ao primeiro-andar, regressando em seguida com um par de calças limpas. Assim que se secou, Morel vestiu a camisola. Depois, rosado e luzidio, com o cabelo em pé e a camisola de flanela vestida por cima das calças de mineiro, aqueceu as ceroulas que ia vestir a seguir. Virou-as, pô-las do avesso e ressequiu-as.

– Oh, homem, veste-te! – exclamou Mrs. Morel.

– Queria ver se gostavas de vestir uma roupa tão fria como a água da banheira – disse ele.

Por fim, despiu as calças e vestiu-se condignamente de preto. Fez tudo isto em cima do tapete da lareira, e teria feito o mesmo se Annie e os amigos íntimos estivessem presentes.

Mrs. Morel virou o pão no forno. Depois, retirou uma mão-cheia de massa do alguidar de barro, que se encontrava a um canto da cozinha; trabalhou a massa dando-lhe a forma adequada e meteu-a numa tigela. Enquanto fazia isto, Barker bateu à porta e entrou. Era um homem baixo, compacto e calmo, que parecia capaz de atravessar um muro de pedra. O cabelo era preto e curto e a cara bem-parecida. Tal como a maioria dos mineiros, era pálido, mas saudável e rijo.

– Boa noite, ‘nha senhora – disse o homem, curvando a cabeça e sentando-se, com um suspiro.

– Boa noite – respondeu ela, cordialmente.

– Fizeste ranger os tacões – disse Morel.

– Num dei por nada – disse Barker.

Retraído, sentou-se num dos bancos da cozinha, como os colegas normalmente faziam.

– Como está a sua senhora? – perguntou-lhe Mrs. Morel. Há algum tempo, ele tinha-lhe dito: «Sabe, estamos à espera do terceiro...»

– Bem – respondeu ele, coçando a cabeça –, penso que está tão boa quanto o possível.

– Ora deixa cá ver... para quando é? – perguntou Mrs. Morel.

– Bem... penso que está para chegar a qualquer momento...

– Ah, sim? E tem passado bem?

– Sim... tudo em ordem.

– É um milagre, pois ela não é muito forte.

– É verdade. ... E eu fiz outra asneira.

– O que foi?

Mrs. Morel sabia que Barker não teria feito nada de muito errado.

– Não consegui dar co’a alcofa das compras.

– Pode levar a minha.

– Não... óspois vossemecê pode precisar.

– Não preciso, não. Levo sempre um saco de rede.

Todas as sextas-feiras à noite, Mrs. Morel via o mineiro, baixo e desembaraçado, a comprar os legumes e a carne para toda a semana, e sentia grande admiração por ele.

– O Barker pode ser baixo, mas é dez vezes mais homem do que tu – tinha dito ela ao marido.

Nisto, entrou Nessen. Apesar de pai de sete filhos, era magro, muito frágil, com uma ingenuidade de adolescente e um sorriso levemente matreiro. Mas a mulher dele era uma mulher apaixonada.

– Estou a ver que me batest’òs pontos – disse, sorrindo sem brilho.

– Pois foi – respondeu Barker.

O recém-chegado tirou o boné e o grosso cachecol de lã. Tinha um nariz pontiagudo e vermelho.

– É capaz de ter frio, Mr. Wesson – disse Mrs. Morel.

– Aqui tá um bocado de frio – respondeu.

– Então aproxime-se do lume.

– Não, tou bem aqui.

Os dois mineiros sentaram-se um pouco mais arredados. Não queriam ficar em cima do tapete da lareira, pois esse lugar era sagrado para a família.

– Senta-te no cadeirão – exclamou Morel, alegremente.

– Não, obrigado. Tou muito bem aqui.

– Ora essa, chegue-se para aqui – insistiu Mrs. Morel.

O homem levantou-se e, avançando desajeitadamente, sentou-se no cadeirão de Morel, envergonhado. Era tomar demasiada confiança. Mas estar ao pé do lume deixava-o muito feliz.

– E então como está o seu peito? – perguntou Mrs. Morel.

Ele sorriu novamente, com uns olhos azuis muito brilhantes.

– Ora, vai indo! – disse ele.

– Como um chocalho – atalhou Barker.

– T..t..t..t – fez Mrs. Morel com a língua. – Já mandou fazer a camisa de flanela?

– Ainda não – disse ele sorrindo.

– E porque não? – perguntou ela.

– Lá chegará o dia... – disse ele, sorrindo.

– Ah, o dia de São Nunca, estou a ver – exclamou Barker.

Barker e Morel preocupavam-se com Wesson, pois fisicamente eram ambos fortes que nem touros.

Quando Morel estava quase pronto, entregou o saco do dinheiro a Paul.

– Contó lá, rapaz – pediu com humildade.

Impaciente, Paul abandonou os livros e os lápis e despejou o saco para cima da mesa. Continha cinco libras em moedas de prata, várias moedas de vinte xelins e alguns trocados. Paul contou o dinheiro rapidamente, incluindo os cheques e os papéis com os totais do carvão, e pôs as moedas por ordem. Então Barker deu uma olhadela aos cheques.

Mrs. Morel subiu ao primeiro andar e os três homens sentaram-se à mesa. Morel, como dono da casa, sentou-se no seu cadeirão com as costas viradas para a lareira. Os outros dois sentaram-se em cadeiras frias. Nenhum deles contou o dinheiro.

– Quant’é que dissemos qu’era prò Simpson? – perguntou Morel. E, durante um minuto, discutiram os ganhos diários do companheiro, sendo o valor respectivo posto de lado em seguida.

– E quant’é prò Bill Naylor?

Também este valor foi retirado do saco.

E então, visto que Wesson vivia numa casa da companhia e a renda já tinha sido deduzida, Morel e Barker retiraram quatro xelins e seis dinheiros cada um. E, para compensar o carvão que Morel já tinha trazido, Barker e Wesson receberam mais quatro xelins cada. Depois, a distribuição foi simples: Morel deu a cada um uma moeda de vinte xelins, até não restar nenhuma; mais meia coroa a cada um, até não restarem mais; e ainda uma moeda de um xelim, até acabarem. Se no fim restasse alguma coisa que não pudesse ser dividida, Morel guardava esse dinheiro para pagar uma rodada de cerveja.

Finalmente, os três homens levantaram-se e saíram. Morel tratou de se escapar antes de a mulher descer. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu. Deu uma olhadela rápida ao pão que tinha no forno e, olhando para a mesa, viu o seu dinheiro. Paul tinha estado sempre embrenhado no trabalho. Mas agora apercebia-se de que a mãe, ao contar a semanada, se enfurecia.

– T..t..t – era o barulho que ela fazia com a língua.

Paul franziu a testa. Não conseguia trabalhar quando a via aborrecida. Mrs. Morel contou novamente o dinheiro.

– Uns míseros vinte e cinco xelins! – exclamou ela. – Qual era o valor do cheque?

– Dez libras e onze xelins – disse Paul, irritado. Ele receava o que estava para vir.

– E esta semana ele dá-me uma porcaria de vinte e cinco xelins, e ainda tenho de tirar o dinheiro para o clube. Eu bem o conheço... Pensa que por tu ganhares, já não precisa de sustentar a casa. Ele que coma o dinheiro, se quiser. Mas eu digo-lhe como é...

– Oh, mãe, não... – exclamou Paul.

– Não, o quê, posso saber? – disse ela.

– Não reaja assim... senão não consigo trabalhar.

Ela continuou, mas já um pouco mais calma.

– Pronto, está certo – disse ela. – Mas como é que pensas que me vou governar?

– Eu sei, mas não adianta nada piorar a situação.

– Gostava de saber o que é que farias se tivesses de aturar isto?

– Já não será por muito tempo... Vai ter o meu dinheiro não tarda, e ele que vá para o diabo.

Retomou o trabalho, e ela apertou as fitas do chapéu com desalento.

O filho não suportava vê-la assim, quando ela estava zangada. Todavia, começava agora a tentar dar-lhe isso a perceber.

– Os dois pães do tabuleiro de cima estão prontos dentro de vinte minutos – disse Mrs. Morel. – Não te esqueças.

– Está bem – respondeu ele, e Mrs. Morel saiu para o mercado.

Paul ficou sozinho a trabalhar. Mas a sua habitual concentração estava perturbada. Ouviu bater a cancela do pátio. Cerca das sete e um quarto, bateram ao de leve na porta e Miriam entrou.

– Estás sozinho? – perguntou.

– Estou.

Como se estivesse na sua própria casa, tirou a boina escocesa e o casaco comprido e pendurou-os. Ele sentiu uma tremura. Esta podia ser a casa deles, dele e dela.

Miriam aproximou-se e espreitou o que ele estava a fazer.

– O que é? – perguntou.

– Uma natureza morta... para decorar objectos e bordados.

Ela inclinou-se mais, aproximando os olhos míopes do desenho.

– E gostas do que fazes? – inquiriu.

– Adoro. Neste momento ando em maré de convencionalizar tudo.

– Ah...

Miriam não se interessava por estudos convencionais, mas reconhecia que ele devia saber mais do que ela sobre tais coisas. Eram coisas de homens, coisas que não lhe diziam respeito. No entanto, havia de descobrir a razão por que ele andava, como dizia, em maré de convencionalizar tudo. Que fascínio poderia ter para ele o convencional?

– O que é que te faz gostar disto? – perguntou ela, intrigada.

Ele, como já era seu hábito, procurou justificar-se. Lutando com as palavras, tentou explicar-lhe a teoria de que a força de gravitação é o agente mais poderoso, o factor responsável pela forma das coisas, e que, se pudesse agir em completa liberdade, apareceria uma rosa geometricamente correcta nas linhas e nas proporções... e assim por diante. Isto fez desabrochar nela um certo conceito de desenho convencional que até aí lhe parecia ser pura mentira. Por fim, ele empurrou os livros para o lado.

– Posso...? – disse ele, ansioso e hesitante.

– Podes o quê?

– Mostrar-te isto... Não era minha intenção enquanto não estivesse pronto.

Paul não conseguia esconder-lhe nada do que fazia. Foi à sala e voltou com uma trouxa de linho cru. Desembrulhou-a cautelosamente e estendeu-a no chão. Era um cortinado, ou melhor, um portière, magnificamente decorado com rosas, estampadas a stencil.

– Ah, que bonito! – exclamou ela.

O tecido espraiou-se aos pés dela, com as suas maravilhosas rosas em tons rubros e caules em verde-escuro, tudo muito simples, mas com um não sei quê de perverso. Ela ajoelhou-se, deixando pender soltos os caracóis. Ele, ao vê-la assim, voluptuosamente debruçada sobre a sua obra, sentiu bater mais depressa o coração. De repente, ela ergueu os olhos para ele.

– Porque é que isto parece tão cruel? – perguntou.

– O quê?

– Parece haver neste padrão uma certa crueldade – disse ela.

– Haja ou não haja, a mim parece-me óptimo – replicou ele, dobrando o trabalho com mãos de amante. Ela levantou-se devagar, pensativa.

– Que vais fazer com isto? – perguntou ela.

– Mandá-lo para os armazéns Liberty. Fi-lo para a minha mãe... mas acho que ela prefere o dinheiro.

– Estou a ver... – disse Miriam. Havia na voz dele um travo de amargura, e ela ficou com pena. A ela, o dinheiro jamais lhe interessaria.

Paul levou o tecido novamente para a sala, e, quando voltou, atirou a Miriam um retalho mais pequeno. Era a fronha de uma almofada, com um padrão idêntico.

– Fi-la para ti.

Miriam apalpou o trabalho com mãos trémulas, em silêncio. Paul ficou embaraçado.

– Meu Deus, o pão! – gritou ele.

Tirou os pães do tabuleiro superior e bateu-lhes vigorosamente. Já estavam cozidos. Pô-los ao lado da lareira, para arrefecerem. Em seguida, foi à copa, molhou as mãos, retirou do alguidar a massa, muito branca, que ainda restava, e colocou-a dentro de uma forma de pão. Miriam continuava debruçada sobre o tecido pintado. Enquanto isso, Paul esfregava as mãos, esforçando-se por tirar os bocadinhos de massa que se lhe tinham agarrado.

– Gostas? – perguntou ele.

Ela levantou para ele os seus olhos profundos, inflamados de amor. Ele riu-se, contrafeito. Depois começou a falar do seu desenho. Falar com Miriam sobre os trabalhos que fazia era para ele fonte do mais intenso prazer. Punha toda a sua paixão, toda a violência do seu sangue, nestas conversas com ela, em que discutia e concebia as suas obras. Ela fazia-lhe desabrochar a imaginação, embora não entendesse, como nenhuma mulher entende, quando concebe uma criança no seu ventre. Mas isto para ela, sim, era viver. E para ele também.

Enquanto conversavam, uma rapariga que andaria pelos vinte e dois anos, baixa e descorada, de olhos encovados, mas olhar determinado, entrou na sala. Era uma amiga dos Morels.

– Põe-te à vontade – disse Paul.

– Não... não me demoro.

Sentou-se no cadeirão de braços, em frente de Paul e de Miriam, que estavam no sofá. Miriam afastou-se um pouco mais de Paul. A casa estava quente e cheirava a pão acabado de fazer: os pães tostadinhos, a estalar, pousados ao lado da chaminé.

– Não esperava vir encontrar-te hoje aqui, Miriam Leivers – disse Beatrice, maldosa.

– Não sei porquê! – resmungou Miriam, asperamente.

– Porque... Ora deixa lá ver os teus sapatos.

Miriam, constrangida, não se mexeu.

– Se não sabes, não sabes, e pronto – disse Beatrice, dando uma gargalhada.

Miriam tirou os pés de baixo do vestido. As suas botas tinham aquele ar indeciso e patético que evidenciava bem o quanto ela era insegura e complexada. E estavam, além disso, cobertas de lama.

– Santa Maria!... És mêmo um monte de lama! – exclamou Beatrice. – Quem te limp’as botas?

– Limpo-as eu.

– Então não deves ter mai nada que fazer – disse a outra. – Havia de ser preciso muitos homens pra me fazerem vir ‘té’qui esta noite... Mas o amor zomba da lama... não é, ‘Póstolo, meu lindo?

– Inter alia – disse ele.

– Valha-me Deus, não me digas que te vais pôr agora a vomitar línguas estrangeiras!... O qu’é que isso quer dizer, Miriam?

– «Entre outras coisas», julgo eu – disse ela, humildemente. Beatrice riu-se maliciosamente, com a ponta da língua a despontar entre os dentes.

– «Entre outras coisas», ‘Póstolo? – repetiu ela. – Queres tu dizer qu’o amor se ri das mães e dos pais e das irmãs e dos irmãos e dos amigos e das amigas, e se calhar até do próprio ser amado?

Estava a fazer-se de ingénua.

– Na verdade, o amor é um sorriso rasgado – retorquiu ele.

– Isso é qu’era bom, ‘Póstolo Morel... Vai por mim... – disse ela.

E riu-se de novo, com malícia, muito baixinho.

Miriam continuava calada, fechada sobre si mesma. Todas as amigas de Paul adoravam meter-se com ela, e ele deixava-a entregue a si própria, como se aproveitasse para se vingar.

– Ainda continuas na mesma escola? – perguntou Miriam a Beatrice.

– Continuo.

– Então ainda não te mandaram embora?

– Devem mandar na Páscoa.

– Não achas uma pouca-vergonha... mandarem-te embora só por não teres passado no exame?!

– Não sei – ripostou Beatrice, friamente.

– A Agatha diz que és tão boa professora como as outras. A mim parece-me ridículo. Porque será que não passaste?

– Cabeça dura, hem, ‘Póstolo? – disse Beatrice, secamente.

– Só lhe serve para morder – retorquiu Paul, a rir.

– Monstro! – gritou ela, e, saltando do lugar, atirou-se a ele e deu-lhe um puxão de orelhas. As mãos dela eram pequeninas e elegantes. Ele prendeu-lhe os pulsos enquanto ela se debatia. Conseguiu por fim libertar-se e, apanhando dois punhados do cabelo dele, castanho e espesso, puxou com toda a força.

– Oh, Bea – disse ele, alisando o cabelo com os dedos. – Odeio-te.

Ela riu, consolada.

– Com licença! – disse ela. – Quero sentar-me ao pé de ti.

– Antes estar sentado ao lado duma fera – disse ele, deixando no entanto espaço para a outra se sentar entre ele e Miriam.

– Olha, ficou com o cabelinho todo despenteado! – exclamou Beatrice, penteando-o com o seu próprio pente.

– E o bigodinho também! – continuou ela. E, atirando a cabeça para trás, com um trejeito, penteou-lho.

– Tens um bigodinho todo malandro, ‘Póstolo – disse ela. – Vermelho, sinal de perigo... Ainda tens daqueles cigarros?

Paul tirou a cigarreira do bolso. Beatrice olhou.

– Já não tens nenhum daqueles charros qu’a Connie te deu? – perguntou.

– Ainda devo ter um por aí...

Procurou no bolso e encontrou uma caixinha. Beatrice pegou-lhe.

– É isso, só tens um! – disse ela. – Devia ser para a Miriam. Não queres o charro da Connie, Miriam?

– Não, obrigada – replicou Miriam. – Quem é a Connie?

– Ele não te contou? – exclamou Beatrice, surpresa. – Bem, ‘Póstolo Morel, acho que não é bonito deixar uma menina tão linda às escuras.

– Não queres mesmo fumar? – perguntou Paul a Miriam.

– Sabes bem que não – respondeu ela.

– Imaginem só, eu a fumar o último cigarro da Connie – disse Beatrice, metendo o cigarro entre os dentes. Paul estendeu-lhe um fósforo aceso e ela aspirou sofisticadamente.

– Obrigadíssima, querido – disse, trocista.

Dizer estas coisas dava-lhe um prazer perverso a que não conseguia resistir.

– Que jeitinho que ele tem, não achas, Miriam? – perguntou.

– Se tem! – disse Miriam.

Paul tirou um cigarro.

– Lume, menino? – disse Beatrice, chegando o seu cigarro ao dele.

Ele inclinou-se para a frente, para acender o cigarro no dela. Ela piscou-lhe o olho. Miriam viu os olhos dele a brilharem de malícia e os seus lábios carnudos, quase sensuais, a tremerem. Ele já não estava em si, e isso para ela era insuportável. Aquele que ali estava agora não tinha nada a ver com ela, era como se ela não existisse para ele. Via-lhe o cigarro a bailar nos lábios cheios, bem vermelhos, e odiava aquelas madeixas espessas que lhe caíam livres sobre a testa.

– Meu torrãozinho de açúcar! – disse Beatrice, levantando-lhe o queixo e dando-lhe um beijo na face.

– Agora é a minha vez, Beat – disse ele.

– Isso é que não! – disse ela, com uma risadinha, fugindo para longe. – Ele é mesmo descarado, não achas, Miriam?

– Do pior! – disse Miriam. – A propósito, não te esqueceste do pão?

– Meu Deus! – gritou Paul, abrindo a porta do forno, de onde saiu um fumo azulado e um cheiro a pão queimado.

– Céus! – gritou Beatrice, correndo para junto dele. Paul ajoelhou-se diante do forno e ela espreitou-lhe por cima do ombro. – Aí está o resultado de só pensares no amor, meu lindo.

Paul, contrito, tirava os pães do forno. Um deles estava todo preto por baixo e o outro duro que nem uma pedra.

– Pobre Mater! – disse Paul.

– Agora tens de o raspar – disse Beatrice. – Traz-me o ralador de noz-moscada.

Ela compôs os pães que ainda estavam no forno, ele trouxe-lhe o ralador e ela raspou a parte queimada em cima da mesa, para um jornal. Paul abriu as portas, para eliminar o cheiro a queimado, e Beatrice continuou a raspar o pão, fumando enquanto arrancava a crosta carbonizada da pobre carcaça.

– Ai, ai, Miriam, desta vez estás bem arranjada – disse Beatrice.

– Eu! – exclamou Miriam, espantada.

– É melhor saíres antes de a mãe dele chegar... Agora é que eu percebo porque é que o Rei Alfred queimou os bolos. Agora, sim. O ‘Póstolo inda podia dizer que se tinha esquecido por causa do trabalho, se achasse que isso ia pegar. Se a velha da lenda tivesse chegado um nadinha mais cedo, teria dado cabo das orelhas da desavergonhada que provocou o esquecimento, e não das do pobre Alfred...

E riu-se, enquanto raspava o pão. Até Miriam, não se contendo, se riu também. Paul, pesaroso, pôs mais carvão na fogueira.

Ouviu-se bater o portão do jardim.

– Depressa! – gritou Beatrice, estendendo a Paul a carcaça já raspada. – Embrulha-a numa toalha húmida.

Paul correu para a copa. Beatrice soprou apressadamente as raspadelas para a fogueira e foi sentar-se com ar inocente. Annie entrou de rompante. Era uma rapariga muito esperta e sem rodeios. A luz intensa fê-la piscar os olhos.

– Cheira-me a queimado! – exclamou.

– É dos cigarros – explicou Beatrice, muito séria.

– Onde está o Paul?

Leonard entrou logo a seguir a Annie. Tinha uma cara comprida e engraçada, e uns olhos azuis muito tristes.

– Acho que se retirou para vocês se entenderem as duas – disse ele.

Depois, cumprimentou Miriam com ar penalizado, e mostrou-se suavemente sarcástico com Beatrice.

– Nada disso – disse Beatrice. – Foi sair com a número nove.

– Olha, vi mesmo agora a número cinco, que andava à procura dele – acrescentou Leonard.

– Pois é... Nós vamos ter de o dividir como o menino de Salomão – disse Beatrice.

Annie deu uma gargalhada.

– Ah, sim? – disse Leonard. – E com que bocado queres tu ficar?

– Sei lá – disse Beatrice. – As outras que escolham primeiro.

– E tu depois ficas com os restos? – disse Leonard, fazendo uma careta.

Annie estava às voltas com o forno. Miriam estava abandonada no seu canto. Paul entrou.

– Este pão está lindo, menino Paul – disse Annie.

– Então devias ter ficado a tomar conta dele – disse Paul.

– Tu é que devias ter feito aquilo que te compete – repontou Annie.

– Devia, não devia? – exclamou Beatrice.

– Mas se calhar estava com as mãos muito ocupadas... – atalhou Leonard.

– Viste-te aflita para cá chegar, não foi, Miriam? – disse Annie.

– Se vi... Mas tinha estado metida em casa toda a semana...

– E apeteceu-te mudar, hem? – insinuou Leonard, melífluo.

– Bem, não se pode passar a vida inteira dentro de casa – disse Annie, conciliadora. Beatrice vestiu o casaco e saiu com Leonard e Annie. Ia encontrar-se com o seu rapaz.

– Não te distraias com o pão, menino Paul – gritou Annie. – Boa noite, Miriam, acho que não vai chover mais.

Depois de todos saírem, Paul foi buscar o pão queimado, desembrulhou-o e olhou para ele com desalento.

– Está uma porcaria! – disse.

– Mas qual é o problema? – disse Miriam, enfadada. – Afinal são só... dois dinheiros e meio.

– Está bem... mas trata-se do pão da minha mãe, de que ela tanto se orgulha... e ela não vai gostar nada... Mas agora já não adianta preocuparmo-nos.

Levou o pão outra vez para a copa. Instalara-se uma certa distância entre ele e Miriam. Por uns momentos, Paul hesitou diante dela, a meditar, pesando o seu comportamento com Beatrice. No fundo, sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo contente. Não sabia explicar porquê, mas achava que era bem feito para Miriam. Não era agora que se ia arrepender. Miriam pensava no que ele estaria a cogitar, ali hesitante diante dela. Madeixas de cabelo espesso caíam-lhe ainda sobre a testa. E se lho puxasse para trás, para apagar as marcas do pente de Beatrice? E se lhe apertasse o corpo entre as suas mãos? Parecia tão rijo e palpitante. Se ele deixava as outras fazerem-lhe isso, porque não ela?

De súbito, Paul voltou à vida, e Miriam quase tremeu de susto quando ele arredou os cabelos da testa e avançou para ela.

– Oito e meia! – disse ele. – É melhor irmos a isto. Onde está o teu caderno de francês?

Miriam, contrariada, mostrou-lhe timidamente o caderno de exercícios de francês. Todas as semanas lhe entregava uma espécie de diário da sua vida íntima, escrito por ela em francês. Paul descobrira que era a única maneira de a convencer a fazer composições. O diário era acima de tudo uma carta de amor. Agora, ele ia lê-lo e era como se a história da sua alma fosse ser profanada por ele, no estado em que se encontrava. Paul sentou-se ao lado dela. Ela atentou na mão dele, firme e quente, percorrendo minuciosamente o seu trabalho.

Ele lia apenas as palavras em francês, ignorando a alma que encerravam. Mas, gradualmente, a mão esqueceu a tarefa e ele continuou a ler em silêncio, e em total imobilidade. Ela estremeceu.

– «Ce matin les oiseaux m’ont éveillé» – leu ele. – «II faisait encore un crépuscule. Mais la petite fenêtre de ma chambre était blême, et puis, jaûne, et tous les oiseaux du bois éclatèrent dans un chanson vif et résonnant. Toute l’aûbe tressaillit. J’avais rêvé de vous. Est-ce que vous voyez aussi 1’aube? Les oiseaux m’éveillent presque tous les matins, et toujours il y a quelque chose de terreur dans le cri des grives. II est si clair...».2

Miriam estava sentada, a tremer, envergonhada. Ele mantinha-se imóvel, tentando compreender. Apenas percebia que ela o amava, mas tinha medo do seu amor. Era mais do que ele merecia, e ele não era digno dela. Era ele que não a amava o suficiente, e não o contrário. Envergonhado, corrigiu-lhe o trabalho, anotando os erros timidamente por cima das palavras.

– Repara – disse ele, sereno. – Quando o particípio passado é conjugado com avoir, concorda com o complemento directo sempre que este o precede.

Ela inclinou-se para a frente, para ver melhor e poder compreender. Os seus caracóis finos e soltos roçaram-lhe ao de leve na cara, e ele deu um salto como se um ferro em brasa lhe tivesse tocado. Ao vê-la debruçada sobre a página, com os lábios rubros dolorosamente entreabertos, o cabelo negro caindo em finas madeixas sobre as faces afogueadas, corada como uma romã, a respiração tornou-se-lhe ofegante. Então, ela olhou para ele: os seus olhos negros punham a nu todo o seu amor, medo e desejo. E os olhos dele, negros também, feriram os dela. Pareciam dominá-los. E ela, perdendo o domínio de si própria, ali estava exposta, amedrontada, à mercê dele. Paul sabia, porém, que antes de a poder beijar, tinha de arrancar alguma coisa de si mesmo. E, então, um sopro de ódio por ela penetrou-lhe outra vez no coração, fazendo-o retomar as suas correcções.

De súbito, ele atirou com o lápis pelo ar e precipitou-se para o forno, para virar o pão. Era brusco de mais para o gosto dela. Miriam estremeceu em violento sobressalto, e a dor que sentiu era real. Até a maneira como ele se punha de cócoras diante do forno a magoava. Pressentia alguma crueldade nos seus gestos, alguma crueldade na brusquidão com que tirava os pães das formas, atirando-os ao ar e apanhando-os na queda. Se ao menos ele fosse gentil nos movimentos, sentir-se-ia mais rica e confortada no seu íntimo. Mas, assim, era só dor o que sentia.

Paul voltou para junto dela e acabou o exercício.

– Desta vez saíste-te bem – disse ele.

Ela percebeu que ele se sentia lisonjeado com o diário, mas isso não era recompensa suficiente.

– Sim senhora, de vez em quando fazes um brilharete – disse ele. – Devias escrever poesia.

Ela ergueu a cabeça, transbordante de alegria, mas logo a abanou desalentada.

– Falta-me confiança – disse ela.

– Mas devias tentar!

Mas ela abanou a cabeça.

– Vamos ler um bocado, ou achas que já é muito tarde? – perguntou ele.

– Lá tarde, é... mas podíamos ler só um bocadinho – pediu ela.


CONTINUA

Partiriam no sábado seguinte de manhã, no comboio das sete horas. Paul sugeriu a Miriam que dormisse em casa dele, pois morava muito longe, e ela já jantou de véspera em casa dele. Estavam todos tão excitados que a vinda de Miriam até foi recebida com entusiasmo. Contudo, mal ela chegou, a família tornou-se menos expansiva e mais fechada. Paul tinha descoberto um poema de Jean Ingelow que falava em Mablethorpe, e, por isso, tinha de o mostrar a Miriam. Sem ela, o seu sentimentalismo nunca teria chegado ao ponto de ler poesia para a família ouvir. Mas agora concordavam em ouvi-lo. Miriam, sentada no sofá, escutava-o enlevada. Quando ele estava presente, ela parecia sempre presa a ele e das palavras dele. Mrs. Morel, com ciúmes, sentou-se na sua cadeirinha de baloiço para o escutar. Annie e o pai escutavam-no também; Morel tinha a cabeça mais levantada de um lado, como alguém que escuta um sermão e está consciente do mesmo. Paul espreitou por cima do livro. Tinha agora a presença de quem mais gostava. E Mrs. Morel e Annie quase competiam com Miriam, sobre qual seria a ouvinte mais atenta, a preferida dele. Paul sentia-se nos píncaros.

– Mas – interrompeu Mrs. Morel – não percebo porque é que os sinos têm que tocar A Noiva de Enderbyt...?

– É uma velha melodia que os sinos costumavam tocar como aviso contra a cheia. Penso que a tal Noiva de Enderby morreu afogada numa enchente – respondeu ele. Não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer na realidade, mas nunca se teria rebaixado ao ponto de o confessar perante o seu público feminino. Elas escutavam-no e acreditavam. Ele próprio acreditava nas coisas que dizia.

– E as pessoas sabiam o significado dessa melodia? – quis saber a mãe.

– Sim... tal e qual os escoceses quando escutam As Flores da Floresta... e quando costumavam tocar os sinos em sinal de alarme em sentido contrário.

– Ah! – exclamou Annie. – Quer dizer que os sons de um sino são sempre os mesmos quando são tocados no seu sentido correcto, ou ao contrário.

– Mas – disse ele – se começares num tom grave e subires até ao agudo... lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá! – disse ele, percorrendo a escala completa, e todos o acharam muito inteligente. Ele também. Depois, aguardando um minuto, continuou a ler o poema.

– Hum! – disse Mrs. Morel, apreciativamente, quando ele terminou. – Só espero que tudo o que se tem escrito não seja assim tão triste.

– Num consig’intender porqu’é qu’houve tantos afogamentos – disse Morel. Houve uma pausa. Annie preparou-se para levantar a mesa.

– Acho Elizabeth um belo nome – disse Miriam, em voz baixa. – «A minha nora Elizabeth...»

– Concordo – disse Paul.

– Também acho – disse a mãe. – Mas não gosto de Lizzie e abomino Liza.

Nem Paul nem Miriam achavam que Lizzie ou Liza tivessem algo a ver com o assunto.

– Ah, mas «Elizabeth»! – murmurou Miriam.

– E ainda por cima, a Rainha Elizabeth adorava que a tratassem por «Grande Eliza» – disse Paul.

– E amanhã há mais! – disse Morel, não se contendo.

Mrs. Morel e Paul deram uma gargalhada.

– Aposto que nem sapatos tinha – disse Morel, continuando com a brincadeira.

– Não seja tão insolente com uma rainha – disse Annie.

– Rainhas! – exclamou Morel. – Num pensas noutra coisa senão nas rainhas? Num fazes mai nada senão viver à grande e à francesa!

Miriam levantou-se para ajudar a lavar a loiça.

– Deixa-me ser eu a lavar a loiça – disse ela.

– Não é necessário – exclamou Annie. – Vai-te sentar. É pouca loiça.

E Miriam, que não se sentia à vontade para insistir, sentou-se a ver o livro com Paul.

Paul era o chefe do grupo... para isso, o pai não prestava. E muito ele sofreu para que o baú de latão fosse descarregado em Firsby e não em Mablethorpe. E não foi também capaz de encontrar uma carruagem com lugares. Só a genica de Mrs. Morel o conseguiu.

– Aqui! – gritou ela para um homem. – Aqui!

Paul e Annie ficaram para trás envergonhadíssimos, mas perdidos de riso.

– Quanto é a viagem até Brook Cottage? – perguntou Mrs. Morel.

– Dois xelins.

– É assim tão longe?

– Ainda é um bom bocado.

– Não acredito – disse ela.

Contudo subiu para a carruagem. Iam os oito apertados numa velha carruagem da linha costeira.

– Bem vêem – disse Mrs. Morel –, são apenas três dinheiros por pessoa, mas se fosse um eléctrico...

A viagem prosseguiu. Sempre que passavam por uma casa típica, Mrs. Morel exclamava:

– É esta?... Não, agora é que é!

Estava toda a gente morta de ansiedade. A viagem prosseguiu. Houve um suspiro em uníssono.

– Estou agradecida por não ser aquela coisa horrorosa – disse Mrs. Morel. – Estava assustada.

Passou-se ainda mais algum tempo.

– Aquela mulher repelente disse que a casa ficava a dez minutos do mar...! – exclamou Mrs. Morel.

– Pra ela uma hora deve ser um minuto – reclamou Morel.

Todos o mandaram calar.

– Será que nunca mais chegamos? – exclamou Mrs. Morel, muito alto.

– Não grite assim, mãe – disse Annie. – O que é que ele irá pensar?

Mrs. Morel olhou de um modo esquisito para o condutor, e disse:

– Não sei! Mas, pelo aspecto, penso que não pensará nada de especial.

Finalmente, desceram perto de uma casa isolada, sobre o canal que passava na estrada principal. Houve grande alvoroço quando descobriram que tinham de atravessar uma pequena ponte para chegarem ao jardim da casa. Adoraram a casa, que ficava isolada, com o mar de um lado e, do outro, uma imensa extensão de terra plana que se estendia até ao céu, e onde se distinguia o branco da cevada, o amarelo da aveia, o vermelho do trigo e o verde dos nabos.

Paul registava as despesas e ele e a mãe governavam a casa. As despesas globais, incluindo o alojamento e a alimentação ascendiam a dezasseis xelins por pessoa e por semana. De manhã, Paul e Leonard iam tomar banho ao mar. Morel saía bastante cedo para ir dar um passeio.

– Paul – chamou a mãe do quarto. – Come uma fatia de pão com manteiga.

– Está bem – respondeu ele.

Quando regressou, a mãe estava sentada à cabeceira da mesa. A dona da casa era jovem. O marido era cego e ela cuidava da roupa. Assim, Mrs. Morel lavava a loiça na cozinha e fazia as camas.

– Mas a mãe prometeu que ia fazer umas férias a sério – disse Paul – e agora está a trabalhar.

– Trabalho? – exclamou ela. – De que é que estás a falar?

Paul adorava ir passear com ela pelos campos, até à aldeia ou até ao mar. Ela tinha medo de atravessar pontes de madeira e ele acusava-a de se portar como um bebé. Era apegado à mãe como se fosse o seu marido.

Miriam raramente andava com ele – excepto, talvez, quando iam todos ouvir os Coons. Os Coons eram insuportavelmente estúpidos para Miriam e, por isso, eram-no também para Paul, que pregava sermões presunçosos a Annie sobre a perda de tempo que era irem ouvi-los. Todavia, também ele sabia todas as suas canções de cor e as cantava desbragadamente pelas ruas. E, quando reparava que os estava a ouvir, a estupidez da situação agradava-lhe imenso. Contudo dizia para Annie:

– Que porcaria!... Não há um pingo de inteligência naquilo que cantam. Ninguém que tenha mais miolos que um gafanhoto consegue aguentá-los. – E dizia a Miriam, com algum desdém, onde estavam Annie e os outros:

– Suponho que foram aos Coons.

Era ridículo ouvir Miriam trautear as canções dos Coons. Tinha um queixo talhado a direito que descia na perpendicular desde o lábio inferior até à curvatura do maxilar. Quando ela cantava, Paul achava-a parecida com um anjo triste de Botticelli, mesmo quando entoava:


«Vem pela Estrada do Amor

Vem comigo passear, falar comigo...»


Miriam só tinha Paul todo para ela quando ele desenhava, ou à noite, quando todos os outros estavam a ouvir os Coons. Ele falava-lhe então interminavelmente do seu gosto pelos planos horizontais: como é que os grandes níveis do céu e da terra significavam para ele a eternidade da vontade, tal como os arcos normandos, arredondados e em série, significavam um salto em frente da alma humana voluntariosa, não se sabe para onde; pelo contrário, as linhas perpendiculares e o arco gótico apontavam para o céu e afloravam o êxtase, perdendo-se no divino. Ele era normando, Miriam era gótica. Submissa, ela concordava com tudo o que ele dizia.

Certa tarde, ele e ela foram passear pelo extenso areal que conduzia a Theddlethorpe. As alongadas vagas quebravam-se e elevavam-se em silvos agudos de espuma ao longo da costa. A tarde estava quente e eles completamente sozinhos na imensidão da areia, a sós com o barulho do mar. Paul adorava ouvir o mar a ressoar na areia. Adorava sentir-se entre o som do mar e o silêncio do areal. Miriam estava com ele. Tudo se tornava mais intenso. Já tinha anoitecido quando regressaram. O regresso a casa fazia-se através de uma passagem nas dunas, e depois através de uma estrada pejada de ervas, rasgada entre dois diques. A aldeia estava cinzenta e calma. Por detrás das dunas soava o murmúrio do mar. Paul e Miriam caminhavam em silêncio. De repente, ele estacou. O seu sangue parecia ter-se incendiado e ele mal podia respirar. Uma enorme lua alaranjada observava-os do alto das dunas. Ele continuava parado, olhando a lua.

– Oh! – exclamou Miriam, quando a viu também.

Ele estava ali, petrificado, olhando a lua dilatada e rubra, sozinha na escuridão imensa. O seu coração batia forte e tinha os músculos dos braços contraídos.

– O que foi? – murmurou ela, esperando por ele.

Ele voltou-se e fitou-a. Ela estava ao seu lado, para sempre na escuridão. A sua face, encoberta pela sombra do chapéu, olhava-o sem que ele a visse. E ela meditava. Estava um pouco receosa... profundamente emocionada e imbuída de religiosidade. Este era o seu melhor estado de alma. Ele sentia-se impotente face a esta situação. O sangue parecia concentrar-se como uma fogueira no seu peito, mas ele não lhe conseguia transmitir o sentimento. Pareciam disparar relâmpagos do seu sangue, mas, de algum modo, ela ignorava-os. Ela esperava vê-lo atingir um estado de graça. Ainda à espera, mas meio consciente da paixão que o possuía, Miriam fitou-o, preocupada.

– O que se passa? – murmurou novamente.

– É a Lua – respondeu ele, franzindo a testa.

– Sim – concordou ela. – É maravilhosa, não é? – Ela estava intrigada. A crise tinha passado.

Ele próprio não sabia o que lhe tinha acontecido. Era ainda tão jovem e a sua intimidade tão abstracta que não se apercebeu de que desejava esmagá-la contra o peito para aliviar a dor que o trespassava. Tinha medo dela. Talvez o facto de a desejar como um homem deseja uma mulher tivesse permanecido oculto dentro dele como uma humilhação. Quando ela fugia desses pensamentos, torturando-se em extrema agitação, ele recolhia-se até ao mais recôndito da alma. E, neste momento, esta «pureza» inibia o seu primeiro beijo de amor. Era como se ela mal pudesse suportar o choque do amor físico, ou apenas um beijo apaixonado, deixando-o demasiado reprimido e sensibilizado para lho dar.

Enquanto caminhavam ao longo da negra lagoa, Paul contemplava a Lua e mantinha-se em silêncio. Miriam caminhava a seu lado devagar. Ele sentia que a odiava, pois ela parecia, de certa forma, levá-lo a autodesprezar-se. Olhando em frente, descortinou uma luz na escuridão; era a janela iluminada da sua casa.

Adorava pensar na mãe e no resto das pessoas, todos alegres.

– Bem, já todos chegaram há bastante tempo – disse a mãe quando eles entraram.

– E o que é que isso importa? – exclamou ele, irritado. Posso ir passear quando me apetecer, não posso?

– Pensei que quisesses jantar com o resto do grupo – disse Mrs. Morel.

– Tenho de agradar a mim próprio – retorquiu ele. – Não é tarde e faço o que me apetece.

– Muito bem – disse a sua mãe, sarcasticamente. – Então faz o que te apetecer!

E nessa noite não falou mais com ele. Paul fingiu não notar nem estar preocupado com o assunto, e sentou-se a ler. Miriam lia também, tentando alienar-se. Mrs. Morel detestava-a por ela pôr o filho naquele estado. Via o filho irritadiço, presumido e melancólico, e culpava Miriam.

Annie e os amigos também se voltavam contra Miriam. O único amigo de Miriam era Paul. Mas ela não se importava, pois desprezava a trivialidade de todas essas pessoas.

E Paul detestava-a, pois ela perturbava, por assim dizer, o seu bem-estar e a sua naturalidade, torturando-o com sentimentos de humilhação.

1 «Os últimos representantes de uma raça extinta.» (N. da T.)


VIII

ZANGAS DE AMOR

ARTHUR terminou o estágio e arranjou emprego na central eléctrica da mina de Minton. Ganhava muito pouco, mas tinha possibilidades de progredir. Era, porém, rebelde e impaciente. Não bebia nem tinha o vício do jogo, mas envolvia-se constantemente em rixas devido às suas reacções intempestivas. Ia caçar coelhos para a floresta, qual caçador furtivo, e passava a noite em Nottingham em vez de voltar para casa, ou então ia nadar para o canal de Bestwood e falhava os cálculos do mergulho, ficando com o peito ferido, das rochas naturais e das latas que andavam a boiar à tona.

Tinha faltado ao emprego meses a fio, e uma noite não voltou para casa.

– Sabe por onde anda o Arthur? – perguntou Paul ao pequeno-almoço.

– Não – respondeu a mãe.

– É mesmo maluco – disse Paul. – Eu já nem ligaria, se ele ao menos fizesse mesmo alguma coisa. Mas não... não consegue resistir a um jogo de cartas, ou então vai levar alguma rapariga a casa depois da patinagem, com todo o decoro... e acaba por não voltar para casa. É maluco.

– Não vejo porque seria melhor se ele fizesse mesmo alguma coisa que nos envergonhasse – disse Mrs. Morel.

– Bem... eu, pelo meu lado, passaria a respeitá-lo mais – disse Paul.

– Duvido muito – respondeu a mãe secamente.

Continuaram a tomar o pequeno-almoço.

– A mãe gosta desvairadamente dele, não gosta? – perguntou Paul.

– Porque fazes essa pergunta?

– Dizem que as mães gostam sempre mais do filho mais novo.

– Talvez... mas eu não. Não... ele irrita-me.

– E gostava que ele se portasse melhor?

– Gostava que ele mostrasse algum bom senso masculino.

Paul estava ferido e irritado. Também ele irritava a mãe frequentemente. E ela ficava triste, pois via os melhores anos a fugirem-lhe.

Estavam a acabar o pequeno-almoço, quando o carteiro lhes entregou uma carta vinda de Derby. Mrs. Morel esforçou-se para ler o endereço.

– Dê cá isso, sua pitosga! – exclamou o filho, tirando-lhe a carta da mão. Ela assustou-se e quase lhe dava uma bofetada.

– É do seu filho Arthur – informou ele.

– Mas o que vem a ser isto? – exclamou Mrs. Morel.

– «Querida mãe» – leu Paul. – «Não sei o que me deu. Quero que me venha buscar. Ontem, em vez de ir trabalhar, vim alistar-me no exército com o Jack Brendon. Ele disse que estava farto de passar a vida sentado num escritório, e eu, idiota, como já sabe que sou, resolvi vir com ele.

«Já recebi o dinheiro referente ao recrutamento, mas se me vier buscar, talvez eles me deixem ir consigo. Foi uma loucura ter feito o que fiz. Não quero ficar no exército. Querida mãe, sei que não passo de um estorvo para si, mas, se me tirar desta situação, prometo que serei mais consciente e ponderado...»

Mrs. Morel sentou-se na cadeira de baloiço.

– Vejam só! – exclamou. – Ele que assente por uns tempos!

– Também acho – disse Paul. – Ele que assente!

Fez-se silêncio. A mãe estava sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, o rosto imóvel, pensativa.

– Devo estar doente – exclamou de repente. – Doente!

– Então! – disse Paul, franzindo a testa – Não quero que se preocupe com isto, está a ouvir?

– Então queres que encare isto como uma bênção? – disse ela, de repente, virando-se para o filho.

– Agora não vai tornar isto numa tragédia, pois não? – retorquiu ele.

– Ele é maluco!... Maluquinho de todo! – gritou Mrs. Morel.

– Vai ficar todo bonito com a farda – disse Paul, para espicaçar a mãe.

Ela virou-se a ele, furiosa.

– Ah, vai? – gritou ela. – Mas não para mim!

– Devia ir para um regimento de cavalaria... Ele divertia-se à grande e nós passávamos a ser chiques.

– Chiques!... Chiques!... Muito chique, não haja dúvida!... Um soldado raso!

– Ora – disse Paul. – E o que sou eu, senão um reles escriturário?

– O que é muito mais, meu filho! – gritou a mãe, picada.

– Essa agora!

– De qualquer forma, és um homem e não uma coisa enfiada num casaco vermelho.

– Não me importava de andar enfiado num casaco vermelho... ou azul-escuro, que me ficaria melhor... se eles não me dessem muitas ordens.

Mas a mãe já não o ouvia.

– Agora que ele estava a progredir, ou poderia vir a progredir no emprego... um aborrecimento passageiro e aí vai ele... dar cabo da vida toda. Que vantagens é que tu pensas que isto lhe pode trazer?

– Vai pô-lo todo afinado! – disse Paul.

– Todo afinado!... E o que tem ele para afinar? Um soldado!... Um soldado raso!!... Nada mais do que um corpo que se mexe quando lhe dão ordens! Grande coisa!

– Não percebo porque é que isso a aborrece tanto – disse Paul.

– Não, talvez não percebas. Mas percebo eu. – E recostou-se na cadeira, de queixo apoiado numa das mãos e segurando o cotovelo com a outra, a transbordar de raiva e desilusão.

– Está a pensar ir a Derby? – perguntou Paul.

– Estou, pois.

– Não faça isso.

– Quero ver com os meus próprios olhos.

– Mas por que diabo é que não o deixa assentar? É isso mesmo que ele quer.

– Claro – exclamou a mãe. – Tu sabes muito bem o que ele quer...

Preparou-se e apanhou o primeiro comboio para Derby, onde se encontrou com o filho e com o sargento. Todavia, os seus esforços foram infrutíferos.

Morel estava a almoçar, quando ela disse de repente:

– Tenho de ir hoje a Derby.

O mineiro levantou os olhos, muito brancos numa face toda enfarruscada.

– Ah, vais, cachopa? E o que te leva lá?

– O menino Arthur!

– Qu’aprontou ele desta vez?

– Alistou-se no exército, só isso.

Morel pousou a faca e recostou-se na cadeira.

– Não – disse ele. – Num pode ser!

– E amanhã vai para Aldershot.

– Bom – exclamou o mineiro –, iss’é qu’é já uma grand’alhada.

Morel reflectiu por um momento, disse «Hum!» e continuou a jantar. Subitamente, a face contraiu-se-lhe de raiva.

– Espero qu’ele nunca mais volte a pôr as patas nesta casa – disse ele.

– Credo! – exclamou Mrs. Morel. – Isso é lá coisa que se diga!

– É o qu’eu penso – repetiu Morel. – O doidivanas pisga-se pa ser soldado... Atão é porque já tá na hora de fazer pela vida... Comigo na conta mais.

– Falar é fácil... – disse Mrs. Morel.

Nessa noite, Morel quase sentiu vergonha de ir para a taberna.

– Então, sempre lá foi? – perguntou Paul à mãe quando chegou a casa.

– Fui.

– E viu-o?

– Vi.

– E o que disse ele?

– Ficou lavado em lágrimas quando me vim embora.

– Hum!

– E eu fiz o mesmo, portanto não precisas de fazer «Hum!».

Mrs. Morel preocupava-se com o filho, pois sabia que ele não ia gostar de estar no exército. Como de facto não gostou. A disciplina era uma coisa que ele não conseguia tolerar.

– Mas o doutor disse que ele era bem proporcionado... quase na proporção exacta, e as suas medidas eram perfeitas – disse Mrs. Morel a Paul, cheia de orgulho. – Como tu sabes, ele é bem-parecido.

– Ele é muito bem-parecido. Mas não arranja raparigas como o William, pois não?

– Não... Tem uma personalidade diferente. Sai muito ao pai: é um irresponsável.

Para consolar a mãe, Paul passou nessa altura a ir muito menos a Willey Farm. No Outono, quando se realizou no castelo a habitual exposição dos trabalhos dos alunos da escola de belas-artes, ele apresentou dois trabalhos: uma paisagem a aguarela e uma natureza morta a óleo, que obtiveram dois primeiros prémios, o que o deixou deveras emocionado.

– Mãe, que lhe parece, acha que ganhei algum prémio com as minhas pinturas? – perguntou uma noite, ao chegar a casa. Pelos seus olhos, a mãe viu que ele estava feliz, e a sua face resplandeceu.

– Como queres que eu saiba, meu filho?!

– Um primeiro prémio por aquelas jarras de vidro...

– Ena!

– E outro primeiro prémio por aquele esboço que fiz em Willey Farm.

– Um primeiro prémio para cada coisa?

– Sim, senhora.

– Hum!

Mrs. Morel parecia envolvida numa aura brilhante, cor-de-rosa, mas não disse nada.

– É bem bom, não é, mãe? – disse ele.

– É, sim.

– Oh, mãe, porque não me põe nos píncaros?

Ela riu-se.

– É que depois tinha de ter o trabalho de te puxar cá para baixo outra vez.

No entanto, toda ela vibrava de alegria. William tinha-lhe trazido sempre os seus troféus desportivos. Ela ainda os guardava, e não perdoava a morte dele. Arthur era bonito e era pelo menos um belo exemplar masculino, terno e generoso, e provavelmente o futuro acabaria por lhe sorrir. Mas Paul iria destacar-se. Ela tinha uma grande fé no filho, e mais ainda por ele não ter consciência das suas capacidades. Ele tinha tanto para dar, e a vida parecia ter muito para lhe dar também. Ela iria sentir-se realizada através do filho. A sua luta não tinha sido em vão.

Durante o período da exposição, Mrs. Morel foi várias vezes ao castelo, sem que Paul a visse. Vagueava pelo longo salão, apreciando as restantes pinturas. Sim, eram muito boas. Mas faltava-lhes qualquer coisa para que a sua satisfação fosse completa. Observava-as longamente, tentando encontrar nelas alguma falha. De repente, algo lhe fazia disparar o coração. Aquela era a pintura de Paul. Conhecia-a como se a tivesse gravada no coração.

«Nome: Paul Morel. Primeiro Prémio.»

Parecia tão estranha, ali exposta ao público, nas paredes da galeria do castelo, onde já tinha visitado tantas exposições de pintura durante toda a sua vida. E, depois, olhou em volta, tentando descobrir se alguém a tinha tornado a ver em frente ao mesmo quadro.

Não cabia em si de orgulho, e quando se cruzava com senhoras bem vestidas, pensava para consigo:

«Pois sim, vocês estão muito bem vestidas... mas duvido que os vossos filhos consigam arrebatar dois primeiros prémios na exposição no castelo.»

E seguia o seu caminho, sentindo-se mais orgulhosa do que qualquer outra mãe de Nottingham. E Paul sentia que tinha feito algo por ela, mesmo não passando de uma insignificância. Todo o seu trabalho pertencia à sua mãe.

Um dia, encontrou Miriam quando se dirigia para o castelo. Tinha-a visto no domingo e não esperava encontrá-la na cidade. Vinha com ela uma mulher loura, espampanante, de expressão carregada e porte provocador. Era estranho como Miriam, tão meditativa e reverente, parecia insignificante ao lado desta mulher de ombros deslumbrantes. Miriam fitou Paul demoradamente. O olhar dele estava pregado na desconhecida, que o ignorava. Miriam via claramente o seu instinto masculino a erguer-se altaneiro.

– Olá – disse ele. – Não me disseste que vinhas à cidade.

– Pois não – retorquiu Miriam, em ar de desculpa. Fui à Feira do Gado com o meu pai.

Paul olhou para a companheira de Miriam.

– Já te tinha falado de Mrs. Dawes – disse Miriam, com a voz estrangulada. Estava nervosa. – Clara, já conheces o Paul?

– Penso que já o vi antes – respondeu Mrs. Dawes, indiferente, enquanto o cumprimentava. Tinha uns olhos cinzento-esverdeados, displicentes, a pele era mel claro, e a boca carnuda, com o lábio superior levemente levantado, não se percebendo se de desprezo por todos os homens ou desejo de ser beijada, sendo a primeira hipótese a mais provável. Tinha a cabeça inclinada para trás, como se ela se afastasse por desdém, talvez também dos homens. Usava um chapéu enorme e deselegante, de pele escura de castor, e um vestido simples levemente afectado, que lhe conferia as linhas de um saco. Obviamente era pobre e tinha falta de gosto. Miriam andava sempre bonita.

– Onde é que me viste? – perguntou Paul à outra mulher.

Ela olhou-o como se não tivesse qualquer dúvida em responder.

E depois:

– Vi-te a passear com a Louie Travers – respondeu ela.

Louie era uma das raparigas da secção Espiral da fábrica de Mr. Jordan.

– E como é que tu a conheces? – perguntou ele.

Ela não respondeu. Paul virou-se então para Miriam.

– Para onde vais agora? – perguntou.

– Para o castelo.

– A que horas é o comboio de regresso?

– Vou regressar com o meu pai. Gostava que também viesses connosco. A que horas estás livre?

– Já sabes que nunca antes das oito, que diabo!

E as duas mulheres seguiram o seu caminho.

Paul lembrou-se de que Clara Dawes era filha de um velho amigo de Mrs. Leivers. Miriam tinha-a procurado, pois ela tinha sido em tempos supervisora da secção Espiral da Jordan, e porque o marido, um tal Baxter Dawes que era ferreiro, trabalhava para a fábrica, fazendo entre outras coisas os ferros para as próteses ortopédicas. Miriam pensou que através dela pudesse contactar directamente com a fábrica, podendo assim assegurar o emprego de Paul. Mas Mrs. Dawes estava separada do marido, e agora dedicava-se à defesa dos direitos das mulheres. Era supostamente inteligente, e isso interessava a Paul.

Paul conhecia Baxter Dawes e detestava-o. O ferreiro tinha cerca de trinta e um ou trinta e dois anos. Paul encontrava-o de vez em quando: era um homem alto e bem constituído, bem-parecido, para quem dava gosto olhar. Havia uma curiosa semelhança entre ele e a mulher. Ele tinha a mesma pele clara, de tom de dourado. O seu cabelo era castanho-claro e o bigode dourado. E exalava um desprezo semelhante, pelo porte e pela conduta. Nisto surgiu a diferença. Os seus olhos castanhos, muito escuros e astuciosos, eram imorais. Eram levemente salientes e as pálpebras sobrepunham-se de uma forma tal que lhe suscitava o ódio. A boca era também sensual. A postura evidenciava um desprezo cobarde, como se estivesse preparado para derrubar o primeiro que o censurasse... talvez porque ele próprio se censurava.

O homem odiou Paul desde o primeiro dia que o viu. Ao captar o olhar deliberado e impessoal de um artista no rosto do rapaz, enfureceu-se.

– Pa’onde é que tás’olhar? – disse ele desdenhosamente, amedrontando-o.

O rapaz desviou o olhar. O ferreiro costumava encostar-se ao balcão a conversar com Mr. Pappleworth, e a sua conversa era sempre porca e depravada. Quando sentiu novamente os olhos frios e críticos do jovem pousados nele, o ferreiro virou-se, como se tivesse sido mordido por algum bicho.

– Pa’onde é que tás’olhar, ó parvalhão? – rosnou ele.

O rapaz encolheu os ombros.

– Olha que tu...! – berrou Dawes.

– Deixa-o em paz – disse Mr. Pappleworth, naquela sua voz insinuante que parecia dizer «ele é um pobre diabo, mas não faz por mal».

Desde essa altura, Paul passou a olhar para o homem, sempre que o encontrava, com o mesmo olhar crítico e curioso, desviando o olhar antes de encontrar os olhos do ferreiro, o que deixava Dawes fora de si. E, assim, odiavam-se em silêncio.

Clara Dawes não tinha filhos. Quando deixou o marido, desfizeram a casa e ela foi viver com a mãe, enquanto Dawes passou a viver em casa da irmã. Na mesma casa vivia também uma cunhada, e Paul veio a descobrir que a tal rapariga, a Louie Travers, era agora a amante de Dawes. Era uma atrevida bonitona e insolente, que escarnecia do rapaz, mas que se empolgava toda se ele a acompanhava à estação.

A vez seguinte em que Paul foi visitar Miriam era um sábado à tarde. Ela tinha a lareira acesa na sala de visitas e estava à espera dele. Os outros tinham saído, com excepção dos pais e dos irmãos mais novos, pelo que tinham a sala de visitas só para eles. A sala era comprida, de tectos baixos e aconchegada. Na parede havia três pequenos quadros de Paul e o seu retrato estava pousado ao canto da lareira. Em cima da mesa e em cima do piano de pau-rosa, estavam jarras com folhas coloridas. Ele sentou-se na poltrona e ela ajoelhou-se no tapete aos seus pés. A luz da fogueira reflectia-se na sua cara bonita e pensativa.

– O que achaste de Mrs. Dawes? – perguntou Miriam, num tom calmo.

– Não me pareceu muito amistosa – respondeu ele.

– Lá isso não, mas não a achas elegante?

– Sim... no que diz respeito à sua altura. Mas não tem um pingo de bom gosto. Gosto de algumas coisas nela. Ela é sempre assim antipática?

– Penso que não. Penso que não anda satisfeita.

– Com o quê?

– Bem, como é que te sentirias a viver com um homem daqueles?

– Então, porque é que ela casou com ele, sabendo que o ia detestar tão rapidamente?

– Sim, porque é que ela casou com ele? – repetiu Miriam, com aspereza.

– E eu que pensei que ela fosse suficientemente forte para medir forças com ele – disse Paul.

Miriam baixou a cabeça.

– Ah, sim? – perguntou, satiricamente. E o que é que te leva a pensar isso?

– Basta olhar para a boca dela... nascida para a paixão... e a maneira como estica a garganta.

E atirou a cabeça para trás imitando o jeito provocador de Clara.

Miriam baixou ainda mais a cabeça.

– Sim – disse ela.

Fez-se silêncio durante alguns momentos, e Paul pensava em Clara.

– E o que é que te agradou nela? – continuou Miriam.

– Não sei... a pele e a textura da... da... não sei... emana dela uma certa violência... Aprecio-a apenas como artista.

– Pois.

Paul não entendia por que razão Miriam estava ali sentada no chão, meditando de uma forma tão estranha, e isso irritava-o.

– Não gostas mesmo dela, pois não? – perguntou ele à rapariga.

Ela olhou-o com os seus enormes olhos escuros, encantadores.

– Gosto – respondeu.

– Não gostas, não... não podes gostar... muito.

– E pode saber-se porquê? – perguntou ela calmamente.

– Oh, não sei... Talvez gostes dela porque ela odeia os homens.

Esta era provavelmente uma das razões pelas quais ele gostava de Mrs. Dawes, mas isso não lhe tinha ocorrido. Calaram-se. Ele franziu a testa, algo que já se estava a tornar habitual, particularmente quando estava com Miriam. Ela ansiava fazer-lhe desaparecer as rugas da testa, mas tinha medo. Parecia haver um outro homem dentro de Paul Morel, mas que não era o seu.

Algumas bagas vermelhas sobressaíam entre as folhas do vaso. Ele esticou-se e arrancou um raminho.

– Porque será que, se colocares bagas vermelhas no cabelo – disse ele – pareces uma bruxa ou uma sacerdotisa, mas nunca uma libertina.

Ela rasgou um sorriso doloroso, despojado.

– Não sei – disse.

As suas mãos fortes e quentes brincavam alegremente com as bagas.

– Porque não te ris? – disse ele. – Nunca sorris abertamente. Apenas te ris quando algo é estranho ou incongruente, e até isso parece magoar-te.

Miriam baixou a cabeça como se ele a estivesse a admoestar.

– Gostaria muito que sorrisses apenas um minuto para mim... apenas por um minuto. Sinto que isso libertaria alguma coisa dentro de ti.

– Mas... – e olhou-o com uns olhos assustados e lutadores. – ... Mas eu rio-me... sim, eu rio-me.

– Mentira, nunca te ris. Só se for por algo de muito intenso. Sempre que te ris, apetece-me chorar; parece que o teu riso transmite sofrimento. Oh, só de pensar nisso, fazes com que eu enrugue a minha alma.

– Não é minha intenção fazê-lo – disse.

– Eu sou sempre tão espiritual contigo – exclamou ele.

Ela manteve-se em silêncio, a pensar: «Então porque não és de outra forma?» E ele olhou para o seu corpo dobrado, em meditação, e pareceu dividi-lo em dois.

– Estamos no Outono – disse ele – e todas as pessoas libertam o seu espírito.

Caiu novamente o silêncio. Este estranho desentendimento entre eles despedaçava a alma de Miriam. Ele parecia tão bonito, com os seus olhos escuros e um olhar tão profundo como a nascente mais funda.

– Tornas-me tão espiritual – lamentou-se ele. – E eu não quero ser espiritual.

Ela retirou o dedo da boca com um pequeno estalido, e olhou-o em tom provocador. Mas a sua alma continuava nua nos seus olhos grandes e castanhos e o mesmo desejo ardente dominava-a. Se isso fosse possível, ele tê-la-ia beijado na pureza da abstracção. Mas ele não a podia beijar assim... e ela não parecia dar-lhe qualquer outra alternativa. E, no entanto, desejava-o.

Paul sorriu.

– Bem – disse ele –, vamos lá estudar francês... vamos ler Verlaine.

– Sim – disse ela num tom profundo, quase de resignação. Levantou-se e foi buscar os livros. As suas mãos avermelhadas e nervosas metiam dó; como ele desejava confortá-la e beijá-la!! Mas não se atrevia... ou não podia. Algo o impedia. Os seus beijos eram para ela reprováveis. Continuaram a ler até às dez horas, e depois foram para a cozinha; Paul mostrava-se de novo alegre e natural para com os pais de Miriam. Os seus olhos eram escuros e brilhantes e envolvia-o uma aura de fascinação.

Quando foi buscar a bicicleta ao celeiro descobriu que o pneu dianteiro estava furado.

– Vai-me buscar uma tigela com uma pinguinha de água – pediu ele a Miriam. – Vou chegar tarde e já sei que vou ouvir um sermão.

Acendeu a lanterna à prova do vento, despiu o casaco, virou a bicicleta ao contrário e meteu mãos à obra rapidamente. Miriam trouxe-lhe a tigela com água e ficou junto dele, observando-o. Adorava ver as mãos dele em acção. Era elegante e forte, e até os seus movimentos mais rápidos eram feitos com desembaraço. Ocupado como estava, parecia tê-la esquecido. Mas ela amava-o de uma forma absorvente, desejava poder passar as mãos ao longo do seu corpo. Sempre desejara abraçá-lo, desde que ele não a quisesse.

– Já está – disse Paul, levantando-se de repente. – Mais rápido não podia ser!

– Lá isso é verdade! – concordou ela, sorrindo.

Paul endireitou-se. Estava de costas para Miriam. Ela colocou as mãos nas ancas dele, fazendo-as deslizar rapidamente ao longo das pernas.

– És tão elegante! – disse ela.

Ele sorriu. Detestava o tom da voz dela, mas o sangue incendiou-se-lhe ao sentir o contacto das mãos. Ela, pelo contrário, parecia nem dar por ele. Era como se ele fosse um objecto, como se não se apercebesse do homem que ali estava.

Paul acendeu a luz da bicicleta, experimentou-a, bateu com ela no chão do celeiro para verificar o som dos pneus, e apertou o casaco.

– Tudo em ordem! – disse ele.

Ela experimentou os travões, pois sabia que estavam avariados.

– Já os arranjaste? – perguntou ela.

– Não!

– E porque não?

– O travão traseiro funciona mais ou menos.

– Mas não é seguro.

– Posso travar com o pé.

– Era melhor que os tivesses arranjado – murmurou ela.

– Não te preocupes... Amanhã vem tomar chá a minha casa e traz o Edgar.

– A sério?

– A sério... Por volta das quatro... Vou ter convosco.

– Combinado!

Ela estava feliz. Atravessaram o pátio às escuras até ao portão. Olhando em frente, Paul viu as cabeças de Mr. e Mrs. Leivers atrás da vidraça sem cortinas da cozinha, iluminadas pelo fulgor da lareira. O ambiente parecia muito aconchegado. À sua frente, a estrada ladeada de pinheiros abria-se escura.

– Até amanhã – disse ele, montando na bicicleta.

– Vais ter cuidado, não vais? – recomendou ela, como quem pede.

– Vou.

A voz dele soou já da escuridão. Ela deixou-se ficar mais uns instantes a ver a lanterna afastar-se e entrar na noite. Depois, voltou lentamente para casa. Orion elevava-se por cima da floresta, seguida do seu cão cintilante, meio apagado. Fora essa luz, o mundo estava mergulhado na mais densa escuridão e no silêncio, quebrado apenas pelo resfolegar do gado nos estábulos. E ela rezou com devoção pela segurança dele nessa noite. Quando ele a deixava, ficava sempre num estado de extrema ansiedade, imaginando se ele teria chegado bem a casa.

Paul deixava a bicicleta embalar pelas encostas abaixo. As estradas eram escorregadias e ele não podia meter travões. Era um prazer quando a bicicleta se precipitava pelo declive mais íngreme da colina. «Cá vou eu!», dizia ele. Era arriscado por causa da curva completamente às cegas à chegada ao vale, e das carroças dos cervejeiros com os carroceiros bêbados, a dormir. A bicicleta parecia desintegrar-se debaixo dele e Paul adorava a sensação. O descuido é a vingança de um homem sobre a mulher. Sentindo que não é devidamente apreciado, arrisca a sua própria destruição, para que ela sinta a sua falta.

Ao passar veloz pelo lago, as estrelas reflectidas na água pareciam saltar da escuridão como gafanhotos prateados. Depois surgia a longa subida até casa.

– Olha, mãe! – disse ele, atirando as bagas e as folhas para cima da mesa.

– Hum! – fez ela, olhando para a mesa e desviando o olhar. Como sempre, estava sozinha, sentada a ler.

– Não são bonitas?

– São.

Ele sabia que a mãe estava aborrecida. Passados alguns minutos disse:

– O Edgar e a Miriam vêm cá tomar chá amanhã.

A mãe não respondeu.

– Não se importa?

Ela continuou sem responder.

– Então importa-se? – perguntou ele.

– Sabes bem se me importo ou não.

– Não vejo porque se há-de importar... eu como lá tantas vezes...

– Pois comes.

– Então porque lhes recusa um chá?

– A quem é que eu recuso um chá?

– Porque é que a mãe é sempre tão difícil?

– Pronto, não digas mais nada! Convidaste-a para o chá, e isso já é o suficiente. Ela não falta.

Paul ficou muito aborrecido com a mãe. Sabia que ela não gostava de Miriam. Atirou com as botas e foi deitar-se.

Paul foi abrir a porta aos amigos no dia seguinte. Estava feliz de os ver chegar. Vieram por volta das quatro horas. Tudo estava sereno e calmo para domingo à tarde. Mrs. Morel estava sentada, com o seu vestido preto e o avental branco, mas levantou-se para receber as visitas. Foi cordial com Edgar, mas fria e muito esquiva com Miriam. Todavia, Paul achava que a rapariga estava bem bonita no seu vestido castanho de caxemira.

Ajudou a mãe a preparar o chá. Miriam ter-se-ia oferecido de agrado para ajudar, mas tinha receio. Paul tinha muito orgulho da sua casa. Havia nela uma certa distinção, pensava ele. As cadeiras eram simples, de madeira, e o sofá já velho. Mas o tapete e as almofadas eram aconchegantes; os quadros eram gravuras de bom gosto; a simplicidade dominava e havia muitos livros. Nem ele nem Miriam se envergonhavam das casas que tinham, pois eram tudo aquilo que deviam ser, e ainda acolhedoras. Então na mesa tinha grande orgulho; o serviço de chá era bonito e a toalha fina; pouco importava que as colheres não fossem de prata e nem o cabo das facas de marfim; tudo estava bonito. Mrs. Morel tinha cuidado maravilhosamente de tudo enquanto os filhos cresceram. Assim, nada se encontrava fora do lugar.

Miriam falou um pouco de livros, pois era um assunto que dominava bem. Mas Mrs. Morel não se mostrou interessada, virando-se rapidamente para Edgar.

A princípio, quando Edgar e Miriam iam à igreja, sentavam-se no banco de Mrs. Morel. Morel nunca lá ia, pois preferia a taberna. Mrs. Morel, arvorando-se em chefe da família, sentava-se numa extremidade do banco e Paul na outra extremidade; a princípio, Miriam sentava-se ao lado dele. A capela lembrava a Paul a sua casa. Era um lugar bonito, com bancos escuros e pilares estreitos e elegantes, e com muitas, muitas flores. As mesmas pessoas sentavam-se sempre nos mesmos lugares desde que ele era menino. Era bastante agradável e reconfortante estar ali sentado durante uma hora e meia, ao lado de Miriam e perto da mãe, unindo os seus dois amores sob o fascínio daquele local de culto. Sentia-se a um tempo entusiasmado, feliz e religioso. Terminada a missa, acompanhava Miriam a casa, enquanto Mrs. Morel passava o resto da tarde com a sua velha amiga Mrs. Burns. Sentia-se verdadeiramente vivo durante os passeios que dava ao domingo pela tardinha com Edgar e Miriam. Sempre que passava de noite pelas minas, pelo depósito das lanternas, todo iluminado, pelas torres altas e negras e pelas filas de vagões parados em frente das ventoinhas que giravam lentamente na escuridão, tinha a sensação intensa e quase insuportável de que Miriam voltaria para si.

Mas Miriam não ocupou por muito tempo o banco da família Morel, pois o pai arranjou novamente um outro banco. Ficava mesmo por baixo da pequena galeria, em frente ao banco dos Morels. Quando Paul e a mãe chegavam à capela, o banco dos Leivers estava sempre vazio. Ele receava que não viessem: a capela ficava muito longe e eram muitos os domingos chuvosos. Mas a dado momento, quase sempre atrasada, Miriam chegava com o seu passo amplo, cabeça baixa e face oculta pelo chapéu de veludo verde-escuro. Visto sentar-se do lado oposto, a sua cara ficava sempre na sombra, o que até o fazia sentir-se bem, pois ao vê-la ali à sua frente era como se a alma se lhe agitasse dentro do corpo. Não era o mesmo calor, a mesma alegria e o mesmo orgulho que sentia ao ter a mãe a seu lado, como chefe: era algo mais maravilhoso ainda, menos humano, um sentimento intenso temperado pela dor, algo que ele sabia que não podia alcançar.

Foi nesta altura que começou a pôr em questão a doutrina ortodoxa. Ele tinha vinte e um anos e ela vinte. Miriam receava a chegada da Primavera: ele tornava-se agressivo e magoava-a muito. Tudo o que mais queria era destruir cruelmente as crenças dela. Edgar, crítico por natureza e sem sentimentos, gostava desta situação. Mas Miriam sofria amargamente, pois o homem que amava possuía uma inteligência cortante que dissecava a religião em que ela fora criada e se movimentava, e onde habitava o seu Eu. Mas ele não a poupava e mostrava-se muito cruel. Quando estavam sozinhos, tornava-se ainda mais violento, como se quisesse matar-lhe a alma, explorando as suas crenças até ela quase perder a consciência.

– Ela regozija-se... regozija-se quando afasta o meu filho de mim – gritava Mrs. Morel do fundo do coração, quando Paul saía de casa. – Ela não é como qualquer mulher comum, que permite que eu faça parte do meu filho. Ela quer absorvê-lo. Quer tirar-mo e absorvê-lo, até que nada reste dele, nem sequer para ele próprio. Assim, ele nunca será senhor de si... ela irá sugá-lo completamente. – E Mrs. Morel sentava-se, debatendo pressentimentos e meditando tristemente.

Quando regressava dos seus passeios com Miriam, Paul vinha trespassado de sofrimento. Caminhava com passo apressado, mordendo os lábios e cerrando os punhos. Quando chegava a uma cerca, parava por alguns minutos, imobilizado. À sua frente estendia-se a escuridão sem fim; as negras encostas salpicavam-se de florescências luminosas; e, nos recônditos da noite, brilhava o clarão da mina. Tudo era estranho e ameaçador. Porque estava ele tão dilacerado, quase em êxtase, incapaz de se mover? Porque estava a mãe sentada em casa a sofrer? E sabia que ela sofria bastante. Mas porquê? E porque detestava ele Miriam e era tão cruel para ela, quando pensava na mãe? Já que Miriam fazia a mãe sofrer, ele tinha de a detestar. E com facilidade a detestava. Porque o levava ela a duvidar de si próprio, deixando-o inseguro, indefinido, como se não pudesse evitar que a noite e o espaço caíssem sobre ele? Como ele a odiava! Mas logo um ímpeto de ternura e humilhação o envolvia.

De repente, precipitava-se para casa a correr. A mãe reconhecia nele as marcas da agonia, mas nada dizia. Ele, porém, tinha de obrigá-la a falar, pois via-a zangada por ele ter ido passear com Miriam para tão longe.

– Porque é que não gosta dela, mãe? – gritou ele um dia, desesperado.

– Não sei, meu filho – respondeu ela num tom comovente. – Já tentei gostar, tentei com todas as minhas forças... mas não consigo... não consigo...

E, entre ambas, ele sentia-se triste e sem esperanças. A Primavera era a pior das estações. Ele ficava instável, enérgico e cruel. Assim, decidiu afastar-se dela. Surgiam então as horas a que ele sabia que Miriam o esperava, e a mãe apercebia-se da sua impaciência. Paul não conseguia progredir no seu trabalho, não conseguia fazer nada. Era como se algo transportasse a sua alma até Willey Farm. De repente, punha o chapéu e saía sem dizer nada. E a mãe sabia que ele tinha partido. Assim que se punha a caminho respirava de alívio. Mas, mal chegava ao pé de Miriam, tornava-se novamente cruel.

Certo dia, em Março, estava Paul deitado nas margens do lago Nethermere, com Miriam sentada a seu lado. Estava um dia resplandecente, branco e azul. Nuvens grandes e brilhantes passavam altas, e as suas sombras moviam-se silenciosas sobre a água. Os espaços abertos no céu tinham um tom glacial de azul. Paul estava deitado de costas sobre a relva, olhando o céu. Não conseguia olhar para Miriam. Ela parecia desejá-lo e ele resistia. Resistia sempre. Ela queria dar-lhe a sua paixão, a sua ternura, mas não era capaz. Ele sentia que ela não o queria; que apenas queria a sua alma. Miriam retirava-lhe as forças e a energia através de um canal que os unia. Ela não queria o corpo dele, pois nesse caso seria apenas duas pessoas, homem e mulher, em comunhão. Queria absorvê-lo completamente. E ele sentia-se estimulado por um impulso quase de loucura, que o fascinava, com um fascínio de droga.

Ele falava sobre Miguel Angelo. Ao escutá-lo, ela sentia que tocava o protoplasma da vida, as próprias células palpitantes, e a sua satisfação era plena. Mas, no final, isso assustava-a. Ali estava ele deitado, na intensidade imaculada da procura, e a sua voz amedrontava-a num crescendo, levando-a quase a tocar as raias do inumano, como se num transe.

– Não digas mais nada – pediu Miriam, com ternura, pousando a mão na testa dele. Ele permanecia estático, incapaz de se mover. O seu corpo estava de algum modo abandonado.

– Porquê... estás cansada?

– Estou, e tu também vais ficar.

Ele deu uma pequena gargalhada, apercebendo-se da situação.

– Contudo, sabe-me bem – disse ele.

– Mas não é essa a minha intenção – disse ela, muito baixinho.

– Não quando já foste longe de mais e sentes que já não és capaz de te dominar. Mas o teu eu inconsciente clama por isso. E eu suponho que também quero o mesmo.

– Então como posso evitá-lo?

– Penso que não podes, pois tu fazes sempre o mesmo. Desligas-me algures e retiras-me de mim próprio. Sinto-me como um fantasma, sem corpo.

– Não! – implorou ela.

– Agora mesmo, neste momento, olho para as minhas mãos e pergunto-me o que estão elas ali a fazer. Aquela água, por exemplo, ondula através de mim. Eu sou a ondulação. Corre através de mim e eu através dela. Não há barreiras entre nós.

– Mas...! – E Miriam hesitou.

– O que resta de mim é apenas uma consciência disseminada. Sinto que o meu corpo está deitado aqui, vazio, como se eu estivesse dentro de outras coisas... das nuvens e da água...

Ela olhou para ele e reparou naquele olhar tão estranho, como se ele fosse uma coisa e não uma pessoa, o que a fascinava tanto, mas que tanto receava. E era precisamente esse receio que a impelia a ter muito mais. Mas, agora, queria que ele parasse.

– Sabes – prosseguiu – o meu eu físico está liberto. Mas, se assim for, então eu não estou vivo. Tenho a certeza de que me destruiria. O que tu queres é pores-me gordo e banal, e não uma sombra. Queres fechar bem a minha alma dentro da sua bainha. Mas ela um destes dias libertava-se, tal como a espada que se libertou de uma bainha lassa e caiu ao mar.

Miriam meditava tristemente. Nisto, levantou a cabeça e olhou-o com os olhos muito brilhantes.

– Então deixa-me ser a tua protecção – disse ela.

E estendeu as mãos para as dele.

– Se tu pudesses... – disse ele. – Mas tu és aquilo que o teu eu inconsciente te impõe, e não aquilo que queres ser. Nenhum de nós dois é completamente normal... porém, agora eu quero sê-lo, mas penso que tu não queres. Tu queres ser algo fora do comum.

– Não, não quero – exclamou ela. Mas havia medo na sua voz.

– De qualquer forma – continuou Paul, num tom apático –, isso agora não é possível. Não me podes ter dessa maneira. Neste momento eu e tu somos apenas almas desprovidas de sangue. E isso provocaria uma vibração diferente, que se entrechocaria com este estado actual numa verdadeira tortura... Se ao menos pudesses querer-me, e não apenas quereres aquilo que eu tenho para te papaguear.

– Eu! – exclamou Miriam num tom áspero. – Eu! Quando é que eu te posso ter?

– Então a culpa é minha – disse ele, e juntando as partes dispersas do seu eu, levantou-se e começou a falar de coisas triviais. Sentia-se irreal. De uma forma vaga, detestava-a por isso. Sabia que era ele o culpado e, no entanto, isso não o impedia de a odiar.

Certa noite, na mesma época, em que Paul tinha ido levar Miriam a casa, pararam perto do prado que se estendia até à floresta, incapazes de se separarem. Assim que as estrelas surgiram, as nuvens desapareceram e eles captaram fugazmente a sua Orion, que se dirigia para oeste. As jóias de Orion brilharam por um breve instante, com o seu cão correndo rasteiro, lutando com dificuldade para atravessar a espuma de uma nuvem.

Orion era para eles a constelação mais carregada de significado. Era nela que os seus olhos se haviam fixado nos momentos mais estranhos e intensos, até sentirem que viviam em cada uma das suas estrelas. Nessa noite, Paul mostrava-se taciturno e perverso. Orion parecia-lhe apenas uma constelação, nada mais. Lutava contra o seu brilho, o seu fascínio. Miriam observava atentamente a disposição do seu amado, mas ele nada disse que o comprometesse até ao momento da partida, quando, de testa franzida, ficou parado a olhar tristemente para o castelo de nuvens, por detrás do qual a grande constelação estaria ainda a transitar.

No dia seguinte havia uma pequena festa em casa dele, para a qual Miriam estava convidada.

– Não posso vir buscar-te – disse ele.

– Não faz mal... O tempo também não está dos melhores para andar na rua... – respondeu ela serenamente.

– Não é isso... eles é que não gostam que eu venha. Dizem que me preocupo mais contigo do que com eles. E tu compreendes, não é verdade?... Tu sabes que entre nós existe apenas amizade.

Miriam ficou perplexa e com pena dele. Como lhe devia ter custado dizer aquelas palavras. Deixou-o, para lhe poupar outra humilhação. Uma chuva fina batia-lhe no rosto enquanto caminhava. Estava profundamente magoada e desprezava-o por ele se deixar levar pelo mais leve sopro de autoridade. No fundo do seu coração, sentia inconscientemente que ele tentava afastar-se dela, mas como jamais teria a coragem de o admitir, sentia pena dele.

Por esta altura, Paul tornou-se num elemento imprescindível do armazém da Jordan. Mr. Pappleworth saiu para se estabelecer por conta própria e Paul passou a supervisor da Espiral. Se tudo corresse bem, o seu salário seria aumentado para trinta xelins no final do ano.

Miriam vinha quase todas as sextas-feiras à noite para a lição de francês. Paul já não ia tão amiúde a Willey Farm, e ela receava que a sua aprendizagem estivesse prestes a terminar; por outro lado, e apesar das discórdias, gostavam de estar um com o outro. Liam Balzac, escreviam composições e sentiam-se bastante cultos.

A noite de sexta-feira era a noite de pagamento para os mineiros. Morel «repartia o bolo», ou seja, dividia os lucros da empreitada, quer no New Inn, em Bretty, quer na sua própria casa, conforme os seus companheiros preferissem. Barker tinha deixado de beber, e agora os homens «dividiam o bolo» em casa de Morel.

Annie, que tinha estado a dar aulas longe dali, regressara de novo a casa. Era ainda uma rapariga endiabrada. Estava noiva e ia casar. Paul andava a estudar desenho.

Morel estava sempre bem-disposto às sextas-feiras à noite, a não ser que os ganhos dessa semana fossem escassos. Depois do jantar, entregava-se a longos preparativos para se lavar. A decência exigia que as mulheres se ausentassem durante as reuniões masculinas. As mulheres não deviam assistir à reunião dos sócios, que era considerada assunto estritamente masculino... e nem deviam ficar a saber qual o montante exacto dos ganhos semanais. Assim, enquanto o pai barafustava na cozinha, Annie saiu e foi por uma hora para casa da vizinha, e Mrs. Morel foi à cozinha ver se o pão já estava cozido.

– Fecha a porta! – berrou Morel, furioso.

Annie bateu com a porta e saiu.

– S’ela torna a abrir a porta enquant’eu tou a tomar banho, amando-lh’um murro que lhe parto os queixos – berrou ele, ameaçador, por entre a espuma do sabão. Paul e a mãe franziram as sobrancelhas ao ouvi-lo.

Logo depois, saiu da cozinha, tremendo de frio e pingando o chão todo de água ensaboada.

– Oh, cos diabos! – disse ele. – Onde está a minha toalha?

Estava pousada numa cadeira, frente à lareira, para aquecer, pois, se assim não fosse, ele teria feito um grande estardalhaço. Aninhou-se sobre os calcanhares frente ao lume vivo, para secar.

– Brrrr... – continuou, fingindo tremer de frio.

– Ó homem, não sejas criança! – disse Mrs. Morel. – Não está frio nenhum.

– Exprimenta despires-te e tomares banho naquela cozinha – disse o mineiro, enxugando o cabelo. – Mas que gelo de casa!

– Eu não faria com certeza tanto alarido – respondeu a mulher.

– Ah, poi não. Caías redonda no chão que nem uma pedra.

– Porque é que uma pedra há-de ser mais redonda do que outra coisa qualquer? – perguntou Paul curioso.

– Essa agora... sei lá... é o que se diz – argumentou o pai. – Nesta tua cozinha há muitas correntes de ar, e quando ele passa através das costelas parece vento a passar por uma cancela de cinco traves.

– Sempre teria alguma dificuldade em passar através das tuas costelas – disse Mrs. Morel.

Morel olhou desanimado para ambos os lados do seu corpo.

– Eu! – exclamou. – Eu cá num tenho pele de coelho. Os meus ossos vêem-se no meu corpo!

– Gostaria de saber onde – retorquiu a mulher.

– Por todo o lado! Mas também num sou nenhuma carga de ossos.

Mrs. Morel deu uma gargalhada. Ele tinha um corpo ainda belo, jovem e musculado, sem gorduras. A pele era macia e clara. Poderia bem ser o corpo de um homem com vinte e oito anos, se não fossem as várias cicatrizes azuladas, semelhantes a tatuagens, onde o pó do carvão se tinha alojado, e o seu peito peludo. Morel pôs as mãos nos quadris, desanimado. Acreditava piamente que, por não engordar, era magro como um rato esfomeado.

Paul olhou para as mãos do pai, calejadas, escuras, cobertas de cicatrizes e com as unhas partidas, a esfregarem a maciez do seu corpo, e ficou admirado, pois parecia-lhe estranho serem feitas da mesma carne.

– Suponho – disse, virando-se para o pai – que antigamente tinha uma bela figura.

– Eh, olha lá o que dizes! – exclamou o mineiro, olhando em volta, espantado e tímido, como uma criança.

– Tinha uma bela figura, sim senhor! – exclamou Mrs. Morel. – O pior foi ele andar sempre aos encontrões a tudo, como se quisesse meter-se no buraco mais pequeno que encontrava.

– Eu? – exclamou Morel. – Eu, uma bela figura! Nunca passei de um esqueleto.

– Credo, homem! – gritou a mulher. – Não sejas tão piegas!

– É ve’dade – disse ele. – Tu nunca me viste qu’eu não parecesse qu’emagrecia de dia pra dia.

Mrs. Morel sentou-se e deu uma gargalhada.

– Tens um corpo de ferro – disse ela. – No tocante ao corpo, nunca nenhum homem te levou a melhor. Devias ter visto o teu pai em novo... – exclamou, de repente, virando-se para Paul e empertigando-se, para imitar a postura outrora garbosa do marido. Morel observava-a, envergonhado. Viu novamente a paixão que ela sentia por ele, e que brilhou durante alguns momentos à volta dela. Ele era tímido, assustadiço e humilde. Agora, porém, sentia de novo a velha força de outros tempos. Mas imediatamente sentiu na carne os estragos praticados ao longo de todos estes anos e só queria desaparecer, fugir de tudo.

– Lava-me as costas – pediu ele à mulher.

Ela trouxe uma toalha ensopada e ensaboada e colocou-lha sobre os ombros. Ele deu um salto.

– Oh, desgraçada! – berrou ele. – Tá gelada como a morte!

– Devias ter nascido salamandra – disse ela a rir, lavando-lhe as costas. Só raramente o ajudava nestas tarefas tão pessoais. Geralmente, eram os filhos quem fazia este tipo de coisas.

– O outro mundo não vai ser suficientemente quente para ti – acrescentou ela.

– Poi não – disse ele. – Tu vais fazer com que sopre uma aragem pra m’arrefecer.

Mas ela já tinha terminado. Enxugou-o rapidamente e subiu ao primeiro-andar, regressando em seguida com um par de calças limpas. Assim que se secou, Morel vestiu a camisola. Depois, rosado e luzidio, com o cabelo em pé e a camisola de flanela vestida por cima das calças de mineiro, aqueceu as ceroulas que ia vestir a seguir. Virou-as, pô-las do avesso e ressequiu-as.

– Oh, homem, veste-te! – exclamou Mrs. Morel.

– Queria ver se gostavas de vestir uma roupa tão fria como a água da banheira – disse ele.

Por fim, despiu as calças e vestiu-se condignamente de preto. Fez tudo isto em cima do tapete da lareira, e teria feito o mesmo se Annie e os amigos íntimos estivessem presentes.

Mrs. Morel virou o pão no forno. Depois, retirou uma mão-cheia de massa do alguidar de barro, que se encontrava a um canto da cozinha; trabalhou a massa dando-lhe a forma adequada e meteu-a numa tigela. Enquanto fazia isto, Barker bateu à porta e entrou. Era um homem baixo, compacto e calmo, que parecia capaz de atravessar um muro de pedra. O cabelo era preto e curto e a cara bem-parecida. Tal como a maioria dos mineiros, era pálido, mas saudável e rijo.

– Boa noite, ‘nha senhora – disse o homem, curvando a cabeça e sentando-se, com um suspiro.

– Boa noite – respondeu ela, cordialmente.

– Fizeste ranger os tacões – disse Morel.

– Num dei por nada – disse Barker.

Retraído, sentou-se num dos bancos da cozinha, como os colegas normalmente faziam.

– Como está a sua senhora? – perguntou-lhe Mrs. Morel. Há algum tempo, ele tinha-lhe dito: «Sabe, estamos à espera do terceiro...»

– Bem – respondeu ele, coçando a cabeça –, penso que está tão boa quanto o possível.

– Ora deixa cá ver... para quando é? – perguntou Mrs. Morel.

– Bem... penso que está para chegar a qualquer momento...

– Ah, sim? E tem passado bem?

– Sim... tudo em ordem.

– É um milagre, pois ela não é muito forte.

– É verdade. ... E eu fiz outra asneira.

– O que foi?

Mrs. Morel sabia que Barker não teria feito nada de muito errado.

– Não consegui dar co’a alcofa das compras.

– Pode levar a minha.

– Não... óspois vossemecê pode precisar.

– Não preciso, não. Levo sempre um saco de rede.

Todas as sextas-feiras à noite, Mrs. Morel via o mineiro, baixo e desembaraçado, a comprar os legumes e a carne para toda a semana, e sentia grande admiração por ele.

– O Barker pode ser baixo, mas é dez vezes mais homem do que tu – tinha dito ela ao marido.

Nisto, entrou Nessen. Apesar de pai de sete filhos, era magro, muito frágil, com uma ingenuidade de adolescente e um sorriso levemente matreiro. Mas a mulher dele era uma mulher apaixonada.

– Estou a ver que me batest’òs pontos – disse, sorrindo sem brilho.

– Pois foi – respondeu Barker.

O recém-chegado tirou o boné e o grosso cachecol de lã. Tinha um nariz pontiagudo e vermelho.

– É capaz de ter frio, Mr. Wesson – disse Mrs. Morel.

– Aqui tá um bocado de frio – respondeu.

– Então aproxime-se do lume.

– Não, tou bem aqui.

Os dois mineiros sentaram-se um pouco mais arredados. Não queriam ficar em cima do tapete da lareira, pois esse lugar era sagrado para a família.

– Senta-te no cadeirão – exclamou Morel, alegremente.

– Não, obrigado. Tou muito bem aqui.

– Ora essa, chegue-se para aqui – insistiu Mrs. Morel.

O homem levantou-se e, avançando desajeitadamente, sentou-se no cadeirão de Morel, envergonhado. Era tomar demasiada confiança. Mas estar ao pé do lume deixava-o muito feliz.

– E então como está o seu peito? – perguntou Mrs. Morel.

Ele sorriu novamente, com uns olhos azuis muito brilhantes.

– Ora, vai indo! – disse ele.

– Como um chocalho – atalhou Barker.

– T..t..t..t – fez Mrs. Morel com a língua. – Já mandou fazer a camisa de flanela?

– Ainda não – disse ele sorrindo.

– E porque não? – perguntou ela.

– Lá chegará o dia... – disse ele, sorrindo.

– Ah, o dia de São Nunca, estou a ver – exclamou Barker.

Barker e Morel preocupavam-se com Wesson, pois fisicamente eram ambos fortes que nem touros.

Quando Morel estava quase pronto, entregou o saco do dinheiro a Paul.

– Contó lá, rapaz – pediu com humildade.

Impaciente, Paul abandonou os livros e os lápis e despejou o saco para cima da mesa. Continha cinco libras em moedas de prata, várias moedas de vinte xelins e alguns trocados. Paul contou o dinheiro rapidamente, incluindo os cheques e os papéis com os totais do carvão, e pôs as moedas por ordem. Então Barker deu uma olhadela aos cheques.

Mrs. Morel subiu ao primeiro andar e os três homens sentaram-se à mesa. Morel, como dono da casa, sentou-se no seu cadeirão com as costas viradas para a lareira. Os outros dois sentaram-se em cadeiras frias. Nenhum deles contou o dinheiro.

– Quant’é que dissemos qu’era prò Simpson? – perguntou Morel. E, durante um minuto, discutiram os ganhos diários do companheiro, sendo o valor respectivo posto de lado em seguida.

– E quant’é prò Bill Naylor?

Também este valor foi retirado do saco.

E então, visto que Wesson vivia numa casa da companhia e a renda já tinha sido deduzida, Morel e Barker retiraram quatro xelins e seis dinheiros cada um. E, para compensar o carvão que Morel já tinha trazido, Barker e Wesson receberam mais quatro xelins cada. Depois, a distribuição foi simples: Morel deu a cada um uma moeda de vinte xelins, até não restar nenhuma; mais meia coroa a cada um, até não restarem mais; e ainda uma moeda de um xelim, até acabarem. Se no fim restasse alguma coisa que não pudesse ser dividida, Morel guardava esse dinheiro para pagar uma rodada de cerveja.

Finalmente, os três homens levantaram-se e saíram. Morel tratou de se escapar antes de a mulher descer. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu. Deu uma olhadela rápida ao pão que tinha no forno e, olhando para a mesa, viu o seu dinheiro. Paul tinha estado sempre embrenhado no trabalho. Mas agora apercebia-se de que a mãe, ao contar a semanada, se enfurecia.

– T..t..t – era o barulho que ela fazia com a língua.

Paul franziu a testa. Não conseguia trabalhar quando a via aborrecida. Mrs. Morel contou novamente o dinheiro.

– Uns míseros vinte e cinco xelins! – exclamou ela. – Qual era o valor do cheque?

– Dez libras e onze xelins – disse Paul, irritado. Ele receava o que estava para vir.

– E esta semana ele dá-me uma porcaria de vinte e cinco xelins, e ainda tenho de tirar o dinheiro para o clube. Eu bem o conheço... Pensa que por tu ganhares, já não precisa de sustentar a casa. Ele que coma o dinheiro, se quiser. Mas eu digo-lhe como é...

– Oh, mãe, não... – exclamou Paul.

– Não, o quê, posso saber? – disse ela.

– Não reaja assim... senão não consigo trabalhar.

Ela continuou, mas já um pouco mais calma.

– Pronto, está certo – disse ela. – Mas como é que pensas que me vou governar?

– Eu sei, mas não adianta nada piorar a situação.

– Gostava de saber o que é que farias se tivesses de aturar isto?

– Já não será por muito tempo... Vai ter o meu dinheiro não tarda, e ele que vá para o diabo.

Retomou o trabalho, e ela apertou as fitas do chapéu com desalento.

O filho não suportava vê-la assim, quando ela estava zangada. Todavia, começava agora a tentar dar-lhe isso a perceber.

– Os dois pães do tabuleiro de cima estão prontos dentro de vinte minutos – disse Mrs. Morel. – Não te esqueças.

– Está bem – respondeu ele, e Mrs. Morel saiu para o mercado.

Paul ficou sozinho a trabalhar. Mas a sua habitual concentração estava perturbada. Ouviu bater a cancela do pátio. Cerca das sete e um quarto, bateram ao de leve na porta e Miriam entrou.

– Estás sozinho? – perguntou.

– Estou.

Como se estivesse na sua própria casa, tirou a boina escocesa e o casaco comprido e pendurou-os. Ele sentiu uma tremura. Esta podia ser a casa deles, dele e dela.

Miriam aproximou-se e espreitou o que ele estava a fazer.

– O que é? – perguntou.

– Uma natureza morta... para decorar objectos e bordados.

Ela inclinou-se mais, aproximando os olhos míopes do desenho.

– E gostas do que fazes? – inquiriu.

– Adoro. Neste momento ando em maré de convencionalizar tudo.

– Ah...

Miriam não se interessava por estudos convencionais, mas reconhecia que ele devia saber mais do que ela sobre tais coisas. Eram coisas de homens, coisas que não lhe diziam respeito. No entanto, havia de descobrir a razão por que ele andava, como dizia, em maré de convencionalizar tudo. Que fascínio poderia ter para ele o convencional?

– O que é que te faz gostar disto? – perguntou ela, intrigada.

Ele, como já era seu hábito, procurou justificar-se. Lutando com as palavras, tentou explicar-lhe a teoria de que a força de gravitação é o agente mais poderoso, o factor responsável pela forma das coisas, e que, se pudesse agir em completa liberdade, apareceria uma rosa geometricamente correcta nas linhas e nas proporções... e assim por diante. Isto fez desabrochar nela um certo conceito de desenho convencional que até aí lhe parecia ser pura mentira. Por fim, ele empurrou os livros para o lado.

– Posso...? – disse ele, ansioso e hesitante.

– Podes o quê?

– Mostrar-te isto... Não era minha intenção enquanto não estivesse pronto.

Paul não conseguia esconder-lhe nada do que fazia. Foi à sala e voltou com uma trouxa de linho cru. Desembrulhou-a cautelosamente e estendeu-a no chão. Era um cortinado, ou melhor, um portière, magnificamente decorado com rosas, estampadas a stencil.

– Ah, que bonito! – exclamou ela.

O tecido espraiou-se aos pés dela, com as suas maravilhosas rosas em tons rubros e caules em verde-escuro, tudo muito simples, mas com um não sei quê de perverso. Ela ajoelhou-se, deixando pender soltos os caracóis. Ele, ao vê-la assim, voluptuosamente debruçada sobre a sua obra, sentiu bater mais depressa o coração. De repente, ela ergueu os olhos para ele.

– Porque é que isto parece tão cruel? – perguntou.

– O quê?

– Parece haver neste padrão uma certa crueldade – disse ela.

– Haja ou não haja, a mim parece-me óptimo – replicou ele, dobrando o trabalho com mãos de amante. Ela levantou-se devagar, pensativa.

– Que vais fazer com isto? – perguntou ela.

– Mandá-lo para os armazéns Liberty. Fi-lo para a minha mãe... mas acho que ela prefere o dinheiro.

– Estou a ver... – disse Miriam. Havia na voz dele um travo de amargura, e ela ficou com pena. A ela, o dinheiro jamais lhe interessaria.

Paul levou o tecido novamente para a sala, e, quando voltou, atirou a Miriam um retalho mais pequeno. Era a fronha de uma almofada, com um padrão idêntico.

– Fi-la para ti.

Miriam apalpou o trabalho com mãos trémulas, em silêncio. Paul ficou embaraçado.

– Meu Deus, o pão! – gritou ele.

Tirou os pães do tabuleiro superior e bateu-lhes vigorosamente. Já estavam cozidos. Pô-los ao lado da lareira, para arrefecerem. Em seguida, foi à copa, molhou as mãos, retirou do alguidar a massa, muito branca, que ainda restava, e colocou-a dentro de uma forma de pão. Miriam continuava debruçada sobre o tecido pintado. Enquanto isso, Paul esfregava as mãos, esforçando-se por tirar os bocadinhos de massa que se lhe tinham agarrado.

– Gostas? – perguntou ele.

Ela levantou para ele os seus olhos profundos, inflamados de amor. Ele riu-se, contrafeito. Depois começou a falar do seu desenho. Falar com Miriam sobre os trabalhos que fazia era para ele fonte do mais intenso prazer. Punha toda a sua paixão, toda a violência do seu sangue, nestas conversas com ela, em que discutia e concebia as suas obras. Ela fazia-lhe desabrochar a imaginação, embora não entendesse, como nenhuma mulher entende, quando concebe uma criança no seu ventre. Mas isto para ela, sim, era viver. E para ele também.

Enquanto conversavam, uma rapariga que andaria pelos vinte e dois anos, baixa e descorada, de olhos encovados, mas olhar determinado, entrou na sala. Era uma amiga dos Morels.

– Põe-te à vontade – disse Paul.

– Não... não me demoro.

Sentou-se no cadeirão de braços, em frente de Paul e de Miriam, que estavam no sofá. Miriam afastou-se um pouco mais de Paul. A casa estava quente e cheirava a pão acabado de fazer: os pães tostadinhos, a estalar, pousados ao lado da chaminé.

– Não esperava vir encontrar-te hoje aqui, Miriam Leivers – disse Beatrice, maldosa.

– Não sei porquê! – resmungou Miriam, asperamente.

– Porque... Ora deixa lá ver os teus sapatos.

Miriam, constrangida, não se mexeu.

– Se não sabes, não sabes, e pronto – disse Beatrice, dando uma gargalhada.

Miriam tirou os pés de baixo do vestido. As suas botas tinham aquele ar indeciso e patético que evidenciava bem o quanto ela era insegura e complexada. E estavam, além disso, cobertas de lama.

– Santa Maria!... És mêmo um monte de lama! – exclamou Beatrice. – Quem te limp’as botas?

– Limpo-as eu.

– Então não deves ter mai nada que fazer – disse a outra. – Havia de ser preciso muitos homens pra me fazerem vir ‘té’qui esta noite... Mas o amor zomba da lama... não é, ‘Póstolo, meu lindo?

– Inter alia – disse ele.

– Valha-me Deus, não me digas que te vais pôr agora a vomitar línguas estrangeiras!... O qu’é que isso quer dizer, Miriam?

– «Entre outras coisas», julgo eu – disse ela, humildemente. Beatrice riu-se maliciosamente, com a ponta da língua a despontar entre os dentes.

– «Entre outras coisas», ‘Póstolo? – repetiu ela. – Queres tu dizer qu’o amor se ri das mães e dos pais e das irmãs e dos irmãos e dos amigos e das amigas, e se calhar até do próprio ser amado?

Estava a fazer-se de ingénua.

– Na verdade, o amor é um sorriso rasgado – retorquiu ele.

– Isso é qu’era bom, ‘Póstolo Morel... Vai por mim... – disse ela.

E riu-se de novo, com malícia, muito baixinho.

Miriam continuava calada, fechada sobre si mesma. Todas as amigas de Paul adoravam meter-se com ela, e ele deixava-a entregue a si própria, como se aproveitasse para se vingar.

– Ainda continuas na mesma escola? – perguntou Miriam a Beatrice.

– Continuo.

– Então ainda não te mandaram embora?

– Devem mandar na Páscoa.

– Não achas uma pouca-vergonha... mandarem-te embora só por não teres passado no exame?!

– Não sei – ripostou Beatrice, friamente.

– A Agatha diz que és tão boa professora como as outras. A mim parece-me ridículo. Porque será que não passaste?

– Cabeça dura, hem, ‘Póstolo? – disse Beatrice, secamente.

– Só lhe serve para morder – retorquiu Paul, a rir.

– Monstro! – gritou ela, e, saltando do lugar, atirou-se a ele e deu-lhe um puxão de orelhas. As mãos dela eram pequeninas e elegantes. Ele prendeu-lhe os pulsos enquanto ela se debatia. Conseguiu por fim libertar-se e, apanhando dois punhados do cabelo dele, castanho e espesso, puxou com toda a força.

– Oh, Bea – disse ele, alisando o cabelo com os dedos. – Odeio-te.

Ela riu, consolada.

– Com licença! – disse ela. – Quero sentar-me ao pé de ti.

– Antes estar sentado ao lado duma fera – disse ele, deixando no entanto espaço para a outra se sentar entre ele e Miriam.

– Olha, ficou com o cabelinho todo despenteado! – exclamou Beatrice, penteando-o com o seu próprio pente.

– E o bigodinho também! – continuou ela. E, atirando a cabeça para trás, com um trejeito, penteou-lho.

– Tens um bigodinho todo malandro, ‘Póstolo – disse ela. – Vermelho, sinal de perigo... Ainda tens daqueles cigarros?

Paul tirou a cigarreira do bolso. Beatrice olhou.

– Já não tens nenhum daqueles charros qu’a Connie te deu? – perguntou.

– Ainda devo ter um por aí...

Procurou no bolso e encontrou uma caixinha. Beatrice pegou-lhe.

– É isso, só tens um! – disse ela. – Devia ser para a Miriam. Não queres o charro da Connie, Miriam?

– Não, obrigada – replicou Miriam. – Quem é a Connie?

– Ele não te contou? – exclamou Beatrice, surpresa. – Bem, ‘Póstolo Morel, acho que não é bonito deixar uma menina tão linda às escuras.

– Não queres mesmo fumar? – perguntou Paul a Miriam.

– Sabes bem que não – respondeu ela.

– Imaginem só, eu a fumar o último cigarro da Connie – disse Beatrice, metendo o cigarro entre os dentes. Paul estendeu-lhe um fósforo aceso e ela aspirou sofisticadamente.

– Obrigadíssima, querido – disse, trocista.

Dizer estas coisas dava-lhe um prazer perverso a que não conseguia resistir.

– Que jeitinho que ele tem, não achas, Miriam? – perguntou.

– Se tem! – disse Miriam.

Paul tirou um cigarro.

– Lume, menino? – disse Beatrice, chegando o seu cigarro ao dele.

Ele inclinou-se para a frente, para acender o cigarro no dela. Ela piscou-lhe o olho. Miriam viu os olhos dele a brilharem de malícia e os seus lábios carnudos, quase sensuais, a tremerem. Ele já não estava em si, e isso para ela era insuportável. Aquele que ali estava agora não tinha nada a ver com ela, era como se ela não existisse para ele. Via-lhe o cigarro a bailar nos lábios cheios, bem vermelhos, e odiava aquelas madeixas espessas que lhe caíam livres sobre a testa.

– Meu torrãozinho de açúcar! – disse Beatrice, levantando-lhe o queixo e dando-lhe um beijo na face.

– Agora é a minha vez, Beat – disse ele.

– Isso é que não! – disse ela, com uma risadinha, fugindo para longe. – Ele é mesmo descarado, não achas, Miriam?

– Do pior! – disse Miriam. – A propósito, não te esqueceste do pão?

– Meu Deus! – gritou Paul, abrindo a porta do forno, de onde saiu um fumo azulado e um cheiro a pão queimado.

– Céus! – gritou Beatrice, correndo para junto dele. Paul ajoelhou-se diante do forno e ela espreitou-lhe por cima do ombro. – Aí está o resultado de só pensares no amor, meu lindo.

Paul, contrito, tirava os pães do forno. Um deles estava todo preto por baixo e o outro duro que nem uma pedra.

– Pobre Mater! – disse Paul.

– Agora tens de o raspar – disse Beatrice. – Traz-me o ralador de noz-moscada.

Ela compôs os pães que ainda estavam no forno, ele trouxe-lhe o ralador e ela raspou a parte queimada em cima da mesa, para um jornal. Paul abriu as portas, para eliminar o cheiro a queimado, e Beatrice continuou a raspar o pão, fumando enquanto arrancava a crosta carbonizada da pobre carcaça.

– Ai, ai, Miriam, desta vez estás bem arranjada – disse Beatrice.

– Eu! – exclamou Miriam, espantada.

– É melhor saíres antes de a mãe dele chegar... Agora é que eu percebo porque é que o Rei Alfred queimou os bolos. Agora, sim. O ‘Póstolo inda podia dizer que se tinha esquecido por causa do trabalho, se achasse que isso ia pegar. Se a velha da lenda tivesse chegado um nadinha mais cedo, teria dado cabo das orelhas da desavergonhada que provocou o esquecimento, e não das do pobre Alfred...

E riu-se, enquanto raspava o pão. Até Miriam, não se contendo, se riu também. Paul, pesaroso, pôs mais carvão na fogueira.

Ouviu-se bater o portão do jardim.

– Depressa! – gritou Beatrice, estendendo a Paul a carcaça já raspada. – Embrulha-a numa toalha húmida.

Paul correu para a copa. Beatrice soprou apressadamente as raspadelas para a fogueira e foi sentar-se com ar inocente. Annie entrou de rompante. Era uma rapariga muito esperta e sem rodeios. A luz intensa fê-la piscar os olhos.

– Cheira-me a queimado! – exclamou.

– É dos cigarros – explicou Beatrice, muito séria.

– Onde está o Paul?

Leonard entrou logo a seguir a Annie. Tinha uma cara comprida e engraçada, e uns olhos azuis muito tristes.

– Acho que se retirou para vocês se entenderem as duas – disse ele.

Depois, cumprimentou Miriam com ar penalizado, e mostrou-se suavemente sarcástico com Beatrice.

– Nada disso – disse Beatrice. – Foi sair com a número nove.

– Olha, vi mesmo agora a número cinco, que andava à procura dele – acrescentou Leonard.

– Pois é... Nós vamos ter de o dividir como o menino de Salomão – disse Beatrice.

Annie deu uma gargalhada.

– Ah, sim? – disse Leonard. – E com que bocado queres tu ficar?

– Sei lá – disse Beatrice. – As outras que escolham primeiro.

– E tu depois ficas com os restos? – disse Leonard, fazendo uma careta.

Annie estava às voltas com o forno. Miriam estava abandonada no seu canto. Paul entrou.

– Este pão está lindo, menino Paul – disse Annie.

– Então devias ter ficado a tomar conta dele – disse Paul.

– Tu é que devias ter feito aquilo que te compete – repontou Annie.

– Devia, não devia? – exclamou Beatrice.

– Mas se calhar estava com as mãos muito ocupadas... – atalhou Leonard.

– Viste-te aflita para cá chegar, não foi, Miriam? – disse Annie.

– Se vi... Mas tinha estado metida em casa toda a semana...

– E apeteceu-te mudar, hem? – insinuou Leonard, melífluo.

– Bem, não se pode passar a vida inteira dentro de casa – disse Annie, conciliadora. Beatrice vestiu o casaco e saiu com Leonard e Annie. Ia encontrar-se com o seu rapaz.

– Não te distraias com o pão, menino Paul – gritou Annie. – Boa noite, Miriam, acho que não vai chover mais.

Depois de todos saírem, Paul foi buscar o pão queimado, desembrulhou-o e olhou para ele com desalento.

– Está uma porcaria! – disse.

– Mas qual é o problema? – disse Miriam, enfadada. – Afinal são só... dois dinheiros e meio.

– Está bem... mas trata-se do pão da minha mãe, de que ela tanto se orgulha... e ela não vai gostar nada... Mas agora já não adianta preocuparmo-nos.

Levou o pão outra vez para a copa. Instalara-se uma certa distância entre ele e Miriam. Por uns momentos, Paul hesitou diante dela, a meditar, pesando o seu comportamento com Beatrice. No fundo, sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo contente. Não sabia explicar porquê, mas achava que era bem feito para Miriam. Não era agora que se ia arrepender. Miriam pensava no que ele estaria a cogitar, ali hesitante diante dela. Madeixas de cabelo espesso caíam-lhe ainda sobre a testa. E se lho puxasse para trás, para apagar as marcas do pente de Beatrice? E se lhe apertasse o corpo entre as suas mãos? Parecia tão rijo e palpitante. Se ele deixava as outras fazerem-lhe isso, porque não ela?

De súbito, Paul voltou à vida, e Miriam quase tremeu de susto quando ele arredou os cabelos da testa e avançou para ela.

– Oito e meia! – disse ele. – É melhor irmos a isto. Onde está o teu caderno de francês?

Miriam, contrariada, mostrou-lhe timidamente o caderno de exercícios de francês. Todas as semanas lhe entregava uma espécie de diário da sua vida íntima, escrito por ela em francês. Paul descobrira que era a única maneira de a convencer a fazer composições. O diário era acima de tudo uma carta de amor. Agora, ele ia lê-lo e era como se a história da sua alma fosse ser profanada por ele, no estado em que se encontrava. Paul sentou-se ao lado dela. Ela atentou na mão dele, firme e quente, percorrendo minuciosamente o seu trabalho.

Ele lia apenas as palavras em francês, ignorando a alma que encerravam. Mas, gradualmente, a mão esqueceu a tarefa e ele continuou a ler em silêncio, e em total imobilidade. Ela estremeceu.

– «Ce matin les oiseaux m’ont éveillé» – leu ele. – «II faisait encore un crépuscule. Mais la petite fenêtre de ma chambre était blême, et puis, jaûne, et tous les oiseaux du bois éclatèrent dans un chanson vif et résonnant. Toute l’aûbe tressaillit. J’avais rêvé de vous. Est-ce que vous voyez aussi 1’aube? Les oiseaux m’éveillent presque tous les matins, et toujours il y a quelque chose de terreur dans le cri des grives. II est si clair...».2

Miriam estava sentada, a tremer, envergonhada. Ele mantinha-se imóvel, tentando compreender. Apenas percebia que ela o amava, mas tinha medo do seu amor. Era mais do que ele merecia, e ele não era digno dela. Era ele que não a amava o suficiente, e não o contrário. Envergonhado, corrigiu-lhe o trabalho, anotando os erros timidamente por cima das palavras.

– Repara – disse ele, sereno. – Quando o particípio passado é conjugado com avoir, concorda com o complemento directo sempre que este o precede.

Ela inclinou-se para a frente, para ver melhor e poder compreender. Os seus caracóis finos e soltos roçaram-lhe ao de leve na cara, e ele deu um salto como se um ferro em brasa lhe tivesse tocado. Ao vê-la debruçada sobre a página, com os lábios rubros dolorosamente entreabertos, o cabelo negro caindo em finas madeixas sobre as faces afogueadas, corada como uma romã, a respiração tornou-se-lhe ofegante. Então, ela olhou para ele: os seus olhos negros punham a nu todo o seu amor, medo e desejo. E os olhos dele, negros também, feriram os dela. Pareciam dominá-los. E ela, perdendo o domínio de si própria, ali estava exposta, amedrontada, à mercê dele. Paul sabia, porém, que antes de a poder beijar, tinha de arrancar alguma coisa de si mesmo. E, então, um sopro de ódio por ela penetrou-lhe outra vez no coração, fazendo-o retomar as suas correcções.

De súbito, ele atirou com o lápis pelo ar e precipitou-se para o forno, para virar o pão. Era brusco de mais para o gosto dela. Miriam estremeceu em violento sobressalto, e a dor que sentiu era real. Até a maneira como ele se punha de cócoras diante do forno a magoava. Pressentia alguma crueldade nos seus gestos, alguma crueldade na brusquidão com que tirava os pães das formas, atirando-os ao ar e apanhando-os na queda. Se ao menos ele fosse gentil nos movimentos, sentir-se-ia mais rica e confortada no seu íntimo. Mas, assim, era só dor o que sentia.

Paul voltou para junto dela e acabou o exercício.

– Desta vez saíste-te bem – disse ele.

Ela percebeu que ele se sentia lisonjeado com o diário, mas isso não era recompensa suficiente.

– Sim senhora, de vez em quando fazes um brilharete – disse ele. – Devias escrever poesia.

Ela ergueu a cabeça, transbordante de alegria, mas logo a abanou desalentada.

– Falta-me confiança – disse ela.

– Mas devias tentar!

Mas ela abanou a cabeça.

– Vamos ler um bocado, ou achas que já é muito tarde? – perguntou ele.

– Lá tarde, é... mas podíamos ler só um bocadinho – pediu ela.


CONTINUA

Partiriam no sábado seguinte de manhã, no comboio das sete horas. Paul sugeriu a Miriam que dormisse em casa dele, pois morava muito longe, e ela já jantou de véspera em casa dele. Estavam todos tão excitados que a vinda de Miriam até foi recebida com entusiasmo. Contudo, mal ela chegou, a família tornou-se menos expansiva e mais fechada. Paul tinha descoberto um poema de Jean Ingelow que falava em Mablethorpe, e, por isso, tinha de o mostrar a Miriam. Sem ela, o seu sentimentalismo nunca teria chegado ao ponto de ler poesia para a família ouvir. Mas agora concordavam em ouvi-lo. Miriam, sentada no sofá, escutava-o enlevada. Quando ele estava presente, ela parecia sempre presa a ele e das palavras dele. Mrs. Morel, com ciúmes, sentou-se na sua cadeirinha de baloiço para o escutar. Annie e o pai escutavam-no também; Morel tinha a cabeça mais levantada de um lado, como alguém que escuta um sermão e está consciente do mesmo. Paul espreitou por cima do livro. Tinha agora a presença de quem mais gostava. E Mrs. Morel e Annie quase competiam com Miriam, sobre qual seria a ouvinte mais atenta, a preferida dele. Paul sentia-se nos píncaros.

– Mas – interrompeu Mrs. Morel – não percebo porque é que os sinos têm que tocar A Noiva de Enderbyt...?

– É uma velha melodia que os sinos costumavam tocar como aviso contra a cheia. Penso que a tal Noiva de Enderby morreu afogada numa enchente – respondeu ele. Não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer na realidade, mas nunca se teria rebaixado ao ponto de o confessar perante o seu público feminino. Elas escutavam-no e acreditavam. Ele próprio acreditava nas coisas que dizia.

– E as pessoas sabiam o significado dessa melodia? – quis saber a mãe.

– Sim... tal e qual os escoceses quando escutam As Flores da Floresta... e quando costumavam tocar os sinos em sinal de alarme em sentido contrário.

– Ah! – exclamou Annie. – Quer dizer que os sons de um sino são sempre os mesmos quando são tocados no seu sentido correcto, ou ao contrário.

– Mas – disse ele – se começares num tom grave e subires até ao agudo... lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá! – disse ele, percorrendo a escala completa, e todos o acharam muito inteligente. Ele também. Depois, aguardando um minuto, continuou a ler o poema.

– Hum! – disse Mrs. Morel, apreciativamente, quando ele terminou. – Só espero que tudo o que se tem escrito não seja assim tão triste.

– Num consig’intender porqu’é qu’houve tantos afogamentos – disse Morel. Houve uma pausa. Annie preparou-se para levantar a mesa.

– Acho Elizabeth um belo nome – disse Miriam, em voz baixa. – «A minha nora Elizabeth...»

– Concordo – disse Paul.

– Também acho – disse a mãe. – Mas não gosto de Lizzie e abomino Liza.

Nem Paul nem Miriam achavam que Lizzie ou Liza tivessem algo a ver com o assunto.

– Ah, mas «Elizabeth»! – murmurou Miriam.

– E ainda por cima, a Rainha Elizabeth adorava que a tratassem por «Grande Eliza» – disse Paul.

– E amanhã há mais! – disse Morel, não se contendo.

Mrs. Morel e Paul deram uma gargalhada.

– Aposto que nem sapatos tinha – disse Morel, continuando com a brincadeira.

– Não seja tão insolente com uma rainha – disse Annie.

– Rainhas! – exclamou Morel. – Num pensas noutra coisa senão nas rainhas? Num fazes mai nada senão viver à grande e à francesa!

Miriam levantou-se para ajudar a lavar a loiça.

– Deixa-me ser eu a lavar a loiça – disse ela.

– Não é necessário – exclamou Annie. – Vai-te sentar. É pouca loiça.

E Miriam, que não se sentia à vontade para insistir, sentou-se a ver o livro com Paul.

Paul era o chefe do grupo... para isso, o pai não prestava. E muito ele sofreu para que o baú de latão fosse descarregado em Firsby e não em Mablethorpe. E não foi também capaz de encontrar uma carruagem com lugares. Só a genica de Mrs. Morel o conseguiu.

– Aqui! – gritou ela para um homem. – Aqui!

Paul e Annie ficaram para trás envergonhadíssimos, mas perdidos de riso.

– Quanto é a viagem até Brook Cottage? – perguntou Mrs. Morel.

– Dois xelins.

– É assim tão longe?

– Ainda é um bom bocado.

– Não acredito – disse ela.

Contudo subiu para a carruagem. Iam os oito apertados numa velha carruagem da linha costeira.

– Bem vêem – disse Mrs. Morel –, são apenas três dinheiros por pessoa, mas se fosse um eléctrico...

A viagem prosseguiu. Sempre que passavam por uma casa típica, Mrs. Morel exclamava:

– É esta?... Não, agora é que é!

Estava toda a gente morta de ansiedade. A viagem prosseguiu. Houve um suspiro em uníssono.

– Estou agradecida por não ser aquela coisa horrorosa – disse Mrs. Morel. – Estava assustada.

Passou-se ainda mais algum tempo.

– Aquela mulher repelente disse que a casa ficava a dez minutos do mar...! – exclamou Mrs. Morel.

– Pra ela uma hora deve ser um minuto – reclamou Morel.

Todos o mandaram calar.

– Será que nunca mais chegamos? – exclamou Mrs. Morel, muito alto.

– Não grite assim, mãe – disse Annie. – O que é que ele irá pensar?

Mrs. Morel olhou de um modo esquisito para o condutor, e disse:

– Não sei! Mas, pelo aspecto, penso que não pensará nada de especial.

Finalmente, desceram perto de uma casa isolada, sobre o canal que passava na estrada principal. Houve grande alvoroço quando descobriram que tinham de atravessar uma pequena ponte para chegarem ao jardim da casa. Adoraram a casa, que ficava isolada, com o mar de um lado e, do outro, uma imensa extensão de terra plana que se estendia até ao céu, e onde se distinguia o branco da cevada, o amarelo da aveia, o vermelho do trigo e o verde dos nabos.

Paul registava as despesas e ele e a mãe governavam a casa. As despesas globais, incluindo o alojamento e a alimentação ascendiam a dezasseis xelins por pessoa e por semana. De manhã, Paul e Leonard iam tomar banho ao mar. Morel saía bastante cedo para ir dar um passeio.

– Paul – chamou a mãe do quarto. – Come uma fatia de pão com manteiga.

– Está bem – respondeu ele.

Quando regressou, a mãe estava sentada à cabeceira da mesa. A dona da casa era jovem. O marido era cego e ela cuidava da roupa. Assim, Mrs. Morel lavava a loiça na cozinha e fazia as camas.

– Mas a mãe prometeu que ia fazer umas férias a sério – disse Paul – e agora está a trabalhar.

– Trabalho? – exclamou ela. – De que é que estás a falar?

Paul adorava ir passear com ela pelos campos, até à aldeia ou até ao mar. Ela tinha medo de atravessar pontes de madeira e ele acusava-a de se portar como um bebé. Era apegado à mãe como se fosse o seu marido.

Miriam raramente andava com ele – excepto, talvez, quando iam todos ouvir os Coons. Os Coons eram insuportavelmente estúpidos para Miriam e, por isso, eram-no também para Paul, que pregava sermões presunçosos a Annie sobre a perda de tempo que era irem ouvi-los. Todavia, também ele sabia todas as suas canções de cor e as cantava desbragadamente pelas ruas. E, quando reparava que os estava a ouvir, a estupidez da situação agradava-lhe imenso. Contudo dizia para Annie:

– Que porcaria!... Não há um pingo de inteligência naquilo que cantam. Ninguém que tenha mais miolos que um gafanhoto consegue aguentá-los. – E dizia a Miriam, com algum desdém, onde estavam Annie e os outros:

– Suponho que foram aos Coons.

Era ridículo ouvir Miriam trautear as canções dos Coons. Tinha um queixo talhado a direito que descia na perpendicular desde o lábio inferior até à curvatura do maxilar. Quando ela cantava, Paul achava-a parecida com um anjo triste de Botticelli, mesmo quando entoava:


«Vem pela Estrada do Amor

Vem comigo passear, falar comigo...»


Miriam só tinha Paul todo para ela quando ele desenhava, ou à noite, quando todos os outros estavam a ouvir os Coons. Ele falava-lhe então interminavelmente do seu gosto pelos planos horizontais: como é que os grandes níveis do céu e da terra significavam para ele a eternidade da vontade, tal como os arcos normandos, arredondados e em série, significavam um salto em frente da alma humana voluntariosa, não se sabe para onde; pelo contrário, as linhas perpendiculares e o arco gótico apontavam para o céu e afloravam o êxtase, perdendo-se no divino. Ele era normando, Miriam era gótica. Submissa, ela concordava com tudo o que ele dizia.

Certa tarde, ele e ela foram passear pelo extenso areal que conduzia a Theddlethorpe. As alongadas vagas quebravam-se e elevavam-se em silvos agudos de espuma ao longo da costa. A tarde estava quente e eles completamente sozinhos na imensidão da areia, a sós com o barulho do mar. Paul adorava ouvir o mar a ressoar na areia. Adorava sentir-se entre o som do mar e o silêncio do areal. Miriam estava com ele. Tudo se tornava mais intenso. Já tinha anoitecido quando regressaram. O regresso a casa fazia-se através de uma passagem nas dunas, e depois através de uma estrada pejada de ervas, rasgada entre dois diques. A aldeia estava cinzenta e calma. Por detrás das dunas soava o murmúrio do mar. Paul e Miriam caminhavam em silêncio. De repente, ele estacou. O seu sangue parecia ter-se incendiado e ele mal podia respirar. Uma enorme lua alaranjada observava-os do alto das dunas. Ele continuava parado, olhando a lua.

– Oh! – exclamou Miriam, quando a viu também.

Ele estava ali, petrificado, olhando a lua dilatada e rubra, sozinha na escuridão imensa. O seu coração batia forte e tinha os músculos dos braços contraídos.

– O que foi? – murmurou ela, esperando por ele.

Ele voltou-se e fitou-a. Ela estava ao seu lado, para sempre na escuridão. A sua face, encoberta pela sombra do chapéu, olhava-o sem que ele a visse. E ela meditava. Estava um pouco receosa... profundamente emocionada e imbuída de religiosidade. Este era o seu melhor estado de alma. Ele sentia-se impotente face a esta situação. O sangue parecia concentrar-se como uma fogueira no seu peito, mas ele não lhe conseguia transmitir o sentimento. Pareciam disparar relâmpagos do seu sangue, mas, de algum modo, ela ignorava-os. Ela esperava vê-lo atingir um estado de graça. Ainda à espera, mas meio consciente da paixão que o possuía, Miriam fitou-o, preocupada.

– O que se passa? – murmurou novamente.

– É a Lua – respondeu ele, franzindo a testa.

– Sim – concordou ela. – É maravilhosa, não é? – Ela estava intrigada. A crise tinha passado.

Ele próprio não sabia o que lhe tinha acontecido. Era ainda tão jovem e a sua intimidade tão abstracta que não se apercebeu de que desejava esmagá-la contra o peito para aliviar a dor que o trespassava. Tinha medo dela. Talvez o facto de a desejar como um homem deseja uma mulher tivesse permanecido oculto dentro dele como uma humilhação. Quando ela fugia desses pensamentos, torturando-se em extrema agitação, ele recolhia-se até ao mais recôndito da alma. E, neste momento, esta «pureza» inibia o seu primeiro beijo de amor. Era como se ela mal pudesse suportar o choque do amor físico, ou apenas um beijo apaixonado, deixando-o demasiado reprimido e sensibilizado para lho dar.

Enquanto caminhavam ao longo da negra lagoa, Paul contemplava a Lua e mantinha-se em silêncio. Miriam caminhava a seu lado devagar. Ele sentia que a odiava, pois ela parecia, de certa forma, levá-lo a autodesprezar-se. Olhando em frente, descortinou uma luz na escuridão; era a janela iluminada da sua casa.

Adorava pensar na mãe e no resto das pessoas, todos alegres.

– Bem, já todos chegaram há bastante tempo – disse a mãe quando eles entraram.

– E o que é que isso importa? – exclamou ele, irritado. Posso ir passear quando me apetecer, não posso?

– Pensei que quisesses jantar com o resto do grupo – disse Mrs. Morel.

– Tenho de agradar a mim próprio – retorquiu ele. – Não é tarde e faço o que me apetece.

– Muito bem – disse a sua mãe, sarcasticamente. – Então faz o que te apetecer!

E nessa noite não falou mais com ele. Paul fingiu não notar nem estar preocupado com o assunto, e sentou-se a ler. Miriam lia também, tentando alienar-se. Mrs. Morel detestava-a por ela pôr o filho naquele estado. Via o filho irritadiço, presumido e melancólico, e culpava Miriam.

Annie e os amigos também se voltavam contra Miriam. O único amigo de Miriam era Paul. Mas ela não se importava, pois desprezava a trivialidade de todas essas pessoas.

E Paul detestava-a, pois ela perturbava, por assim dizer, o seu bem-estar e a sua naturalidade, torturando-o com sentimentos de humilhação.

1 «Os últimos representantes de uma raça extinta.» (N. da T.)


VIII

ZANGAS DE AMOR

ARTHUR terminou o estágio e arranjou emprego na central eléctrica da mina de Minton. Ganhava muito pouco, mas tinha possibilidades de progredir. Era, porém, rebelde e impaciente. Não bebia nem tinha o vício do jogo, mas envolvia-se constantemente em rixas devido às suas reacções intempestivas. Ia caçar coelhos para a floresta, qual caçador furtivo, e passava a noite em Nottingham em vez de voltar para casa, ou então ia nadar para o canal de Bestwood e falhava os cálculos do mergulho, ficando com o peito ferido, das rochas naturais e das latas que andavam a boiar à tona.

Tinha faltado ao emprego meses a fio, e uma noite não voltou para casa.

– Sabe por onde anda o Arthur? – perguntou Paul ao pequeno-almoço.

– Não – respondeu a mãe.

– É mesmo maluco – disse Paul. – Eu já nem ligaria, se ele ao menos fizesse mesmo alguma coisa. Mas não... não consegue resistir a um jogo de cartas, ou então vai levar alguma rapariga a casa depois da patinagem, com todo o decoro... e acaba por não voltar para casa. É maluco.

– Não vejo porque seria melhor se ele fizesse mesmo alguma coisa que nos envergonhasse – disse Mrs. Morel.

– Bem... eu, pelo meu lado, passaria a respeitá-lo mais – disse Paul.

– Duvido muito – respondeu a mãe secamente.

Continuaram a tomar o pequeno-almoço.

– A mãe gosta desvairadamente dele, não gosta? – perguntou Paul.

– Porque fazes essa pergunta?

– Dizem que as mães gostam sempre mais do filho mais novo.

– Talvez... mas eu não. Não... ele irrita-me.

– E gostava que ele se portasse melhor?

– Gostava que ele mostrasse algum bom senso masculino.

Paul estava ferido e irritado. Também ele irritava a mãe frequentemente. E ela ficava triste, pois via os melhores anos a fugirem-lhe.

Estavam a acabar o pequeno-almoço, quando o carteiro lhes entregou uma carta vinda de Derby. Mrs. Morel esforçou-se para ler o endereço.

– Dê cá isso, sua pitosga! – exclamou o filho, tirando-lhe a carta da mão. Ela assustou-se e quase lhe dava uma bofetada.

– É do seu filho Arthur – informou ele.

– Mas o que vem a ser isto? – exclamou Mrs. Morel.

– «Querida mãe» – leu Paul. – «Não sei o que me deu. Quero que me venha buscar. Ontem, em vez de ir trabalhar, vim alistar-me no exército com o Jack Brendon. Ele disse que estava farto de passar a vida sentado num escritório, e eu, idiota, como já sabe que sou, resolvi vir com ele.

«Já recebi o dinheiro referente ao recrutamento, mas se me vier buscar, talvez eles me deixem ir consigo. Foi uma loucura ter feito o que fiz. Não quero ficar no exército. Querida mãe, sei que não passo de um estorvo para si, mas, se me tirar desta situação, prometo que serei mais consciente e ponderado...»

Mrs. Morel sentou-se na cadeira de baloiço.

– Vejam só! – exclamou. – Ele que assente por uns tempos!

– Também acho – disse Paul. – Ele que assente!

Fez-se silêncio. A mãe estava sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, o rosto imóvel, pensativa.

– Devo estar doente – exclamou de repente. – Doente!

– Então! – disse Paul, franzindo a testa – Não quero que se preocupe com isto, está a ouvir?

– Então queres que encare isto como uma bênção? – disse ela, de repente, virando-se para o filho.

– Agora não vai tornar isto numa tragédia, pois não? – retorquiu ele.

– Ele é maluco!... Maluquinho de todo! – gritou Mrs. Morel.

– Vai ficar todo bonito com a farda – disse Paul, para espicaçar a mãe.

Ela virou-se a ele, furiosa.

– Ah, vai? – gritou ela. – Mas não para mim!

– Devia ir para um regimento de cavalaria... Ele divertia-se à grande e nós passávamos a ser chiques.

– Chiques!... Chiques!... Muito chique, não haja dúvida!... Um soldado raso!

– Ora – disse Paul. – E o que sou eu, senão um reles escriturário?

– O que é muito mais, meu filho! – gritou a mãe, picada.

– Essa agora!

– De qualquer forma, és um homem e não uma coisa enfiada num casaco vermelho.

– Não me importava de andar enfiado num casaco vermelho... ou azul-escuro, que me ficaria melhor... se eles não me dessem muitas ordens.

Mas a mãe já não o ouvia.

– Agora que ele estava a progredir, ou poderia vir a progredir no emprego... um aborrecimento passageiro e aí vai ele... dar cabo da vida toda. Que vantagens é que tu pensas que isto lhe pode trazer?

– Vai pô-lo todo afinado! – disse Paul.

– Todo afinado!... E o que tem ele para afinar? Um soldado!... Um soldado raso!!... Nada mais do que um corpo que se mexe quando lhe dão ordens! Grande coisa!

– Não percebo porque é que isso a aborrece tanto – disse Paul.

– Não, talvez não percebas. Mas percebo eu. – E recostou-se na cadeira, de queixo apoiado numa das mãos e segurando o cotovelo com a outra, a transbordar de raiva e desilusão.

– Está a pensar ir a Derby? – perguntou Paul.

– Estou, pois.

– Não faça isso.

– Quero ver com os meus próprios olhos.

– Mas por que diabo é que não o deixa assentar? É isso mesmo que ele quer.

– Claro – exclamou a mãe. – Tu sabes muito bem o que ele quer...

Preparou-se e apanhou o primeiro comboio para Derby, onde se encontrou com o filho e com o sargento. Todavia, os seus esforços foram infrutíferos.

Morel estava a almoçar, quando ela disse de repente:

– Tenho de ir hoje a Derby.

O mineiro levantou os olhos, muito brancos numa face toda enfarruscada.

– Ah, vais, cachopa? E o que te leva lá?

– O menino Arthur!

– Qu’aprontou ele desta vez?

– Alistou-se no exército, só isso.

Morel pousou a faca e recostou-se na cadeira.

– Não – disse ele. – Num pode ser!

– E amanhã vai para Aldershot.

– Bom – exclamou o mineiro –, iss’é qu’é já uma grand’alhada.

Morel reflectiu por um momento, disse «Hum!» e continuou a jantar. Subitamente, a face contraiu-se-lhe de raiva.

– Espero qu’ele nunca mais volte a pôr as patas nesta casa – disse ele.

– Credo! – exclamou Mrs. Morel. – Isso é lá coisa que se diga!

– É o qu’eu penso – repetiu Morel. – O doidivanas pisga-se pa ser soldado... Atão é porque já tá na hora de fazer pela vida... Comigo na conta mais.

– Falar é fácil... – disse Mrs. Morel.

Nessa noite, Morel quase sentiu vergonha de ir para a taberna.

– Então, sempre lá foi? – perguntou Paul à mãe quando chegou a casa.

– Fui.

– E viu-o?

– Vi.

– E o que disse ele?

– Ficou lavado em lágrimas quando me vim embora.

– Hum!

– E eu fiz o mesmo, portanto não precisas de fazer «Hum!».

Mrs. Morel preocupava-se com o filho, pois sabia que ele não ia gostar de estar no exército. Como de facto não gostou. A disciplina era uma coisa que ele não conseguia tolerar.

– Mas o doutor disse que ele era bem proporcionado... quase na proporção exacta, e as suas medidas eram perfeitas – disse Mrs. Morel a Paul, cheia de orgulho. – Como tu sabes, ele é bem-parecido.

– Ele é muito bem-parecido. Mas não arranja raparigas como o William, pois não?

– Não... Tem uma personalidade diferente. Sai muito ao pai: é um irresponsável.

Para consolar a mãe, Paul passou nessa altura a ir muito menos a Willey Farm. No Outono, quando se realizou no castelo a habitual exposição dos trabalhos dos alunos da escola de belas-artes, ele apresentou dois trabalhos: uma paisagem a aguarela e uma natureza morta a óleo, que obtiveram dois primeiros prémios, o que o deixou deveras emocionado.

– Mãe, que lhe parece, acha que ganhei algum prémio com as minhas pinturas? – perguntou uma noite, ao chegar a casa. Pelos seus olhos, a mãe viu que ele estava feliz, e a sua face resplandeceu.

– Como queres que eu saiba, meu filho?!

– Um primeiro prémio por aquelas jarras de vidro...

– Ena!

– E outro primeiro prémio por aquele esboço que fiz em Willey Farm.

– Um primeiro prémio para cada coisa?

– Sim, senhora.

– Hum!

Mrs. Morel parecia envolvida numa aura brilhante, cor-de-rosa, mas não disse nada.

– É bem bom, não é, mãe? – disse ele.

– É, sim.

– Oh, mãe, porque não me põe nos píncaros?

Ela riu-se.

– É que depois tinha de ter o trabalho de te puxar cá para baixo outra vez.

No entanto, toda ela vibrava de alegria. William tinha-lhe trazido sempre os seus troféus desportivos. Ela ainda os guardava, e não perdoava a morte dele. Arthur era bonito e era pelo menos um belo exemplar masculino, terno e generoso, e provavelmente o futuro acabaria por lhe sorrir. Mas Paul iria destacar-se. Ela tinha uma grande fé no filho, e mais ainda por ele não ter consciência das suas capacidades. Ele tinha tanto para dar, e a vida parecia ter muito para lhe dar também. Ela iria sentir-se realizada através do filho. A sua luta não tinha sido em vão.

Durante o período da exposição, Mrs. Morel foi várias vezes ao castelo, sem que Paul a visse. Vagueava pelo longo salão, apreciando as restantes pinturas. Sim, eram muito boas. Mas faltava-lhes qualquer coisa para que a sua satisfação fosse completa. Observava-as longamente, tentando encontrar nelas alguma falha. De repente, algo lhe fazia disparar o coração. Aquela era a pintura de Paul. Conhecia-a como se a tivesse gravada no coração.

«Nome: Paul Morel. Primeiro Prémio.»

Parecia tão estranha, ali exposta ao público, nas paredes da galeria do castelo, onde já tinha visitado tantas exposições de pintura durante toda a sua vida. E, depois, olhou em volta, tentando descobrir se alguém a tinha tornado a ver em frente ao mesmo quadro.

Não cabia em si de orgulho, e quando se cruzava com senhoras bem vestidas, pensava para consigo:

«Pois sim, vocês estão muito bem vestidas... mas duvido que os vossos filhos consigam arrebatar dois primeiros prémios na exposição no castelo.»

E seguia o seu caminho, sentindo-se mais orgulhosa do que qualquer outra mãe de Nottingham. E Paul sentia que tinha feito algo por ela, mesmo não passando de uma insignificância. Todo o seu trabalho pertencia à sua mãe.

Um dia, encontrou Miriam quando se dirigia para o castelo. Tinha-a visto no domingo e não esperava encontrá-la na cidade. Vinha com ela uma mulher loura, espampanante, de expressão carregada e porte provocador. Era estranho como Miriam, tão meditativa e reverente, parecia insignificante ao lado desta mulher de ombros deslumbrantes. Miriam fitou Paul demoradamente. O olhar dele estava pregado na desconhecida, que o ignorava. Miriam via claramente o seu instinto masculino a erguer-se altaneiro.

– Olá – disse ele. – Não me disseste que vinhas à cidade.

– Pois não – retorquiu Miriam, em ar de desculpa. Fui à Feira do Gado com o meu pai.

Paul olhou para a companheira de Miriam.

– Já te tinha falado de Mrs. Dawes – disse Miriam, com a voz estrangulada. Estava nervosa. – Clara, já conheces o Paul?

– Penso que já o vi antes – respondeu Mrs. Dawes, indiferente, enquanto o cumprimentava. Tinha uns olhos cinzento-esverdeados, displicentes, a pele era mel claro, e a boca carnuda, com o lábio superior levemente levantado, não se percebendo se de desprezo por todos os homens ou desejo de ser beijada, sendo a primeira hipótese a mais provável. Tinha a cabeça inclinada para trás, como se ela se afastasse por desdém, talvez também dos homens. Usava um chapéu enorme e deselegante, de pele escura de castor, e um vestido simples levemente afectado, que lhe conferia as linhas de um saco. Obviamente era pobre e tinha falta de gosto. Miriam andava sempre bonita.

– Onde é que me viste? – perguntou Paul à outra mulher.

Ela olhou-o como se não tivesse qualquer dúvida em responder.

E depois:

– Vi-te a passear com a Louie Travers – respondeu ela.

Louie era uma das raparigas da secção Espiral da fábrica de Mr. Jordan.

– E como é que tu a conheces? – perguntou ele.

Ela não respondeu. Paul virou-se então para Miriam.

– Para onde vais agora? – perguntou.

– Para o castelo.

– A que horas é o comboio de regresso?

– Vou regressar com o meu pai. Gostava que também viesses connosco. A que horas estás livre?

– Já sabes que nunca antes das oito, que diabo!

E as duas mulheres seguiram o seu caminho.

Paul lembrou-se de que Clara Dawes era filha de um velho amigo de Mrs. Leivers. Miriam tinha-a procurado, pois ela tinha sido em tempos supervisora da secção Espiral da Jordan, e porque o marido, um tal Baxter Dawes que era ferreiro, trabalhava para a fábrica, fazendo entre outras coisas os ferros para as próteses ortopédicas. Miriam pensou que através dela pudesse contactar directamente com a fábrica, podendo assim assegurar o emprego de Paul. Mas Mrs. Dawes estava separada do marido, e agora dedicava-se à defesa dos direitos das mulheres. Era supostamente inteligente, e isso interessava a Paul.

Paul conhecia Baxter Dawes e detestava-o. O ferreiro tinha cerca de trinta e um ou trinta e dois anos. Paul encontrava-o de vez em quando: era um homem alto e bem constituído, bem-parecido, para quem dava gosto olhar. Havia uma curiosa semelhança entre ele e a mulher. Ele tinha a mesma pele clara, de tom de dourado. O seu cabelo era castanho-claro e o bigode dourado. E exalava um desprezo semelhante, pelo porte e pela conduta. Nisto surgiu a diferença. Os seus olhos castanhos, muito escuros e astuciosos, eram imorais. Eram levemente salientes e as pálpebras sobrepunham-se de uma forma tal que lhe suscitava o ódio. A boca era também sensual. A postura evidenciava um desprezo cobarde, como se estivesse preparado para derrubar o primeiro que o censurasse... talvez porque ele próprio se censurava.

O homem odiou Paul desde o primeiro dia que o viu. Ao captar o olhar deliberado e impessoal de um artista no rosto do rapaz, enfureceu-se.

– Pa’onde é que tás’olhar? – disse ele desdenhosamente, amedrontando-o.

O rapaz desviou o olhar. O ferreiro costumava encostar-se ao balcão a conversar com Mr. Pappleworth, e a sua conversa era sempre porca e depravada. Quando sentiu novamente os olhos frios e críticos do jovem pousados nele, o ferreiro virou-se, como se tivesse sido mordido por algum bicho.

– Pa’onde é que tás’olhar, ó parvalhão? – rosnou ele.

O rapaz encolheu os ombros.

– Olha que tu...! – berrou Dawes.

– Deixa-o em paz – disse Mr. Pappleworth, naquela sua voz insinuante que parecia dizer «ele é um pobre diabo, mas não faz por mal».

Desde essa altura, Paul passou a olhar para o homem, sempre que o encontrava, com o mesmo olhar crítico e curioso, desviando o olhar antes de encontrar os olhos do ferreiro, o que deixava Dawes fora de si. E, assim, odiavam-se em silêncio.

Clara Dawes não tinha filhos. Quando deixou o marido, desfizeram a casa e ela foi viver com a mãe, enquanto Dawes passou a viver em casa da irmã. Na mesma casa vivia também uma cunhada, e Paul veio a descobrir que a tal rapariga, a Louie Travers, era agora a amante de Dawes. Era uma atrevida bonitona e insolente, que escarnecia do rapaz, mas que se empolgava toda se ele a acompanhava à estação.

A vez seguinte em que Paul foi visitar Miriam era um sábado à tarde. Ela tinha a lareira acesa na sala de visitas e estava à espera dele. Os outros tinham saído, com excepção dos pais e dos irmãos mais novos, pelo que tinham a sala de visitas só para eles. A sala era comprida, de tectos baixos e aconchegada. Na parede havia três pequenos quadros de Paul e o seu retrato estava pousado ao canto da lareira. Em cima da mesa e em cima do piano de pau-rosa, estavam jarras com folhas coloridas. Ele sentou-se na poltrona e ela ajoelhou-se no tapete aos seus pés. A luz da fogueira reflectia-se na sua cara bonita e pensativa.

– O que achaste de Mrs. Dawes? – perguntou Miriam, num tom calmo.

– Não me pareceu muito amistosa – respondeu ele.

– Lá isso não, mas não a achas elegante?

– Sim... no que diz respeito à sua altura. Mas não tem um pingo de bom gosto. Gosto de algumas coisas nela. Ela é sempre assim antipática?

– Penso que não. Penso que não anda satisfeita.

– Com o quê?

– Bem, como é que te sentirias a viver com um homem daqueles?

– Então, porque é que ela casou com ele, sabendo que o ia detestar tão rapidamente?

– Sim, porque é que ela casou com ele? – repetiu Miriam, com aspereza.

– E eu que pensei que ela fosse suficientemente forte para medir forças com ele – disse Paul.

Miriam baixou a cabeça.

– Ah, sim? – perguntou, satiricamente. E o que é que te leva a pensar isso?

– Basta olhar para a boca dela... nascida para a paixão... e a maneira como estica a garganta.

E atirou a cabeça para trás imitando o jeito provocador de Clara.

Miriam baixou ainda mais a cabeça.

– Sim – disse ela.

Fez-se silêncio durante alguns momentos, e Paul pensava em Clara.

– E o que é que te agradou nela? – continuou Miriam.

– Não sei... a pele e a textura da... da... não sei... emana dela uma certa violência... Aprecio-a apenas como artista.

– Pois.

Paul não entendia por que razão Miriam estava ali sentada no chão, meditando de uma forma tão estranha, e isso irritava-o.

– Não gostas mesmo dela, pois não? – perguntou ele à rapariga.

Ela olhou-o com os seus enormes olhos escuros, encantadores.

– Gosto – respondeu.

– Não gostas, não... não podes gostar... muito.

– E pode saber-se porquê? – perguntou ela calmamente.

– Oh, não sei... Talvez gostes dela porque ela odeia os homens.

Esta era provavelmente uma das razões pelas quais ele gostava de Mrs. Dawes, mas isso não lhe tinha ocorrido. Calaram-se. Ele franziu a testa, algo que já se estava a tornar habitual, particularmente quando estava com Miriam. Ela ansiava fazer-lhe desaparecer as rugas da testa, mas tinha medo. Parecia haver um outro homem dentro de Paul Morel, mas que não era o seu.

Algumas bagas vermelhas sobressaíam entre as folhas do vaso. Ele esticou-se e arrancou um raminho.

– Porque será que, se colocares bagas vermelhas no cabelo – disse ele – pareces uma bruxa ou uma sacerdotisa, mas nunca uma libertina.

Ela rasgou um sorriso doloroso, despojado.

– Não sei – disse.

As suas mãos fortes e quentes brincavam alegremente com as bagas.

– Porque não te ris? – disse ele. – Nunca sorris abertamente. Apenas te ris quando algo é estranho ou incongruente, e até isso parece magoar-te.

Miriam baixou a cabeça como se ele a estivesse a admoestar.

– Gostaria muito que sorrisses apenas um minuto para mim... apenas por um minuto. Sinto que isso libertaria alguma coisa dentro de ti.

– Mas... – e olhou-o com uns olhos assustados e lutadores. – ... Mas eu rio-me... sim, eu rio-me.

– Mentira, nunca te ris. Só se for por algo de muito intenso. Sempre que te ris, apetece-me chorar; parece que o teu riso transmite sofrimento. Oh, só de pensar nisso, fazes com que eu enrugue a minha alma.

– Não é minha intenção fazê-lo – disse.

– Eu sou sempre tão espiritual contigo – exclamou ele.

Ela manteve-se em silêncio, a pensar: «Então porque não és de outra forma?» E ele olhou para o seu corpo dobrado, em meditação, e pareceu dividi-lo em dois.

– Estamos no Outono – disse ele – e todas as pessoas libertam o seu espírito.

Caiu novamente o silêncio. Este estranho desentendimento entre eles despedaçava a alma de Miriam. Ele parecia tão bonito, com os seus olhos escuros e um olhar tão profundo como a nascente mais funda.

– Tornas-me tão espiritual – lamentou-se ele. – E eu não quero ser espiritual.

Ela retirou o dedo da boca com um pequeno estalido, e olhou-o em tom provocador. Mas a sua alma continuava nua nos seus olhos grandes e castanhos e o mesmo desejo ardente dominava-a. Se isso fosse possível, ele tê-la-ia beijado na pureza da abstracção. Mas ele não a podia beijar assim... e ela não parecia dar-lhe qualquer outra alternativa. E, no entanto, desejava-o.

Paul sorriu.

– Bem – disse ele –, vamos lá estudar francês... vamos ler Verlaine.

– Sim – disse ela num tom profundo, quase de resignação. Levantou-se e foi buscar os livros. As suas mãos avermelhadas e nervosas metiam dó; como ele desejava confortá-la e beijá-la!! Mas não se atrevia... ou não podia. Algo o impedia. Os seus beijos eram para ela reprováveis. Continuaram a ler até às dez horas, e depois foram para a cozinha; Paul mostrava-se de novo alegre e natural para com os pais de Miriam. Os seus olhos eram escuros e brilhantes e envolvia-o uma aura de fascinação.

Quando foi buscar a bicicleta ao celeiro descobriu que o pneu dianteiro estava furado.

– Vai-me buscar uma tigela com uma pinguinha de água – pediu ele a Miriam. – Vou chegar tarde e já sei que vou ouvir um sermão.

Acendeu a lanterna à prova do vento, despiu o casaco, virou a bicicleta ao contrário e meteu mãos à obra rapidamente. Miriam trouxe-lhe a tigela com água e ficou junto dele, observando-o. Adorava ver as mãos dele em acção. Era elegante e forte, e até os seus movimentos mais rápidos eram feitos com desembaraço. Ocupado como estava, parecia tê-la esquecido. Mas ela amava-o de uma forma absorvente, desejava poder passar as mãos ao longo do seu corpo. Sempre desejara abraçá-lo, desde que ele não a quisesse.

– Já está – disse Paul, levantando-se de repente. – Mais rápido não podia ser!

– Lá isso é verdade! – concordou ela, sorrindo.

Paul endireitou-se. Estava de costas para Miriam. Ela colocou as mãos nas ancas dele, fazendo-as deslizar rapidamente ao longo das pernas.

– És tão elegante! – disse ela.

Ele sorriu. Detestava o tom da voz dela, mas o sangue incendiou-se-lhe ao sentir o contacto das mãos. Ela, pelo contrário, parecia nem dar por ele. Era como se ele fosse um objecto, como se não se apercebesse do homem que ali estava.

Paul acendeu a luz da bicicleta, experimentou-a, bateu com ela no chão do celeiro para verificar o som dos pneus, e apertou o casaco.

– Tudo em ordem! – disse ele.

Ela experimentou os travões, pois sabia que estavam avariados.

– Já os arranjaste? – perguntou ela.

– Não!

– E porque não?

– O travão traseiro funciona mais ou menos.

– Mas não é seguro.

– Posso travar com o pé.

– Era melhor que os tivesses arranjado – murmurou ela.

– Não te preocupes... Amanhã vem tomar chá a minha casa e traz o Edgar.

– A sério?

– A sério... Por volta das quatro... Vou ter convosco.

– Combinado!

Ela estava feliz. Atravessaram o pátio às escuras até ao portão. Olhando em frente, Paul viu as cabeças de Mr. e Mrs. Leivers atrás da vidraça sem cortinas da cozinha, iluminadas pelo fulgor da lareira. O ambiente parecia muito aconchegado. À sua frente, a estrada ladeada de pinheiros abria-se escura.

– Até amanhã – disse ele, montando na bicicleta.

– Vais ter cuidado, não vais? – recomendou ela, como quem pede.

– Vou.

A voz dele soou já da escuridão. Ela deixou-se ficar mais uns instantes a ver a lanterna afastar-se e entrar na noite. Depois, voltou lentamente para casa. Orion elevava-se por cima da floresta, seguida do seu cão cintilante, meio apagado. Fora essa luz, o mundo estava mergulhado na mais densa escuridão e no silêncio, quebrado apenas pelo resfolegar do gado nos estábulos. E ela rezou com devoção pela segurança dele nessa noite. Quando ele a deixava, ficava sempre num estado de extrema ansiedade, imaginando se ele teria chegado bem a casa.

Paul deixava a bicicleta embalar pelas encostas abaixo. As estradas eram escorregadias e ele não podia meter travões. Era um prazer quando a bicicleta se precipitava pelo declive mais íngreme da colina. «Cá vou eu!», dizia ele. Era arriscado por causa da curva completamente às cegas à chegada ao vale, e das carroças dos cervejeiros com os carroceiros bêbados, a dormir. A bicicleta parecia desintegrar-se debaixo dele e Paul adorava a sensação. O descuido é a vingança de um homem sobre a mulher. Sentindo que não é devidamente apreciado, arrisca a sua própria destruição, para que ela sinta a sua falta.

Ao passar veloz pelo lago, as estrelas reflectidas na água pareciam saltar da escuridão como gafanhotos prateados. Depois surgia a longa subida até casa.

– Olha, mãe! – disse ele, atirando as bagas e as folhas para cima da mesa.

– Hum! – fez ela, olhando para a mesa e desviando o olhar. Como sempre, estava sozinha, sentada a ler.

– Não são bonitas?

– São.

Ele sabia que a mãe estava aborrecida. Passados alguns minutos disse:

– O Edgar e a Miriam vêm cá tomar chá amanhã.

A mãe não respondeu.

– Não se importa?

Ela continuou sem responder.

– Então importa-se? – perguntou ele.

– Sabes bem se me importo ou não.

– Não vejo porque se há-de importar... eu como lá tantas vezes...

– Pois comes.

– Então porque lhes recusa um chá?

– A quem é que eu recuso um chá?

– Porque é que a mãe é sempre tão difícil?

– Pronto, não digas mais nada! Convidaste-a para o chá, e isso já é o suficiente. Ela não falta.

Paul ficou muito aborrecido com a mãe. Sabia que ela não gostava de Miriam. Atirou com as botas e foi deitar-se.

Paul foi abrir a porta aos amigos no dia seguinte. Estava feliz de os ver chegar. Vieram por volta das quatro horas. Tudo estava sereno e calmo para domingo à tarde. Mrs. Morel estava sentada, com o seu vestido preto e o avental branco, mas levantou-se para receber as visitas. Foi cordial com Edgar, mas fria e muito esquiva com Miriam. Todavia, Paul achava que a rapariga estava bem bonita no seu vestido castanho de caxemira.

Ajudou a mãe a preparar o chá. Miriam ter-se-ia oferecido de agrado para ajudar, mas tinha receio. Paul tinha muito orgulho da sua casa. Havia nela uma certa distinção, pensava ele. As cadeiras eram simples, de madeira, e o sofá já velho. Mas o tapete e as almofadas eram aconchegantes; os quadros eram gravuras de bom gosto; a simplicidade dominava e havia muitos livros. Nem ele nem Miriam se envergonhavam das casas que tinham, pois eram tudo aquilo que deviam ser, e ainda acolhedoras. Então na mesa tinha grande orgulho; o serviço de chá era bonito e a toalha fina; pouco importava que as colheres não fossem de prata e nem o cabo das facas de marfim; tudo estava bonito. Mrs. Morel tinha cuidado maravilhosamente de tudo enquanto os filhos cresceram. Assim, nada se encontrava fora do lugar.

Miriam falou um pouco de livros, pois era um assunto que dominava bem. Mas Mrs. Morel não se mostrou interessada, virando-se rapidamente para Edgar.

A princípio, quando Edgar e Miriam iam à igreja, sentavam-se no banco de Mrs. Morel. Morel nunca lá ia, pois preferia a taberna. Mrs. Morel, arvorando-se em chefe da família, sentava-se numa extremidade do banco e Paul na outra extremidade; a princípio, Miriam sentava-se ao lado dele. A capela lembrava a Paul a sua casa. Era um lugar bonito, com bancos escuros e pilares estreitos e elegantes, e com muitas, muitas flores. As mesmas pessoas sentavam-se sempre nos mesmos lugares desde que ele era menino. Era bastante agradável e reconfortante estar ali sentado durante uma hora e meia, ao lado de Miriam e perto da mãe, unindo os seus dois amores sob o fascínio daquele local de culto. Sentia-se a um tempo entusiasmado, feliz e religioso. Terminada a missa, acompanhava Miriam a casa, enquanto Mrs. Morel passava o resto da tarde com a sua velha amiga Mrs. Burns. Sentia-se verdadeiramente vivo durante os passeios que dava ao domingo pela tardinha com Edgar e Miriam. Sempre que passava de noite pelas minas, pelo depósito das lanternas, todo iluminado, pelas torres altas e negras e pelas filas de vagões parados em frente das ventoinhas que giravam lentamente na escuridão, tinha a sensação intensa e quase insuportável de que Miriam voltaria para si.

Mas Miriam não ocupou por muito tempo o banco da família Morel, pois o pai arranjou novamente um outro banco. Ficava mesmo por baixo da pequena galeria, em frente ao banco dos Morels. Quando Paul e a mãe chegavam à capela, o banco dos Leivers estava sempre vazio. Ele receava que não viessem: a capela ficava muito longe e eram muitos os domingos chuvosos. Mas a dado momento, quase sempre atrasada, Miriam chegava com o seu passo amplo, cabeça baixa e face oculta pelo chapéu de veludo verde-escuro. Visto sentar-se do lado oposto, a sua cara ficava sempre na sombra, o que até o fazia sentir-se bem, pois ao vê-la ali à sua frente era como se a alma se lhe agitasse dentro do corpo. Não era o mesmo calor, a mesma alegria e o mesmo orgulho que sentia ao ter a mãe a seu lado, como chefe: era algo mais maravilhoso ainda, menos humano, um sentimento intenso temperado pela dor, algo que ele sabia que não podia alcançar.

Foi nesta altura que começou a pôr em questão a doutrina ortodoxa. Ele tinha vinte e um anos e ela vinte. Miriam receava a chegada da Primavera: ele tornava-se agressivo e magoava-a muito. Tudo o que mais queria era destruir cruelmente as crenças dela. Edgar, crítico por natureza e sem sentimentos, gostava desta situação. Mas Miriam sofria amargamente, pois o homem que amava possuía uma inteligência cortante que dissecava a religião em que ela fora criada e se movimentava, e onde habitava o seu Eu. Mas ele não a poupava e mostrava-se muito cruel. Quando estavam sozinhos, tornava-se ainda mais violento, como se quisesse matar-lhe a alma, explorando as suas crenças até ela quase perder a consciência.

– Ela regozija-se... regozija-se quando afasta o meu filho de mim – gritava Mrs. Morel do fundo do coração, quando Paul saía de casa. – Ela não é como qualquer mulher comum, que permite que eu faça parte do meu filho. Ela quer absorvê-lo. Quer tirar-mo e absorvê-lo, até que nada reste dele, nem sequer para ele próprio. Assim, ele nunca será senhor de si... ela irá sugá-lo completamente. – E Mrs. Morel sentava-se, debatendo pressentimentos e meditando tristemente.

Quando regressava dos seus passeios com Miriam, Paul vinha trespassado de sofrimento. Caminhava com passo apressado, mordendo os lábios e cerrando os punhos. Quando chegava a uma cerca, parava por alguns minutos, imobilizado. À sua frente estendia-se a escuridão sem fim; as negras encostas salpicavam-se de florescências luminosas; e, nos recônditos da noite, brilhava o clarão da mina. Tudo era estranho e ameaçador. Porque estava ele tão dilacerado, quase em êxtase, incapaz de se mover? Porque estava a mãe sentada em casa a sofrer? E sabia que ela sofria bastante. Mas porquê? E porque detestava ele Miriam e era tão cruel para ela, quando pensava na mãe? Já que Miriam fazia a mãe sofrer, ele tinha de a detestar. E com facilidade a detestava. Porque o levava ela a duvidar de si próprio, deixando-o inseguro, indefinido, como se não pudesse evitar que a noite e o espaço caíssem sobre ele? Como ele a odiava! Mas logo um ímpeto de ternura e humilhação o envolvia.

De repente, precipitava-se para casa a correr. A mãe reconhecia nele as marcas da agonia, mas nada dizia. Ele, porém, tinha de obrigá-la a falar, pois via-a zangada por ele ter ido passear com Miriam para tão longe.

– Porque é que não gosta dela, mãe? – gritou ele um dia, desesperado.

– Não sei, meu filho – respondeu ela num tom comovente. – Já tentei gostar, tentei com todas as minhas forças... mas não consigo... não consigo...

E, entre ambas, ele sentia-se triste e sem esperanças. A Primavera era a pior das estações. Ele ficava instável, enérgico e cruel. Assim, decidiu afastar-se dela. Surgiam então as horas a que ele sabia que Miriam o esperava, e a mãe apercebia-se da sua impaciência. Paul não conseguia progredir no seu trabalho, não conseguia fazer nada. Era como se algo transportasse a sua alma até Willey Farm. De repente, punha o chapéu e saía sem dizer nada. E a mãe sabia que ele tinha partido. Assim que se punha a caminho respirava de alívio. Mas, mal chegava ao pé de Miriam, tornava-se novamente cruel.

Certo dia, em Março, estava Paul deitado nas margens do lago Nethermere, com Miriam sentada a seu lado. Estava um dia resplandecente, branco e azul. Nuvens grandes e brilhantes passavam altas, e as suas sombras moviam-se silenciosas sobre a água. Os espaços abertos no céu tinham um tom glacial de azul. Paul estava deitado de costas sobre a relva, olhando o céu. Não conseguia olhar para Miriam. Ela parecia desejá-lo e ele resistia. Resistia sempre. Ela queria dar-lhe a sua paixão, a sua ternura, mas não era capaz. Ele sentia que ela não o queria; que apenas queria a sua alma. Miriam retirava-lhe as forças e a energia através de um canal que os unia. Ela não queria o corpo dele, pois nesse caso seria apenas duas pessoas, homem e mulher, em comunhão. Queria absorvê-lo completamente. E ele sentia-se estimulado por um impulso quase de loucura, que o fascinava, com um fascínio de droga.

Ele falava sobre Miguel Angelo. Ao escutá-lo, ela sentia que tocava o protoplasma da vida, as próprias células palpitantes, e a sua satisfação era plena. Mas, no final, isso assustava-a. Ali estava ele deitado, na intensidade imaculada da procura, e a sua voz amedrontava-a num crescendo, levando-a quase a tocar as raias do inumano, como se num transe.

– Não digas mais nada – pediu Miriam, com ternura, pousando a mão na testa dele. Ele permanecia estático, incapaz de se mover. O seu corpo estava de algum modo abandonado.

– Porquê... estás cansada?

– Estou, e tu também vais ficar.

Ele deu uma pequena gargalhada, apercebendo-se da situação.

– Contudo, sabe-me bem – disse ele.

– Mas não é essa a minha intenção – disse ela, muito baixinho.

– Não quando já foste longe de mais e sentes que já não és capaz de te dominar. Mas o teu eu inconsciente clama por isso. E eu suponho que também quero o mesmo.

– Então como posso evitá-lo?

– Penso que não podes, pois tu fazes sempre o mesmo. Desligas-me algures e retiras-me de mim próprio. Sinto-me como um fantasma, sem corpo.

– Não! – implorou ela.

– Agora mesmo, neste momento, olho para as minhas mãos e pergunto-me o que estão elas ali a fazer. Aquela água, por exemplo, ondula através de mim. Eu sou a ondulação. Corre através de mim e eu através dela. Não há barreiras entre nós.

– Mas...! – E Miriam hesitou.

– O que resta de mim é apenas uma consciência disseminada. Sinto que o meu corpo está deitado aqui, vazio, como se eu estivesse dentro de outras coisas... das nuvens e da água...

Ela olhou para ele e reparou naquele olhar tão estranho, como se ele fosse uma coisa e não uma pessoa, o que a fascinava tanto, mas que tanto receava. E era precisamente esse receio que a impelia a ter muito mais. Mas, agora, queria que ele parasse.

– Sabes – prosseguiu – o meu eu físico está liberto. Mas, se assim for, então eu não estou vivo. Tenho a certeza de que me destruiria. O que tu queres é pores-me gordo e banal, e não uma sombra. Queres fechar bem a minha alma dentro da sua bainha. Mas ela um destes dias libertava-se, tal como a espada que se libertou de uma bainha lassa e caiu ao mar.

Miriam meditava tristemente. Nisto, levantou a cabeça e olhou-o com os olhos muito brilhantes.

– Então deixa-me ser a tua protecção – disse ela.

E estendeu as mãos para as dele.

– Se tu pudesses... – disse ele. – Mas tu és aquilo que o teu eu inconsciente te impõe, e não aquilo que queres ser. Nenhum de nós dois é completamente normal... porém, agora eu quero sê-lo, mas penso que tu não queres. Tu queres ser algo fora do comum.

– Não, não quero – exclamou ela. Mas havia medo na sua voz.

– De qualquer forma – continuou Paul, num tom apático –, isso agora não é possível. Não me podes ter dessa maneira. Neste momento eu e tu somos apenas almas desprovidas de sangue. E isso provocaria uma vibração diferente, que se entrechocaria com este estado actual numa verdadeira tortura... Se ao menos pudesses querer-me, e não apenas quereres aquilo que eu tenho para te papaguear.

– Eu! – exclamou Miriam num tom áspero. – Eu! Quando é que eu te posso ter?

– Então a culpa é minha – disse ele, e juntando as partes dispersas do seu eu, levantou-se e começou a falar de coisas triviais. Sentia-se irreal. De uma forma vaga, detestava-a por isso. Sabia que era ele o culpado e, no entanto, isso não o impedia de a odiar.

Certa noite, na mesma época, em que Paul tinha ido levar Miriam a casa, pararam perto do prado que se estendia até à floresta, incapazes de se separarem. Assim que as estrelas surgiram, as nuvens desapareceram e eles captaram fugazmente a sua Orion, que se dirigia para oeste. As jóias de Orion brilharam por um breve instante, com o seu cão correndo rasteiro, lutando com dificuldade para atravessar a espuma de uma nuvem.

Orion era para eles a constelação mais carregada de significado. Era nela que os seus olhos se haviam fixado nos momentos mais estranhos e intensos, até sentirem que viviam em cada uma das suas estrelas. Nessa noite, Paul mostrava-se taciturno e perverso. Orion parecia-lhe apenas uma constelação, nada mais. Lutava contra o seu brilho, o seu fascínio. Miriam observava atentamente a disposição do seu amado, mas ele nada disse que o comprometesse até ao momento da partida, quando, de testa franzida, ficou parado a olhar tristemente para o castelo de nuvens, por detrás do qual a grande constelação estaria ainda a transitar.

No dia seguinte havia uma pequena festa em casa dele, para a qual Miriam estava convidada.

– Não posso vir buscar-te – disse ele.

– Não faz mal... O tempo também não está dos melhores para andar na rua... – respondeu ela serenamente.

– Não é isso... eles é que não gostam que eu venha. Dizem que me preocupo mais contigo do que com eles. E tu compreendes, não é verdade?... Tu sabes que entre nós existe apenas amizade.

Miriam ficou perplexa e com pena dele. Como lhe devia ter custado dizer aquelas palavras. Deixou-o, para lhe poupar outra humilhação. Uma chuva fina batia-lhe no rosto enquanto caminhava. Estava profundamente magoada e desprezava-o por ele se deixar levar pelo mais leve sopro de autoridade. No fundo do seu coração, sentia inconscientemente que ele tentava afastar-se dela, mas como jamais teria a coragem de o admitir, sentia pena dele.

Por esta altura, Paul tornou-se num elemento imprescindível do armazém da Jordan. Mr. Pappleworth saiu para se estabelecer por conta própria e Paul passou a supervisor da Espiral. Se tudo corresse bem, o seu salário seria aumentado para trinta xelins no final do ano.

Miriam vinha quase todas as sextas-feiras à noite para a lição de francês. Paul já não ia tão amiúde a Willey Farm, e ela receava que a sua aprendizagem estivesse prestes a terminar; por outro lado, e apesar das discórdias, gostavam de estar um com o outro. Liam Balzac, escreviam composições e sentiam-se bastante cultos.

A noite de sexta-feira era a noite de pagamento para os mineiros. Morel «repartia o bolo», ou seja, dividia os lucros da empreitada, quer no New Inn, em Bretty, quer na sua própria casa, conforme os seus companheiros preferissem. Barker tinha deixado de beber, e agora os homens «dividiam o bolo» em casa de Morel.

Annie, que tinha estado a dar aulas longe dali, regressara de novo a casa. Era ainda uma rapariga endiabrada. Estava noiva e ia casar. Paul andava a estudar desenho.

Morel estava sempre bem-disposto às sextas-feiras à noite, a não ser que os ganhos dessa semana fossem escassos. Depois do jantar, entregava-se a longos preparativos para se lavar. A decência exigia que as mulheres se ausentassem durante as reuniões masculinas. As mulheres não deviam assistir à reunião dos sócios, que era considerada assunto estritamente masculino... e nem deviam ficar a saber qual o montante exacto dos ganhos semanais. Assim, enquanto o pai barafustava na cozinha, Annie saiu e foi por uma hora para casa da vizinha, e Mrs. Morel foi à cozinha ver se o pão já estava cozido.

– Fecha a porta! – berrou Morel, furioso.

Annie bateu com a porta e saiu.

– S’ela torna a abrir a porta enquant’eu tou a tomar banho, amando-lh’um murro que lhe parto os queixos – berrou ele, ameaçador, por entre a espuma do sabão. Paul e a mãe franziram as sobrancelhas ao ouvi-lo.

Logo depois, saiu da cozinha, tremendo de frio e pingando o chão todo de água ensaboada.

– Oh, cos diabos! – disse ele. – Onde está a minha toalha?

Estava pousada numa cadeira, frente à lareira, para aquecer, pois, se assim não fosse, ele teria feito um grande estardalhaço. Aninhou-se sobre os calcanhares frente ao lume vivo, para secar.

– Brrrr... – continuou, fingindo tremer de frio.

– Ó homem, não sejas criança! – disse Mrs. Morel. – Não está frio nenhum.

– Exprimenta despires-te e tomares banho naquela cozinha – disse o mineiro, enxugando o cabelo. – Mas que gelo de casa!

– Eu não faria com certeza tanto alarido – respondeu a mulher.

– Ah, poi não. Caías redonda no chão que nem uma pedra.

– Porque é que uma pedra há-de ser mais redonda do que outra coisa qualquer? – perguntou Paul curioso.

– Essa agora... sei lá... é o que se diz – argumentou o pai. – Nesta tua cozinha há muitas correntes de ar, e quando ele passa através das costelas parece vento a passar por uma cancela de cinco traves.

– Sempre teria alguma dificuldade em passar através das tuas costelas – disse Mrs. Morel.

Morel olhou desanimado para ambos os lados do seu corpo.

– Eu! – exclamou. – Eu cá num tenho pele de coelho. Os meus ossos vêem-se no meu corpo!

– Gostaria de saber onde – retorquiu a mulher.

– Por todo o lado! Mas também num sou nenhuma carga de ossos.

Mrs. Morel deu uma gargalhada. Ele tinha um corpo ainda belo, jovem e musculado, sem gorduras. A pele era macia e clara. Poderia bem ser o corpo de um homem com vinte e oito anos, se não fossem as várias cicatrizes azuladas, semelhantes a tatuagens, onde o pó do carvão se tinha alojado, e o seu peito peludo. Morel pôs as mãos nos quadris, desanimado. Acreditava piamente que, por não engordar, era magro como um rato esfomeado.

Paul olhou para as mãos do pai, calejadas, escuras, cobertas de cicatrizes e com as unhas partidas, a esfregarem a maciez do seu corpo, e ficou admirado, pois parecia-lhe estranho serem feitas da mesma carne.

– Suponho – disse, virando-se para o pai – que antigamente tinha uma bela figura.

– Eh, olha lá o que dizes! – exclamou o mineiro, olhando em volta, espantado e tímido, como uma criança.

– Tinha uma bela figura, sim senhor! – exclamou Mrs. Morel. – O pior foi ele andar sempre aos encontrões a tudo, como se quisesse meter-se no buraco mais pequeno que encontrava.

– Eu? – exclamou Morel. – Eu, uma bela figura! Nunca passei de um esqueleto.

– Credo, homem! – gritou a mulher. – Não sejas tão piegas!

– É ve’dade – disse ele. – Tu nunca me viste qu’eu não parecesse qu’emagrecia de dia pra dia.

Mrs. Morel sentou-se e deu uma gargalhada.

– Tens um corpo de ferro – disse ela. – No tocante ao corpo, nunca nenhum homem te levou a melhor. Devias ter visto o teu pai em novo... – exclamou, de repente, virando-se para Paul e empertigando-se, para imitar a postura outrora garbosa do marido. Morel observava-a, envergonhado. Viu novamente a paixão que ela sentia por ele, e que brilhou durante alguns momentos à volta dela. Ele era tímido, assustadiço e humilde. Agora, porém, sentia de novo a velha força de outros tempos. Mas imediatamente sentiu na carne os estragos praticados ao longo de todos estes anos e só queria desaparecer, fugir de tudo.

– Lava-me as costas – pediu ele à mulher.

Ela trouxe uma toalha ensopada e ensaboada e colocou-lha sobre os ombros. Ele deu um salto.

– Oh, desgraçada! – berrou ele. – Tá gelada como a morte!

– Devias ter nascido salamandra – disse ela a rir, lavando-lhe as costas. Só raramente o ajudava nestas tarefas tão pessoais. Geralmente, eram os filhos quem fazia este tipo de coisas.

– O outro mundo não vai ser suficientemente quente para ti – acrescentou ela.

– Poi não – disse ele. – Tu vais fazer com que sopre uma aragem pra m’arrefecer.

Mas ela já tinha terminado. Enxugou-o rapidamente e subiu ao primeiro-andar, regressando em seguida com um par de calças limpas. Assim que se secou, Morel vestiu a camisola. Depois, rosado e luzidio, com o cabelo em pé e a camisola de flanela vestida por cima das calças de mineiro, aqueceu as ceroulas que ia vestir a seguir. Virou-as, pô-las do avesso e ressequiu-as.

– Oh, homem, veste-te! – exclamou Mrs. Morel.

– Queria ver se gostavas de vestir uma roupa tão fria como a água da banheira – disse ele.

Por fim, despiu as calças e vestiu-se condignamente de preto. Fez tudo isto em cima do tapete da lareira, e teria feito o mesmo se Annie e os amigos íntimos estivessem presentes.

Mrs. Morel virou o pão no forno. Depois, retirou uma mão-cheia de massa do alguidar de barro, que se encontrava a um canto da cozinha; trabalhou a massa dando-lhe a forma adequada e meteu-a numa tigela. Enquanto fazia isto, Barker bateu à porta e entrou. Era um homem baixo, compacto e calmo, que parecia capaz de atravessar um muro de pedra. O cabelo era preto e curto e a cara bem-parecida. Tal como a maioria dos mineiros, era pálido, mas saudável e rijo.

– Boa noite, ‘nha senhora – disse o homem, curvando a cabeça e sentando-se, com um suspiro.

– Boa noite – respondeu ela, cordialmente.

– Fizeste ranger os tacões – disse Morel.

– Num dei por nada – disse Barker.

Retraído, sentou-se num dos bancos da cozinha, como os colegas normalmente faziam.

– Como está a sua senhora? – perguntou-lhe Mrs. Morel. Há algum tempo, ele tinha-lhe dito: «Sabe, estamos à espera do terceiro...»

– Bem – respondeu ele, coçando a cabeça –, penso que está tão boa quanto o possível.

– Ora deixa cá ver... para quando é? – perguntou Mrs. Morel.

– Bem... penso que está para chegar a qualquer momento...

– Ah, sim? E tem passado bem?

– Sim... tudo em ordem.

– É um milagre, pois ela não é muito forte.

– É verdade. ... E eu fiz outra asneira.

– O que foi?

Mrs. Morel sabia que Barker não teria feito nada de muito errado.

– Não consegui dar co’a alcofa das compras.

– Pode levar a minha.

– Não... óspois vossemecê pode precisar.

– Não preciso, não. Levo sempre um saco de rede.

Todas as sextas-feiras à noite, Mrs. Morel via o mineiro, baixo e desembaraçado, a comprar os legumes e a carne para toda a semana, e sentia grande admiração por ele.

– O Barker pode ser baixo, mas é dez vezes mais homem do que tu – tinha dito ela ao marido.

Nisto, entrou Nessen. Apesar de pai de sete filhos, era magro, muito frágil, com uma ingenuidade de adolescente e um sorriso levemente matreiro. Mas a mulher dele era uma mulher apaixonada.

– Estou a ver que me batest’òs pontos – disse, sorrindo sem brilho.

– Pois foi – respondeu Barker.

O recém-chegado tirou o boné e o grosso cachecol de lã. Tinha um nariz pontiagudo e vermelho.

– É capaz de ter frio, Mr. Wesson – disse Mrs. Morel.

– Aqui tá um bocado de frio – respondeu.

– Então aproxime-se do lume.

– Não, tou bem aqui.

Os dois mineiros sentaram-se um pouco mais arredados. Não queriam ficar em cima do tapete da lareira, pois esse lugar era sagrado para a família.

– Senta-te no cadeirão – exclamou Morel, alegremente.

– Não, obrigado. Tou muito bem aqui.

– Ora essa, chegue-se para aqui – insistiu Mrs. Morel.

O homem levantou-se e, avançando desajeitadamente, sentou-se no cadeirão de Morel, envergonhado. Era tomar demasiada confiança. Mas estar ao pé do lume deixava-o muito feliz.

– E então como está o seu peito? – perguntou Mrs. Morel.

Ele sorriu novamente, com uns olhos azuis muito brilhantes.

– Ora, vai indo! – disse ele.

– Como um chocalho – atalhou Barker.

– T..t..t..t – fez Mrs. Morel com a língua. – Já mandou fazer a camisa de flanela?

– Ainda não – disse ele sorrindo.

– E porque não? – perguntou ela.

– Lá chegará o dia... – disse ele, sorrindo.

– Ah, o dia de São Nunca, estou a ver – exclamou Barker.

Barker e Morel preocupavam-se com Wesson, pois fisicamente eram ambos fortes que nem touros.

Quando Morel estava quase pronto, entregou o saco do dinheiro a Paul.

– Contó lá, rapaz – pediu com humildade.

Impaciente, Paul abandonou os livros e os lápis e despejou o saco para cima da mesa. Continha cinco libras em moedas de prata, várias moedas de vinte xelins e alguns trocados. Paul contou o dinheiro rapidamente, incluindo os cheques e os papéis com os totais do carvão, e pôs as moedas por ordem. Então Barker deu uma olhadela aos cheques.

Mrs. Morel subiu ao primeiro andar e os três homens sentaram-se à mesa. Morel, como dono da casa, sentou-se no seu cadeirão com as costas viradas para a lareira. Os outros dois sentaram-se em cadeiras frias. Nenhum deles contou o dinheiro.

– Quant’é que dissemos qu’era prò Simpson? – perguntou Morel. E, durante um minuto, discutiram os ganhos diários do companheiro, sendo o valor respectivo posto de lado em seguida.

– E quant’é prò Bill Naylor?

Também este valor foi retirado do saco.

E então, visto que Wesson vivia numa casa da companhia e a renda já tinha sido deduzida, Morel e Barker retiraram quatro xelins e seis dinheiros cada um. E, para compensar o carvão que Morel já tinha trazido, Barker e Wesson receberam mais quatro xelins cada. Depois, a distribuição foi simples: Morel deu a cada um uma moeda de vinte xelins, até não restar nenhuma; mais meia coroa a cada um, até não restarem mais; e ainda uma moeda de um xelim, até acabarem. Se no fim restasse alguma coisa que não pudesse ser dividida, Morel guardava esse dinheiro para pagar uma rodada de cerveja.

Finalmente, os três homens levantaram-se e saíram. Morel tratou de se escapar antes de a mulher descer. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu. Deu uma olhadela rápida ao pão que tinha no forno e, olhando para a mesa, viu o seu dinheiro. Paul tinha estado sempre embrenhado no trabalho. Mas agora apercebia-se de que a mãe, ao contar a semanada, se enfurecia.

– T..t..t – era o barulho que ela fazia com a língua.

Paul franziu a testa. Não conseguia trabalhar quando a via aborrecida. Mrs. Morel contou novamente o dinheiro.

– Uns míseros vinte e cinco xelins! – exclamou ela. – Qual era o valor do cheque?

– Dez libras e onze xelins – disse Paul, irritado. Ele receava o que estava para vir.

– E esta semana ele dá-me uma porcaria de vinte e cinco xelins, e ainda tenho de tirar o dinheiro para o clube. Eu bem o conheço... Pensa que por tu ganhares, já não precisa de sustentar a casa. Ele que coma o dinheiro, se quiser. Mas eu digo-lhe como é...

– Oh, mãe, não... – exclamou Paul.

– Não, o quê, posso saber? – disse ela.

– Não reaja assim... senão não consigo trabalhar.

Ela continuou, mas já um pouco mais calma.

– Pronto, está certo – disse ela. – Mas como é que pensas que me vou governar?

– Eu sei, mas não adianta nada piorar a situação.

– Gostava de saber o que é que farias se tivesses de aturar isto?

– Já não será por muito tempo... Vai ter o meu dinheiro não tarda, e ele que vá para o diabo.

Retomou o trabalho, e ela apertou as fitas do chapéu com desalento.

O filho não suportava vê-la assim, quando ela estava zangada. Todavia, começava agora a tentar dar-lhe isso a perceber.

– Os dois pães do tabuleiro de cima estão prontos dentro de vinte minutos – disse Mrs. Morel. – Não te esqueças.

– Está bem – respondeu ele, e Mrs. Morel saiu para o mercado.

Paul ficou sozinho a trabalhar. Mas a sua habitual concentração estava perturbada. Ouviu bater a cancela do pátio. Cerca das sete e um quarto, bateram ao de leve na porta e Miriam entrou.

– Estás sozinho? – perguntou.

– Estou.

Como se estivesse na sua própria casa, tirou a boina escocesa e o casaco comprido e pendurou-os. Ele sentiu uma tremura. Esta podia ser a casa deles, dele e dela.

Miriam aproximou-se e espreitou o que ele estava a fazer.

– O que é? – perguntou.

– Uma natureza morta... para decorar objectos e bordados.

Ela inclinou-se mais, aproximando os olhos míopes do desenho.

– E gostas do que fazes? – inquiriu.

– Adoro. Neste momento ando em maré de convencionalizar tudo.

– Ah...

Miriam não se interessava por estudos convencionais, mas reconhecia que ele devia saber mais do que ela sobre tais coisas. Eram coisas de homens, coisas que não lhe diziam respeito. No entanto, havia de descobrir a razão por que ele andava, como dizia, em maré de convencionalizar tudo. Que fascínio poderia ter para ele o convencional?

– O que é que te faz gostar disto? – perguntou ela, intrigada.

Ele, como já era seu hábito, procurou justificar-se. Lutando com as palavras, tentou explicar-lhe a teoria de que a força de gravitação é o agente mais poderoso, o factor responsável pela forma das coisas, e que, se pudesse agir em completa liberdade, apareceria uma rosa geometricamente correcta nas linhas e nas proporções... e assim por diante. Isto fez desabrochar nela um certo conceito de desenho convencional que até aí lhe parecia ser pura mentira. Por fim, ele empurrou os livros para o lado.

– Posso...? – disse ele, ansioso e hesitante.

– Podes o quê?

– Mostrar-te isto... Não era minha intenção enquanto não estivesse pronto.

Paul não conseguia esconder-lhe nada do que fazia. Foi à sala e voltou com uma trouxa de linho cru. Desembrulhou-a cautelosamente e estendeu-a no chão. Era um cortinado, ou melhor, um portière, magnificamente decorado com rosas, estampadas a stencil.

– Ah, que bonito! – exclamou ela.

O tecido espraiou-se aos pés dela, com as suas maravilhosas rosas em tons rubros e caules em verde-escuro, tudo muito simples, mas com um não sei quê de perverso. Ela ajoelhou-se, deixando pender soltos os caracóis. Ele, ao vê-la assim, voluptuosamente debruçada sobre a sua obra, sentiu bater mais depressa o coração. De repente, ela ergueu os olhos para ele.

– Porque é que isto parece tão cruel? – perguntou.

– O quê?

– Parece haver neste padrão uma certa crueldade – disse ela.

– Haja ou não haja, a mim parece-me óptimo – replicou ele, dobrando o trabalho com mãos de amante. Ela levantou-se devagar, pensativa.

– Que vais fazer com isto? – perguntou ela.

– Mandá-lo para os armazéns Liberty. Fi-lo para a minha mãe... mas acho que ela prefere o dinheiro.

– Estou a ver... – disse Miriam. Havia na voz dele um travo de amargura, e ela ficou com pena. A ela, o dinheiro jamais lhe interessaria.

Paul levou o tecido novamente para a sala, e, quando voltou, atirou a Miriam um retalho mais pequeno. Era a fronha de uma almofada, com um padrão idêntico.

– Fi-la para ti.

Miriam apalpou o trabalho com mãos trémulas, em silêncio. Paul ficou embaraçado.

– Meu Deus, o pão! – gritou ele.

Tirou os pães do tabuleiro superior e bateu-lhes vigorosamente. Já estavam cozidos. Pô-los ao lado da lareira, para arrefecerem. Em seguida, foi à copa, molhou as mãos, retirou do alguidar a massa, muito branca, que ainda restava, e colocou-a dentro de uma forma de pão. Miriam continuava debruçada sobre o tecido pintado. Enquanto isso, Paul esfregava as mãos, esforçando-se por tirar os bocadinhos de massa que se lhe tinham agarrado.

– Gostas? – perguntou ele.

Ela levantou para ele os seus olhos profundos, inflamados de amor. Ele riu-se, contrafeito. Depois começou a falar do seu desenho. Falar com Miriam sobre os trabalhos que fazia era para ele fonte do mais intenso prazer. Punha toda a sua paixão, toda a violência do seu sangue, nestas conversas com ela, em que discutia e concebia as suas obras. Ela fazia-lhe desabrochar a imaginação, embora não entendesse, como nenhuma mulher entende, quando concebe uma criança no seu ventre. Mas isto para ela, sim, era viver. E para ele também.

Enquanto conversavam, uma rapariga que andaria pelos vinte e dois anos, baixa e descorada, de olhos encovados, mas olhar determinado, entrou na sala. Era uma amiga dos Morels.

– Põe-te à vontade – disse Paul.

– Não... não me demoro.

Sentou-se no cadeirão de braços, em frente de Paul e de Miriam, que estavam no sofá. Miriam afastou-se um pouco mais de Paul. A casa estava quente e cheirava a pão acabado de fazer: os pães tostadinhos, a estalar, pousados ao lado da chaminé.

– Não esperava vir encontrar-te hoje aqui, Miriam Leivers – disse Beatrice, maldosa.

– Não sei porquê! – resmungou Miriam, asperamente.

– Porque... Ora deixa lá ver os teus sapatos.

Miriam, constrangida, não se mexeu.

– Se não sabes, não sabes, e pronto – disse Beatrice, dando uma gargalhada.

Miriam tirou os pés de baixo do vestido. As suas botas tinham aquele ar indeciso e patético que evidenciava bem o quanto ela era insegura e complexada. E estavam, além disso, cobertas de lama.

– Santa Maria!... És mêmo um monte de lama! – exclamou Beatrice. – Quem te limp’as botas?

– Limpo-as eu.

– Então não deves ter mai nada que fazer – disse a outra. – Havia de ser preciso muitos homens pra me fazerem vir ‘té’qui esta noite... Mas o amor zomba da lama... não é, ‘Póstolo, meu lindo?

– Inter alia – disse ele.

– Valha-me Deus, não me digas que te vais pôr agora a vomitar línguas estrangeiras!... O qu’é que isso quer dizer, Miriam?

– «Entre outras coisas», julgo eu – disse ela, humildemente. Beatrice riu-se maliciosamente, com a ponta da língua a despontar entre os dentes.

– «Entre outras coisas», ‘Póstolo? – repetiu ela. – Queres tu dizer qu’o amor se ri das mães e dos pais e das irmãs e dos irmãos e dos amigos e das amigas, e se calhar até do próprio ser amado?

Estava a fazer-se de ingénua.

– Na verdade, o amor é um sorriso rasgado – retorquiu ele.

– Isso é qu’era bom, ‘Póstolo Morel... Vai por mim... – disse ela.

E riu-se de novo, com malícia, muito baixinho.

Miriam continuava calada, fechada sobre si mesma. Todas as amigas de Paul adoravam meter-se com ela, e ele deixava-a entregue a si própria, como se aproveitasse para se vingar.

– Ainda continuas na mesma escola? – perguntou Miriam a Beatrice.

– Continuo.

– Então ainda não te mandaram embora?

– Devem mandar na Páscoa.

– Não achas uma pouca-vergonha... mandarem-te embora só por não teres passado no exame?!

– Não sei – ripostou Beatrice, friamente.

– A Agatha diz que és tão boa professora como as outras. A mim parece-me ridículo. Porque será que não passaste?

– Cabeça dura, hem, ‘Póstolo? – disse Beatrice, secamente.

– Só lhe serve para morder – retorquiu Paul, a rir.

– Monstro! – gritou ela, e, saltando do lugar, atirou-se a ele e deu-lhe um puxão de orelhas. As mãos dela eram pequeninas e elegantes. Ele prendeu-lhe os pulsos enquanto ela se debatia. Conseguiu por fim libertar-se e, apanhando dois punhados do cabelo dele, castanho e espesso, puxou com toda a força.

– Oh, Bea – disse ele, alisando o cabelo com os dedos. – Odeio-te.

Ela riu, consolada.

– Com licença! – disse ela. – Quero sentar-me ao pé de ti.

– Antes estar sentado ao lado duma fera – disse ele, deixando no entanto espaço para a outra se sentar entre ele e Miriam.

– Olha, ficou com o cabelinho todo despenteado! – exclamou Beatrice, penteando-o com o seu próprio pente.

– E o bigodinho também! – continuou ela. E, atirando a cabeça para trás, com um trejeito, penteou-lho.

– Tens um bigodinho todo malandro, ‘Póstolo – disse ela. – Vermelho, sinal de perigo... Ainda tens daqueles cigarros?

Paul tirou a cigarreira do bolso. Beatrice olhou.

– Já não tens nenhum daqueles charros qu’a Connie te deu? – perguntou.

– Ainda devo ter um por aí...

Procurou no bolso e encontrou uma caixinha. Beatrice pegou-lhe.

– É isso, só tens um! – disse ela. – Devia ser para a Miriam. Não queres o charro da Connie, Miriam?

– Não, obrigada – replicou Miriam. – Quem é a Connie?

– Ele não te contou? – exclamou Beatrice, surpresa. – Bem, ‘Póstolo Morel, acho que não é bonito deixar uma menina tão linda às escuras.

– Não queres mesmo fumar? – perguntou Paul a Miriam.

– Sabes bem que não – respondeu ela.

– Imaginem só, eu a fumar o último cigarro da Connie – disse Beatrice, metendo o cigarro entre os dentes. Paul estendeu-lhe um fósforo aceso e ela aspirou sofisticadamente.

– Obrigadíssima, querido – disse, trocista.

Dizer estas coisas dava-lhe um prazer perverso a que não conseguia resistir.

– Que jeitinho que ele tem, não achas, Miriam? – perguntou.

– Se tem! – disse Miriam.

Paul tirou um cigarro.

– Lume, menino? – disse Beatrice, chegando o seu cigarro ao dele.

Ele inclinou-se para a frente, para acender o cigarro no dela. Ela piscou-lhe o olho. Miriam viu os olhos dele a brilharem de malícia e os seus lábios carnudos, quase sensuais, a tremerem. Ele já não estava em si, e isso para ela era insuportável. Aquele que ali estava agora não tinha nada a ver com ela, era como se ela não existisse para ele. Via-lhe o cigarro a bailar nos lábios cheios, bem vermelhos, e odiava aquelas madeixas espessas que lhe caíam livres sobre a testa.

– Meu torrãozinho de açúcar! – disse Beatrice, levantando-lhe o queixo e dando-lhe um beijo na face.

– Agora é a minha vez, Beat – disse ele.

– Isso é que não! – disse ela, com uma risadinha, fugindo para longe. – Ele é mesmo descarado, não achas, Miriam?

– Do pior! – disse Miriam. – A propósito, não te esqueceste do pão?

– Meu Deus! – gritou Paul, abrindo a porta do forno, de onde saiu um fumo azulado e um cheiro a pão queimado.

– Céus! – gritou Beatrice, correndo para junto dele. Paul ajoelhou-se diante do forno e ela espreitou-lhe por cima do ombro. – Aí está o resultado de só pensares no amor, meu lindo.

Paul, contrito, tirava os pães do forno. Um deles estava todo preto por baixo e o outro duro que nem uma pedra.

– Pobre Mater! – disse Paul.

– Agora tens de o raspar – disse Beatrice. – Traz-me o ralador de noz-moscada.

Ela compôs os pães que ainda estavam no forno, ele trouxe-lhe o ralador e ela raspou a parte queimada em cima da mesa, para um jornal. Paul abriu as portas, para eliminar o cheiro a queimado, e Beatrice continuou a raspar o pão, fumando enquanto arrancava a crosta carbonizada da pobre carcaça.

– Ai, ai, Miriam, desta vez estás bem arranjada – disse Beatrice.

– Eu! – exclamou Miriam, espantada.

– É melhor saíres antes de a mãe dele chegar... Agora é que eu percebo porque é que o Rei Alfred queimou os bolos. Agora, sim. O ‘Póstolo inda podia dizer que se tinha esquecido por causa do trabalho, se achasse que isso ia pegar. Se a velha da lenda tivesse chegado um nadinha mais cedo, teria dado cabo das orelhas da desavergonhada que provocou o esquecimento, e não das do pobre Alfred...

E riu-se, enquanto raspava o pão. Até Miriam, não se contendo, se riu também. Paul, pesaroso, pôs mais carvão na fogueira.

Ouviu-se bater o portão do jardim.

– Depressa! – gritou Beatrice, estendendo a Paul a carcaça já raspada. – Embrulha-a numa toalha húmida.

Paul correu para a copa. Beatrice soprou apressadamente as raspadelas para a fogueira e foi sentar-se com ar inocente. Annie entrou de rompante. Era uma rapariga muito esperta e sem rodeios. A luz intensa fê-la piscar os olhos.

– Cheira-me a queimado! – exclamou.

– É dos cigarros – explicou Beatrice, muito séria.

– Onde está o Paul?

Leonard entrou logo a seguir a Annie. Tinha uma cara comprida e engraçada, e uns olhos azuis muito tristes.

– Acho que se retirou para vocês se entenderem as duas – disse ele.

Depois, cumprimentou Miriam com ar penalizado, e mostrou-se suavemente sarcástico com Beatrice.

– Nada disso – disse Beatrice. – Foi sair com a número nove.

– Olha, vi mesmo agora a número cinco, que andava à procura dele – acrescentou Leonard.

– Pois é... Nós vamos ter de o dividir como o menino de Salomão – disse Beatrice.

Annie deu uma gargalhada.

– Ah, sim? – disse Leonard. – E com que bocado queres tu ficar?

– Sei lá – disse Beatrice. – As outras que escolham primeiro.

– E tu depois ficas com os restos? – disse Leonard, fazendo uma careta.

Annie estava às voltas com o forno. Miriam estava abandonada no seu canto. Paul entrou.

– Este pão está lindo, menino Paul – disse Annie.

– Então devias ter ficado a tomar conta dele – disse Paul.

– Tu é que devias ter feito aquilo que te compete – repontou Annie.

– Devia, não devia? – exclamou Beatrice.

– Mas se calhar estava com as mãos muito ocupadas... – atalhou Leonard.

– Viste-te aflita para cá chegar, não foi, Miriam? – disse Annie.

– Se vi... Mas tinha estado metida em casa toda a semana...

– E apeteceu-te mudar, hem? – insinuou Leonard, melífluo.

– Bem, não se pode passar a vida inteira dentro de casa – disse Annie, conciliadora. Beatrice vestiu o casaco e saiu com Leonard e Annie. Ia encontrar-se com o seu rapaz.

– Não te distraias com o pão, menino Paul – gritou Annie. – Boa noite, Miriam, acho que não vai chover mais.

Depois de todos saírem, Paul foi buscar o pão queimado, desembrulhou-o e olhou para ele com desalento.

– Está uma porcaria! – disse.

– Mas qual é o problema? – disse Miriam, enfadada. – Afinal são só... dois dinheiros e meio.

– Está bem... mas trata-se do pão da minha mãe, de que ela tanto se orgulha... e ela não vai gostar nada... Mas agora já não adianta preocuparmo-nos.

Levou o pão outra vez para a copa. Instalara-se uma certa distância entre ele e Miriam. Por uns momentos, Paul hesitou diante dela, a meditar, pesando o seu comportamento com Beatrice. No fundo, sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo contente. Não sabia explicar porquê, mas achava que era bem feito para Miriam. Não era agora que se ia arrepender. Miriam pensava no que ele estaria a cogitar, ali hesitante diante dela. Madeixas de cabelo espesso caíam-lhe ainda sobre a testa. E se lho puxasse para trás, para apagar as marcas do pente de Beatrice? E se lhe apertasse o corpo entre as suas mãos? Parecia tão rijo e palpitante. Se ele deixava as outras fazerem-lhe isso, porque não ela?

De súbito, Paul voltou à vida, e Miriam quase tremeu de susto quando ele arredou os cabelos da testa e avançou para ela.

– Oito e meia! – disse ele. – É melhor irmos a isto. Onde está o teu caderno de francês?

Miriam, contrariada, mostrou-lhe timidamente o caderno de exercícios de francês. Todas as semanas lhe entregava uma espécie de diário da sua vida íntima, escrito por ela em francês. Paul descobrira que era a única maneira de a convencer a fazer composições. O diário era acima de tudo uma carta de amor. Agora, ele ia lê-lo e era como se a história da sua alma fosse ser profanada por ele, no estado em que se encontrava. Paul sentou-se ao lado dela. Ela atentou na mão dele, firme e quente, percorrendo minuciosamente o seu trabalho.

Ele lia apenas as palavras em francês, ignorando a alma que encerravam. Mas, gradualmente, a mão esqueceu a tarefa e ele continuou a ler em silêncio, e em total imobilidade. Ela estremeceu.

– «Ce matin les oiseaux m’ont éveillé» – leu ele. – «II faisait encore un crépuscule. Mais la petite fenêtre de ma chambre était blême, et puis, jaûne, et tous les oiseaux du bois éclatèrent dans un chanson vif et résonnant. Toute l’aûbe tressaillit. J’avais rêvé de vous. Est-ce que vous voyez aussi 1’aube? Les oiseaux m’éveillent presque tous les matins, et toujours il y a quelque chose de terreur dans le cri des grives. II est si clair...».2

Miriam estava sentada, a tremer, envergonhada. Ele mantinha-se imóvel, tentando compreender. Apenas percebia que ela o amava, mas tinha medo do seu amor. Era mais do que ele merecia, e ele não era digno dela. Era ele que não a amava o suficiente, e não o contrário. Envergonhado, corrigiu-lhe o trabalho, anotando os erros timidamente por cima das palavras.

– Repara – disse ele, sereno. – Quando o particípio passado é conjugado com avoir, concorda com o complemento directo sempre que este o precede.

Ela inclinou-se para a frente, para ver melhor e poder compreender. Os seus caracóis finos e soltos roçaram-lhe ao de leve na cara, e ele deu um salto como se um ferro em brasa lhe tivesse tocado. Ao vê-la debruçada sobre a página, com os lábios rubros dolorosamente entreabertos, o cabelo negro caindo em finas madeixas sobre as faces afogueadas, corada como uma romã, a respiração tornou-se-lhe ofegante. Então, ela olhou para ele: os seus olhos negros punham a nu todo o seu amor, medo e desejo. E os olhos dele, negros também, feriram os dela. Pareciam dominá-los. E ela, perdendo o domínio de si própria, ali estava exposta, amedrontada, à mercê dele. Paul sabia, porém, que antes de a poder beijar, tinha de arrancar alguma coisa de si mesmo. E, então, um sopro de ódio por ela penetrou-lhe outra vez no coração, fazendo-o retomar as suas correcções.

De súbito, ele atirou com o lápis pelo ar e precipitou-se para o forno, para virar o pão. Era brusco de mais para o gosto dela. Miriam estremeceu em violento sobressalto, e a dor que sentiu era real. Até a maneira como ele se punha de cócoras diante do forno a magoava. Pressentia alguma crueldade nos seus gestos, alguma crueldade na brusquidão com que tirava os pães das formas, atirando-os ao ar e apanhando-os na queda. Se ao menos ele fosse gentil nos movimentos, sentir-se-ia mais rica e confortada no seu íntimo. Mas, assim, era só dor o que sentia.

Paul voltou para junto dela e acabou o exercício.

– Desta vez saíste-te bem – disse ele.

Ela percebeu que ele se sentia lisonjeado com o diário, mas isso não era recompensa suficiente.

– Sim senhora, de vez em quando fazes um brilharete – disse ele. – Devias escrever poesia.

Ela ergueu a cabeça, transbordante de alegria, mas logo a abanou desalentada.

– Falta-me confiança – disse ela.

– Mas devias tentar!

Mas ela abanou a cabeça.

– Vamos ler um bocado, ou achas que já é muito tarde? – perguntou ele.

– Lá tarde, é... mas podíamos ler só um bocadinho – pediu ela.


CONTINUA

Partiriam no sábado seguinte de manhã, no comboio das sete horas. Paul sugeriu a Miriam que dormisse em casa dele, pois morava muito longe, e ela já jantou de véspera em casa dele. Estavam todos tão excitados que a vinda de Miriam até foi recebida com entusiasmo. Contudo, mal ela chegou, a família tornou-se menos expansiva e mais fechada. Paul tinha descoberto um poema de Jean Ingelow que falava em Mablethorpe, e, por isso, tinha de o mostrar a Miriam. Sem ela, o seu sentimentalismo nunca teria chegado ao ponto de ler poesia para a família ouvir. Mas agora concordavam em ouvi-lo. Miriam, sentada no sofá, escutava-o enlevada. Quando ele estava presente, ela parecia sempre presa a ele e das palavras dele. Mrs. Morel, com ciúmes, sentou-se na sua cadeirinha de baloiço para o escutar. Annie e o pai escutavam-no também; Morel tinha a cabeça mais levantada de um lado, como alguém que escuta um sermão e está consciente do mesmo. Paul espreitou por cima do livro. Tinha agora a presença de quem mais gostava. E Mrs. Morel e Annie quase competiam com Miriam, sobre qual seria a ouvinte mais atenta, a preferida dele. Paul sentia-se nos píncaros.

– Mas – interrompeu Mrs. Morel – não percebo porque é que os sinos têm que tocar A Noiva de Enderbyt...?

– É uma velha melodia que os sinos costumavam tocar como aviso contra a cheia. Penso que a tal Noiva de Enderby morreu afogada numa enchente – respondeu ele. Não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer na realidade, mas nunca se teria rebaixado ao ponto de o confessar perante o seu público feminino. Elas escutavam-no e acreditavam. Ele próprio acreditava nas coisas que dizia.

– E as pessoas sabiam o significado dessa melodia? – quis saber a mãe.

– Sim... tal e qual os escoceses quando escutam As Flores da Floresta... e quando costumavam tocar os sinos em sinal de alarme em sentido contrário.

– Ah! – exclamou Annie. – Quer dizer que os sons de um sino são sempre os mesmos quando são tocados no seu sentido correcto, ou ao contrário.

– Mas – disse ele – se começares num tom grave e subires até ao agudo... lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá! – disse ele, percorrendo a escala completa, e todos o acharam muito inteligente. Ele também. Depois, aguardando um minuto, continuou a ler o poema.

– Hum! – disse Mrs. Morel, apreciativamente, quando ele terminou. – Só espero que tudo o que se tem escrito não seja assim tão triste.

– Num consig’intender porqu’é qu’houve tantos afogamentos – disse Morel. Houve uma pausa. Annie preparou-se para levantar a mesa.

– Acho Elizabeth um belo nome – disse Miriam, em voz baixa. – «A minha nora Elizabeth...»

– Concordo – disse Paul.

– Também acho – disse a mãe. – Mas não gosto de Lizzie e abomino Liza.

Nem Paul nem Miriam achavam que Lizzie ou Liza tivessem algo a ver com o assunto.

– Ah, mas «Elizabeth»! – murmurou Miriam.

– E ainda por cima, a Rainha Elizabeth adorava que a tratassem por «Grande Eliza» – disse Paul.

– E amanhã há mais! – disse Morel, não se contendo.

Mrs. Morel e Paul deram uma gargalhada.

– Aposto que nem sapatos tinha – disse Morel, continuando com a brincadeira.

– Não seja tão insolente com uma rainha – disse Annie.

– Rainhas! – exclamou Morel. – Num pensas noutra coisa senão nas rainhas? Num fazes mai nada senão viver à grande e à francesa!

Miriam levantou-se para ajudar a lavar a loiça.

– Deixa-me ser eu a lavar a loiça – disse ela.

– Não é necessário – exclamou Annie. – Vai-te sentar. É pouca loiça.

E Miriam, que não se sentia à vontade para insistir, sentou-se a ver o livro com Paul.

Paul era o chefe do grupo... para isso, o pai não prestava. E muito ele sofreu para que o baú de latão fosse descarregado em Firsby e não em Mablethorpe. E não foi também capaz de encontrar uma carruagem com lugares. Só a genica de Mrs. Morel o conseguiu.

– Aqui! – gritou ela para um homem. – Aqui!

Paul e Annie ficaram para trás envergonhadíssimos, mas perdidos de riso.

– Quanto é a viagem até Brook Cottage? – perguntou Mrs. Morel.

– Dois xelins.

– É assim tão longe?

– Ainda é um bom bocado.

– Não acredito – disse ela.

Contudo subiu para a carruagem. Iam os oito apertados numa velha carruagem da linha costeira.

– Bem vêem – disse Mrs. Morel –, são apenas três dinheiros por pessoa, mas se fosse um eléctrico...

A viagem prosseguiu. Sempre que passavam por uma casa típica, Mrs. Morel exclamava:

– É esta?... Não, agora é que é!

Estava toda a gente morta de ansiedade. A viagem prosseguiu. Houve um suspiro em uníssono.

– Estou agradecida por não ser aquela coisa horrorosa – disse Mrs. Morel. – Estava assustada.

Passou-se ainda mais algum tempo.

– Aquela mulher repelente disse que a casa ficava a dez minutos do mar...! – exclamou Mrs. Morel.

– Pra ela uma hora deve ser um minuto – reclamou Morel.

Todos o mandaram calar.

– Será que nunca mais chegamos? – exclamou Mrs. Morel, muito alto.

– Não grite assim, mãe – disse Annie. – O que é que ele irá pensar?

Mrs. Morel olhou de um modo esquisito para o condutor, e disse:

– Não sei! Mas, pelo aspecto, penso que não pensará nada de especial.

Finalmente, desceram perto de uma casa isolada, sobre o canal que passava na estrada principal. Houve grande alvoroço quando descobriram que tinham de atravessar uma pequena ponte para chegarem ao jardim da casa. Adoraram a casa, que ficava isolada, com o mar de um lado e, do outro, uma imensa extensão de terra plana que se estendia até ao céu, e onde se distinguia o branco da cevada, o amarelo da aveia, o vermelho do trigo e o verde dos nabos.

Paul registava as despesas e ele e a mãe governavam a casa. As despesas globais, incluindo o alojamento e a alimentação ascendiam a dezasseis xelins por pessoa e por semana. De manhã, Paul e Leonard iam tomar banho ao mar. Morel saía bastante cedo para ir dar um passeio.

– Paul – chamou a mãe do quarto. – Come uma fatia de pão com manteiga.

– Está bem – respondeu ele.

Quando regressou, a mãe estava sentada à cabeceira da mesa. A dona da casa era jovem. O marido era cego e ela cuidava da roupa. Assim, Mrs. Morel lavava a loiça na cozinha e fazia as camas.

– Mas a mãe prometeu que ia fazer umas férias a sério – disse Paul – e agora está a trabalhar.

– Trabalho? – exclamou ela. – De que é que estás a falar?

Paul adorava ir passear com ela pelos campos, até à aldeia ou até ao mar. Ela tinha medo de atravessar pontes de madeira e ele acusava-a de se portar como um bebé. Era apegado à mãe como se fosse o seu marido.

Miriam raramente andava com ele – excepto, talvez, quando iam todos ouvir os Coons. Os Coons eram insuportavelmente estúpidos para Miriam e, por isso, eram-no também para Paul, que pregava sermões presunçosos a Annie sobre a perda de tempo que era irem ouvi-los. Todavia, também ele sabia todas as suas canções de cor e as cantava desbragadamente pelas ruas. E, quando reparava que os estava a ouvir, a estupidez da situação agradava-lhe imenso. Contudo dizia para Annie:

– Que porcaria!... Não há um pingo de inteligência naquilo que cantam. Ninguém que tenha mais miolos que um gafanhoto consegue aguentá-los. – E dizia a Miriam, com algum desdém, onde estavam Annie e os outros:

– Suponho que foram aos Coons.

Era ridículo ouvir Miriam trautear as canções dos Coons. Tinha um queixo talhado a direito que descia na perpendicular desde o lábio inferior até à curvatura do maxilar. Quando ela cantava, Paul achava-a parecida com um anjo triste de Botticelli, mesmo quando entoava:


«Vem pela Estrada do Amor

Vem comigo passear, falar comigo...»


Miriam só tinha Paul todo para ela quando ele desenhava, ou à noite, quando todos os outros estavam a ouvir os Coons. Ele falava-lhe então interminavelmente do seu gosto pelos planos horizontais: como é que os grandes níveis do céu e da terra significavam para ele a eternidade da vontade, tal como os arcos normandos, arredondados e em série, significavam um salto em frente da alma humana voluntariosa, não se sabe para onde; pelo contrário, as linhas perpendiculares e o arco gótico apontavam para o céu e afloravam o êxtase, perdendo-se no divino. Ele era normando, Miriam era gótica. Submissa, ela concordava com tudo o que ele dizia.

Certa tarde, ele e ela foram passear pelo extenso areal que conduzia a Theddlethorpe. As alongadas vagas quebravam-se e elevavam-se em silvos agudos de espuma ao longo da costa. A tarde estava quente e eles completamente sozinhos na imensidão da areia, a sós com o barulho do mar. Paul adorava ouvir o mar a ressoar na areia. Adorava sentir-se entre o som do mar e o silêncio do areal. Miriam estava com ele. Tudo se tornava mais intenso. Já tinha anoitecido quando regressaram. O regresso a casa fazia-se através de uma passagem nas dunas, e depois através de uma estrada pejada de ervas, rasgada entre dois diques. A aldeia estava cinzenta e calma. Por detrás das dunas soava o murmúrio do mar. Paul e Miriam caminhavam em silêncio. De repente, ele estacou. O seu sangue parecia ter-se incendiado e ele mal podia respirar. Uma enorme lua alaranjada observava-os do alto das dunas. Ele continuava parado, olhando a lua.

– Oh! – exclamou Miriam, quando a viu também.

Ele estava ali, petrificado, olhando a lua dilatada e rubra, sozinha na escuridão imensa. O seu coração batia forte e tinha os músculos dos braços contraídos.

– O que foi? – murmurou ela, esperando por ele.

Ele voltou-se e fitou-a. Ela estava ao seu lado, para sempre na escuridão. A sua face, encoberta pela sombra do chapéu, olhava-o sem que ele a visse. E ela meditava. Estava um pouco receosa... profundamente emocionada e imbuída de religiosidade. Este era o seu melhor estado de alma. Ele sentia-se impotente face a esta situação. O sangue parecia concentrar-se como uma fogueira no seu peito, mas ele não lhe conseguia transmitir o sentimento. Pareciam disparar relâmpagos do seu sangue, mas, de algum modo, ela ignorava-os. Ela esperava vê-lo atingir um estado de graça. Ainda à espera, mas meio consciente da paixão que o possuía, Miriam fitou-o, preocupada.

– O que se passa? – murmurou novamente.

– É a Lua – respondeu ele, franzindo a testa.

– Sim – concordou ela. – É maravilhosa, não é? – Ela estava intrigada. A crise tinha passado.

Ele próprio não sabia o que lhe tinha acontecido. Era ainda tão jovem e a sua intimidade tão abstracta que não se apercebeu de que desejava esmagá-la contra o peito para aliviar a dor que o trespassava. Tinha medo dela. Talvez o facto de a desejar como um homem deseja uma mulher tivesse permanecido oculto dentro dele como uma humilhação. Quando ela fugia desses pensamentos, torturando-se em extrema agitação, ele recolhia-se até ao mais recôndito da alma. E, neste momento, esta «pureza» inibia o seu primeiro beijo de amor. Era como se ela mal pudesse suportar o choque do amor físico, ou apenas um beijo apaixonado, deixando-o demasiado reprimido e sensibilizado para lho dar.

Enquanto caminhavam ao longo da negra lagoa, Paul contemplava a Lua e mantinha-se em silêncio. Miriam caminhava a seu lado devagar. Ele sentia que a odiava, pois ela parecia, de certa forma, levá-lo a autodesprezar-se. Olhando em frente, descortinou uma luz na escuridão; era a janela iluminada da sua casa.

Adorava pensar na mãe e no resto das pessoas, todos alegres.

– Bem, já todos chegaram há bastante tempo – disse a mãe quando eles entraram.

– E o que é que isso importa? – exclamou ele, irritado. Posso ir passear quando me apetecer, não posso?

– Pensei que quisesses jantar com o resto do grupo – disse Mrs. Morel.

– Tenho de agradar a mim próprio – retorquiu ele. – Não é tarde e faço o que me apetece.

– Muito bem – disse a sua mãe, sarcasticamente. – Então faz o que te apetecer!

E nessa noite não falou mais com ele. Paul fingiu não notar nem estar preocupado com o assunto, e sentou-se a ler. Miriam lia também, tentando alienar-se. Mrs. Morel detestava-a por ela pôr o filho naquele estado. Via o filho irritadiço, presumido e melancólico, e culpava Miriam.

Annie e os amigos também se voltavam contra Miriam. O único amigo de Miriam era Paul. Mas ela não se importava, pois desprezava a trivialidade de todas essas pessoas.

E Paul detestava-a, pois ela perturbava, por assim dizer, o seu bem-estar e a sua naturalidade, torturando-o com sentimentos de humilhação.

1 «Os últimos representantes de uma raça extinta.» (N. da T.)


VIII

ZANGAS DE AMOR

ARTHUR terminou o estágio e arranjou emprego na central eléctrica da mina de Minton. Ganhava muito pouco, mas tinha possibilidades de progredir. Era, porém, rebelde e impaciente. Não bebia nem tinha o vício do jogo, mas envolvia-se constantemente em rixas devido às suas reacções intempestivas. Ia caçar coelhos para a floresta, qual caçador furtivo, e passava a noite em Nottingham em vez de voltar para casa, ou então ia nadar para o canal de Bestwood e falhava os cálculos do mergulho, ficando com o peito ferido, das rochas naturais e das latas que andavam a boiar à tona.

Tinha faltado ao emprego meses a fio, e uma noite não voltou para casa.

– Sabe por onde anda o Arthur? – perguntou Paul ao pequeno-almoço.

– Não – respondeu a mãe.

– É mesmo maluco – disse Paul. – Eu já nem ligaria, se ele ao menos fizesse mesmo alguma coisa. Mas não... não consegue resistir a um jogo de cartas, ou então vai levar alguma rapariga a casa depois da patinagem, com todo o decoro... e acaba por não voltar para casa. É maluco.

– Não vejo porque seria melhor se ele fizesse mesmo alguma coisa que nos envergonhasse – disse Mrs. Morel.

– Bem... eu, pelo meu lado, passaria a respeitá-lo mais – disse Paul.

– Duvido muito – respondeu a mãe secamente.

Continuaram a tomar o pequeno-almoço.

– A mãe gosta desvairadamente dele, não gosta? – perguntou Paul.

– Porque fazes essa pergunta?

– Dizem que as mães gostam sempre mais do filho mais novo.

– Talvez... mas eu não. Não... ele irrita-me.

– E gostava que ele se portasse melhor?

– Gostava que ele mostrasse algum bom senso masculino.

Paul estava ferido e irritado. Também ele irritava a mãe frequentemente. E ela ficava triste, pois via os melhores anos a fugirem-lhe.

Estavam a acabar o pequeno-almoço, quando o carteiro lhes entregou uma carta vinda de Derby. Mrs. Morel esforçou-se para ler o endereço.

– Dê cá isso, sua pitosga! – exclamou o filho, tirando-lhe a carta da mão. Ela assustou-se e quase lhe dava uma bofetada.

– É do seu filho Arthur – informou ele.

– Mas o que vem a ser isto? – exclamou Mrs. Morel.

– «Querida mãe» – leu Paul. – «Não sei o que me deu. Quero que me venha buscar. Ontem, em vez de ir trabalhar, vim alistar-me no exército com o Jack Brendon. Ele disse que estava farto de passar a vida sentado num escritório, e eu, idiota, como já sabe que sou, resolvi vir com ele.

«Já recebi o dinheiro referente ao recrutamento, mas se me vier buscar, talvez eles me deixem ir consigo. Foi uma loucura ter feito o que fiz. Não quero ficar no exército. Querida mãe, sei que não passo de um estorvo para si, mas, se me tirar desta situação, prometo que serei mais consciente e ponderado...»

Mrs. Morel sentou-se na cadeira de baloiço.

– Vejam só! – exclamou. – Ele que assente por uns tempos!

– Também acho – disse Paul. – Ele que assente!

Fez-se silêncio. A mãe estava sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, o rosto imóvel, pensativa.

– Devo estar doente – exclamou de repente. – Doente!

– Então! – disse Paul, franzindo a testa – Não quero que se preocupe com isto, está a ouvir?

– Então queres que encare isto como uma bênção? – disse ela, de repente, virando-se para o filho.

– Agora não vai tornar isto numa tragédia, pois não? – retorquiu ele.

– Ele é maluco!... Maluquinho de todo! – gritou Mrs. Morel.

– Vai ficar todo bonito com a farda – disse Paul, para espicaçar a mãe.

Ela virou-se a ele, furiosa.

– Ah, vai? – gritou ela. – Mas não para mim!

– Devia ir para um regimento de cavalaria... Ele divertia-se à grande e nós passávamos a ser chiques.

– Chiques!... Chiques!... Muito chique, não haja dúvida!... Um soldado raso!

– Ora – disse Paul. – E o que sou eu, senão um reles escriturário?

– O que é muito mais, meu filho! – gritou a mãe, picada.

– Essa agora!

– De qualquer forma, és um homem e não uma coisa enfiada num casaco vermelho.

– Não me importava de andar enfiado num casaco vermelho... ou azul-escuro, que me ficaria melhor... se eles não me dessem muitas ordens.

Mas a mãe já não o ouvia.

– Agora que ele estava a progredir, ou poderia vir a progredir no emprego... um aborrecimento passageiro e aí vai ele... dar cabo da vida toda. Que vantagens é que tu pensas que isto lhe pode trazer?

– Vai pô-lo todo afinado! – disse Paul.

– Todo afinado!... E o que tem ele para afinar? Um soldado!... Um soldado raso!!... Nada mais do que um corpo que se mexe quando lhe dão ordens! Grande coisa!

– Não percebo porque é que isso a aborrece tanto – disse Paul.

– Não, talvez não percebas. Mas percebo eu. – E recostou-se na cadeira, de queixo apoiado numa das mãos e segurando o cotovelo com a outra, a transbordar de raiva e desilusão.

– Está a pensar ir a Derby? – perguntou Paul.

– Estou, pois.

– Não faça isso.

– Quero ver com os meus próprios olhos.

– Mas por que diabo é que não o deixa assentar? É isso mesmo que ele quer.

– Claro – exclamou a mãe. – Tu sabes muito bem o que ele quer...

Preparou-se e apanhou o primeiro comboio para Derby, onde se encontrou com o filho e com o sargento. Todavia, os seus esforços foram infrutíferos.

Morel estava a almoçar, quando ela disse de repente:

– Tenho de ir hoje a Derby.

O mineiro levantou os olhos, muito brancos numa face toda enfarruscada.

– Ah, vais, cachopa? E o que te leva lá?

– O menino Arthur!

– Qu’aprontou ele desta vez?

– Alistou-se no exército, só isso.

Morel pousou a faca e recostou-se na cadeira.

– Não – disse ele. – Num pode ser!

– E amanhã vai para Aldershot.

– Bom – exclamou o mineiro –, iss’é qu’é já uma grand’alhada.

Morel reflectiu por um momento, disse «Hum!» e continuou a jantar. Subitamente, a face contraiu-se-lhe de raiva.

– Espero qu’ele nunca mais volte a pôr as patas nesta casa – disse ele.

– Credo! – exclamou Mrs. Morel. – Isso é lá coisa que se diga!

– É o qu’eu penso – repetiu Morel. – O doidivanas pisga-se pa ser soldado... Atão é porque já tá na hora de fazer pela vida... Comigo na conta mais.

– Falar é fácil... – disse Mrs. Morel.

Nessa noite, Morel quase sentiu vergonha de ir para a taberna.

– Então, sempre lá foi? – perguntou Paul à mãe quando chegou a casa.

– Fui.

– E viu-o?

– Vi.

– E o que disse ele?

– Ficou lavado em lágrimas quando me vim embora.

– Hum!

– E eu fiz o mesmo, portanto não precisas de fazer «Hum!».

Mrs. Morel preocupava-se com o filho, pois sabia que ele não ia gostar de estar no exército. Como de facto não gostou. A disciplina era uma coisa que ele não conseguia tolerar.

– Mas o doutor disse que ele era bem proporcionado... quase na proporção exacta, e as suas medidas eram perfeitas – disse Mrs. Morel a Paul, cheia de orgulho. – Como tu sabes, ele é bem-parecido.

– Ele é muito bem-parecido. Mas não arranja raparigas como o William, pois não?

– Não... Tem uma personalidade diferente. Sai muito ao pai: é um irresponsável.

Para consolar a mãe, Paul passou nessa altura a ir muito menos a Willey Farm. No Outono, quando se realizou no castelo a habitual exposição dos trabalhos dos alunos da escola de belas-artes, ele apresentou dois trabalhos: uma paisagem a aguarela e uma natureza morta a óleo, que obtiveram dois primeiros prémios, o que o deixou deveras emocionado.

– Mãe, que lhe parece, acha que ganhei algum prémio com as minhas pinturas? – perguntou uma noite, ao chegar a casa. Pelos seus olhos, a mãe viu que ele estava feliz, e a sua face resplandeceu.

– Como queres que eu saiba, meu filho?!

– Um primeiro prémio por aquelas jarras de vidro...

– Ena!

– E outro primeiro prémio por aquele esboço que fiz em Willey Farm.

– Um primeiro prémio para cada coisa?

– Sim, senhora.

– Hum!

Mrs. Morel parecia envolvida numa aura brilhante, cor-de-rosa, mas não disse nada.

– É bem bom, não é, mãe? – disse ele.

– É, sim.

– Oh, mãe, porque não me põe nos píncaros?

Ela riu-se.

– É que depois tinha de ter o trabalho de te puxar cá para baixo outra vez.

No entanto, toda ela vibrava de alegria. William tinha-lhe trazido sempre os seus troféus desportivos. Ela ainda os guardava, e não perdoava a morte dele. Arthur era bonito e era pelo menos um belo exemplar masculino, terno e generoso, e provavelmente o futuro acabaria por lhe sorrir. Mas Paul iria destacar-se. Ela tinha uma grande fé no filho, e mais ainda por ele não ter consciência das suas capacidades. Ele tinha tanto para dar, e a vida parecia ter muito para lhe dar também. Ela iria sentir-se realizada através do filho. A sua luta não tinha sido em vão.

Durante o período da exposição, Mrs. Morel foi várias vezes ao castelo, sem que Paul a visse. Vagueava pelo longo salão, apreciando as restantes pinturas. Sim, eram muito boas. Mas faltava-lhes qualquer coisa para que a sua satisfação fosse completa. Observava-as longamente, tentando encontrar nelas alguma falha. De repente, algo lhe fazia disparar o coração. Aquela era a pintura de Paul. Conhecia-a como se a tivesse gravada no coração.

«Nome: Paul Morel. Primeiro Prémio.»

Parecia tão estranha, ali exposta ao público, nas paredes da galeria do castelo, onde já tinha visitado tantas exposições de pintura durante toda a sua vida. E, depois, olhou em volta, tentando descobrir se alguém a tinha tornado a ver em frente ao mesmo quadro.

Não cabia em si de orgulho, e quando se cruzava com senhoras bem vestidas, pensava para consigo:

«Pois sim, vocês estão muito bem vestidas... mas duvido que os vossos filhos consigam arrebatar dois primeiros prémios na exposição no castelo.»

E seguia o seu caminho, sentindo-se mais orgulhosa do que qualquer outra mãe de Nottingham. E Paul sentia que tinha feito algo por ela, mesmo não passando de uma insignificância. Todo o seu trabalho pertencia à sua mãe.

Um dia, encontrou Miriam quando se dirigia para o castelo. Tinha-a visto no domingo e não esperava encontrá-la na cidade. Vinha com ela uma mulher loura, espampanante, de expressão carregada e porte provocador. Era estranho como Miriam, tão meditativa e reverente, parecia insignificante ao lado desta mulher de ombros deslumbrantes. Miriam fitou Paul demoradamente. O olhar dele estava pregado na desconhecida, que o ignorava. Miriam via claramente o seu instinto masculino a erguer-se altaneiro.

– Olá – disse ele. – Não me disseste que vinhas à cidade.

– Pois não – retorquiu Miriam, em ar de desculpa. Fui à Feira do Gado com o meu pai.

Paul olhou para a companheira de Miriam.

– Já te tinha falado de Mrs. Dawes – disse Miriam, com a voz estrangulada. Estava nervosa. – Clara, já conheces o Paul?

– Penso que já o vi antes – respondeu Mrs. Dawes, indiferente, enquanto o cumprimentava. Tinha uns olhos cinzento-esverdeados, displicentes, a pele era mel claro, e a boca carnuda, com o lábio superior levemente levantado, não se percebendo se de desprezo por todos os homens ou desejo de ser beijada, sendo a primeira hipótese a mais provável. Tinha a cabeça inclinada para trás, como se ela se afastasse por desdém, talvez também dos homens. Usava um chapéu enorme e deselegante, de pele escura de castor, e um vestido simples levemente afectado, que lhe conferia as linhas de um saco. Obviamente era pobre e tinha falta de gosto. Miriam andava sempre bonita.

– Onde é que me viste? – perguntou Paul à outra mulher.

Ela olhou-o como se não tivesse qualquer dúvida em responder.

E depois:

– Vi-te a passear com a Louie Travers – respondeu ela.

Louie era uma das raparigas da secção Espiral da fábrica de Mr. Jordan.

– E como é que tu a conheces? – perguntou ele.

Ela não respondeu. Paul virou-se então para Miriam.

– Para onde vais agora? – perguntou.

– Para o castelo.

– A que horas é o comboio de regresso?

– Vou regressar com o meu pai. Gostava que também viesses connosco. A que horas estás livre?

– Já sabes que nunca antes das oito, que diabo!

E as duas mulheres seguiram o seu caminho.

Paul lembrou-se de que Clara Dawes era filha de um velho amigo de Mrs. Leivers. Miriam tinha-a procurado, pois ela tinha sido em tempos supervisora da secção Espiral da Jordan, e porque o marido, um tal Baxter Dawes que era ferreiro, trabalhava para a fábrica, fazendo entre outras coisas os ferros para as próteses ortopédicas. Miriam pensou que através dela pudesse contactar directamente com a fábrica, podendo assim assegurar o emprego de Paul. Mas Mrs. Dawes estava separada do marido, e agora dedicava-se à defesa dos direitos das mulheres. Era supostamente inteligente, e isso interessava a Paul.

Paul conhecia Baxter Dawes e detestava-o. O ferreiro tinha cerca de trinta e um ou trinta e dois anos. Paul encontrava-o de vez em quando: era um homem alto e bem constituído, bem-parecido, para quem dava gosto olhar. Havia uma curiosa semelhança entre ele e a mulher. Ele tinha a mesma pele clara, de tom de dourado. O seu cabelo era castanho-claro e o bigode dourado. E exalava um desprezo semelhante, pelo porte e pela conduta. Nisto surgiu a diferença. Os seus olhos castanhos, muito escuros e astuciosos, eram imorais. Eram levemente salientes e as pálpebras sobrepunham-se de uma forma tal que lhe suscitava o ódio. A boca era também sensual. A postura evidenciava um desprezo cobarde, como se estivesse preparado para derrubar o primeiro que o censurasse... talvez porque ele próprio se censurava.

O homem odiou Paul desde o primeiro dia que o viu. Ao captar o olhar deliberado e impessoal de um artista no rosto do rapaz, enfureceu-se.

– Pa’onde é que tás’olhar? – disse ele desdenhosamente, amedrontando-o.

O rapaz desviou o olhar. O ferreiro costumava encostar-se ao balcão a conversar com Mr. Pappleworth, e a sua conversa era sempre porca e depravada. Quando sentiu novamente os olhos frios e críticos do jovem pousados nele, o ferreiro virou-se, como se tivesse sido mordido por algum bicho.

– Pa’onde é que tás’olhar, ó parvalhão? – rosnou ele.

O rapaz encolheu os ombros.

– Olha que tu...! – berrou Dawes.

– Deixa-o em paz – disse Mr. Pappleworth, naquela sua voz insinuante que parecia dizer «ele é um pobre diabo, mas não faz por mal».

Desde essa altura, Paul passou a olhar para o homem, sempre que o encontrava, com o mesmo olhar crítico e curioso, desviando o olhar antes de encontrar os olhos do ferreiro, o que deixava Dawes fora de si. E, assim, odiavam-se em silêncio.

Clara Dawes não tinha filhos. Quando deixou o marido, desfizeram a casa e ela foi viver com a mãe, enquanto Dawes passou a viver em casa da irmã. Na mesma casa vivia também uma cunhada, e Paul veio a descobrir que a tal rapariga, a Louie Travers, era agora a amante de Dawes. Era uma atrevida bonitona e insolente, que escarnecia do rapaz, mas que se empolgava toda se ele a acompanhava à estação.

A vez seguinte em que Paul foi visitar Miriam era um sábado à tarde. Ela tinha a lareira acesa na sala de visitas e estava à espera dele. Os outros tinham saído, com excepção dos pais e dos irmãos mais novos, pelo que tinham a sala de visitas só para eles. A sala era comprida, de tectos baixos e aconchegada. Na parede havia três pequenos quadros de Paul e o seu retrato estava pousado ao canto da lareira. Em cima da mesa e em cima do piano de pau-rosa, estavam jarras com folhas coloridas. Ele sentou-se na poltrona e ela ajoelhou-se no tapete aos seus pés. A luz da fogueira reflectia-se na sua cara bonita e pensativa.

– O que achaste de Mrs. Dawes? – perguntou Miriam, num tom calmo.

– Não me pareceu muito amistosa – respondeu ele.

– Lá isso não, mas não a achas elegante?

– Sim... no que diz respeito à sua altura. Mas não tem um pingo de bom gosto. Gosto de algumas coisas nela. Ela é sempre assim antipática?

– Penso que não. Penso que não anda satisfeita.

– Com o quê?

– Bem, como é que te sentirias a viver com um homem daqueles?

– Então, porque é que ela casou com ele, sabendo que o ia detestar tão rapidamente?

– Sim, porque é que ela casou com ele? – repetiu Miriam, com aspereza.

– E eu que pensei que ela fosse suficientemente forte para medir forças com ele – disse Paul.

Miriam baixou a cabeça.

– Ah, sim? – perguntou, satiricamente. E o que é que te leva a pensar isso?

– Basta olhar para a boca dela... nascida para a paixão... e a maneira como estica a garganta.

E atirou a cabeça para trás imitando o jeito provocador de Clara.

Miriam baixou ainda mais a cabeça.

– Sim – disse ela.

Fez-se silêncio durante alguns momentos, e Paul pensava em Clara.

– E o que é que te agradou nela? – continuou Miriam.

– Não sei... a pele e a textura da... da... não sei... emana dela uma certa violência... Aprecio-a apenas como artista.

– Pois.

Paul não entendia por que razão Miriam estava ali sentada no chão, meditando de uma forma tão estranha, e isso irritava-o.

– Não gostas mesmo dela, pois não? – perguntou ele à rapariga.

Ela olhou-o com os seus enormes olhos escuros, encantadores.

– Gosto – respondeu.

– Não gostas, não... não podes gostar... muito.

– E pode saber-se porquê? – perguntou ela calmamente.

– Oh, não sei... Talvez gostes dela porque ela odeia os homens.

Esta era provavelmente uma das razões pelas quais ele gostava de Mrs. Dawes, mas isso não lhe tinha ocorrido. Calaram-se. Ele franziu a testa, algo que já se estava a tornar habitual, particularmente quando estava com Miriam. Ela ansiava fazer-lhe desaparecer as rugas da testa, mas tinha medo. Parecia haver um outro homem dentro de Paul Morel, mas que não era o seu.

Algumas bagas vermelhas sobressaíam entre as folhas do vaso. Ele esticou-se e arrancou um raminho.

– Porque será que, se colocares bagas vermelhas no cabelo – disse ele – pareces uma bruxa ou uma sacerdotisa, mas nunca uma libertina.

Ela rasgou um sorriso doloroso, despojado.

– Não sei – disse.

As suas mãos fortes e quentes brincavam alegremente com as bagas.

– Porque não te ris? – disse ele. – Nunca sorris abertamente. Apenas te ris quando algo é estranho ou incongruente, e até isso parece magoar-te.

Miriam baixou a cabeça como se ele a estivesse a admoestar.

– Gostaria muito que sorrisses apenas um minuto para mim... apenas por um minuto. Sinto que isso libertaria alguma coisa dentro de ti.

– Mas... – e olhou-o com uns olhos assustados e lutadores. – ... Mas eu rio-me... sim, eu rio-me.

– Mentira, nunca te ris. Só se for por algo de muito intenso. Sempre que te ris, apetece-me chorar; parece que o teu riso transmite sofrimento. Oh, só de pensar nisso, fazes com que eu enrugue a minha alma.

– Não é minha intenção fazê-lo – disse.

– Eu sou sempre tão espiritual contigo – exclamou ele.

Ela manteve-se em silêncio, a pensar: «Então porque não és de outra forma?» E ele olhou para o seu corpo dobrado, em meditação, e pareceu dividi-lo em dois.

– Estamos no Outono – disse ele – e todas as pessoas libertam o seu espírito.

Caiu novamente o silêncio. Este estranho desentendimento entre eles despedaçava a alma de Miriam. Ele parecia tão bonito, com os seus olhos escuros e um olhar tão profundo como a nascente mais funda.

– Tornas-me tão espiritual – lamentou-se ele. – E eu não quero ser espiritual.

Ela retirou o dedo da boca com um pequeno estalido, e olhou-o em tom provocador. Mas a sua alma continuava nua nos seus olhos grandes e castanhos e o mesmo desejo ardente dominava-a. Se isso fosse possível, ele tê-la-ia beijado na pureza da abstracção. Mas ele não a podia beijar assim... e ela não parecia dar-lhe qualquer outra alternativa. E, no entanto, desejava-o.

Paul sorriu.

– Bem – disse ele –, vamos lá estudar francês... vamos ler Verlaine.

– Sim – disse ela num tom profundo, quase de resignação. Levantou-se e foi buscar os livros. As suas mãos avermelhadas e nervosas metiam dó; como ele desejava confortá-la e beijá-la!! Mas não se atrevia... ou não podia. Algo o impedia. Os seus beijos eram para ela reprováveis. Continuaram a ler até às dez horas, e depois foram para a cozinha; Paul mostrava-se de novo alegre e natural para com os pais de Miriam. Os seus olhos eram escuros e brilhantes e envolvia-o uma aura de fascinação.

Quando foi buscar a bicicleta ao celeiro descobriu que o pneu dianteiro estava furado.

– Vai-me buscar uma tigela com uma pinguinha de água – pediu ele a Miriam. – Vou chegar tarde e já sei que vou ouvir um sermão.

Acendeu a lanterna à prova do vento, despiu o casaco, virou a bicicleta ao contrário e meteu mãos à obra rapidamente. Miriam trouxe-lhe a tigela com água e ficou junto dele, observando-o. Adorava ver as mãos dele em acção. Era elegante e forte, e até os seus movimentos mais rápidos eram feitos com desembaraço. Ocupado como estava, parecia tê-la esquecido. Mas ela amava-o de uma forma absorvente, desejava poder passar as mãos ao longo do seu corpo. Sempre desejara abraçá-lo, desde que ele não a quisesse.

– Já está – disse Paul, levantando-se de repente. – Mais rápido não podia ser!

– Lá isso é verdade! – concordou ela, sorrindo.

Paul endireitou-se. Estava de costas para Miriam. Ela colocou as mãos nas ancas dele, fazendo-as deslizar rapidamente ao longo das pernas.

– És tão elegante! – disse ela.

Ele sorriu. Detestava o tom da voz dela, mas o sangue incendiou-se-lhe ao sentir o contacto das mãos. Ela, pelo contrário, parecia nem dar por ele. Era como se ele fosse um objecto, como se não se apercebesse do homem que ali estava.

Paul acendeu a luz da bicicleta, experimentou-a, bateu com ela no chão do celeiro para verificar o som dos pneus, e apertou o casaco.

– Tudo em ordem! – disse ele.

Ela experimentou os travões, pois sabia que estavam avariados.

– Já os arranjaste? – perguntou ela.

– Não!

– E porque não?

– O travão traseiro funciona mais ou menos.

– Mas não é seguro.

– Posso travar com o pé.

– Era melhor que os tivesses arranjado – murmurou ela.

– Não te preocupes... Amanhã vem tomar chá a minha casa e traz o Edgar.

– A sério?

– A sério... Por volta das quatro... Vou ter convosco.

– Combinado!

Ela estava feliz. Atravessaram o pátio às escuras até ao portão. Olhando em frente, Paul viu as cabeças de Mr. e Mrs. Leivers atrás da vidraça sem cortinas da cozinha, iluminadas pelo fulgor da lareira. O ambiente parecia muito aconchegado. À sua frente, a estrada ladeada de pinheiros abria-se escura.

– Até amanhã – disse ele, montando na bicicleta.

– Vais ter cuidado, não vais? – recomendou ela, como quem pede.

– Vou.

A voz dele soou já da escuridão. Ela deixou-se ficar mais uns instantes a ver a lanterna afastar-se e entrar na noite. Depois, voltou lentamente para casa. Orion elevava-se por cima da floresta, seguida do seu cão cintilante, meio apagado. Fora essa luz, o mundo estava mergulhado na mais densa escuridão e no silêncio, quebrado apenas pelo resfolegar do gado nos estábulos. E ela rezou com devoção pela segurança dele nessa noite. Quando ele a deixava, ficava sempre num estado de extrema ansiedade, imaginando se ele teria chegado bem a casa.

Paul deixava a bicicleta embalar pelas encostas abaixo. As estradas eram escorregadias e ele não podia meter travões. Era um prazer quando a bicicleta se precipitava pelo declive mais íngreme da colina. «Cá vou eu!», dizia ele. Era arriscado por causa da curva completamente às cegas à chegada ao vale, e das carroças dos cervejeiros com os carroceiros bêbados, a dormir. A bicicleta parecia desintegrar-se debaixo dele e Paul adorava a sensação. O descuido é a vingança de um homem sobre a mulher. Sentindo que não é devidamente apreciado, arrisca a sua própria destruição, para que ela sinta a sua falta.

Ao passar veloz pelo lago, as estrelas reflectidas na água pareciam saltar da escuridão como gafanhotos prateados. Depois surgia a longa subida até casa.

– Olha, mãe! – disse ele, atirando as bagas e as folhas para cima da mesa.

– Hum! – fez ela, olhando para a mesa e desviando o olhar. Como sempre, estava sozinha, sentada a ler.

– Não são bonitas?

– São.

Ele sabia que a mãe estava aborrecida. Passados alguns minutos disse:

– O Edgar e a Miriam vêm cá tomar chá amanhã.

A mãe não respondeu.

– Não se importa?

Ela continuou sem responder.

– Então importa-se? – perguntou ele.

– Sabes bem se me importo ou não.

– Não vejo porque se há-de importar... eu como lá tantas vezes...

– Pois comes.

– Então porque lhes recusa um chá?

– A quem é que eu recuso um chá?

– Porque é que a mãe é sempre tão difícil?

– Pronto, não digas mais nada! Convidaste-a para o chá, e isso já é o suficiente. Ela não falta.

Paul ficou muito aborrecido com a mãe. Sabia que ela não gostava de Miriam. Atirou com as botas e foi deitar-se.

Paul foi abrir a porta aos amigos no dia seguinte. Estava feliz de os ver chegar. Vieram por volta das quatro horas. Tudo estava sereno e calmo para domingo à tarde. Mrs. Morel estava sentada, com o seu vestido preto e o avental branco, mas levantou-se para receber as visitas. Foi cordial com Edgar, mas fria e muito esquiva com Miriam. Todavia, Paul achava que a rapariga estava bem bonita no seu vestido castanho de caxemira.

Ajudou a mãe a preparar o chá. Miriam ter-se-ia oferecido de agrado para ajudar, mas tinha receio. Paul tinha muito orgulho da sua casa. Havia nela uma certa distinção, pensava ele. As cadeiras eram simples, de madeira, e o sofá já velho. Mas o tapete e as almofadas eram aconchegantes; os quadros eram gravuras de bom gosto; a simplicidade dominava e havia muitos livros. Nem ele nem Miriam se envergonhavam das casas que tinham, pois eram tudo aquilo que deviam ser, e ainda acolhedoras. Então na mesa tinha grande orgulho; o serviço de chá era bonito e a toalha fina; pouco importava que as colheres não fossem de prata e nem o cabo das facas de marfim; tudo estava bonito. Mrs. Morel tinha cuidado maravilhosamente de tudo enquanto os filhos cresceram. Assim, nada se encontrava fora do lugar.

Miriam falou um pouco de livros, pois era um assunto que dominava bem. Mas Mrs. Morel não se mostrou interessada, virando-se rapidamente para Edgar.

A princípio, quando Edgar e Miriam iam à igreja, sentavam-se no banco de Mrs. Morel. Morel nunca lá ia, pois preferia a taberna. Mrs. Morel, arvorando-se em chefe da família, sentava-se numa extremidade do banco e Paul na outra extremidade; a princípio, Miriam sentava-se ao lado dele. A capela lembrava a Paul a sua casa. Era um lugar bonito, com bancos escuros e pilares estreitos e elegantes, e com muitas, muitas flores. As mesmas pessoas sentavam-se sempre nos mesmos lugares desde que ele era menino. Era bastante agradável e reconfortante estar ali sentado durante uma hora e meia, ao lado de Miriam e perto da mãe, unindo os seus dois amores sob o fascínio daquele local de culto. Sentia-se a um tempo entusiasmado, feliz e religioso. Terminada a missa, acompanhava Miriam a casa, enquanto Mrs. Morel passava o resto da tarde com a sua velha amiga Mrs. Burns. Sentia-se verdadeiramente vivo durante os passeios que dava ao domingo pela tardinha com Edgar e Miriam. Sempre que passava de noite pelas minas, pelo depósito das lanternas, todo iluminado, pelas torres altas e negras e pelas filas de vagões parados em frente das ventoinhas que giravam lentamente na escuridão, tinha a sensação intensa e quase insuportável de que Miriam voltaria para si.

Mas Miriam não ocupou por muito tempo o banco da família Morel, pois o pai arranjou novamente um outro banco. Ficava mesmo por baixo da pequena galeria, em frente ao banco dos Morels. Quando Paul e a mãe chegavam à capela, o banco dos Leivers estava sempre vazio. Ele receava que não viessem: a capela ficava muito longe e eram muitos os domingos chuvosos. Mas a dado momento, quase sempre atrasada, Miriam chegava com o seu passo amplo, cabeça baixa e face oculta pelo chapéu de veludo verde-escuro. Visto sentar-se do lado oposto, a sua cara ficava sempre na sombra, o que até o fazia sentir-se bem, pois ao vê-la ali à sua frente era como se a alma se lhe agitasse dentro do corpo. Não era o mesmo calor, a mesma alegria e o mesmo orgulho que sentia ao ter a mãe a seu lado, como chefe: era algo mais maravilhoso ainda, menos humano, um sentimento intenso temperado pela dor, algo que ele sabia que não podia alcançar.

Foi nesta altura que começou a pôr em questão a doutrina ortodoxa. Ele tinha vinte e um anos e ela vinte. Miriam receava a chegada da Primavera: ele tornava-se agressivo e magoava-a muito. Tudo o que mais queria era destruir cruelmente as crenças dela. Edgar, crítico por natureza e sem sentimentos, gostava desta situação. Mas Miriam sofria amargamente, pois o homem que amava possuía uma inteligência cortante que dissecava a religião em que ela fora criada e se movimentava, e onde habitava o seu Eu. Mas ele não a poupava e mostrava-se muito cruel. Quando estavam sozinhos, tornava-se ainda mais violento, como se quisesse matar-lhe a alma, explorando as suas crenças até ela quase perder a consciência.

– Ela regozija-se... regozija-se quando afasta o meu filho de mim – gritava Mrs. Morel do fundo do coração, quando Paul saía de casa. – Ela não é como qualquer mulher comum, que permite que eu faça parte do meu filho. Ela quer absorvê-lo. Quer tirar-mo e absorvê-lo, até que nada reste dele, nem sequer para ele próprio. Assim, ele nunca será senhor de si... ela irá sugá-lo completamente. – E Mrs. Morel sentava-se, debatendo pressentimentos e meditando tristemente.

Quando regressava dos seus passeios com Miriam, Paul vinha trespassado de sofrimento. Caminhava com passo apressado, mordendo os lábios e cerrando os punhos. Quando chegava a uma cerca, parava por alguns minutos, imobilizado. À sua frente estendia-se a escuridão sem fim; as negras encostas salpicavam-se de florescências luminosas; e, nos recônditos da noite, brilhava o clarão da mina. Tudo era estranho e ameaçador. Porque estava ele tão dilacerado, quase em êxtase, incapaz de se mover? Porque estava a mãe sentada em casa a sofrer? E sabia que ela sofria bastante. Mas porquê? E porque detestava ele Miriam e era tão cruel para ela, quando pensava na mãe? Já que Miriam fazia a mãe sofrer, ele tinha de a detestar. E com facilidade a detestava. Porque o levava ela a duvidar de si próprio, deixando-o inseguro, indefinido, como se não pudesse evitar que a noite e o espaço caíssem sobre ele? Como ele a odiava! Mas logo um ímpeto de ternura e humilhação o envolvia.

De repente, precipitava-se para casa a correr. A mãe reconhecia nele as marcas da agonia, mas nada dizia. Ele, porém, tinha de obrigá-la a falar, pois via-a zangada por ele ter ido passear com Miriam para tão longe.

– Porque é que não gosta dela, mãe? – gritou ele um dia, desesperado.

– Não sei, meu filho – respondeu ela num tom comovente. – Já tentei gostar, tentei com todas as minhas forças... mas não consigo... não consigo...

E, entre ambas, ele sentia-se triste e sem esperanças. A Primavera era a pior das estações. Ele ficava instável, enérgico e cruel. Assim, decidiu afastar-se dela. Surgiam então as horas a que ele sabia que Miriam o esperava, e a mãe apercebia-se da sua impaciência. Paul não conseguia progredir no seu trabalho, não conseguia fazer nada. Era como se algo transportasse a sua alma até Willey Farm. De repente, punha o chapéu e saía sem dizer nada. E a mãe sabia que ele tinha partido. Assim que se punha a caminho respirava de alívio. Mas, mal chegava ao pé de Miriam, tornava-se novamente cruel.

Certo dia, em Março, estava Paul deitado nas margens do lago Nethermere, com Miriam sentada a seu lado. Estava um dia resplandecente, branco e azul. Nuvens grandes e brilhantes passavam altas, e as suas sombras moviam-se silenciosas sobre a água. Os espaços abertos no céu tinham um tom glacial de azul. Paul estava deitado de costas sobre a relva, olhando o céu. Não conseguia olhar para Miriam. Ela parecia desejá-lo e ele resistia. Resistia sempre. Ela queria dar-lhe a sua paixão, a sua ternura, mas não era capaz. Ele sentia que ela não o queria; que apenas queria a sua alma. Miriam retirava-lhe as forças e a energia através de um canal que os unia. Ela não queria o corpo dele, pois nesse caso seria apenas duas pessoas, homem e mulher, em comunhão. Queria absorvê-lo completamente. E ele sentia-se estimulado por um impulso quase de loucura, que o fascinava, com um fascínio de droga.

Ele falava sobre Miguel Angelo. Ao escutá-lo, ela sentia que tocava o protoplasma da vida, as próprias células palpitantes, e a sua satisfação era plena. Mas, no final, isso assustava-a. Ali estava ele deitado, na intensidade imaculada da procura, e a sua voz amedrontava-a num crescendo, levando-a quase a tocar as raias do inumano, como se num transe.

– Não digas mais nada – pediu Miriam, com ternura, pousando a mão na testa dele. Ele permanecia estático, incapaz de se mover. O seu corpo estava de algum modo abandonado.

– Porquê... estás cansada?

– Estou, e tu também vais ficar.

Ele deu uma pequena gargalhada, apercebendo-se da situação.

– Contudo, sabe-me bem – disse ele.

– Mas não é essa a minha intenção – disse ela, muito baixinho.

– Não quando já foste longe de mais e sentes que já não és capaz de te dominar. Mas o teu eu inconsciente clama por isso. E eu suponho que também quero o mesmo.

– Então como posso evitá-lo?

– Penso que não podes, pois tu fazes sempre o mesmo. Desligas-me algures e retiras-me de mim próprio. Sinto-me como um fantasma, sem corpo.

– Não! – implorou ela.

– Agora mesmo, neste momento, olho para as minhas mãos e pergunto-me o que estão elas ali a fazer. Aquela água, por exemplo, ondula através de mim. Eu sou a ondulação. Corre através de mim e eu através dela. Não há barreiras entre nós.

– Mas...! – E Miriam hesitou.

– O que resta de mim é apenas uma consciência disseminada. Sinto que o meu corpo está deitado aqui, vazio, como se eu estivesse dentro de outras coisas... das nuvens e da água...

Ela olhou para ele e reparou naquele olhar tão estranho, como se ele fosse uma coisa e não uma pessoa, o que a fascinava tanto, mas que tanto receava. E era precisamente esse receio que a impelia a ter muito mais. Mas, agora, queria que ele parasse.

– Sabes – prosseguiu – o meu eu físico está liberto. Mas, se assim for, então eu não estou vivo. Tenho a certeza de que me destruiria. O que tu queres é pores-me gordo e banal, e não uma sombra. Queres fechar bem a minha alma dentro da sua bainha. Mas ela um destes dias libertava-se, tal como a espada que se libertou de uma bainha lassa e caiu ao mar.

Miriam meditava tristemente. Nisto, levantou a cabeça e olhou-o com os olhos muito brilhantes.

– Então deixa-me ser a tua protecção – disse ela.

E estendeu as mãos para as dele.

– Se tu pudesses... – disse ele. – Mas tu és aquilo que o teu eu inconsciente te impõe, e não aquilo que queres ser. Nenhum de nós dois é completamente normal... porém, agora eu quero sê-lo, mas penso que tu não queres. Tu queres ser algo fora do comum.

– Não, não quero – exclamou ela. Mas havia medo na sua voz.

– De qualquer forma – continuou Paul, num tom apático –, isso agora não é possível. Não me podes ter dessa maneira. Neste momento eu e tu somos apenas almas desprovidas de sangue. E isso provocaria uma vibração diferente, que se entrechocaria com este estado actual numa verdadeira tortura... Se ao menos pudesses querer-me, e não apenas quereres aquilo que eu tenho para te papaguear.

– Eu! – exclamou Miriam num tom áspero. – Eu! Quando é que eu te posso ter?

– Então a culpa é minha – disse ele, e juntando as partes dispersas do seu eu, levantou-se e começou a falar de coisas triviais. Sentia-se irreal. De uma forma vaga, detestava-a por isso. Sabia que era ele o culpado e, no entanto, isso não o impedia de a odiar.

Certa noite, na mesma época, em que Paul tinha ido levar Miriam a casa, pararam perto do prado que se estendia até à floresta, incapazes de se separarem. Assim que as estrelas surgiram, as nuvens desapareceram e eles captaram fugazmente a sua Orion, que se dirigia para oeste. As jóias de Orion brilharam por um breve instante, com o seu cão correndo rasteiro, lutando com dificuldade para atravessar a espuma de uma nuvem.

Orion era para eles a constelação mais carregada de significado. Era nela que os seus olhos se haviam fixado nos momentos mais estranhos e intensos, até sentirem que viviam em cada uma das suas estrelas. Nessa noite, Paul mostrava-se taciturno e perverso. Orion parecia-lhe apenas uma constelação, nada mais. Lutava contra o seu brilho, o seu fascínio. Miriam observava atentamente a disposição do seu amado, mas ele nada disse que o comprometesse até ao momento da partida, quando, de testa franzida, ficou parado a olhar tristemente para o castelo de nuvens, por detrás do qual a grande constelação estaria ainda a transitar.

No dia seguinte havia uma pequena festa em casa dele, para a qual Miriam estava convidada.

– Não posso vir buscar-te – disse ele.

– Não faz mal... O tempo também não está dos melhores para andar na rua... – respondeu ela serenamente.

– Não é isso... eles é que não gostam que eu venha. Dizem que me preocupo mais contigo do que com eles. E tu compreendes, não é verdade?... Tu sabes que entre nós existe apenas amizade.

Miriam ficou perplexa e com pena dele. Como lhe devia ter custado dizer aquelas palavras. Deixou-o, para lhe poupar outra humilhação. Uma chuva fina batia-lhe no rosto enquanto caminhava. Estava profundamente magoada e desprezava-o por ele se deixar levar pelo mais leve sopro de autoridade. No fundo do seu coração, sentia inconscientemente que ele tentava afastar-se dela, mas como jamais teria a coragem de o admitir, sentia pena dele.

Por esta altura, Paul tornou-se num elemento imprescindível do armazém da Jordan. Mr. Pappleworth saiu para se estabelecer por conta própria e Paul passou a supervisor da Espiral. Se tudo corresse bem, o seu salário seria aumentado para trinta xelins no final do ano.

Miriam vinha quase todas as sextas-feiras à noite para a lição de francês. Paul já não ia tão amiúde a Willey Farm, e ela receava que a sua aprendizagem estivesse prestes a terminar; por outro lado, e apesar das discórdias, gostavam de estar um com o outro. Liam Balzac, escreviam composições e sentiam-se bastante cultos.

A noite de sexta-feira era a noite de pagamento para os mineiros. Morel «repartia o bolo», ou seja, dividia os lucros da empreitada, quer no New Inn, em Bretty, quer na sua própria casa, conforme os seus companheiros preferissem. Barker tinha deixado de beber, e agora os homens «dividiam o bolo» em casa de Morel.

Annie, que tinha estado a dar aulas longe dali, regressara de novo a casa. Era ainda uma rapariga endiabrada. Estava noiva e ia casar. Paul andava a estudar desenho.

Morel estava sempre bem-disposto às sextas-feiras à noite, a não ser que os ganhos dessa semana fossem escassos. Depois do jantar, entregava-se a longos preparativos para se lavar. A decência exigia que as mulheres se ausentassem durante as reuniões masculinas. As mulheres não deviam assistir à reunião dos sócios, que era considerada assunto estritamente masculino... e nem deviam ficar a saber qual o montante exacto dos ganhos semanais. Assim, enquanto o pai barafustava na cozinha, Annie saiu e foi por uma hora para casa da vizinha, e Mrs. Morel foi à cozinha ver se o pão já estava cozido.

– Fecha a porta! – berrou Morel, furioso.

Annie bateu com a porta e saiu.

– S’ela torna a abrir a porta enquant’eu tou a tomar banho, amando-lh’um murro que lhe parto os queixos – berrou ele, ameaçador, por entre a espuma do sabão. Paul e a mãe franziram as sobrancelhas ao ouvi-lo.

Logo depois, saiu da cozinha, tremendo de frio e pingando o chão todo de água ensaboada.

– Oh, cos diabos! – disse ele. – Onde está a minha toalha?

Estava pousada numa cadeira, frente à lareira, para aquecer, pois, se assim não fosse, ele teria feito um grande estardalhaço. Aninhou-se sobre os calcanhares frente ao lume vivo, para secar.

– Brrrr... – continuou, fingindo tremer de frio.

– Ó homem, não sejas criança! – disse Mrs. Morel. – Não está frio nenhum.

– Exprimenta despires-te e tomares banho naquela cozinha – disse o mineiro, enxugando o cabelo. – Mas que gelo de casa!

– Eu não faria com certeza tanto alarido – respondeu a mulher.

– Ah, poi não. Caías redonda no chão que nem uma pedra.

– Porque é que uma pedra há-de ser mais redonda do que outra coisa qualquer? – perguntou Paul curioso.

– Essa agora... sei lá... é o que se diz – argumentou o pai. – Nesta tua cozinha há muitas correntes de ar, e quando ele passa através das costelas parece vento a passar por uma cancela de cinco traves.

– Sempre teria alguma dificuldade em passar através das tuas costelas – disse Mrs. Morel.

Morel olhou desanimado para ambos os lados do seu corpo.

– Eu! – exclamou. – Eu cá num tenho pele de coelho. Os meus ossos vêem-se no meu corpo!

– Gostaria de saber onde – retorquiu a mulher.

– Por todo o lado! Mas também num sou nenhuma carga de ossos.

Mrs. Morel deu uma gargalhada. Ele tinha um corpo ainda belo, jovem e musculado, sem gorduras. A pele era macia e clara. Poderia bem ser o corpo de um homem com vinte e oito anos, se não fossem as várias cicatrizes azuladas, semelhantes a tatuagens, onde o pó do carvão se tinha alojado, e o seu peito peludo. Morel pôs as mãos nos quadris, desanimado. Acreditava piamente que, por não engordar, era magro como um rato esfomeado.

Paul olhou para as mãos do pai, calejadas, escuras, cobertas de cicatrizes e com as unhas partidas, a esfregarem a maciez do seu corpo, e ficou admirado, pois parecia-lhe estranho serem feitas da mesma carne.

– Suponho – disse, virando-se para o pai – que antigamente tinha uma bela figura.

– Eh, olha lá o que dizes! – exclamou o mineiro, olhando em volta, espantado e tímido, como uma criança.

– Tinha uma bela figura, sim senhor! – exclamou Mrs. Morel. – O pior foi ele andar sempre aos encontrões a tudo, como se quisesse meter-se no buraco mais pequeno que encontrava.

– Eu? – exclamou Morel. – Eu, uma bela figura! Nunca passei de um esqueleto.

– Credo, homem! – gritou a mulher. – Não sejas tão piegas!

– É ve’dade – disse ele. – Tu nunca me viste qu’eu não parecesse qu’emagrecia de dia pra dia.

Mrs. Morel sentou-se e deu uma gargalhada.

– Tens um corpo de ferro – disse ela. – No tocante ao corpo, nunca nenhum homem te levou a melhor. Devias ter visto o teu pai em novo... – exclamou, de repente, virando-se para Paul e empertigando-se, para imitar a postura outrora garbosa do marido. Morel observava-a, envergonhado. Viu novamente a paixão que ela sentia por ele, e que brilhou durante alguns momentos à volta dela. Ele era tímido, assustadiço e humilde. Agora, porém, sentia de novo a velha força de outros tempos. Mas imediatamente sentiu na carne os estragos praticados ao longo de todos estes anos e só queria desaparecer, fugir de tudo.

– Lava-me as costas – pediu ele à mulher.

Ela trouxe uma toalha ensopada e ensaboada e colocou-lha sobre os ombros. Ele deu um salto.

– Oh, desgraçada! – berrou ele. – Tá gelada como a morte!

– Devias ter nascido salamandra – disse ela a rir, lavando-lhe as costas. Só raramente o ajudava nestas tarefas tão pessoais. Geralmente, eram os filhos quem fazia este tipo de coisas.

– O outro mundo não vai ser suficientemente quente para ti – acrescentou ela.

– Poi não – disse ele. – Tu vais fazer com que sopre uma aragem pra m’arrefecer.

Mas ela já tinha terminado. Enxugou-o rapidamente e subiu ao primeiro-andar, regressando em seguida com um par de calças limpas. Assim que se secou, Morel vestiu a camisola. Depois, rosado e luzidio, com o cabelo em pé e a camisola de flanela vestida por cima das calças de mineiro, aqueceu as ceroulas que ia vestir a seguir. Virou-as, pô-las do avesso e ressequiu-as.

– Oh, homem, veste-te! – exclamou Mrs. Morel.

– Queria ver se gostavas de vestir uma roupa tão fria como a água da banheira – disse ele.

Por fim, despiu as calças e vestiu-se condignamente de preto. Fez tudo isto em cima do tapete da lareira, e teria feito o mesmo se Annie e os amigos íntimos estivessem presentes.

Mrs. Morel virou o pão no forno. Depois, retirou uma mão-cheia de massa do alguidar de barro, que se encontrava a um canto da cozinha; trabalhou a massa dando-lhe a forma adequada e meteu-a numa tigela. Enquanto fazia isto, Barker bateu à porta e entrou. Era um homem baixo, compacto e calmo, que parecia capaz de atravessar um muro de pedra. O cabelo era preto e curto e a cara bem-parecida. Tal como a maioria dos mineiros, era pálido, mas saudável e rijo.

– Boa noite, ‘nha senhora – disse o homem, curvando a cabeça e sentando-se, com um suspiro.

– Boa noite – respondeu ela, cordialmente.

– Fizeste ranger os tacões – disse Morel.

– Num dei por nada – disse Barker.

Retraído, sentou-se num dos bancos da cozinha, como os colegas normalmente faziam.

– Como está a sua senhora? – perguntou-lhe Mrs. Morel. Há algum tempo, ele tinha-lhe dito: «Sabe, estamos à espera do terceiro...»

– Bem – respondeu ele, coçando a cabeça –, penso que está tão boa quanto o possível.

– Ora deixa cá ver... para quando é? – perguntou Mrs. Morel.

– Bem... penso que está para chegar a qualquer momento...

– Ah, sim? E tem passado bem?

– Sim... tudo em ordem.

– É um milagre, pois ela não é muito forte.

– É verdade. ... E eu fiz outra asneira.

– O que foi?

Mrs. Morel sabia que Barker não teria feito nada de muito errado.

– Não consegui dar co’a alcofa das compras.

– Pode levar a minha.

– Não... óspois vossemecê pode precisar.

– Não preciso, não. Levo sempre um saco de rede.

Todas as sextas-feiras à noite, Mrs. Morel via o mineiro, baixo e desembaraçado, a comprar os legumes e a carne para toda a semana, e sentia grande admiração por ele.

– O Barker pode ser baixo, mas é dez vezes mais homem do que tu – tinha dito ela ao marido.

Nisto, entrou Nessen. Apesar de pai de sete filhos, era magro, muito frágil, com uma ingenuidade de adolescente e um sorriso levemente matreiro. Mas a mulher dele era uma mulher apaixonada.

– Estou a ver que me batest’òs pontos – disse, sorrindo sem brilho.

– Pois foi – respondeu Barker.

O recém-chegado tirou o boné e o grosso cachecol de lã. Tinha um nariz pontiagudo e vermelho.

– É capaz de ter frio, Mr. Wesson – disse Mrs. Morel.

– Aqui tá um bocado de frio – respondeu.

– Então aproxime-se do lume.

– Não, tou bem aqui.

Os dois mineiros sentaram-se um pouco mais arredados. Não queriam ficar em cima do tapete da lareira, pois esse lugar era sagrado para a família.

– Senta-te no cadeirão – exclamou Morel, alegremente.

– Não, obrigado. Tou muito bem aqui.

– Ora essa, chegue-se para aqui – insistiu Mrs. Morel.

O homem levantou-se e, avançando desajeitadamente, sentou-se no cadeirão de Morel, envergonhado. Era tomar demasiada confiança. Mas estar ao pé do lume deixava-o muito feliz.

– E então como está o seu peito? – perguntou Mrs. Morel.

Ele sorriu novamente, com uns olhos azuis muito brilhantes.

– Ora, vai indo! – disse ele.

– Como um chocalho – atalhou Barker.

– T..t..t..t – fez Mrs. Morel com a língua. – Já mandou fazer a camisa de flanela?

– Ainda não – disse ele sorrindo.

– E porque não? – perguntou ela.

– Lá chegará o dia... – disse ele, sorrindo.

– Ah, o dia de São Nunca, estou a ver – exclamou Barker.

Barker e Morel preocupavam-se com Wesson, pois fisicamente eram ambos fortes que nem touros.

Quando Morel estava quase pronto, entregou o saco do dinheiro a Paul.

– Contó lá, rapaz – pediu com humildade.

Impaciente, Paul abandonou os livros e os lápis e despejou o saco para cima da mesa. Continha cinco libras em moedas de prata, várias moedas de vinte xelins e alguns trocados. Paul contou o dinheiro rapidamente, incluindo os cheques e os papéis com os totais do carvão, e pôs as moedas por ordem. Então Barker deu uma olhadela aos cheques.

Mrs. Morel subiu ao primeiro andar e os três homens sentaram-se à mesa. Morel, como dono da casa, sentou-se no seu cadeirão com as costas viradas para a lareira. Os outros dois sentaram-se em cadeiras frias. Nenhum deles contou o dinheiro.

– Quant’é que dissemos qu’era prò Simpson? – perguntou Morel. E, durante um minuto, discutiram os ganhos diários do companheiro, sendo o valor respectivo posto de lado em seguida.

– E quant’é prò Bill Naylor?

Também este valor foi retirado do saco.

E então, visto que Wesson vivia numa casa da companhia e a renda já tinha sido deduzida, Morel e Barker retiraram quatro xelins e seis dinheiros cada um. E, para compensar o carvão que Morel já tinha trazido, Barker e Wesson receberam mais quatro xelins cada. Depois, a distribuição foi simples: Morel deu a cada um uma moeda de vinte xelins, até não restar nenhuma; mais meia coroa a cada um, até não restarem mais; e ainda uma moeda de um xelim, até acabarem. Se no fim restasse alguma coisa que não pudesse ser dividida, Morel guardava esse dinheiro para pagar uma rodada de cerveja.

Finalmente, os três homens levantaram-se e saíram. Morel tratou de se escapar antes de a mulher descer. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu. Deu uma olhadela rápida ao pão que tinha no forno e, olhando para a mesa, viu o seu dinheiro. Paul tinha estado sempre embrenhado no trabalho. Mas agora apercebia-se de que a mãe, ao contar a semanada, se enfurecia.

– T..t..t – era o barulho que ela fazia com a língua.

Paul franziu a testa. Não conseguia trabalhar quando a via aborrecida. Mrs. Morel contou novamente o dinheiro.

– Uns míseros vinte e cinco xelins! – exclamou ela. – Qual era o valor do cheque?

– Dez libras e onze xelins – disse Paul, irritado. Ele receava o que estava para vir.

– E esta semana ele dá-me uma porcaria de vinte e cinco xelins, e ainda tenho de tirar o dinheiro para o clube. Eu bem o conheço... Pensa que por tu ganhares, já não precisa de sustentar a casa. Ele que coma o dinheiro, se quiser. Mas eu digo-lhe como é...

– Oh, mãe, não... – exclamou Paul.

– Não, o quê, posso saber? – disse ela.

– Não reaja assim... senão não consigo trabalhar.

Ela continuou, mas já um pouco mais calma.

– Pronto, está certo – disse ela. – Mas como é que pensas que me vou governar?

– Eu sei, mas não adianta nada piorar a situação.

– Gostava de saber o que é que farias se tivesses de aturar isto?

– Já não será por muito tempo... Vai ter o meu dinheiro não tarda, e ele que vá para o diabo.

Retomou o trabalho, e ela apertou as fitas do chapéu com desalento.

O filho não suportava vê-la assim, quando ela estava zangada. Todavia, começava agora a tentar dar-lhe isso a perceber.

– Os dois pães do tabuleiro de cima estão prontos dentro de vinte minutos – disse Mrs. Morel. – Não te esqueças.

– Está bem – respondeu ele, e Mrs. Morel saiu para o mercado.

Paul ficou sozinho a trabalhar. Mas a sua habitual concentração estava perturbada. Ouviu bater a cancela do pátio. Cerca das sete e um quarto, bateram ao de leve na porta e Miriam entrou.

– Estás sozinho? – perguntou.

– Estou.

Como se estivesse na sua própria casa, tirou a boina escocesa e o casaco comprido e pendurou-os. Ele sentiu uma tremura. Esta podia ser a casa deles, dele e dela.

Miriam aproximou-se e espreitou o que ele estava a fazer.

– O que é? – perguntou.

– Uma natureza morta... para decorar objectos e bordados.

Ela inclinou-se mais, aproximando os olhos míopes do desenho.

– E gostas do que fazes? – inquiriu.

– Adoro. Neste momento ando em maré de convencionalizar tudo.

– Ah...

Miriam não se interessava por estudos convencionais, mas reconhecia que ele devia saber mais do que ela sobre tais coisas. Eram coisas de homens, coisas que não lhe diziam respeito. No entanto, havia de descobrir a razão por que ele andava, como dizia, em maré de convencionalizar tudo. Que fascínio poderia ter para ele o convencional?

– O que é que te faz gostar disto? – perguntou ela, intrigada.

Ele, como já era seu hábito, procurou justificar-se. Lutando com as palavras, tentou explicar-lhe a teoria de que a força de gravitação é o agente mais poderoso, o factor responsável pela forma das coisas, e que, se pudesse agir em completa liberdade, apareceria uma rosa geometricamente correcta nas linhas e nas proporções... e assim por diante. Isto fez desabrochar nela um certo conceito de desenho convencional que até aí lhe parecia ser pura mentira. Por fim, ele empurrou os livros para o lado.

– Posso...? – disse ele, ansioso e hesitante.

– Podes o quê?

– Mostrar-te isto... Não era minha intenção enquanto não estivesse pronto.

Paul não conseguia esconder-lhe nada do que fazia. Foi à sala e voltou com uma trouxa de linho cru. Desembrulhou-a cautelosamente e estendeu-a no chão. Era um cortinado, ou melhor, um portière, magnificamente decorado com rosas, estampadas a stencil.

– Ah, que bonito! – exclamou ela.

O tecido espraiou-se aos pés dela, com as suas maravilhosas rosas em tons rubros e caules em verde-escuro, tudo muito simples, mas com um não sei quê de perverso. Ela ajoelhou-se, deixando pender soltos os caracóis. Ele, ao vê-la assim, voluptuosamente debruçada sobre a sua obra, sentiu bater mais depressa o coração. De repente, ela ergueu os olhos para ele.

– Porque é que isto parece tão cruel? – perguntou.

– O quê?

– Parece haver neste padrão uma certa crueldade – disse ela.

– Haja ou não haja, a mim parece-me óptimo – replicou ele, dobrando o trabalho com mãos de amante. Ela levantou-se devagar, pensativa.

– Que vais fazer com isto? – perguntou ela.

– Mandá-lo para os armazéns Liberty. Fi-lo para a minha mãe... mas acho que ela prefere o dinheiro.

– Estou a ver... – disse Miriam. Havia na voz dele um travo de amargura, e ela ficou com pena. A ela, o dinheiro jamais lhe interessaria.

Paul levou o tecido novamente para a sala, e, quando voltou, atirou a Miriam um retalho mais pequeno. Era a fronha de uma almofada, com um padrão idêntico.

– Fi-la para ti.

Miriam apalpou o trabalho com mãos trémulas, em silêncio. Paul ficou embaraçado.

– Meu Deus, o pão! – gritou ele.

Tirou os pães do tabuleiro superior e bateu-lhes vigorosamente. Já estavam cozidos. Pô-los ao lado da lareira, para arrefecerem. Em seguida, foi à copa, molhou as mãos, retirou do alguidar a massa, muito branca, que ainda restava, e colocou-a dentro de uma forma de pão. Miriam continuava debruçada sobre o tecido pintado. Enquanto isso, Paul esfregava as mãos, esforçando-se por tirar os bocadinhos de massa que se lhe tinham agarrado.

– Gostas? – perguntou ele.

Ela levantou para ele os seus olhos profundos, inflamados de amor. Ele riu-se, contrafeito. Depois começou a falar do seu desenho. Falar com Miriam sobre os trabalhos que fazia era para ele fonte do mais intenso prazer. Punha toda a sua paixão, toda a violência do seu sangue, nestas conversas com ela, em que discutia e concebia as suas obras. Ela fazia-lhe desabrochar a imaginação, embora não entendesse, como nenhuma mulher entende, quando concebe uma criança no seu ventre. Mas isto para ela, sim, era viver. E para ele também.

Enquanto conversavam, uma rapariga que andaria pelos vinte e dois anos, baixa e descorada, de olhos encovados, mas olhar determinado, entrou na sala. Era uma amiga dos Morels.

– Põe-te à vontade – disse Paul.

– Não... não me demoro.

Sentou-se no cadeirão de braços, em frente de Paul e de Miriam, que estavam no sofá. Miriam afastou-se um pouco mais de Paul. A casa estava quente e cheirava a pão acabado de fazer: os pães tostadinhos, a estalar, pousados ao lado da chaminé.

– Não esperava vir encontrar-te hoje aqui, Miriam Leivers – disse Beatrice, maldosa.

– Não sei porquê! – resmungou Miriam, asperamente.

– Porque... Ora deixa lá ver os teus sapatos.

Miriam, constrangida, não se mexeu.

– Se não sabes, não sabes, e pronto – disse Beatrice, dando uma gargalhada.

Miriam tirou os pés de baixo do vestido. As suas botas tinham aquele ar indeciso e patético que evidenciava bem o quanto ela era insegura e complexada. E estavam, além disso, cobertas de lama.

– Santa Maria!... És mêmo um monte de lama! – exclamou Beatrice. – Quem te limp’as botas?

– Limpo-as eu.

– Então não deves ter mai nada que fazer – disse a outra. – Havia de ser preciso muitos homens pra me fazerem vir ‘té’qui esta noite... Mas o amor zomba da lama... não é, ‘Póstolo, meu lindo?

– Inter alia – disse ele.

– Valha-me Deus, não me digas que te vais pôr agora a vomitar línguas estrangeiras!... O qu’é que isso quer dizer, Miriam?

– «Entre outras coisas», julgo eu – disse ela, humildemente. Beatrice riu-se maliciosamente, com a ponta da língua a despontar entre os dentes.

– «Entre outras coisas», ‘Póstolo? – repetiu ela. – Queres tu dizer qu’o amor se ri das mães e dos pais e das irmãs e dos irmãos e dos amigos e das amigas, e se calhar até do próprio ser amado?

Estava a fazer-se de ingénua.

– Na verdade, o amor é um sorriso rasgado – retorquiu ele.

– Isso é qu’era bom, ‘Póstolo Morel... Vai por mim... – disse ela.

E riu-se de novo, com malícia, muito baixinho.

Miriam continuava calada, fechada sobre si mesma. Todas as amigas de Paul adoravam meter-se com ela, e ele deixava-a entregue a si própria, como se aproveitasse para se vingar.

– Ainda continuas na mesma escola? – perguntou Miriam a Beatrice.

– Continuo.

– Então ainda não te mandaram embora?

– Devem mandar na Páscoa.

– Não achas uma pouca-vergonha... mandarem-te embora só por não teres passado no exame?!

– Não sei – ripostou Beatrice, friamente.

– A Agatha diz que és tão boa professora como as outras. A mim parece-me ridículo. Porque será que não passaste?

– Cabeça dura, hem, ‘Póstolo? – disse Beatrice, secamente.

– Só lhe serve para morder – retorquiu Paul, a rir.

– Monstro! – gritou ela, e, saltando do lugar, atirou-se a ele e deu-lhe um puxão de orelhas. As mãos dela eram pequeninas e elegantes. Ele prendeu-lhe os pulsos enquanto ela se debatia. Conseguiu por fim libertar-se e, apanhando dois punhados do cabelo dele, castanho e espesso, puxou com toda a força.

– Oh, Bea – disse ele, alisando o cabelo com os dedos. – Odeio-te.

Ela riu, consolada.

– Com licença! – disse ela. – Quero sentar-me ao pé de ti.

– Antes estar sentado ao lado duma fera – disse ele, deixando no entanto espaço para a outra se sentar entre ele e Miriam.

– Olha, ficou com o cabelinho todo despenteado! – exclamou Beatrice, penteando-o com o seu próprio pente.

– E o bigodinho também! – continuou ela. E, atirando a cabeça para trás, com um trejeito, penteou-lho.

– Tens um bigodinho todo malandro, ‘Póstolo – disse ela. – Vermelho, sinal de perigo... Ainda tens daqueles cigarros?

Paul tirou a cigarreira do bolso. Beatrice olhou.

– Já não tens nenhum daqueles charros qu’a Connie te deu? – perguntou.

– Ainda devo ter um por aí...

Procurou no bolso e encontrou uma caixinha. Beatrice pegou-lhe.

– É isso, só tens um! – disse ela. – Devia ser para a Miriam. Não queres o charro da Connie, Miriam?

– Não, obrigada – replicou Miriam. – Quem é a Connie?

– Ele não te contou? – exclamou Beatrice, surpresa. – Bem, ‘Póstolo Morel, acho que não é bonito deixar uma menina tão linda às escuras.

– Não queres mesmo fumar? – perguntou Paul a Miriam.

– Sabes bem que não – respondeu ela.

– Imaginem só, eu a fumar o último cigarro da Connie – disse Beatrice, metendo o cigarro entre os dentes. Paul estendeu-lhe um fósforo aceso e ela aspirou sofisticadamente.

– Obrigadíssima, querido – disse, trocista.

Dizer estas coisas dava-lhe um prazer perverso a que não conseguia resistir.

– Que jeitinho que ele tem, não achas, Miriam? – perguntou.

– Se tem! – disse Miriam.

Paul tirou um cigarro.

– Lume, menino? – disse Beatrice, chegando o seu cigarro ao dele.

Ele inclinou-se para a frente, para acender o cigarro no dela. Ela piscou-lhe o olho. Miriam viu os olhos dele a brilharem de malícia e os seus lábios carnudos, quase sensuais, a tremerem. Ele já não estava em si, e isso para ela era insuportável. Aquele que ali estava agora não tinha nada a ver com ela, era como se ela não existisse para ele. Via-lhe o cigarro a bailar nos lábios cheios, bem vermelhos, e odiava aquelas madeixas espessas que lhe caíam livres sobre a testa.

– Meu torrãozinho de açúcar! – disse Beatrice, levantando-lhe o queixo e dando-lhe um beijo na face.

– Agora é a minha vez, Beat – disse ele.

– Isso é que não! – disse ela, com uma risadinha, fugindo para longe. – Ele é mesmo descarado, não achas, Miriam?

– Do pior! – disse Miriam. – A propósito, não te esqueceste do pão?

– Meu Deus! – gritou Paul, abrindo a porta do forno, de onde saiu um fumo azulado e um cheiro a pão queimado.

– Céus! – gritou Beatrice, correndo para junto dele. Paul ajoelhou-se diante do forno e ela espreitou-lhe por cima do ombro. – Aí está o resultado de só pensares no amor, meu lindo.

Paul, contrito, tirava os pães do forno. Um deles estava todo preto por baixo e o outro duro que nem uma pedra.

– Pobre Mater! – disse Paul.

– Agora tens de o raspar – disse Beatrice. – Traz-me o ralador de noz-moscada.

Ela compôs os pães que ainda estavam no forno, ele trouxe-lhe o ralador e ela raspou a parte queimada em cima da mesa, para um jornal. Paul abriu as portas, para eliminar o cheiro a queimado, e Beatrice continuou a raspar o pão, fumando enquanto arrancava a crosta carbonizada da pobre carcaça.

– Ai, ai, Miriam, desta vez estás bem arranjada – disse Beatrice.

– Eu! – exclamou Miriam, espantada.

– É melhor saíres antes de a mãe dele chegar... Agora é que eu percebo porque é que o Rei Alfred queimou os bolos. Agora, sim. O ‘Póstolo inda podia dizer que se tinha esquecido por causa do trabalho, se achasse que isso ia pegar. Se a velha da lenda tivesse chegado um nadinha mais cedo, teria dado cabo das orelhas da desavergonhada que provocou o esquecimento, e não das do pobre Alfred...

E riu-se, enquanto raspava o pão. Até Miriam, não se contendo, se riu também. Paul, pesaroso, pôs mais carvão na fogueira.

Ouviu-se bater o portão do jardim.

– Depressa! – gritou Beatrice, estendendo a Paul a carcaça já raspada. – Embrulha-a numa toalha húmida.

Paul correu para a copa. Beatrice soprou apressadamente as raspadelas para a fogueira e foi sentar-se com ar inocente. Annie entrou de rompante. Era uma rapariga muito esperta e sem rodeios. A luz intensa fê-la piscar os olhos.

– Cheira-me a queimado! – exclamou.

– É dos cigarros – explicou Beatrice, muito séria.

– Onde está o Paul?

Leonard entrou logo a seguir a Annie. Tinha uma cara comprida e engraçada, e uns olhos azuis muito tristes.

– Acho que se retirou para vocês se entenderem as duas – disse ele.

Depois, cumprimentou Miriam com ar penalizado, e mostrou-se suavemente sarcástico com Beatrice.

– Nada disso – disse Beatrice. – Foi sair com a número nove.

– Olha, vi mesmo agora a número cinco, que andava à procura dele – acrescentou Leonard.

– Pois é... Nós vamos ter de o dividir como o menino de Salomão – disse Beatrice.

Annie deu uma gargalhada.

– Ah, sim? – disse Leonard. – E com que bocado queres tu ficar?

– Sei lá – disse Beatrice. – As outras que escolham primeiro.

– E tu depois ficas com os restos? – disse Leonard, fazendo uma careta.

Annie estava às voltas com o forno. Miriam estava abandonada no seu canto. Paul entrou.

– Este pão está lindo, menino Paul – disse Annie.

– Então devias ter ficado a tomar conta dele – disse Paul.

– Tu é que devias ter feito aquilo que te compete – repontou Annie.

– Devia, não devia? – exclamou Beatrice.

– Mas se calhar estava com as mãos muito ocupadas... – atalhou Leonard.

– Viste-te aflita para cá chegar, não foi, Miriam? – disse Annie.

– Se vi... Mas tinha estado metida em casa toda a semana...

– E apeteceu-te mudar, hem? – insinuou Leonard, melífluo.

– Bem, não se pode passar a vida inteira dentro de casa – disse Annie, conciliadora. Beatrice vestiu o casaco e saiu com Leonard e Annie. Ia encontrar-se com o seu rapaz.

– Não te distraias com o pão, menino Paul – gritou Annie. – Boa noite, Miriam, acho que não vai chover mais.

Depois de todos saírem, Paul foi buscar o pão queimado, desembrulhou-o e olhou para ele com desalento.

– Está uma porcaria! – disse.

– Mas qual é o problema? – disse Miriam, enfadada. – Afinal são só... dois dinheiros e meio.

– Está bem... mas trata-se do pão da minha mãe, de que ela tanto se orgulha... e ela não vai gostar nada... Mas agora já não adianta preocuparmo-nos.

Levou o pão outra vez para a copa. Instalara-se uma certa distância entre ele e Miriam. Por uns momentos, Paul hesitou diante dela, a meditar, pesando o seu comportamento com Beatrice. No fundo, sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo contente. Não sabia explicar porquê, mas achava que era bem feito para Miriam. Não era agora que se ia arrepender. Miriam pensava no que ele estaria a cogitar, ali hesitante diante dela. Madeixas de cabelo espesso caíam-lhe ainda sobre a testa. E se lho puxasse para trás, para apagar as marcas do pente de Beatrice? E se lhe apertasse o corpo entre as suas mãos? Parecia tão rijo e palpitante. Se ele deixava as outras fazerem-lhe isso, porque não ela?

De súbito, Paul voltou à vida, e Miriam quase tremeu de susto quando ele arredou os cabelos da testa e avançou para ela.

– Oito e meia! – disse ele. – É melhor irmos a isto. Onde está o teu caderno de francês?

Miriam, contrariada, mostrou-lhe timidamente o caderno de exercícios de francês. Todas as semanas lhe entregava uma espécie de diário da sua vida íntima, escrito por ela em francês. Paul descobrira que era a única maneira de a convencer a fazer composições. O diário era acima de tudo uma carta de amor. Agora, ele ia lê-lo e era como se a história da sua alma fosse ser profanada por ele, no estado em que se encontrava. Paul sentou-se ao lado dela. Ela atentou na mão dele, firme e quente, percorrendo minuciosamente o seu trabalho.

Ele lia apenas as palavras em francês, ignorando a alma que encerravam. Mas, gradualmente, a mão esqueceu a tarefa e ele continuou a ler em silêncio, e em total imobilidade. Ela estremeceu.

– «Ce matin les oiseaux m’ont éveillé» – leu ele. – «II faisait encore un crépuscule. Mais la petite fenêtre de ma chambre était blême, et puis, jaûne, et tous les oiseaux du bois éclatèrent dans un chanson vif et résonnant. Toute l’aûbe tressaillit. J’avais rêvé de vous. Est-ce que vous voyez aussi 1’aube? Les oiseaux m’éveillent presque tous les matins, et toujours il y a quelque chose de terreur dans le cri des grives. II est si clair...».2

Miriam estava sentada, a tremer, envergonhada. Ele mantinha-se imóvel, tentando compreender. Apenas percebia que ela o amava, mas tinha medo do seu amor. Era mais do que ele merecia, e ele não era digno dela. Era ele que não a amava o suficiente, e não o contrário. Envergonhado, corrigiu-lhe o trabalho, anotando os erros timidamente por cima das palavras.

– Repara – disse ele, sereno. – Quando o particípio passado é conjugado com avoir, concorda com o complemento directo sempre que este o precede.

Ela inclinou-se para a frente, para ver melhor e poder compreender. Os seus caracóis finos e soltos roçaram-lhe ao de leve na cara, e ele deu um salto como se um ferro em brasa lhe tivesse tocado. Ao vê-la debruçada sobre a página, com os lábios rubros dolorosamente entreabertos, o cabelo negro caindo em finas madeixas sobre as faces afogueadas, corada como uma romã, a respiração tornou-se-lhe ofegante. Então, ela olhou para ele: os seus olhos negros punham a nu todo o seu amor, medo e desejo. E os olhos dele, negros também, feriram os dela. Pareciam dominá-los. E ela, perdendo o domínio de si própria, ali estava exposta, amedrontada, à mercê dele. Paul sabia, porém, que antes de a poder beijar, tinha de arrancar alguma coisa de si mesmo. E, então, um sopro de ódio por ela penetrou-lhe outra vez no coração, fazendo-o retomar as suas correcções.

De súbito, ele atirou com o lápis pelo ar e precipitou-se para o forno, para virar o pão. Era brusco de mais para o gosto dela. Miriam estremeceu em violento sobressalto, e a dor que sentiu era real. Até a maneira como ele se punha de cócoras diante do forno a magoava. Pressentia alguma crueldade nos seus gestos, alguma crueldade na brusquidão com que tirava os pães das formas, atirando-os ao ar e apanhando-os na queda. Se ao menos ele fosse gentil nos movimentos, sentir-se-ia mais rica e confortada no seu íntimo. Mas, assim, era só dor o que sentia.

Paul voltou para junto dela e acabou o exercício.

– Desta vez saíste-te bem – disse ele.

Ela percebeu que ele se sentia lisonjeado com o diário, mas isso não era recompensa suficiente.

– Sim senhora, de vez em quando fazes um brilharete – disse ele. – Devias escrever poesia.

Ela ergueu a cabeça, transbordante de alegria, mas logo a abanou desalentada.

– Falta-me confiança – disse ela.

– Mas devias tentar!

Mas ela abanou a cabeça.

– Vamos ler um bocado, ou achas que já é muito tarde? – perguntou ele.

– Lá tarde, é... mas podíamos ler só um bocadinho – pediu ela.


CONTINUA

Partiriam no sábado seguinte de manhã, no comboio das sete horas. Paul sugeriu a Miriam que dormisse em casa dele, pois morava muito longe, e ela já jantou de véspera em casa dele. Estavam todos tão excitados que a vinda de Miriam até foi recebida com entusiasmo. Contudo, mal ela chegou, a família tornou-se menos expansiva e mais fechada. Paul tinha descoberto um poema de Jean Ingelow que falava em Mablethorpe, e, por isso, tinha de o mostrar a Miriam. Sem ela, o seu sentimentalismo nunca teria chegado ao ponto de ler poesia para a família ouvir. Mas agora concordavam em ouvi-lo. Miriam, sentada no sofá, escutava-o enlevada. Quando ele estava presente, ela parecia sempre presa a ele e das palavras dele. Mrs. Morel, com ciúmes, sentou-se na sua cadeirinha de baloiço para o escutar. Annie e o pai escutavam-no também; Morel tinha a cabeça mais levantada de um lado, como alguém que escuta um sermão e está consciente do mesmo. Paul espreitou por cima do livro. Tinha agora a presença de quem mais gostava. E Mrs. Morel e Annie quase competiam com Miriam, sobre qual seria a ouvinte mais atenta, a preferida dele. Paul sentia-se nos píncaros.

– Mas – interrompeu Mrs. Morel – não percebo porque é que os sinos têm que tocar A Noiva de Enderbyt...?

– É uma velha melodia que os sinos costumavam tocar como aviso contra a cheia. Penso que a tal Noiva de Enderby morreu afogada numa enchente – respondeu ele. Não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer na realidade, mas nunca se teria rebaixado ao ponto de o confessar perante o seu público feminino. Elas escutavam-no e acreditavam. Ele próprio acreditava nas coisas que dizia.

– E as pessoas sabiam o significado dessa melodia? – quis saber a mãe.

– Sim... tal e qual os escoceses quando escutam As Flores da Floresta... e quando costumavam tocar os sinos em sinal de alarme em sentido contrário.

– Ah! – exclamou Annie. – Quer dizer que os sons de um sino são sempre os mesmos quando são tocados no seu sentido correcto, ou ao contrário.

– Mas – disse ele – se começares num tom grave e subires até ao agudo... lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá! – disse ele, percorrendo a escala completa, e todos o acharam muito inteligente. Ele também. Depois, aguardando um minuto, continuou a ler o poema.

– Hum! – disse Mrs. Morel, apreciativamente, quando ele terminou. – Só espero que tudo o que se tem escrito não seja assim tão triste.

– Num consig’intender porqu’é qu’houve tantos afogamentos – disse Morel. Houve uma pausa. Annie preparou-se para levantar a mesa.

– Acho Elizabeth um belo nome – disse Miriam, em voz baixa. – «A minha nora Elizabeth...»

– Concordo – disse Paul.

– Também acho – disse a mãe. – Mas não gosto de Lizzie e abomino Liza.

Nem Paul nem Miriam achavam que Lizzie ou Liza tivessem algo a ver com o assunto.

– Ah, mas «Elizabeth»! – murmurou Miriam.

– E ainda por cima, a Rainha Elizabeth adorava que a tratassem por «Grande Eliza» – disse Paul.

– E amanhã há mais! – disse Morel, não se contendo.

Mrs. Morel e Paul deram uma gargalhada.

– Aposto que nem sapatos tinha – disse Morel, continuando com a brincadeira.

– Não seja tão insolente com uma rainha – disse Annie.

– Rainhas! – exclamou Morel. – Num pensas noutra coisa senão nas rainhas? Num fazes mai nada senão viver à grande e à francesa!

Miriam levantou-se para ajudar a lavar a loiça.

– Deixa-me ser eu a lavar a loiça – disse ela.

– Não é necessário – exclamou Annie. – Vai-te sentar. É pouca loiça.

E Miriam, que não se sentia à vontade para insistir, sentou-se a ver o livro com Paul.

Paul era o chefe do grupo... para isso, o pai não prestava. E muito ele sofreu para que o baú de latão fosse descarregado em Firsby e não em Mablethorpe. E não foi também capaz de encontrar uma carruagem com lugares. Só a genica de Mrs. Morel o conseguiu.

– Aqui! – gritou ela para um homem. – Aqui!

Paul e Annie ficaram para trás envergonhadíssimos, mas perdidos de riso.

– Quanto é a viagem até Brook Cottage? – perguntou Mrs. Morel.

– Dois xelins.

– É assim tão longe?

– Ainda é um bom bocado.

– Não acredito – disse ela.

Contudo subiu para a carruagem. Iam os oito apertados numa velha carruagem da linha costeira.

– Bem vêem – disse Mrs. Morel –, são apenas três dinheiros por pessoa, mas se fosse um eléctrico...

A viagem prosseguiu. Sempre que passavam por uma casa típica, Mrs. Morel exclamava:

– É esta?... Não, agora é que é!

Estava toda a gente morta de ansiedade. A viagem prosseguiu. Houve um suspiro em uníssono.

– Estou agradecida por não ser aquela coisa horrorosa – disse Mrs. Morel. – Estava assustada.

Passou-se ainda mais algum tempo.

– Aquela mulher repelente disse que a casa ficava a dez minutos do mar...! – exclamou Mrs. Morel.

– Pra ela uma hora deve ser um minuto – reclamou Morel.

Todos o mandaram calar.

– Será que nunca mais chegamos? – exclamou Mrs. Morel, muito alto.

– Não grite assim, mãe – disse Annie. – O que é que ele irá pensar?

Mrs. Morel olhou de um modo esquisito para o condutor, e disse:

– Não sei! Mas, pelo aspecto, penso que não pensará nada de especial.

Finalmente, desceram perto de uma casa isolada, sobre o canal que passava na estrada principal. Houve grande alvoroço quando descobriram que tinham de atravessar uma pequena ponte para chegarem ao jardim da casa. Adoraram a casa, que ficava isolada, com o mar de um lado e, do outro, uma imensa extensão de terra plana que se estendia até ao céu, e onde se distinguia o branco da cevada, o amarelo da aveia, o vermelho do trigo e o verde dos nabos.

Paul registava as despesas e ele e a mãe governavam a casa. As despesas globais, incluindo o alojamento e a alimentação ascendiam a dezasseis xelins por pessoa e por semana. De manhã, Paul e Leonard iam tomar banho ao mar. Morel saía bastante cedo para ir dar um passeio.

– Paul – chamou a mãe do quarto. – Come uma fatia de pão com manteiga.

– Está bem – respondeu ele.

Quando regressou, a mãe estava sentada à cabeceira da mesa. A dona da casa era jovem. O marido era cego e ela cuidava da roupa. Assim, Mrs. Morel lavava a loiça na cozinha e fazia as camas.

– Mas a mãe prometeu que ia fazer umas férias a sério – disse Paul – e agora está a trabalhar.

– Trabalho? – exclamou ela. – De que é que estás a falar?

Paul adorava ir passear com ela pelos campos, até à aldeia ou até ao mar. Ela tinha medo de atravessar pontes de madeira e ele acusava-a de se portar como um bebé. Era apegado à mãe como se fosse o seu marido.

Miriam raramente andava com ele – excepto, talvez, quando iam todos ouvir os Coons. Os Coons eram insuportavelmente estúpidos para Miriam e, por isso, eram-no também para Paul, que pregava sermões presunçosos a Annie sobre a perda de tempo que era irem ouvi-los. Todavia, também ele sabia todas as suas canções de cor e as cantava desbragadamente pelas ruas. E, quando reparava que os estava a ouvir, a estupidez da situação agradava-lhe imenso. Contudo dizia para Annie:

– Que porcaria!... Não há um pingo de inteligência naquilo que cantam. Ninguém que tenha mais miolos que um gafanhoto consegue aguentá-los. – E dizia a Miriam, com algum desdém, onde estavam Annie e os outros:

– Suponho que foram aos Coons.

Era ridículo ouvir Miriam trautear as canções dos Coons. Tinha um queixo talhado a direito que descia na perpendicular desde o lábio inferior até à curvatura do maxilar. Quando ela cantava, Paul achava-a parecida com um anjo triste de Botticelli, mesmo quando entoava:


«Vem pela Estrada do Amor

Vem comigo passear, falar comigo...»


Miriam só tinha Paul todo para ela quando ele desenhava, ou à noite, quando todos os outros estavam a ouvir os Coons. Ele falava-lhe então interminavelmente do seu gosto pelos planos horizontais: como é que os grandes níveis do céu e da terra significavam para ele a eternidade da vontade, tal como os arcos normandos, arredondados e em série, significavam um salto em frente da alma humana voluntariosa, não se sabe para onde; pelo contrário, as linhas perpendiculares e o arco gótico apontavam para o céu e afloravam o êxtase, perdendo-se no divino. Ele era normando, Miriam era gótica. Submissa, ela concordava com tudo o que ele dizia.

Certa tarde, ele e ela foram passear pelo extenso areal que conduzia a Theddlethorpe. As alongadas vagas quebravam-se e elevavam-se em silvos agudos de espuma ao longo da costa. A tarde estava quente e eles completamente sozinhos na imensidão da areia, a sós com o barulho do mar. Paul adorava ouvir o mar a ressoar na areia. Adorava sentir-se entre o som do mar e o silêncio do areal. Miriam estava com ele. Tudo se tornava mais intenso. Já tinha anoitecido quando regressaram. O regresso a casa fazia-se através de uma passagem nas dunas, e depois através de uma estrada pejada de ervas, rasgada entre dois diques. A aldeia estava cinzenta e calma. Por detrás das dunas soava o murmúrio do mar. Paul e Miriam caminhavam em silêncio. De repente, ele estacou. O seu sangue parecia ter-se incendiado e ele mal podia respirar. Uma enorme lua alaranjada observava-os do alto das dunas. Ele continuava parado, olhando a lua.

– Oh! – exclamou Miriam, quando a viu também.

Ele estava ali, petrificado, olhando a lua dilatada e rubra, sozinha na escuridão imensa. O seu coração batia forte e tinha os músculos dos braços contraídos.

– O que foi? – murmurou ela, esperando por ele.

Ele voltou-se e fitou-a. Ela estava ao seu lado, para sempre na escuridão. A sua face, encoberta pela sombra do chapéu, olhava-o sem que ele a visse. E ela meditava. Estava um pouco receosa... profundamente emocionada e imbuída de religiosidade. Este era o seu melhor estado de alma. Ele sentia-se impotente face a esta situação. O sangue parecia concentrar-se como uma fogueira no seu peito, mas ele não lhe conseguia transmitir o sentimento. Pareciam disparar relâmpagos do seu sangue, mas, de algum modo, ela ignorava-os. Ela esperava vê-lo atingir um estado de graça. Ainda à espera, mas meio consciente da paixão que o possuía, Miriam fitou-o, preocupada.

– O que se passa? – murmurou novamente.

– É a Lua – respondeu ele, franzindo a testa.

– Sim – concordou ela. – É maravilhosa, não é? – Ela estava intrigada. A crise tinha passado.

Ele próprio não sabia o que lhe tinha acontecido. Era ainda tão jovem e a sua intimidade tão abstracta que não se apercebeu de que desejava esmagá-la contra o peito para aliviar a dor que o trespassava. Tinha medo dela. Talvez o facto de a desejar como um homem deseja uma mulher tivesse permanecido oculto dentro dele como uma humilhação. Quando ela fugia desses pensamentos, torturando-se em extrema agitação, ele recolhia-se até ao mais recôndito da alma. E, neste momento, esta «pureza» inibia o seu primeiro beijo de amor. Era como se ela mal pudesse suportar o choque do amor físico, ou apenas um beijo apaixonado, deixando-o demasiado reprimido e sensibilizado para lho dar.

Enquanto caminhavam ao longo da negra lagoa, Paul contemplava a Lua e mantinha-se em silêncio. Miriam caminhava a seu lado devagar. Ele sentia que a odiava, pois ela parecia, de certa forma, levá-lo a autodesprezar-se. Olhando em frente, descortinou uma luz na escuridão; era a janela iluminada da sua casa.

Adorava pensar na mãe e no resto das pessoas, todos alegres.

– Bem, já todos chegaram há bastante tempo – disse a mãe quando eles entraram.

– E o que é que isso importa? – exclamou ele, irritado. Posso ir passear quando me apetecer, não posso?

– Pensei que quisesses jantar com o resto do grupo – disse Mrs. Morel.

– Tenho de agradar a mim próprio – retorquiu ele. – Não é tarde e faço o que me apetece.

– Muito bem – disse a sua mãe, sarcasticamente. – Então faz o que te apetecer!

E nessa noite não falou mais com ele. Paul fingiu não notar nem estar preocupado com o assunto, e sentou-se a ler. Miriam lia também, tentando alienar-se. Mrs. Morel detestava-a por ela pôr o filho naquele estado. Via o filho irritadiço, presumido e melancólico, e culpava Miriam.

Annie e os amigos também se voltavam contra Miriam. O único amigo de Miriam era Paul. Mas ela não se importava, pois desprezava a trivialidade de todas essas pessoas.

E Paul detestava-a, pois ela perturbava, por assim dizer, o seu bem-estar e a sua naturalidade, torturando-o com sentimentos de humilhação.

1 «Os últimos representantes de uma raça extinta.» (N. da T.)


VIII

ZANGAS DE AMOR

ARTHUR terminou o estágio e arranjou emprego na central eléctrica da mina de Minton. Ganhava muito pouco, mas tinha possibilidades de progredir. Era, porém, rebelde e impaciente. Não bebia nem tinha o vício do jogo, mas envolvia-se constantemente em rixas devido às suas reacções intempestivas. Ia caçar coelhos para a floresta, qual caçador furtivo, e passava a noite em Nottingham em vez de voltar para casa, ou então ia nadar para o canal de Bestwood e falhava os cálculos do mergulho, ficando com o peito ferido, das rochas naturais e das latas que andavam a boiar à tona.

Tinha faltado ao emprego meses a fio, e uma noite não voltou para casa.

– Sabe por onde anda o Arthur? – perguntou Paul ao pequeno-almoço.

– Não – respondeu a mãe.

– É mesmo maluco – disse Paul. – Eu já nem ligaria, se ele ao menos fizesse mesmo alguma coisa. Mas não... não consegue resistir a um jogo de cartas, ou então vai levar alguma rapariga a casa depois da patinagem, com todo o decoro... e acaba por não voltar para casa. É maluco.

– Não vejo porque seria melhor se ele fizesse mesmo alguma coisa que nos envergonhasse – disse Mrs. Morel.

– Bem... eu, pelo meu lado, passaria a respeitá-lo mais – disse Paul.

– Duvido muito – respondeu a mãe secamente.

Continuaram a tomar o pequeno-almoço.

– A mãe gosta desvairadamente dele, não gosta? – perguntou Paul.

– Porque fazes essa pergunta?

– Dizem que as mães gostam sempre mais do filho mais novo.

– Talvez... mas eu não. Não... ele irrita-me.

– E gostava que ele se portasse melhor?

– Gostava que ele mostrasse algum bom senso masculino.

Paul estava ferido e irritado. Também ele irritava a mãe frequentemente. E ela ficava triste, pois via os melhores anos a fugirem-lhe.

Estavam a acabar o pequeno-almoço, quando o carteiro lhes entregou uma carta vinda de Derby. Mrs. Morel esforçou-se para ler o endereço.

– Dê cá isso, sua pitosga! – exclamou o filho, tirando-lhe a carta da mão. Ela assustou-se e quase lhe dava uma bofetada.

– É do seu filho Arthur – informou ele.

– Mas o que vem a ser isto? – exclamou Mrs. Morel.

– «Querida mãe» – leu Paul. – «Não sei o que me deu. Quero que me venha buscar. Ontem, em vez de ir trabalhar, vim alistar-me no exército com o Jack Brendon. Ele disse que estava farto de passar a vida sentado num escritório, e eu, idiota, como já sabe que sou, resolvi vir com ele.

«Já recebi o dinheiro referente ao recrutamento, mas se me vier buscar, talvez eles me deixem ir consigo. Foi uma loucura ter feito o que fiz. Não quero ficar no exército. Querida mãe, sei que não passo de um estorvo para si, mas, se me tirar desta situação, prometo que serei mais consciente e ponderado...»

Mrs. Morel sentou-se na cadeira de baloiço.

– Vejam só! – exclamou. – Ele que assente por uns tempos!

– Também acho – disse Paul. – Ele que assente!

Fez-se silêncio. A mãe estava sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, o rosto imóvel, pensativa.

– Devo estar doente – exclamou de repente. – Doente!

– Então! – disse Paul, franzindo a testa – Não quero que se preocupe com isto, está a ouvir?

– Então queres que encare isto como uma bênção? – disse ela, de repente, virando-se para o filho.

– Agora não vai tornar isto numa tragédia, pois não? – retorquiu ele.

– Ele é maluco!... Maluquinho de todo! – gritou Mrs. Morel.

– Vai ficar todo bonito com a farda – disse Paul, para espicaçar a mãe.

Ela virou-se a ele, furiosa.

– Ah, vai? – gritou ela. – Mas não para mim!

– Devia ir para um regimento de cavalaria... Ele divertia-se à grande e nós passávamos a ser chiques.

– Chiques!... Chiques!... Muito chique, não haja dúvida!... Um soldado raso!

– Ora – disse Paul. – E o que sou eu, senão um reles escriturário?

– O que é muito mais, meu filho! – gritou a mãe, picada.

– Essa agora!

– De qualquer forma, és um homem e não uma coisa enfiada num casaco vermelho.

– Não me importava de andar enfiado num casaco vermelho... ou azul-escuro, que me ficaria melhor... se eles não me dessem muitas ordens.

Mas a mãe já não o ouvia.

– Agora que ele estava a progredir, ou poderia vir a progredir no emprego... um aborrecimento passageiro e aí vai ele... dar cabo da vida toda. Que vantagens é que tu pensas que isto lhe pode trazer?

– Vai pô-lo todo afinado! – disse Paul.

– Todo afinado!... E o que tem ele para afinar? Um soldado!... Um soldado raso!!... Nada mais do que um corpo que se mexe quando lhe dão ordens! Grande coisa!

– Não percebo porque é que isso a aborrece tanto – disse Paul.

– Não, talvez não percebas. Mas percebo eu. – E recostou-se na cadeira, de queixo apoiado numa das mãos e segurando o cotovelo com a outra, a transbordar de raiva e desilusão.

– Está a pensar ir a Derby? – perguntou Paul.

– Estou, pois.

– Não faça isso.

– Quero ver com os meus próprios olhos.

– Mas por que diabo é que não o deixa assentar? É isso mesmo que ele quer.

– Claro – exclamou a mãe. – Tu sabes muito bem o que ele quer...

Preparou-se e apanhou o primeiro comboio para Derby, onde se encontrou com o filho e com o sargento. Todavia, os seus esforços foram infrutíferos.

Morel estava a almoçar, quando ela disse de repente:

– Tenho de ir hoje a Derby.

O mineiro levantou os olhos, muito brancos numa face toda enfarruscada.

– Ah, vais, cachopa? E o que te leva lá?

– O menino Arthur!

– Qu’aprontou ele desta vez?

– Alistou-se no exército, só isso.

Morel pousou a faca e recostou-se na cadeira.

– Não – disse ele. – Num pode ser!

– E amanhã vai para Aldershot.

– Bom – exclamou o mineiro –, iss’é qu’é já uma grand’alhada.

Morel reflectiu por um momento, disse «Hum!» e continuou a jantar. Subitamente, a face contraiu-se-lhe de raiva.

– Espero qu’ele nunca mais volte a pôr as patas nesta casa – disse ele.

– Credo! – exclamou Mrs. Morel. – Isso é lá coisa que se diga!

– É o qu’eu penso – repetiu Morel. – O doidivanas pisga-se pa ser soldado... Atão é porque já tá na hora de fazer pela vida... Comigo na conta mais.

– Falar é fácil... – disse Mrs. Morel.

Nessa noite, Morel quase sentiu vergonha de ir para a taberna.

– Então, sempre lá foi? – perguntou Paul à mãe quando chegou a casa.

– Fui.

– E viu-o?

– Vi.

– E o que disse ele?

– Ficou lavado em lágrimas quando me vim embora.

– Hum!

– E eu fiz o mesmo, portanto não precisas de fazer «Hum!».

Mrs. Morel preocupava-se com o filho, pois sabia que ele não ia gostar de estar no exército. Como de facto não gostou. A disciplina era uma coisa que ele não conseguia tolerar.

– Mas o doutor disse que ele era bem proporcionado... quase na proporção exacta, e as suas medidas eram perfeitas – disse Mrs. Morel a Paul, cheia de orgulho. – Como tu sabes, ele é bem-parecido.

– Ele é muito bem-parecido. Mas não arranja raparigas como o William, pois não?

– Não... Tem uma personalidade diferente. Sai muito ao pai: é um irresponsável.

Para consolar a mãe, Paul passou nessa altura a ir muito menos a Willey Farm. No Outono, quando se realizou no castelo a habitual exposição dos trabalhos dos alunos da escola de belas-artes, ele apresentou dois trabalhos: uma paisagem a aguarela e uma natureza morta a óleo, que obtiveram dois primeiros prémios, o que o deixou deveras emocionado.

– Mãe, que lhe parece, acha que ganhei algum prémio com as minhas pinturas? – perguntou uma noite, ao chegar a casa. Pelos seus olhos, a mãe viu que ele estava feliz, e a sua face resplandeceu.

– Como queres que eu saiba, meu filho?!

– Um primeiro prémio por aquelas jarras de vidro...

– Ena!

– E outro primeiro prémio por aquele esboço que fiz em Willey Farm.

– Um primeiro prémio para cada coisa?

– Sim, senhora.

– Hum!

Mrs. Morel parecia envolvida numa aura brilhante, cor-de-rosa, mas não disse nada.

– É bem bom, não é, mãe? – disse ele.

– É, sim.

– Oh, mãe, porque não me põe nos píncaros?

Ela riu-se.

– É que depois tinha de ter o trabalho de te puxar cá para baixo outra vez.

No entanto, toda ela vibrava de alegria. William tinha-lhe trazido sempre os seus troféus desportivos. Ela ainda os guardava, e não perdoava a morte dele. Arthur era bonito e era pelo menos um belo exemplar masculino, terno e generoso, e provavelmente o futuro acabaria por lhe sorrir. Mas Paul iria destacar-se. Ela tinha uma grande fé no filho, e mais ainda por ele não ter consciência das suas capacidades. Ele tinha tanto para dar, e a vida parecia ter muito para lhe dar também. Ela iria sentir-se realizada através do filho. A sua luta não tinha sido em vão.

Durante o período da exposição, Mrs. Morel foi várias vezes ao castelo, sem que Paul a visse. Vagueava pelo longo salão, apreciando as restantes pinturas. Sim, eram muito boas. Mas faltava-lhes qualquer coisa para que a sua satisfação fosse completa. Observava-as longamente, tentando encontrar nelas alguma falha. De repente, algo lhe fazia disparar o coração. Aquela era a pintura de Paul. Conhecia-a como se a tivesse gravada no coração.

«Nome: Paul Morel. Primeiro Prémio.»

Parecia tão estranha, ali exposta ao público, nas paredes da galeria do castelo, onde já tinha visitado tantas exposições de pintura durante toda a sua vida. E, depois, olhou em volta, tentando descobrir se alguém a tinha tornado a ver em frente ao mesmo quadro.

Não cabia em si de orgulho, e quando se cruzava com senhoras bem vestidas, pensava para consigo:

«Pois sim, vocês estão muito bem vestidas... mas duvido que os vossos filhos consigam arrebatar dois primeiros prémios na exposição no castelo.»

E seguia o seu caminho, sentindo-se mais orgulhosa do que qualquer outra mãe de Nottingham. E Paul sentia que tinha feito algo por ela, mesmo não passando de uma insignificância. Todo o seu trabalho pertencia à sua mãe.

Um dia, encontrou Miriam quando se dirigia para o castelo. Tinha-a visto no domingo e não esperava encontrá-la na cidade. Vinha com ela uma mulher loura, espampanante, de expressão carregada e porte provocador. Era estranho como Miriam, tão meditativa e reverente, parecia insignificante ao lado desta mulher de ombros deslumbrantes. Miriam fitou Paul demoradamente. O olhar dele estava pregado na desconhecida, que o ignorava. Miriam via claramente o seu instinto masculino a erguer-se altaneiro.

– Olá – disse ele. – Não me disseste que vinhas à cidade.

– Pois não – retorquiu Miriam, em ar de desculpa. Fui à Feira do Gado com o meu pai.

Paul olhou para a companheira de Miriam.

– Já te tinha falado de Mrs. Dawes – disse Miriam, com a voz estrangulada. Estava nervosa. – Clara, já conheces o Paul?

– Penso que já o vi antes – respondeu Mrs. Dawes, indiferente, enquanto o cumprimentava. Tinha uns olhos cinzento-esverdeados, displicentes, a pele era mel claro, e a boca carnuda, com o lábio superior levemente levantado, não se percebendo se de desprezo por todos os homens ou desejo de ser beijada, sendo a primeira hipótese a mais provável. Tinha a cabeça inclinada para trás, como se ela se afastasse por desdém, talvez também dos homens. Usava um chapéu enorme e deselegante, de pele escura de castor, e um vestido simples levemente afectado, que lhe conferia as linhas de um saco. Obviamente era pobre e tinha falta de gosto. Miriam andava sempre bonita.

– Onde é que me viste? – perguntou Paul à outra mulher.

Ela olhou-o como se não tivesse qualquer dúvida em responder.

E depois:

– Vi-te a passear com a Louie Travers – respondeu ela.

Louie era uma das raparigas da secção Espiral da fábrica de Mr. Jordan.

– E como é que tu a conheces? – perguntou ele.

Ela não respondeu. Paul virou-se então para Miriam.

– Para onde vais agora? – perguntou.

– Para o castelo.

– A que horas é o comboio de regresso?

– Vou regressar com o meu pai. Gostava que também viesses connosco. A que horas estás livre?

– Já sabes que nunca antes das oito, que diabo!

E as duas mulheres seguiram o seu caminho.

Paul lembrou-se de que Clara Dawes era filha de um velho amigo de Mrs. Leivers. Miriam tinha-a procurado, pois ela tinha sido em tempos supervisora da secção Espiral da Jordan, e porque o marido, um tal Baxter Dawes que era ferreiro, trabalhava para a fábrica, fazendo entre outras coisas os ferros para as próteses ortopédicas. Miriam pensou que através dela pudesse contactar directamente com a fábrica, podendo assim assegurar o emprego de Paul. Mas Mrs. Dawes estava separada do marido, e agora dedicava-se à defesa dos direitos das mulheres. Era supostamente inteligente, e isso interessava a Paul.

Paul conhecia Baxter Dawes e detestava-o. O ferreiro tinha cerca de trinta e um ou trinta e dois anos. Paul encontrava-o de vez em quando: era um homem alto e bem constituído, bem-parecido, para quem dava gosto olhar. Havia uma curiosa semelhança entre ele e a mulher. Ele tinha a mesma pele clara, de tom de dourado. O seu cabelo era castanho-claro e o bigode dourado. E exalava um desprezo semelhante, pelo porte e pela conduta. Nisto surgiu a diferença. Os seus olhos castanhos, muito escuros e astuciosos, eram imorais. Eram levemente salientes e as pálpebras sobrepunham-se de uma forma tal que lhe suscitava o ódio. A boca era também sensual. A postura evidenciava um desprezo cobarde, como se estivesse preparado para derrubar o primeiro que o censurasse... talvez porque ele próprio se censurava.

O homem odiou Paul desde o primeiro dia que o viu. Ao captar o olhar deliberado e impessoal de um artista no rosto do rapaz, enfureceu-se.

– Pa’onde é que tás’olhar? – disse ele desdenhosamente, amedrontando-o.

O rapaz desviou o olhar. O ferreiro costumava encostar-se ao balcão a conversar com Mr. Pappleworth, e a sua conversa era sempre porca e depravada. Quando sentiu novamente os olhos frios e críticos do jovem pousados nele, o ferreiro virou-se, como se tivesse sido mordido por algum bicho.

– Pa’onde é que tás’olhar, ó parvalhão? – rosnou ele.

O rapaz encolheu os ombros.

– Olha que tu...! – berrou Dawes.

– Deixa-o em paz – disse Mr. Pappleworth, naquela sua voz insinuante que parecia dizer «ele é um pobre diabo, mas não faz por mal».

Desde essa altura, Paul passou a olhar para o homem, sempre que o encontrava, com o mesmo olhar crítico e curioso, desviando o olhar antes de encontrar os olhos do ferreiro, o que deixava Dawes fora de si. E, assim, odiavam-se em silêncio.

Clara Dawes não tinha filhos. Quando deixou o marido, desfizeram a casa e ela foi viver com a mãe, enquanto Dawes passou a viver em casa da irmã. Na mesma casa vivia também uma cunhada, e Paul veio a descobrir que a tal rapariga, a Louie Travers, era agora a amante de Dawes. Era uma atrevida bonitona e insolente, que escarnecia do rapaz, mas que se empolgava toda se ele a acompanhava à estação.

A vez seguinte em que Paul foi visitar Miriam era um sábado à tarde. Ela tinha a lareira acesa na sala de visitas e estava à espera dele. Os outros tinham saído, com excepção dos pais e dos irmãos mais novos, pelo que tinham a sala de visitas só para eles. A sala era comprida, de tectos baixos e aconchegada. Na parede havia três pequenos quadros de Paul e o seu retrato estava pousado ao canto da lareira. Em cima da mesa e em cima do piano de pau-rosa, estavam jarras com folhas coloridas. Ele sentou-se na poltrona e ela ajoelhou-se no tapete aos seus pés. A luz da fogueira reflectia-se na sua cara bonita e pensativa.

– O que achaste de Mrs. Dawes? – perguntou Miriam, num tom calmo.

– Não me pareceu muito amistosa – respondeu ele.

– Lá isso não, mas não a achas elegante?

– Sim... no que diz respeito à sua altura. Mas não tem um pingo de bom gosto. Gosto de algumas coisas nela. Ela é sempre assim antipática?

– Penso que não. Penso que não anda satisfeita.

– Com o quê?

– Bem, como é que te sentirias a viver com um homem daqueles?

– Então, porque é que ela casou com ele, sabendo que o ia detestar tão rapidamente?

– Sim, porque é que ela casou com ele? – repetiu Miriam, com aspereza.

– E eu que pensei que ela fosse suficientemente forte para medir forças com ele – disse Paul.

Miriam baixou a cabeça.

– Ah, sim? – perguntou, satiricamente. E o que é que te leva a pensar isso?

– Basta olhar para a boca dela... nascida para a paixão... e a maneira como estica a garganta.

E atirou a cabeça para trás imitando o jeito provocador de Clara.

Miriam baixou ainda mais a cabeça.

– Sim – disse ela.

Fez-se silêncio durante alguns momentos, e Paul pensava em Clara.

– E o que é que te agradou nela? – continuou Miriam.

– Não sei... a pele e a textura da... da... não sei... emana dela uma certa violência... Aprecio-a apenas como artista.

– Pois.

Paul não entendia por que razão Miriam estava ali sentada no chão, meditando de uma forma tão estranha, e isso irritava-o.

– Não gostas mesmo dela, pois não? – perguntou ele à rapariga.

Ela olhou-o com os seus enormes olhos escuros, encantadores.

– Gosto – respondeu.

– Não gostas, não... não podes gostar... muito.

– E pode saber-se porquê? – perguntou ela calmamente.

– Oh, não sei... Talvez gostes dela porque ela odeia os homens.

Esta era provavelmente uma das razões pelas quais ele gostava de Mrs. Dawes, mas isso não lhe tinha ocorrido. Calaram-se. Ele franziu a testa, algo que já se estava a tornar habitual, particularmente quando estava com Miriam. Ela ansiava fazer-lhe desaparecer as rugas da testa, mas tinha medo. Parecia haver um outro homem dentro de Paul Morel, mas que não era o seu.

Algumas bagas vermelhas sobressaíam entre as folhas do vaso. Ele esticou-se e arrancou um raminho.

– Porque será que, se colocares bagas vermelhas no cabelo – disse ele – pareces uma bruxa ou uma sacerdotisa, mas nunca uma libertina.

Ela rasgou um sorriso doloroso, despojado.

– Não sei – disse.

As suas mãos fortes e quentes brincavam alegremente com as bagas.

– Porque não te ris? – disse ele. – Nunca sorris abertamente. Apenas te ris quando algo é estranho ou incongruente, e até isso parece magoar-te.

Miriam baixou a cabeça como se ele a estivesse a admoestar.

– Gostaria muito que sorrisses apenas um minuto para mim... apenas por um minuto. Sinto que isso libertaria alguma coisa dentro de ti.

– Mas... – e olhou-o com uns olhos assustados e lutadores. – ... Mas eu rio-me... sim, eu rio-me.

– Mentira, nunca te ris. Só se for por algo de muito intenso. Sempre que te ris, apetece-me chorar; parece que o teu riso transmite sofrimento. Oh, só de pensar nisso, fazes com que eu enrugue a minha alma.

– Não é minha intenção fazê-lo – disse.

– Eu sou sempre tão espiritual contigo – exclamou ele.

Ela manteve-se em silêncio, a pensar: «Então porque não és de outra forma?» E ele olhou para o seu corpo dobrado, em meditação, e pareceu dividi-lo em dois.

– Estamos no Outono – disse ele – e todas as pessoas libertam o seu espírito.

Caiu novamente o silêncio. Este estranho desentendimento entre eles despedaçava a alma de Miriam. Ele parecia tão bonito, com os seus olhos escuros e um olhar tão profundo como a nascente mais funda.

– Tornas-me tão espiritual – lamentou-se ele. – E eu não quero ser espiritual.

Ela retirou o dedo da boca com um pequeno estalido, e olhou-o em tom provocador. Mas a sua alma continuava nua nos seus olhos grandes e castanhos e o mesmo desejo ardente dominava-a. Se isso fosse possível, ele tê-la-ia beijado na pureza da abstracção. Mas ele não a podia beijar assim... e ela não parecia dar-lhe qualquer outra alternativa. E, no entanto, desejava-o.

Paul sorriu.

– Bem – disse ele –, vamos lá estudar francês... vamos ler Verlaine.

– Sim – disse ela num tom profundo, quase de resignação. Levantou-se e foi buscar os livros. As suas mãos avermelhadas e nervosas metiam dó; como ele desejava confortá-la e beijá-la!! Mas não se atrevia... ou não podia. Algo o impedia. Os seus beijos eram para ela reprováveis. Continuaram a ler até às dez horas, e depois foram para a cozinha; Paul mostrava-se de novo alegre e natural para com os pais de Miriam. Os seus olhos eram escuros e brilhantes e envolvia-o uma aura de fascinação.

Quando foi buscar a bicicleta ao celeiro descobriu que o pneu dianteiro estava furado.

– Vai-me buscar uma tigela com uma pinguinha de água – pediu ele a Miriam. – Vou chegar tarde e já sei que vou ouvir um sermão.

Acendeu a lanterna à prova do vento, despiu o casaco, virou a bicicleta ao contrário e meteu mãos à obra rapidamente. Miriam trouxe-lhe a tigela com água e ficou junto dele, observando-o. Adorava ver as mãos dele em acção. Era elegante e forte, e até os seus movimentos mais rápidos eram feitos com desembaraço. Ocupado como estava, parecia tê-la esquecido. Mas ela amava-o de uma forma absorvente, desejava poder passar as mãos ao longo do seu corpo. Sempre desejara abraçá-lo, desde que ele não a quisesse.

– Já está – disse Paul, levantando-se de repente. – Mais rápido não podia ser!

– Lá isso é verdade! – concordou ela, sorrindo.

Paul endireitou-se. Estava de costas para Miriam. Ela colocou as mãos nas ancas dele, fazendo-as deslizar rapidamente ao longo das pernas.

– És tão elegante! – disse ela.

Ele sorriu. Detestava o tom da voz dela, mas o sangue incendiou-se-lhe ao sentir o contacto das mãos. Ela, pelo contrário, parecia nem dar por ele. Era como se ele fosse um objecto, como se não se apercebesse do homem que ali estava.

Paul acendeu a luz da bicicleta, experimentou-a, bateu com ela no chão do celeiro para verificar o som dos pneus, e apertou o casaco.

– Tudo em ordem! – disse ele.

Ela experimentou os travões, pois sabia que estavam avariados.

– Já os arranjaste? – perguntou ela.

– Não!

– E porque não?

– O travão traseiro funciona mais ou menos.

– Mas não é seguro.

– Posso travar com o pé.

– Era melhor que os tivesses arranjado – murmurou ela.

– Não te preocupes... Amanhã vem tomar chá a minha casa e traz o Edgar.

– A sério?

– A sério... Por volta das quatro... Vou ter convosco.

– Combinado!

Ela estava feliz. Atravessaram o pátio às escuras até ao portão. Olhando em frente, Paul viu as cabeças de Mr. e Mrs. Leivers atrás da vidraça sem cortinas da cozinha, iluminadas pelo fulgor da lareira. O ambiente parecia muito aconchegado. À sua frente, a estrada ladeada de pinheiros abria-se escura.

– Até amanhã – disse ele, montando na bicicleta.

– Vais ter cuidado, não vais? – recomendou ela, como quem pede.

– Vou.

A voz dele soou já da escuridão. Ela deixou-se ficar mais uns instantes a ver a lanterna afastar-se e entrar na noite. Depois, voltou lentamente para casa. Orion elevava-se por cima da floresta, seguida do seu cão cintilante, meio apagado. Fora essa luz, o mundo estava mergulhado na mais densa escuridão e no silêncio, quebrado apenas pelo resfolegar do gado nos estábulos. E ela rezou com devoção pela segurança dele nessa noite. Quando ele a deixava, ficava sempre num estado de extrema ansiedade, imaginando se ele teria chegado bem a casa.

Paul deixava a bicicleta embalar pelas encostas abaixo. As estradas eram escorregadias e ele não podia meter travões. Era um prazer quando a bicicleta se precipitava pelo declive mais íngreme da colina. «Cá vou eu!», dizia ele. Era arriscado por causa da curva completamente às cegas à chegada ao vale, e das carroças dos cervejeiros com os carroceiros bêbados, a dormir. A bicicleta parecia desintegrar-se debaixo dele e Paul adorava a sensação. O descuido é a vingança de um homem sobre a mulher. Sentindo que não é devidamente apreciado, arrisca a sua própria destruição, para que ela sinta a sua falta.

Ao passar veloz pelo lago, as estrelas reflectidas na água pareciam saltar da escuridão como gafanhotos prateados. Depois surgia a longa subida até casa.

– Olha, mãe! – disse ele, atirando as bagas e as folhas para cima da mesa.

– Hum! – fez ela, olhando para a mesa e desviando o olhar. Como sempre, estava sozinha, sentada a ler.

– Não são bonitas?

– São.

Ele sabia que a mãe estava aborrecida. Passados alguns minutos disse:

– O Edgar e a Miriam vêm cá tomar chá amanhã.

A mãe não respondeu.

– Não se importa?

Ela continuou sem responder.

– Então importa-se? – perguntou ele.

– Sabes bem se me importo ou não.

– Não vejo porque se há-de importar... eu como lá tantas vezes...

– Pois comes.

– Então porque lhes recusa um chá?

– A quem é que eu recuso um chá?

– Porque é que a mãe é sempre tão difícil?

– Pronto, não digas mais nada! Convidaste-a para o chá, e isso já é o suficiente. Ela não falta.

Paul ficou muito aborrecido com a mãe. Sabia que ela não gostava de Miriam. Atirou com as botas e foi deitar-se.

Paul foi abrir a porta aos amigos no dia seguinte. Estava feliz de os ver chegar. Vieram por volta das quatro horas. Tudo estava sereno e calmo para domingo à tarde. Mrs. Morel estava sentada, com o seu vestido preto e o avental branco, mas levantou-se para receber as visitas. Foi cordial com Edgar, mas fria e muito esquiva com Miriam. Todavia, Paul achava que a rapariga estava bem bonita no seu vestido castanho de caxemira.

Ajudou a mãe a preparar o chá. Miriam ter-se-ia oferecido de agrado para ajudar, mas tinha receio. Paul tinha muito orgulho da sua casa. Havia nela uma certa distinção, pensava ele. As cadeiras eram simples, de madeira, e o sofá já velho. Mas o tapete e as almofadas eram aconchegantes; os quadros eram gravuras de bom gosto; a simplicidade dominava e havia muitos livros. Nem ele nem Miriam se envergonhavam das casas que tinham, pois eram tudo aquilo que deviam ser, e ainda acolhedoras. Então na mesa tinha grande orgulho; o serviço de chá era bonito e a toalha fina; pouco importava que as colheres não fossem de prata e nem o cabo das facas de marfim; tudo estava bonito. Mrs. Morel tinha cuidado maravilhosamente de tudo enquanto os filhos cresceram. Assim, nada se encontrava fora do lugar.

Miriam falou um pouco de livros, pois era um assunto que dominava bem. Mas Mrs. Morel não se mostrou interessada, virando-se rapidamente para Edgar.

A princípio, quando Edgar e Miriam iam à igreja, sentavam-se no banco de Mrs. Morel. Morel nunca lá ia, pois preferia a taberna. Mrs. Morel, arvorando-se em chefe da família, sentava-se numa extremidade do banco e Paul na outra extremidade; a princípio, Miriam sentava-se ao lado dele. A capela lembrava a Paul a sua casa. Era um lugar bonito, com bancos escuros e pilares estreitos e elegantes, e com muitas, muitas flores. As mesmas pessoas sentavam-se sempre nos mesmos lugares desde que ele era menino. Era bastante agradável e reconfortante estar ali sentado durante uma hora e meia, ao lado de Miriam e perto da mãe, unindo os seus dois amores sob o fascínio daquele local de culto. Sentia-se a um tempo entusiasmado, feliz e religioso. Terminada a missa, acompanhava Miriam a casa, enquanto Mrs. Morel passava o resto da tarde com a sua velha amiga Mrs. Burns. Sentia-se verdadeiramente vivo durante os passeios que dava ao domingo pela tardinha com Edgar e Miriam. Sempre que passava de noite pelas minas, pelo depósito das lanternas, todo iluminado, pelas torres altas e negras e pelas filas de vagões parados em frente das ventoinhas que giravam lentamente na escuridão, tinha a sensação intensa e quase insuportável de que Miriam voltaria para si.

Mas Miriam não ocupou por muito tempo o banco da família Morel, pois o pai arranjou novamente um outro banco. Ficava mesmo por baixo da pequena galeria, em frente ao banco dos Morels. Quando Paul e a mãe chegavam à capela, o banco dos Leivers estava sempre vazio. Ele receava que não viessem: a capela ficava muito longe e eram muitos os domingos chuvosos. Mas a dado momento, quase sempre atrasada, Miriam chegava com o seu passo amplo, cabeça baixa e face oculta pelo chapéu de veludo verde-escuro. Visto sentar-se do lado oposto, a sua cara ficava sempre na sombra, o que até o fazia sentir-se bem, pois ao vê-la ali à sua frente era como se a alma se lhe agitasse dentro do corpo. Não era o mesmo calor, a mesma alegria e o mesmo orgulho que sentia ao ter a mãe a seu lado, como chefe: era algo mais maravilhoso ainda, menos humano, um sentimento intenso temperado pela dor, algo que ele sabia que não podia alcançar.

Foi nesta altura que começou a pôr em questão a doutrina ortodoxa. Ele tinha vinte e um anos e ela vinte. Miriam receava a chegada da Primavera: ele tornava-se agressivo e magoava-a muito. Tudo o que mais queria era destruir cruelmente as crenças dela. Edgar, crítico por natureza e sem sentimentos, gostava desta situação. Mas Miriam sofria amargamente, pois o homem que amava possuía uma inteligência cortante que dissecava a religião em que ela fora criada e se movimentava, e onde habitava o seu Eu. Mas ele não a poupava e mostrava-se muito cruel. Quando estavam sozinhos, tornava-se ainda mais violento, como se quisesse matar-lhe a alma, explorando as suas crenças até ela quase perder a consciência.

– Ela regozija-se... regozija-se quando afasta o meu filho de mim – gritava Mrs. Morel do fundo do coração, quando Paul saía de casa. – Ela não é como qualquer mulher comum, que permite que eu faça parte do meu filho. Ela quer absorvê-lo. Quer tirar-mo e absorvê-lo, até que nada reste dele, nem sequer para ele próprio. Assim, ele nunca será senhor de si... ela irá sugá-lo completamente. – E Mrs. Morel sentava-se, debatendo pressentimentos e meditando tristemente.

Quando regressava dos seus passeios com Miriam, Paul vinha trespassado de sofrimento. Caminhava com passo apressado, mordendo os lábios e cerrando os punhos. Quando chegava a uma cerca, parava por alguns minutos, imobilizado. À sua frente estendia-se a escuridão sem fim; as negras encostas salpicavam-se de florescências luminosas; e, nos recônditos da noite, brilhava o clarão da mina. Tudo era estranho e ameaçador. Porque estava ele tão dilacerado, quase em êxtase, incapaz de se mover? Porque estava a mãe sentada em casa a sofrer? E sabia que ela sofria bastante. Mas porquê? E porque detestava ele Miriam e era tão cruel para ela, quando pensava na mãe? Já que Miriam fazia a mãe sofrer, ele tinha de a detestar. E com facilidade a detestava. Porque o levava ela a duvidar de si próprio, deixando-o inseguro, indefinido, como se não pudesse evitar que a noite e o espaço caíssem sobre ele? Como ele a odiava! Mas logo um ímpeto de ternura e humilhação o envolvia.

De repente, precipitava-se para casa a correr. A mãe reconhecia nele as marcas da agonia, mas nada dizia. Ele, porém, tinha de obrigá-la a falar, pois via-a zangada por ele ter ido passear com Miriam para tão longe.

– Porque é que não gosta dela, mãe? – gritou ele um dia, desesperado.

– Não sei, meu filho – respondeu ela num tom comovente. – Já tentei gostar, tentei com todas as minhas forças... mas não consigo... não consigo...

E, entre ambas, ele sentia-se triste e sem esperanças. A Primavera era a pior das estações. Ele ficava instável, enérgico e cruel. Assim, decidiu afastar-se dela. Surgiam então as horas a que ele sabia que Miriam o esperava, e a mãe apercebia-se da sua impaciência. Paul não conseguia progredir no seu trabalho, não conseguia fazer nada. Era como se algo transportasse a sua alma até Willey Farm. De repente, punha o chapéu e saía sem dizer nada. E a mãe sabia que ele tinha partido. Assim que se punha a caminho respirava de alívio. Mas, mal chegava ao pé de Miriam, tornava-se novamente cruel.

Certo dia, em Março, estava Paul deitado nas margens do lago Nethermere, com Miriam sentada a seu lado. Estava um dia resplandecente, branco e azul. Nuvens grandes e brilhantes passavam altas, e as suas sombras moviam-se silenciosas sobre a água. Os espaços abertos no céu tinham um tom glacial de azul. Paul estava deitado de costas sobre a relva, olhando o céu. Não conseguia olhar para Miriam. Ela parecia desejá-lo e ele resistia. Resistia sempre. Ela queria dar-lhe a sua paixão, a sua ternura, mas não era capaz. Ele sentia que ela não o queria; que apenas queria a sua alma. Miriam retirava-lhe as forças e a energia através de um canal que os unia. Ela não queria o corpo dele, pois nesse caso seria apenas duas pessoas, homem e mulher, em comunhão. Queria absorvê-lo completamente. E ele sentia-se estimulado por um impulso quase de loucura, que o fascinava, com um fascínio de droga.

Ele falava sobre Miguel Angelo. Ao escutá-lo, ela sentia que tocava o protoplasma da vida, as próprias células palpitantes, e a sua satisfação era plena. Mas, no final, isso assustava-a. Ali estava ele deitado, na intensidade imaculada da procura, e a sua voz amedrontava-a num crescendo, levando-a quase a tocar as raias do inumano, como se num transe.

– Não digas mais nada – pediu Miriam, com ternura, pousando a mão na testa dele. Ele permanecia estático, incapaz de se mover. O seu corpo estava de algum modo abandonado.

– Porquê... estás cansada?

– Estou, e tu também vais ficar.

Ele deu uma pequena gargalhada, apercebendo-se da situação.

– Contudo, sabe-me bem – disse ele.

– Mas não é essa a minha intenção – disse ela, muito baixinho.

– Não quando já foste longe de mais e sentes que já não és capaz de te dominar. Mas o teu eu inconsciente clama por isso. E eu suponho que também quero o mesmo.

– Então como posso evitá-lo?

– Penso que não podes, pois tu fazes sempre o mesmo. Desligas-me algures e retiras-me de mim próprio. Sinto-me como um fantasma, sem corpo.

– Não! – implorou ela.

– Agora mesmo, neste momento, olho para as minhas mãos e pergunto-me o que estão elas ali a fazer. Aquela água, por exemplo, ondula através de mim. Eu sou a ondulação. Corre através de mim e eu através dela. Não há barreiras entre nós.

– Mas...! – E Miriam hesitou.

– O que resta de mim é apenas uma consciência disseminada. Sinto que o meu corpo está deitado aqui, vazio, como se eu estivesse dentro de outras coisas... das nuvens e da água...

Ela olhou para ele e reparou naquele olhar tão estranho, como se ele fosse uma coisa e não uma pessoa, o que a fascinava tanto, mas que tanto receava. E era precisamente esse receio que a impelia a ter muito mais. Mas, agora, queria que ele parasse.

– Sabes – prosseguiu – o meu eu físico está liberto. Mas, se assim for, então eu não estou vivo. Tenho a certeza de que me destruiria. O que tu queres é pores-me gordo e banal, e não uma sombra. Queres fechar bem a minha alma dentro da sua bainha. Mas ela um destes dias libertava-se, tal como a espada que se libertou de uma bainha lassa e caiu ao mar.

Miriam meditava tristemente. Nisto, levantou a cabeça e olhou-o com os olhos muito brilhantes.

– Então deixa-me ser a tua protecção – disse ela.

E estendeu as mãos para as dele.

– Se tu pudesses... – disse ele. – Mas tu és aquilo que o teu eu inconsciente te impõe, e não aquilo que queres ser. Nenhum de nós dois é completamente normal... porém, agora eu quero sê-lo, mas penso que tu não queres. Tu queres ser algo fora do comum.

– Não, não quero – exclamou ela. Mas havia medo na sua voz.

– De qualquer forma – continuou Paul, num tom apático –, isso agora não é possível. Não me podes ter dessa maneira. Neste momento eu e tu somos apenas almas desprovidas de sangue. E isso provocaria uma vibração diferente, que se entrechocaria com este estado actual numa verdadeira tortura... Se ao menos pudesses querer-me, e não apenas quereres aquilo que eu tenho para te papaguear.

– Eu! – exclamou Miriam num tom áspero. – Eu! Quando é que eu te posso ter?

– Então a culpa é minha – disse ele, e juntando as partes dispersas do seu eu, levantou-se e começou a falar de coisas triviais. Sentia-se irreal. De uma forma vaga, detestava-a por isso. Sabia que era ele o culpado e, no entanto, isso não o impedia de a odiar.

Certa noite, na mesma época, em que Paul tinha ido levar Miriam a casa, pararam perto do prado que se estendia até à floresta, incapazes de se separarem. Assim que as estrelas surgiram, as nuvens desapareceram e eles captaram fugazmente a sua Orion, que se dirigia para oeste. As jóias de Orion brilharam por um breve instante, com o seu cão correndo rasteiro, lutando com dificuldade para atravessar a espuma de uma nuvem.

Orion era para eles a constelação mais carregada de significado. Era nela que os seus olhos se haviam fixado nos momentos mais estranhos e intensos, até sentirem que viviam em cada uma das suas estrelas. Nessa noite, Paul mostrava-se taciturno e perverso. Orion parecia-lhe apenas uma constelação, nada mais. Lutava contra o seu brilho, o seu fascínio. Miriam observava atentamente a disposição do seu amado, mas ele nada disse que o comprometesse até ao momento da partida, quando, de testa franzida, ficou parado a olhar tristemente para o castelo de nuvens, por detrás do qual a grande constelação estaria ainda a transitar.

No dia seguinte havia uma pequena festa em casa dele, para a qual Miriam estava convidada.

– Não posso vir buscar-te – disse ele.

– Não faz mal... O tempo também não está dos melhores para andar na rua... – respondeu ela serenamente.

– Não é isso... eles é que não gostam que eu venha. Dizem que me preocupo mais contigo do que com eles. E tu compreendes, não é verdade?... Tu sabes que entre nós existe apenas amizade.

Miriam ficou perplexa e com pena dele. Como lhe devia ter custado dizer aquelas palavras. Deixou-o, para lhe poupar outra humilhação. Uma chuva fina batia-lhe no rosto enquanto caminhava. Estava profundamente magoada e desprezava-o por ele se deixar levar pelo mais leve sopro de autoridade. No fundo do seu coração, sentia inconscientemente que ele tentava afastar-se dela, mas como jamais teria a coragem de o admitir, sentia pena dele.

Por esta altura, Paul tornou-se num elemento imprescindível do armazém da Jordan. Mr. Pappleworth saiu para se estabelecer por conta própria e Paul passou a supervisor da Espiral. Se tudo corresse bem, o seu salário seria aumentado para trinta xelins no final do ano.

Miriam vinha quase todas as sextas-feiras à noite para a lição de francês. Paul já não ia tão amiúde a Willey Farm, e ela receava que a sua aprendizagem estivesse prestes a terminar; por outro lado, e apesar das discórdias, gostavam de estar um com o outro. Liam Balzac, escreviam composições e sentiam-se bastante cultos.

A noite de sexta-feira era a noite de pagamento para os mineiros. Morel «repartia o bolo», ou seja, dividia os lucros da empreitada, quer no New Inn, em Bretty, quer na sua própria casa, conforme os seus companheiros preferissem. Barker tinha deixado de beber, e agora os homens «dividiam o bolo» em casa de Morel.

Annie, que tinha estado a dar aulas longe dali, regressara de novo a casa. Era ainda uma rapariga endiabrada. Estava noiva e ia casar. Paul andava a estudar desenho.

Morel estava sempre bem-disposto às sextas-feiras à noite, a não ser que os ganhos dessa semana fossem escassos. Depois do jantar, entregava-se a longos preparativos para se lavar. A decência exigia que as mulheres se ausentassem durante as reuniões masculinas. As mulheres não deviam assistir à reunião dos sócios, que era considerada assunto estritamente masculino... e nem deviam ficar a saber qual o montante exacto dos ganhos semanais. Assim, enquanto o pai barafustava na cozinha, Annie saiu e foi por uma hora para casa da vizinha, e Mrs. Morel foi à cozinha ver se o pão já estava cozido.

– Fecha a porta! – berrou Morel, furioso.

Annie bateu com a porta e saiu.

– S’ela torna a abrir a porta enquant’eu tou a tomar banho, amando-lh’um murro que lhe parto os queixos – berrou ele, ameaçador, por entre a espuma do sabão. Paul e a mãe franziram as sobrancelhas ao ouvi-lo.

Logo depois, saiu da cozinha, tremendo de frio e pingando o chão todo de água ensaboada.

– Oh, cos diabos! – disse ele. – Onde está a minha toalha?

Estava pousada numa cadeira, frente à lareira, para aquecer, pois, se assim não fosse, ele teria feito um grande estardalhaço. Aninhou-se sobre os calcanhares frente ao lume vivo, para secar.

– Brrrr... – continuou, fingindo tremer de frio.

– Ó homem, não sejas criança! – disse Mrs. Morel. – Não está frio nenhum.

– Exprimenta despires-te e tomares banho naquela cozinha – disse o mineiro, enxugando o cabelo. – Mas que gelo de casa!

– Eu não faria com certeza tanto alarido – respondeu a mulher.

– Ah, poi não. Caías redonda no chão que nem uma pedra.

– Porque é que uma pedra há-de ser mais redonda do que outra coisa qualquer? – perguntou Paul curioso.

– Essa agora... sei lá... é o que se diz – argumentou o pai. – Nesta tua cozinha há muitas correntes de ar, e quando ele passa através das costelas parece vento a passar por uma cancela de cinco traves.

– Sempre teria alguma dificuldade em passar através das tuas costelas – disse Mrs. Morel.

Morel olhou desanimado para ambos os lados do seu corpo.

– Eu! – exclamou. – Eu cá num tenho pele de coelho. Os meus ossos vêem-se no meu corpo!

– Gostaria de saber onde – retorquiu a mulher.

– Por todo o lado! Mas também num sou nenhuma carga de ossos.

Mrs. Morel deu uma gargalhada. Ele tinha um corpo ainda belo, jovem e musculado, sem gorduras. A pele era macia e clara. Poderia bem ser o corpo de um homem com vinte e oito anos, se não fossem as várias cicatrizes azuladas, semelhantes a tatuagens, onde o pó do carvão se tinha alojado, e o seu peito peludo. Morel pôs as mãos nos quadris, desanimado. Acreditava piamente que, por não engordar, era magro como um rato esfomeado.

Paul olhou para as mãos do pai, calejadas, escuras, cobertas de cicatrizes e com as unhas partidas, a esfregarem a maciez do seu corpo, e ficou admirado, pois parecia-lhe estranho serem feitas da mesma carne.

– Suponho – disse, virando-se para o pai – que antigamente tinha uma bela figura.

– Eh, olha lá o que dizes! – exclamou o mineiro, olhando em volta, espantado e tímido, como uma criança.

– Tinha uma bela figura, sim senhor! – exclamou Mrs. Morel. – O pior foi ele andar sempre aos encontrões a tudo, como se quisesse meter-se no buraco mais pequeno que encontrava.

– Eu? – exclamou Morel. – Eu, uma bela figura! Nunca passei de um esqueleto.

– Credo, homem! – gritou a mulher. – Não sejas tão piegas!

– É ve’dade – disse ele. – Tu nunca me viste qu’eu não parecesse qu’emagrecia de dia pra dia.

Mrs. Morel sentou-se e deu uma gargalhada.

– Tens um corpo de ferro – disse ela. – No tocante ao corpo, nunca nenhum homem te levou a melhor. Devias ter visto o teu pai em novo... – exclamou, de repente, virando-se para Paul e empertigando-se, para imitar a postura outrora garbosa do marido. Morel observava-a, envergonhado. Viu novamente a paixão que ela sentia por ele, e que brilhou durante alguns momentos à volta dela. Ele era tímido, assustadiço e humilde. Agora, porém, sentia de novo a velha força de outros tempos. Mas imediatamente sentiu na carne os estragos praticados ao longo de todos estes anos e só queria desaparecer, fugir de tudo.

– Lava-me as costas – pediu ele à mulher.

Ela trouxe uma toalha ensopada e ensaboada e colocou-lha sobre os ombros. Ele deu um salto.

– Oh, desgraçada! – berrou ele. – Tá gelada como a morte!

– Devias ter nascido salamandra – disse ela a rir, lavando-lhe as costas. Só raramente o ajudava nestas tarefas tão pessoais. Geralmente, eram os filhos quem fazia este tipo de coisas.

– O outro mundo não vai ser suficientemente quente para ti – acrescentou ela.

– Poi não – disse ele. – Tu vais fazer com que sopre uma aragem pra m’arrefecer.

Mas ela já tinha terminado. Enxugou-o rapidamente e subiu ao primeiro-andar, regressando em seguida com um par de calças limpas. Assim que se secou, Morel vestiu a camisola. Depois, rosado e luzidio, com o cabelo em pé e a camisola de flanela vestida por cima das calças de mineiro, aqueceu as ceroulas que ia vestir a seguir. Virou-as, pô-las do avesso e ressequiu-as.

– Oh, homem, veste-te! – exclamou Mrs. Morel.

– Queria ver se gostavas de vestir uma roupa tão fria como a água da banheira – disse ele.

Por fim, despiu as calças e vestiu-se condignamente de preto. Fez tudo isto em cima do tapete da lareira, e teria feito o mesmo se Annie e os amigos íntimos estivessem presentes.

Mrs. Morel virou o pão no forno. Depois, retirou uma mão-cheia de massa do alguidar de barro, que se encontrava a um canto da cozinha; trabalhou a massa dando-lhe a forma adequada e meteu-a numa tigela. Enquanto fazia isto, Barker bateu à porta e entrou. Era um homem baixo, compacto e calmo, que parecia capaz de atravessar um muro de pedra. O cabelo era preto e curto e a cara bem-parecida. Tal como a maioria dos mineiros, era pálido, mas saudável e rijo.

– Boa noite, ‘nha senhora – disse o homem, curvando a cabeça e sentando-se, com um suspiro.

– Boa noite – respondeu ela, cordialmente.

– Fizeste ranger os tacões – disse Morel.

– Num dei por nada – disse Barker.

Retraído, sentou-se num dos bancos da cozinha, como os colegas normalmente faziam.

– Como está a sua senhora? – perguntou-lhe Mrs. Morel. Há algum tempo, ele tinha-lhe dito: «Sabe, estamos à espera do terceiro...»

– Bem – respondeu ele, coçando a cabeça –, penso que está tão boa quanto o possível.

– Ora deixa cá ver... para quando é? – perguntou Mrs. Morel.

– Bem... penso que está para chegar a qualquer momento...

– Ah, sim? E tem passado bem?

– Sim... tudo em ordem.

– É um milagre, pois ela não é muito forte.

– É verdade. ... E eu fiz outra asneira.

– O que foi?

Mrs. Morel sabia que Barker não teria feito nada de muito errado.

– Não consegui dar co’a alcofa das compras.

– Pode levar a minha.

– Não... óspois vossemecê pode precisar.

– Não preciso, não. Levo sempre um saco de rede.

Todas as sextas-feiras à noite, Mrs. Morel via o mineiro, baixo e desembaraçado, a comprar os legumes e a carne para toda a semana, e sentia grande admiração por ele.

– O Barker pode ser baixo, mas é dez vezes mais homem do que tu – tinha dito ela ao marido.

Nisto, entrou Nessen. Apesar de pai de sete filhos, era magro, muito frágil, com uma ingenuidade de adolescente e um sorriso levemente matreiro. Mas a mulher dele era uma mulher apaixonada.

– Estou a ver que me batest’òs pontos – disse, sorrindo sem brilho.

– Pois foi – respondeu Barker.

O recém-chegado tirou o boné e o grosso cachecol de lã. Tinha um nariz pontiagudo e vermelho.

– É capaz de ter frio, Mr. Wesson – disse Mrs. Morel.

– Aqui tá um bocado de frio – respondeu.

– Então aproxime-se do lume.

– Não, tou bem aqui.

Os dois mineiros sentaram-se um pouco mais arredados. Não queriam ficar em cima do tapete da lareira, pois esse lugar era sagrado para a família.

– Senta-te no cadeirão – exclamou Morel, alegremente.

– Não, obrigado. Tou muito bem aqui.

– Ora essa, chegue-se para aqui – insistiu Mrs. Morel.

O homem levantou-se e, avançando desajeitadamente, sentou-se no cadeirão de Morel, envergonhado. Era tomar demasiada confiança. Mas estar ao pé do lume deixava-o muito feliz.

– E então como está o seu peito? – perguntou Mrs. Morel.

Ele sorriu novamente, com uns olhos azuis muito brilhantes.

– Ora, vai indo! – disse ele.

– Como um chocalho – atalhou Barker.

– T..t..t..t – fez Mrs. Morel com a língua. – Já mandou fazer a camisa de flanela?

– Ainda não – disse ele sorrindo.

– E porque não? – perguntou ela.

– Lá chegará o dia... – disse ele, sorrindo.

– Ah, o dia de São Nunca, estou a ver – exclamou Barker.

Barker e Morel preocupavam-se com Wesson, pois fisicamente eram ambos fortes que nem touros.

Quando Morel estava quase pronto, entregou o saco do dinheiro a Paul.

– Contó lá, rapaz – pediu com humildade.

Impaciente, Paul abandonou os livros e os lápis e despejou o saco para cima da mesa. Continha cinco libras em moedas de prata, várias moedas de vinte xelins e alguns trocados. Paul contou o dinheiro rapidamente, incluindo os cheques e os papéis com os totais do carvão, e pôs as moedas por ordem. Então Barker deu uma olhadela aos cheques.

Mrs. Morel subiu ao primeiro andar e os três homens sentaram-se à mesa. Morel, como dono da casa, sentou-se no seu cadeirão com as costas viradas para a lareira. Os outros dois sentaram-se em cadeiras frias. Nenhum deles contou o dinheiro.

– Quant’é que dissemos qu’era prò Simpson? – perguntou Morel. E, durante um minuto, discutiram os ganhos diários do companheiro, sendo o valor respectivo posto de lado em seguida.

– E quant’é prò Bill Naylor?

Também este valor foi retirado do saco.

E então, visto que Wesson vivia numa casa da companhia e a renda já tinha sido deduzida, Morel e Barker retiraram quatro xelins e seis dinheiros cada um. E, para compensar o carvão que Morel já tinha trazido, Barker e Wesson receberam mais quatro xelins cada. Depois, a distribuição foi simples: Morel deu a cada um uma moeda de vinte xelins, até não restar nenhuma; mais meia coroa a cada um, até não restarem mais; e ainda uma moeda de um xelim, até acabarem. Se no fim restasse alguma coisa que não pudesse ser dividida, Morel guardava esse dinheiro para pagar uma rodada de cerveja.

Finalmente, os três homens levantaram-se e saíram. Morel tratou de se escapar antes de a mulher descer. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu. Deu uma olhadela rápida ao pão que tinha no forno e, olhando para a mesa, viu o seu dinheiro. Paul tinha estado sempre embrenhado no trabalho. Mas agora apercebia-se de que a mãe, ao contar a semanada, se enfurecia.

– T..t..t – era o barulho que ela fazia com a língua.

Paul franziu a testa. Não conseguia trabalhar quando a via aborrecida. Mrs. Morel contou novamente o dinheiro.

– Uns míseros vinte e cinco xelins! – exclamou ela. – Qual era o valor do cheque?

– Dez libras e onze xelins – disse Paul, irritado. Ele receava o que estava para vir.

– E esta semana ele dá-me uma porcaria de vinte e cinco xelins, e ainda tenho de tirar o dinheiro para o clube. Eu bem o conheço... Pensa que por tu ganhares, já não precisa de sustentar a casa. Ele que coma o dinheiro, se quiser. Mas eu digo-lhe como é...

– Oh, mãe, não... – exclamou Paul.

– Não, o quê, posso saber? – disse ela.

– Não reaja assim... senão não consigo trabalhar.

Ela continuou, mas já um pouco mais calma.

– Pronto, está certo – disse ela. – Mas como é que pensas que me vou governar?

– Eu sei, mas não adianta nada piorar a situação.

– Gostava de saber o que é que farias se tivesses de aturar isto?

– Já não será por muito tempo... Vai ter o meu dinheiro não tarda, e ele que vá para o diabo.

Retomou o trabalho, e ela apertou as fitas do chapéu com desalento.

O filho não suportava vê-la assim, quando ela estava zangada. Todavia, começava agora a tentar dar-lhe isso a perceber.

– Os dois pães do tabuleiro de cima estão prontos dentro de vinte minutos – disse Mrs. Morel. – Não te esqueças.

– Está bem – respondeu ele, e Mrs. Morel saiu para o mercado.

Paul ficou sozinho a trabalhar. Mas a sua habitual concentração estava perturbada. Ouviu bater a cancela do pátio. Cerca das sete e um quarto, bateram ao de leve na porta e Miriam entrou.

– Estás sozinho? – perguntou.

– Estou.

Como se estivesse na sua própria casa, tirou a boina escocesa e o casaco comprido e pendurou-os. Ele sentiu uma tremura. Esta podia ser a casa deles, dele e dela.

Miriam aproximou-se e espreitou o que ele estava a fazer.

– O que é? – perguntou.

– Uma natureza morta... para decorar objectos e bordados.

Ela inclinou-se mais, aproximando os olhos míopes do desenho.

– E gostas do que fazes? – inquiriu.

– Adoro. Neste momento ando em maré de convencionalizar tudo.

– Ah...

Miriam não se interessava por estudos convencionais, mas reconhecia que ele devia saber mais do que ela sobre tais coisas. Eram coisas de homens, coisas que não lhe diziam respeito. No entanto, havia de descobrir a razão por que ele andava, como dizia, em maré de convencionalizar tudo. Que fascínio poderia ter para ele o convencional?

– O que é que te faz gostar disto? – perguntou ela, intrigada.

Ele, como já era seu hábito, procurou justificar-se. Lutando com as palavras, tentou explicar-lhe a teoria de que a força de gravitação é o agente mais poderoso, o factor responsável pela forma das coisas, e que, se pudesse agir em completa liberdade, apareceria uma rosa geometricamente correcta nas linhas e nas proporções... e assim por diante. Isto fez desabrochar nela um certo conceito de desenho convencional que até aí lhe parecia ser pura mentira. Por fim, ele empurrou os livros para o lado.

– Posso...? – disse ele, ansioso e hesitante.

– Podes o quê?

– Mostrar-te isto... Não era minha intenção enquanto não estivesse pronto.

Paul não conseguia esconder-lhe nada do que fazia. Foi à sala e voltou com uma trouxa de linho cru. Desembrulhou-a cautelosamente e estendeu-a no chão. Era um cortinado, ou melhor, um portière, magnificamente decorado com rosas, estampadas a stencil.

– Ah, que bonito! – exclamou ela.

O tecido espraiou-se aos pés dela, com as suas maravilhosas rosas em tons rubros e caules em verde-escuro, tudo muito simples, mas com um não sei quê de perverso. Ela ajoelhou-se, deixando pender soltos os caracóis. Ele, ao vê-la assim, voluptuosamente debruçada sobre a sua obra, sentiu bater mais depressa o coração. De repente, ela ergueu os olhos para ele.

– Porque é que isto parece tão cruel? – perguntou.

– O quê?

– Parece haver neste padrão uma certa crueldade – disse ela.

– Haja ou não haja, a mim parece-me óptimo – replicou ele, dobrando o trabalho com mãos de amante. Ela levantou-se devagar, pensativa.

– Que vais fazer com isto? – perguntou ela.

– Mandá-lo para os armazéns Liberty. Fi-lo para a minha mãe... mas acho que ela prefere o dinheiro.

– Estou a ver... – disse Miriam. Havia na voz dele um travo de amargura, e ela ficou com pena. A ela, o dinheiro jamais lhe interessaria.

Paul levou o tecido novamente para a sala, e, quando voltou, atirou a Miriam um retalho mais pequeno. Era a fronha de uma almofada, com um padrão idêntico.

– Fi-la para ti.

Miriam apalpou o trabalho com mãos trémulas, em silêncio. Paul ficou embaraçado.

– Meu Deus, o pão! – gritou ele.

Tirou os pães do tabuleiro superior e bateu-lhes vigorosamente. Já estavam cozidos. Pô-los ao lado da lareira, para arrefecerem. Em seguida, foi à copa, molhou as mãos, retirou do alguidar a massa, muito branca, que ainda restava, e colocou-a dentro de uma forma de pão. Miriam continuava debruçada sobre o tecido pintado. Enquanto isso, Paul esfregava as mãos, esforçando-se por tirar os bocadinhos de massa que se lhe tinham agarrado.

– Gostas? – perguntou ele.

Ela levantou para ele os seus olhos profundos, inflamados de amor. Ele riu-se, contrafeito. Depois começou a falar do seu desenho. Falar com Miriam sobre os trabalhos que fazia era para ele fonte do mais intenso prazer. Punha toda a sua paixão, toda a violência do seu sangue, nestas conversas com ela, em que discutia e concebia as suas obras. Ela fazia-lhe desabrochar a imaginação, embora não entendesse, como nenhuma mulher entende, quando concebe uma criança no seu ventre. Mas isto para ela, sim, era viver. E para ele também.

Enquanto conversavam, uma rapariga que andaria pelos vinte e dois anos, baixa e descorada, de olhos encovados, mas olhar determinado, entrou na sala. Era uma amiga dos Morels.

– Põe-te à vontade – disse Paul.

– Não... não me demoro.

Sentou-se no cadeirão de braços, em frente de Paul e de Miriam, que estavam no sofá. Miriam afastou-se um pouco mais de Paul. A casa estava quente e cheirava a pão acabado de fazer: os pães tostadinhos, a estalar, pousados ao lado da chaminé.

– Não esperava vir encontrar-te hoje aqui, Miriam Leivers – disse Beatrice, maldosa.

– Não sei porquê! – resmungou Miriam, asperamente.

– Porque... Ora deixa lá ver os teus sapatos.

Miriam, constrangida, não se mexeu.

– Se não sabes, não sabes, e pronto – disse Beatrice, dando uma gargalhada.

Miriam tirou os pés de baixo do vestido. As suas botas tinham aquele ar indeciso e patético que evidenciava bem o quanto ela era insegura e complexada. E estavam, além disso, cobertas de lama.

– Santa Maria!... És mêmo um monte de lama! – exclamou Beatrice. – Quem te limp’as botas?

– Limpo-as eu.

– Então não deves ter mai nada que fazer – disse a outra. – Havia de ser preciso muitos homens pra me fazerem vir ‘té’qui esta noite... Mas o amor zomba da lama... não é, ‘Póstolo, meu lindo?

– Inter alia – disse ele.

– Valha-me Deus, não me digas que te vais pôr agora a vomitar línguas estrangeiras!... O qu’é que isso quer dizer, Miriam?

– «Entre outras coisas», julgo eu – disse ela, humildemente. Beatrice riu-se maliciosamente, com a ponta da língua a despontar entre os dentes.

– «Entre outras coisas», ‘Póstolo? – repetiu ela. – Queres tu dizer qu’o amor se ri das mães e dos pais e das irmãs e dos irmãos e dos amigos e das amigas, e se calhar até do próprio ser amado?

Estava a fazer-se de ingénua.

– Na verdade, o amor é um sorriso rasgado – retorquiu ele.

– Isso é qu’era bom, ‘Póstolo Morel... Vai por mim... – disse ela.

E riu-se de novo, com malícia, muito baixinho.

Miriam continuava calada, fechada sobre si mesma. Todas as amigas de Paul adoravam meter-se com ela, e ele deixava-a entregue a si própria, como se aproveitasse para se vingar.

– Ainda continuas na mesma escola? – perguntou Miriam a Beatrice.

– Continuo.

– Então ainda não te mandaram embora?

– Devem mandar na Páscoa.

– Não achas uma pouca-vergonha... mandarem-te embora só por não teres passado no exame?!

– Não sei – ripostou Beatrice, friamente.

– A Agatha diz que és tão boa professora como as outras. A mim parece-me ridículo. Porque será que não passaste?

– Cabeça dura, hem, ‘Póstolo? – disse Beatrice, secamente.

– Só lhe serve para morder – retorquiu Paul, a rir.

– Monstro! – gritou ela, e, saltando do lugar, atirou-se a ele e deu-lhe um puxão de orelhas. As mãos dela eram pequeninas e elegantes. Ele prendeu-lhe os pulsos enquanto ela se debatia. Conseguiu por fim libertar-se e, apanhando dois punhados do cabelo dele, castanho e espesso, puxou com toda a força.

– Oh, Bea – disse ele, alisando o cabelo com os dedos. – Odeio-te.

Ela riu, consolada.

– Com licença! – disse ela. – Quero sentar-me ao pé de ti.

– Antes estar sentado ao lado duma fera – disse ele, deixando no entanto espaço para a outra se sentar entre ele e Miriam.

– Olha, ficou com o cabelinho todo despenteado! – exclamou Beatrice, penteando-o com o seu próprio pente.

– E o bigodinho também! – continuou ela. E, atirando a cabeça para trás, com um trejeito, penteou-lho.

– Tens um bigodinho todo malandro, ‘Póstolo – disse ela. – Vermelho, sinal de perigo... Ainda tens daqueles cigarros?

Paul tirou a cigarreira do bolso. Beatrice olhou.

– Já não tens nenhum daqueles charros qu’a Connie te deu? – perguntou.

– Ainda devo ter um por aí...

Procurou no bolso e encontrou uma caixinha. Beatrice pegou-lhe.

– É isso, só tens um! – disse ela. – Devia ser para a Miriam. Não queres o charro da Connie, Miriam?

– Não, obrigada – replicou Miriam. – Quem é a Connie?

– Ele não te contou? – exclamou Beatrice, surpresa. – Bem, ‘Póstolo Morel, acho que não é bonito deixar uma menina tão linda às escuras.

– Não queres mesmo fumar? – perguntou Paul a Miriam.

– Sabes bem que não – respondeu ela.

– Imaginem só, eu a fumar o último cigarro da Connie – disse Beatrice, metendo o cigarro entre os dentes. Paul estendeu-lhe um fósforo aceso e ela aspirou sofisticadamente.

– Obrigadíssima, querido – disse, trocista.

Dizer estas coisas dava-lhe um prazer perverso a que não conseguia resistir.

– Que jeitinho que ele tem, não achas, Miriam? – perguntou.

– Se tem! – disse Miriam.

Paul tirou um cigarro.

– Lume, menino? – disse Beatrice, chegando o seu cigarro ao dele.

Ele inclinou-se para a frente, para acender o cigarro no dela. Ela piscou-lhe o olho. Miriam viu os olhos dele a brilharem de malícia e os seus lábios carnudos, quase sensuais, a tremerem. Ele já não estava em si, e isso para ela era insuportável. Aquele que ali estava agora não tinha nada a ver com ela, era como se ela não existisse para ele. Via-lhe o cigarro a bailar nos lábios cheios, bem vermelhos, e odiava aquelas madeixas espessas que lhe caíam livres sobre a testa.

– Meu torrãozinho de açúcar! – disse Beatrice, levantando-lhe o queixo e dando-lhe um beijo na face.

– Agora é a minha vez, Beat – disse ele.

– Isso é que não! – disse ela, com uma risadinha, fugindo para longe. – Ele é mesmo descarado, não achas, Miriam?

– Do pior! – disse Miriam. – A propósito, não te esqueceste do pão?

– Meu Deus! – gritou Paul, abrindo a porta do forno, de onde saiu um fumo azulado e um cheiro a pão queimado.

– Céus! – gritou Beatrice, correndo para junto dele. Paul ajoelhou-se diante do forno e ela espreitou-lhe por cima do ombro. – Aí está o resultado de só pensares no amor, meu lindo.

Paul, contrito, tirava os pães do forno. Um deles estava todo preto por baixo e o outro duro que nem uma pedra.

– Pobre Mater! – disse Paul.

– Agora tens de o raspar – disse Beatrice. – Traz-me o ralador de noz-moscada.

Ela compôs os pães que ainda estavam no forno, ele trouxe-lhe o ralador e ela raspou a parte queimada em cima da mesa, para um jornal. Paul abriu as portas, para eliminar o cheiro a queimado, e Beatrice continuou a raspar o pão, fumando enquanto arrancava a crosta carbonizada da pobre carcaça.

– Ai, ai, Miriam, desta vez estás bem arranjada – disse Beatrice.

– Eu! – exclamou Miriam, espantada.

– É melhor saíres antes de a mãe dele chegar... Agora é que eu percebo porque é que o Rei Alfred queimou os bolos. Agora, sim. O ‘Póstolo inda podia dizer que se tinha esquecido por causa do trabalho, se achasse que isso ia pegar. Se a velha da lenda tivesse chegado um nadinha mais cedo, teria dado cabo das orelhas da desavergonhada que provocou o esquecimento, e não das do pobre Alfred...

E riu-se, enquanto raspava o pão. Até Miriam, não se contendo, se riu também. Paul, pesaroso, pôs mais carvão na fogueira.

Ouviu-se bater o portão do jardim.

– Depressa! – gritou Beatrice, estendendo a Paul a carcaça já raspada. – Embrulha-a numa toalha húmida.

Paul correu para a copa. Beatrice soprou apressadamente as raspadelas para a fogueira e foi sentar-se com ar inocente. Annie entrou de rompante. Era uma rapariga muito esperta e sem rodeios. A luz intensa fê-la piscar os olhos.

– Cheira-me a queimado! – exclamou.

– É dos cigarros – explicou Beatrice, muito séria.

– Onde está o Paul?

Leonard entrou logo a seguir a Annie. Tinha uma cara comprida e engraçada, e uns olhos azuis muito tristes.

– Acho que se retirou para vocês se entenderem as duas – disse ele.

Depois, cumprimentou Miriam com ar penalizado, e mostrou-se suavemente sarcástico com Beatrice.

– Nada disso – disse Beatrice. – Foi sair com a número nove.

– Olha, vi mesmo agora a número cinco, que andava à procura dele – acrescentou Leonard.

– Pois é... Nós vamos ter de o dividir como o menino de Salomão – disse Beatrice.

Annie deu uma gargalhada.

– Ah, sim? – disse Leonard. – E com que bocado queres tu ficar?

– Sei lá – disse Beatrice. – As outras que escolham primeiro.

– E tu depois ficas com os restos? – disse Leonard, fazendo uma careta.

Annie estava às voltas com o forno. Miriam estava abandonada no seu canto. Paul entrou.

– Este pão está lindo, menino Paul – disse Annie.

– Então devias ter ficado a tomar conta dele – disse Paul.

– Tu é que devias ter feito aquilo que te compete – repontou Annie.

– Devia, não devia? – exclamou Beatrice.

– Mas se calhar estava com as mãos muito ocupadas... – atalhou Leonard.

– Viste-te aflita para cá chegar, não foi, Miriam? – disse Annie.

– Se vi... Mas tinha estado metida em casa toda a semana...

– E apeteceu-te mudar, hem? – insinuou Leonard, melífluo.

– Bem, não se pode passar a vida inteira dentro de casa – disse Annie, conciliadora. Beatrice vestiu o casaco e saiu com Leonard e Annie. Ia encontrar-se com o seu rapaz.

– Não te distraias com o pão, menino Paul – gritou Annie. – Boa noite, Miriam, acho que não vai chover mais.

Depois de todos saírem, Paul foi buscar o pão queimado, desembrulhou-o e olhou para ele com desalento.

– Está uma porcaria! – disse.

– Mas qual é o problema? – disse Miriam, enfadada. – Afinal são só... dois dinheiros e meio.

– Está bem... mas trata-se do pão da minha mãe, de que ela tanto se orgulha... e ela não vai gostar nada... Mas agora já não adianta preocuparmo-nos.

Levou o pão outra vez para a copa. Instalara-se uma certa distância entre ele e Miriam. Por uns momentos, Paul hesitou diante dela, a meditar, pesando o seu comportamento com Beatrice. No fundo, sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo contente. Não sabia explicar porquê, mas achava que era bem feito para Miriam. Não era agora que se ia arrepender. Miriam pensava no que ele estaria a cogitar, ali hesitante diante dela. Madeixas de cabelo espesso caíam-lhe ainda sobre a testa. E se lho puxasse para trás, para apagar as marcas do pente de Beatrice? E se lhe apertasse o corpo entre as suas mãos? Parecia tão rijo e palpitante. Se ele deixava as outras fazerem-lhe isso, porque não ela?

De súbito, Paul voltou à vida, e Miriam quase tremeu de susto quando ele arredou os cabelos da testa e avançou para ela.

– Oito e meia! – disse ele. – É melhor irmos a isto. Onde está o teu caderno de francês?

Miriam, contrariada, mostrou-lhe timidamente o caderno de exercícios de francês. Todas as semanas lhe entregava uma espécie de diário da sua vida íntima, escrito por ela em francês. Paul descobrira que era a única maneira de a convencer a fazer composições. O diário era acima de tudo uma carta de amor. Agora, ele ia lê-lo e era como se a história da sua alma fosse ser profanada por ele, no estado em que se encontrava. Paul sentou-se ao lado dela. Ela atentou na mão dele, firme e quente, percorrendo minuciosamente o seu trabalho.

Ele lia apenas as palavras em francês, ignorando a alma que encerravam. Mas, gradualmente, a mão esqueceu a tarefa e ele continuou a ler em silêncio, e em total imobilidade. Ela estremeceu.

– «Ce matin les oiseaux m’ont éveillé» – leu ele. – «II faisait encore un crépuscule. Mais la petite fenêtre de ma chambre était blême, et puis, jaûne, et tous les oiseaux du bois éclatèrent dans un chanson vif et résonnant. Toute l’aûbe tressaillit. J’avais rêvé de vous. Est-ce que vous voyez aussi 1’aube? Les oiseaux m’éveillent presque tous les matins, et toujours il y a quelque chose de terreur dans le cri des grives. II est si clair...».2

Miriam estava sentada, a tremer, envergonhada. Ele mantinha-se imóvel, tentando compreender. Apenas percebia que ela o amava, mas tinha medo do seu amor. Era mais do que ele merecia, e ele não era digno dela. Era ele que não a amava o suficiente, e não o contrário. Envergonhado, corrigiu-lhe o trabalho, anotando os erros timidamente por cima das palavras.

– Repara – disse ele, sereno. – Quando o particípio passado é conjugado com avoir, concorda com o complemento directo sempre que este o precede.

Ela inclinou-se para a frente, para ver melhor e poder compreender. Os seus caracóis finos e soltos roçaram-lhe ao de leve na cara, e ele deu um salto como se um ferro em brasa lhe tivesse tocado. Ao vê-la debruçada sobre a página, com os lábios rubros dolorosamente entreabertos, o cabelo negro caindo em finas madeixas sobre as faces afogueadas, corada como uma romã, a respiração tornou-se-lhe ofegante. Então, ela olhou para ele: os seus olhos negros punham a nu todo o seu amor, medo e desejo. E os olhos dele, negros também, feriram os dela. Pareciam dominá-los. E ela, perdendo o domínio de si própria, ali estava exposta, amedrontada, à mercê dele. Paul sabia, porém, que antes de a poder beijar, tinha de arrancar alguma coisa de si mesmo. E, então, um sopro de ódio por ela penetrou-lhe outra vez no coração, fazendo-o retomar as suas correcções.

De súbito, ele atirou com o lápis pelo ar e precipitou-se para o forno, para virar o pão. Era brusco de mais para o gosto dela. Miriam estremeceu em violento sobressalto, e a dor que sentiu era real. Até a maneira como ele se punha de cócoras diante do forno a magoava. Pressentia alguma crueldade nos seus gestos, alguma crueldade na brusquidão com que tirava os pães das formas, atirando-os ao ar e apanhando-os na queda. Se ao menos ele fosse gentil nos movimentos, sentir-se-ia mais rica e confortada no seu íntimo. Mas, assim, era só dor o que sentia.

Paul voltou para junto dela e acabou o exercício.

– Desta vez saíste-te bem – disse ele.

Ela percebeu que ele se sentia lisonjeado com o diário, mas isso não era recompensa suficiente.

– Sim senhora, de vez em quando fazes um brilharete – disse ele. – Devias escrever poesia.

Ela ergueu a cabeça, transbordante de alegria, mas logo a abanou desalentada.

– Falta-me confiança – disse ela.

– Mas devias tentar!

Mas ela abanou a cabeça.

– Vamos ler um bocado, ou achas que já é muito tarde? – perguntou ele.

– Lá tarde, é... mas podíamos ler só um bocadinho – pediu ela.


CONTINUA

Partiriam no sábado seguinte de manhã, no comboio das sete horas. Paul sugeriu a Miriam que dormisse em casa dele, pois morava muito longe, e ela já jantou de véspera em casa dele. Estavam todos tão excitados que a vinda de Miriam até foi recebida com entusiasmo. Contudo, mal ela chegou, a família tornou-se menos expansiva e mais fechada. Paul tinha descoberto um poema de Jean Ingelow que falava em Mablethorpe, e, por isso, tinha de o mostrar a Miriam. Sem ela, o seu sentimentalismo nunca teria chegado ao ponto de ler poesia para a família ouvir. Mas agora concordavam em ouvi-lo. Miriam, sentada no sofá, escutava-o enlevada. Quando ele estava presente, ela parecia sempre presa a ele e das palavras dele. Mrs. Morel, com ciúmes, sentou-se na sua cadeirinha de baloiço para o escutar. Annie e o pai escutavam-no também; Morel tinha a cabeça mais levantada de um lado, como alguém que escuta um sermão e está consciente do mesmo. Paul espreitou por cima do livro. Tinha agora a presença de quem mais gostava. E Mrs. Morel e Annie quase competiam com Miriam, sobre qual seria a ouvinte mais atenta, a preferida dele. Paul sentia-se nos píncaros.

– Mas – interrompeu Mrs. Morel – não percebo porque é que os sinos têm que tocar A Noiva de Enderbyt...?

– É uma velha melodia que os sinos costumavam tocar como aviso contra a cheia. Penso que a tal Noiva de Enderby morreu afogada numa enchente – respondeu ele. Não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer na realidade, mas nunca se teria rebaixado ao ponto de o confessar perante o seu público feminino. Elas escutavam-no e acreditavam. Ele próprio acreditava nas coisas que dizia.

– E as pessoas sabiam o significado dessa melodia? – quis saber a mãe.

– Sim... tal e qual os escoceses quando escutam As Flores da Floresta... e quando costumavam tocar os sinos em sinal de alarme em sentido contrário.

– Ah! – exclamou Annie. – Quer dizer que os sons de um sino são sempre os mesmos quando são tocados no seu sentido correcto, ou ao contrário.

– Mas – disse ele – se começares num tom grave e subires até ao agudo... lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá! – disse ele, percorrendo a escala completa, e todos o acharam muito inteligente. Ele também. Depois, aguardando um minuto, continuou a ler o poema.

– Hum! – disse Mrs. Morel, apreciativamente, quando ele terminou. – Só espero que tudo o que se tem escrito não seja assim tão triste.

– Num consig’intender porqu’é qu’houve tantos afogamentos – disse Morel. Houve uma pausa. Annie preparou-se para levantar a mesa.

– Acho Elizabeth um belo nome – disse Miriam, em voz baixa. – «A minha nora Elizabeth...»

– Concordo – disse Paul.

– Também acho – disse a mãe. – Mas não gosto de Lizzie e abomino Liza.

Nem Paul nem Miriam achavam que Lizzie ou Liza tivessem algo a ver com o assunto.

– Ah, mas «Elizabeth»! – murmurou Miriam.

– E ainda por cima, a Rainha Elizabeth adorava que a tratassem por «Grande Eliza» – disse Paul.

– E amanhã há mais! – disse Morel, não se contendo.

Mrs. Morel e Paul deram uma gargalhada.

– Aposto que nem sapatos tinha – disse Morel, continuando com a brincadeira.

– Não seja tão insolente com uma rainha – disse Annie.

– Rainhas! – exclamou Morel. – Num pensas noutra coisa senão nas rainhas? Num fazes mai nada senão viver à grande e à francesa!

Miriam levantou-se para ajudar a lavar a loiça.

– Deixa-me ser eu a lavar a loiça – disse ela.

– Não é necessário – exclamou Annie. – Vai-te sentar. É pouca loiça.

E Miriam, que não se sentia à vontade para insistir, sentou-se a ver o livro com Paul.

Paul era o chefe do grupo... para isso, o pai não prestava. E muito ele sofreu para que o baú de latão fosse descarregado em Firsby e não em Mablethorpe. E não foi também capaz de encontrar uma carruagem com lugares. Só a genica de Mrs. Morel o conseguiu.

– Aqui! – gritou ela para um homem. – Aqui!

Paul e Annie ficaram para trás envergonhadíssimos, mas perdidos de riso.

– Quanto é a viagem até Brook Cottage? – perguntou Mrs. Morel.

– Dois xelins.

– É assim tão longe?

– Ainda é um bom bocado.

– Não acredito – disse ela.

Contudo subiu para a carruagem. Iam os oito apertados numa velha carruagem da linha costeira.

– Bem vêem – disse Mrs. Morel –, são apenas três dinheiros por pessoa, mas se fosse um eléctrico...

A viagem prosseguiu. Sempre que passavam por uma casa típica, Mrs. Morel exclamava:

– É esta?... Não, agora é que é!

Estava toda a gente morta de ansiedade. A viagem prosseguiu. Houve um suspiro em uníssono.

– Estou agradecida por não ser aquela coisa horrorosa – disse Mrs. Morel. – Estava assustada.

Passou-se ainda mais algum tempo.

– Aquela mulher repelente disse que a casa ficava a dez minutos do mar...! – exclamou Mrs. Morel.

– Pra ela uma hora deve ser um minuto – reclamou Morel.

Todos o mandaram calar.

– Será que nunca mais chegamos? – exclamou Mrs. Morel, muito alto.

– Não grite assim, mãe – disse Annie. – O que é que ele irá pensar?

Mrs. Morel olhou de um modo esquisito para o condutor, e disse:

– Não sei! Mas, pelo aspecto, penso que não pensará nada de especial.

Finalmente, desceram perto de uma casa isolada, sobre o canal que passava na estrada principal. Houve grande alvoroço quando descobriram que tinham de atravessar uma pequena ponte para chegarem ao jardim da casa. Adoraram a casa, que ficava isolada, com o mar de um lado e, do outro, uma imensa extensão de terra plana que se estendia até ao céu, e onde se distinguia o branco da cevada, o amarelo da aveia, o vermelho do trigo e o verde dos nabos.

Paul registava as despesas e ele e a mãe governavam a casa. As despesas globais, incluindo o alojamento e a alimentação ascendiam a dezasseis xelins por pessoa e por semana. De manhã, Paul e Leonard iam tomar banho ao mar. Morel saía bastante cedo para ir dar um passeio.

– Paul – chamou a mãe do quarto. – Come uma fatia de pão com manteiga.

– Está bem – respondeu ele.

Quando regressou, a mãe estava sentada à cabeceira da mesa. A dona da casa era jovem. O marido era cego e ela cuidava da roupa. Assim, Mrs. Morel lavava a loiça na cozinha e fazia as camas.

– Mas a mãe prometeu que ia fazer umas férias a sério – disse Paul – e agora está a trabalhar.

– Trabalho? – exclamou ela. – De que é que estás a falar?

Paul adorava ir passear com ela pelos campos, até à aldeia ou até ao mar. Ela tinha medo de atravessar pontes de madeira e ele acusava-a de se portar como um bebé. Era apegado à mãe como se fosse o seu marido.

Miriam raramente andava com ele – excepto, talvez, quando iam todos ouvir os Coons. Os Coons eram insuportavelmente estúpidos para Miriam e, por isso, eram-no também para Paul, que pregava sermões presunçosos a Annie sobre a perda de tempo que era irem ouvi-los. Todavia, também ele sabia todas as suas canções de cor e as cantava desbragadamente pelas ruas. E, quando reparava que os estava a ouvir, a estupidez da situação agradava-lhe imenso. Contudo dizia para Annie:

– Que porcaria!... Não há um pingo de inteligência naquilo que cantam. Ninguém que tenha mais miolos que um gafanhoto consegue aguentá-los. – E dizia a Miriam, com algum desdém, onde estavam Annie e os outros:

– Suponho que foram aos Coons.

Era ridículo ouvir Miriam trautear as canções dos Coons. Tinha um queixo talhado a direito que descia na perpendicular desde o lábio inferior até à curvatura do maxilar. Quando ela cantava, Paul achava-a parecida com um anjo triste de Botticelli, mesmo quando entoava:


«Vem pela Estrada do Amor

Vem comigo passear, falar comigo...»


Miriam só tinha Paul todo para ela quando ele desenhava, ou à noite, quando todos os outros estavam a ouvir os Coons. Ele falava-lhe então interminavelmente do seu gosto pelos planos horizontais: como é que os grandes níveis do céu e da terra significavam para ele a eternidade da vontade, tal como os arcos normandos, arredondados e em série, significavam um salto em frente da alma humana voluntariosa, não se sabe para onde; pelo contrário, as linhas perpendiculares e o arco gótico apontavam para o céu e afloravam o êxtase, perdendo-se no divino. Ele era normando, Miriam era gótica. Submissa, ela concordava com tudo o que ele dizia.

Certa tarde, ele e ela foram passear pelo extenso areal que conduzia a Theddlethorpe. As alongadas vagas quebravam-se e elevavam-se em silvos agudos de espuma ao longo da costa. A tarde estava quente e eles completamente sozinhos na imensidão da areia, a sós com o barulho do mar. Paul adorava ouvir o mar a ressoar na areia. Adorava sentir-se entre o som do mar e o silêncio do areal. Miriam estava com ele. Tudo se tornava mais intenso. Já tinha anoitecido quando regressaram. O regresso a casa fazia-se através de uma passagem nas dunas, e depois através de uma estrada pejada de ervas, rasgada entre dois diques. A aldeia estava cinzenta e calma. Por detrás das dunas soava o murmúrio do mar. Paul e Miriam caminhavam em silêncio. De repente, ele estacou. O seu sangue parecia ter-se incendiado e ele mal podia respirar. Uma enorme lua alaranjada observava-os do alto das dunas. Ele continuava parado, olhando a lua.

– Oh! – exclamou Miriam, quando a viu também.

Ele estava ali, petrificado, olhando a lua dilatada e rubra, sozinha na escuridão imensa. O seu coração batia forte e tinha os músculos dos braços contraídos.

– O que foi? – murmurou ela, esperando por ele.

Ele voltou-se e fitou-a. Ela estava ao seu lado, para sempre na escuridão. A sua face, encoberta pela sombra do chapéu, olhava-o sem que ele a visse. E ela meditava. Estava um pouco receosa... profundamente emocionada e imbuída de religiosidade. Este era o seu melhor estado de alma. Ele sentia-se impotente face a esta situação. O sangue parecia concentrar-se como uma fogueira no seu peito, mas ele não lhe conseguia transmitir o sentimento. Pareciam disparar relâmpagos do seu sangue, mas, de algum modo, ela ignorava-os. Ela esperava vê-lo atingir um estado de graça. Ainda à espera, mas meio consciente da paixão que o possuía, Miriam fitou-o, preocupada.

– O que se passa? – murmurou novamente.

– É a Lua – respondeu ele, franzindo a testa.

– Sim – concordou ela. – É maravilhosa, não é? – Ela estava intrigada. A crise tinha passado.

Ele próprio não sabia o que lhe tinha acontecido. Era ainda tão jovem e a sua intimidade tão abstracta que não se apercebeu de que desejava esmagá-la contra o peito para aliviar a dor que o trespassava. Tinha medo dela. Talvez o facto de a desejar como um homem deseja uma mulher tivesse permanecido oculto dentro dele como uma humilhação. Quando ela fugia desses pensamentos, torturando-se em extrema agitação, ele recolhia-se até ao mais recôndito da alma. E, neste momento, esta «pureza» inibia o seu primeiro beijo de amor. Era como se ela mal pudesse suportar o choque do amor físico, ou apenas um beijo apaixonado, deixando-o demasiado reprimido e sensibilizado para lho dar.

Enquanto caminhavam ao longo da negra lagoa, Paul contemplava a Lua e mantinha-se em silêncio. Miriam caminhava a seu lado devagar. Ele sentia que a odiava, pois ela parecia, de certa forma, levá-lo a autodesprezar-se. Olhando em frente, descortinou uma luz na escuridão; era a janela iluminada da sua casa.

Adorava pensar na mãe e no resto das pessoas, todos alegres.

– Bem, já todos chegaram há bastante tempo – disse a mãe quando eles entraram.

– E o que é que isso importa? – exclamou ele, irritado. Posso ir passear quando me apetecer, não posso?

– Pensei que quisesses jantar com o resto do grupo – disse Mrs. Morel.

– Tenho de agradar a mim próprio – retorquiu ele. – Não é tarde e faço o que me apetece.

– Muito bem – disse a sua mãe, sarcasticamente. – Então faz o que te apetecer!

E nessa noite não falou mais com ele. Paul fingiu não notar nem estar preocupado com o assunto, e sentou-se a ler. Miriam lia também, tentando alienar-se. Mrs. Morel detestava-a por ela pôr o filho naquele estado. Via o filho irritadiço, presumido e melancólico, e culpava Miriam.

Annie e os amigos também se voltavam contra Miriam. O único amigo de Miriam era Paul. Mas ela não se importava, pois desprezava a trivialidade de todas essas pessoas.

E Paul detestava-a, pois ela perturbava, por assim dizer, o seu bem-estar e a sua naturalidade, torturando-o com sentimentos de humilhação.

1 «Os últimos representantes de uma raça extinta.» (N. da T.)


VIII

ZANGAS DE AMOR

ARTHUR terminou o estágio e arranjou emprego na central eléctrica da mina de Minton. Ganhava muito pouco, mas tinha possibilidades de progredir. Era, porém, rebelde e impaciente. Não bebia nem tinha o vício do jogo, mas envolvia-se constantemente em rixas devido às suas reacções intempestivas. Ia caçar coelhos para a floresta, qual caçador furtivo, e passava a noite em Nottingham em vez de voltar para casa, ou então ia nadar para o canal de Bestwood e falhava os cálculos do mergulho, ficando com o peito ferido, das rochas naturais e das latas que andavam a boiar à tona.

Tinha faltado ao emprego meses a fio, e uma noite não voltou para casa.

– Sabe por onde anda o Arthur? – perguntou Paul ao pequeno-almoço.

– Não – respondeu a mãe.

– É mesmo maluco – disse Paul. – Eu já nem ligaria, se ele ao menos fizesse mesmo alguma coisa. Mas não... não consegue resistir a um jogo de cartas, ou então vai levar alguma rapariga a casa depois da patinagem, com todo o decoro... e acaba por não voltar para casa. É maluco.

– Não vejo porque seria melhor se ele fizesse mesmo alguma coisa que nos envergonhasse – disse Mrs. Morel.

– Bem... eu, pelo meu lado, passaria a respeitá-lo mais – disse Paul.

– Duvido muito – respondeu a mãe secamente.

Continuaram a tomar o pequeno-almoço.

– A mãe gosta desvairadamente dele, não gosta? – perguntou Paul.

– Porque fazes essa pergunta?

– Dizem que as mães gostam sempre mais do filho mais novo.

– Talvez... mas eu não. Não... ele irrita-me.

– E gostava que ele se portasse melhor?

– Gostava que ele mostrasse algum bom senso masculino.

Paul estava ferido e irritado. Também ele irritava a mãe frequentemente. E ela ficava triste, pois via os melhores anos a fugirem-lhe.

Estavam a acabar o pequeno-almoço, quando o carteiro lhes entregou uma carta vinda de Derby. Mrs. Morel esforçou-se para ler o endereço.

– Dê cá isso, sua pitosga! – exclamou o filho, tirando-lhe a carta da mão. Ela assustou-se e quase lhe dava uma bofetada.

– É do seu filho Arthur – informou ele.

– Mas o que vem a ser isto? – exclamou Mrs. Morel.

– «Querida mãe» – leu Paul. – «Não sei o que me deu. Quero que me venha buscar. Ontem, em vez de ir trabalhar, vim alistar-me no exército com o Jack Brendon. Ele disse que estava farto de passar a vida sentado num escritório, e eu, idiota, como já sabe que sou, resolvi vir com ele.

«Já recebi o dinheiro referente ao recrutamento, mas se me vier buscar, talvez eles me deixem ir consigo. Foi uma loucura ter feito o que fiz. Não quero ficar no exército. Querida mãe, sei que não passo de um estorvo para si, mas, se me tirar desta situação, prometo que serei mais consciente e ponderado...»

Mrs. Morel sentou-se na cadeira de baloiço.

– Vejam só! – exclamou. – Ele que assente por uns tempos!

– Também acho – disse Paul. – Ele que assente!

Fez-se silêncio. A mãe estava sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, o rosto imóvel, pensativa.

– Devo estar doente – exclamou de repente. – Doente!

– Então! – disse Paul, franzindo a testa – Não quero que se preocupe com isto, está a ouvir?

– Então queres que encare isto como uma bênção? – disse ela, de repente, virando-se para o filho.

– Agora não vai tornar isto numa tragédia, pois não? – retorquiu ele.

– Ele é maluco!... Maluquinho de todo! – gritou Mrs. Morel.

– Vai ficar todo bonito com a farda – disse Paul, para espicaçar a mãe.

Ela virou-se a ele, furiosa.

– Ah, vai? – gritou ela. – Mas não para mim!

– Devia ir para um regimento de cavalaria... Ele divertia-se à grande e nós passávamos a ser chiques.

– Chiques!... Chiques!... Muito chique, não haja dúvida!... Um soldado raso!

– Ora – disse Paul. – E o que sou eu, senão um reles escriturário?

– O que é muito mais, meu filho! – gritou a mãe, picada.

– Essa agora!

– De qualquer forma, és um homem e não uma coisa enfiada num casaco vermelho.

– Não me importava de andar enfiado num casaco vermelho... ou azul-escuro, que me ficaria melhor... se eles não me dessem muitas ordens.

Mas a mãe já não o ouvia.

– Agora que ele estava a progredir, ou poderia vir a progredir no emprego... um aborrecimento passageiro e aí vai ele... dar cabo da vida toda. Que vantagens é que tu pensas que isto lhe pode trazer?

– Vai pô-lo todo afinado! – disse Paul.

– Todo afinado!... E o que tem ele para afinar? Um soldado!... Um soldado raso!!... Nada mais do que um corpo que se mexe quando lhe dão ordens! Grande coisa!

– Não percebo porque é que isso a aborrece tanto – disse Paul.

– Não, talvez não percebas. Mas percebo eu. – E recostou-se na cadeira, de queixo apoiado numa das mãos e segurando o cotovelo com a outra, a transbordar de raiva e desilusão.

– Está a pensar ir a Derby? – perguntou Paul.

– Estou, pois.

– Não faça isso.

– Quero ver com os meus próprios olhos.

– Mas por que diabo é que não o deixa assentar? É isso mesmo que ele quer.

– Claro – exclamou a mãe. – Tu sabes muito bem o que ele quer...

Preparou-se e apanhou o primeiro comboio para Derby, onde se encontrou com o filho e com o sargento. Todavia, os seus esforços foram infrutíferos.

Morel estava a almoçar, quando ela disse de repente:

– Tenho de ir hoje a Derby.

O mineiro levantou os olhos, muito brancos numa face toda enfarruscada.

– Ah, vais, cachopa? E o que te leva lá?

– O menino Arthur!

– Qu’aprontou ele desta vez?

– Alistou-se no exército, só isso.

Morel pousou a faca e recostou-se na cadeira.

– Não – disse ele. – Num pode ser!

– E amanhã vai para Aldershot.

– Bom – exclamou o mineiro –, iss’é qu’é já uma grand’alhada.

Morel reflectiu por um momento, disse «Hum!» e continuou a jantar. Subitamente, a face contraiu-se-lhe de raiva.

– Espero qu’ele nunca mais volte a pôr as patas nesta casa – disse ele.

– Credo! – exclamou Mrs. Morel. – Isso é lá coisa que se diga!

– É o qu’eu penso – repetiu Morel. – O doidivanas pisga-se pa ser soldado... Atão é porque já tá na hora de fazer pela vida... Comigo na conta mais.

– Falar é fácil... – disse Mrs. Morel.

Nessa noite, Morel quase sentiu vergonha de ir para a taberna.

– Então, sempre lá foi? – perguntou Paul à mãe quando chegou a casa.

– Fui.

– E viu-o?

– Vi.

– E o que disse ele?

– Ficou lavado em lágrimas quando me vim embora.

– Hum!

– E eu fiz o mesmo, portanto não precisas de fazer «Hum!».

Mrs. Morel preocupava-se com o filho, pois sabia que ele não ia gostar de estar no exército. Como de facto não gostou. A disciplina era uma coisa que ele não conseguia tolerar.

– Mas o doutor disse que ele era bem proporcionado... quase na proporção exacta, e as suas medidas eram perfeitas – disse Mrs. Morel a Paul, cheia de orgulho. – Como tu sabes, ele é bem-parecido.

– Ele é muito bem-parecido. Mas não arranja raparigas como o William, pois não?

– Não... Tem uma personalidade diferente. Sai muito ao pai: é um irresponsável.

Para consolar a mãe, Paul passou nessa altura a ir muito menos a Willey Farm. No Outono, quando se realizou no castelo a habitual exposição dos trabalhos dos alunos da escola de belas-artes, ele apresentou dois trabalhos: uma paisagem a aguarela e uma natureza morta a óleo, que obtiveram dois primeiros prémios, o que o deixou deveras emocionado.

– Mãe, que lhe parece, acha que ganhei algum prémio com as minhas pinturas? – perguntou uma noite, ao chegar a casa. Pelos seus olhos, a mãe viu que ele estava feliz, e a sua face resplandeceu.

– Como queres que eu saiba, meu filho?!

– Um primeiro prémio por aquelas jarras de vidro...

– Ena!

– E outro primeiro prémio por aquele esboço que fiz em Willey Farm.

– Um primeiro prémio para cada coisa?

– Sim, senhora.

– Hum!

Mrs. Morel parecia envolvida numa aura brilhante, cor-de-rosa, mas não disse nada.

– É bem bom, não é, mãe? – disse ele.

– É, sim.

– Oh, mãe, porque não me põe nos píncaros?

Ela riu-se.

– É que depois tinha de ter o trabalho de te puxar cá para baixo outra vez.

No entanto, toda ela vibrava de alegria. William tinha-lhe trazido sempre os seus troféus desportivos. Ela ainda os guardava, e não perdoava a morte dele. Arthur era bonito e era pelo menos um belo exemplar masculino, terno e generoso, e provavelmente o futuro acabaria por lhe sorrir. Mas Paul iria destacar-se. Ela tinha uma grande fé no filho, e mais ainda por ele não ter consciência das suas capacidades. Ele tinha tanto para dar, e a vida parecia ter muito para lhe dar também. Ela iria sentir-se realizada através do filho. A sua luta não tinha sido em vão.

Durante o período da exposição, Mrs. Morel foi várias vezes ao castelo, sem que Paul a visse. Vagueava pelo longo salão, apreciando as restantes pinturas. Sim, eram muito boas. Mas faltava-lhes qualquer coisa para que a sua satisfação fosse completa. Observava-as longamente, tentando encontrar nelas alguma falha. De repente, algo lhe fazia disparar o coração. Aquela era a pintura de Paul. Conhecia-a como se a tivesse gravada no coração.

«Nome: Paul Morel. Primeiro Prémio.»

Parecia tão estranha, ali exposta ao público, nas paredes da galeria do castelo, onde já tinha visitado tantas exposições de pintura durante toda a sua vida. E, depois, olhou em volta, tentando descobrir se alguém a tinha tornado a ver em frente ao mesmo quadro.

Não cabia em si de orgulho, e quando se cruzava com senhoras bem vestidas, pensava para consigo:

«Pois sim, vocês estão muito bem vestidas... mas duvido que os vossos filhos consigam arrebatar dois primeiros prémios na exposição no castelo.»

E seguia o seu caminho, sentindo-se mais orgulhosa do que qualquer outra mãe de Nottingham. E Paul sentia que tinha feito algo por ela, mesmo não passando de uma insignificância. Todo o seu trabalho pertencia à sua mãe.

Um dia, encontrou Miriam quando se dirigia para o castelo. Tinha-a visto no domingo e não esperava encontrá-la na cidade. Vinha com ela uma mulher loura, espampanante, de expressão carregada e porte provocador. Era estranho como Miriam, tão meditativa e reverente, parecia insignificante ao lado desta mulher de ombros deslumbrantes. Miriam fitou Paul demoradamente. O olhar dele estava pregado na desconhecida, que o ignorava. Miriam via claramente o seu instinto masculino a erguer-se altaneiro.

– Olá – disse ele. – Não me disseste que vinhas à cidade.

– Pois não – retorquiu Miriam, em ar de desculpa. Fui à Feira do Gado com o meu pai.

Paul olhou para a companheira de Miriam.

– Já te tinha falado de Mrs. Dawes – disse Miriam, com a voz estrangulada. Estava nervosa. – Clara, já conheces o Paul?

– Penso que já o vi antes – respondeu Mrs. Dawes, indiferente, enquanto o cumprimentava. Tinha uns olhos cinzento-esverdeados, displicentes, a pele era mel claro, e a boca carnuda, com o lábio superior levemente levantado, não se percebendo se de desprezo por todos os homens ou desejo de ser beijada, sendo a primeira hipótese a mais provável. Tinha a cabeça inclinada para trás, como se ela se afastasse por desdém, talvez também dos homens. Usava um chapéu enorme e deselegante, de pele escura de castor, e um vestido simples levemente afectado, que lhe conferia as linhas de um saco. Obviamente era pobre e tinha falta de gosto. Miriam andava sempre bonita.

– Onde é que me viste? – perguntou Paul à outra mulher.

Ela olhou-o como se não tivesse qualquer dúvida em responder.

E depois:

– Vi-te a passear com a Louie Travers – respondeu ela.

Louie era uma das raparigas da secção Espiral da fábrica de Mr. Jordan.

– E como é que tu a conheces? – perguntou ele.

Ela não respondeu. Paul virou-se então para Miriam.

– Para onde vais agora? – perguntou.

– Para o castelo.

– A que horas é o comboio de regresso?

– Vou regressar com o meu pai. Gostava que também viesses connosco. A que horas estás livre?

– Já sabes que nunca antes das oito, que diabo!

E as duas mulheres seguiram o seu caminho.

Paul lembrou-se de que Clara Dawes era filha de um velho amigo de Mrs. Leivers. Miriam tinha-a procurado, pois ela tinha sido em tempos supervisora da secção Espiral da Jordan, e porque o marido, um tal Baxter Dawes que era ferreiro, trabalhava para a fábrica, fazendo entre outras coisas os ferros para as próteses ortopédicas. Miriam pensou que através dela pudesse contactar directamente com a fábrica, podendo assim assegurar o emprego de Paul. Mas Mrs. Dawes estava separada do marido, e agora dedicava-se à defesa dos direitos das mulheres. Era supostamente inteligente, e isso interessava a Paul.

Paul conhecia Baxter Dawes e detestava-o. O ferreiro tinha cerca de trinta e um ou trinta e dois anos. Paul encontrava-o de vez em quando: era um homem alto e bem constituído, bem-parecido, para quem dava gosto olhar. Havia uma curiosa semelhança entre ele e a mulher. Ele tinha a mesma pele clara, de tom de dourado. O seu cabelo era castanho-claro e o bigode dourado. E exalava um desprezo semelhante, pelo porte e pela conduta. Nisto surgiu a diferença. Os seus olhos castanhos, muito escuros e astuciosos, eram imorais. Eram levemente salientes e as pálpebras sobrepunham-se de uma forma tal que lhe suscitava o ódio. A boca era também sensual. A postura evidenciava um desprezo cobarde, como se estivesse preparado para derrubar o primeiro que o censurasse... talvez porque ele próprio se censurava.

O homem odiou Paul desde o primeiro dia que o viu. Ao captar o olhar deliberado e impessoal de um artista no rosto do rapaz, enfureceu-se.

– Pa’onde é que tás’olhar? – disse ele desdenhosamente, amedrontando-o.

O rapaz desviou o olhar. O ferreiro costumava encostar-se ao balcão a conversar com Mr. Pappleworth, e a sua conversa era sempre porca e depravada. Quando sentiu novamente os olhos frios e críticos do jovem pousados nele, o ferreiro virou-se, como se tivesse sido mordido por algum bicho.

– Pa’onde é que tás’olhar, ó parvalhão? – rosnou ele.

O rapaz encolheu os ombros.

– Olha que tu...! – berrou Dawes.

– Deixa-o em paz – disse Mr. Pappleworth, naquela sua voz insinuante que parecia dizer «ele é um pobre diabo, mas não faz por mal».

Desde essa altura, Paul passou a olhar para o homem, sempre que o encontrava, com o mesmo olhar crítico e curioso, desviando o olhar antes de encontrar os olhos do ferreiro, o que deixava Dawes fora de si. E, assim, odiavam-se em silêncio.

Clara Dawes não tinha filhos. Quando deixou o marido, desfizeram a casa e ela foi viver com a mãe, enquanto Dawes passou a viver em casa da irmã. Na mesma casa vivia também uma cunhada, e Paul veio a descobrir que a tal rapariga, a Louie Travers, era agora a amante de Dawes. Era uma atrevida bonitona e insolente, que escarnecia do rapaz, mas que se empolgava toda se ele a acompanhava à estação.

A vez seguinte em que Paul foi visitar Miriam era um sábado à tarde. Ela tinha a lareira acesa na sala de visitas e estava à espera dele. Os outros tinham saído, com excepção dos pais e dos irmãos mais novos, pelo que tinham a sala de visitas só para eles. A sala era comprida, de tectos baixos e aconchegada. Na parede havia três pequenos quadros de Paul e o seu retrato estava pousado ao canto da lareira. Em cima da mesa e em cima do piano de pau-rosa, estavam jarras com folhas coloridas. Ele sentou-se na poltrona e ela ajoelhou-se no tapete aos seus pés. A luz da fogueira reflectia-se na sua cara bonita e pensativa.

– O que achaste de Mrs. Dawes? – perguntou Miriam, num tom calmo.

– Não me pareceu muito amistosa – respondeu ele.

– Lá isso não, mas não a achas elegante?

– Sim... no que diz respeito à sua altura. Mas não tem um pingo de bom gosto. Gosto de algumas coisas nela. Ela é sempre assim antipática?

– Penso que não. Penso que não anda satisfeita.

– Com o quê?

– Bem, como é que te sentirias a viver com um homem daqueles?

– Então, porque é que ela casou com ele, sabendo que o ia detestar tão rapidamente?

– Sim, porque é que ela casou com ele? – repetiu Miriam, com aspereza.

– E eu que pensei que ela fosse suficientemente forte para medir forças com ele – disse Paul.

Miriam baixou a cabeça.

– Ah, sim? – perguntou, satiricamente. E o que é que te leva a pensar isso?

– Basta olhar para a boca dela... nascida para a paixão... e a maneira como estica a garganta.

E atirou a cabeça para trás imitando o jeito provocador de Clara.

Miriam baixou ainda mais a cabeça.

– Sim – disse ela.

Fez-se silêncio durante alguns momentos, e Paul pensava em Clara.

– E o que é que te agradou nela? – continuou Miriam.

– Não sei... a pele e a textura da... da... não sei... emana dela uma certa violência... Aprecio-a apenas como artista.

– Pois.

Paul não entendia por que razão Miriam estava ali sentada no chão, meditando de uma forma tão estranha, e isso irritava-o.

– Não gostas mesmo dela, pois não? – perguntou ele à rapariga.

Ela olhou-o com os seus enormes olhos escuros, encantadores.

– Gosto – respondeu.

– Não gostas, não... não podes gostar... muito.

– E pode saber-se porquê? – perguntou ela calmamente.

– Oh, não sei... Talvez gostes dela porque ela odeia os homens.

Esta era provavelmente uma das razões pelas quais ele gostava de Mrs. Dawes, mas isso não lhe tinha ocorrido. Calaram-se. Ele franziu a testa, algo que já se estava a tornar habitual, particularmente quando estava com Miriam. Ela ansiava fazer-lhe desaparecer as rugas da testa, mas tinha medo. Parecia haver um outro homem dentro de Paul Morel, mas que não era o seu.

Algumas bagas vermelhas sobressaíam entre as folhas do vaso. Ele esticou-se e arrancou um raminho.

– Porque será que, se colocares bagas vermelhas no cabelo – disse ele – pareces uma bruxa ou uma sacerdotisa, mas nunca uma libertina.

Ela rasgou um sorriso doloroso, despojado.

– Não sei – disse.

As suas mãos fortes e quentes brincavam alegremente com as bagas.

– Porque não te ris? – disse ele. – Nunca sorris abertamente. Apenas te ris quando algo é estranho ou incongruente, e até isso parece magoar-te.

Miriam baixou a cabeça como se ele a estivesse a admoestar.

– Gostaria muito que sorrisses apenas um minuto para mim... apenas por um minuto. Sinto que isso libertaria alguma coisa dentro de ti.

– Mas... – e olhou-o com uns olhos assustados e lutadores. – ... Mas eu rio-me... sim, eu rio-me.

– Mentira, nunca te ris. Só se for por algo de muito intenso. Sempre que te ris, apetece-me chorar; parece que o teu riso transmite sofrimento. Oh, só de pensar nisso, fazes com que eu enrugue a minha alma.

– Não é minha intenção fazê-lo – disse.

– Eu sou sempre tão espiritual contigo – exclamou ele.

Ela manteve-se em silêncio, a pensar: «Então porque não és de outra forma?» E ele olhou para o seu corpo dobrado, em meditação, e pareceu dividi-lo em dois.

– Estamos no Outono – disse ele – e todas as pessoas libertam o seu espírito.

Caiu novamente o silêncio. Este estranho desentendimento entre eles despedaçava a alma de Miriam. Ele parecia tão bonito, com os seus olhos escuros e um olhar tão profundo como a nascente mais funda.

– Tornas-me tão espiritual – lamentou-se ele. – E eu não quero ser espiritual.

Ela retirou o dedo da boca com um pequeno estalido, e olhou-o em tom provocador. Mas a sua alma continuava nua nos seus olhos grandes e castanhos e o mesmo desejo ardente dominava-a. Se isso fosse possível, ele tê-la-ia beijado na pureza da abstracção. Mas ele não a podia beijar assim... e ela não parecia dar-lhe qualquer outra alternativa. E, no entanto, desejava-o.

Paul sorriu.

– Bem – disse ele –, vamos lá estudar francês... vamos ler Verlaine.

– Sim – disse ela num tom profundo, quase de resignação. Levantou-se e foi buscar os livros. As suas mãos avermelhadas e nervosas metiam dó; como ele desejava confortá-la e beijá-la!! Mas não se atrevia... ou não podia. Algo o impedia. Os seus beijos eram para ela reprováveis. Continuaram a ler até às dez horas, e depois foram para a cozinha; Paul mostrava-se de novo alegre e natural para com os pais de Miriam. Os seus olhos eram escuros e brilhantes e envolvia-o uma aura de fascinação.

Quando foi buscar a bicicleta ao celeiro descobriu que o pneu dianteiro estava furado.

– Vai-me buscar uma tigela com uma pinguinha de água – pediu ele a Miriam. – Vou chegar tarde e já sei que vou ouvir um sermão.

Acendeu a lanterna à prova do vento, despiu o casaco, virou a bicicleta ao contrário e meteu mãos à obra rapidamente. Miriam trouxe-lhe a tigela com água e ficou junto dele, observando-o. Adorava ver as mãos dele em acção. Era elegante e forte, e até os seus movimentos mais rápidos eram feitos com desembaraço. Ocupado como estava, parecia tê-la esquecido. Mas ela amava-o de uma forma absorvente, desejava poder passar as mãos ao longo do seu corpo. Sempre desejara abraçá-lo, desde que ele não a quisesse.

– Já está – disse Paul, levantando-se de repente. – Mais rápido não podia ser!

– Lá isso é verdade! – concordou ela, sorrindo.

Paul endireitou-se. Estava de costas para Miriam. Ela colocou as mãos nas ancas dele, fazendo-as deslizar rapidamente ao longo das pernas.

– És tão elegante! – disse ela.

Ele sorriu. Detestava o tom da voz dela, mas o sangue incendiou-se-lhe ao sentir o contacto das mãos. Ela, pelo contrário, parecia nem dar por ele. Era como se ele fosse um objecto, como se não se apercebesse do homem que ali estava.

Paul acendeu a luz da bicicleta, experimentou-a, bateu com ela no chão do celeiro para verificar o som dos pneus, e apertou o casaco.

– Tudo em ordem! – disse ele.

Ela experimentou os travões, pois sabia que estavam avariados.

– Já os arranjaste? – perguntou ela.

– Não!

– E porque não?

– O travão traseiro funciona mais ou menos.

– Mas não é seguro.

– Posso travar com o pé.

– Era melhor que os tivesses arranjado – murmurou ela.

– Não te preocupes... Amanhã vem tomar chá a minha casa e traz o Edgar.

– A sério?

– A sério... Por volta das quatro... Vou ter convosco.

– Combinado!

Ela estava feliz. Atravessaram o pátio às escuras até ao portão. Olhando em frente, Paul viu as cabeças de Mr. e Mrs. Leivers atrás da vidraça sem cortinas da cozinha, iluminadas pelo fulgor da lareira. O ambiente parecia muito aconchegado. À sua frente, a estrada ladeada de pinheiros abria-se escura.

– Até amanhã – disse ele, montando na bicicleta.

– Vais ter cuidado, não vais? – recomendou ela, como quem pede.

– Vou.

A voz dele soou já da escuridão. Ela deixou-se ficar mais uns instantes a ver a lanterna afastar-se e entrar na noite. Depois, voltou lentamente para casa. Orion elevava-se por cima da floresta, seguida do seu cão cintilante, meio apagado. Fora essa luz, o mundo estava mergulhado na mais densa escuridão e no silêncio, quebrado apenas pelo resfolegar do gado nos estábulos. E ela rezou com devoção pela segurança dele nessa noite. Quando ele a deixava, ficava sempre num estado de extrema ansiedade, imaginando se ele teria chegado bem a casa.

Paul deixava a bicicleta embalar pelas encostas abaixo. As estradas eram escorregadias e ele não podia meter travões. Era um prazer quando a bicicleta se precipitava pelo declive mais íngreme da colina. «Cá vou eu!», dizia ele. Era arriscado por causa da curva completamente às cegas à chegada ao vale, e das carroças dos cervejeiros com os carroceiros bêbados, a dormir. A bicicleta parecia desintegrar-se debaixo dele e Paul adorava a sensação. O descuido é a vingança de um homem sobre a mulher. Sentindo que não é devidamente apreciado, arrisca a sua própria destruição, para que ela sinta a sua falta.

Ao passar veloz pelo lago, as estrelas reflectidas na água pareciam saltar da escuridão como gafanhotos prateados. Depois surgia a longa subida até casa.

– Olha, mãe! – disse ele, atirando as bagas e as folhas para cima da mesa.

– Hum! – fez ela, olhando para a mesa e desviando o olhar. Como sempre, estava sozinha, sentada a ler.

– Não são bonitas?

– São.

Ele sabia que a mãe estava aborrecida. Passados alguns minutos disse:

– O Edgar e a Miriam vêm cá tomar chá amanhã.

A mãe não respondeu.

– Não se importa?

Ela continuou sem responder.

– Então importa-se? – perguntou ele.

– Sabes bem se me importo ou não.

– Não vejo porque se há-de importar... eu como lá tantas vezes...

– Pois comes.

– Então porque lhes recusa um chá?

– A quem é que eu recuso um chá?

– Porque é que a mãe é sempre tão difícil?

– Pronto, não digas mais nada! Convidaste-a para o chá, e isso já é o suficiente. Ela não falta.

Paul ficou muito aborrecido com a mãe. Sabia que ela não gostava de Miriam. Atirou com as botas e foi deitar-se.

Paul foi abrir a porta aos amigos no dia seguinte. Estava feliz de os ver chegar. Vieram por volta das quatro horas. Tudo estava sereno e calmo para domingo à tarde. Mrs. Morel estava sentada, com o seu vestido preto e o avental branco, mas levantou-se para receber as visitas. Foi cordial com Edgar, mas fria e muito esquiva com Miriam. Todavia, Paul achava que a rapariga estava bem bonita no seu vestido castanho de caxemira.

Ajudou a mãe a preparar o chá. Miriam ter-se-ia oferecido de agrado para ajudar, mas tinha receio. Paul tinha muito orgulho da sua casa. Havia nela uma certa distinção, pensava ele. As cadeiras eram simples, de madeira, e o sofá já velho. Mas o tapete e as almofadas eram aconchegantes; os quadros eram gravuras de bom gosto; a simplicidade dominava e havia muitos livros. Nem ele nem Miriam se envergonhavam das casas que tinham, pois eram tudo aquilo que deviam ser, e ainda acolhedoras. Então na mesa tinha grande orgulho; o serviço de chá era bonito e a toalha fina; pouco importava que as colheres não fossem de prata e nem o cabo das facas de marfim; tudo estava bonito. Mrs. Morel tinha cuidado maravilhosamente de tudo enquanto os filhos cresceram. Assim, nada se encontrava fora do lugar.

Miriam falou um pouco de livros, pois era um assunto que dominava bem. Mas Mrs. Morel não se mostrou interessada, virando-se rapidamente para Edgar.

A princípio, quando Edgar e Miriam iam à igreja, sentavam-se no banco de Mrs. Morel. Morel nunca lá ia, pois preferia a taberna. Mrs. Morel, arvorando-se em chefe da família, sentava-se numa extremidade do banco e Paul na outra extremidade; a princípio, Miriam sentava-se ao lado dele. A capela lembrava a Paul a sua casa. Era um lugar bonito, com bancos escuros e pilares estreitos e elegantes, e com muitas, muitas flores. As mesmas pessoas sentavam-se sempre nos mesmos lugares desde que ele era menino. Era bastante agradável e reconfortante estar ali sentado durante uma hora e meia, ao lado de Miriam e perto da mãe, unindo os seus dois amores sob o fascínio daquele local de culto. Sentia-se a um tempo entusiasmado, feliz e religioso. Terminada a missa, acompanhava Miriam a casa, enquanto Mrs. Morel passava o resto da tarde com a sua velha amiga Mrs. Burns. Sentia-se verdadeiramente vivo durante os passeios que dava ao domingo pela tardinha com Edgar e Miriam. Sempre que passava de noite pelas minas, pelo depósito das lanternas, todo iluminado, pelas torres altas e negras e pelas filas de vagões parados em frente das ventoinhas que giravam lentamente na escuridão, tinha a sensação intensa e quase insuportável de que Miriam voltaria para si.

Mas Miriam não ocupou por muito tempo o banco da família Morel, pois o pai arranjou novamente um outro banco. Ficava mesmo por baixo da pequena galeria, em frente ao banco dos Morels. Quando Paul e a mãe chegavam à capela, o banco dos Leivers estava sempre vazio. Ele receava que não viessem: a capela ficava muito longe e eram muitos os domingos chuvosos. Mas a dado momento, quase sempre atrasada, Miriam chegava com o seu passo amplo, cabeça baixa e face oculta pelo chapéu de veludo verde-escuro. Visto sentar-se do lado oposto, a sua cara ficava sempre na sombra, o que até o fazia sentir-se bem, pois ao vê-la ali à sua frente era como se a alma se lhe agitasse dentro do corpo. Não era o mesmo calor, a mesma alegria e o mesmo orgulho que sentia ao ter a mãe a seu lado, como chefe: era algo mais maravilhoso ainda, menos humano, um sentimento intenso temperado pela dor, algo que ele sabia que não podia alcançar.

Foi nesta altura que começou a pôr em questão a doutrina ortodoxa. Ele tinha vinte e um anos e ela vinte. Miriam receava a chegada da Primavera: ele tornava-se agressivo e magoava-a muito. Tudo o que mais queria era destruir cruelmente as crenças dela. Edgar, crítico por natureza e sem sentimentos, gostava desta situação. Mas Miriam sofria amargamente, pois o homem que amava possuía uma inteligência cortante que dissecava a religião em que ela fora criada e se movimentava, e onde habitava o seu Eu. Mas ele não a poupava e mostrava-se muito cruel. Quando estavam sozinhos, tornava-se ainda mais violento, como se quisesse matar-lhe a alma, explorando as suas crenças até ela quase perder a consciência.

– Ela regozija-se... regozija-se quando afasta o meu filho de mim – gritava Mrs. Morel do fundo do coração, quando Paul saía de casa. – Ela não é como qualquer mulher comum, que permite que eu faça parte do meu filho. Ela quer absorvê-lo. Quer tirar-mo e absorvê-lo, até que nada reste dele, nem sequer para ele próprio. Assim, ele nunca será senhor de si... ela irá sugá-lo completamente. – E Mrs. Morel sentava-se, debatendo pressentimentos e meditando tristemente.

Quando regressava dos seus passeios com Miriam, Paul vinha trespassado de sofrimento. Caminhava com passo apressado, mordendo os lábios e cerrando os punhos. Quando chegava a uma cerca, parava por alguns minutos, imobilizado. À sua frente estendia-se a escuridão sem fim; as negras encostas salpicavam-se de florescências luminosas; e, nos recônditos da noite, brilhava o clarão da mina. Tudo era estranho e ameaçador. Porque estava ele tão dilacerado, quase em êxtase, incapaz de se mover? Porque estava a mãe sentada em casa a sofrer? E sabia que ela sofria bastante. Mas porquê? E porque detestava ele Miriam e era tão cruel para ela, quando pensava na mãe? Já que Miriam fazia a mãe sofrer, ele tinha de a detestar. E com facilidade a detestava. Porque o levava ela a duvidar de si próprio, deixando-o inseguro, indefinido, como se não pudesse evitar que a noite e o espaço caíssem sobre ele? Como ele a odiava! Mas logo um ímpeto de ternura e humilhação o envolvia.

De repente, precipitava-se para casa a correr. A mãe reconhecia nele as marcas da agonia, mas nada dizia. Ele, porém, tinha de obrigá-la a falar, pois via-a zangada por ele ter ido passear com Miriam para tão longe.

– Porque é que não gosta dela, mãe? – gritou ele um dia, desesperado.

– Não sei, meu filho – respondeu ela num tom comovente. – Já tentei gostar, tentei com todas as minhas forças... mas não consigo... não consigo...

E, entre ambas, ele sentia-se triste e sem esperanças. A Primavera era a pior das estações. Ele ficava instável, enérgico e cruel. Assim, decidiu afastar-se dela. Surgiam então as horas a que ele sabia que Miriam o esperava, e a mãe apercebia-se da sua impaciência. Paul não conseguia progredir no seu trabalho, não conseguia fazer nada. Era como se algo transportasse a sua alma até Willey Farm. De repente, punha o chapéu e saía sem dizer nada. E a mãe sabia que ele tinha partido. Assim que se punha a caminho respirava de alívio. Mas, mal chegava ao pé de Miriam, tornava-se novamente cruel.

Certo dia, em Março, estava Paul deitado nas margens do lago Nethermere, com Miriam sentada a seu lado. Estava um dia resplandecente, branco e azul. Nuvens grandes e brilhantes passavam altas, e as suas sombras moviam-se silenciosas sobre a água. Os espaços abertos no céu tinham um tom glacial de azul. Paul estava deitado de costas sobre a relva, olhando o céu. Não conseguia olhar para Miriam. Ela parecia desejá-lo e ele resistia. Resistia sempre. Ela queria dar-lhe a sua paixão, a sua ternura, mas não era capaz. Ele sentia que ela não o queria; que apenas queria a sua alma. Miriam retirava-lhe as forças e a energia através de um canal que os unia. Ela não queria o corpo dele, pois nesse caso seria apenas duas pessoas, homem e mulher, em comunhão. Queria absorvê-lo completamente. E ele sentia-se estimulado por um impulso quase de loucura, que o fascinava, com um fascínio de droga.

Ele falava sobre Miguel Angelo. Ao escutá-lo, ela sentia que tocava o protoplasma da vida, as próprias células palpitantes, e a sua satisfação era plena. Mas, no final, isso assustava-a. Ali estava ele deitado, na intensidade imaculada da procura, e a sua voz amedrontava-a num crescendo, levando-a quase a tocar as raias do inumano, como se num transe.

– Não digas mais nada – pediu Miriam, com ternura, pousando a mão na testa dele. Ele permanecia estático, incapaz de se mover. O seu corpo estava de algum modo abandonado.

– Porquê... estás cansada?

– Estou, e tu também vais ficar.

Ele deu uma pequena gargalhada, apercebendo-se da situação.

– Contudo, sabe-me bem – disse ele.

– Mas não é essa a minha intenção – disse ela, muito baixinho.

– Não quando já foste longe de mais e sentes que já não és capaz de te dominar. Mas o teu eu inconsciente clama por isso. E eu suponho que também quero o mesmo.

– Então como posso evitá-lo?

– Penso que não podes, pois tu fazes sempre o mesmo. Desligas-me algures e retiras-me de mim próprio. Sinto-me como um fantasma, sem corpo.

– Não! – implorou ela.

– Agora mesmo, neste momento, olho para as minhas mãos e pergunto-me o que estão elas ali a fazer. Aquela água, por exemplo, ondula através de mim. Eu sou a ondulação. Corre através de mim e eu através dela. Não há barreiras entre nós.

– Mas...! – E Miriam hesitou.

– O que resta de mim é apenas uma consciência disseminada. Sinto que o meu corpo está deitado aqui, vazio, como se eu estivesse dentro de outras coisas... das nuvens e da água...

Ela olhou para ele e reparou naquele olhar tão estranho, como se ele fosse uma coisa e não uma pessoa, o que a fascinava tanto, mas que tanto receava. E era precisamente esse receio que a impelia a ter muito mais. Mas, agora, queria que ele parasse.

– Sabes – prosseguiu – o meu eu físico está liberto. Mas, se assim for, então eu não estou vivo. Tenho a certeza de que me destruiria. O que tu queres é pores-me gordo e banal, e não uma sombra. Queres fechar bem a minha alma dentro da sua bainha. Mas ela um destes dias libertava-se, tal como a espada que se libertou de uma bainha lassa e caiu ao mar.

Miriam meditava tristemente. Nisto, levantou a cabeça e olhou-o com os olhos muito brilhantes.

– Então deixa-me ser a tua protecção – disse ela.

E estendeu as mãos para as dele.

– Se tu pudesses... – disse ele. – Mas tu és aquilo que o teu eu inconsciente te impõe, e não aquilo que queres ser. Nenhum de nós dois é completamente normal... porém, agora eu quero sê-lo, mas penso que tu não queres. Tu queres ser algo fora do comum.

– Não, não quero – exclamou ela. Mas havia medo na sua voz.

– De qualquer forma – continuou Paul, num tom apático –, isso agora não é possível. Não me podes ter dessa maneira. Neste momento eu e tu somos apenas almas desprovidas de sangue. E isso provocaria uma vibração diferente, que se entrechocaria com este estado actual numa verdadeira tortura... Se ao menos pudesses querer-me, e não apenas quereres aquilo que eu tenho para te papaguear.

– Eu! – exclamou Miriam num tom áspero. – Eu! Quando é que eu te posso ter?

– Então a culpa é minha – disse ele, e juntando as partes dispersas do seu eu, levantou-se e começou a falar de coisas triviais. Sentia-se irreal. De uma forma vaga, detestava-a por isso. Sabia que era ele o culpado e, no entanto, isso não o impedia de a odiar.

Certa noite, na mesma época, em que Paul tinha ido levar Miriam a casa, pararam perto do prado que se estendia até à floresta, incapazes de se separarem. Assim que as estrelas surgiram, as nuvens desapareceram e eles captaram fugazmente a sua Orion, que se dirigia para oeste. As jóias de Orion brilharam por um breve instante, com o seu cão correndo rasteiro, lutando com dificuldade para atravessar a espuma de uma nuvem.

Orion era para eles a constelação mais carregada de significado. Era nela que os seus olhos se haviam fixado nos momentos mais estranhos e intensos, até sentirem que viviam em cada uma das suas estrelas. Nessa noite, Paul mostrava-se taciturno e perverso. Orion parecia-lhe apenas uma constelação, nada mais. Lutava contra o seu brilho, o seu fascínio. Miriam observava atentamente a disposição do seu amado, mas ele nada disse que o comprometesse até ao momento da partida, quando, de testa franzida, ficou parado a olhar tristemente para o castelo de nuvens, por detrás do qual a grande constelação estaria ainda a transitar.

No dia seguinte havia uma pequena festa em casa dele, para a qual Miriam estava convidada.

– Não posso vir buscar-te – disse ele.

– Não faz mal... O tempo também não está dos melhores para andar na rua... – respondeu ela serenamente.

– Não é isso... eles é que não gostam que eu venha. Dizem que me preocupo mais contigo do que com eles. E tu compreendes, não é verdade?... Tu sabes que entre nós existe apenas amizade.

Miriam ficou perplexa e com pena dele. Como lhe devia ter custado dizer aquelas palavras. Deixou-o, para lhe poupar outra humilhação. Uma chuva fina batia-lhe no rosto enquanto caminhava. Estava profundamente magoada e desprezava-o por ele se deixar levar pelo mais leve sopro de autoridade. No fundo do seu coração, sentia inconscientemente que ele tentava afastar-se dela, mas como jamais teria a coragem de o admitir, sentia pena dele.

Por esta altura, Paul tornou-se num elemento imprescindível do armazém da Jordan. Mr. Pappleworth saiu para se estabelecer por conta própria e Paul passou a supervisor da Espiral. Se tudo corresse bem, o seu salário seria aumentado para trinta xelins no final do ano.

Miriam vinha quase todas as sextas-feiras à noite para a lição de francês. Paul já não ia tão amiúde a Willey Farm, e ela receava que a sua aprendizagem estivesse prestes a terminar; por outro lado, e apesar das discórdias, gostavam de estar um com o outro. Liam Balzac, escreviam composições e sentiam-se bastante cultos.

A noite de sexta-feira era a noite de pagamento para os mineiros. Morel «repartia o bolo», ou seja, dividia os lucros da empreitada, quer no New Inn, em Bretty, quer na sua própria casa, conforme os seus companheiros preferissem. Barker tinha deixado de beber, e agora os homens «dividiam o bolo» em casa de Morel.

Annie, que tinha estado a dar aulas longe dali, regressara de novo a casa. Era ainda uma rapariga endiabrada. Estava noiva e ia casar. Paul andava a estudar desenho.

Morel estava sempre bem-disposto às sextas-feiras à noite, a não ser que os ganhos dessa semana fossem escassos. Depois do jantar, entregava-se a longos preparativos para se lavar. A decência exigia que as mulheres se ausentassem durante as reuniões masculinas. As mulheres não deviam assistir à reunião dos sócios, que era considerada assunto estritamente masculino... e nem deviam ficar a saber qual o montante exacto dos ganhos semanais. Assim, enquanto o pai barafustava na cozinha, Annie saiu e foi por uma hora para casa da vizinha, e Mrs. Morel foi à cozinha ver se o pão já estava cozido.

– Fecha a porta! – berrou Morel, furioso.

Annie bateu com a porta e saiu.

– S’ela torna a abrir a porta enquant’eu tou a tomar banho, amando-lh’um murro que lhe parto os queixos – berrou ele, ameaçador, por entre a espuma do sabão. Paul e a mãe franziram as sobrancelhas ao ouvi-lo.

Logo depois, saiu da cozinha, tremendo de frio e pingando o chão todo de água ensaboada.

– Oh, cos diabos! – disse ele. – Onde está a minha toalha?

Estava pousada numa cadeira, frente à lareira, para aquecer, pois, se assim não fosse, ele teria feito um grande estardalhaço. Aninhou-se sobre os calcanhares frente ao lume vivo, para secar.

– Brrrr... – continuou, fingindo tremer de frio.

– Ó homem, não sejas criança! – disse Mrs. Morel. – Não está frio nenhum.

– Exprimenta despires-te e tomares banho naquela cozinha – disse o mineiro, enxugando o cabelo. – Mas que gelo de casa!

– Eu não faria com certeza tanto alarido – respondeu a mulher.

– Ah, poi não. Caías redonda no chão que nem uma pedra.

– Porque é que uma pedra há-de ser mais redonda do que outra coisa qualquer? – perguntou Paul curioso.

– Essa agora... sei lá... é o que se diz – argumentou o pai. – Nesta tua cozinha há muitas correntes de ar, e quando ele passa através das costelas parece vento a passar por uma cancela de cinco traves.

– Sempre teria alguma dificuldade em passar através das tuas costelas – disse Mrs. Morel.

Morel olhou desanimado para ambos os lados do seu corpo.

– Eu! – exclamou. – Eu cá num tenho pele de coelho. Os meus ossos vêem-se no meu corpo!

– Gostaria de saber onde – retorquiu a mulher.

– Por todo o lado! Mas também num sou nenhuma carga de ossos.

Mrs. Morel deu uma gargalhada. Ele tinha um corpo ainda belo, jovem e musculado, sem gorduras. A pele era macia e clara. Poderia bem ser o corpo de um homem com vinte e oito anos, se não fossem as várias cicatrizes azuladas, semelhantes a tatuagens, onde o pó do carvão se tinha alojado, e o seu peito peludo. Morel pôs as mãos nos quadris, desanimado. Acreditava piamente que, por não engordar, era magro como um rato esfomeado.

Paul olhou para as mãos do pai, calejadas, escuras, cobertas de cicatrizes e com as unhas partidas, a esfregarem a maciez do seu corpo, e ficou admirado, pois parecia-lhe estranho serem feitas da mesma carne.

– Suponho – disse, virando-se para o pai – que antigamente tinha uma bela figura.

– Eh, olha lá o que dizes! – exclamou o mineiro, olhando em volta, espantado e tímido, como uma criança.

– Tinha uma bela figura, sim senhor! – exclamou Mrs. Morel. – O pior foi ele andar sempre aos encontrões a tudo, como se quisesse meter-se no buraco mais pequeno que encontrava.

– Eu? – exclamou Morel. – Eu, uma bela figura! Nunca passei de um esqueleto.

– Credo, homem! – gritou a mulher. – Não sejas tão piegas!

– É ve’dade – disse ele. – Tu nunca me viste qu’eu não parecesse qu’emagrecia de dia pra dia.

Mrs. Morel sentou-se e deu uma gargalhada.

– Tens um corpo de ferro – disse ela. – No tocante ao corpo, nunca nenhum homem te levou a melhor. Devias ter visto o teu pai em novo... – exclamou, de repente, virando-se para Paul e empertigando-se, para imitar a postura outrora garbosa do marido. Morel observava-a, envergonhado. Viu novamente a paixão que ela sentia por ele, e que brilhou durante alguns momentos à volta dela. Ele era tímido, assustadiço e humilde. Agora, porém, sentia de novo a velha força de outros tempos. Mas imediatamente sentiu na carne os estragos praticados ao longo de todos estes anos e só queria desaparecer, fugir de tudo.

– Lava-me as costas – pediu ele à mulher.

Ela trouxe uma toalha ensopada e ensaboada e colocou-lha sobre os ombros. Ele deu um salto.

– Oh, desgraçada! – berrou ele. – Tá gelada como a morte!

– Devias ter nascido salamandra – disse ela a rir, lavando-lhe as costas. Só raramente o ajudava nestas tarefas tão pessoais. Geralmente, eram os filhos quem fazia este tipo de coisas.

– O outro mundo não vai ser suficientemente quente para ti – acrescentou ela.

– Poi não – disse ele. – Tu vais fazer com que sopre uma aragem pra m’arrefecer.

Mas ela já tinha terminado. Enxugou-o rapidamente e subiu ao primeiro-andar, regressando em seguida com um par de calças limpas. Assim que se secou, Morel vestiu a camisola. Depois, rosado e luzidio, com o cabelo em pé e a camisola de flanela vestida por cima das calças de mineiro, aqueceu as ceroulas que ia vestir a seguir. Virou-as, pô-las do avesso e ressequiu-as.

– Oh, homem, veste-te! – exclamou Mrs. Morel.

– Queria ver se gostavas de vestir uma roupa tão fria como a água da banheira – disse ele.

Por fim, despiu as calças e vestiu-se condignamente de preto. Fez tudo isto em cima do tapete da lareira, e teria feito o mesmo se Annie e os amigos íntimos estivessem presentes.

Mrs. Morel virou o pão no forno. Depois, retirou uma mão-cheia de massa do alguidar de barro, que se encontrava a um canto da cozinha; trabalhou a massa dando-lhe a forma adequada e meteu-a numa tigela. Enquanto fazia isto, Barker bateu à porta e entrou. Era um homem baixo, compacto e calmo, que parecia capaz de atravessar um muro de pedra. O cabelo era preto e curto e a cara bem-parecida. Tal como a maioria dos mineiros, era pálido, mas saudável e rijo.

– Boa noite, ‘nha senhora – disse o homem, curvando a cabeça e sentando-se, com um suspiro.

– Boa noite – respondeu ela, cordialmente.

– Fizeste ranger os tacões – disse Morel.

– Num dei por nada – disse Barker.

Retraído, sentou-se num dos bancos da cozinha, como os colegas normalmente faziam.

– Como está a sua senhora? – perguntou-lhe Mrs. Morel. Há algum tempo, ele tinha-lhe dito: «Sabe, estamos à espera do terceiro...»

– Bem – respondeu ele, coçando a cabeça –, penso que está tão boa quanto o possível.

– Ora deixa cá ver... para quando é? – perguntou Mrs. Morel.

– Bem... penso que está para chegar a qualquer momento...

– Ah, sim? E tem passado bem?

– Sim... tudo em ordem.

– É um milagre, pois ela não é muito forte.

– É verdade. ... E eu fiz outra asneira.

– O que foi?

Mrs. Morel sabia que Barker não teria feito nada de muito errado.

– Não consegui dar co’a alcofa das compras.

– Pode levar a minha.

– Não... óspois vossemecê pode precisar.

– Não preciso, não. Levo sempre um saco de rede.

Todas as sextas-feiras à noite, Mrs. Morel via o mineiro, baixo e desembaraçado, a comprar os legumes e a carne para toda a semana, e sentia grande admiração por ele.

– O Barker pode ser baixo, mas é dez vezes mais homem do que tu – tinha dito ela ao marido.

Nisto, entrou Nessen. Apesar de pai de sete filhos, era magro, muito frágil, com uma ingenuidade de adolescente e um sorriso levemente matreiro. Mas a mulher dele era uma mulher apaixonada.

– Estou a ver que me batest’òs pontos – disse, sorrindo sem brilho.

– Pois foi – respondeu Barker.

O recém-chegado tirou o boné e o grosso cachecol de lã. Tinha um nariz pontiagudo e vermelho.

– É capaz de ter frio, Mr. Wesson – disse Mrs. Morel.

– Aqui tá um bocado de frio – respondeu.

– Então aproxime-se do lume.

– Não, tou bem aqui.

Os dois mineiros sentaram-se um pouco mais arredados. Não queriam ficar em cima do tapete da lareira, pois esse lugar era sagrado para a família.

– Senta-te no cadeirão – exclamou Morel, alegremente.

– Não, obrigado. Tou muito bem aqui.

– Ora essa, chegue-se para aqui – insistiu Mrs. Morel.

O homem levantou-se e, avançando desajeitadamente, sentou-se no cadeirão de Morel, envergonhado. Era tomar demasiada confiança. Mas estar ao pé do lume deixava-o muito feliz.

– E então como está o seu peito? – perguntou Mrs. Morel.

Ele sorriu novamente, com uns olhos azuis muito brilhantes.

– Ora, vai indo! – disse ele.

– Como um chocalho – atalhou Barker.

– T..t..t..t – fez Mrs. Morel com a língua. – Já mandou fazer a camisa de flanela?

– Ainda não – disse ele sorrindo.

– E porque não? – perguntou ela.

– Lá chegará o dia... – disse ele, sorrindo.

– Ah, o dia de São Nunca, estou a ver – exclamou Barker.

Barker e Morel preocupavam-se com Wesson, pois fisicamente eram ambos fortes que nem touros.

Quando Morel estava quase pronto, entregou o saco do dinheiro a Paul.

– Contó lá, rapaz – pediu com humildade.

Impaciente, Paul abandonou os livros e os lápis e despejou o saco para cima da mesa. Continha cinco libras em moedas de prata, várias moedas de vinte xelins e alguns trocados. Paul contou o dinheiro rapidamente, incluindo os cheques e os papéis com os totais do carvão, e pôs as moedas por ordem. Então Barker deu uma olhadela aos cheques.

Mrs. Morel subiu ao primeiro andar e os três homens sentaram-se à mesa. Morel, como dono da casa, sentou-se no seu cadeirão com as costas viradas para a lareira. Os outros dois sentaram-se em cadeiras frias. Nenhum deles contou o dinheiro.

– Quant’é que dissemos qu’era prò Simpson? – perguntou Morel. E, durante um minuto, discutiram os ganhos diários do companheiro, sendo o valor respectivo posto de lado em seguida.

– E quant’é prò Bill Naylor?

Também este valor foi retirado do saco.

E então, visto que Wesson vivia numa casa da companhia e a renda já tinha sido deduzida, Morel e Barker retiraram quatro xelins e seis dinheiros cada um. E, para compensar o carvão que Morel já tinha trazido, Barker e Wesson receberam mais quatro xelins cada. Depois, a distribuição foi simples: Morel deu a cada um uma moeda de vinte xelins, até não restar nenhuma; mais meia coroa a cada um, até não restarem mais; e ainda uma moeda de um xelim, até acabarem. Se no fim restasse alguma coisa que não pudesse ser dividida, Morel guardava esse dinheiro para pagar uma rodada de cerveja.

Finalmente, os três homens levantaram-se e saíram. Morel tratou de se escapar antes de a mulher descer. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu. Deu uma olhadela rápida ao pão que tinha no forno e, olhando para a mesa, viu o seu dinheiro. Paul tinha estado sempre embrenhado no trabalho. Mas agora apercebia-se de que a mãe, ao contar a semanada, se enfurecia.

– T..t..t – era o barulho que ela fazia com a língua.

Paul franziu a testa. Não conseguia trabalhar quando a via aborrecida. Mrs. Morel contou novamente o dinheiro.

– Uns míseros vinte e cinco xelins! – exclamou ela. – Qual era o valor do cheque?

– Dez libras e onze xelins – disse Paul, irritado. Ele receava o que estava para vir.

– E esta semana ele dá-me uma porcaria de vinte e cinco xelins, e ainda tenho de tirar o dinheiro para o clube. Eu bem o conheço... Pensa que por tu ganhares, já não precisa de sustentar a casa. Ele que coma o dinheiro, se quiser. Mas eu digo-lhe como é...

– Oh, mãe, não... – exclamou Paul.

– Não, o quê, posso saber? – disse ela.

– Não reaja assim... senão não consigo trabalhar.

Ela continuou, mas já um pouco mais calma.

– Pronto, está certo – disse ela. – Mas como é que pensas que me vou governar?

– Eu sei, mas não adianta nada piorar a situação.

– Gostava de saber o que é que farias se tivesses de aturar isto?

– Já não será por muito tempo... Vai ter o meu dinheiro não tarda, e ele que vá para o diabo.

Retomou o trabalho, e ela apertou as fitas do chapéu com desalento.

O filho não suportava vê-la assim, quando ela estava zangada. Todavia, começava agora a tentar dar-lhe isso a perceber.

– Os dois pães do tabuleiro de cima estão prontos dentro de vinte minutos – disse Mrs. Morel. – Não te esqueças.

– Está bem – respondeu ele, e Mrs. Morel saiu para o mercado.

Paul ficou sozinho a trabalhar. Mas a sua habitual concentração estava perturbada. Ouviu bater a cancela do pátio. Cerca das sete e um quarto, bateram ao de leve na porta e Miriam entrou.

– Estás sozinho? – perguntou.

– Estou.

Como se estivesse na sua própria casa, tirou a boina escocesa e o casaco comprido e pendurou-os. Ele sentiu uma tremura. Esta podia ser a casa deles, dele e dela.

Miriam aproximou-se e espreitou o que ele estava a fazer.

– O que é? – perguntou.

– Uma natureza morta... para decorar objectos e bordados.

Ela inclinou-se mais, aproximando os olhos míopes do desenho.

– E gostas do que fazes? – inquiriu.

– Adoro. Neste momento ando em maré de convencionalizar tudo.

– Ah...

Miriam não se interessava por estudos convencionais, mas reconhecia que ele devia saber mais do que ela sobre tais coisas. Eram coisas de homens, coisas que não lhe diziam respeito. No entanto, havia de descobrir a razão por que ele andava, como dizia, em maré de convencionalizar tudo. Que fascínio poderia ter para ele o convencional?

– O que é que te faz gostar disto? – perguntou ela, intrigada.

Ele, como já era seu hábito, procurou justificar-se. Lutando com as palavras, tentou explicar-lhe a teoria de que a força de gravitação é o agente mais poderoso, o factor responsável pela forma das coisas, e que, se pudesse agir em completa liberdade, apareceria uma rosa geometricamente correcta nas linhas e nas proporções... e assim por diante. Isto fez desabrochar nela um certo conceito de desenho convencional que até aí lhe parecia ser pura mentira. Por fim, ele empurrou os livros para o lado.

– Posso...? – disse ele, ansioso e hesitante.

– Podes o quê?

– Mostrar-te isto... Não era minha intenção enquanto não estivesse pronto.

Paul não conseguia esconder-lhe nada do que fazia. Foi à sala e voltou com uma trouxa de linho cru. Desembrulhou-a cautelosamente e estendeu-a no chão. Era um cortinado, ou melhor, um portière, magnificamente decorado com rosas, estampadas a stencil.

– Ah, que bonito! – exclamou ela.

O tecido espraiou-se aos pés dela, com as suas maravilhosas rosas em tons rubros e caules em verde-escuro, tudo muito simples, mas com um não sei quê de perverso. Ela ajoelhou-se, deixando pender soltos os caracóis. Ele, ao vê-la assim, voluptuosamente debruçada sobre a sua obra, sentiu bater mais depressa o coração. De repente, ela ergueu os olhos para ele.

– Porque é que isto parece tão cruel? – perguntou.

– O quê?

– Parece haver neste padrão uma certa crueldade – disse ela.

– Haja ou não haja, a mim parece-me óptimo – replicou ele, dobrando o trabalho com mãos de amante. Ela levantou-se devagar, pensativa.

– Que vais fazer com isto? – perguntou ela.

– Mandá-lo para os armazéns Liberty. Fi-lo para a minha mãe... mas acho que ela prefere o dinheiro.

– Estou a ver... – disse Miriam. Havia na voz dele um travo de amargura, e ela ficou com pena. A ela, o dinheiro jamais lhe interessaria.

Paul levou o tecido novamente para a sala, e, quando voltou, atirou a Miriam um retalho mais pequeno. Era a fronha de uma almofada, com um padrão idêntico.

– Fi-la para ti.

Miriam apalpou o trabalho com mãos trémulas, em silêncio. Paul ficou embaraçado.

– Meu Deus, o pão! – gritou ele.

Tirou os pães do tabuleiro superior e bateu-lhes vigorosamente. Já estavam cozidos. Pô-los ao lado da lareira, para arrefecerem. Em seguida, foi à copa, molhou as mãos, retirou do alguidar a massa, muito branca, que ainda restava, e colocou-a dentro de uma forma de pão. Miriam continuava debruçada sobre o tecido pintado. Enquanto isso, Paul esfregava as mãos, esforçando-se por tirar os bocadinhos de massa que se lhe tinham agarrado.

– Gostas? – perguntou ele.

Ela levantou para ele os seus olhos profundos, inflamados de amor. Ele riu-se, contrafeito. Depois começou a falar do seu desenho. Falar com Miriam sobre os trabalhos que fazia era para ele fonte do mais intenso prazer. Punha toda a sua paixão, toda a violência do seu sangue, nestas conversas com ela, em que discutia e concebia as suas obras. Ela fazia-lhe desabrochar a imaginação, embora não entendesse, como nenhuma mulher entende, quando concebe uma criança no seu ventre. Mas isto para ela, sim, era viver. E para ele também.

Enquanto conversavam, uma rapariga que andaria pelos vinte e dois anos, baixa e descorada, de olhos encovados, mas olhar determinado, entrou na sala. Era uma amiga dos Morels.

– Põe-te à vontade – disse Paul.

– Não... não me demoro.

Sentou-se no cadeirão de braços, em frente de Paul e de Miriam, que estavam no sofá. Miriam afastou-se um pouco mais de Paul. A casa estava quente e cheirava a pão acabado de fazer: os pães tostadinhos, a estalar, pousados ao lado da chaminé.

– Não esperava vir encontrar-te hoje aqui, Miriam Leivers – disse Beatrice, maldosa.

– Não sei porquê! – resmungou Miriam, asperamente.

– Porque... Ora deixa lá ver os teus sapatos.

Miriam, constrangida, não se mexeu.

– Se não sabes, não sabes, e pronto – disse Beatrice, dando uma gargalhada.

Miriam tirou os pés de baixo do vestido. As suas botas tinham aquele ar indeciso e patético que evidenciava bem o quanto ela era insegura e complexada. E estavam, além disso, cobertas de lama.

– Santa Maria!... És mêmo um monte de lama! – exclamou Beatrice. – Quem te limp’as botas?

– Limpo-as eu.

– Então não deves ter mai nada que fazer – disse a outra. – Havia de ser preciso muitos homens pra me fazerem vir ‘té’qui esta noite... Mas o amor zomba da lama... não é, ‘Póstolo, meu lindo?

– Inter alia – disse ele.

– Valha-me Deus, não me digas que te vais pôr agora a vomitar línguas estrangeiras!... O qu’é que isso quer dizer, Miriam?

– «Entre outras coisas», julgo eu – disse ela, humildemente. Beatrice riu-se maliciosamente, com a ponta da língua a despontar entre os dentes.

– «Entre outras coisas», ‘Póstolo? – repetiu ela. – Queres tu dizer qu’o amor se ri das mães e dos pais e das irmãs e dos irmãos e dos amigos e das amigas, e se calhar até do próprio ser amado?

Estava a fazer-se de ingénua.

– Na verdade, o amor é um sorriso rasgado – retorquiu ele.

– Isso é qu’era bom, ‘Póstolo Morel... Vai por mim... – disse ela.

E riu-se de novo, com malícia, muito baixinho.

Miriam continuava calada, fechada sobre si mesma. Todas as amigas de Paul adoravam meter-se com ela, e ele deixava-a entregue a si própria, como se aproveitasse para se vingar.

– Ainda continuas na mesma escola? – perguntou Miriam a Beatrice.

– Continuo.

– Então ainda não te mandaram embora?

– Devem mandar na Páscoa.

– Não achas uma pouca-vergonha... mandarem-te embora só por não teres passado no exame?!

– Não sei – ripostou Beatrice, friamente.

– A Agatha diz que és tão boa professora como as outras. A mim parece-me ridículo. Porque será que não passaste?

– Cabeça dura, hem, ‘Póstolo? – disse Beatrice, secamente.

– Só lhe serve para morder – retorquiu Paul, a rir.

– Monstro! – gritou ela, e, saltando do lugar, atirou-se a ele e deu-lhe um puxão de orelhas. As mãos dela eram pequeninas e elegantes. Ele prendeu-lhe os pulsos enquanto ela se debatia. Conseguiu por fim libertar-se e, apanhando dois punhados do cabelo dele, castanho e espesso, puxou com toda a força.

– Oh, Bea – disse ele, alisando o cabelo com os dedos. – Odeio-te.

Ela riu, consolada.

– Com licença! – disse ela. – Quero sentar-me ao pé de ti.

– Antes estar sentado ao lado duma fera – disse ele, deixando no entanto espaço para a outra se sentar entre ele e Miriam.

– Olha, ficou com o cabelinho todo despenteado! – exclamou Beatrice, penteando-o com o seu próprio pente.

– E o bigodinho também! – continuou ela. E, atirando a cabeça para trás, com um trejeito, penteou-lho.

– Tens um bigodinho todo malandro, ‘Póstolo – disse ela. – Vermelho, sinal de perigo... Ainda tens daqueles cigarros?

Paul tirou a cigarreira do bolso. Beatrice olhou.

– Já não tens nenhum daqueles charros qu’a Connie te deu? – perguntou.

– Ainda devo ter um por aí...

Procurou no bolso e encontrou uma caixinha. Beatrice pegou-lhe.

– É isso, só tens um! – disse ela. – Devia ser para a Miriam. Não queres o charro da Connie, Miriam?

– Não, obrigada – replicou Miriam. – Quem é a Connie?

– Ele não te contou? – exclamou Beatrice, surpresa. – Bem, ‘Póstolo Morel, acho que não é bonito deixar uma menina tão linda às escuras.

– Não queres mesmo fumar? – perguntou Paul a Miriam.

– Sabes bem que não – respondeu ela.

– Imaginem só, eu a fumar o último cigarro da Connie – disse Beatrice, metendo o cigarro entre os dentes. Paul estendeu-lhe um fósforo aceso e ela aspirou sofisticadamente.

– Obrigadíssima, querido – disse, trocista.

Dizer estas coisas dava-lhe um prazer perverso a que não conseguia resistir.

– Que jeitinho que ele tem, não achas, Miriam? – perguntou.

– Se tem! – disse Miriam.

Paul tirou um cigarro.

– Lume, menino? – disse Beatrice, chegando o seu cigarro ao dele.

Ele inclinou-se para a frente, para acender o cigarro no dela. Ela piscou-lhe o olho. Miriam viu os olhos dele a brilharem de malícia e os seus lábios carnudos, quase sensuais, a tremerem. Ele já não estava em si, e isso para ela era insuportável. Aquele que ali estava agora não tinha nada a ver com ela, era como se ela não existisse para ele. Via-lhe o cigarro a bailar nos lábios cheios, bem vermelhos, e odiava aquelas madeixas espessas que lhe caíam livres sobre a testa.

– Meu torrãozinho de açúcar! – disse Beatrice, levantando-lhe o queixo e dando-lhe um beijo na face.

– Agora é a minha vez, Beat – disse ele.

– Isso é que não! – disse ela, com uma risadinha, fugindo para longe. – Ele é mesmo descarado, não achas, Miriam?

– Do pior! – disse Miriam. – A propósito, não te esqueceste do pão?

– Meu Deus! – gritou Paul, abrindo a porta do forno, de onde saiu um fumo azulado e um cheiro a pão queimado.

– Céus! – gritou Beatrice, correndo para junto dele. Paul ajoelhou-se diante do forno e ela espreitou-lhe por cima do ombro. – Aí está o resultado de só pensares no amor, meu lindo.

Paul, contrito, tirava os pães do forno. Um deles estava todo preto por baixo e o outro duro que nem uma pedra.

– Pobre Mater! – disse Paul.

– Agora tens de o raspar – disse Beatrice. – Traz-me o ralador de noz-moscada.

Ela compôs os pães que ainda estavam no forno, ele trouxe-lhe o ralador e ela raspou a parte queimada em cima da mesa, para um jornal. Paul abriu as portas, para eliminar o cheiro a queimado, e Beatrice continuou a raspar o pão, fumando enquanto arrancava a crosta carbonizada da pobre carcaça.

– Ai, ai, Miriam, desta vez estás bem arranjada – disse Beatrice.

– Eu! – exclamou Miriam, espantada.

– É melhor saíres antes de a mãe dele chegar... Agora é que eu percebo porque é que o Rei Alfred queimou os bolos. Agora, sim. O ‘Póstolo inda podia dizer que se tinha esquecido por causa do trabalho, se achasse que isso ia pegar. Se a velha da lenda tivesse chegado um nadinha mais cedo, teria dado cabo das orelhas da desavergonhada que provocou o esquecimento, e não das do pobre Alfred...

E riu-se, enquanto raspava o pão. Até Miriam, não se contendo, se riu também. Paul, pesaroso, pôs mais carvão na fogueira.

Ouviu-se bater o portão do jardim.

– Depressa! – gritou Beatrice, estendendo a Paul a carcaça já raspada. – Embrulha-a numa toalha húmida.

Paul correu para a copa. Beatrice soprou apressadamente as raspadelas para a fogueira e foi sentar-se com ar inocente. Annie entrou de rompante. Era uma rapariga muito esperta e sem rodeios. A luz intensa fê-la piscar os olhos.

– Cheira-me a queimado! – exclamou.

– É dos cigarros – explicou Beatrice, muito séria.

– Onde está o Paul?

Leonard entrou logo a seguir a Annie. Tinha uma cara comprida e engraçada, e uns olhos azuis muito tristes.

– Acho que se retirou para vocês se entenderem as duas – disse ele.

Depois, cumprimentou Miriam com ar penalizado, e mostrou-se suavemente sarcástico com Beatrice.

– Nada disso – disse Beatrice. – Foi sair com a número nove.

– Olha, vi mesmo agora a número cinco, que andava à procura dele – acrescentou Leonard.

– Pois é... Nós vamos ter de o dividir como o menino de Salomão – disse Beatrice.

Annie deu uma gargalhada.

– Ah, sim? – disse Leonard. – E com que bocado queres tu ficar?

– Sei lá – disse Beatrice. – As outras que escolham primeiro.

– E tu depois ficas com os restos? – disse Leonard, fazendo uma careta.

Annie estava às voltas com o forno. Miriam estava abandonada no seu canto. Paul entrou.

– Este pão está lindo, menino Paul – disse Annie.

– Então devias ter ficado a tomar conta dele – disse Paul.

– Tu é que devias ter feito aquilo que te compete – repontou Annie.

– Devia, não devia? – exclamou Beatrice.

– Mas se calhar estava com as mãos muito ocupadas... – atalhou Leonard.

– Viste-te aflita para cá chegar, não foi, Miriam? – disse Annie.

– Se vi... Mas tinha estado metida em casa toda a semana...

– E apeteceu-te mudar, hem? – insinuou Leonard, melífluo.

– Bem, não se pode passar a vida inteira dentro de casa – disse Annie, conciliadora. Beatrice vestiu o casaco e saiu com Leonard e Annie. Ia encontrar-se com o seu rapaz.

– Não te distraias com o pão, menino Paul – gritou Annie. – Boa noite, Miriam, acho que não vai chover mais.

Depois de todos saírem, Paul foi buscar o pão queimado, desembrulhou-o e olhou para ele com desalento.

– Está uma porcaria! – disse.

– Mas qual é o problema? – disse Miriam, enfadada. – Afinal são só... dois dinheiros e meio.

– Está bem... mas trata-se do pão da minha mãe, de que ela tanto se orgulha... e ela não vai gostar nada... Mas agora já não adianta preocuparmo-nos.

Levou o pão outra vez para a copa. Instalara-se uma certa distância entre ele e Miriam. Por uns momentos, Paul hesitou diante dela, a meditar, pesando o seu comportamento com Beatrice. No fundo, sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo contente. Não sabia explicar porquê, mas achava que era bem feito para Miriam. Não era agora que se ia arrepender. Miriam pensava no que ele estaria a cogitar, ali hesitante diante dela. Madeixas de cabelo espesso caíam-lhe ainda sobre a testa. E se lho puxasse para trás, para apagar as marcas do pente de Beatrice? E se lhe apertasse o corpo entre as suas mãos? Parecia tão rijo e palpitante. Se ele deixava as outras fazerem-lhe isso, porque não ela?

De súbito, Paul voltou à vida, e Miriam quase tremeu de susto quando ele arredou os cabelos da testa e avançou para ela.

– Oito e meia! – disse ele. – É melhor irmos a isto. Onde está o teu caderno de francês?

Miriam, contrariada, mostrou-lhe timidamente o caderno de exercícios de francês. Todas as semanas lhe entregava uma espécie de diário da sua vida íntima, escrito por ela em francês. Paul descobrira que era a única maneira de a convencer a fazer composições. O diário era acima de tudo uma carta de amor. Agora, ele ia lê-lo e era como se a história da sua alma fosse ser profanada por ele, no estado em que se encontrava. Paul sentou-se ao lado dela. Ela atentou na mão dele, firme e quente, percorrendo minuciosamente o seu trabalho.

Ele lia apenas as palavras em francês, ignorando a alma que encerravam. Mas, gradualmente, a mão esqueceu a tarefa e ele continuou a ler em silêncio, e em total imobilidade. Ela estremeceu.

– «Ce matin les oiseaux m’ont éveillé» – leu ele. – «II faisait encore un crépuscule. Mais la petite fenêtre de ma chambre était blême, et puis, jaûne, et tous les oiseaux du bois éclatèrent dans un chanson vif et résonnant. Toute l’aûbe tressaillit. J’avais rêvé de vous. Est-ce que vous voyez aussi 1’aube? Les oiseaux m’éveillent presque tous les matins, et toujours il y a quelque chose de terreur dans le cri des grives. II est si clair...».2

Miriam estava sentada, a tremer, envergonhada. Ele mantinha-se imóvel, tentando compreender. Apenas percebia que ela o amava, mas tinha medo do seu amor. Era mais do que ele merecia, e ele não era digno dela. Era ele que não a amava o suficiente, e não o contrário. Envergonhado, corrigiu-lhe o trabalho, anotando os erros timidamente por cima das palavras.

– Repara – disse ele, sereno. – Quando o particípio passado é conjugado com avoir, concorda com o complemento directo sempre que este o precede.

Ela inclinou-se para a frente, para ver melhor e poder compreender. Os seus caracóis finos e soltos roçaram-lhe ao de leve na cara, e ele deu um salto como se um ferro em brasa lhe tivesse tocado. Ao vê-la debruçada sobre a página, com os lábios rubros dolorosamente entreabertos, o cabelo negro caindo em finas madeixas sobre as faces afogueadas, corada como uma romã, a respiração tornou-se-lhe ofegante. Então, ela olhou para ele: os seus olhos negros punham a nu todo o seu amor, medo e desejo. E os olhos dele, negros também, feriram os dela. Pareciam dominá-los. E ela, perdendo o domínio de si própria, ali estava exposta, amedrontada, à mercê dele. Paul sabia, porém, que antes de a poder beijar, tinha de arrancar alguma coisa de si mesmo. E, então, um sopro de ódio por ela penetrou-lhe outra vez no coração, fazendo-o retomar as suas correcções.

De súbito, ele atirou com o lápis pelo ar e precipitou-se para o forno, para virar o pão. Era brusco de mais para o gosto dela. Miriam estremeceu em violento sobressalto, e a dor que sentiu era real. Até a maneira como ele se punha de cócoras diante do forno a magoava. Pressentia alguma crueldade nos seus gestos, alguma crueldade na brusquidão com que tirava os pães das formas, atirando-os ao ar e apanhando-os na queda. Se ao menos ele fosse gentil nos movimentos, sentir-se-ia mais rica e confortada no seu íntimo. Mas, assim, era só dor o que sentia.

Paul voltou para junto dela e acabou o exercício.

– Desta vez saíste-te bem – disse ele.

Ela percebeu que ele se sentia lisonjeado com o diário, mas isso não era recompensa suficiente.

– Sim senhora, de vez em quando fazes um brilharete – disse ele. – Devias escrever poesia.

Ela ergueu a cabeça, transbordante de alegria, mas logo a abanou desalentada.

– Falta-me confiança – disse ela.

– Mas devias tentar!

Mas ela abanou a cabeça.

– Vamos ler um bocado, ou achas que já é muito tarde? – perguntou ele.

– Lá tarde, é... mas podíamos ler só um bocadinho – pediu ela.


CONTINUA

Partiriam no sábado seguinte de manhã, no comboio das sete horas. Paul sugeriu a Miriam que dormisse em casa dele, pois morava muito longe, e ela já jantou de véspera em casa dele. Estavam todos tão excitados que a vinda de Miriam até foi recebida com entusiasmo. Contudo, mal ela chegou, a família tornou-se menos expansiva e mais fechada. Paul tinha descoberto um poema de Jean Ingelow que falava em Mablethorpe, e, por isso, tinha de o mostrar a Miriam. Sem ela, o seu sentimentalismo nunca teria chegado ao ponto de ler poesia para a família ouvir. Mas agora concordavam em ouvi-lo. Miriam, sentada no sofá, escutava-o enlevada. Quando ele estava presente, ela parecia sempre presa a ele e das palavras dele. Mrs. Morel, com ciúmes, sentou-se na sua cadeirinha de baloiço para o escutar. Annie e o pai escutavam-no também; Morel tinha a cabeça mais levantada de um lado, como alguém que escuta um sermão e está consciente do mesmo. Paul espreitou por cima do livro. Tinha agora a presença de quem mais gostava. E Mrs. Morel e Annie quase competiam com Miriam, sobre qual seria a ouvinte mais atenta, a preferida dele. Paul sentia-se nos píncaros.

– Mas – interrompeu Mrs. Morel – não percebo porque é que os sinos têm que tocar A Noiva de Enderbyt...?

– É uma velha melodia que os sinos costumavam tocar como aviso contra a cheia. Penso que a tal Noiva de Enderby morreu afogada numa enchente – respondeu ele. Não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer na realidade, mas nunca se teria rebaixado ao ponto de o confessar perante o seu público feminino. Elas escutavam-no e acreditavam. Ele próprio acreditava nas coisas que dizia.

– E as pessoas sabiam o significado dessa melodia? – quis saber a mãe.

– Sim... tal e qual os escoceses quando escutam As Flores da Floresta... e quando costumavam tocar os sinos em sinal de alarme em sentido contrário.

– Ah! – exclamou Annie. – Quer dizer que os sons de um sino são sempre os mesmos quando são tocados no seu sentido correcto, ou ao contrário.

– Mas – disse ele – se começares num tom grave e subires até ao agudo... lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá! – disse ele, percorrendo a escala completa, e todos o acharam muito inteligente. Ele também. Depois, aguardando um minuto, continuou a ler o poema.

– Hum! – disse Mrs. Morel, apreciativamente, quando ele terminou. – Só espero que tudo o que se tem escrito não seja assim tão triste.

– Num consig’intender porqu’é qu’houve tantos afogamentos – disse Morel. Houve uma pausa. Annie preparou-se para levantar a mesa.

– Acho Elizabeth um belo nome – disse Miriam, em voz baixa. – «A minha nora Elizabeth...»

– Concordo – disse Paul.

– Também acho – disse a mãe. – Mas não gosto de Lizzie e abomino Liza.

Nem Paul nem Miriam achavam que Lizzie ou Liza tivessem algo a ver com o assunto.

– Ah, mas «Elizabeth»! – murmurou Miriam.

– E ainda por cima, a Rainha Elizabeth adorava que a tratassem por «Grande Eliza» – disse Paul.

– E amanhã há mais! – disse Morel, não se contendo.

Mrs. Morel e Paul deram uma gargalhada.

– Aposto que nem sapatos tinha – disse Morel, continuando com a brincadeira.

– Não seja tão insolente com uma rainha – disse Annie.

– Rainhas! – exclamou Morel. – Num pensas noutra coisa senão nas rainhas? Num fazes mai nada senão viver à grande e à francesa!

Miriam levantou-se para ajudar a lavar a loiça.

– Deixa-me ser eu a lavar a loiça – disse ela.

– Não é necessário – exclamou Annie. – Vai-te sentar. É pouca loiça.

E Miriam, que não se sentia à vontade para insistir, sentou-se a ver o livro com Paul.

Paul era o chefe do grupo... para isso, o pai não prestava. E muito ele sofreu para que o baú de latão fosse descarregado em Firsby e não em Mablethorpe. E não foi também capaz de encontrar uma carruagem com lugares. Só a genica de Mrs. Morel o conseguiu.

– Aqui! – gritou ela para um homem. – Aqui!

Paul e Annie ficaram para trás envergonhadíssimos, mas perdidos de riso.

– Quanto é a viagem até Brook Cottage? – perguntou Mrs. Morel.

– Dois xelins.

– É assim tão longe?

– Ainda é um bom bocado.

– Não acredito – disse ela.

Contudo subiu para a carruagem. Iam os oito apertados numa velha carruagem da linha costeira.

– Bem vêem – disse Mrs. Morel –, são apenas três dinheiros por pessoa, mas se fosse um eléctrico...

A viagem prosseguiu. Sempre que passavam por uma casa típica, Mrs. Morel exclamava:

– É esta?... Não, agora é que é!

Estava toda a gente morta de ansiedade. A viagem prosseguiu. Houve um suspiro em uníssono.

– Estou agradecida por não ser aquela coisa horrorosa – disse Mrs. Morel. – Estava assustada.

Passou-se ainda mais algum tempo.

– Aquela mulher repelente disse que a casa ficava a dez minutos do mar...! – exclamou Mrs. Morel.

– Pra ela uma hora deve ser um minuto – reclamou Morel.

Todos o mandaram calar.

– Será que nunca mais chegamos? – exclamou Mrs. Morel, muito alto.

– Não grite assim, mãe – disse Annie. – O que é que ele irá pensar?

Mrs. Morel olhou de um modo esquisito para o condutor, e disse:

– Não sei! Mas, pelo aspecto, penso que não pensará nada de especial.

Finalmente, desceram perto de uma casa isolada, sobre o canal que passava na estrada principal. Houve grande alvoroço quando descobriram que tinham de atravessar uma pequena ponte para chegarem ao jardim da casa. Adoraram a casa, que ficava isolada, com o mar de um lado e, do outro, uma imensa extensão de terra plana que se estendia até ao céu, e onde se distinguia o branco da cevada, o amarelo da aveia, o vermelho do trigo e o verde dos nabos.

Paul registava as despesas e ele e a mãe governavam a casa. As despesas globais, incluindo o alojamento e a alimentação ascendiam a dezasseis xelins por pessoa e por semana. De manhã, Paul e Leonard iam tomar banho ao mar. Morel saía bastante cedo para ir dar um passeio.

– Paul – chamou a mãe do quarto. – Come uma fatia de pão com manteiga.

– Está bem – respondeu ele.

Quando regressou, a mãe estava sentada à cabeceira da mesa. A dona da casa era jovem. O marido era cego e ela cuidava da roupa. Assim, Mrs. Morel lavava a loiça na cozinha e fazia as camas.

– Mas a mãe prometeu que ia fazer umas férias a sério – disse Paul – e agora está a trabalhar.

– Trabalho? – exclamou ela. – De que é que estás a falar?

Paul adorava ir passear com ela pelos campos, até à aldeia ou até ao mar. Ela tinha medo de atravessar pontes de madeira e ele acusava-a de se portar como um bebé. Era apegado à mãe como se fosse o seu marido.

Miriam raramente andava com ele – excepto, talvez, quando iam todos ouvir os Coons. Os Coons eram insuportavelmente estúpidos para Miriam e, por isso, eram-no também para Paul, que pregava sermões presunçosos a Annie sobre a perda de tempo que era irem ouvi-los. Todavia, também ele sabia todas as suas canções de cor e as cantava desbragadamente pelas ruas. E, quando reparava que os estava a ouvir, a estupidez da situação agradava-lhe imenso. Contudo dizia para Annie:

– Que porcaria!... Não há um pingo de inteligência naquilo que cantam. Ninguém que tenha mais miolos que um gafanhoto consegue aguentá-los. – E dizia a Miriam, com algum desdém, onde estavam Annie e os outros:

– Suponho que foram aos Coons.

Era ridículo ouvir Miriam trautear as canções dos Coons. Tinha um queixo talhado a direito que descia na perpendicular desde o lábio inferior até à curvatura do maxilar. Quando ela cantava, Paul achava-a parecida com um anjo triste de Botticelli, mesmo quando entoava:


«Vem pela Estrada do Amor

Vem comigo passear, falar comigo...»


Miriam só tinha Paul todo para ela quando ele desenhava, ou à noite, quando todos os outros estavam a ouvir os Coons. Ele falava-lhe então interminavelmente do seu gosto pelos planos horizontais: como é que os grandes níveis do céu e da terra significavam para ele a eternidade da vontade, tal como os arcos normandos, arredondados e em série, significavam um salto em frente da alma humana voluntariosa, não se sabe para onde; pelo contrário, as linhas perpendiculares e o arco gótico apontavam para o céu e afloravam o êxtase, perdendo-se no divino. Ele era normando, Miriam era gótica. Submissa, ela concordava com tudo o que ele dizia.

Certa tarde, ele e ela foram passear pelo extenso areal que conduzia a Theddlethorpe. As alongadas vagas quebravam-se e elevavam-se em silvos agudos de espuma ao longo da costa. A tarde estava quente e eles completamente sozinhos na imensidão da areia, a sós com o barulho do mar. Paul adorava ouvir o mar a ressoar na areia. Adorava sentir-se entre o som do mar e o silêncio do areal. Miriam estava com ele. Tudo se tornava mais intenso. Já tinha anoitecido quando regressaram. O regresso a casa fazia-se através de uma passagem nas dunas, e depois através de uma estrada pejada de ervas, rasgada entre dois diques. A aldeia estava cinzenta e calma. Por detrás das dunas soava o murmúrio do mar. Paul e Miriam caminhavam em silêncio. De repente, ele estacou. O seu sangue parecia ter-se incendiado e ele mal podia respirar. Uma enorme lua alaranjada observava-os do alto das dunas. Ele continuava parado, olhando a lua.

– Oh! – exclamou Miriam, quando a viu também.

Ele estava ali, petrificado, olhando a lua dilatada e rubra, sozinha na escuridão imensa. O seu coração batia forte e tinha os músculos dos braços contraídos.

– O que foi? – murmurou ela, esperando por ele.

Ele voltou-se e fitou-a. Ela estava ao seu lado, para sempre na escuridão. A sua face, encoberta pela sombra do chapéu, olhava-o sem que ele a visse. E ela meditava. Estava um pouco receosa... profundamente emocionada e imbuída de religiosidade. Este era o seu melhor estado de alma. Ele sentia-se impotente face a esta situação. O sangue parecia concentrar-se como uma fogueira no seu peito, mas ele não lhe conseguia transmitir o sentimento. Pareciam disparar relâmpagos do seu sangue, mas, de algum modo, ela ignorava-os. Ela esperava vê-lo atingir um estado de graça. Ainda à espera, mas meio consciente da paixão que o possuía, Miriam fitou-o, preocupada.

– O que se passa? – murmurou novamente.

– É a Lua – respondeu ele, franzindo a testa.

– Sim – concordou ela. – É maravilhosa, não é? – Ela estava intrigada. A crise tinha passado.

Ele próprio não sabia o que lhe tinha acontecido. Era ainda tão jovem e a sua intimidade tão abstracta que não se apercebeu de que desejava esmagá-la contra o peito para aliviar a dor que o trespassava. Tinha medo dela. Talvez o facto de a desejar como um homem deseja uma mulher tivesse permanecido oculto dentro dele como uma humilhação. Quando ela fugia desses pensamentos, torturando-se em extrema agitação, ele recolhia-se até ao mais recôndito da alma. E, neste momento, esta «pureza» inibia o seu primeiro beijo de amor. Era como se ela mal pudesse suportar o choque do amor físico, ou apenas um beijo apaixonado, deixando-o demasiado reprimido e sensibilizado para lho dar.

Enquanto caminhavam ao longo da negra lagoa, Paul contemplava a Lua e mantinha-se em silêncio. Miriam caminhava a seu lado devagar. Ele sentia que a odiava, pois ela parecia, de certa forma, levá-lo a autodesprezar-se. Olhando em frente, descortinou uma luz na escuridão; era a janela iluminada da sua casa.

Adorava pensar na mãe e no resto das pessoas, todos alegres.

– Bem, já todos chegaram há bastante tempo – disse a mãe quando eles entraram.

– E o que é que isso importa? – exclamou ele, irritado. Posso ir passear quando me apetecer, não posso?

– Pensei que quisesses jantar com o resto do grupo – disse Mrs. Morel.

– Tenho de agradar a mim próprio – retorquiu ele. – Não é tarde e faço o que me apetece.

– Muito bem – disse a sua mãe, sarcasticamente. – Então faz o que te apetecer!

E nessa noite não falou mais com ele. Paul fingiu não notar nem estar preocupado com o assunto, e sentou-se a ler. Miriam lia também, tentando alienar-se. Mrs. Morel detestava-a por ela pôr o filho naquele estado. Via o filho irritadiço, presumido e melancólico, e culpava Miriam.

Annie e os amigos também se voltavam contra Miriam. O único amigo de Miriam era Paul. Mas ela não se importava, pois desprezava a trivialidade de todas essas pessoas.

E Paul detestava-a, pois ela perturbava, por assim dizer, o seu bem-estar e a sua naturalidade, torturando-o com sentimentos de humilhação.

1 «Os últimos representantes de uma raça extinta.» (N. da T.)


VIII

ZANGAS DE AMOR

ARTHUR terminou o estágio e arranjou emprego na central eléctrica da mina de Minton. Ganhava muito pouco, mas tinha possibilidades de progredir. Era, porém, rebelde e impaciente. Não bebia nem tinha o vício do jogo, mas envolvia-se constantemente em rixas devido às suas reacções intempestivas. Ia caçar coelhos para a floresta, qual caçador furtivo, e passava a noite em Nottingham em vez de voltar para casa, ou então ia nadar para o canal de Bestwood e falhava os cálculos do mergulho, ficando com o peito ferido, das rochas naturais e das latas que andavam a boiar à tona.

Tinha faltado ao emprego meses a fio, e uma noite não voltou para casa.

– Sabe por onde anda o Arthur? – perguntou Paul ao pequeno-almoço.

– Não – respondeu a mãe.

– É mesmo maluco – disse Paul. – Eu já nem ligaria, se ele ao menos fizesse mesmo alguma coisa. Mas não... não consegue resistir a um jogo de cartas, ou então vai levar alguma rapariga a casa depois da patinagem, com todo o decoro... e acaba por não voltar para casa. É maluco.

– Não vejo porque seria melhor se ele fizesse mesmo alguma coisa que nos envergonhasse – disse Mrs. Morel.

– Bem... eu, pelo meu lado, passaria a respeitá-lo mais – disse Paul.

– Duvido muito – respondeu a mãe secamente.

Continuaram a tomar o pequeno-almoço.

– A mãe gosta desvairadamente dele, não gosta? – perguntou Paul.

– Porque fazes essa pergunta?

– Dizem que as mães gostam sempre mais do filho mais novo.

– Talvez... mas eu não. Não... ele irrita-me.

– E gostava que ele se portasse melhor?

– Gostava que ele mostrasse algum bom senso masculino.

Paul estava ferido e irritado. Também ele irritava a mãe frequentemente. E ela ficava triste, pois via os melhores anos a fugirem-lhe.

Estavam a acabar o pequeno-almoço, quando o carteiro lhes entregou uma carta vinda de Derby. Mrs. Morel esforçou-se para ler o endereço.

– Dê cá isso, sua pitosga! – exclamou o filho, tirando-lhe a carta da mão. Ela assustou-se e quase lhe dava uma bofetada.

– É do seu filho Arthur – informou ele.

– Mas o que vem a ser isto? – exclamou Mrs. Morel.

– «Querida mãe» – leu Paul. – «Não sei o que me deu. Quero que me venha buscar. Ontem, em vez de ir trabalhar, vim alistar-me no exército com o Jack Brendon. Ele disse que estava farto de passar a vida sentado num escritório, e eu, idiota, como já sabe que sou, resolvi vir com ele.

«Já recebi o dinheiro referente ao recrutamento, mas se me vier buscar, talvez eles me deixem ir consigo. Foi uma loucura ter feito o que fiz. Não quero ficar no exército. Querida mãe, sei que não passo de um estorvo para si, mas, se me tirar desta situação, prometo que serei mais consciente e ponderado...»

Mrs. Morel sentou-se na cadeira de baloiço.

– Vejam só! – exclamou. – Ele que assente por uns tempos!

– Também acho – disse Paul. – Ele que assente!

Fez-se silêncio. A mãe estava sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, o rosto imóvel, pensativa.

– Devo estar doente – exclamou de repente. – Doente!

– Então! – disse Paul, franzindo a testa – Não quero que se preocupe com isto, está a ouvir?

– Então queres que encare isto como uma bênção? – disse ela, de repente, virando-se para o filho.

– Agora não vai tornar isto numa tragédia, pois não? – retorquiu ele.

– Ele é maluco!... Maluquinho de todo! – gritou Mrs. Morel.

– Vai ficar todo bonito com a farda – disse Paul, para espicaçar a mãe.

Ela virou-se a ele, furiosa.

– Ah, vai? – gritou ela. – Mas não para mim!

– Devia ir para um regimento de cavalaria... Ele divertia-se à grande e nós passávamos a ser chiques.

– Chiques!... Chiques!... Muito chique, não haja dúvida!... Um soldado raso!

– Ora – disse Paul. – E o que sou eu, senão um reles escriturário?

– O que é muito mais, meu filho! – gritou a mãe, picada.

– Essa agora!

– De qualquer forma, és um homem e não uma coisa enfiada num casaco vermelho.

– Não me importava de andar enfiado num casaco vermelho... ou azul-escuro, que me ficaria melhor... se eles não me dessem muitas ordens.

Mas a mãe já não o ouvia.

– Agora que ele estava a progredir, ou poderia vir a progredir no emprego... um aborrecimento passageiro e aí vai ele... dar cabo da vida toda. Que vantagens é que tu pensas que isto lhe pode trazer?

– Vai pô-lo todo afinado! – disse Paul.

– Todo afinado!... E o que tem ele para afinar? Um soldado!... Um soldado raso!!... Nada mais do que um corpo que se mexe quando lhe dão ordens! Grande coisa!

– Não percebo porque é que isso a aborrece tanto – disse Paul.

– Não, talvez não percebas. Mas percebo eu. – E recostou-se na cadeira, de queixo apoiado numa das mãos e segurando o cotovelo com a outra, a transbordar de raiva e desilusão.

– Está a pensar ir a Derby? – perguntou Paul.

– Estou, pois.

– Não faça isso.

– Quero ver com os meus próprios olhos.

– Mas por que diabo é que não o deixa assentar? É isso mesmo que ele quer.

– Claro – exclamou a mãe. – Tu sabes muito bem o que ele quer...

Preparou-se e apanhou o primeiro comboio para Derby, onde se encontrou com o filho e com o sargento. Todavia, os seus esforços foram infrutíferos.

Morel estava a almoçar, quando ela disse de repente:

– Tenho de ir hoje a Derby.

O mineiro levantou os olhos, muito brancos numa face toda enfarruscada.

– Ah, vais, cachopa? E o que te leva lá?

– O menino Arthur!

– Qu’aprontou ele desta vez?

– Alistou-se no exército, só isso.

Morel pousou a faca e recostou-se na cadeira.

– Não – disse ele. – Num pode ser!

– E amanhã vai para Aldershot.

– Bom – exclamou o mineiro –, iss’é qu’é já uma grand’alhada.

Morel reflectiu por um momento, disse «Hum!» e continuou a jantar. Subitamente, a face contraiu-se-lhe de raiva.

– Espero qu’ele nunca mais volte a pôr as patas nesta casa – disse ele.

– Credo! – exclamou Mrs. Morel. – Isso é lá coisa que se diga!

– É o qu’eu penso – repetiu Morel. – O doidivanas pisga-se pa ser soldado... Atão é porque já tá na hora de fazer pela vida... Comigo na conta mais.

– Falar é fácil... – disse Mrs. Morel.

Nessa noite, Morel quase sentiu vergonha de ir para a taberna.

– Então, sempre lá foi? – perguntou Paul à mãe quando chegou a casa.

– Fui.

– E viu-o?

– Vi.

– E o que disse ele?

– Ficou lavado em lágrimas quando me vim embora.

– Hum!

– E eu fiz o mesmo, portanto não precisas de fazer «Hum!».

Mrs. Morel preocupava-se com o filho, pois sabia que ele não ia gostar de estar no exército. Como de facto não gostou. A disciplina era uma coisa que ele não conseguia tolerar.

– Mas o doutor disse que ele era bem proporcionado... quase na proporção exacta, e as suas medidas eram perfeitas – disse Mrs. Morel a Paul, cheia de orgulho. – Como tu sabes, ele é bem-parecido.

– Ele é muito bem-parecido. Mas não arranja raparigas como o William, pois não?

– Não... Tem uma personalidade diferente. Sai muito ao pai: é um irresponsável.

Para consolar a mãe, Paul passou nessa altura a ir muito menos a Willey Farm. No Outono, quando se realizou no castelo a habitual exposição dos trabalhos dos alunos da escola de belas-artes, ele apresentou dois trabalhos: uma paisagem a aguarela e uma natureza morta a óleo, que obtiveram dois primeiros prémios, o que o deixou deveras emocionado.

– Mãe, que lhe parece, acha que ganhei algum prémio com as minhas pinturas? – perguntou uma noite, ao chegar a casa. Pelos seus olhos, a mãe viu que ele estava feliz, e a sua face resplandeceu.

– Como queres que eu saiba, meu filho?!

– Um primeiro prémio por aquelas jarras de vidro...

– Ena!

– E outro primeiro prémio por aquele esboço que fiz em Willey Farm.

– Um primeiro prémio para cada coisa?

– Sim, senhora.

– Hum!

Mrs. Morel parecia envolvida numa aura brilhante, cor-de-rosa, mas não disse nada.

– É bem bom, não é, mãe? – disse ele.

– É, sim.

– Oh, mãe, porque não me põe nos píncaros?

Ela riu-se.

– É que depois tinha de ter o trabalho de te puxar cá para baixo outra vez.

No entanto, toda ela vibrava de alegria. William tinha-lhe trazido sempre os seus troféus desportivos. Ela ainda os guardava, e não perdoava a morte dele. Arthur era bonito e era pelo menos um belo exemplar masculino, terno e generoso, e provavelmente o futuro acabaria por lhe sorrir. Mas Paul iria destacar-se. Ela tinha uma grande fé no filho, e mais ainda por ele não ter consciência das suas capacidades. Ele tinha tanto para dar, e a vida parecia ter muito para lhe dar também. Ela iria sentir-se realizada através do filho. A sua luta não tinha sido em vão.

Durante o período da exposição, Mrs. Morel foi várias vezes ao castelo, sem que Paul a visse. Vagueava pelo longo salão, apreciando as restantes pinturas. Sim, eram muito boas. Mas faltava-lhes qualquer coisa para que a sua satisfação fosse completa. Observava-as longamente, tentando encontrar nelas alguma falha. De repente, algo lhe fazia disparar o coração. Aquela era a pintura de Paul. Conhecia-a como se a tivesse gravada no coração.

«Nome: Paul Morel. Primeiro Prémio.»

Parecia tão estranha, ali exposta ao público, nas paredes da galeria do castelo, onde já tinha visitado tantas exposições de pintura durante toda a sua vida. E, depois, olhou em volta, tentando descobrir se alguém a tinha tornado a ver em frente ao mesmo quadro.

Não cabia em si de orgulho, e quando se cruzava com senhoras bem vestidas, pensava para consigo:

«Pois sim, vocês estão muito bem vestidas... mas duvido que os vossos filhos consigam arrebatar dois primeiros prémios na exposição no castelo.»

E seguia o seu caminho, sentindo-se mais orgulhosa do que qualquer outra mãe de Nottingham. E Paul sentia que tinha feito algo por ela, mesmo não passando de uma insignificância. Todo o seu trabalho pertencia à sua mãe.

Um dia, encontrou Miriam quando se dirigia para o castelo. Tinha-a visto no domingo e não esperava encontrá-la na cidade. Vinha com ela uma mulher loura, espampanante, de expressão carregada e porte provocador. Era estranho como Miriam, tão meditativa e reverente, parecia insignificante ao lado desta mulher de ombros deslumbrantes. Miriam fitou Paul demoradamente. O olhar dele estava pregado na desconhecida, que o ignorava. Miriam via claramente o seu instinto masculino a erguer-se altaneiro.

– Olá – disse ele. – Não me disseste que vinhas à cidade.

– Pois não – retorquiu Miriam, em ar de desculpa. Fui à Feira do Gado com o meu pai.

Paul olhou para a companheira de Miriam.

– Já te tinha falado de Mrs. Dawes – disse Miriam, com a voz estrangulada. Estava nervosa. – Clara, já conheces o Paul?

– Penso que já o vi antes – respondeu Mrs. Dawes, indiferente, enquanto o cumprimentava. Tinha uns olhos cinzento-esverdeados, displicentes, a pele era mel claro, e a boca carnuda, com o lábio superior levemente levantado, não se percebendo se de desprezo por todos os homens ou desejo de ser beijada, sendo a primeira hipótese a mais provável. Tinha a cabeça inclinada para trás, como se ela se afastasse por desdém, talvez também dos homens. Usava um chapéu enorme e deselegante, de pele escura de castor, e um vestido simples levemente afectado, que lhe conferia as linhas de um saco. Obviamente era pobre e tinha falta de gosto. Miriam andava sempre bonita.

– Onde é que me viste? – perguntou Paul à outra mulher.

Ela olhou-o como se não tivesse qualquer dúvida em responder.

E depois:

– Vi-te a passear com a Louie Travers – respondeu ela.

Louie era uma das raparigas da secção Espiral da fábrica de Mr. Jordan.

– E como é que tu a conheces? – perguntou ele.

Ela não respondeu. Paul virou-se então para Miriam.

– Para onde vais agora? – perguntou.

– Para o castelo.

– A que horas é o comboio de regresso?

– Vou regressar com o meu pai. Gostava que também viesses connosco. A que horas estás livre?

– Já sabes que nunca antes das oito, que diabo!

E as duas mulheres seguiram o seu caminho.

Paul lembrou-se de que Clara Dawes era filha de um velho amigo de Mrs. Leivers. Miriam tinha-a procurado, pois ela tinha sido em tempos supervisora da secção Espiral da Jordan, e porque o marido, um tal Baxter Dawes que era ferreiro, trabalhava para a fábrica, fazendo entre outras coisas os ferros para as próteses ortopédicas. Miriam pensou que através dela pudesse contactar directamente com a fábrica, podendo assim assegurar o emprego de Paul. Mas Mrs. Dawes estava separada do marido, e agora dedicava-se à defesa dos direitos das mulheres. Era supostamente inteligente, e isso interessava a Paul.

Paul conhecia Baxter Dawes e detestava-o. O ferreiro tinha cerca de trinta e um ou trinta e dois anos. Paul encontrava-o de vez em quando: era um homem alto e bem constituído, bem-parecido, para quem dava gosto olhar. Havia uma curiosa semelhança entre ele e a mulher. Ele tinha a mesma pele clara, de tom de dourado. O seu cabelo era castanho-claro e o bigode dourado. E exalava um desprezo semelhante, pelo porte e pela conduta. Nisto surgiu a diferença. Os seus olhos castanhos, muito escuros e astuciosos, eram imorais. Eram levemente salientes e as pálpebras sobrepunham-se de uma forma tal que lhe suscitava o ódio. A boca era também sensual. A postura evidenciava um desprezo cobarde, como se estivesse preparado para derrubar o primeiro que o censurasse... talvez porque ele próprio se censurava.

O homem odiou Paul desde o primeiro dia que o viu. Ao captar o olhar deliberado e impessoal de um artista no rosto do rapaz, enfureceu-se.

– Pa’onde é que tás’olhar? – disse ele desdenhosamente, amedrontando-o.

O rapaz desviou o olhar. O ferreiro costumava encostar-se ao balcão a conversar com Mr. Pappleworth, e a sua conversa era sempre porca e depravada. Quando sentiu novamente os olhos frios e críticos do jovem pousados nele, o ferreiro virou-se, como se tivesse sido mordido por algum bicho.

– Pa’onde é que tás’olhar, ó parvalhão? – rosnou ele.

O rapaz encolheu os ombros.

– Olha que tu...! – berrou Dawes.

– Deixa-o em paz – disse Mr. Pappleworth, naquela sua voz insinuante que parecia dizer «ele é um pobre diabo, mas não faz por mal».

Desde essa altura, Paul passou a olhar para o homem, sempre que o encontrava, com o mesmo olhar crítico e curioso, desviando o olhar antes de encontrar os olhos do ferreiro, o que deixava Dawes fora de si. E, assim, odiavam-se em silêncio.

Clara Dawes não tinha filhos. Quando deixou o marido, desfizeram a casa e ela foi viver com a mãe, enquanto Dawes passou a viver em casa da irmã. Na mesma casa vivia também uma cunhada, e Paul veio a descobrir que a tal rapariga, a Louie Travers, era agora a amante de Dawes. Era uma atrevida bonitona e insolente, que escarnecia do rapaz, mas que se empolgava toda se ele a acompanhava à estação.

A vez seguinte em que Paul foi visitar Miriam era um sábado à tarde. Ela tinha a lareira acesa na sala de visitas e estava à espera dele. Os outros tinham saído, com excepção dos pais e dos irmãos mais novos, pelo que tinham a sala de visitas só para eles. A sala era comprida, de tectos baixos e aconchegada. Na parede havia três pequenos quadros de Paul e o seu retrato estava pousado ao canto da lareira. Em cima da mesa e em cima do piano de pau-rosa, estavam jarras com folhas coloridas. Ele sentou-se na poltrona e ela ajoelhou-se no tapete aos seus pés. A luz da fogueira reflectia-se na sua cara bonita e pensativa.

– O que achaste de Mrs. Dawes? – perguntou Miriam, num tom calmo.

– Não me pareceu muito amistosa – respondeu ele.

– Lá isso não, mas não a achas elegante?

– Sim... no que diz respeito à sua altura. Mas não tem um pingo de bom gosto. Gosto de algumas coisas nela. Ela é sempre assim antipática?

– Penso que não. Penso que não anda satisfeita.

– Com o quê?

– Bem, como é que te sentirias a viver com um homem daqueles?

– Então, porque é que ela casou com ele, sabendo que o ia detestar tão rapidamente?

– Sim, porque é que ela casou com ele? – repetiu Miriam, com aspereza.

– E eu que pensei que ela fosse suficientemente forte para medir forças com ele – disse Paul.

Miriam baixou a cabeça.

– Ah, sim? – perguntou, satiricamente. E o que é que te leva a pensar isso?

– Basta olhar para a boca dela... nascida para a paixão... e a maneira como estica a garganta.

E atirou a cabeça para trás imitando o jeito provocador de Clara.

Miriam baixou ainda mais a cabeça.

– Sim – disse ela.

Fez-se silêncio durante alguns momentos, e Paul pensava em Clara.

– E o que é que te agradou nela? – continuou Miriam.

– Não sei... a pele e a textura da... da... não sei... emana dela uma certa violência... Aprecio-a apenas como artista.

– Pois.

Paul não entendia por que razão Miriam estava ali sentada no chão, meditando de uma forma tão estranha, e isso irritava-o.

– Não gostas mesmo dela, pois não? – perguntou ele à rapariga.

Ela olhou-o com os seus enormes olhos escuros, encantadores.

– Gosto – respondeu.

– Não gostas, não... não podes gostar... muito.

– E pode saber-se porquê? – perguntou ela calmamente.

– Oh, não sei... Talvez gostes dela porque ela odeia os homens.

Esta era provavelmente uma das razões pelas quais ele gostava de Mrs. Dawes, mas isso não lhe tinha ocorrido. Calaram-se. Ele franziu a testa, algo que já se estava a tornar habitual, particularmente quando estava com Miriam. Ela ansiava fazer-lhe desaparecer as rugas da testa, mas tinha medo. Parecia haver um outro homem dentro de Paul Morel, mas que não era o seu.

Algumas bagas vermelhas sobressaíam entre as folhas do vaso. Ele esticou-se e arrancou um raminho.

– Porque será que, se colocares bagas vermelhas no cabelo – disse ele – pareces uma bruxa ou uma sacerdotisa, mas nunca uma libertina.

Ela rasgou um sorriso doloroso, despojado.

– Não sei – disse.

As suas mãos fortes e quentes brincavam alegremente com as bagas.

– Porque não te ris? – disse ele. – Nunca sorris abertamente. Apenas te ris quando algo é estranho ou incongruente, e até isso parece magoar-te.

Miriam baixou a cabeça como se ele a estivesse a admoestar.

– Gostaria muito que sorrisses apenas um minuto para mim... apenas por um minuto. Sinto que isso libertaria alguma coisa dentro de ti.

– Mas... – e olhou-o com uns olhos assustados e lutadores. – ... Mas eu rio-me... sim, eu rio-me.

– Mentira, nunca te ris. Só se for por algo de muito intenso. Sempre que te ris, apetece-me chorar; parece que o teu riso transmite sofrimento. Oh, só de pensar nisso, fazes com que eu enrugue a minha alma.

– Não é minha intenção fazê-lo – disse.

– Eu sou sempre tão espiritual contigo – exclamou ele.

Ela manteve-se em silêncio, a pensar: «Então porque não és de outra forma?» E ele olhou para o seu corpo dobrado, em meditação, e pareceu dividi-lo em dois.

– Estamos no Outono – disse ele – e todas as pessoas libertam o seu espírito.

Caiu novamente o silêncio. Este estranho desentendimento entre eles despedaçava a alma de Miriam. Ele parecia tão bonito, com os seus olhos escuros e um olhar tão profundo como a nascente mais funda.

– Tornas-me tão espiritual – lamentou-se ele. – E eu não quero ser espiritual.

Ela retirou o dedo da boca com um pequeno estalido, e olhou-o em tom provocador. Mas a sua alma continuava nua nos seus olhos grandes e castanhos e o mesmo desejo ardente dominava-a. Se isso fosse possível, ele tê-la-ia beijado na pureza da abstracção. Mas ele não a podia beijar assim... e ela não parecia dar-lhe qualquer outra alternativa. E, no entanto, desejava-o.

Paul sorriu.

– Bem – disse ele –, vamos lá estudar francês... vamos ler Verlaine.

– Sim – disse ela num tom profundo, quase de resignação. Levantou-se e foi buscar os livros. As suas mãos avermelhadas e nervosas metiam dó; como ele desejava confortá-la e beijá-la!! Mas não se atrevia... ou não podia. Algo o impedia. Os seus beijos eram para ela reprováveis. Continuaram a ler até às dez horas, e depois foram para a cozinha; Paul mostrava-se de novo alegre e natural para com os pais de Miriam. Os seus olhos eram escuros e brilhantes e envolvia-o uma aura de fascinação.

Quando foi buscar a bicicleta ao celeiro descobriu que o pneu dianteiro estava furado.

– Vai-me buscar uma tigela com uma pinguinha de água – pediu ele a Miriam. – Vou chegar tarde e já sei que vou ouvir um sermão.

Acendeu a lanterna à prova do vento, despiu o casaco, virou a bicicleta ao contrário e meteu mãos à obra rapidamente. Miriam trouxe-lhe a tigela com água e ficou junto dele, observando-o. Adorava ver as mãos dele em acção. Era elegante e forte, e até os seus movimentos mais rápidos eram feitos com desembaraço. Ocupado como estava, parecia tê-la esquecido. Mas ela amava-o de uma forma absorvente, desejava poder passar as mãos ao longo do seu corpo. Sempre desejara abraçá-lo, desde que ele não a quisesse.

– Já está – disse Paul, levantando-se de repente. – Mais rápido não podia ser!

– Lá isso é verdade! – concordou ela, sorrindo.

Paul endireitou-se. Estava de costas para Miriam. Ela colocou as mãos nas ancas dele, fazendo-as deslizar rapidamente ao longo das pernas.

– És tão elegante! – disse ela.

Ele sorriu. Detestava o tom da voz dela, mas o sangue incendiou-se-lhe ao sentir o contacto das mãos. Ela, pelo contrário, parecia nem dar por ele. Era como se ele fosse um objecto, como se não se apercebesse do homem que ali estava.

Paul acendeu a luz da bicicleta, experimentou-a, bateu com ela no chão do celeiro para verificar o som dos pneus, e apertou o casaco.

– Tudo em ordem! – disse ele.

Ela experimentou os travões, pois sabia que estavam avariados.

– Já os arranjaste? – perguntou ela.

– Não!

– E porque não?

– O travão traseiro funciona mais ou menos.

– Mas não é seguro.

– Posso travar com o pé.

– Era melhor que os tivesses arranjado – murmurou ela.

– Não te preocupes... Amanhã vem tomar chá a minha casa e traz o Edgar.

– A sério?

– A sério... Por volta das quatro... Vou ter convosco.

– Combinado!

Ela estava feliz. Atravessaram o pátio às escuras até ao portão. Olhando em frente, Paul viu as cabeças de Mr. e Mrs. Leivers atrás da vidraça sem cortinas da cozinha, iluminadas pelo fulgor da lareira. O ambiente parecia muito aconchegado. À sua frente, a estrada ladeada de pinheiros abria-se escura.

– Até amanhã – disse ele, montando na bicicleta.

– Vais ter cuidado, não vais? – recomendou ela, como quem pede.

– Vou.

A voz dele soou já da escuridão. Ela deixou-se ficar mais uns instantes a ver a lanterna afastar-se e entrar na noite. Depois, voltou lentamente para casa. Orion elevava-se por cima da floresta, seguida do seu cão cintilante, meio apagado. Fora essa luz, o mundo estava mergulhado na mais densa escuridão e no silêncio, quebrado apenas pelo resfolegar do gado nos estábulos. E ela rezou com devoção pela segurança dele nessa noite. Quando ele a deixava, ficava sempre num estado de extrema ansiedade, imaginando se ele teria chegado bem a casa.

Paul deixava a bicicleta embalar pelas encostas abaixo. As estradas eram escorregadias e ele não podia meter travões. Era um prazer quando a bicicleta se precipitava pelo declive mais íngreme da colina. «Cá vou eu!», dizia ele. Era arriscado por causa da curva completamente às cegas à chegada ao vale, e das carroças dos cervejeiros com os carroceiros bêbados, a dormir. A bicicleta parecia desintegrar-se debaixo dele e Paul adorava a sensação. O descuido é a vingança de um homem sobre a mulher. Sentindo que não é devidamente apreciado, arrisca a sua própria destruição, para que ela sinta a sua falta.

Ao passar veloz pelo lago, as estrelas reflectidas na água pareciam saltar da escuridão como gafanhotos prateados. Depois surgia a longa subida até casa.

– Olha, mãe! – disse ele, atirando as bagas e as folhas para cima da mesa.

– Hum! – fez ela, olhando para a mesa e desviando o olhar. Como sempre, estava sozinha, sentada a ler.

– Não são bonitas?

– São.

Ele sabia que a mãe estava aborrecida. Passados alguns minutos disse:

– O Edgar e a Miriam vêm cá tomar chá amanhã.

A mãe não respondeu.

– Não se importa?

Ela continuou sem responder.

– Então importa-se? – perguntou ele.

– Sabes bem se me importo ou não.

– Não vejo porque se há-de importar... eu como lá tantas vezes...

– Pois comes.

– Então porque lhes recusa um chá?

– A quem é que eu recuso um chá?

– Porque é que a mãe é sempre tão difícil?

– Pronto, não digas mais nada! Convidaste-a para o chá, e isso já é o suficiente. Ela não falta.

Paul ficou muito aborrecido com a mãe. Sabia que ela não gostava de Miriam. Atirou com as botas e foi deitar-se.

Paul foi abrir a porta aos amigos no dia seguinte. Estava feliz de os ver chegar. Vieram por volta das quatro horas. Tudo estava sereno e calmo para domingo à tarde. Mrs. Morel estava sentada, com o seu vestido preto e o avental branco, mas levantou-se para receber as visitas. Foi cordial com Edgar, mas fria e muito esquiva com Miriam. Todavia, Paul achava que a rapariga estava bem bonita no seu vestido castanho de caxemira.

Ajudou a mãe a preparar o chá. Miriam ter-se-ia oferecido de agrado para ajudar, mas tinha receio. Paul tinha muito orgulho da sua casa. Havia nela uma certa distinção, pensava ele. As cadeiras eram simples, de madeira, e o sofá já velho. Mas o tapete e as almofadas eram aconchegantes; os quadros eram gravuras de bom gosto; a simplicidade dominava e havia muitos livros. Nem ele nem Miriam se envergonhavam das casas que tinham, pois eram tudo aquilo que deviam ser, e ainda acolhedoras. Então na mesa tinha grande orgulho; o serviço de chá era bonito e a toalha fina; pouco importava que as colheres não fossem de prata e nem o cabo das facas de marfim; tudo estava bonito. Mrs. Morel tinha cuidado maravilhosamente de tudo enquanto os filhos cresceram. Assim, nada se encontrava fora do lugar.

Miriam falou um pouco de livros, pois era um assunto que dominava bem. Mas Mrs. Morel não se mostrou interessada, virando-se rapidamente para Edgar.

A princípio, quando Edgar e Miriam iam à igreja, sentavam-se no banco de Mrs. Morel. Morel nunca lá ia, pois preferia a taberna. Mrs. Morel, arvorando-se em chefe da família, sentava-se numa extremidade do banco e Paul na outra extremidade; a princípio, Miriam sentava-se ao lado dele. A capela lembrava a Paul a sua casa. Era um lugar bonito, com bancos escuros e pilares estreitos e elegantes, e com muitas, muitas flores. As mesmas pessoas sentavam-se sempre nos mesmos lugares desde que ele era menino. Era bastante agradável e reconfortante estar ali sentado durante uma hora e meia, ao lado de Miriam e perto da mãe, unindo os seus dois amores sob o fascínio daquele local de culto. Sentia-se a um tempo entusiasmado, feliz e religioso. Terminada a missa, acompanhava Miriam a casa, enquanto Mrs. Morel passava o resto da tarde com a sua velha amiga Mrs. Burns. Sentia-se verdadeiramente vivo durante os passeios que dava ao domingo pela tardinha com Edgar e Miriam. Sempre que passava de noite pelas minas, pelo depósito das lanternas, todo iluminado, pelas torres altas e negras e pelas filas de vagões parados em frente das ventoinhas que giravam lentamente na escuridão, tinha a sensação intensa e quase insuportável de que Miriam voltaria para si.

Mas Miriam não ocupou por muito tempo o banco da família Morel, pois o pai arranjou novamente um outro banco. Ficava mesmo por baixo da pequena galeria, em frente ao banco dos Morels. Quando Paul e a mãe chegavam à capela, o banco dos Leivers estava sempre vazio. Ele receava que não viessem: a capela ficava muito longe e eram muitos os domingos chuvosos. Mas a dado momento, quase sempre atrasada, Miriam chegava com o seu passo amplo, cabeça baixa e face oculta pelo chapéu de veludo verde-escuro. Visto sentar-se do lado oposto, a sua cara ficava sempre na sombra, o que até o fazia sentir-se bem, pois ao vê-la ali à sua frente era como se a alma se lhe agitasse dentro do corpo. Não era o mesmo calor, a mesma alegria e o mesmo orgulho que sentia ao ter a mãe a seu lado, como chefe: era algo mais maravilhoso ainda, menos humano, um sentimento intenso temperado pela dor, algo que ele sabia que não podia alcançar.

Foi nesta altura que começou a pôr em questão a doutrina ortodoxa. Ele tinha vinte e um anos e ela vinte. Miriam receava a chegada da Primavera: ele tornava-se agressivo e magoava-a muito. Tudo o que mais queria era destruir cruelmente as crenças dela. Edgar, crítico por natureza e sem sentimentos, gostava desta situação. Mas Miriam sofria amargamente, pois o homem que amava possuía uma inteligência cortante que dissecava a religião em que ela fora criada e se movimentava, e onde habitava o seu Eu. Mas ele não a poupava e mostrava-se muito cruel. Quando estavam sozinhos, tornava-se ainda mais violento, como se quisesse matar-lhe a alma, explorando as suas crenças até ela quase perder a consciência.

– Ela regozija-se... regozija-se quando afasta o meu filho de mim – gritava Mrs. Morel do fundo do coração, quando Paul saía de casa. – Ela não é como qualquer mulher comum, que permite que eu faça parte do meu filho. Ela quer absorvê-lo. Quer tirar-mo e absorvê-lo, até que nada reste dele, nem sequer para ele próprio. Assim, ele nunca será senhor de si... ela irá sugá-lo completamente. – E Mrs. Morel sentava-se, debatendo pressentimentos e meditando tristemente.

Quando regressava dos seus passeios com Miriam, Paul vinha trespassado de sofrimento. Caminhava com passo apressado, mordendo os lábios e cerrando os punhos. Quando chegava a uma cerca, parava por alguns minutos, imobilizado. À sua frente estendia-se a escuridão sem fim; as negras encostas salpicavam-se de florescências luminosas; e, nos recônditos da noite, brilhava o clarão da mina. Tudo era estranho e ameaçador. Porque estava ele tão dilacerado, quase em êxtase, incapaz de se mover? Porque estava a mãe sentada em casa a sofrer? E sabia que ela sofria bastante. Mas porquê? E porque detestava ele Miriam e era tão cruel para ela, quando pensava na mãe? Já que Miriam fazia a mãe sofrer, ele tinha de a detestar. E com facilidade a detestava. Porque o levava ela a duvidar de si próprio, deixando-o inseguro, indefinido, como se não pudesse evitar que a noite e o espaço caíssem sobre ele? Como ele a odiava! Mas logo um ímpeto de ternura e humilhação o envolvia.

De repente, precipitava-se para casa a correr. A mãe reconhecia nele as marcas da agonia, mas nada dizia. Ele, porém, tinha de obrigá-la a falar, pois via-a zangada por ele ter ido passear com Miriam para tão longe.

– Porque é que não gosta dela, mãe? – gritou ele um dia, desesperado.

– Não sei, meu filho – respondeu ela num tom comovente. – Já tentei gostar, tentei com todas as minhas forças... mas não consigo... não consigo...

E, entre ambas, ele sentia-se triste e sem esperanças. A Primavera era a pior das estações. Ele ficava instável, enérgico e cruel. Assim, decidiu afastar-se dela. Surgiam então as horas a que ele sabia que Miriam o esperava, e a mãe apercebia-se da sua impaciência. Paul não conseguia progredir no seu trabalho, não conseguia fazer nada. Era como se algo transportasse a sua alma até Willey Farm. De repente, punha o chapéu e saía sem dizer nada. E a mãe sabia que ele tinha partido. Assim que se punha a caminho respirava de alívio. Mas, mal chegava ao pé de Miriam, tornava-se novamente cruel.

Certo dia, em Março, estava Paul deitado nas margens do lago Nethermere, com Miriam sentada a seu lado. Estava um dia resplandecente, branco e azul. Nuvens grandes e brilhantes passavam altas, e as suas sombras moviam-se silenciosas sobre a água. Os espaços abertos no céu tinham um tom glacial de azul. Paul estava deitado de costas sobre a relva, olhando o céu. Não conseguia olhar para Miriam. Ela parecia desejá-lo e ele resistia. Resistia sempre. Ela queria dar-lhe a sua paixão, a sua ternura, mas não era capaz. Ele sentia que ela não o queria; que apenas queria a sua alma. Miriam retirava-lhe as forças e a energia através de um canal que os unia. Ela não queria o corpo dele, pois nesse caso seria apenas duas pessoas, homem e mulher, em comunhão. Queria absorvê-lo completamente. E ele sentia-se estimulado por um impulso quase de loucura, que o fascinava, com um fascínio de droga.

Ele falava sobre Miguel Angelo. Ao escutá-lo, ela sentia que tocava o protoplasma da vida, as próprias células palpitantes, e a sua satisfação era plena. Mas, no final, isso assustava-a. Ali estava ele deitado, na intensidade imaculada da procura, e a sua voz amedrontava-a num crescendo, levando-a quase a tocar as raias do inumano, como se num transe.

– Não digas mais nada – pediu Miriam, com ternura, pousando a mão na testa dele. Ele permanecia estático, incapaz de se mover. O seu corpo estava de algum modo abandonado.

– Porquê... estás cansada?

– Estou, e tu também vais ficar.

Ele deu uma pequena gargalhada, apercebendo-se da situação.

– Contudo, sabe-me bem – disse ele.

– Mas não é essa a minha intenção – disse ela, muito baixinho.

– Não quando já foste longe de mais e sentes que já não és capaz de te dominar. Mas o teu eu inconsciente clama por isso. E eu suponho que também quero o mesmo.

– Então como posso evitá-lo?

– Penso que não podes, pois tu fazes sempre o mesmo. Desligas-me algures e retiras-me de mim próprio. Sinto-me como um fantasma, sem corpo.

– Não! – implorou ela.

– Agora mesmo, neste momento, olho para as minhas mãos e pergunto-me o que estão elas ali a fazer. Aquela água, por exemplo, ondula através de mim. Eu sou a ondulação. Corre através de mim e eu através dela. Não há barreiras entre nós.

– Mas...! – E Miriam hesitou.

– O que resta de mim é apenas uma consciência disseminada. Sinto que o meu corpo está deitado aqui, vazio, como se eu estivesse dentro de outras coisas... das nuvens e da água...

Ela olhou para ele e reparou naquele olhar tão estranho, como se ele fosse uma coisa e não uma pessoa, o que a fascinava tanto, mas que tanto receava. E era precisamente esse receio que a impelia a ter muito mais. Mas, agora, queria que ele parasse.

– Sabes – prosseguiu – o meu eu físico está liberto. Mas, se assim for, então eu não estou vivo. Tenho a certeza de que me destruiria. O que tu queres é pores-me gordo e banal, e não uma sombra. Queres fechar bem a minha alma dentro da sua bainha. Mas ela um destes dias libertava-se, tal como a espada que se libertou de uma bainha lassa e caiu ao mar.

Miriam meditava tristemente. Nisto, levantou a cabeça e olhou-o com os olhos muito brilhantes.

– Então deixa-me ser a tua protecção – disse ela.

E estendeu as mãos para as dele.

– Se tu pudesses... – disse ele. – Mas tu és aquilo que o teu eu inconsciente te impõe, e não aquilo que queres ser. Nenhum de nós dois é completamente normal... porém, agora eu quero sê-lo, mas penso que tu não queres. Tu queres ser algo fora do comum.

– Não, não quero – exclamou ela. Mas havia medo na sua voz.

– De qualquer forma – continuou Paul, num tom apático –, isso agora não é possível. Não me podes ter dessa maneira. Neste momento eu e tu somos apenas almas desprovidas de sangue. E isso provocaria uma vibração diferente, que se entrechocaria com este estado actual numa verdadeira tortura... Se ao menos pudesses querer-me, e não apenas quereres aquilo que eu tenho para te papaguear.

– Eu! – exclamou Miriam num tom áspero. – Eu! Quando é que eu te posso ter?

– Então a culpa é minha – disse ele, e juntando as partes dispersas do seu eu, levantou-se e começou a falar de coisas triviais. Sentia-se irreal. De uma forma vaga, detestava-a por isso. Sabia que era ele o culpado e, no entanto, isso não o impedia de a odiar.

Certa noite, na mesma época, em que Paul tinha ido levar Miriam a casa, pararam perto do prado que se estendia até à floresta, incapazes de se separarem. Assim que as estrelas surgiram, as nuvens desapareceram e eles captaram fugazmente a sua Orion, que se dirigia para oeste. As jóias de Orion brilharam por um breve instante, com o seu cão correndo rasteiro, lutando com dificuldade para atravessar a espuma de uma nuvem.

Orion era para eles a constelação mais carregada de significado. Era nela que os seus olhos se haviam fixado nos momentos mais estranhos e intensos, até sentirem que viviam em cada uma das suas estrelas. Nessa noite, Paul mostrava-se taciturno e perverso. Orion parecia-lhe apenas uma constelação, nada mais. Lutava contra o seu brilho, o seu fascínio. Miriam observava atentamente a disposição do seu amado, mas ele nada disse que o comprometesse até ao momento da partida, quando, de testa franzida, ficou parado a olhar tristemente para o castelo de nuvens, por detrás do qual a grande constelação estaria ainda a transitar.

No dia seguinte havia uma pequena festa em casa dele, para a qual Miriam estava convidada.

– Não posso vir buscar-te – disse ele.

– Não faz mal... O tempo também não está dos melhores para andar na rua... – respondeu ela serenamente.

– Não é isso... eles é que não gostam que eu venha. Dizem que me preocupo mais contigo do que com eles. E tu compreendes, não é verdade?... Tu sabes que entre nós existe apenas amizade.

Miriam ficou perplexa e com pena dele. Como lhe devia ter custado dizer aquelas palavras. Deixou-o, para lhe poupar outra humilhação. Uma chuva fina batia-lhe no rosto enquanto caminhava. Estava profundamente magoada e desprezava-o por ele se deixar levar pelo mais leve sopro de autoridade. No fundo do seu coração, sentia inconscientemente que ele tentava afastar-se dela, mas como jamais teria a coragem de o admitir, sentia pena dele.

Por esta altura, Paul tornou-se num elemento imprescindível do armazém da Jordan. Mr. Pappleworth saiu para se estabelecer por conta própria e Paul passou a supervisor da Espiral. Se tudo corresse bem, o seu salário seria aumentado para trinta xelins no final do ano.

Miriam vinha quase todas as sextas-feiras à noite para a lição de francês. Paul já não ia tão amiúde a Willey Farm, e ela receava que a sua aprendizagem estivesse prestes a terminar; por outro lado, e apesar das discórdias, gostavam de estar um com o outro. Liam Balzac, escreviam composições e sentiam-se bastante cultos.

A noite de sexta-feira era a noite de pagamento para os mineiros. Morel «repartia o bolo», ou seja, dividia os lucros da empreitada, quer no New Inn, em Bretty, quer na sua própria casa, conforme os seus companheiros preferissem. Barker tinha deixado de beber, e agora os homens «dividiam o bolo» em casa de Morel.

Annie, que tinha estado a dar aulas longe dali, regressara de novo a casa. Era ainda uma rapariga endiabrada. Estava noiva e ia casar. Paul andava a estudar desenho.

Morel estava sempre bem-disposto às sextas-feiras à noite, a não ser que os ganhos dessa semana fossem escassos. Depois do jantar, entregava-se a longos preparativos para se lavar. A decência exigia que as mulheres se ausentassem durante as reuniões masculinas. As mulheres não deviam assistir à reunião dos sócios, que era considerada assunto estritamente masculino... e nem deviam ficar a saber qual o montante exacto dos ganhos semanais. Assim, enquanto o pai barafustava na cozinha, Annie saiu e foi por uma hora para casa da vizinha, e Mrs. Morel foi à cozinha ver se o pão já estava cozido.

– Fecha a porta! – berrou Morel, furioso.

Annie bateu com a porta e saiu.

– S’ela torna a abrir a porta enquant’eu tou a tomar banho, amando-lh’um murro que lhe parto os queixos – berrou ele, ameaçador, por entre a espuma do sabão. Paul e a mãe franziram as sobrancelhas ao ouvi-lo.

Logo depois, saiu da cozinha, tremendo de frio e pingando o chão todo de água ensaboada.

– Oh, cos diabos! – disse ele. – Onde está a minha toalha?

Estava pousada numa cadeira, frente à lareira, para aquecer, pois, se assim não fosse, ele teria feito um grande estardalhaço. Aninhou-se sobre os calcanhares frente ao lume vivo, para secar.

– Brrrr... – continuou, fingindo tremer de frio.

– Ó homem, não sejas criança! – disse Mrs. Morel. – Não está frio nenhum.

– Exprimenta despires-te e tomares banho naquela cozinha – disse o mineiro, enxugando o cabelo. – Mas que gelo de casa!

– Eu não faria com certeza tanto alarido – respondeu a mulher.

– Ah, poi não. Caías redonda no chão que nem uma pedra.

– Porque é que uma pedra há-de ser mais redonda do que outra coisa qualquer? – perguntou Paul curioso.

– Essa agora... sei lá... é o que se diz – argumentou o pai. – Nesta tua cozinha há muitas correntes de ar, e quando ele passa através das costelas parece vento a passar por uma cancela de cinco traves.

– Sempre teria alguma dificuldade em passar através das tuas costelas – disse Mrs. Morel.

Morel olhou desanimado para ambos os lados do seu corpo.

– Eu! – exclamou. – Eu cá num tenho pele de coelho. Os meus ossos vêem-se no meu corpo!

– Gostaria de saber onde – retorquiu a mulher.

– Por todo o lado! Mas também num sou nenhuma carga de ossos.

Mrs. Morel deu uma gargalhada. Ele tinha um corpo ainda belo, jovem e musculado, sem gorduras. A pele era macia e clara. Poderia bem ser o corpo de um homem com vinte e oito anos, se não fossem as várias cicatrizes azuladas, semelhantes a tatuagens, onde o pó do carvão se tinha alojado, e o seu peito peludo. Morel pôs as mãos nos quadris, desanimado. Acreditava piamente que, por não engordar, era magro como um rato esfomeado.

Paul olhou para as mãos do pai, calejadas, escuras, cobertas de cicatrizes e com as unhas partidas, a esfregarem a maciez do seu corpo, e ficou admirado, pois parecia-lhe estranho serem feitas da mesma carne.

– Suponho – disse, virando-se para o pai – que antigamente tinha uma bela figura.

– Eh, olha lá o que dizes! – exclamou o mineiro, olhando em volta, espantado e tímido, como uma criança.

– Tinha uma bela figura, sim senhor! – exclamou Mrs. Morel. – O pior foi ele andar sempre aos encontrões a tudo, como se quisesse meter-se no buraco mais pequeno que encontrava.

– Eu? – exclamou Morel. – Eu, uma bela figura! Nunca passei de um esqueleto.

– Credo, homem! – gritou a mulher. – Não sejas tão piegas!

– É ve’dade – disse ele. – Tu nunca me viste qu’eu não parecesse qu’emagrecia de dia pra dia.

Mrs. Morel sentou-se e deu uma gargalhada.

– Tens um corpo de ferro – disse ela. – No tocante ao corpo, nunca nenhum homem te levou a melhor. Devias ter visto o teu pai em novo... – exclamou, de repente, virando-se para Paul e empertigando-se, para imitar a postura outrora garbosa do marido. Morel observava-a, envergonhado. Viu novamente a paixão que ela sentia por ele, e que brilhou durante alguns momentos à volta dela. Ele era tímido, assustadiço e humilde. Agora, porém, sentia de novo a velha força de outros tempos. Mas imediatamente sentiu na carne os estragos praticados ao longo de todos estes anos e só queria desaparecer, fugir de tudo.

– Lava-me as costas – pediu ele à mulher.

Ela trouxe uma toalha ensopada e ensaboada e colocou-lha sobre os ombros. Ele deu um salto.

– Oh, desgraçada! – berrou ele. – Tá gelada como a morte!

– Devias ter nascido salamandra – disse ela a rir, lavando-lhe as costas. Só raramente o ajudava nestas tarefas tão pessoais. Geralmente, eram os filhos quem fazia este tipo de coisas.

– O outro mundo não vai ser suficientemente quente para ti – acrescentou ela.

– Poi não – disse ele. – Tu vais fazer com que sopre uma aragem pra m’arrefecer.

Mas ela já tinha terminado. Enxugou-o rapidamente e subiu ao primeiro-andar, regressando em seguida com um par de calças limpas. Assim que se secou, Morel vestiu a camisola. Depois, rosado e luzidio, com o cabelo em pé e a camisola de flanela vestida por cima das calças de mineiro, aqueceu as ceroulas que ia vestir a seguir. Virou-as, pô-las do avesso e ressequiu-as.

– Oh, homem, veste-te! – exclamou Mrs. Morel.

– Queria ver se gostavas de vestir uma roupa tão fria como a água da banheira – disse ele.

Por fim, despiu as calças e vestiu-se condignamente de preto. Fez tudo isto em cima do tapete da lareira, e teria feito o mesmo se Annie e os amigos íntimos estivessem presentes.

Mrs. Morel virou o pão no forno. Depois, retirou uma mão-cheia de massa do alguidar de barro, que se encontrava a um canto da cozinha; trabalhou a massa dando-lhe a forma adequada e meteu-a numa tigela. Enquanto fazia isto, Barker bateu à porta e entrou. Era um homem baixo, compacto e calmo, que parecia capaz de atravessar um muro de pedra. O cabelo era preto e curto e a cara bem-parecida. Tal como a maioria dos mineiros, era pálido, mas saudável e rijo.

– Boa noite, ‘nha senhora – disse o homem, curvando a cabeça e sentando-se, com um suspiro.

– Boa noite – respondeu ela, cordialmente.

– Fizeste ranger os tacões – disse Morel.

– Num dei por nada – disse Barker.

Retraído, sentou-se num dos bancos da cozinha, como os colegas normalmente faziam.

– Como está a sua senhora? – perguntou-lhe Mrs. Morel. Há algum tempo, ele tinha-lhe dito: «Sabe, estamos à espera do terceiro...»

– Bem – respondeu ele, coçando a cabeça –, penso que está tão boa quanto o possível.

– Ora deixa cá ver... para quando é? – perguntou Mrs. Morel.

– Bem... penso que está para chegar a qualquer momento...

– Ah, sim? E tem passado bem?

– Sim... tudo em ordem.

– É um milagre, pois ela não é muito forte.

– É verdade. ... E eu fiz outra asneira.

– O que foi?

Mrs. Morel sabia que Barker não teria feito nada de muito errado.

– Não consegui dar co’a alcofa das compras.

– Pode levar a minha.

– Não... óspois vossemecê pode precisar.

– Não preciso, não. Levo sempre um saco de rede.

Todas as sextas-feiras à noite, Mrs. Morel via o mineiro, baixo e desembaraçado, a comprar os legumes e a carne para toda a semana, e sentia grande admiração por ele.

– O Barker pode ser baixo, mas é dez vezes mais homem do que tu – tinha dito ela ao marido.

Nisto, entrou Nessen. Apesar de pai de sete filhos, era magro, muito frágil, com uma ingenuidade de adolescente e um sorriso levemente matreiro. Mas a mulher dele era uma mulher apaixonada.

– Estou a ver que me batest’òs pontos – disse, sorrindo sem brilho.

– Pois foi – respondeu Barker.

O recém-chegado tirou o boné e o grosso cachecol de lã. Tinha um nariz pontiagudo e vermelho.

– É capaz de ter frio, Mr. Wesson – disse Mrs. Morel.

– Aqui tá um bocado de frio – respondeu.

– Então aproxime-se do lume.

– Não, tou bem aqui.

Os dois mineiros sentaram-se um pouco mais arredados. Não queriam ficar em cima do tapete da lareira, pois esse lugar era sagrado para a família.

– Senta-te no cadeirão – exclamou Morel, alegremente.

– Não, obrigado. Tou muito bem aqui.

– Ora essa, chegue-se para aqui – insistiu Mrs. Morel.

O homem levantou-se e, avançando desajeitadamente, sentou-se no cadeirão de Morel, envergonhado. Era tomar demasiada confiança. Mas estar ao pé do lume deixava-o muito feliz.

– E então como está o seu peito? – perguntou Mrs. Morel.

Ele sorriu novamente, com uns olhos azuis muito brilhantes.

– Ora, vai indo! – disse ele.

– Como um chocalho – atalhou Barker.

– T..t..t..t – fez Mrs. Morel com a língua. – Já mandou fazer a camisa de flanela?

– Ainda não – disse ele sorrindo.

– E porque não? – perguntou ela.

– Lá chegará o dia... – disse ele, sorrindo.

– Ah, o dia de São Nunca, estou a ver – exclamou Barker.

Barker e Morel preocupavam-se com Wesson, pois fisicamente eram ambos fortes que nem touros.

Quando Morel estava quase pronto, entregou o saco do dinheiro a Paul.

– Contó lá, rapaz – pediu com humildade.

Impaciente, Paul abandonou os livros e os lápis e despejou o saco para cima da mesa. Continha cinco libras em moedas de prata, várias moedas de vinte xelins e alguns trocados. Paul contou o dinheiro rapidamente, incluindo os cheques e os papéis com os totais do carvão, e pôs as moedas por ordem. Então Barker deu uma olhadela aos cheques.

Mrs. Morel subiu ao primeiro andar e os três homens sentaram-se à mesa. Morel, como dono da casa, sentou-se no seu cadeirão com as costas viradas para a lareira. Os outros dois sentaram-se em cadeiras frias. Nenhum deles contou o dinheiro.

– Quant’é que dissemos qu’era prò Simpson? – perguntou Morel. E, durante um minuto, discutiram os ganhos diários do companheiro, sendo o valor respectivo posto de lado em seguida.

– E quant’é prò Bill Naylor?

Também este valor foi retirado do saco.

E então, visto que Wesson vivia numa casa da companhia e a renda já tinha sido deduzida, Morel e Barker retiraram quatro xelins e seis dinheiros cada um. E, para compensar o carvão que Morel já tinha trazido, Barker e Wesson receberam mais quatro xelins cada. Depois, a distribuição foi simples: Morel deu a cada um uma moeda de vinte xelins, até não restar nenhuma; mais meia coroa a cada um, até não restarem mais; e ainda uma moeda de um xelim, até acabarem. Se no fim restasse alguma coisa que não pudesse ser dividida, Morel guardava esse dinheiro para pagar uma rodada de cerveja.

Finalmente, os três homens levantaram-se e saíram. Morel tratou de se escapar antes de a mulher descer. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu. Deu uma olhadela rápida ao pão que tinha no forno e, olhando para a mesa, viu o seu dinheiro. Paul tinha estado sempre embrenhado no trabalho. Mas agora apercebia-se de que a mãe, ao contar a semanada, se enfurecia.

– T..t..t – era o barulho que ela fazia com a língua.

Paul franziu a testa. Não conseguia trabalhar quando a via aborrecida. Mrs. Morel contou novamente o dinheiro.

– Uns míseros vinte e cinco xelins! – exclamou ela. – Qual era o valor do cheque?

– Dez libras e onze xelins – disse Paul, irritado. Ele receava o que estava para vir.

– E esta semana ele dá-me uma porcaria de vinte e cinco xelins, e ainda tenho de tirar o dinheiro para o clube. Eu bem o conheço... Pensa que por tu ganhares, já não precisa de sustentar a casa. Ele que coma o dinheiro, se quiser. Mas eu digo-lhe como é...

– Oh, mãe, não... – exclamou Paul.

– Não, o quê, posso saber? – disse ela.

– Não reaja assim... senão não consigo trabalhar.

Ela continuou, mas já um pouco mais calma.

– Pronto, está certo – disse ela. – Mas como é que pensas que me vou governar?

– Eu sei, mas não adianta nada piorar a situação.

– Gostava de saber o que é que farias se tivesses de aturar isto?

– Já não será por muito tempo... Vai ter o meu dinheiro não tarda, e ele que vá para o diabo.

Retomou o trabalho, e ela apertou as fitas do chapéu com desalento.

O filho não suportava vê-la assim, quando ela estava zangada. Todavia, começava agora a tentar dar-lhe isso a perceber.

– Os dois pães do tabuleiro de cima estão prontos dentro de vinte minutos – disse Mrs. Morel. – Não te esqueças.

– Está bem – respondeu ele, e Mrs. Morel saiu para o mercado.

Paul ficou sozinho a trabalhar. Mas a sua habitual concentração estava perturbada. Ouviu bater a cancela do pátio. Cerca das sete e um quarto, bateram ao de leve na porta e Miriam entrou.

– Estás sozinho? – perguntou.

– Estou.

Como se estivesse na sua própria casa, tirou a boina escocesa e o casaco comprido e pendurou-os. Ele sentiu uma tremura. Esta podia ser a casa deles, dele e dela.

Miriam aproximou-se e espreitou o que ele estava a fazer.

– O que é? – perguntou.

– Uma natureza morta... para decorar objectos e bordados.

Ela inclinou-se mais, aproximando os olhos míopes do desenho.

– E gostas do que fazes? – inquiriu.

– Adoro. Neste momento ando em maré de convencionalizar tudo.

– Ah...

Miriam não se interessava por estudos convencionais, mas reconhecia que ele devia saber mais do que ela sobre tais coisas. Eram coisas de homens, coisas que não lhe diziam respeito. No entanto, havia de descobrir a razão por que ele andava, como dizia, em maré de convencionalizar tudo. Que fascínio poderia ter para ele o convencional?

– O que é que te faz gostar disto? – perguntou ela, intrigada.

Ele, como já era seu hábito, procurou justificar-se. Lutando com as palavras, tentou explicar-lhe a teoria de que a força de gravitação é o agente mais poderoso, o factor responsável pela forma das coisas, e que, se pudesse agir em completa liberdade, apareceria uma rosa geometricamente correcta nas linhas e nas proporções... e assim por diante. Isto fez desabrochar nela um certo conceito de desenho convencional que até aí lhe parecia ser pura mentira. Por fim, ele empurrou os livros para o lado.

– Posso...? – disse ele, ansioso e hesitante.

– Podes o quê?

– Mostrar-te isto... Não era minha intenção enquanto não estivesse pronto.

Paul não conseguia esconder-lhe nada do que fazia. Foi à sala e voltou com uma trouxa de linho cru. Desembrulhou-a cautelosamente e estendeu-a no chão. Era um cortinado, ou melhor, um portière, magnificamente decorado com rosas, estampadas a stencil.

– Ah, que bonito! – exclamou ela.

O tecido espraiou-se aos pés dela, com as suas maravilhosas rosas em tons rubros e caules em verde-escuro, tudo muito simples, mas com um não sei quê de perverso. Ela ajoelhou-se, deixando pender soltos os caracóis. Ele, ao vê-la assim, voluptuosamente debruçada sobre a sua obra, sentiu bater mais depressa o coração. De repente, ela ergueu os olhos para ele.

– Porque é que isto parece tão cruel? – perguntou.

– O quê?

– Parece haver neste padrão uma certa crueldade – disse ela.

– Haja ou não haja, a mim parece-me óptimo – replicou ele, dobrando o trabalho com mãos de amante. Ela levantou-se devagar, pensativa.

– Que vais fazer com isto? – perguntou ela.

– Mandá-lo para os armazéns Liberty. Fi-lo para a minha mãe... mas acho que ela prefere o dinheiro.

– Estou a ver... – disse Miriam. Havia na voz dele um travo de amargura, e ela ficou com pena. A ela, o dinheiro jamais lhe interessaria.

Paul levou o tecido novamente para a sala, e, quando voltou, atirou a Miriam um retalho mais pequeno. Era a fronha de uma almofada, com um padrão idêntico.

– Fi-la para ti.

Miriam apalpou o trabalho com mãos trémulas, em silêncio. Paul ficou embaraçado.

– Meu Deus, o pão! – gritou ele.

Tirou os pães do tabuleiro superior e bateu-lhes vigorosamente. Já estavam cozidos. Pô-los ao lado da lareira, para arrefecerem. Em seguida, foi à copa, molhou as mãos, retirou do alguidar a massa, muito branca, que ainda restava, e colocou-a dentro de uma forma de pão. Miriam continuava debruçada sobre o tecido pintado. Enquanto isso, Paul esfregava as mãos, esforçando-se por tirar os bocadinhos de massa que se lhe tinham agarrado.

– Gostas? – perguntou ele.

Ela levantou para ele os seus olhos profundos, inflamados de amor. Ele riu-se, contrafeito. Depois começou a falar do seu desenho. Falar com Miriam sobre os trabalhos que fazia era para ele fonte do mais intenso prazer. Punha toda a sua paixão, toda a violência do seu sangue, nestas conversas com ela, em que discutia e concebia as suas obras. Ela fazia-lhe desabrochar a imaginação, embora não entendesse, como nenhuma mulher entende, quando concebe uma criança no seu ventre. Mas isto para ela, sim, era viver. E para ele também.

Enquanto conversavam, uma rapariga que andaria pelos vinte e dois anos, baixa e descorada, de olhos encovados, mas olhar determinado, entrou na sala. Era uma amiga dos Morels.

– Põe-te à vontade – disse Paul.

– Não... não me demoro.

Sentou-se no cadeirão de braços, em frente de Paul e de Miriam, que estavam no sofá. Miriam afastou-se um pouco mais de Paul. A casa estava quente e cheirava a pão acabado de fazer: os pães tostadinhos, a estalar, pousados ao lado da chaminé.

– Não esperava vir encontrar-te hoje aqui, Miriam Leivers – disse Beatrice, maldosa.

– Não sei porquê! – resmungou Miriam, asperamente.

– Porque... Ora deixa lá ver os teus sapatos.

Miriam, constrangida, não se mexeu.

– Se não sabes, não sabes, e pronto – disse Beatrice, dando uma gargalhada.

Miriam tirou os pés de baixo do vestido. As suas botas tinham aquele ar indeciso e patético que evidenciava bem o quanto ela era insegura e complexada. E estavam, além disso, cobertas de lama.

– Santa Maria!... És mêmo um monte de lama! – exclamou Beatrice. – Quem te limp’as botas?

– Limpo-as eu.

– Então não deves ter mai nada que fazer – disse a outra. – Havia de ser preciso muitos homens pra me fazerem vir ‘té’qui esta noite... Mas o amor zomba da lama... não é, ‘Póstolo, meu lindo?

– Inter alia – disse ele.

– Valha-me Deus, não me digas que te vais pôr agora a vomitar línguas estrangeiras!... O qu’é que isso quer dizer, Miriam?

– «Entre outras coisas», julgo eu – disse ela, humildemente. Beatrice riu-se maliciosamente, com a ponta da língua a despontar entre os dentes.

– «Entre outras coisas», ‘Póstolo? – repetiu ela. – Queres tu dizer qu’o amor se ri das mães e dos pais e das irmãs e dos irmãos e dos amigos e das amigas, e se calhar até do próprio ser amado?

Estava a fazer-se de ingénua.

– Na verdade, o amor é um sorriso rasgado – retorquiu ele.

– Isso é qu’era bom, ‘Póstolo Morel... Vai por mim... – disse ela.

E riu-se de novo, com malícia, muito baixinho.

Miriam continuava calada, fechada sobre si mesma. Todas as amigas de Paul adoravam meter-se com ela, e ele deixava-a entregue a si própria, como se aproveitasse para se vingar.

– Ainda continuas na mesma escola? – perguntou Miriam a Beatrice.

– Continuo.

– Então ainda não te mandaram embora?

– Devem mandar na Páscoa.

– Não achas uma pouca-vergonha... mandarem-te embora só por não teres passado no exame?!

– Não sei – ripostou Beatrice, friamente.

– A Agatha diz que és tão boa professora como as outras. A mim parece-me ridículo. Porque será que não passaste?

– Cabeça dura, hem, ‘Póstolo? – disse Beatrice, secamente.

– Só lhe serve para morder – retorquiu Paul, a rir.

– Monstro! – gritou ela, e, saltando do lugar, atirou-se a ele e deu-lhe um puxão de orelhas. As mãos dela eram pequeninas e elegantes. Ele prendeu-lhe os pulsos enquanto ela se debatia. Conseguiu por fim libertar-se e, apanhando dois punhados do cabelo dele, castanho e espesso, puxou com toda a força.

– Oh, Bea – disse ele, alisando o cabelo com os dedos. – Odeio-te.

Ela riu, consolada.

– Com licença! – disse ela. – Quero sentar-me ao pé de ti.

– Antes estar sentado ao lado duma fera – disse ele, deixando no entanto espaço para a outra se sentar entre ele e Miriam.

– Olha, ficou com o cabelinho todo despenteado! – exclamou Beatrice, penteando-o com o seu próprio pente.

– E o bigodinho também! – continuou ela. E, atirando a cabeça para trás, com um trejeito, penteou-lho.

– Tens um bigodinho todo malandro, ‘Póstolo – disse ela. – Vermelho, sinal de perigo... Ainda tens daqueles cigarros?

Paul tirou a cigarreira do bolso. Beatrice olhou.

– Já não tens nenhum daqueles charros qu’a Connie te deu? – perguntou.

– Ainda devo ter um por aí...

Procurou no bolso e encontrou uma caixinha. Beatrice pegou-lhe.

– É isso, só tens um! – disse ela. – Devia ser para a Miriam. Não queres o charro da Connie, Miriam?

– Não, obrigada – replicou Miriam. – Quem é a Connie?

– Ele não te contou? – exclamou Beatrice, surpresa. – Bem, ‘Póstolo Morel, acho que não é bonito deixar uma menina tão linda às escuras.

– Não queres mesmo fumar? – perguntou Paul a Miriam.

– Sabes bem que não – respondeu ela.

– Imaginem só, eu a fumar o último cigarro da Connie – disse Beatrice, metendo o cigarro entre os dentes. Paul estendeu-lhe um fósforo aceso e ela aspirou sofisticadamente.

– Obrigadíssima, querido – disse, trocista.

Dizer estas coisas dava-lhe um prazer perverso a que não conseguia resistir.

– Que jeitinho que ele tem, não achas, Miriam? – perguntou.

– Se tem! – disse Miriam.

Paul tirou um cigarro.

– Lume, menino? – disse Beatrice, chegando o seu cigarro ao dele.

Ele inclinou-se para a frente, para acender o cigarro no dela. Ela piscou-lhe o olho. Miriam viu os olhos dele a brilharem de malícia e os seus lábios carnudos, quase sensuais, a tremerem. Ele já não estava em si, e isso para ela era insuportável. Aquele que ali estava agora não tinha nada a ver com ela, era como se ela não existisse para ele. Via-lhe o cigarro a bailar nos lábios cheios, bem vermelhos, e odiava aquelas madeixas espessas que lhe caíam livres sobre a testa.

– Meu torrãozinho de açúcar! – disse Beatrice, levantando-lhe o queixo e dando-lhe um beijo na face.

– Agora é a minha vez, Beat – disse ele.

– Isso é que não! – disse ela, com uma risadinha, fugindo para longe. – Ele é mesmo descarado, não achas, Miriam?

– Do pior! – disse Miriam. – A propósito, não te esqueceste do pão?

– Meu Deus! – gritou Paul, abrindo a porta do forno, de onde saiu um fumo azulado e um cheiro a pão queimado.

– Céus! – gritou Beatrice, correndo para junto dele. Paul ajoelhou-se diante do forno e ela espreitou-lhe por cima do ombro. – Aí está o resultado de só pensares no amor, meu lindo.

Paul, contrito, tirava os pães do forno. Um deles estava todo preto por baixo e o outro duro que nem uma pedra.

– Pobre Mater! – disse Paul.

– Agora tens de o raspar – disse Beatrice. – Traz-me o ralador de noz-moscada.

Ela compôs os pães que ainda estavam no forno, ele trouxe-lhe o ralador e ela raspou a parte queimada em cima da mesa, para um jornal. Paul abriu as portas, para eliminar o cheiro a queimado, e Beatrice continuou a raspar o pão, fumando enquanto arrancava a crosta carbonizada da pobre carcaça.

– Ai, ai, Miriam, desta vez estás bem arranjada – disse Beatrice.

– Eu! – exclamou Miriam, espantada.

– É melhor saíres antes de a mãe dele chegar... Agora é que eu percebo porque é que o Rei Alfred queimou os bolos. Agora, sim. O ‘Póstolo inda podia dizer que se tinha esquecido por causa do trabalho, se achasse que isso ia pegar. Se a velha da lenda tivesse chegado um nadinha mais cedo, teria dado cabo das orelhas da desavergonhada que provocou o esquecimento, e não das do pobre Alfred...

E riu-se, enquanto raspava o pão. Até Miriam, não se contendo, se riu também. Paul, pesaroso, pôs mais carvão na fogueira.

Ouviu-se bater o portão do jardim.

– Depressa! – gritou Beatrice, estendendo a Paul a carcaça já raspada. – Embrulha-a numa toalha húmida.

Paul correu para a copa. Beatrice soprou apressadamente as raspadelas para a fogueira e foi sentar-se com ar inocente. Annie entrou de rompante. Era uma rapariga muito esperta e sem rodeios. A luz intensa fê-la piscar os olhos.

– Cheira-me a queimado! – exclamou.

– É dos cigarros – explicou Beatrice, muito séria.

– Onde está o Paul?

Leonard entrou logo a seguir a Annie. Tinha uma cara comprida e engraçada, e uns olhos azuis muito tristes.

– Acho que se retirou para vocês se entenderem as duas – disse ele.

Depois, cumprimentou Miriam com ar penalizado, e mostrou-se suavemente sarcástico com Beatrice.

– Nada disso – disse Beatrice. – Foi sair com a número nove.

– Olha, vi mesmo agora a número cinco, que andava à procura dele – acrescentou Leonard.

– Pois é... Nós vamos ter de o dividir como o menino de Salomão – disse Beatrice.

Annie deu uma gargalhada.

– Ah, sim? – disse Leonard. – E com que bocado queres tu ficar?

– Sei lá – disse Beatrice. – As outras que escolham primeiro.

– E tu depois ficas com os restos? – disse Leonard, fazendo uma careta.

Annie estava às voltas com o forno. Miriam estava abandonada no seu canto. Paul entrou.

– Este pão está lindo, menino Paul – disse Annie.

– Então devias ter ficado a tomar conta dele – disse Paul.

– Tu é que devias ter feito aquilo que te compete – repontou Annie.

– Devia, não devia? – exclamou Beatrice.

– Mas se calhar estava com as mãos muito ocupadas... – atalhou Leonard.

– Viste-te aflita para cá chegar, não foi, Miriam? – disse Annie.

– Se vi... Mas tinha estado metida em casa toda a semana...

– E apeteceu-te mudar, hem? – insinuou Leonard, melífluo.

– Bem, não se pode passar a vida inteira dentro de casa – disse Annie, conciliadora. Beatrice vestiu o casaco e saiu com Leonard e Annie. Ia encontrar-se com o seu rapaz.

– Não te distraias com o pão, menino Paul – gritou Annie. – Boa noite, Miriam, acho que não vai chover mais.

Depois de todos saírem, Paul foi buscar o pão queimado, desembrulhou-o e olhou para ele com desalento.

– Está uma porcaria! – disse.

– Mas qual é o problema? – disse Miriam, enfadada. – Afinal são só... dois dinheiros e meio.

– Está bem... mas trata-se do pão da minha mãe, de que ela tanto se orgulha... e ela não vai gostar nada... Mas agora já não adianta preocuparmo-nos.

Levou o pão outra vez para a copa. Instalara-se uma certa distância entre ele e Miriam. Por uns momentos, Paul hesitou diante dela, a meditar, pesando o seu comportamento com Beatrice. No fundo, sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo contente. Não sabia explicar porquê, mas achava que era bem feito para Miriam. Não era agora que se ia arrepender. Miriam pensava no que ele estaria a cogitar, ali hesitante diante dela. Madeixas de cabelo espesso caíam-lhe ainda sobre a testa. E se lho puxasse para trás, para apagar as marcas do pente de Beatrice? E se lhe apertasse o corpo entre as suas mãos? Parecia tão rijo e palpitante. Se ele deixava as outras fazerem-lhe isso, porque não ela?

De súbito, Paul voltou à vida, e Miriam quase tremeu de susto quando ele arredou os cabelos da testa e avançou para ela.

– Oito e meia! – disse ele. – É melhor irmos a isto. Onde está o teu caderno de francês?

Miriam, contrariada, mostrou-lhe timidamente o caderno de exercícios de francês. Todas as semanas lhe entregava uma espécie de diário da sua vida íntima, escrito por ela em francês. Paul descobrira que era a única maneira de a convencer a fazer composições. O diário era acima de tudo uma carta de amor. Agora, ele ia lê-lo e era como se a história da sua alma fosse ser profanada por ele, no estado em que se encontrava. Paul sentou-se ao lado dela. Ela atentou na mão dele, firme e quente, percorrendo minuciosamente o seu trabalho.

Ele lia apenas as palavras em francês, ignorando a alma que encerravam. Mas, gradualmente, a mão esqueceu a tarefa e ele continuou a ler em silêncio, e em total imobilidade. Ela estremeceu.

– «Ce matin les oiseaux m’ont éveillé» – leu ele. – «II faisait encore un crépuscule. Mais la petite fenêtre de ma chambre était blême, et puis, jaûne, et tous les oiseaux du bois éclatèrent dans un chanson vif et résonnant. Toute l’aûbe tressaillit. J’avais rêvé de vous. Est-ce que vous voyez aussi 1’aube? Les oiseaux m’éveillent presque tous les matins, et toujours il y a quelque chose de terreur dans le cri des grives. II est si clair...».2

Miriam estava sentada, a tremer, envergonhada. Ele mantinha-se imóvel, tentando compreender. Apenas percebia que ela o amava, mas tinha medo do seu amor. Era mais do que ele merecia, e ele não era digno dela. Era ele que não a amava o suficiente, e não o contrário. Envergonhado, corrigiu-lhe o trabalho, anotando os erros timidamente por cima das palavras.

– Repara – disse ele, sereno. – Quando o particípio passado é conjugado com avoir, concorda com o complemento directo sempre que este o precede.

Ela inclinou-se para a frente, para ver melhor e poder compreender. Os seus caracóis finos e soltos roçaram-lhe ao de leve na cara, e ele deu um salto como se um ferro em brasa lhe tivesse tocado. Ao vê-la debruçada sobre a página, com os lábios rubros dolorosamente entreabertos, o cabelo negro caindo em finas madeixas sobre as faces afogueadas, corada como uma romã, a respiração tornou-se-lhe ofegante. Então, ela olhou para ele: os seus olhos negros punham a nu todo o seu amor, medo e desejo. E os olhos dele, negros também, feriram os dela. Pareciam dominá-los. E ela, perdendo o domínio de si própria, ali estava exposta, amedrontada, à mercê dele. Paul sabia, porém, que antes de a poder beijar, tinha de arrancar alguma coisa de si mesmo. E, então, um sopro de ódio por ela penetrou-lhe outra vez no coração, fazendo-o retomar as suas correcções.

De súbito, ele atirou com o lápis pelo ar e precipitou-se para o forno, para virar o pão. Era brusco de mais para o gosto dela. Miriam estremeceu em violento sobressalto, e a dor que sentiu era real. Até a maneira como ele se punha de cócoras diante do forno a magoava. Pressentia alguma crueldade nos seus gestos, alguma crueldade na brusquidão com que tirava os pães das formas, atirando-os ao ar e apanhando-os na queda. Se ao menos ele fosse gentil nos movimentos, sentir-se-ia mais rica e confortada no seu íntimo. Mas, assim, era só dor o que sentia.

Paul voltou para junto dela e acabou o exercício.

– Desta vez saíste-te bem – disse ele.

Ela percebeu que ele se sentia lisonjeado com o diário, mas isso não era recompensa suficiente.

– Sim senhora, de vez em quando fazes um brilharete – disse ele. – Devias escrever poesia.

Ela ergueu a cabeça, transbordante de alegria, mas logo a abanou desalentada.

– Falta-me confiança – disse ela.

– Mas devias tentar!

Mas ela abanou a cabeça.

– Vamos ler um bocado, ou achas que já é muito tarde? – perguntou ele.

– Lá tarde, é... mas podíamos ler só um bocadinho – pediu ela.


CONTINUA

Partiriam no sábado seguinte de manhã, no comboio das sete horas. Paul sugeriu a Miriam que dormisse em casa dele, pois morava muito longe, e ela já jantou de véspera em casa dele. Estavam todos tão excitados que a vinda de Miriam até foi recebida com entusiasmo. Contudo, mal ela chegou, a família tornou-se menos expansiva e mais fechada. Paul tinha descoberto um poema de Jean Ingelow que falava em Mablethorpe, e, por isso, tinha de o mostrar a Miriam. Sem ela, o seu sentimentalismo nunca teria chegado ao ponto de ler poesia para a família ouvir. Mas agora concordavam em ouvi-lo. Miriam, sentada no sofá, escutava-o enlevada. Quando ele estava presente, ela parecia sempre presa a ele e das palavras dele. Mrs. Morel, com ciúmes, sentou-se na sua cadeirinha de baloiço para o escutar. Annie e o pai escutavam-no também; Morel tinha a cabeça mais levantada de um lado, como alguém que escuta um sermão e está consciente do mesmo. Paul espreitou por cima do livro. Tinha agora a presença de quem mais gostava. E Mrs. Morel e Annie quase competiam com Miriam, sobre qual seria a ouvinte mais atenta, a preferida dele. Paul sentia-se nos píncaros.

– Mas – interrompeu Mrs. Morel – não percebo porque é que os sinos têm que tocar A Noiva de Enderbyt...?

– É uma velha melodia que os sinos costumavam tocar como aviso contra a cheia. Penso que a tal Noiva de Enderby morreu afogada numa enchente – respondeu ele. Não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer na realidade, mas nunca se teria rebaixado ao ponto de o confessar perante o seu público feminino. Elas escutavam-no e acreditavam. Ele próprio acreditava nas coisas que dizia.

– E as pessoas sabiam o significado dessa melodia? – quis saber a mãe.

– Sim... tal e qual os escoceses quando escutam As Flores da Floresta... e quando costumavam tocar os sinos em sinal de alarme em sentido contrário.

– Ah! – exclamou Annie. – Quer dizer que os sons de um sino são sempre os mesmos quando são tocados no seu sentido correcto, ou ao contrário.

– Mas – disse ele – se começares num tom grave e subires até ao agudo... lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá! – disse ele, percorrendo a escala completa, e todos o acharam muito inteligente. Ele também. Depois, aguardando um minuto, continuou a ler o poema.

– Hum! – disse Mrs. Morel, apreciativamente, quando ele terminou. – Só espero que tudo o que se tem escrito não seja assim tão triste.

– Num consig’intender porqu’é qu’houve tantos afogamentos – disse Morel. Houve uma pausa. Annie preparou-se para levantar a mesa.

– Acho Elizabeth um belo nome – disse Miriam, em voz baixa. – «A minha nora Elizabeth...»

– Concordo – disse Paul.

– Também acho – disse a mãe. – Mas não gosto de Lizzie e abomino Liza.

Nem Paul nem Miriam achavam que Lizzie ou Liza tivessem algo a ver com o assunto.

– Ah, mas «Elizabeth»! – murmurou Miriam.

– E ainda por cima, a Rainha Elizabeth adorava que a tratassem por «Grande Eliza» – disse Paul.

– E amanhã há mais! – disse Morel, não se contendo.

Mrs. Morel e Paul deram uma gargalhada.

– Aposto que nem sapatos tinha – disse Morel, continuando com a brincadeira.

– Não seja tão insolente com uma rainha – disse Annie.

– Rainhas! – exclamou Morel. – Num pensas noutra coisa senão nas rainhas? Num fazes mai nada senão viver à grande e à francesa!

Miriam levantou-se para ajudar a lavar a loiça.

– Deixa-me ser eu a lavar a loiça – disse ela.

– Não é necessário – exclamou Annie. – Vai-te sentar. É pouca loiça.

E Miriam, que não se sentia à vontade para insistir, sentou-se a ver o livro com Paul.

Paul era o chefe do grupo... para isso, o pai não prestava. E muito ele sofreu para que o baú de latão fosse descarregado em Firsby e não em Mablethorpe. E não foi também capaz de encontrar uma carruagem com lugares. Só a genica de Mrs. Morel o conseguiu.

– Aqui! – gritou ela para um homem. – Aqui!

Paul e Annie ficaram para trás envergonhadíssimos, mas perdidos de riso.

– Quanto é a viagem até Brook Cottage? – perguntou Mrs. Morel.

– Dois xelins.

– É assim tão longe?

– Ainda é um bom bocado.

– Não acredito – disse ela.

Contudo subiu para a carruagem. Iam os oito apertados numa velha carruagem da linha costeira.

– Bem vêem – disse Mrs. Morel –, são apenas três dinheiros por pessoa, mas se fosse um eléctrico...

A viagem prosseguiu. Sempre que passavam por uma casa típica, Mrs. Morel exclamava:

– É esta?... Não, agora é que é!

Estava toda a gente morta de ansiedade. A viagem prosseguiu. Houve um suspiro em uníssono.

– Estou agradecida por não ser aquela coisa horrorosa – disse Mrs. Morel. – Estava assustada.

Passou-se ainda mais algum tempo.

– Aquela mulher repelente disse que a casa ficava a dez minutos do mar...! – exclamou Mrs. Morel.

– Pra ela uma hora deve ser um minuto – reclamou Morel.

Todos o mandaram calar.

– Será que nunca mais chegamos? – exclamou Mrs. Morel, muito alto.

– Não grite assim, mãe – disse Annie. – O que é que ele irá pensar?

Mrs. Morel olhou de um modo esquisito para o condutor, e disse:

– Não sei! Mas, pelo aspecto, penso que não pensará nada de especial.

Finalmente, desceram perto de uma casa isolada, sobre o canal que passava na estrada principal. Houve grande alvoroço quando descobriram que tinham de atravessar uma pequena ponte para chegarem ao jardim da casa. Adoraram a casa, que ficava isolada, com o mar de um lado e, do outro, uma imensa extensão de terra plana que se estendia até ao céu, e onde se distinguia o branco da cevada, o amarelo da aveia, o vermelho do trigo e o verde dos nabos.

Paul registava as despesas e ele e a mãe governavam a casa. As despesas globais, incluindo o alojamento e a alimentação ascendiam a dezasseis xelins por pessoa e por semana. De manhã, Paul e Leonard iam tomar banho ao mar. Morel saía bastante cedo para ir dar um passeio.

– Paul – chamou a mãe do quarto. – Come uma fatia de pão com manteiga.

– Está bem – respondeu ele.

Quando regressou, a mãe estava sentada à cabeceira da mesa. A dona da casa era jovem. O marido era cego e ela cuidava da roupa. Assim, Mrs. Morel lavava a loiça na cozinha e fazia as camas.

– Mas a mãe prometeu que ia fazer umas férias a sério – disse Paul – e agora está a trabalhar.

– Trabalho? – exclamou ela. – De que é que estás a falar?

Paul adorava ir passear com ela pelos campos, até à aldeia ou até ao mar. Ela tinha medo de atravessar pontes de madeira e ele acusava-a de se portar como um bebé. Era apegado à mãe como se fosse o seu marido.

Miriam raramente andava com ele – excepto, talvez, quando iam todos ouvir os Coons. Os Coons eram insuportavelmente estúpidos para Miriam e, por isso, eram-no também para Paul, que pregava sermões presunçosos a Annie sobre a perda de tempo que era irem ouvi-los. Todavia, também ele sabia todas as suas canções de cor e as cantava desbragadamente pelas ruas. E, quando reparava que os estava a ouvir, a estupidez da situação agradava-lhe imenso. Contudo dizia para Annie:

– Que porcaria!... Não há um pingo de inteligência naquilo que cantam. Ninguém que tenha mais miolos que um gafanhoto consegue aguentá-los. – E dizia a Miriam, com algum desdém, onde estavam Annie e os outros:

– Suponho que foram aos Coons.

Era ridículo ouvir Miriam trautear as canções dos Coons. Tinha um queixo talhado a direito que descia na perpendicular desde o lábio inferior até à curvatura do maxilar. Quando ela cantava, Paul achava-a parecida com um anjo triste de Botticelli, mesmo quando entoava:


«Vem pela Estrada do Amor

Vem comigo passear, falar comigo...»


Miriam só tinha Paul todo para ela quando ele desenhava, ou à noite, quando todos os outros estavam a ouvir os Coons. Ele falava-lhe então interminavelmente do seu gosto pelos planos horizontais: como é que os grandes níveis do céu e da terra significavam para ele a eternidade da vontade, tal como os arcos normandos, arredondados e em série, significavam um salto em frente da alma humana voluntariosa, não se sabe para onde; pelo contrário, as linhas perpendiculares e o arco gótico apontavam para o céu e afloravam o êxtase, perdendo-se no divino. Ele era normando, Miriam era gótica. Submissa, ela concordava com tudo o que ele dizia.

Certa tarde, ele e ela foram passear pelo extenso areal que conduzia a Theddlethorpe. As alongadas vagas quebravam-se e elevavam-se em silvos agudos de espuma ao longo da costa. A tarde estava quente e eles completamente sozinhos na imensidão da areia, a sós com o barulho do mar. Paul adorava ouvir o mar a ressoar na areia. Adorava sentir-se entre o som do mar e o silêncio do areal. Miriam estava com ele. Tudo se tornava mais intenso. Já tinha anoitecido quando regressaram. O regresso a casa fazia-se através de uma passagem nas dunas, e depois através de uma estrada pejada de ervas, rasgada entre dois diques. A aldeia estava cinzenta e calma. Por detrás das dunas soava o murmúrio do mar. Paul e Miriam caminhavam em silêncio. De repente, ele estacou. O seu sangue parecia ter-se incendiado e ele mal podia respirar. Uma enorme lua alaranjada observava-os do alto das dunas. Ele continuava parado, olhando a lua.

– Oh! – exclamou Miriam, quando a viu também.

Ele estava ali, petrificado, olhando a lua dilatada e rubra, sozinha na escuridão imensa. O seu coração batia forte e tinha os músculos dos braços contraídos.

– O que foi? – murmurou ela, esperando por ele.

Ele voltou-se e fitou-a. Ela estava ao seu lado, para sempre na escuridão. A sua face, encoberta pela sombra do chapéu, olhava-o sem que ele a visse. E ela meditava. Estava um pouco receosa... profundamente emocionada e imbuída de religiosidade. Este era o seu melhor estado de alma. Ele sentia-se impotente face a esta situação. O sangue parecia concentrar-se como uma fogueira no seu peito, mas ele não lhe conseguia transmitir o sentimento. Pareciam disparar relâmpagos do seu sangue, mas, de algum modo, ela ignorava-os. Ela esperava vê-lo atingir um estado de graça. Ainda à espera, mas meio consciente da paixão que o possuía, Miriam fitou-o, preocupada.

– O que se passa? – murmurou novamente.

– É a Lua – respondeu ele, franzindo a testa.

– Sim – concordou ela. – É maravilhosa, não é? – Ela estava intrigada. A crise tinha passado.

Ele próprio não sabia o que lhe tinha acontecido. Era ainda tão jovem e a sua intimidade tão abstracta que não se apercebeu de que desejava esmagá-la contra o peito para aliviar a dor que o trespassava. Tinha medo dela. Talvez o facto de a desejar como um homem deseja uma mulher tivesse permanecido oculto dentro dele como uma humilhação. Quando ela fugia desses pensamentos, torturando-se em extrema agitação, ele recolhia-se até ao mais recôndito da alma. E, neste momento, esta «pureza» inibia o seu primeiro beijo de amor. Era como se ela mal pudesse suportar o choque do amor físico, ou apenas um beijo apaixonado, deixando-o demasiado reprimido e sensibilizado para lho dar.

Enquanto caminhavam ao longo da negra lagoa, Paul contemplava a Lua e mantinha-se em silêncio. Miriam caminhava a seu lado devagar. Ele sentia que a odiava, pois ela parecia, de certa forma, levá-lo a autodesprezar-se. Olhando em frente, descortinou uma luz na escuridão; era a janela iluminada da sua casa.

Adorava pensar na mãe e no resto das pessoas, todos alegres.

– Bem, já todos chegaram há bastante tempo – disse a mãe quando eles entraram.

– E o que é que isso importa? – exclamou ele, irritado. Posso ir passear quando me apetecer, não posso?

– Pensei que quisesses jantar com o resto do grupo – disse Mrs. Morel.

– Tenho de agradar a mim próprio – retorquiu ele. – Não é tarde e faço o que me apetece.

– Muito bem – disse a sua mãe, sarcasticamente. – Então faz o que te apetecer!

E nessa noite não falou mais com ele. Paul fingiu não notar nem estar preocupado com o assunto, e sentou-se a ler. Miriam lia também, tentando alienar-se. Mrs. Morel detestava-a por ela pôr o filho naquele estado. Via o filho irritadiço, presumido e melancólico, e culpava Miriam.

Annie e os amigos também se voltavam contra Miriam. O único amigo de Miriam era Paul. Mas ela não se importava, pois desprezava a trivialidade de todas essas pessoas.

E Paul detestava-a, pois ela perturbava, por assim dizer, o seu bem-estar e a sua naturalidade, torturando-o com sentimentos de humilhação.

1 «Os últimos representantes de uma raça extinta.» (N. da T.)


VIII

ZANGAS DE AMOR

ARTHUR terminou o estágio e arranjou emprego na central eléctrica da mina de Minton. Ganhava muito pouco, mas tinha possibilidades de progredir. Era, porém, rebelde e impaciente. Não bebia nem tinha o vício do jogo, mas envolvia-se constantemente em rixas devido às suas reacções intempestivas. Ia caçar coelhos para a floresta, qual caçador furtivo, e passava a noite em Nottingham em vez de voltar para casa, ou então ia nadar para o canal de Bestwood e falhava os cálculos do mergulho, ficando com o peito ferido, das rochas naturais e das latas que andavam a boiar à tona.

Tinha faltado ao emprego meses a fio, e uma noite não voltou para casa.

– Sabe por onde anda o Arthur? – perguntou Paul ao pequeno-almoço.

– Não – respondeu a mãe.

– É mesmo maluco – disse Paul. – Eu já nem ligaria, se ele ao menos fizesse mesmo alguma coisa. Mas não... não consegue resistir a um jogo de cartas, ou então vai levar alguma rapariga a casa depois da patinagem, com todo o decoro... e acaba por não voltar para casa. É maluco.

– Não vejo porque seria melhor se ele fizesse mesmo alguma coisa que nos envergonhasse – disse Mrs. Morel.

– Bem... eu, pelo meu lado, passaria a respeitá-lo mais – disse Paul.

– Duvido muito – respondeu a mãe secamente.

Continuaram a tomar o pequeno-almoço.

– A mãe gosta desvairadamente dele, não gosta? – perguntou Paul.

– Porque fazes essa pergunta?

– Dizem que as mães gostam sempre mais do filho mais novo.

– Talvez... mas eu não. Não... ele irrita-me.

– E gostava que ele se portasse melhor?

– Gostava que ele mostrasse algum bom senso masculino.

Paul estava ferido e irritado. Também ele irritava a mãe frequentemente. E ela ficava triste, pois via os melhores anos a fugirem-lhe.

Estavam a acabar o pequeno-almoço, quando o carteiro lhes entregou uma carta vinda de Derby. Mrs. Morel esforçou-se para ler o endereço.

– Dê cá isso, sua pitosga! – exclamou o filho, tirando-lhe a carta da mão. Ela assustou-se e quase lhe dava uma bofetada.

– É do seu filho Arthur – informou ele.

– Mas o que vem a ser isto? – exclamou Mrs. Morel.

– «Querida mãe» – leu Paul. – «Não sei o que me deu. Quero que me venha buscar. Ontem, em vez de ir trabalhar, vim alistar-me no exército com o Jack Brendon. Ele disse que estava farto de passar a vida sentado num escritório, e eu, idiota, como já sabe que sou, resolvi vir com ele.

«Já recebi o dinheiro referente ao recrutamento, mas se me vier buscar, talvez eles me deixem ir consigo. Foi uma loucura ter feito o que fiz. Não quero ficar no exército. Querida mãe, sei que não passo de um estorvo para si, mas, se me tirar desta situação, prometo que serei mais consciente e ponderado...»

Mrs. Morel sentou-se na cadeira de baloiço.

– Vejam só! – exclamou. – Ele que assente por uns tempos!

– Também acho – disse Paul. – Ele que assente!

Fez-se silêncio. A mãe estava sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, o rosto imóvel, pensativa.

– Devo estar doente – exclamou de repente. – Doente!

– Então! – disse Paul, franzindo a testa – Não quero que se preocupe com isto, está a ouvir?

– Então queres que encare isto como uma bênção? – disse ela, de repente, virando-se para o filho.

– Agora não vai tornar isto numa tragédia, pois não? – retorquiu ele.

– Ele é maluco!... Maluquinho de todo! – gritou Mrs. Morel.

– Vai ficar todo bonito com a farda – disse Paul, para espicaçar a mãe.

Ela virou-se a ele, furiosa.

– Ah, vai? – gritou ela. – Mas não para mim!

– Devia ir para um regimento de cavalaria... Ele divertia-se à grande e nós passávamos a ser chiques.

– Chiques!... Chiques!... Muito chique, não haja dúvida!... Um soldado raso!

– Ora – disse Paul. – E o que sou eu, senão um reles escriturário?

– O que é muito mais, meu filho! – gritou a mãe, picada.

– Essa agora!

– De qualquer forma, és um homem e não uma coisa enfiada num casaco vermelho.

– Não me importava de andar enfiado num casaco vermelho... ou azul-escuro, que me ficaria melhor... se eles não me dessem muitas ordens.

Mas a mãe já não o ouvia.

– Agora que ele estava a progredir, ou poderia vir a progredir no emprego... um aborrecimento passageiro e aí vai ele... dar cabo da vida toda. Que vantagens é que tu pensas que isto lhe pode trazer?

– Vai pô-lo todo afinado! – disse Paul.

– Todo afinado!... E o que tem ele para afinar? Um soldado!... Um soldado raso!!... Nada mais do que um corpo que se mexe quando lhe dão ordens! Grande coisa!

– Não percebo porque é que isso a aborrece tanto – disse Paul.

– Não, talvez não percebas. Mas percebo eu. – E recostou-se na cadeira, de queixo apoiado numa das mãos e segurando o cotovelo com a outra, a transbordar de raiva e desilusão.

– Está a pensar ir a Derby? – perguntou Paul.

– Estou, pois.

– Não faça isso.

– Quero ver com os meus próprios olhos.

– Mas por que diabo é que não o deixa assentar? É isso mesmo que ele quer.

– Claro – exclamou a mãe. – Tu sabes muito bem o que ele quer...

Preparou-se e apanhou o primeiro comboio para Derby, onde se encontrou com o filho e com o sargento. Todavia, os seus esforços foram infrutíferos.

Morel estava a almoçar, quando ela disse de repente:

– Tenho de ir hoje a Derby.

O mineiro levantou os olhos, muito brancos numa face toda enfarruscada.

– Ah, vais, cachopa? E o que te leva lá?

– O menino Arthur!

– Qu’aprontou ele desta vez?

– Alistou-se no exército, só isso.

Morel pousou a faca e recostou-se na cadeira.

– Não – disse ele. – Num pode ser!

– E amanhã vai para Aldershot.

– Bom – exclamou o mineiro –, iss’é qu’é já uma grand’alhada.

Morel reflectiu por um momento, disse «Hum!» e continuou a jantar. Subitamente, a face contraiu-se-lhe de raiva.

– Espero qu’ele nunca mais volte a pôr as patas nesta casa – disse ele.

– Credo! – exclamou Mrs. Morel. – Isso é lá coisa que se diga!

– É o qu’eu penso – repetiu Morel. – O doidivanas pisga-se pa ser soldado... Atão é porque já tá na hora de fazer pela vida... Comigo na conta mais.

– Falar é fácil... – disse Mrs. Morel.

Nessa noite, Morel quase sentiu vergonha de ir para a taberna.

– Então, sempre lá foi? – perguntou Paul à mãe quando chegou a casa.

– Fui.

– E viu-o?

– Vi.

– E o que disse ele?

– Ficou lavado em lágrimas quando me vim embora.

– Hum!

– E eu fiz o mesmo, portanto não precisas de fazer «Hum!».

Mrs. Morel preocupava-se com o filho, pois sabia que ele não ia gostar de estar no exército. Como de facto não gostou. A disciplina era uma coisa que ele não conseguia tolerar.

– Mas o doutor disse que ele era bem proporcionado... quase na proporção exacta, e as suas medidas eram perfeitas – disse Mrs. Morel a Paul, cheia de orgulho. – Como tu sabes, ele é bem-parecido.

– Ele é muito bem-parecido. Mas não arranja raparigas como o William, pois não?

– Não... Tem uma personalidade diferente. Sai muito ao pai: é um irresponsável.

Para consolar a mãe, Paul passou nessa altura a ir muito menos a Willey Farm. No Outono, quando se realizou no castelo a habitual exposição dos trabalhos dos alunos da escola de belas-artes, ele apresentou dois trabalhos: uma paisagem a aguarela e uma natureza morta a óleo, que obtiveram dois primeiros prémios, o que o deixou deveras emocionado.

– Mãe, que lhe parece, acha que ganhei algum prémio com as minhas pinturas? – perguntou uma noite, ao chegar a casa. Pelos seus olhos, a mãe viu que ele estava feliz, e a sua face resplandeceu.

– Como queres que eu saiba, meu filho?!

– Um primeiro prémio por aquelas jarras de vidro...

– Ena!

– E outro primeiro prémio por aquele esboço que fiz em Willey Farm.

– Um primeiro prémio para cada coisa?

– Sim, senhora.

– Hum!

Mrs. Morel parecia envolvida numa aura brilhante, cor-de-rosa, mas não disse nada.

– É bem bom, não é, mãe? – disse ele.

– É, sim.

– Oh, mãe, porque não me põe nos píncaros?

Ela riu-se.

– É que depois tinha de ter o trabalho de te puxar cá para baixo outra vez.

No entanto, toda ela vibrava de alegria. William tinha-lhe trazido sempre os seus troféus desportivos. Ela ainda os guardava, e não perdoava a morte dele. Arthur era bonito e era pelo menos um belo exemplar masculino, terno e generoso, e provavelmente o futuro acabaria por lhe sorrir. Mas Paul iria destacar-se. Ela tinha uma grande fé no filho, e mais ainda por ele não ter consciência das suas capacidades. Ele tinha tanto para dar, e a vida parecia ter muito para lhe dar também. Ela iria sentir-se realizada através do filho. A sua luta não tinha sido em vão.

Durante o período da exposição, Mrs. Morel foi várias vezes ao castelo, sem que Paul a visse. Vagueava pelo longo salão, apreciando as restantes pinturas. Sim, eram muito boas. Mas faltava-lhes qualquer coisa para que a sua satisfação fosse completa. Observava-as longamente, tentando encontrar nelas alguma falha. De repente, algo lhe fazia disparar o coração. Aquela era a pintura de Paul. Conhecia-a como se a tivesse gravada no coração.

«Nome: Paul Morel. Primeiro Prémio.»

Parecia tão estranha, ali exposta ao público, nas paredes da galeria do castelo, onde já tinha visitado tantas exposições de pintura durante toda a sua vida. E, depois, olhou em volta, tentando descobrir se alguém a tinha tornado a ver em frente ao mesmo quadro.

Não cabia em si de orgulho, e quando se cruzava com senhoras bem vestidas, pensava para consigo:

«Pois sim, vocês estão muito bem vestidas... mas duvido que os vossos filhos consigam arrebatar dois primeiros prémios na exposição no castelo.»

E seguia o seu caminho, sentindo-se mais orgulhosa do que qualquer outra mãe de Nottingham. E Paul sentia que tinha feito algo por ela, mesmo não passando de uma insignificância. Todo o seu trabalho pertencia à sua mãe.

Um dia, encontrou Miriam quando se dirigia para o castelo. Tinha-a visto no domingo e não esperava encontrá-la na cidade. Vinha com ela uma mulher loura, espampanante, de expressão carregada e porte provocador. Era estranho como Miriam, tão meditativa e reverente, parecia insignificante ao lado desta mulher de ombros deslumbrantes. Miriam fitou Paul demoradamente. O olhar dele estava pregado na desconhecida, que o ignorava. Miriam via claramente o seu instinto masculino a erguer-se altaneiro.

– Olá – disse ele. – Não me disseste que vinhas à cidade.

– Pois não – retorquiu Miriam, em ar de desculpa. Fui à Feira do Gado com o meu pai.

Paul olhou para a companheira de Miriam.

– Já te tinha falado de Mrs. Dawes – disse Miriam, com a voz estrangulada. Estava nervosa. – Clara, já conheces o Paul?

– Penso que já o vi antes – respondeu Mrs. Dawes, indiferente, enquanto o cumprimentava. Tinha uns olhos cinzento-esverdeados, displicentes, a pele era mel claro, e a boca carnuda, com o lábio superior levemente levantado, não se percebendo se de desprezo por todos os homens ou desejo de ser beijada, sendo a primeira hipótese a mais provável. Tinha a cabeça inclinada para trás, como se ela se afastasse por desdém, talvez também dos homens. Usava um chapéu enorme e deselegante, de pele escura de castor, e um vestido simples levemente afectado, que lhe conferia as linhas de um saco. Obviamente era pobre e tinha falta de gosto. Miriam andava sempre bonita.

– Onde é que me viste? – perguntou Paul à outra mulher.

Ela olhou-o como se não tivesse qualquer dúvida em responder.

E depois:

– Vi-te a passear com a Louie Travers – respondeu ela.

Louie era uma das raparigas da secção Espiral da fábrica de Mr. Jordan.

– E como é que tu a conheces? – perguntou ele.

Ela não respondeu. Paul virou-se então para Miriam.

– Para onde vais agora? – perguntou.

– Para o castelo.

– A que horas é o comboio de regresso?

– Vou regressar com o meu pai. Gostava que também viesses connosco. A que horas estás livre?

– Já sabes que nunca antes das oito, que diabo!

E as duas mulheres seguiram o seu caminho.

Paul lembrou-se de que Clara Dawes era filha de um velho amigo de Mrs. Leivers. Miriam tinha-a procurado, pois ela tinha sido em tempos supervisora da secção Espiral da Jordan, e porque o marido, um tal Baxter Dawes que era ferreiro, trabalhava para a fábrica, fazendo entre outras coisas os ferros para as próteses ortopédicas. Miriam pensou que através dela pudesse contactar directamente com a fábrica, podendo assim assegurar o emprego de Paul. Mas Mrs. Dawes estava separada do marido, e agora dedicava-se à defesa dos direitos das mulheres. Era supostamente inteligente, e isso interessava a Paul.

Paul conhecia Baxter Dawes e detestava-o. O ferreiro tinha cerca de trinta e um ou trinta e dois anos. Paul encontrava-o de vez em quando: era um homem alto e bem constituído, bem-parecido, para quem dava gosto olhar. Havia uma curiosa semelhança entre ele e a mulher. Ele tinha a mesma pele clara, de tom de dourado. O seu cabelo era castanho-claro e o bigode dourado. E exalava um desprezo semelhante, pelo porte e pela conduta. Nisto surgiu a diferença. Os seus olhos castanhos, muito escuros e astuciosos, eram imorais. Eram levemente salientes e as pálpebras sobrepunham-se de uma forma tal que lhe suscitava o ódio. A boca era também sensual. A postura evidenciava um desprezo cobarde, como se estivesse preparado para derrubar o primeiro que o censurasse... talvez porque ele próprio se censurava.

O homem odiou Paul desde o primeiro dia que o viu. Ao captar o olhar deliberado e impessoal de um artista no rosto do rapaz, enfureceu-se.

– Pa’onde é que tás’olhar? – disse ele desdenhosamente, amedrontando-o.

O rapaz desviou o olhar. O ferreiro costumava encostar-se ao balcão a conversar com Mr. Pappleworth, e a sua conversa era sempre porca e depravada. Quando sentiu novamente os olhos frios e críticos do jovem pousados nele, o ferreiro virou-se, como se tivesse sido mordido por algum bicho.

– Pa’onde é que tás’olhar, ó parvalhão? – rosnou ele.

O rapaz encolheu os ombros.

– Olha que tu...! – berrou Dawes.

– Deixa-o em paz – disse Mr. Pappleworth, naquela sua voz insinuante que parecia dizer «ele é um pobre diabo, mas não faz por mal».

Desde essa altura, Paul passou a olhar para o homem, sempre que o encontrava, com o mesmo olhar crítico e curioso, desviando o olhar antes de encontrar os olhos do ferreiro, o que deixava Dawes fora de si. E, assim, odiavam-se em silêncio.

Clara Dawes não tinha filhos. Quando deixou o marido, desfizeram a casa e ela foi viver com a mãe, enquanto Dawes passou a viver em casa da irmã. Na mesma casa vivia também uma cunhada, e Paul veio a descobrir que a tal rapariga, a Louie Travers, era agora a amante de Dawes. Era uma atrevida bonitona e insolente, que escarnecia do rapaz, mas que se empolgava toda se ele a acompanhava à estação.

A vez seguinte em que Paul foi visitar Miriam era um sábado à tarde. Ela tinha a lareira acesa na sala de visitas e estava à espera dele. Os outros tinham saído, com excepção dos pais e dos irmãos mais novos, pelo que tinham a sala de visitas só para eles. A sala era comprida, de tectos baixos e aconchegada. Na parede havia três pequenos quadros de Paul e o seu retrato estava pousado ao canto da lareira. Em cima da mesa e em cima do piano de pau-rosa, estavam jarras com folhas coloridas. Ele sentou-se na poltrona e ela ajoelhou-se no tapete aos seus pés. A luz da fogueira reflectia-se na sua cara bonita e pensativa.

– O que achaste de Mrs. Dawes? – perguntou Miriam, num tom calmo.

– Não me pareceu muito amistosa – respondeu ele.

– Lá isso não, mas não a achas elegante?

– Sim... no que diz respeito à sua altura. Mas não tem um pingo de bom gosto. Gosto de algumas coisas nela. Ela é sempre assim antipática?

– Penso que não. Penso que não anda satisfeita.

– Com o quê?

– Bem, como é que te sentirias a viver com um homem daqueles?

– Então, porque é que ela casou com ele, sabendo que o ia detestar tão rapidamente?

– Sim, porque é que ela casou com ele? – repetiu Miriam, com aspereza.

– E eu que pensei que ela fosse suficientemente forte para medir forças com ele – disse Paul.

Miriam baixou a cabeça.

– Ah, sim? – perguntou, satiricamente. E o que é que te leva a pensar isso?

– Basta olhar para a boca dela... nascida para a paixão... e a maneira como estica a garganta.

E atirou a cabeça para trás imitando o jeito provocador de Clara.

Miriam baixou ainda mais a cabeça.

– Sim – disse ela.

Fez-se silêncio durante alguns momentos, e Paul pensava em Clara.

– E o que é que te agradou nela? – continuou Miriam.

– Não sei... a pele e a textura da... da... não sei... emana dela uma certa violência... Aprecio-a apenas como artista.

– Pois.

Paul não entendia por que razão Miriam estava ali sentada no chão, meditando de uma forma tão estranha, e isso irritava-o.

– Não gostas mesmo dela, pois não? – perguntou ele à rapariga.

Ela olhou-o com os seus enormes olhos escuros, encantadores.

– Gosto – respondeu.

– Não gostas, não... não podes gostar... muito.

– E pode saber-se porquê? – perguntou ela calmamente.

– Oh, não sei... Talvez gostes dela porque ela odeia os homens.

Esta era provavelmente uma das razões pelas quais ele gostava de Mrs. Dawes, mas isso não lhe tinha ocorrido. Calaram-se. Ele franziu a testa, algo que já se estava a tornar habitual, particularmente quando estava com Miriam. Ela ansiava fazer-lhe desaparecer as rugas da testa, mas tinha medo. Parecia haver um outro homem dentro de Paul Morel, mas que não era o seu.

Algumas bagas vermelhas sobressaíam entre as folhas do vaso. Ele esticou-se e arrancou um raminho.

– Porque será que, se colocares bagas vermelhas no cabelo – disse ele – pareces uma bruxa ou uma sacerdotisa, mas nunca uma libertina.

Ela rasgou um sorriso doloroso, despojado.

– Não sei – disse.

As suas mãos fortes e quentes brincavam alegremente com as bagas.

– Porque não te ris? – disse ele. – Nunca sorris abertamente. Apenas te ris quando algo é estranho ou incongruente, e até isso parece magoar-te.

Miriam baixou a cabeça como se ele a estivesse a admoestar.

– Gostaria muito que sorrisses apenas um minuto para mim... apenas por um minuto. Sinto que isso libertaria alguma coisa dentro de ti.

– Mas... – e olhou-o com uns olhos assustados e lutadores. – ... Mas eu rio-me... sim, eu rio-me.

– Mentira, nunca te ris. Só se for por algo de muito intenso. Sempre que te ris, apetece-me chorar; parece que o teu riso transmite sofrimento. Oh, só de pensar nisso, fazes com que eu enrugue a minha alma.

– Não é minha intenção fazê-lo – disse.

– Eu sou sempre tão espiritual contigo – exclamou ele.

Ela manteve-se em silêncio, a pensar: «Então porque não és de outra forma?» E ele olhou para o seu corpo dobrado, em meditação, e pareceu dividi-lo em dois.

– Estamos no Outono – disse ele – e todas as pessoas libertam o seu espírito.

Caiu novamente o silêncio. Este estranho desentendimento entre eles despedaçava a alma de Miriam. Ele parecia tão bonito, com os seus olhos escuros e um olhar tão profundo como a nascente mais funda.

– Tornas-me tão espiritual – lamentou-se ele. – E eu não quero ser espiritual.

Ela retirou o dedo da boca com um pequeno estalido, e olhou-o em tom provocador. Mas a sua alma continuava nua nos seus olhos grandes e castanhos e o mesmo desejo ardente dominava-a. Se isso fosse possível, ele tê-la-ia beijado na pureza da abstracção. Mas ele não a podia beijar assim... e ela não parecia dar-lhe qualquer outra alternativa. E, no entanto, desejava-o.

Paul sorriu.

– Bem – disse ele –, vamos lá estudar francês... vamos ler Verlaine.

– Sim – disse ela num tom profundo, quase de resignação. Levantou-se e foi buscar os livros. As suas mãos avermelhadas e nervosas metiam dó; como ele desejava confortá-la e beijá-la!! Mas não se atrevia... ou não podia. Algo o impedia. Os seus beijos eram para ela reprováveis. Continuaram a ler até às dez horas, e depois foram para a cozinha; Paul mostrava-se de novo alegre e natural para com os pais de Miriam. Os seus olhos eram escuros e brilhantes e envolvia-o uma aura de fascinação.

Quando foi buscar a bicicleta ao celeiro descobriu que o pneu dianteiro estava furado.

– Vai-me buscar uma tigela com uma pinguinha de água – pediu ele a Miriam. – Vou chegar tarde e já sei que vou ouvir um sermão.

Acendeu a lanterna à prova do vento, despiu o casaco, virou a bicicleta ao contrário e meteu mãos à obra rapidamente. Miriam trouxe-lhe a tigela com água e ficou junto dele, observando-o. Adorava ver as mãos dele em acção. Era elegante e forte, e até os seus movimentos mais rápidos eram feitos com desembaraço. Ocupado como estava, parecia tê-la esquecido. Mas ela amava-o de uma forma absorvente, desejava poder passar as mãos ao longo do seu corpo. Sempre desejara abraçá-lo, desde que ele não a quisesse.

– Já está – disse Paul, levantando-se de repente. – Mais rápido não podia ser!

– Lá isso é verdade! – concordou ela, sorrindo.

Paul endireitou-se. Estava de costas para Miriam. Ela colocou as mãos nas ancas dele, fazendo-as deslizar rapidamente ao longo das pernas.

– És tão elegante! – disse ela.

Ele sorriu. Detestava o tom da voz dela, mas o sangue incendiou-se-lhe ao sentir o contacto das mãos. Ela, pelo contrário, parecia nem dar por ele. Era como se ele fosse um objecto, como se não se apercebesse do homem que ali estava.

Paul acendeu a luz da bicicleta, experimentou-a, bateu com ela no chão do celeiro para verificar o som dos pneus, e apertou o casaco.

– Tudo em ordem! – disse ele.

Ela experimentou os travões, pois sabia que estavam avariados.

– Já os arranjaste? – perguntou ela.

– Não!

– E porque não?

– O travão traseiro funciona mais ou menos.

– Mas não é seguro.

– Posso travar com o pé.

– Era melhor que os tivesses arranjado – murmurou ela.

– Não te preocupes... Amanhã vem tomar chá a minha casa e traz o Edgar.

– A sério?

– A sério... Por volta das quatro... Vou ter convosco.

– Combinado!

Ela estava feliz. Atravessaram o pátio às escuras até ao portão. Olhando em frente, Paul viu as cabeças de Mr. e Mrs. Leivers atrás da vidraça sem cortinas da cozinha, iluminadas pelo fulgor da lareira. O ambiente parecia muito aconchegado. À sua frente, a estrada ladeada de pinheiros abria-se escura.

– Até amanhã – disse ele, montando na bicicleta.

– Vais ter cuidado, não vais? – recomendou ela, como quem pede.

– Vou.

A voz dele soou já da escuridão. Ela deixou-se ficar mais uns instantes a ver a lanterna afastar-se e entrar na noite. Depois, voltou lentamente para casa. Orion elevava-se por cima da floresta, seguida do seu cão cintilante, meio apagado. Fora essa luz, o mundo estava mergulhado na mais densa escuridão e no silêncio, quebrado apenas pelo resfolegar do gado nos estábulos. E ela rezou com devoção pela segurança dele nessa noite. Quando ele a deixava, ficava sempre num estado de extrema ansiedade, imaginando se ele teria chegado bem a casa.

Paul deixava a bicicleta embalar pelas encostas abaixo. As estradas eram escorregadias e ele não podia meter travões. Era um prazer quando a bicicleta se precipitava pelo declive mais íngreme da colina. «Cá vou eu!», dizia ele. Era arriscado por causa da curva completamente às cegas à chegada ao vale, e das carroças dos cervejeiros com os carroceiros bêbados, a dormir. A bicicleta parecia desintegrar-se debaixo dele e Paul adorava a sensação. O descuido é a vingança de um homem sobre a mulher. Sentindo que não é devidamente apreciado, arrisca a sua própria destruição, para que ela sinta a sua falta.

Ao passar veloz pelo lago, as estrelas reflectidas na água pareciam saltar da escuridão como gafanhotos prateados. Depois surgia a longa subida até casa.

– Olha, mãe! – disse ele, atirando as bagas e as folhas para cima da mesa.

– Hum! – fez ela, olhando para a mesa e desviando o olhar. Como sempre, estava sozinha, sentada a ler.

– Não são bonitas?

– São.

Ele sabia que a mãe estava aborrecida. Passados alguns minutos disse:

– O Edgar e a Miriam vêm cá tomar chá amanhã.

A mãe não respondeu.

– Não se importa?

Ela continuou sem responder.

– Então importa-se? – perguntou ele.

– Sabes bem se me importo ou não.

– Não vejo porque se há-de importar... eu como lá tantas vezes...

– Pois comes.

– Então porque lhes recusa um chá?

– A quem é que eu recuso um chá?

– Porque é que a mãe é sempre tão difícil?

– Pronto, não digas mais nada! Convidaste-a para o chá, e isso já é o suficiente. Ela não falta.

Paul ficou muito aborrecido com a mãe. Sabia que ela não gostava de Miriam. Atirou com as botas e foi deitar-se.

Paul foi abrir a porta aos amigos no dia seguinte. Estava feliz de os ver chegar. Vieram por volta das quatro horas. Tudo estava sereno e calmo para domingo à tarde. Mrs. Morel estava sentada, com o seu vestido preto e o avental branco, mas levantou-se para receber as visitas. Foi cordial com Edgar, mas fria e muito esquiva com Miriam. Todavia, Paul achava que a rapariga estava bem bonita no seu vestido castanho de caxemira.

Ajudou a mãe a preparar o chá. Miriam ter-se-ia oferecido de agrado para ajudar, mas tinha receio. Paul tinha muito orgulho da sua casa. Havia nela uma certa distinção, pensava ele. As cadeiras eram simples, de madeira, e o sofá já velho. Mas o tapete e as almofadas eram aconchegantes; os quadros eram gravuras de bom gosto; a simplicidade dominava e havia muitos livros. Nem ele nem Miriam se envergonhavam das casas que tinham, pois eram tudo aquilo que deviam ser, e ainda acolhedoras. Então na mesa tinha grande orgulho; o serviço de chá era bonito e a toalha fina; pouco importava que as colheres não fossem de prata e nem o cabo das facas de marfim; tudo estava bonito. Mrs. Morel tinha cuidado maravilhosamente de tudo enquanto os filhos cresceram. Assim, nada se encontrava fora do lugar.

Miriam falou um pouco de livros, pois era um assunto que dominava bem. Mas Mrs. Morel não se mostrou interessada, virando-se rapidamente para Edgar.

A princípio, quando Edgar e Miriam iam à igreja, sentavam-se no banco de Mrs. Morel. Morel nunca lá ia, pois preferia a taberna. Mrs. Morel, arvorando-se em chefe da família, sentava-se numa extremidade do banco e Paul na outra extremidade; a princípio, Miriam sentava-se ao lado dele. A capela lembrava a Paul a sua casa. Era um lugar bonito, com bancos escuros e pilares estreitos e elegantes, e com muitas, muitas flores. As mesmas pessoas sentavam-se sempre nos mesmos lugares desde que ele era menino. Era bastante agradável e reconfortante estar ali sentado durante uma hora e meia, ao lado de Miriam e perto da mãe, unindo os seus dois amores sob o fascínio daquele local de culto. Sentia-se a um tempo entusiasmado, feliz e religioso. Terminada a missa, acompanhava Miriam a casa, enquanto Mrs. Morel passava o resto da tarde com a sua velha amiga Mrs. Burns. Sentia-se verdadeiramente vivo durante os passeios que dava ao domingo pela tardinha com Edgar e Miriam. Sempre que passava de noite pelas minas, pelo depósito das lanternas, todo iluminado, pelas torres altas e negras e pelas filas de vagões parados em frente das ventoinhas que giravam lentamente na escuridão, tinha a sensação intensa e quase insuportável de que Miriam voltaria para si.

Mas Miriam não ocupou por muito tempo o banco da família Morel, pois o pai arranjou novamente um outro banco. Ficava mesmo por baixo da pequena galeria, em frente ao banco dos Morels. Quando Paul e a mãe chegavam à capela, o banco dos Leivers estava sempre vazio. Ele receava que não viessem: a capela ficava muito longe e eram muitos os domingos chuvosos. Mas a dado momento, quase sempre atrasada, Miriam chegava com o seu passo amplo, cabeça baixa e face oculta pelo chapéu de veludo verde-escuro. Visto sentar-se do lado oposto, a sua cara ficava sempre na sombra, o que até o fazia sentir-se bem, pois ao vê-la ali à sua frente era como se a alma se lhe agitasse dentro do corpo. Não era o mesmo calor, a mesma alegria e o mesmo orgulho que sentia ao ter a mãe a seu lado, como chefe: era algo mais maravilhoso ainda, menos humano, um sentimento intenso temperado pela dor, algo que ele sabia que não podia alcançar.

Foi nesta altura que começou a pôr em questão a doutrina ortodoxa. Ele tinha vinte e um anos e ela vinte. Miriam receava a chegada da Primavera: ele tornava-se agressivo e magoava-a muito. Tudo o que mais queria era destruir cruelmente as crenças dela. Edgar, crítico por natureza e sem sentimentos, gostava desta situação. Mas Miriam sofria amargamente, pois o homem que amava possuía uma inteligência cortante que dissecava a religião em que ela fora criada e se movimentava, e onde habitava o seu Eu. Mas ele não a poupava e mostrava-se muito cruel. Quando estavam sozinhos, tornava-se ainda mais violento, como se quisesse matar-lhe a alma, explorando as suas crenças até ela quase perder a consciência.

– Ela regozija-se... regozija-se quando afasta o meu filho de mim – gritava Mrs. Morel do fundo do coração, quando Paul saía de casa. – Ela não é como qualquer mulher comum, que permite que eu faça parte do meu filho. Ela quer absorvê-lo. Quer tirar-mo e absorvê-lo, até que nada reste dele, nem sequer para ele próprio. Assim, ele nunca será senhor de si... ela irá sugá-lo completamente. – E Mrs. Morel sentava-se, debatendo pressentimentos e meditando tristemente.

Quando regressava dos seus passeios com Miriam, Paul vinha trespassado de sofrimento. Caminhava com passo apressado, mordendo os lábios e cerrando os punhos. Quando chegava a uma cerca, parava por alguns minutos, imobilizado. À sua frente estendia-se a escuridão sem fim; as negras encostas salpicavam-se de florescências luminosas; e, nos recônditos da noite, brilhava o clarão da mina. Tudo era estranho e ameaçador. Porque estava ele tão dilacerado, quase em êxtase, incapaz de se mover? Porque estava a mãe sentada em casa a sofrer? E sabia que ela sofria bastante. Mas porquê? E porque detestava ele Miriam e era tão cruel para ela, quando pensava na mãe? Já que Miriam fazia a mãe sofrer, ele tinha de a detestar. E com facilidade a detestava. Porque o levava ela a duvidar de si próprio, deixando-o inseguro, indefinido, como se não pudesse evitar que a noite e o espaço caíssem sobre ele? Como ele a odiava! Mas logo um ímpeto de ternura e humilhação o envolvia.

De repente, precipitava-se para casa a correr. A mãe reconhecia nele as marcas da agonia, mas nada dizia. Ele, porém, tinha de obrigá-la a falar, pois via-a zangada por ele ter ido passear com Miriam para tão longe.

– Porque é que não gosta dela, mãe? – gritou ele um dia, desesperado.

– Não sei, meu filho – respondeu ela num tom comovente. – Já tentei gostar, tentei com todas as minhas forças... mas não consigo... não consigo...

E, entre ambas, ele sentia-se triste e sem esperanças. A Primavera era a pior das estações. Ele ficava instável, enérgico e cruel. Assim, decidiu afastar-se dela. Surgiam então as horas a que ele sabia que Miriam o esperava, e a mãe apercebia-se da sua impaciência. Paul não conseguia progredir no seu trabalho, não conseguia fazer nada. Era como se algo transportasse a sua alma até Willey Farm. De repente, punha o chapéu e saía sem dizer nada. E a mãe sabia que ele tinha partido. Assim que se punha a caminho respirava de alívio. Mas, mal chegava ao pé de Miriam, tornava-se novamente cruel.

Certo dia, em Março, estava Paul deitado nas margens do lago Nethermere, com Miriam sentada a seu lado. Estava um dia resplandecente, branco e azul. Nuvens grandes e brilhantes passavam altas, e as suas sombras moviam-se silenciosas sobre a água. Os espaços abertos no céu tinham um tom glacial de azul. Paul estava deitado de costas sobre a relva, olhando o céu. Não conseguia olhar para Miriam. Ela parecia desejá-lo e ele resistia. Resistia sempre. Ela queria dar-lhe a sua paixão, a sua ternura, mas não era capaz. Ele sentia que ela não o queria; que apenas queria a sua alma. Miriam retirava-lhe as forças e a energia através de um canal que os unia. Ela não queria o corpo dele, pois nesse caso seria apenas duas pessoas, homem e mulher, em comunhão. Queria absorvê-lo completamente. E ele sentia-se estimulado por um impulso quase de loucura, que o fascinava, com um fascínio de droga.

Ele falava sobre Miguel Angelo. Ao escutá-lo, ela sentia que tocava o protoplasma da vida, as próprias células palpitantes, e a sua satisfação era plena. Mas, no final, isso assustava-a. Ali estava ele deitado, na intensidade imaculada da procura, e a sua voz amedrontava-a num crescendo, levando-a quase a tocar as raias do inumano, como se num transe.

– Não digas mais nada – pediu Miriam, com ternura, pousando a mão na testa dele. Ele permanecia estático, incapaz de se mover. O seu corpo estava de algum modo abandonado.

– Porquê... estás cansada?

– Estou, e tu também vais ficar.

Ele deu uma pequena gargalhada, apercebendo-se da situação.

– Contudo, sabe-me bem – disse ele.

– Mas não é essa a minha intenção – disse ela, muito baixinho.

– Não quando já foste longe de mais e sentes que já não és capaz de te dominar. Mas o teu eu inconsciente clama por isso. E eu suponho que também quero o mesmo.

– Então como posso evitá-lo?

– Penso que não podes, pois tu fazes sempre o mesmo. Desligas-me algures e retiras-me de mim próprio. Sinto-me como um fantasma, sem corpo.

– Não! – implorou ela.

– Agora mesmo, neste momento, olho para as minhas mãos e pergunto-me o que estão elas ali a fazer. Aquela água, por exemplo, ondula através de mim. Eu sou a ondulação. Corre através de mim e eu através dela. Não há barreiras entre nós.

– Mas...! – E Miriam hesitou.

– O que resta de mim é apenas uma consciência disseminada. Sinto que o meu corpo está deitado aqui, vazio, como se eu estivesse dentro de outras coisas... das nuvens e da água...

Ela olhou para ele e reparou naquele olhar tão estranho, como se ele fosse uma coisa e não uma pessoa, o que a fascinava tanto, mas que tanto receava. E era precisamente esse receio que a impelia a ter muito mais. Mas, agora, queria que ele parasse.

– Sabes – prosseguiu – o meu eu físico está liberto. Mas, se assim for, então eu não estou vivo. Tenho a certeza de que me destruiria. O que tu queres é pores-me gordo e banal, e não uma sombra. Queres fechar bem a minha alma dentro da sua bainha. Mas ela um destes dias libertava-se, tal como a espada que se libertou de uma bainha lassa e caiu ao mar.

Miriam meditava tristemente. Nisto, levantou a cabeça e olhou-o com os olhos muito brilhantes.

– Então deixa-me ser a tua protecção – disse ela.

E estendeu as mãos para as dele.

– Se tu pudesses... – disse ele. – Mas tu és aquilo que o teu eu inconsciente te impõe, e não aquilo que queres ser. Nenhum de nós dois é completamente normal... porém, agora eu quero sê-lo, mas penso que tu não queres. Tu queres ser algo fora do comum.

– Não, não quero – exclamou ela. Mas havia medo na sua voz.

– De qualquer forma – continuou Paul, num tom apático –, isso agora não é possível. Não me podes ter dessa maneira. Neste momento eu e tu somos apenas almas desprovidas de sangue. E isso provocaria uma vibração diferente, que se entrechocaria com este estado actual numa verdadeira tortura... Se ao menos pudesses querer-me, e não apenas quereres aquilo que eu tenho para te papaguear.

– Eu! – exclamou Miriam num tom áspero. – Eu! Quando é que eu te posso ter?

– Então a culpa é minha – disse ele, e juntando as partes dispersas do seu eu, levantou-se e começou a falar de coisas triviais. Sentia-se irreal. De uma forma vaga, detestava-a por isso. Sabia que era ele o culpado e, no entanto, isso não o impedia de a odiar.

Certa noite, na mesma época, em que Paul tinha ido levar Miriam a casa, pararam perto do prado que se estendia até à floresta, incapazes de se separarem. Assim que as estrelas surgiram, as nuvens desapareceram e eles captaram fugazmente a sua Orion, que se dirigia para oeste. As jóias de Orion brilharam por um breve instante, com o seu cão correndo rasteiro, lutando com dificuldade para atravessar a espuma de uma nuvem.

Orion era para eles a constelação mais carregada de significado. Era nela que os seus olhos se haviam fixado nos momentos mais estranhos e intensos, até sentirem que viviam em cada uma das suas estrelas. Nessa noite, Paul mostrava-se taciturno e perverso. Orion parecia-lhe apenas uma constelação, nada mais. Lutava contra o seu brilho, o seu fascínio. Miriam observava atentamente a disposição do seu amado, mas ele nada disse que o comprometesse até ao momento da partida, quando, de testa franzida, ficou parado a olhar tristemente para o castelo de nuvens, por detrás do qual a grande constelação estaria ainda a transitar.

No dia seguinte havia uma pequena festa em casa dele, para a qual Miriam estava convidada.

– Não posso vir buscar-te – disse ele.

– Não faz mal... O tempo também não está dos melhores para andar na rua... – respondeu ela serenamente.

– Não é isso... eles é que não gostam que eu venha. Dizem que me preocupo mais contigo do que com eles. E tu compreendes, não é verdade?... Tu sabes que entre nós existe apenas amizade.

Miriam ficou perplexa e com pena dele. Como lhe devia ter custado dizer aquelas palavras. Deixou-o, para lhe poupar outra humilhação. Uma chuva fina batia-lhe no rosto enquanto caminhava. Estava profundamente magoada e desprezava-o por ele se deixar levar pelo mais leve sopro de autoridade. No fundo do seu coração, sentia inconscientemente que ele tentava afastar-se dela, mas como jamais teria a coragem de o admitir, sentia pena dele.

Por esta altura, Paul tornou-se num elemento imprescindível do armazém da Jordan. Mr. Pappleworth saiu para se estabelecer por conta própria e Paul passou a supervisor da Espiral. Se tudo corresse bem, o seu salário seria aumentado para trinta xelins no final do ano.

Miriam vinha quase todas as sextas-feiras à noite para a lição de francês. Paul já não ia tão amiúde a Willey Farm, e ela receava que a sua aprendizagem estivesse prestes a terminar; por outro lado, e apesar das discórdias, gostavam de estar um com o outro. Liam Balzac, escreviam composições e sentiam-se bastante cultos.

A noite de sexta-feira era a noite de pagamento para os mineiros. Morel «repartia o bolo», ou seja, dividia os lucros da empreitada, quer no New Inn, em Bretty, quer na sua própria casa, conforme os seus companheiros preferissem. Barker tinha deixado de beber, e agora os homens «dividiam o bolo» em casa de Morel.

Annie, que tinha estado a dar aulas longe dali, regressara de novo a casa. Era ainda uma rapariga endiabrada. Estava noiva e ia casar. Paul andava a estudar desenho.

Morel estava sempre bem-disposto às sextas-feiras à noite, a não ser que os ganhos dessa semana fossem escassos. Depois do jantar, entregava-se a longos preparativos para se lavar. A decência exigia que as mulheres se ausentassem durante as reuniões masculinas. As mulheres não deviam assistir à reunião dos sócios, que era considerada assunto estritamente masculino... e nem deviam ficar a saber qual o montante exacto dos ganhos semanais. Assim, enquanto o pai barafustava na cozinha, Annie saiu e foi por uma hora para casa da vizinha, e Mrs. Morel foi à cozinha ver se o pão já estava cozido.

– Fecha a porta! – berrou Morel, furioso.

Annie bateu com a porta e saiu.

– S’ela torna a abrir a porta enquant’eu tou a tomar banho, amando-lh’um murro que lhe parto os queixos – berrou ele, ameaçador, por entre a espuma do sabão. Paul e a mãe franziram as sobrancelhas ao ouvi-lo.

Logo depois, saiu da cozinha, tremendo de frio e pingando o chão todo de água ensaboada.

– Oh, cos diabos! – disse ele. – Onde está a minha toalha?

Estava pousada numa cadeira, frente à lareira, para aquecer, pois, se assim não fosse, ele teria feito um grande estardalhaço. Aninhou-se sobre os calcanhares frente ao lume vivo, para secar.

– Brrrr... – continuou, fingindo tremer de frio.

– Ó homem, não sejas criança! – disse Mrs. Morel. – Não está frio nenhum.

– Exprimenta despires-te e tomares banho naquela cozinha – disse o mineiro, enxugando o cabelo. – Mas que gelo de casa!

– Eu não faria com certeza tanto alarido – respondeu a mulher.

– Ah, poi não. Caías redonda no chão que nem uma pedra.

– Porque é que uma pedra há-de ser mais redonda do que outra coisa qualquer? – perguntou Paul curioso.

– Essa agora... sei lá... é o que se diz – argumentou o pai. – Nesta tua cozinha há muitas correntes de ar, e quando ele passa através das costelas parece vento a passar por uma cancela de cinco traves.

– Sempre teria alguma dificuldade em passar através das tuas costelas – disse Mrs. Morel.

Morel olhou desanimado para ambos os lados do seu corpo.

– Eu! – exclamou. – Eu cá num tenho pele de coelho. Os meus ossos vêem-se no meu corpo!

– Gostaria de saber onde – retorquiu a mulher.

– Por todo o lado! Mas também num sou nenhuma carga de ossos.

Mrs. Morel deu uma gargalhada. Ele tinha um corpo ainda belo, jovem e musculado, sem gorduras. A pele era macia e clara. Poderia bem ser o corpo de um homem com vinte e oito anos, se não fossem as várias cicatrizes azuladas, semelhantes a tatuagens, onde o pó do carvão se tinha alojado, e o seu peito peludo. Morel pôs as mãos nos quadris, desanimado. Acreditava piamente que, por não engordar, era magro como um rato esfomeado.

Paul olhou para as mãos do pai, calejadas, escuras, cobertas de cicatrizes e com as unhas partidas, a esfregarem a maciez do seu corpo, e ficou admirado, pois parecia-lhe estranho serem feitas da mesma carne.

– Suponho – disse, virando-se para o pai – que antigamente tinha uma bela figura.

– Eh, olha lá o que dizes! – exclamou o mineiro, olhando em volta, espantado e tímido, como uma criança.

– Tinha uma bela figura, sim senhor! – exclamou Mrs. Morel. – O pior foi ele andar sempre aos encontrões a tudo, como se quisesse meter-se no buraco mais pequeno que encontrava.

– Eu? – exclamou Morel. – Eu, uma bela figura! Nunca passei de um esqueleto.

– Credo, homem! – gritou a mulher. – Não sejas tão piegas!

– É ve’dade – disse ele. – Tu nunca me viste qu’eu não parecesse qu’emagrecia de dia pra dia.

Mrs. Morel sentou-se e deu uma gargalhada.

– Tens um corpo de ferro – disse ela. – No tocante ao corpo, nunca nenhum homem te levou a melhor. Devias ter visto o teu pai em novo... – exclamou, de repente, virando-se para Paul e empertigando-se, para imitar a postura outrora garbosa do marido. Morel observava-a, envergonhado. Viu novamente a paixão que ela sentia por ele, e que brilhou durante alguns momentos à volta dela. Ele era tímido, assustadiço e humilde. Agora, porém, sentia de novo a velha força de outros tempos. Mas imediatamente sentiu na carne os estragos praticados ao longo de todos estes anos e só queria desaparecer, fugir de tudo.

– Lava-me as costas – pediu ele à mulher.

Ela trouxe uma toalha ensopada e ensaboada e colocou-lha sobre os ombros. Ele deu um salto.

– Oh, desgraçada! – berrou ele. – Tá gelada como a morte!

– Devias ter nascido salamandra – disse ela a rir, lavando-lhe as costas. Só raramente o ajudava nestas tarefas tão pessoais. Geralmente, eram os filhos quem fazia este tipo de coisas.

– O outro mundo não vai ser suficientemente quente para ti – acrescentou ela.

– Poi não – disse ele. – Tu vais fazer com que sopre uma aragem pra m’arrefecer.

Mas ela já tinha terminado. Enxugou-o rapidamente e subiu ao primeiro-andar, regressando em seguida com um par de calças limpas. Assim que se secou, Morel vestiu a camisola. Depois, rosado e luzidio, com o cabelo em pé e a camisola de flanela vestida por cima das calças de mineiro, aqueceu as ceroulas que ia vestir a seguir. Virou-as, pô-las do avesso e ressequiu-as.

– Oh, homem, veste-te! – exclamou Mrs. Morel.

– Queria ver se gostavas de vestir uma roupa tão fria como a água da banheira – disse ele.

Por fim, despiu as calças e vestiu-se condignamente de preto. Fez tudo isto em cima do tapete da lareira, e teria feito o mesmo se Annie e os amigos íntimos estivessem presentes.

Mrs. Morel virou o pão no forno. Depois, retirou uma mão-cheia de massa do alguidar de barro, que se encontrava a um canto da cozinha; trabalhou a massa dando-lhe a forma adequada e meteu-a numa tigela. Enquanto fazia isto, Barker bateu à porta e entrou. Era um homem baixo, compacto e calmo, que parecia capaz de atravessar um muro de pedra. O cabelo era preto e curto e a cara bem-parecida. Tal como a maioria dos mineiros, era pálido, mas saudável e rijo.

– Boa noite, ‘nha senhora – disse o homem, curvando a cabeça e sentando-se, com um suspiro.

– Boa noite – respondeu ela, cordialmente.

– Fizeste ranger os tacões – disse Morel.

– Num dei por nada – disse Barker.

Retraído, sentou-se num dos bancos da cozinha, como os colegas normalmente faziam.

– Como está a sua senhora? – perguntou-lhe Mrs. Morel. Há algum tempo, ele tinha-lhe dito: «Sabe, estamos à espera do terceiro...»

– Bem – respondeu ele, coçando a cabeça –, penso que está tão boa quanto o possível.

– Ora deixa cá ver... para quando é? – perguntou Mrs. Morel.

– Bem... penso que está para chegar a qualquer momento...

– Ah, sim? E tem passado bem?

– Sim... tudo em ordem.

– É um milagre, pois ela não é muito forte.

– É verdade. ... E eu fiz outra asneira.

– O que foi?

Mrs. Morel sabia que Barker não teria feito nada de muito errado.

– Não consegui dar co’a alcofa das compras.

– Pode levar a minha.

– Não... óspois vossemecê pode precisar.

– Não preciso, não. Levo sempre um saco de rede.

Todas as sextas-feiras à noite, Mrs. Morel via o mineiro, baixo e desembaraçado, a comprar os legumes e a carne para toda a semana, e sentia grande admiração por ele.

– O Barker pode ser baixo, mas é dez vezes mais homem do que tu – tinha dito ela ao marido.

Nisto, entrou Nessen. Apesar de pai de sete filhos, era magro, muito frágil, com uma ingenuidade de adolescente e um sorriso levemente matreiro. Mas a mulher dele era uma mulher apaixonada.

– Estou a ver que me batest’òs pontos – disse, sorrindo sem brilho.

– Pois foi – respondeu Barker.

O recém-chegado tirou o boné e o grosso cachecol de lã. Tinha um nariz pontiagudo e vermelho.

– É capaz de ter frio, Mr. Wesson – disse Mrs. Morel.

– Aqui tá um bocado de frio – respondeu.

– Então aproxime-se do lume.

– Não, tou bem aqui.

Os dois mineiros sentaram-se um pouco mais arredados. Não queriam ficar em cima do tapete da lareira, pois esse lugar era sagrado para a família.

– Senta-te no cadeirão – exclamou Morel, alegremente.

– Não, obrigado. Tou muito bem aqui.

– Ora essa, chegue-se para aqui – insistiu Mrs. Morel.

O homem levantou-se e, avançando desajeitadamente, sentou-se no cadeirão de Morel, envergonhado. Era tomar demasiada confiança. Mas estar ao pé do lume deixava-o muito feliz.

– E então como está o seu peito? – perguntou Mrs. Morel.

Ele sorriu novamente, com uns olhos azuis muito brilhantes.

– Ora, vai indo! – disse ele.

– Como um chocalho – atalhou Barker.

– T..t..t..t – fez Mrs. Morel com a língua. – Já mandou fazer a camisa de flanela?

– Ainda não – disse ele sorrindo.

– E porque não? – perguntou ela.

– Lá chegará o dia... – disse ele, sorrindo.

– Ah, o dia de São Nunca, estou a ver – exclamou Barker.

Barker e Morel preocupavam-se com Wesson, pois fisicamente eram ambos fortes que nem touros.

Quando Morel estava quase pronto, entregou o saco do dinheiro a Paul.

– Contó lá, rapaz – pediu com humildade.

Impaciente, Paul abandonou os livros e os lápis e despejou o saco para cima da mesa. Continha cinco libras em moedas de prata, várias moedas de vinte xelins e alguns trocados. Paul contou o dinheiro rapidamente, incluindo os cheques e os papéis com os totais do carvão, e pôs as moedas por ordem. Então Barker deu uma olhadela aos cheques.

Mrs. Morel subiu ao primeiro andar e os três homens sentaram-se à mesa. Morel, como dono da casa, sentou-se no seu cadeirão com as costas viradas para a lareira. Os outros dois sentaram-se em cadeiras frias. Nenhum deles contou o dinheiro.

– Quant’é que dissemos qu’era prò Simpson? – perguntou Morel. E, durante um minuto, discutiram os ganhos diários do companheiro, sendo o valor respectivo posto de lado em seguida.

– E quant’é prò Bill Naylor?

Também este valor foi retirado do saco.

E então, visto que Wesson vivia numa casa da companhia e a renda já tinha sido deduzida, Morel e Barker retiraram quatro xelins e seis dinheiros cada um. E, para compensar o carvão que Morel já tinha trazido, Barker e Wesson receberam mais quatro xelins cada. Depois, a distribuição foi simples: Morel deu a cada um uma moeda de vinte xelins, até não restar nenhuma; mais meia coroa a cada um, até não restarem mais; e ainda uma moeda de um xelim, até acabarem. Se no fim restasse alguma coisa que não pudesse ser dividida, Morel guardava esse dinheiro para pagar uma rodada de cerveja.

Finalmente, os três homens levantaram-se e saíram. Morel tratou de se escapar antes de a mulher descer. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu. Deu uma olhadela rápida ao pão que tinha no forno e, olhando para a mesa, viu o seu dinheiro. Paul tinha estado sempre embrenhado no trabalho. Mas agora apercebia-se de que a mãe, ao contar a semanada, se enfurecia.

– T..t..t – era o barulho que ela fazia com a língua.

Paul franziu a testa. Não conseguia trabalhar quando a via aborrecida. Mrs. Morel contou novamente o dinheiro.

– Uns míseros vinte e cinco xelins! – exclamou ela. – Qual era o valor do cheque?

– Dez libras e onze xelins – disse Paul, irritado. Ele receava o que estava para vir.

– E esta semana ele dá-me uma porcaria de vinte e cinco xelins, e ainda tenho de tirar o dinheiro para o clube. Eu bem o conheço... Pensa que por tu ganhares, já não precisa de sustentar a casa. Ele que coma o dinheiro, se quiser. Mas eu digo-lhe como é...

– Oh, mãe, não... – exclamou Paul.

– Não, o quê, posso saber? – disse ela.

– Não reaja assim... senão não consigo trabalhar.

Ela continuou, mas já um pouco mais calma.

– Pronto, está certo – disse ela. – Mas como é que pensas que me vou governar?

– Eu sei, mas não adianta nada piorar a situação.

– Gostava de saber o que é que farias se tivesses de aturar isto?

– Já não será por muito tempo... Vai ter o meu dinheiro não tarda, e ele que vá para o diabo.

Retomou o trabalho, e ela apertou as fitas do chapéu com desalento.

O filho não suportava vê-la assim, quando ela estava zangada. Todavia, começava agora a tentar dar-lhe isso a perceber.

– Os dois pães do tabuleiro de cima estão prontos dentro de vinte minutos – disse Mrs. Morel. – Não te esqueças.

– Está bem – respondeu ele, e Mrs. Morel saiu para o mercado.

Paul ficou sozinho a trabalhar. Mas a sua habitual concentração estava perturbada. Ouviu bater a cancela do pátio. Cerca das sete e um quarto, bateram ao de leve na porta e Miriam entrou.

– Estás sozinho? – perguntou.

– Estou.

Como se estivesse na sua própria casa, tirou a boina escocesa e o casaco comprido e pendurou-os. Ele sentiu uma tremura. Esta podia ser a casa deles, dele e dela.

Miriam aproximou-se e espreitou o que ele estava a fazer.

– O que é? – perguntou.

– Uma natureza morta... para decorar objectos e bordados.

Ela inclinou-se mais, aproximando os olhos míopes do desenho.

– E gostas do que fazes? – inquiriu.

– Adoro. Neste momento ando em maré de convencionalizar tudo.

– Ah...

Miriam não se interessava por estudos convencionais, mas reconhecia que ele devia saber mais do que ela sobre tais coisas. Eram coisas de homens, coisas que não lhe diziam respeito. No entanto, havia de descobrir a razão por que ele andava, como dizia, em maré de convencionalizar tudo. Que fascínio poderia ter para ele o convencional?

– O que é que te faz gostar disto? – perguntou ela, intrigada.

Ele, como já era seu hábito, procurou justificar-se. Lutando com as palavras, tentou explicar-lhe a teoria de que a força de gravitação é o agente mais poderoso, o factor responsável pela forma das coisas, e que, se pudesse agir em completa liberdade, apareceria uma rosa geometricamente correcta nas linhas e nas proporções... e assim por diante. Isto fez desabrochar nela um certo conceito de desenho convencional que até aí lhe parecia ser pura mentira. Por fim, ele empurrou os livros para o lado.

– Posso...? – disse ele, ansioso e hesitante.

– Podes o quê?

– Mostrar-te isto... Não era minha intenção enquanto não estivesse pronto.

Paul não conseguia esconder-lhe nada do que fazia. Foi à sala e voltou com uma trouxa de linho cru. Desembrulhou-a cautelosamente e estendeu-a no chão. Era um cortinado, ou melhor, um portière, magnificamente decorado com rosas, estampadas a stencil.

– Ah, que bonito! – exclamou ela.

O tecido espraiou-se aos pés dela, com as suas maravilhosas rosas em tons rubros e caules em verde-escuro, tudo muito simples, mas com um não sei quê de perverso. Ela ajoelhou-se, deixando pender soltos os caracóis. Ele, ao vê-la assim, voluptuosamente debruçada sobre a sua obra, sentiu bater mais depressa o coração. De repente, ela ergueu os olhos para ele.

– Porque é que isto parece tão cruel? – perguntou.

– O quê?

– Parece haver neste padrão uma certa crueldade – disse ela.

– Haja ou não haja, a mim parece-me óptimo – replicou ele, dobrando o trabalho com mãos de amante. Ela levantou-se devagar, pensativa.

– Que vais fazer com isto? – perguntou ela.

– Mandá-lo para os armazéns Liberty. Fi-lo para a minha mãe... mas acho que ela prefere o dinheiro.

– Estou a ver... – disse Miriam. Havia na voz dele um travo de amargura, e ela ficou com pena. A ela, o dinheiro jamais lhe interessaria.

Paul levou o tecido novamente para a sala, e, quando voltou, atirou a Miriam um retalho mais pequeno. Era a fronha de uma almofada, com um padrão idêntico.

– Fi-la para ti.

Miriam apalpou o trabalho com mãos trémulas, em silêncio. Paul ficou embaraçado.

– Meu Deus, o pão! – gritou ele.

Tirou os pães do tabuleiro superior e bateu-lhes vigorosamente. Já estavam cozidos. Pô-los ao lado da lareira, para arrefecerem. Em seguida, foi à copa, molhou as mãos, retirou do alguidar a massa, muito branca, que ainda restava, e colocou-a dentro de uma forma de pão. Miriam continuava debruçada sobre o tecido pintado. Enquanto isso, Paul esfregava as mãos, esforçando-se por tirar os bocadinhos de massa que se lhe tinham agarrado.

– Gostas? – perguntou ele.

Ela levantou para ele os seus olhos profundos, inflamados de amor. Ele riu-se, contrafeito. Depois começou a falar do seu desenho. Falar com Miriam sobre os trabalhos que fazia era para ele fonte do mais intenso prazer. Punha toda a sua paixão, toda a violência do seu sangue, nestas conversas com ela, em que discutia e concebia as suas obras. Ela fazia-lhe desabrochar a imaginação, embora não entendesse, como nenhuma mulher entende, quando concebe uma criança no seu ventre. Mas isto para ela, sim, era viver. E para ele também.

Enquanto conversavam, uma rapariga que andaria pelos vinte e dois anos, baixa e descorada, de olhos encovados, mas olhar determinado, entrou na sala. Era uma amiga dos Morels.

– Põe-te à vontade – disse Paul.

– Não... não me demoro.

Sentou-se no cadeirão de braços, em frente de Paul e de Miriam, que estavam no sofá. Miriam afastou-se um pouco mais de Paul. A casa estava quente e cheirava a pão acabado de fazer: os pães tostadinhos, a estalar, pousados ao lado da chaminé.

– Não esperava vir encontrar-te hoje aqui, Miriam Leivers – disse Beatrice, maldosa.

– Não sei porquê! – resmungou Miriam, asperamente.

– Porque... Ora deixa lá ver os teus sapatos.

Miriam, constrangida, não se mexeu.

– Se não sabes, não sabes, e pronto – disse Beatrice, dando uma gargalhada.

Miriam tirou os pés de baixo do vestido. As suas botas tinham aquele ar indeciso e patético que evidenciava bem o quanto ela era insegura e complexada. E estavam, além disso, cobertas de lama.

– Santa Maria!... És mêmo um monte de lama! – exclamou Beatrice. – Quem te limp’as botas?

– Limpo-as eu.

– Então não deves ter mai nada que fazer – disse a outra. – Havia de ser preciso muitos homens pra me fazerem vir ‘té’qui esta noite... Mas o amor zomba da lama... não é, ‘Póstolo, meu lindo?

– Inter alia – disse ele.

– Valha-me Deus, não me digas que te vais pôr agora a vomitar línguas estrangeiras!... O qu’é que isso quer dizer, Miriam?

– «Entre outras coisas», julgo eu – disse ela, humildemente. Beatrice riu-se maliciosamente, com a ponta da língua a despontar entre os dentes.

– «Entre outras coisas», ‘Póstolo? – repetiu ela. – Queres tu dizer qu’o amor se ri das mães e dos pais e das irmãs e dos irmãos e dos amigos e das amigas, e se calhar até do próprio ser amado?

Estava a fazer-se de ingénua.

– Na verdade, o amor é um sorriso rasgado – retorquiu ele.

– Isso é qu’era bom, ‘Póstolo Morel... Vai por mim... – disse ela.

E riu-se de novo, com malícia, muito baixinho.

Miriam continuava calada, fechada sobre si mesma. Todas as amigas de Paul adoravam meter-se com ela, e ele deixava-a entregue a si própria, como se aproveitasse para se vingar.

– Ainda continuas na mesma escola? – perguntou Miriam a Beatrice.

– Continuo.

– Então ainda não te mandaram embora?

– Devem mandar na Páscoa.

– Não achas uma pouca-vergonha... mandarem-te embora só por não teres passado no exame?!

– Não sei – ripostou Beatrice, friamente.

– A Agatha diz que és tão boa professora como as outras. A mim parece-me ridículo. Porque será que não passaste?

– Cabeça dura, hem, ‘Póstolo? – disse Beatrice, secamente.

– Só lhe serve para morder – retorquiu Paul, a rir.

– Monstro! – gritou ela, e, saltando do lugar, atirou-se a ele e deu-lhe um puxão de orelhas. As mãos dela eram pequeninas e elegantes. Ele prendeu-lhe os pulsos enquanto ela se debatia. Conseguiu por fim libertar-se e, apanhando dois punhados do cabelo dele, castanho e espesso, puxou com toda a força.

– Oh, Bea – disse ele, alisando o cabelo com os dedos. – Odeio-te.

Ela riu, consolada.

– Com licença! – disse ela. – Quero sentar-me ao pé de ti.

– Antes estar sentado ao lado duma fera – disse ele, deixando no entanto espaço para a outra se sentar entre ele e Miriam.

– Olha, ficou com o cabelinho todo despenteado! – exclamou Beatrice, penteando-o com o seu próprio pente.

– E o bigodinho também! – continuou ela. E, atirando a cabeça para trás, com um trejeito, penteou-lho.

– Tens um bigodinho todo malandro, ‘Póstolo – disse ela. – Vermelho, sinal de perigo... Ainda tens daqueles cigarros?

Paul tirou a cigarreira do bolso. Beatrice olhou.

– Já não tens nenhum daqueles charros qu’a Connie te deu? – perguntou.

– Ainda devo ter um por aí...

Procurou no bolso e encontrou uma caixinha. Beatrice pegou-lhe.

– É isso, só tens um! – disse ela. – Devia ser para a Miriam. Não queres o charro da Connie, Miriam?

– Não, obrigada – replicou Miriam. – Quem é a Connie?

– Ele não te contou? – exclamou Beatrice, surpresa. – Bem, ‘Póstolo Morel, acho que não é bonito deixar uma menina tão linda às escuras.

– Não queres mesmo fumar? – perguntou Paul a Miriam.

– Sabes bem que não – respondeu ela.

– Imaginem só, eu a fumar o último cigarro da Connie – disse Beatrice, metendo o cigarro entre os dentes. Paul estendeu-lhe um fósforo aceso e ela aspirou sofisticadamente.

– Obrigadíssima, querido – disse, trocista.

Dizer estas coisas dava-lhe um prazer perverso a que não conseguia resistir.

– Que jeitinho que ele tem, não achas, Miriam? – perguntou.

– Se tem! – disse Miriam.

Paul tirou um cigarro.

– Lume, menino? – disse Beatrice, chegando o seu cigarro ao dele.

Ele inclinou-se para a frente, para acender o cigarro no dela. Ela piscou-lhe o olho. Miriam viu os olhos dele a brilharem de malícia e os seus lábios carnudos, quase sensuais, a tremerem. Ele já não estava em si, e isso para ela era insuportável. Aquele que ali estava agora não tinha nada a ver com ela, era como se ela não existisse para ele. Via-lhe o cigarro a bailar nos lábios cheios, bem vermelhos, e odiava aquelas madeixas espessas que lhe caíam livres sobre a testa.

– Meu torrãozinho de açúcar! – disse Beatrice, levantando-lhe o queixo e dando-lhe um beijo na face.

– Agora é a minha vez, Beat – disse ele.

– Isso é que não! – disse ela, com uma risadinha, fugindo para longe. – Ele é mesmo descarado, não achas, Miriam?

– Do pior! – disse Miriam. – A propósito, não te esqueceste do pão?

– Meu Deus! – gritou Paul, abrindo a porta do forno, de onde saiu um fumo azulado e um cheiro a pão queimado.

– Céus! – gritou Beatrice, correndo para junto dele. Paul ajoelhou-se diante do forno e ela espreitou-lhe por cima do ombro. – Aí está o resultado de só pensares no amor, meu lindo.

Paul, contrito, tirava os pães do forno. Um deles estava todo preto por baixo e o outro duro que nem uma pedra.

– Pobre Mater! – disse Paul.

– Agora tens de o raspar – disse Beatrice. – Traz-me o ralador de noz-moscada.

Ela compôs os pães que ainda estavam no forno, ele trouxe-lhe o ralador e ela raspou a parte queimada em cima da mesa, para um jornal. Paul abriu as portas, para eliminar o cheiro a queimado, e Beatrice continuou a raspar o pão, fumando enquanto arrancava a crosta carbonizada da pobre carcaça.

– Ai, ai, Miriam, desta vez estás bem arranjada – disse Beatrice.

– Eu! – exclamou Miriam, espantada.

– É melhor saíres antes de a mãe dele chegar... Agora é que eu percebo porque é que o Rei Alfred queimou os bolos. Agora, sim. O ‘Póstolo inda podia dizer que se tinha esquecido por causa do trabalho, se achasse que isso ia pegar. Se a velha da lenda tivesse chegado um nadinha mais cedo, teria dado cabo das orelhas da desavergonhada que provocou o esquecimento, e não das do pobre Alfred...

E riu-se, enquanto raspava o pão. Até Miriam, não se contendo, se riu também. Paul, pesaroso, pôs mais carvão na fogueira.

Ouviu-se bater o portão do jardim.

– Depressa! – gritou Beatrice, estendendo a Paul a carcaça já raspada. – Embrulha-a numa toalha húmida.

Paul correu para a copa. Beatrice soprou apressadamente as raspadelas para a fogueira e foi sentar-se com ar inocente. Annie entrou de rompante. Era uma rapariga muito esperta e sem rodeios. A luz intensa fê-la piscar os olhos.

– Cheira-me a queimado! – exclamou.

– É dos cigarros – explicou Beatrice, muito séria.

– Onde está o Paul?

Leonard entrou logo a seguir a Annie. Tinha uma cara comprida e engraçada, e uns olhos azuis muito tristes.

– Acho que se retirou para vocês se entenderem as duas – disse ele.

Depois, cumprimentou Miriam com ar penalizado, e mostrou-se suavemente sarcástico com Beatrice.

– Nada disso – disse Beatrice. – Foi sair com a número nove.

– Olha, vi mesmo agora a número cinco, que andava à procura dele – acrescentou Leonard.

– Pois é... Nós vamos ter de o dividir como o menino de Salomão – disse Beatrice.

Annie deu uma gargalhada.

– Ah, sim? – disse Leonard. – E com que bocado queres tu ficar?

– Sei lá – disse Beatrice. – As outras que escolham primeiro.

– E tu depois ficas com os restos? – disse Leonard, fazendo uma careta.

Annie estava às voltas com o forno. Miriam estava abandonada no seu canto. Paul entrou.

– Este pão está lindo, menino Paul – disse Annie.

– Então devias ter ficado a tomar conta dele – disse Paul.

– Tu é que devias ter feito aquilo que te compete – repontou Annie.

– Devia, não devia? – exclamou Beatrice.

– Mas se calhar estava com as mãos muito ocupadas... – atalhou Leonard.

– Viste-te aflita para cá chegar, não foi, Miriam? – disse Annie.

– Se vi... Mas tinha estado metida em casa toda a semana...

– E apeteceu-te mudar, hem? – insinuou Leonard, melífluo.

– Bem, não se pode passar a vida inteira dentro de casa – disse Annie, conciliadora. Beatrice vestiu o casaco e saiu com Leonard e Annie. Ia encontrar-se com o seu rapaz.

– Não te distraias com o pão, menino Paul – gritou Annie. – Boa noite, Miriam, acho que não vai chover mais.

Depois de todos saírem, Paul foi buscar o pão queimado, desembrulhou-o e olhou para ele com desalento.

– Está uma porcaria! – disse.

– Mas qual é o problema? – disse Miriam, enfadada. – Afinal são só... dois dinheiros e meio.

– Está bem... mas trata-se do pão da minha mãe, de que ela tanto se orgulha... e ela não vai gostar nada... Mas agora já não adianta preocuparmo-nos.

Levou o pão outra vez para a copa. Instalara-se uma certa distância entre ele e Miriam. Por uns momentos, Paul hesitou diante dela, a meditar, pesando o seu comportamento com Beatrice. No fundo, sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo contente. Não sabia explicar porquê, mas achava que era bem feito para Miriam. Não era agora que se ia arrepender. Miriam pensava no que ele estaria a cogitar, ali hesitante diante dela. Madeixas de cabelo espesso caíam-lhe ainda sobre a testa. E se lho puxasse para trás, para apagar as marcas do pente de Beatrice? E se lhe apertasse o corpo entre as suas mãos? Parecia tão rijo e palpitante. Se ele deixava as outras fazerem-lhe isso, porque não ela?

De súbito, Paul voltou à vida, e Miriam quase tremeu de susto quando ele arredou os cabelos da testa e avançou para ela.

– Oito e meia! – disse ele. – É melhor irmos a isto. Onde está o teu caderno de francês?

Miriam, contrariada, mostrou-lhe timidamente o caderno de exercícios de francês. Todas as semanas lhe entregava uma espécie de diário da sua vida íntima, escrito por ela em francês. Paul descobrira que era a única maneira de a convencer a fazer composições. O diário era acima de tudo uma carta de amor. Agora, ele ia lê-lo e era como se a história da sua alma fosse ser profanada por ele, no estado em que se encontrava. Paul sentou-se ao lado dela. Ela atentou na mão dele, firme e quente, percorrendo minuciosamente o seu trabalho.

Ele lia apenas as palavras em francês, ignorando a alma que encerravam. Mas, gradualmente, a mão esqueceu a tarefa e ele continuou a ler em silêncio, e em total imobilidade. Ela estremeceu.

– «Ce matin les oiseaux m’ont éveillé» – leu ele. – «II faisait encore un crépuscule. Mais la petite fenêtre de ma chambre était blême, et puis, jaûne, et tous les oiseaux du bois éclatèrent dans un chanson vif et résonnant. Toute l’aûbe tressaillit. J’avais rêvé de vous. Est-ce que vous voyez aussi 1’aube? Les oiseaux m’éveillent presque tous les matins, et toujours il y a quelque chose de terreur dans le cri des grives. II est si clair...».2

Miriam estava sentada, a tremer, envergonhada. Ele mantinha-se imóvel, tentando compreender. Apenas percebia que ela o amava, mas tinha medo do seu amor. Era mais do que ele merecia, e ele não era digno dela. Era ele que não a amava o suficiente, e não o contrário. Envergonhado, corrigiu-lhe o trabalho, anotando os erros timidamente por cima das palavras.

– Repara – disse ele, sereno. – Quando o particípio passado é conjugado com avoir, concorda com o complemento directo sempre que este o precede.

Ela inclinou-se para a frente, para ver melhor e poder compreender. Os seus caracóis finos e soltos roçaram-lhe ao de leve na cara, e ele deu um salto como se um ferro em brasa lhe tivesse tocado. Ao vê-la debruçada sobre a página, com os lábios rubros dolorosamente entreabertos, o cabelo negro caindo em finas madeixas sobre as faces afogueadas, corada como uma romã, a respiração tornou-se-lhe ofegante. Então, ela olhou para ele: os seus olhos negros punham a nu todo o seu amor, medo e desejo. E os olhos dele, negros também, feriram os dela. Pareciam dominá-los. E ela, perdendo o domínio de si própria, ali estava exposta, amedrontada, à mercê dele. Paul sabia, porém, que antes de a poder beijar, tinha de arrancar alguma coisa de si mesmo. E, então, um sopro de ódio por ela penetrou-lhe outra vez no coração, fazendo-o retomar as suas correcções.

De súbito, ele atirou com o lápis pelo ar e precipitou-se para o forno, para virar o pão. Era brusco de mais para o gosto dela. Miriam estremeceu em violento sobressalto, e a dor que sentiu era real. Até a maneira como ele se punha de cócoras diante do forno a magoava. Pressentia alguma crueldade nos seus gestos, alguma crueldade na brusquidão com que tirava os pães das formas, atirando-os ao ar e apanhando-os na queda. Se ao menos ele fosse gentil nos movimentos, sentir-se-ia mais rica e confortada no seu íntimo. Mas, assim, era só dor o que sentia.

Paul voltou para junto dela e acabou o exercício.

– Desta vez saíste-te bem – disse ele.

Ela percebeu que ele se sentia lisonjeado com o diário, mas isso não era recompensa suficiente.

– Sim senhora, de vez em quando fazes um brilharete – disse ele. – Devias escrever poesia.

Ela ergueu a cabeça, transbordante de alegria, mas logo a abanou desalentada.

– Falta-me confiança – disse ela.

– Mas devias tentar!

Mas ela abanou a cabeça.

– Vamos ler um bocado, ou achas que já é muito tarde? – perguntou ele.

– Lá tarde, é... mas podíamos ler só um bocadinho – pediu ela.


CONTINUA

Partiriam no sábado seguinte de manhã, no comboio das sete horas. Paul sugeriu a Miriam que dormisse em casa dele, pois morava muito longe, e ela já jantou de véspera em casa dele. Estavam todos tão excitados que a vinda de Miriam até foi recebida com entusiasmo. Contudo, mal ela chegou, a família tornou-se menos expansiva e mais fechada. Paul tinha descoberto um poema de Jean Ingelow que falava em Mablethorpe, e, por isso, tinha de o mostrar a Miriam. Sem ela, o seu sentimentalismo nunca teria chegado ao ponto de ler poesia para a família ouvir. Mas agora concordavam em ouvi-lo. Miriam, sentada no sofá, escutava-o enlevada. Quando ele estava presente, ela parecia sempre presa a ele e das palavras dele. Mrs. Morel, com ciúmes, sentou-se na sua cadeirinha de baloiço para o escutar. Annie e o pai escutavam-no também; Morel tinha a cabeça mais levantada de um lado, como alguém que escuta um sermão e está consciente do mesmo. Paul espreitou por cima do livro. Tinha agora a presença de quem mais gostava. E Mrs. Morel e Annie quase competiam com Miriam, sobre qual seria a ouvinte mais atenta, a preferida dele. Paul sentia-se nos píncaros.

– Mas – interrompeu Mrs. Morel – não percebo porque é que os sinos têm que tocar A Noiva de Enderbyt...?

– É uma velha melodia que os sinos costumavam tocar como aviso contra a cheia. Penso que a tal Noiva de Enderby morreu afogada numa enchente – respondeu ele. Não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer na realidade, mas nunca se teria rebaixado ao ponto de o confessar perante o seu público feminino. Elas escutavam-no e acreditavam. Ele próprio acreditava nas coisas que dizia.

– E as pessoas sabiam o significado dessa melodia? – quis saber a mãe.

– Sim... tal e qual os escoceses quando escutam As Flores da Floresta... e quando costumavam tocar os sinos em sinal de alarme em sentido contrário.

– Ah! – exclamou Annie. – Quer dizer que os sons de um sino são sempre os mesmos quando são tocados no seu sentido correcto, ou ao contrário.

– Mas – disse ele – se começares num tom grave e subires até ao agudo... lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá! – disse ele, percorrendo a escala completa, e todos o acharam muito inteligente. Ele também. Depois, aguardando um minuto, continuou a ler o poema.

– Hum! – disse Mrs. Morel, apreciativamente, quando ele terminou. – Só espero que tudo o que se tem escrito não seja assim tão triste.

– Num consig’intender porqu’é qu’houve tantos afogamentos – disse Morel. Houve uma pausa. Annie preparou-se para levantar a mesa.

– Acho Elizabeth um belo nome – disse Miriam, em voz baixa. – «A minha nora Elizabeth...»

– Concordo – disse Paul.

– Também acho – disse a mãe. – Mas não gosto de Lizzie e abomino Liza.

Nem Paul nem Miriam achavam que Lizzie ou Liza tivessem algo a ver com o assunto.

– Ah, mas «Elizabeth»! – murmurou Miriam.

– E ainda por cima, a Rainha Elizabeth adorava que a tratassem por «Grande Eliza» – disse Paul.

– E amanhã há mais! – disse Morel, não se contendo.

Mrs. Morel e Paul deram uma gargalhada.

– Aposto que nem sapatos tinha – disse Morel, continuando com a brincadeira.

– Não seja tão insolente com uma rainha – disse Annie.

– Rainhas! – exclamou Morel. – Num pensas noutra coisa senão nas rainhas? Num fazes mai nada senão viver à grande e à francesa!

Miriam levantou-se para ajudar a lavar a loiça.

– Deixa-me ser eu a lavar a loiça – disse ela.

– Não é necessário – exclamou Annie. – Vai-te sentar. É pouca loiça.

E Miriam, que não se sentia à vontade para insistir, sentou-se a ver o livro com Paul.

Paul era o chefe do grupo... para isso, o pai não prestava. E muito ele sofreu para que o baú de latão fosse descarregado em Firsby e não em Mablethorpe. E não foi também capaz de encontrar uma carruagem com lugares. Só a genica de Mrs. Morel o conseguiu.

– Aqui! – gritou ela para um homem. – Aqui!

Paul e Annie ficaram para trás envergonhadíssimos, mas perdidos de riso.

– Quanto é a viagem até Brook Cottage? – perguntou Mrs. Morel.

– Dois xelins.

– É assim tão longe?

– Ainda é um bom bocado.

– Não acredito – disse ela.

Contudo subiu para a carruagem. Iam os oito apertados numa velha carruagem da linha costeira.

– Bem vêem – disse Mrs. Morel –, são apenas três dinheiros por pessoa, mas se fosse um eléctrico...

A viagem prosseguiu. Sempre que passavam por uma casa típica, Mrs. Morel exclamava:

– É esta?... Não, agora é que é!

Estava toda a gente morta de ansiedade. A viagem prosseguiu. Houve um suspiro em uníssono.

– Estou agradecida por não ser aquela coisa horrorosa – disse Mrs. Morel. – Estava assustada.

Passou-se ainda mais algum tempo.

– Aquela mulher repelente disse que a casa ficava a dez minutos do mar...! – exclamou Mrs. Morel.

– Pra ela uma hora deve ser um minuto – reclamou Morel.

Todos o mandaram calar.

– Será que nunca mais chegamos? – exclamou Mrs. Morel, muito alto.

– Não grite assim, mãe – disse Annie. – O que é que ele irá pensar?

Mrs. Morel olhou de um modo esquisito para o condutor, e disse:

– Não sei! Mas, pelo aspecto, penso que não pensará nada de especial.

Finalmente, desceram perto de uma casa isolada, sobre o canal que passava na estrada principal. Houve grande alvoroço quando descobriram que tinham de atravessar uma pequena ponte para chegarem ao jardim da casa. Adoraram a casa, que ficava isolada, com o mar de um lado e, do outro, uma imensa extensão de terra plana que se estendia até ao céu, e onde se distinguia o branco da cevada, o amarelo da aveia, o vermelho do trigo e o verde dos nabos.

Paul registava as despesas e ele e a mãe governavam a casa. As despesas globais, incluindo o alojamento e a alimentação ascendiam a dezasseis xelins por pessoa e por semana. De manhã, Paul e Leonard iam tomar banho ao mar. Morel saía bastante cedo para ir dar um passeio.

– Paul – chamou a mãe do quarto. – Come uma fatia de pão com manteiga.

– Está bem – respondeu ele.

Quando regressou, a mãe estava sentada à cabeceira da mesa. A dona da casa era jovem. O marido era cego e ela cuidava da roupa. Assim, Mrs. Morel lavava a loiça na cozinha e fazia as camas.

– Mas a mãe prometeu que ia fazer umas férias a sério – disse Paul – e agora está a trabalhar.

– Trabalho? – exclamou ela. – De que é que estás a falar?

Paul adorava ir passear com ela pelos campos, até à aldeia ou até ao mar. Ela tinha medo de atravessar pontes de madeira e ele acusava-a de se portar como um bebé. Era apegado à mãe como se fosse o seu marido.

Miriam raramente andava com ele – excepto, talvez, quando iam todos ouvir os Coons. Os Coons eram insuportavelmente estúpidos para Miriam e, por isso, eram-no também para Paul, que pregava sermões presunçosos a Annie sobre a perda de tempo que era irem ouvi-los. Todavia, também ele sabia todas as suas canções de cor e as cantava desbragadamente pelas ruas. E, quando reparava que os estava a ouvir, a estupidez da situação agradava-lhe imenso. Contudo dizia para Annie:

– Que porcaria!... Não há um pingo de inteligência naquilo que cantam. Ninguém que tenha mais miolos que um gafanhoto consegue aguentá-los. – E dizia a Miriam, com algum desdém, onde estavam Annie e os outros:

– Suponho que foram aos Coons.

Era ridículo ouvir Miriam trautear as canções dos Coons. Tinha um queixo talhado a direito que descia na perpendicular desde o lábio inferior até à curvatura do maxilar. Quando ela cantava, Paul achava-a parecida com um anjo triste de Botticelli, mesmo quando entoava:


«Vem pela Estrada do Amor

Vem comigo passear, falar comigo...»


Miriam só tinha Paul todo para ela quando ele desenhava, ou à noite, quando todos os outros estavam a ouvir os Coons. Ele falava-lhe então interminavelmente do seu gosto pelos planos horizontais: como é que os grandes níveis do céu e da terra significavam para ele a eternidade da vontade, tal como os arcos normandos, arredondados e em série, significavam um salto em frente da alma humana voluntariosa, não se sabe para onde; pelo contrário, as linhas perpendiculares e o arco gótico apontavam para o céu e afloravam o êxtase, perdendo-se no divino. Ele era normando, Miriam era gótica. Submissa, ela concordava com tudo o que ele dizia.

Certa tarde, ele e ela foram passear pelo extenso areal que conduzia a Theddlethorpe. As alongadas vagas quebravam-se e elevavam-se em silvos agudos de espuma ao longo da costa. A tarde estava quente e eles completamente sozinhos na imensidão da areia, a sós com o barulho do mar. Paul adorava ouvir o mar a ressoar na areia. Adorava sentir-se entre o som do mar e o silêncio do areal. Miriam estava com ele. Tudo se tornava mais intenso. Já tinha anoitecido quando regressaram. O regresso a casa fazia-se através de uma passagem nas dunas, e depois através de uma estrada pejada de ervas, rasgada entre dois diques. A aldeia estava cinzenta e calma. Por detrás das dunas soava o murmúrio do mar. Paul e Miriam caminhavam em silêncio. De repente, ele estacou. O seu sangue parecia ter-se incendiado e ele mal podia respirar. Uma enorme lua alaranjada observava-os do alto das dunas. Ele continuava parado, olhando a lua.

– Oh! – exclamou Miriam, quando a viu também.

Ele estava ali, petrificado, olhando a lua dilatada e rubra, sozinha na escuridão imensa. O seu coração batia forte e tinha os músculos dos braços contraídos.

– O que foi? – murmurou ela, esperando por ele.

Ele voltou-se e fitou-a. Ela estava ao seu lado, para sempre na escuridão. A sua face, encoberta pela sombra do chapéu, olhava-o sem que ele a visse. E ela meditava. Estava um pouco receosa... profundamente emocionada e imbuída de religiosidade. Este era o seu melhor estado de alma. Ele sentia-se impotente face a esta situação. O sangue parecia concentrar-se como uma fogueira no seu peito, mas ele não lhe conseguia transmitir o sentimento. Pareciam disparar relâmpagos do seu sangue, mas, de algum modo, ela ignorava-os. Ela esperava vê-lo atingir um estado de graça. Ainda à espera, mas meio consciente da paixão que o possuía, Miriam fitou-o, preocupada.

– O que se passa? – murmurou novamente.

– É a Lua – respondeu ele, franzindo a testa.

– Sim – concordou ela. – É maravilhosa, não é? – Ela estava intrigada. A crise tinha passado.

Ele próprio não sabia o que lhe tinha acontecido. Era ainda tão jovem e a sua intimidade tão abstracta que não se apercebeu de que desejava esmagá-la contra o peito para aliviar a dor que o trespassava. Tinha medo dela. Talvez o facto de a desejar como um homem deseja uma mulher tivesse permanecido oculto dentro dele como uma humilhação. Quando ela fugia desses pensamentos, torturando-se em extrema agitação, ele recolhia-se até ao mais recôndito da alma. E, neste momento, esta «pureza» inibia o seu primeiro beijo de amor. Era como se ela mal pudesse suportar o choque do amor físico, ou apenas um beijo apaixonado, deixando-o demasiado reprimido e sensibilizado para lho dar.

Enquanto caminhavam ao longo da negra lagoa, Paul contemplava a Lua e mantinha-se em silêncio. Miriam caminhava a seu lado devagar. Ele sentia que a odiava, pois ela parecia, de certa forma, levá-lo a autodesprezar-se. Olhando em frente, descortinou uma luz na escuridão; era a janela iluminada da sua casa.

Adorava pensar na mãe e no resto das pessoas, todos alegres.

– Bem, já todos chegaram há bastante tempo – disse a mãe quando eles entraram.

– E o que é que isso importa? – exclamou ele, irritado. Posso ir passear quando me apetecer, não posso?

– Pensei que quisesses jantar com o resto do grupo – disse Mrs. Morel.

– Tenho de agradar a mim próprio – retorquiu ele. – Não é tarde e faço o que me apetece.

– Muito bem – disse a sua mãe, sarcasticamente. – Então faz o que te apetecer!

E nessa noite não falou mais com ele. Paul fingiu não notar nem estar preocupado com o assunto, e sentou-se a ler. Miriam lia também, tentando alienar-se. Mrs. Morel detestava-a por ela pôr o filho naquele estado. Via o filho irritadiço, presumido e melancólico, e culpava Miriam.

Annie e os amigos também se voltavam contra Miriam. O único amigo de Miriam era Paul. Mas ela não se importava, pois desprezava a trivialidade de todas essas pessoas.

E Paul detestava-a, pois ela perturbava, por assim dizer, o seu bem-estar e a sua naturalidade, torturando-o com sentimentos de humilhação.

1 «Os últimos representantes de uma raça extinta.» (N. da T.)


VIII

ZANGAS DE AMOR

ARTHUR terminou o estágio e arranjou emprego na central eléctrica da mina de Minton. Ganhava muito pouco, mas tinha possibilidades de progredir. Era, porém, rebelde e impaciente. Não bebia nem tinha o vício do jogo, mas envolvia-se constantemente em rixas devido às suas reacções intempestivas. Ia caçar coelhos para a floresta, qual caçador furtivo, e passava a noite em Nottingham em vez de voltar para casa, ou então ia nadar para o canal de Bestwood e falhava os cálculos do mergulho, ficando com o peito ferido, das rochas naturais e das latas que andavam a boiar à tona.

Tinha faltado ao emprego meses a fio, e uma noite não voltou para casa.

– Sabe por onde anda o Arthur? – perguntou Paul ao pequeno-almoço.

– Não – respondeu a mãe.

– É mesmo maluco – disse Paul. – Eu já nem ligaria, se ele ao menos fizesse mesmo alguma coisa. Mas não... não consegue resistir a um jogo de cartas, ou então vai levar alguma rapariga a casa depois da patinagem, com todo o decoro... e acaba por não voltar para casa. É maluco.

– Não vejo porque seria melhor se ele fizesse mesmo alguma coisa que nos envergonhasse – disse Mrs. Morel.

– Bem... eu, pelo meu lado, passaria a respeitá-lo mais – disse Paul.

– Duvido muito – respondeu a mãe secamente.

Continuaram a tomar o pequeno-almoço.

– A mãe gosta desvairadamente dele, não gosta? – perguntou Paul.

– Porque fazes essa pergunta?

– Dizem que as mães gostam sempre mais do filho mais novo.

– Talvez... mas eu não. Não... ele irrita-me.

– E gostava que ele se portasse melhor?

– Gostava que ele mostrasse algum bom senso masculino.

Paul estava ferido e irritado. Também ele irritava a mãe frequentemente. E ela ficava triste, pois via os melhores anos a fugirem-lhe.

Estavam a acabar o pequeno-almoço, quando o carteiro lhes entregou uma carta vinda de Derby. Mrs. Morel esforçou-se para ler o endereço.

– Dê cá isso, sua pitosga! – exclamou o filho, tirando-lhe a carta da mão. Ela assustou-se e quase lhe dava uma bofetada.

– É do seu filho Arthur – informou ele.

– Mas o que vem a ser isto? – exclamou Mrs. Morel.

– «Querida mãe» – leu Paul. – «Não sei o que me deu. Quero que me venha buscar. Ontem, em vez de ir trabalhar, vim alistar-me no exército com o Jack Brendon. Ele disse que estava farto de passar a vida sentado num escritório, e eu, idiota, como já sabe que sou, resolvi vir com ele.

«Já recebi o dinheiro referente ao recrutamento, mas se me vier buscar, talvez eles me deixem ir consigo. Foi uma loucura ter feito o que fiz. Não quero ficar no exército. Querida mãe, sei que não passo de um estorvo para si, mas, se me tirar desta situação, prometo que serei mais consciente e ponderado...»

Mrs. Morel sentou-se na cadeira de baloiço.

– Vejam só! – exclamou. – Ele que assente por uns tempos!

– Também acho – disse Paul. – Ele que assente!

Fez-se silêncio. A mãe estava sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, o rosto imóvel, pensativa.

– Devo estar doente – exclamou de repente. – Doente!

– Então! – disse Paul, franzindo a testa – Não quero que se preocupe com isto, está a ouvir?

– Então queres que encare isto como uma bênção? – disse ela, de repente, virando-se para o filho.

– Agora não vai tornar isto numa tragédia, pois não? – retorquiu ele.

– Ele é maluco!... Maluquinho de todo! – gritou Mrs. Morel.

– Vai ficar todo bonito com a farda – disse Paul, para espicaçar a mãe.

Ela virou-se a ele, furiosa.

– Ah, vai? – gritou ela. – Mas não para mim!

– Devia ir para um regimento de cavalaria... Ele divertia-se à grande e nós passávamos a ser chiques.

– Chiques!... Chiques!... Muito chique, não haja dúvida!... Um soldado raso!

– Ora – disse Paul. – E o que sou eu, senão um reles escriturário?

– O que é muito mais, meu filho! – gritou a mãe, picada.

– Essa agora!

– De qualquer forma, és um homem e não uma coisa enfiada num casaco vermelho.

– Não me importava de andar enfiado num casaco vermelho... ou azul-escuro, que me ficaria melhor... se eles não me dessem muitas ordens.

Mas a mãe já não o ouvia.

– Agora que ele estava a progredir, ou poderia vir a progredir no emprego... um aborrecimento passageiro e aí vai ele... dar cabo da vida toda. Que vantagens é que tu pensas que isto lhe pode trazer?

– Vai pô-lo todo afinado! – disse Paul.

– Todo afinado!... E o que tem ele para afinar? Um soldado!... Um soldado raso!!... Nada mais do que um corpo que se mexe quando lhe dão ordens! Grande coisa!

– Não percebo porque é que isso a aborrece tanto – disse Paul.

– Não, talvez não percebas. Mas percebo eu. – E recostou-se na cadeira, de queixo apoiado numa das mãos e segurando o cotovelo com a outra, a transbordar de raiva e desilusão.

– Está a pensar ir a Derby? – perguntou Paul.

– Estou, pois.

– Não faça isso.

– Quero ver com os meus próprios olhos.

– Mas por que diabo é que não o deixa assentar? É isso mesmo que ele quer.

– Claro – exclamou a mãe. – Tu sabes muito bem o que ele quer...

Preparou-se e apanhou o primeiro comboio para Derby, onde se encontrou com o filho e com o sargento. Todavia, os seus esforços foram infrutíferos.

Morel estava a almoçar, quando ela disse de repente:

– Tenho de ir hoje a Derby.

O mineiro levantou os olhos, muito brancos numa face toda enfarruscada.

– Ah, vais, cachopa? E o que te leva lá?

– O menino Arthur!

– Qu’aprontou ele desta vez?

– Alistou-se no exército, só isso.

Morel pousou a faca e recostou-se na cadeira.

– Não – disse ele. – Num pode ser!

– E amanhã vai para Aldershot.

– Bom – exclamou o mineiro –, iss’é qu’é já uma grand’alhada.

Morel reflectiu por um momento, disse «Hum!» e continuou a jantar. Subitamente, a face contraiu-se-lhe de raiva.

– Espero qu’ele nunca mais volte a pôr as patas nesta casa – disse ele.

– Credo! – exclamou Mrs. Morel. – Isso é lá coisa que se diga!

– É o qu’eu penso – repetiu Morel. – O doidivanas pisga-se pa ser soldado... Atão é porque já tá na hora de fazer pela vida... Comigo na conta mais.

– Falar é fácil... – disse Mrs. Morel.

Nessa noite, Morel quase sentiu vergonha de ir para a taberna.

– Então, sempre lá foi? – perguntou Paul à mãe quando chegou a casa.

– Fui.

– E viu-o?

– Vi.

– E o que disse ele?

– Ficou lavado em lágrimas quando me vim embora.

– Hum!

– E eu fiz o mesmo, portanto não precisas de fazer «Hum!».

Mrs. Morel preocupava-se com o filho, pois sabia que ele não ia gostar de estar no exército. Como de facto não gostou. A disciplina era uma coisa que ele não conseguia tolerar.

– Mas o doutor disse que ele era bem proporcionado... quase na proporção exacta, e as suas medidas eram perfeitas – disse Mrs. Morel a Paul, cheia de orgulho. – Como tu sabes, ele é bem-parecido.

– Ele é muito bem-parecido. Mas não arranja raparigas como o William, pois não?

– Não... Tem uma personalidade diferente. Sai muito ao pai: é um irresponsável.

Para consolar a mãe, Paul passou nessa altura a ir muito menos a Willey Farm. No Outono, quando se realizou no castelo a habitual exposição dos trabalhos dos alunos da escola de belas-artes, ele apresentou dois trabalhos: uma paisagem a aguarela e uma natureza morta a óleo, que obtiveram dois primeiros prémios, o que o deixou deveras emocionado.

– Mãe, que lhe parece, acha que ganhei algum prémio com as minhas pinturas? – perguntou uma noite, ao chegar a casa. Pelos seus olhos, a mãe viu que ele estava feliz, e a sua face resplandeceu.

– Como queres que eu saiba, meu filho?!

– Um primeiro prémio por aquelas jarras de vidro...

– Ena!

– E outro primeiro prémio por aquele esboço que fiz em Willey Farm.

– Um primeiro prémio para cada coisa?

– Sim, senhora.

– Hum!

Mrs. Morel parecia envolvida numa aura brilhante, cor-de-rosa, mas não disse nada.

– É bem bom, não é, mãe? – disse ele.

– É, sim.

– Oh, mãe, porque não me põe nos píncaros?

Ela riu-se.

– É que depois tinha de ter o trabalho de te puxar cá para baixo outra vez.

No entanto, toda ela vibrava de alegria. William tinha-lhe trazido sempre os seus troféus desportivos. Ela ainda os guardava, e não perdoava a morte dele. Arthur era bonito e era pelo menos um belo exemplar masculino, terno e generoso, e provavelmente o futuro acabaria por lhe sorrir. Mas Paul iria destacar-se. Ela tinha uma grande fé no filho, e mais ainda por ele não ter consciência das suas capacidades. Ele tinha tanto para dar, e a vida parecia ter muito para lhe dar também. Ela iria sentir-se realizada através do filho. A sua luta não tinha sido em vão.

Durante o período da exposição, Mrs. Morel foi várias vezes ao castelo, sem que Paul a visse. Vagueava pelo longo salão, apreciando as restantes pinturas. Sim, eram muito boas. Mas faltava-lhes qualquer coisa para que a sua satisfação fosse completa. Observava-as longamente, tentando encontrar nelas alguma falha. De repente, algo lhe fazia disparar o coração. Aquela era a pintura de Paul. Conhecia-a como se a tivesse gravada no coração.

«Nome: Paul Morel. Primeiro Prémio.»

Parecia tão estranha, ali exposta ao público, nas paredes da galeria do castelo, onde já tinha visitado tantas exposições de pintura durante toda a sua vida. E, depois, olhou em volta, tentando descobrir se alguém a tinha tornado a ver em frente ao mesmo quadro.

Não cabia em si de orgulho, e quando se cruzava com senhoras bem vestidas, pensava para consigo:

«Pois sim, vocês estão muito bem vestidas... mas duvido que os vossos filhos consigam arrebatar dois primeiros prémios na exposição no castelo.»

E seguia o seu caminho, sentindo-se mais orgulhosa do que qualquer outra mãe de Nottingham. E Paul sentia que tinha feito algo por ela, mesmo não passando de uma insignificância. Todo o seu trabalho pertencia à sua mãe.

Um dia, encontrou Miriam quando se dirigia para o castelo. Tinha-a visto no domingo e não esperava encontrá-la na cidade. Vinha com ela uma mulher loura, espampanante, de expressão carregada e porte provocador. Era estranho como Miriam, tão meditativa e reverente, parecia insignificante ao lado desta mulher de ombros deslumbrantes. Miriam fitou Paul demoradamente. O olhar dele estava pregado na desconhecida, que o ignorava. Miriam via claramente o seu instinto masculino a erguer-se altaneiro.

– Olá – disse ele. – Não me disseste que vinhas à cidade.

– Pois não – retorquiu Miriam, em ar de desculpa. Fui à Feira do Gado com o meu pai.

Paul olhou para a companheira de Miriam.

– Já te tinha falado de Mrs. Dawes – disse Miriam, com a voz estrangulada. Estava nervosa. – Clara, já conheces o Paul?

– Penso que já o vi antes – respondeu Mrs. Dawes, indiferente, enquanto o cumprimentava. Tinha uns olhos cinzento-esverdeados, displicentes, a pele era mel claro, e a boca carnuda, com o lábio superior levemente levantado, não se percebendo se de desprezo por todos os homens ou desejo de ser beijada, sendo a primeira hipótese a mais provável. Tinha a cabeça inclinada para trás, como se ela se afastasse por desdém, talvez também dos homens. Usava um chapéu enorme e deselegante, de pele escura de castor, e um vestido simples levemente afectado, que lhe conferia as linhas de um saco. Obviamente era pobre e tinha falta de gosto. Miriam andava sempre bonita.

– Onde é que me viste? – perguntou Paul à outra mulher.

Ela olhou-o como se não tivesse qualquer dúvida em responder.

E depois:

– Vi-te a passear com a Louie Travers – respondeu ela.

Louie era uma das raparigas da secção Espiral da fábrica de Mr. Jordan.

– E como é que tu a conheces? – perguntou ele.

Ela não respondeu. Paul virou-se então para Miriam.

– Para onde vais agora? – perguntou.

– Para o castelo.

– A que horas é o comboio de regresso?

– Vou regressar com o meu pai. Gostava que também viesses connosco. A que horas estás livre?

– Já sabes que nunca antes das oito, que diabo!

E as duas mulheres seguiram o seu caminho.

Paul lembrou-se de que Clara Dawes era filha de um velho amigo de Mrs. Leivers. Miriam tinha-a procurado, pois ela tinha sido em tempos supervisora da secção Espiral da Jordan, e porque o marido, um tal Baxter Dawes que era ferreiro, trabalhava para a fábrica, fazendo entre outras coisas os ferros para as próteses ortopédicas. Miriam pensou que através dela pudesse contactar directamente com a fábrica, podendo assim assegurar o emprego de Paul. Mas Mrs. Dawes estava separada do marido, e agora dedicava-se à defesa dos direitos das mulheres. Era supostamente inteligente, e isso interessava a Paul.

Paul conhecia Baxter Dawes e detestava-o. O ferreiro tinha cerca de trinta e um ou trinta e dois anos. Paul encontrava-o de vez em quando: era um homem alto e bem constituído, bem-parecido, para quem dava gosto olhar. Havia uma curiosa semelhança entre ele e a mulher. Ele tinha a mesma pele clara, de tom de dourado. O seu cabelo era castanho-claro e o bigode dourado. E exalava um desprezo semelhante, pelo porte e pela conduta. Nisto surgiu a diferença. Os seus olhos castanhos, muito escuros e astuciosos, eram imorais. Eram levemente salientes e as pálpebras sobrepunham-se de uma forma tal que lhe suscitava o ódio. A boca era também sensual. A postura evidenciava um desprezo cobarde, como se estivesse preparado para derrubar o primeiro que o censurasse... talvez porque ele próprio se censurava.

O homem odiou Paul desde o primeiro dia que o viu. Ao captar o olhar deliberado e impessoal de um artista no rosto do rapaz, enfureceu-se.

– Pa’onde é que tás’olhar? – disse ele desdenhosamente, amedrontando-o.

O rapaz desviou o olhar. O ferreiro costumava encostar-se ao balcão a conversar com Mr. Pappleworth, e a sua conversa era sempre porca e depravada. Quando sentiu novamente os olhos frios e críticos do jovem pousados nele, o ferreiro virou-se, como se tivesse sido mordido por algum bicho.

– Pa’onde é que tás’olhar, ó parvalhão? – rosnou ele.

O rapaz encolheu os ombros.

– Olha que tu...! – berrou Dawes.

– Deixa-o em paz – disse Mr. Pappleworth, naquela sua voz insinuante que parecia dizer «ele é um pobre diabo, mas não faz por mal».

Desde essa altura, Paul passou a olhar para o homem, sempre que o encontrava, com o mesmo olhar crítico e curioso, desviando o olhar antes de encontrar os olhos do ferreiro, o que deixava Dawes fora de si. E, assim, odiavam-se em silêncio.

Clara Dawes não tinha filhos. Quando deixou o marido, desfizeram a casa e ela foi viver com a mãe, enquanto Dawes passou a viver em casa da irmã. Na mesma casa vivia também uma cunhada, e Paul veio a descobrir que a tal rapariga, a Louie Travers, era agora a amante de Dawes. Era uma atrevida bonitona e insolente, que escarnecia do rapaz, mas que se empolgava toda se ele a acompanhava à estação.

A vez seguinte em que Paul foi visitar Miriam era um sábado à tarde. Ela tinha a lareira acesa na sala de visitas e estava à espera dele. Os outros tinham saído, com excepção dos pais e dos irmãos mais novos, pelo que tinham a sala de visitas só para eles. A sala era comprida, de tectos baixos e aconchegada. Na parede havia três pequenos quadros de Paul e o seu retrato estava pousado ao canto da lareira. Em cima da mesa e em cima do piano de pau-rosa, estavam jarras com folhas coloridas. Ele sentou-se na poltrona e ela ajoelhou-se no tapete aos seus pés. A luz da fogueira reflectia-se na sua cara bonita e pensativa.

– O que achaste de Mrs. Dawes? – perguntou Miriam, num tom calmo.

– Não me pareceu muito amistosa – respondeu ele.

– Lá isso não, mas não a achas elegante?

– Sim... no que diz respeito à sua altura. Mas não tem um pingo de bom gosto. Gosto de algumas coisas nela. Ela é sempre assim antipática?

– Penso que não. Penso que não anda satisfeita.

– Com o quê?

– Bem, como é que te sentirias a viver com um homem daqueles?

– Então, porque é que ela casou com ele, sabendo que o ia detestar tão rapidamente?

– Sim, porque é que ela casou com ele? – repetiu Miriam, com aspereza.

– E eu que pensei que ela fosse suficientemente forte para medir forças com ele – disse Paul.

Miriam baixou a cabeça.

– Ah, sim? – perguntou, satiricamente. E o que é que te leva a pensar isso?

– Basta olhar para a boca dela... nascida para a paixão... e a maneira como estica a garganta.

E atirou a cabeça para trás imitando o jeito provocador de Clara.

Miriam baixou ainda mais a cabeça.

– Sim – disse ela.

Fez-se silêncio durante alguns momentos, e Paul pensava em Clara.

– E o que é que te agradou nela? – continuou Miriam.

– Não sei... a pele e a textura da... da... não sei... emana dela uma certa violência... Aprecio-a apenas como artista.

– Pois.

Paul não entendia por que razão Miriam estava ali sentada no chão, meditando de uma forma tão estranha, e isso irritava-o.

– Não gostas mesmo dela, pois não? – perguntou ele à rapariga.

Ela olhou-o com os seus enormes olhos escuros, encantadores.

– Gosto – respondeu.

– Não gostas, não... não podes gostar... muito.

– E pode saber-se porquê? – perguntou ela calmamente.

– Oh, não sei... Talvez gostes dela porque ela odeia os homens.

Esta era provavelmente uma das razões pelas quais ele gostava de Mrs. Dawes, mas isso não lhe tinha ocorrido. Calaram-se. Ele franziu a testa, algo que já se estava a tornar habitual, particularmente quando estava com Miriam. Ela ansiava fazer-lhe desaparecer as rugas da testa, mas tinha medo. Parecia haver um outro homem dentro de Paul Morel, mas que não era o seu.

Algumas bagas vermelhas sobressaíam entre as folhas do vaso. Ele esticou-se e arrancou um raminho.

– Porque será que, se colocares bagas vermelhas no cabelo – disse ele – pareces uma bruxa ou uma sacerdotisa, mas nunca uma libertina.

Ela rasgou um sorriso doloroso, despojado.

– Não sei – disse.

As suas mãos fortes e quentes brincavam alegremente com as bagas.

– Porque não te ris? – disse ele. – Nunca sorris abertamente. Apenas te ris quando algo é estranho ou incongruente, e até isso parece magoar-te.

Miriam baixou a cabeça como se ele a estivesse a admoestar.

– Gostaria muito que sorrisses apenas um minuto para mim... apenas por um minuto. Sinto que isso libertaria alguma coisa dentro de ti.

– Mas... – e olhou-o com uns olhos assustados e lutadores. – ... Mas eu rio-me... sim, eu rio-me.

– Mentira, nunca te ris. Só se for por algo de muito intenso. Sempre que te ris, apetece-me chorar; parece que o teu riso transmite sofrimento. Oh, só de pensar nisso, fazes com que eu enrugue a minha alma.

– Não é minha intenção fazê-lo – disse.

– Eu sou sempre tão espiritual contigo – exclamou ele.

Ela manteve-se em silêncio, a pensar: «Então porque não és de outra forma?» E ele olhou para o seu corpo dobrado, em meditação, e pareceu dividi-lo em dois.

– Estamos no Outono – disse ele – e todas as pessoas libertam o seu espírito.

Caiu novamente o silêncio. Este estranho desentendimento entre eles despedaçava a alma de Miriam. Ele parecia tão bonito, com os seus olhos escuros e um olhar tão profundo como a nascente mais funda.

– Tornas-me tão espiritual – lamentou-se ele. – E eu não quero ser espiritual.

Ela retirou o dedo da boca com um pequeno estalido, e olhou-o em tom provocador. Mas a sua alma continuava nua nos seus olhos grandes e castanhos e o mesmo desejo ardente dominava-a. Se isso fosse possível, ele tê-la-ia beijado na pureza da abstracção. Mas ele não a podia beijar assim... e ela não parecia dar-lhe qualquer outra alternativa. E, no entanto, desejava-o.

Paul sorriu.

– Bem – disse ele –, vamos lá estudar francês... vamos ler Verlaine.

– Sim – disse ela num tom profundo, quase de resignação. Levantou-se e foi buscar os livros. As suas mãos avermelhadas e nervosas metiam dó; como ele desejava confortá-la e beijá-la!! Mas não se atrevia... ou não podia. Algo o impedia. Os seus beijos eram para ela reprováveis. Continuaram a ler até às dez horas, e depois foram para a cozinha; Paul mostrava-se de novo alegre e natural para com os pais de Miriam. Os seus olhos eram escuros e brilhantes e envolvia-o uma aura de fascinação.

Quando foi buscar a bicicleta ao celeiro descobriu que o pneu dianteiro estava furado.

– Vai-me buscar uma tigela com uma pinguinha de água – pediu ele a Miriam. – Vou chegar tarde e já sei que vou ouvir um sermão.

Acendeu a lanterna à prova do vento, despiu o casaco, virou a bicicleta ao contrário e meteu mãos à obra rapidamente. Miriam trouxe-lhe a tigela com água e ficou junto dele, observando-o. Adorava ver as mãos dele em acção. Era elegante e forte, e até os seus movimentos mais rápidos eram feitos com desembaraço. Ocupado como estava, parecia tê-la esquecido. Mas ela amava-o de uma forma absorvente, desejava poder passar as mãos ao longo do seu corpo. Sempre desejara abraçá-lo, desde que ele não a quisesse.

– Já está – disse Paul, levantando-se de repente. – Mais rápido não podia ser!

– Lá isso é verdade! – concordou ela, sorrindo.

Paul endireitou-se. Estava de costas para Miriam. Ela colocou as mãos nas ancas dele, fazendo-as deslizar rapidamente ao longo das pernas.

– És tão elegante! – disse ela.

Ele sorriu. Detestava o tom da voz dela, mas o sangue incendiou-se-lhe ao sentir o contacto das mãos. Ela, pelo contrário, parecia nem dar por ele. Era como se ele fosse um objecto, como se não se apercebesse do homem que ali estava.

Paul acendeu a luz da bicicleta, experimentou-a, bateu com ela no chão do celeiro para verificar o som dos pneus, e apertou o casaco.

– Tudo em ordem! – disse ele.

Ela experimentou os travões, pois sabia que estavam avariados.

– Já os arranjaste? – perguntou ela.

– Não!

– E porque não?

– O travão traseiro funciona mais ou menos.

– Mas não é seguro.

– Posso travar com o pé.

– Era melhor que os tivesses arranjado – murmurou ela.

– Não te preocupes... Amanhã vem tomar chá a minha casa e traz o Edgar.

– A sério?

– A sério... Por volta das quatro... Vou ter convosco.

– Combinado!

Ela estava feliz. Atravessaram o pátio às escuras até ao portão. Olhando em frente, Paul viu as cabeças de Mr. e Mrs. Leivers atrás da vidraça sem cortinas da cozinha, iluminadas pelo fulgor da lareira. O ambiente parecia muito aconchegado. À sua frente, a estrada ladeada de pinheiros abria-se escura.

– Até amanhã – disse ele, montando na bicicleta.

– Vais ter cuidado, não vais? – recomendou ela, como quem pede.

– Vou.

A voz dele soou já da escuridão. Ela deixou-se ficar mais uns instantes a ver a lanterna afastar-se e entrar na noite. Depois, voltou lentamente para casa. Orion elevava-se por cima da floresta, seguida do seu cão cintilante, meio apagado. Fora essa luz, o mundo estava mergulhado na mais densa escuridão e no silêncio, quebrado apenas pelo resfolegar do gado nos estábulos. E ela rezou com devoção pela segurança dele nessa noite. Quando ele a deixava, ficava sempre num estado de extrema ansiedade, imaginando se ele teria chegado bem a casa.

Paul deixava a bicicleta embalar pelas encostas abaixo. As estradas eram escorregadias e ele não podia meter travões. Era um prazer quando a bicicleta se precipitava pelo declive mais íngreme da colina. «Cá vou eu!», dizia ele. Era arriscado por causa da curva completamente às cegas à chegada ao vale, e das carroças dos cervejeiros com os carroceiros bêbados, a dormir. A bicicleta parecia desintegrar-se debaixo dele e Paul adorava a sensação. O descuido é a vingança de um homem sobre a mulher. Sentindo que não é devidamente apreciado, arrisca a sua própria destruição, para que ela sinta a sua falta.

Ao passar veloz pelo lago, as estrelas reflectidas na água pareciam saltar da escuridão como gafanhotos prateados. Depois surgia a longa subida até casa.

– Olha, mãe! – disse ele, atirando as bagas e as folhas para cima da mesa.

– Hum! – fez ela, olhando para a mesa e desviando o olhar. Como sempre, estava sozinha, sentada a ler.

– Não são bonitas?

– São.

Ele sabia que a mãe estava aborrecida. Passados alguns minutos disse:

– O Edgar e a Miriam vêm cá tomar chá amanhã.

A mãe não respondeu.

– Não se importa?

Ela continuou sem responder.

– Então importa-se? – perguntou ele.

– Sabes bem se me importo ou não.

– Não vejo porque se há-de importar... eu como lá tantas vezes...

– Pois comes.

– Então porque lhes recusa um chá?

– A quem é que eu recuso um chá?

– Porque é que a mãe é sempre tão difícil?

– Pronto, não digas mais nada! Convidaste-a para o chá, e isso já é o suficiente. Ela não falta.

Paul ficou muito aborrecido com a mãe. Sabia que ela não gostava de Miriam. Atirou com as botas e foi deitar-se.

Paul foi abrir a porta aos amigos no dia seguinte. Estava feliz de os ver chegar. Vieram por volta das quatro horas. Tudo estava sereno e calmo para domingo à tarde. Mrs. Morel estava sentada, com o seu vestido preto e o avental branco, mas levantou-se para receber as visitas. Foi cordial com Edgar, mas fria e muito esquiva com Miriam. Todavia, Paul achava que a rapariga estava bem bonita no seu vestido castanho de caxemira.

Ajudou a mãe a preparar o chá. Miriam ter-se-ia oferecido de agrado para ajudar, mas tinha receio. Paul tinha muito orgulho da sua casa. Havia nela uma certa distinção, pensava ele. As cadeiras eram simples, de madeira, e o sofá já velho. Mas o tapete e as almofadas eram aconchegantes; os quadros eram gravuras de bom gosto; a simplicidade dominava e havia muitos livros. Nem ele nem Miriam se envergonhavam das casas que tinham, pois eram tudo aquilo que deviam ser, e ainda acolhedoras. Então na mesa tinha grande orgulho; o serviço de chá era bonito e a toalha fina; pouco importava que as colheres não fossem de prata e nem o cabo das facas de marfim; tudo estava bonito. Mrs. Morel tinha cuidado maravilhosamente de tudo enquanto os filhos cresceram. Assim, nada se encontrava fora do lugar.

Miriam falou um pouco de livros, pois era um assunto que dominava bem. Mas Mrs. Morel não se mostrou interessada, virando-se rapidamente para Edgar.

A princípio, quando Edgar e Miriam iam à igreja, sentavam-se no banco de Mrs. Morel. Morel nunca lá ia, pois preferia a taberna. Mrs. Morel, arvorando-se em chefe da família, sentava-se numa extremidade do banco e Paul na outra extremidade; a princípio, Miriam sentava-se ao lado dele. A capela lembrava a Paul a sua casa. Era um lugar bonito, com bancos escuros e pilares estreitos e elegantes, e com muitas, muitas flores. As mesmas pessoas sentavam-se sempre nos mesmos lugares desde que ele era menino. Era bastante agradável e reconfortante estar ali sentado durante uma hora e meia, ao lado de Miriam e perto da mãe, unindo os seus dois amores sob o fascínio daquele local de culto. Sentia-se a um tempo entusiasmado, feliz e religioso. Terminada a missa, acompanhava Miriam a casa, enquanto Mrs. Morel passava o resto da tarde com a sua velha amiga Mrs. Burns. Sentia-se verdadeiramente vivo durante os passeios que dava ao domingo pela tardinha com Edgar e Miriam. Sempre que passava de noite pelas minas, pelo depósito das lanternas, todo iluminado, pelas torres altas e negras e pelas filas de vagões parados em frente das ventoinhas que giravam lentamente na escuridão, tinha a sensação intensa e quase insuportável de que Miriam voltaria para si.

Mas Miriam não ocupou por muito tempo o banco da família Morel, pois o pai arranjou novamente um outro banco. Ficava mesmo por baixo da pequena galeria, em frente ao banco dos Morels. Quando Paul e a mãe chegavam à capela, o banco dos Leivers estava sempre vazio. Ele receava que não viessem: a capela ficava muito longe e eram muitos os domingos chuvosos. Mas a dado momento, quase sempre atrasada, Miriam chegava com o seu passo amplo, cabeça baixa e face oculta pelo chapéu de veludo verde-escuro. Visto sentar-se do lado oposto, a sua cara ficava sempre na sombra, o que até o fazia sentir-se bem, pois ao vê-la ali à sua frente era como se a alma se lhe agitasse dentro do corpo. Não era o mesmo calor, a mesma alegria e o mesmo orgulho que sentia ao ter a mãe a seu lado, como chefe: era algo mais maravilhoso ainda, menos humano, um sentimento intenso temperado pela dor, algo que ele sabia que não podia alcançar.

Foi nesta altura que começou a pôr em questão a doutrina ortodoxa. Ele tinha vinte e um anos e ela vinte. Miriam receava a chegada da Primavera: ele tornava-se agressivo e magoava-a muito. Tudo o que mais queria era destruir cruelmente as crenças dela. Edgar, crítico por natureza e sem sentimentos, gostava desta situação. Mas Miriam sofria amargamente, pois o homem que amava possuía uma inteligência cortante que dissecava a religião em que ela fora criada e se movimentava, e onde habitava o seu Eu. Mas ele não a poupava e mostrava-se muito cruel. Quando estavam sozinhos, tornava-se ainda mais violento, como se quisesse matar-lhe a alma, explorando as suas crenças até ela quase perder a consciência.

– Ela regozija-se... regozija-se quando afasta o meu filho de mim – gritava Mrs. Morel do fundo do coração, quando Paul saía de casa. – Ela não é como qualquer mulher comum, que permite que eu faça parte do meu filho. Ela quer absorvê-lo. Quer tirar-mo e absorvê-lo, até que nada reste dele, nem sequer para ele próprio. Assim, ele nunca será senhor de si... ela irá sugá-lo completamente. – E Mrs. Morel sentava-se, debatendo pressentimentos e meditando tristemente.

Quando regressava dos seus passeios com Miriam, Paul vinha trespassado de sofrimento. Caminhava com passo apressado, mordendo os lábios e cerrando os punhos. Quando chegava a uma cerca, parava por alguns minutos, imobilizado. À sua frente estendia-se a escuridão sem fim; as negras encostas salpicavam-se de florescências luminosas; e, nos recônditos da noite, brilhava o clarão da mina. Tudo era estranho e ameaçador. Porque estava ele tão dilacerado, quase em êxtase, incapaz de se mover? Porque estava a mãe sentada em casa a sofrer? E sabia que ela sofria bastante. Mas porquê? E porque detestava ele Miriam e era tão cruel para ela, quando pensava na mãe? Já que Miriam fazia a mãe sofrer, ele tinha de a detestar. E com facilidade a detestava. Porque o levava ela a duvidar de si próprio, deixando-o inseguro, indefinido, como se não pudesse evitar que a noite e o espaço caíssem sobre ele? Como ele a odiava! Mas logo um ímpeto de ternura e humilhação o envolvia.

De repente, precipitava-se para casa a correr. A mãe reconhecia nele as marcas da agonia, mas nada dizia. Ele, porém, tinha de obrigá-la a falar, pois via-a zangada por ele ter ido passear com Miriam para tão longe.

– Porque é que não gosta dela, mãe? – gritou ele um dia, desesperado.

– Não sei, meu filho – respondeu ela num tom comovente. – Já tentei gostar, tentei com todas as minhas forças... mas não consigo... não consigo...

E, entre ambas, ele sentia-se triste e sem esperanças. A Primavera era a pior das estações. Ele ficava instável, enérgico e cruel. Assim, decidiu afastar-se dela. Surgiam então as horas a que ele sabia que Miriam o esperava, e a mãe apercebia-se da sua impaciência. Paul não conseguia progredir no seu trabalho, não conseguia fazer nada. Era como se algo transportasse a sua alma até Willey Farm. De repente, punha o chapéu e saía sem dizer nada. E a mãe sabia que ele tinha partido. Assim que se punha a caminho respirava de alívio. Mas, mal chegava ao pé de Miriam, tornava-se novamente cruel.

Certo dia, em Março, estava Paul deitado nas margens do lago Nethermere, com Miriam sentada a seu lado. Estava um dia resplandecente, branco e azul. Nuvens grandes e brilhantes passavam altas, e as suas sombras moviam-se silenciosas sobre a água. Os espaços abertos no céu tinham um tom glacial de azul. Paul estava deitado de costas sobre a relva, olhando o céu. Não conseguia olhar para Miriam. Ela parecia desejá-lo e ele resistia. Resistia sempre. Ela queria dar-lhe a sua paixão, a sua ternura, mas não era capaz. Ele sentia que ela não o queria; que apenas queria a sua alma. Miriam retirava-lhe as forças e a energia através de um canal que os unia. Ela não queria o corpo dele, pois nesse caso seria apenas duas pessoas, homem e mulher, em comunhão. Queria absorvê-lo completamente. E ele sentia-se estimulado por um impulso quase de loucura, que o fascinava, com um fascínio de droga.

Ele falava sobre Miguel Angelo. Ao escutá-lo, ela sentia que tocava o protoplasma da vida, as próprias células palpitantes, e a sua satisfação era plena. Mas, no final, isso assustava-a. Ali estava ele deitado, na intensidade imaculada da procura, e a sua voz amedrontava-a num crescendo, levando-a quase a tocar as raias do inumano, como se num transe.

– Não digas mais nada – pediu Miriam, com ternura, pousando a mão na testa dele. Ele permanecia estático, incapaz de se mover. O seu corpo estava de algum modo abandonado.

– Porquê... estás cansada?

– Estou, e tu também vais ficar.

Ele deu uma pequena gargalhada, apercebendo-se da situação.

– Contudo, sabe-me bem – disse ele.

– Mas não é essa a minha intenção – disse ela, muito baixinho.

– Não quando já foste longe de mais e sentes que já não és capaz de te dominar. Mas o teu eu inconsciente clama por isso. E eu suponho que também quero o mesmo.

– Então como posso evitá-lo?

– Penso que não podes, pois tu fazes sempre o mesmo. Desligas-me algures e retiras-me de mim próprio. Sinto-me como um fantasma, sem corpo.

– Não! – implorou ela.

– Agora mesmo, neste momento, olho para as minhas mãos e pergunto-me o que estão elas ali a fazer. Aquela água, por exemplo, ondula através de mim. Eu sou a ondulação. Corre através de mim e eu através dela. Não há barreiras entre nós.

– Mas...! – E Miriam hesitou.

– O que resta de mim é apenas uma consciência disseminada. Sinto que o meu corpo está deitado aqui, vazio, como se eu estivesse dentro de outras coisas... das nuvens e da água...

Ela olhou para ele e reparou naquele olhar tão estranho, como se ele fosse uma coisa e não uma pessoa, o que a fascinava tanto, mas que tanto receava. E era precisamente esse receio que a impelia a ter muito mais. Mas, agora, queria que ele parasse.

– Sabes – prosseguiu – o meu eu físico está liberto. Mas, se assim for, então eu não estou vivo. Tenho a certeza de que me destruiria. O que tu queres é pores-me gordo e banal, e não uma sombra. Queres fechar bem a minha alma dentro da sua bainha. Mas ela um destes dias libertava-se, tal como a espada que se libertou de uma bainha lassa e caiu ao mar.

Miriam meditava tristemente. Nisto, levantou a cabeça e olhou-o com os olhos muito brilhantes.

– Então deixa-me ser a tua protecção – disse ela.

E estendeu as mãos para as dele.

– Se tu pudesses... – disse ele. – Mas tu és aquilo que o teu eu inconsciente te impõe, e não aquilo que queres ser. Nenhum de nós dois é completamente normal... porém, agora eu quero sê-lo, mas penso que tu não queres. Tu queres ser algo fora do comum.

– Não, não quero – exclamou ela. Mas havia medo na sua voz.

– De qualquer forma – continuou Paul, num tom apático –, isso agora não é possível. Não me podes ter dessa maneira. Neste momento eu e tu somos apenas almas desprovidas de sangue. E isso provocaria uma vibração diferente, que se entrechocaria com este estado actual numa verdadeira tortura... Se ao menos pudesses querer-me, e não apenas quereres aquilo que eu tenho para te papaguear.

– Eu! – exclamou Miriam num tom áspero. – Eu! Quando é que eu te posso ter?

– Então a culpa é minha – disse ele, e juntando as partes dispersas do seu eu, levantou-se e começou a falar de coisas triviais. Sentia-se irreal. De uma forma vaga, detestava-a por isso. Sabia que era ele o culpado e, no entanto, isso não o impedia de a odiar.

Certa noite, na mesma época, em que Paul tinha ido levar Miriam a casa, pararam perto do prado que se estendia até à floresta, incapazes de se separarem. Assim que as estrelas surgiram, as nuvens desapareceram e eles captaram fugazmente a sua Orion, que se dirigia para oeste. As jóias de Orion brilharam por um breve instante, com o seu cão correndo rasteiro, lutando com dificuldade para atravessar a espuma de uma nuvem.

Orion era para eles a constelação mais carregada de significado. Era nela que os seus olhos se haviam fixado nos momentos mais estranhos e intensos, até sentirem que viviam em cada uma das suas estrelas. Nessa noite, Paul mostrava-se taciturno e perverso. Orion parecia-lhe apenas uma constelação, nada mais. Lutava contra o seu brilho, o seu fascínio. Miriam observava atentamente a disposição do seu amado, mas ele nada disse que o comprometesse até ao momento da partida, quando, de testa franzida, ficou parado a olhar tristemente para o castelo de nuvens, por detrás do qual a grande constelação estaria ainda a transitar.

No dia seguinte havia uma pequena festa em casa dele, para a qual Miriam estava convidada.

– Não posso vir buscar-te – disse ele.

– Não faz mal... O tempo também não está dos melhores para andar na rua... – respondeu ela serenamente.

– Não é isso... eles é que não gostam que eu venha. Dizem que me preocupo mais contigo do que com eles. E tu compreendes, não é verdade?... Tu sabes que entre nós existe apenas amizade.

Miriam ficou perplexa e com pena dele. Como lhe devia ter custado dizer aquelas palavras. Deixou-o, para lhe poupar outra humilhação. Uma chuva fina batia-lhe no rosto enquanto caminhava. Estava profundamente magoada e desprezava-o por ele se deixar levar pelo mais leve sopro de autoridade. No fundo do seu coração, sentia inconscientemente que ele tentava afastar-se dela, mas como jamais teria a coragem de o admitir, sentia pena dele.

Por esta altura, Paul tornou-se num elemento imprescindível do armazém da Jordan. Mr. Pappleworth saiu para se estabelecer por conta própria e Paul passou a supervisor da Espiral. Se tudo corresse bem, o seu salário seria aumentado para trinta xelins no final do ano.

Miriam vinha quase todas as sextas-feiras à noite para a lição de francês. Paul já não ia tão amiúde a Willey Farm, e ela receava que a sua aprendizagem estivesse prestes a terminar; por outro lado, e apesar das discórdias, gostavam de estar um com o outro. Liam Balzac, escreviam composições e sentiam-se bastante cultos.

A noite de sexta-feira era a noite de pagamento para os mineiros. Morel «repartia o bolo», ou seja, dividia os lucros da empreitada, quer no New Inn, em Bretty, quer na sua própria casa, conforme os seus companheiros preferissem. Barker tinha deixado de beber, e agora os homens «dividiam o bolo» em casa de Morel.

Annie, que tinha estado a dar aulas longe dali, regressara de novo a casa. Era ainda uma rapariga endiabrada. Estava noiva e ia casar. Paul andava a estudar desenho.

Morel estava sempre bem-disposto às sextas-feiras à noite, a não ser que os ganhos dessa semana fossem escassos. Depois do jantar, entregava-se a longos preparativos para se lavar. A decência exigia que as mulheres se ausentassem durante as reuniões masculinas. As mulheres não deviam assistir à reunião dos sócios, que era considerada assunto estritamente masculino... e nem deviam ficar a saber qual o montante exacto dos ganhos semanais. Assim, enquanto o pai barafustava na cozinha, Annie saiu e foi por uma hora para casa da vizinha, e Mrs. Morel foi à cozinha ver se o pão já estava cozido.

– Fecha a porta! – berrou Morel, furioso.

Annie bateu com a porta e saiu.

– S’ela torna a abrir a porta enquant’eu tou a tomar banho, amando-lh’um murro que lhe parto os queixos – berrou ele, ameaçador, por entre a espuma do sabão. Paul e a mãe franziram as sobrancelhas ao ouvi-lo.

Logo depois, saiu da cozinha, tremendo de frio e pingando o chão todo de água ensaboada.

– Oh, cos diabos! – disse ele. – Onde está a minha toalha?

Estava pousada numa cadeira, frente à lareira, para aquecer, pois, se assim não fosse, ele teria feito um grande estardalhaço. Aninhou-se sobre os calcanhares frente ao lume vivo, para secar.

– Brrrr... – continuou, fingindo tremer de frio.

– Ó homem, não sejas criança! – disse Mrs. Morel. – Não está frio nenhum.

– Exprimenta despires-te e tomares banho naquela cozinha – disse o mineiro, enxugando o cabelo. – Mas que gelo de casa!

– Eu não faria com certeza tanto alarido – respondeu a mulher.

– Ah, poi não. Caías redonda no chão que nem uma pedra.

– Porque é que uma pedra há-de ser mais redonda do que outra coisa qualquer? – perguntou Paul curioso.

– Essa agora... sei lá... é o que se diz – argumentou o pai. – Nesta tua cozinha há muitas correntes de ar, e quando ele passa através das costelas parece vento a passar por uma cancela de cinco traves.

– Sempre teria alguma dificuldade em passar através das tuas costelas – disse Mrs. Morel.

Morel olhou desanimado para ambos os lados do seu corpo.

– Eu! – exclamou. – Eu cá num tenho pele de coelho. Os meus ossos vêem-se no meu corpo!

– Gostaria de saber onde – retorquiu a mulher.

– Por todo o lado! Mas também num sou nenhuma carga de ossos.

Mrs. Morel deu uma gargalhada. Ele tinha um corpo ainda belo, jovem e musculado, sem gorduras. A pele era macia e clara. Poderia bem ser o corpo de um homem com vinte e oito anos, se não fossem as várias cicatrizes azuladas, semelhantes a tatuagens, onde o pó do carvão se tinha alojado, e o seu peito peludo. Morel pôs as mãos nos quadris, desanimado. Acreditava piamente que, por não engordar, era magro como um rato esfomeado.

Paul olhou para as mãos do pai, calejadas, escuras, cobertas de cicatrizes e com as unhas partidas, a esfregarem a maciez do seu corpo, e ficou admirado, pois parecia-lhe estranho serem feitas da mesma carne.

– Suponho – disse, virando-se para o pai – que antigamente tinha uma bela figura.

– Eh, olha lá o que dizes! – exclamou o mineiro, olhando em volta, espantado e tímido, como uma criança.

– Tinha uma bela figura, sim senhor! – exclamou Mrs. Morel. – O pior foi ele andar sempre aos encontrões a tudo, como se quisesse meter-se no buraco mais pequeno que encontrava.

– Eu? – exclamou Morel. – Eu, uma bela figura! Nunca passei de um esqueleto.

– Credo, homem! – gritou a mulher. – Não sejas tão piegas!

– É ve’dade – disse ele. – Tu nunca me viste qu’eu não parecesse qu’emagrecia de dia pra dia.

Mrs. Morel sentou-se e deu uma gargalhada.

– Tens um corpo de ferro – disse ela. – No tocante ao corpo, nunca nenhum homem te levou a melhor. Devias ter visto o teu pai em novo... – exclamou, de repente, virando-se para Paul e empertigando-se, para imitar a postura outrora garbosa do marido. Morel observava-a, envergonhado. Viu novamente a paixão que ela sentia por ele, e que brilhou durante alguns momentos à volta dela. Ele era tímido, assustadiço e humilde. Agora, porém, sentia de novo a velha força de outros tempos. Mas imediatamente sentiu na carne os estragos praticados ao longo de todos estes anos e só queria desaparecer, fugir de tudo.

– Lava-me as costas – pediu ele à mulher.

Ela trouxe uma toalha ensopada e ensaboada e colocou-lha sobre os ombros. Ele deu um salto.

– Oh, desgraçada! – berrou ele. – Tá gelada como a morte!

– Devias ter nascido salamandra – disse ela a rir, lavando-lhe as costas. Só raramente o ajudava nestas tarefas tão pessoais. Geralmente, eram os filhos quem fazia este tipo de coisas.

– O outro mundo não vai ser suficientemente quente para ti – acrescentou ela.

– Poi não – disse ele. – Tu vais fazer com que sopre uma aragem pra m’arrefecer.

Mas ela já tinha terminado. Enxugou-o rapidamente e subiu ao primeiro-andar, regressando em seguida com um par de calças limpas. Assim que se secou, Morel vestiu a camisola. Depois, rosado e luzidio, com o cabelo em pé e a camisola de flanela vestida por cima das calças de mineiro, aqueceu as ceroulas que ia vestir a seguir. Virou-as, pô-las do avesso e ressequiu-as.

– Oh, homem, veste-te! – exclamou Mrs. Morel.

– Queria ver se gostavas de vestir uma roupa tão fria como a água da banheira – disse ele.

Por fim, despiu as calças e vestiu-se condignamente de preto. Fez tudo isto em cima do tapete da lareira, e teria feito o mesmo se Annie e os amigos íntimos estivessem presentes.

Mrs. Morel virou o pão no forno. Depois, retirou uma mão-cheia de massa do alguidar de barro, que se encontrava a um canto da cozinha; trabalhou a massa dando-lhe a forma adequada e meteu-a numa tigela. Enquanto fazia isto, Barker bateu à porta e entrou. Era um homem baixo, compacto e calmo, que parecia capaz de atravessar um muro de pedra. O cabelo era preto e curto e a cara bem-parecida. Tal como a maioria dos mineiros, era pálido, mas saudável e rijo.

– Boa noite, ‘nha senhora – disse o homem, curvando a cabeça e sentando-se, com um suspiro.

– Boa noite – respondeu ela, cordialmente.

– Fizeste ranger os tacões – disse Morel.

– Num dei por nada – disse Barker.

Retraído, sentou-se num dos bancos da cozinha, como os colegas normalmente faziam.

– Como está a sua senhora? – perguntou-lhe Mrs. Morel. Há algum tempo, ele tinha-lhe dito: «Sabe, estamos à espera do terceiro...»

– Bem – respondeu ele, coçando a cabeça –, penso que está tão boa quanto o possível.

– Ora deixa cá ver... para quando é? – perguntou Mrs. Morel.

– Bem... penso que está para chegar a qualquer momento...

– Ah, sim? E tem passado bem?

– Sim... tudo em ordem.

– É um milagre, pois ela não é muito forte.

– É verdade. ... E eu fiz outra asneira.

– O que foi?

Mrs. Morel sabia que Barker não teria feito nada de muito errado.

– Não consegui dar co’a alcofa das compras.

– Pode levar a minha.

– Não... óspois vossemecê pode precisar.

– Não preciso, não. Levo sempre um saco de rede.

Todas as sextas-feiras à noite, Mrs. Morel via o mineiro, baixo e desembaraçado, a comprar os legumes e a carne para toda a semana, e sentia grande admiração por ele.

– O Barker pode ser baixo, mas é dez vezes mais homem do que tu – tinha dito ela ao marido.

Nisto, entrou Nessen. Apesar de pai de sete filhos, era magro, muito frágil, com uma ingenuidade de adolescente e um sorriso levemente matreiro. Mas a mulher dele era uma mulher apaixonada.

– Estou a ver que me batest’òs pontos – disse, sorrindo sem brilho.

– Pois foi – respondeu Barker.

O recém-chegado tirou o boné e o grosso cachecol de lã. Tinha um nariz pontiagudo e vermelho.

– É capaz de ter frio, Mr. Wesson – disse Mrs. Morel.

– Aqui tá um bocado de frio – respondeu.

– Então aproxime-se do lume.

– Não, tou bem aqui.

Os dois mineiros sentaram-se um pouco mais arredados. Não queriam ficar em cima do tapete da lareira, pois esse lugar era sagrado para a família.

– Senta-te no cadeirão – exclamou Morel, alegremente.

– Não, obrigado. Tou muito bem aqui.

– Ora essa, chegue-se para aqui – insistiu Mrs. Morel.

O homem levantou-se e, avançando desajeitadamente, sentou-se no cadeirão de Morel, envergonhado. Era tomar demasiada confiança. Mas estar ao pé do lume deixava-o muito feliz.

– E então como está o seu peito? – perguntou Mrs. Morel.

Ele sorriu novamente, com uns olhos azuis muito brilhantes.

– Ora, vai indo! – disse ele.

– Como um chocalho – atalhou Barker.

– T..t..t..t – fez Mrs. Morel com a língua. – Já mandou fazer a camisa de flanela?

– Ainda não – disse ele sorrindo.

– E porque não? – perguntou ela.

– Lá chegará o dia... – disse ele, sorrindo.

– Ah, o dia de São Nunca, estou a ver – exclamou Barker.

Barker e Morel preocupavam-se com Wesson, pois fisicamente eram ambos fortes que nem touros.

Quando Morel estava quase pronto, entregou o saco do dinheiro a Paul.

– Contó lá, rapaz – pediu com humildade.

Impaciente, Paul abandonou os livros e os lápis e despejou o saco para cima da mesa. Continha cinco libras em moedas de prata, várias moedas de vinte xelins e alguns trocados. Paul contou o dinheiro rapidamente, incluindo os cheques e os papéis com os totais do carvão, e pôs as moedas por ordem. Então Barker deu uma olhadela aos cheques.

Mrs. Morel subiu ao primeiro andar e os três homens sentaram-se à mesa. Morel, como dono da casa, sentou-se no seu cadeirão com as costas viradas para a lareira. Os outros dois sentaram-se em cadeiras frias. Nenhum deles contou o dinheiro.

– Quant’é que dissemos qu’era prò Simpson? – perguntou Morel. E, durante um minuto, discutiram os ganhos diários do companheiro, sendo o valor respectivo posto de lado em seguida.

– E quant’é prò Bill Naylor?

Também este valor foi retirado do saco.

E então, visto que Wesson vivia numa casa da companhia e a renda já tinha sido deduzida, Morel e Barker retiraram quatro xelins e seis dinheiros cada um. E, para compensar o carvão que Morel já tinha trazido, Barker e Wesson receberam mais quatro xelins cada. Depois, a distribuição foi simples: Morel deu a cada um uma moeda de vinte xelins, até não restar nenhuma; mais meia coroa a cada um, até não restarem mais; e ainda uma moeda de um xelim, até acabarem. Se no fim restasse alguma coisa que não pudesse ser dividida, Morel guardava esse dinheiro para pagar uma rodada de cerveja.

Finalmente, os três homens levantaram-se e saíram. Morel tratou de se escapar antes de a mulher descer. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu. Deu uma olhadela rápida ao pão que tinha no forno e, olhando para a mesa, viu o seu dinheiro. Paul tinha estado sempre embrenhado no trabalho. Mas agora apercebia-se de que a mãe, ao contar a semanada, se enfurecia.

– T..t..t – era o barulho que ela fazia com a língua.

Paul franziu a testa. Não conseguia trabalhar quando a via aborrecida. Mrs. Morel contou novamente o dinheiro.

– Uns míseros vinte e cinco xelins! – exclamou ela. – Qual era o valor do cheque?

– Dez libras e onze xelins – disse Paul, irritado. Ele receava o que estava para vir.

– E esta semana ele dá-me uma porcaria de vinte e cinco xelins, e ainda tenho de tirar o dinheiro para o clube. Eu bem o conheço... Pensa que por tu ganhares, já não precisa de sustentar a casa. Ele que coma o dinheiro, se quiser. Mas eu digo-lhe como é...

– Oh, mãe, não... – exclamou Paul.

– Não, o quê, posso saber? – disse ela.

– Não reaja assim... senão não consigo trabalhar.

Ela continuou, mas já um pouco mais calma.

– Pronto, está certo – disse ela. – Mas como é que pensas que me vou governar?

– Eu sei, mas não adianta nada piorar a situação.

– Gostava de saber o que é que farias se tivesses de aturar isto?

– Já não será por muito tempo... Vai ter o meu dinheiro não tarda, e ele que vá para o diabo.

Retomou o trabalho, e ela apertou as fitas do chapéu com desalento.

O filho não suportava vê-la assim, quando ela estava zangada. Todavia, começava agora a tentar dar-lhe isso a perceber.

– Os dois pães do tabuleiro de cima estão prontos dentro de vinte minutos – disse Mrs. Morel. – Não te esqueças.

– Está bem – respondeu ele, e Mrs. Morel saiu para o mercado.

Paul ficou sozinho a trabalhar. Mas a sua habitual concentração estava perturbada. Ouviu bater a cancela do pátio. Cerca das sete e um quarto, bateram ao de leve na porta e Miriam entrou.

– Estás sozinho? – perguntou.

– Estou.

Como se estivesse na sua própria casa, tirou a boina escocesa e o casaco comprido e pendurou-os. Ele sentiu uma tremura. Esta podia ser a casa deles, dele e dela.

Miriam aproximou-se e espreitou o que ele estava a fazer.

– O que é? – perguntou.

– Uma natureza morta... para decorar objectos e bordados.

Ela inclinou-se mais, aproximando os olhos míopes do desenho.

– E gostas do que fazes? – inquiriu.

– Adoro. Neste momento ando em maré de convencionalizar tudo.

– Ah...

Miriam não se interessava por estudos convencionais, mas reconhecia que ele devia saber mais do que ela sobre tais coisas. Eram coisas de homens, coisas que não lhe diziam respeito. No entanto, havia de descobrir a razão por que ele andava, como dizia, em maré de convencionalizar tudo. Que fascínio poderia ter para ele o convencional?

– O que é que te faz gostar disto? – perguntou ela, intrigada.

Ele, como já era seu hábito, procurou justificar-se. Lutando com as palavras, tentou explicar-lhe a teoria de que a força de gravitação é o agente mais poderoso, o factor responsável pela forma das coisas, e que, se pudesse agir em completa liberdade, apareceria uma rosa geometricamente correcta nas linhas e nas proporções... e assim por diante. Isto fez desabrochar nela um certo conceito de desenho convencional que até aí lhe parecia ser pura mentira. Por fim, ele empurrou os livros para o lado.

– Posso...? – disse ele, ansioso e hesitante.

– Podes o quê?

– Mostrar-te isto... Não era minha intenção enquanto não estivesse pronto.

Paul não conseguia esconder-lhe nada do que fazia. Foi à sala e voltou com uma trouxa de linho cru. Desembrulhou-a cautelosamente e estendeu-a no chão. Era um cortinado, ou melhor, um portière, magnificamente decorado com rosas, estampadas a stencil.

– Ah, que bonito! – exclamou ela.

O tecido espraiou-se aos pés dela, com as suas maravilhosas rosas em tons rubros e caules em verde-escuro, tudo muito simples, mas com um não sei quê de perverso. Ela ajoelhou-se, deixando pender soltos os caracóis. Ele, ao vê-la assim, voluptuosamente debruçada sobre a sua obra, sentiu bater mais depressa o coração. De repente, ela ergueu os olhos para ele.

– Porque é que isto parece tão cruel? – perguntou.

– O quê?

– Parece haver neste padrão uma certa crueldade – disse ela.

– Haja ou não haja, a mim parece-me óptimo – replicou ele, dobrando o trabalho com mãos de amante. Ela levantou-se devagar, pensativa.

– Que vais fazer com isto? – perguntou ela.

– Mandá-lo para os armazéns Liberty. Fi-lo para a minha mãe... mas acho que ela prefere o dinheiro.

– Estou a ver... – disse Miriam. Havia na voz dele um travo de amargura, e ela ficou com pena. A ela, o dinheiro jamais lhe interessaria.

Paul levou o tecido novamente para a sala, e, quando voltou, atirou a Miriam um retalho mais pequeno. Era a fronha de uma almofada, com um padrão idêntico.

– Fi-la para ti.

Miriam apalpou o trabalho com mãos trémulas, em silêncio. Paul ficou embaraçado.

– Meu Deus, o pão! – gritou ele.

Tirou os pães do tabuleiro superior e bateu-lhes vigorosamente. Já estavam cozidos. Pô-los ao lado da lareira, para arrefecerem. Em seguida, foi à copa, molhou as mãos, retirou do alguidar a massa, muito branca, que ainda restava, e colocou-a dentro de uma forma de pão. Miriam continuava debruçada sobre o tecido pintado. Enquanto isso, Paul esfregava as mãos, esforçando-se por tirar os bocadinhos de massa que se lhe tinham agarrado.

– Gostas? – perguntou ele.

Ela levantou para ele os seus olhos profundos, inflamados de amor. Ele riu-se, contrafeito. Depois começou a falar do seu desenho. Falar com Miriam sobre os trabalhos que fazia era para ele fonte do mais intenso prazer. Punha toda a sua paixão, toda a violência do seu sangue, nestas conversas com ela, em que discutia e concebia as suas obras. Ela fazia-lhe desabrochar a imaginação, embora não entendesse, como nenhuma mulher entende, quando concebe uma criança no seu ventre. Mas isto para ela, sim, era viver. E para ele também.

Enquanto conversavam, uma rapariga que andaria pelos vinte e dois anos, baixa e descorada, de olhos encovados, mas olhar determinado, entrou na sala. Era uma amiga dos Morels.

– Põe-te à vontade – disse Paul.

– Não... não me demoro.

Sentou-se no cadeirão de braços, em frente de Paul e de Miriam, que estavam no sofá. Miriam afastou-se um pouco mais de Paul. A casa estava quente e cheirava a pão acabado de fazer: os pães tostadinhos, a estalar, pousados ao lado da chaminé.

– Não esperava vir encontrar-te hoje aqui, Miriam Leivers – disse Beatrice, maldosa.

– Não sei porquê! – resmungou Miriam, asperamente.

– Porque... Ora deixa lá ver os teus sapatos.

Miriam, constrangida, não se mexeu.

– Se não sabes, não sabes, e pronto – disse Beatrice, dando uma gargalhada.

Miriam tirou os pés de baixo do vestido. As suas botas tinham aquele ar indeciso e patético que evidenciava bem o quanto ela era insegura e complexada. E estavam, além disso, cobertas de lama.

– Santa Maria!... És mêmo um monte de lama! – exclamou Beatrice. – Quem te limp’as botas?

– Limpo-as eu.

– Então não deves ter mai nada que fazer – disse a outra. – Havia de ser preciso muitos homens pra me fazerem vir ‘té’qui esta noite... Mas o amor zomba da lama... não é, ‘Póstolo, meu lindo?

– Inter alia – disse ele.

– Valha-me Deus, não me digas que te vais pôr agora a vomitar línguas estrangeiras!... O qu’é que isso quer dizer, Miriam?

– «Entre outras coisas», julgo eu – disse ela, humildemente. Beatrice riu-se maliciosamente, com a ponta da língua a despontar entre os dentes.

– «Entre outras coisas», ‘Póstolo? – repetiu ela. – Queres tu dizer qu’o amor se ri das mães e dos pais e das irmãs e dos irmãos e dos amigos e das amigas, e se calhar até do próprio ser amado?

Estava a fazer-se de ingénua.

– Na verdade, o amor é um sorriso rasgado – retorquiu ele.

– Isso é qu’era bom, ‘Póstolo Morel... Vai por mim... – disse ela.

E riu-se de novo, com malícia, muito baixinho.

Miriam continuava calada, fechada sobre si mesma. Todas as amigas de Paul adoravam meter-se com ela, e ele deixava-a entregue a si própria, como se aproveitasse para se vingar.

– Ainda continuas na mesma escola? – perguntou Miriam a Beatrice.

– Continuo.

– Então ainda não te mandaram embora?

– Devem mandar na Páscoa.

– Não achas uma pouca-vergonha... mandarem-te embora só por não teres passado no exame?!

– Não sei – ripostou Beatrice, friamente.

– A Agatha diz que és tão boa professora como as outras. A mim parece-me ridículo. Porque será que não passaste?

– Cabeça dura, hem, ‘Póstolo? – disse Beatrice, secamente.

– Só lhe serve para morder – retorquiu Paul, a rir.

– Monstro! – gritou ela, e, saltando do lugar, atirou-se a ele e deu-lhe um puxão de orelhas. As mãos dela eram pequeninas e elegantes. Ele prendeu-lhe os pulsos enquanto ela se debatia. Conseguiu por fim libertar-se e, apanhando dois punhados do cabelo dele, castanho e espesso, puxou com toda a força.

– Oh, Bea – disse ele, alisando o cabelo com os dedos. – Odeio-te.

Ela riu, consolada.

– Com licença! – disse ela. – Quero sentar-me ao pé de ti.

– Antes estar sentado ao lado duma fera – disse ele, deixando no entanto espaço para a outra se sentar entre ele e Miriam.

– Olha, ficou com o cabelinho todo despenteado! – exclamou Beatrice, penteando-o com o seu próprio pente.

– E o bigodinho também! – continuou ela. E, atirando a cabeça para trás, com um trejeito, penteou-lho.

– Tens um bigodinho todo malandro, ‘Póstolo – disse ela. – Vermelho, sinal de perigo... Ainda tens daqueles cigarros?

Paul tirou a cigarreira do bolso. Beatrice olhou.

– Já não tens nenhum daqueles charros qu’a Connie te deu? – perguntou.

– Ainda devo ter um por aí...

Procurou no bolso e encontrou uma caixinha. Beatrice pegou-lhe.

– É isso, só tens um! – disse ela. – Devia ser para a Miriam. Não queres o charro da Connie, Miriam?

– Não, obrigada – replicou Miriam. – Quem é a Connie?

– Ele não te contou? – exclamou Beatrice, surpresa. – Bem, ‘Póstolo Morel, acho que não é bonito deixar uma menina tão linda às escuras.

– Não queres mesmo fumar? – perguntou Paul a Miriam.

– Sabes bem que não – respondeu ela.

– Imaginem só, eu a fumar o último cigarro da Connie – disse Beatrice, metendo o cigarro entre os dentes. Paul estendeu-lhe um fósforo aceso e ela aspirou sofisticadamente.

– Obrigadíssima, querido – disse, trocista.

Dizer estas coisas dava-lhe um prazer perverso a que não conseguia resistir.

– Que jeitinho que ele tem, não achas, Miriam? – perguntou.

– Se tem! – disse Miriam.

Paul tirou um cigarro.

– Lume, menino? – disse Beatrice, chegando o seu cigarro ao dele.

Ele inclinou-se para a frente, para acender o cigarro no dela. Ela piscou-lhe o olho. Miriam viu os olhos dele a brilharem de malícia e os seus lábios carnudos, quase sensuais, a tremerem. Ele já não estava em si, e isso para ela era insuportável. Aquele que ali estava agora não tinha nada a ver com ela, era como se ela não existisse para ele. Via-lhe o cigarro a bailar nos lábios cheios, bem vermelhos, e odiava aquelas madeixas espessas que lhe caíam livres sobre a testa.

– Meu torrãozinho de açúcar! – disse Beatrice, levantando-lhe o queixo e dando-lhe um beijo na face.

– Agora é a minha vez, Beat – disse ele.

– Isso é que não! – disse ela, com uma risadinha, fugindo para longe. – Ele é mesmo descarado, não achas, Miriam?

– Do pior! – disse Miriam. – A propósito, não te esqueceste do pão?

– Meu Deus! – gritou Paul, abrindo a porta do forno, de onde saiu um fumo azulado e um cheiro a pão queimado.

– Céus! – gritou Beatrice, correndo para junto dele. Paul ajoelhou-se diante do forno e ela espreitou-lhe por cima do ombro. – Aí está o resultado de só pensares no amor, meu lindo.

Paul, contrito, tirava os pães do forno. Um deles estava todo preto por baixo e o outro duro que nem uma pedra.

– Pobre Mater! – disse Paul.

– Agora tens de o raspar – disse Beatrice. – Traz-me o ralador de noz-moscada.

Ela compôs os pães que ainda estavam no forno, ele trouxe-lhe o ralador e ela raspou a parte queimada em cima da mesa, para um jornal. Paul abriu as portas, para eliminar o cheiro a queimado, e Beatrice continuou a raspar o pão, fumando enquanto arrancava a crosta carbonizada da pobre carcaça.

– Ai, ai, Miriam, desta vez estás bem arranjada – disse Beatrice.

– Eu! – exclamou Miriam, espantada.

– É melhor saíres antes de a mãe dele chegar... Agora é que eu percebo porque é que o Rei Alfred queimou os bolos. Agora, sim. O ‘Póstolo inda podia dizer que se tinha esquecido por causa do trabalho, se achasse que isso ia pegar. Se a velha da lenda tivesse chegado um nadinha mais cedo, teria dado cabo das orelhas da desavergonhada que provocou o esquecimento, e não das do pobre Alfred...

E riu-se, enquanto raspava o pão. Até Miriam, não se contendo, se riu também. Paul, pesaroso, pôs mais carvão na fogueira.

Ouviu-se bater o portão do jardim.

– Depressa! – gritou Beatrice, estendendo a Paul a carcaça já raspada. – Embrulha-a numa toalha húmida.

Paul correu para a copa. Beatrice soprou apressadamente as raspadelas para a fogueira e foi sentar-se com ar inocente. Annie entrou de rompante. Era uma rapariga muito esperta e sem rodeios. A luz intensa fê-la piscar os olhos.

– Cheira-me a queimado! – exclamou.

– É dos cigarros – explicou Beatrice, muito séria.

– Onde está o Paul?

Leonard entrou logo a seguir a Annie. Tinha uma cara comprida e engraçada, e uns olhos azuis muito tristes.

– Acho que se retirou para vocês se entenderem as duas – disse ele.

Depois, cumprimentou Miriam com ar penalizado, e mostrou-se suavemente sarcástico com Beatrice.

– Nada disso – disse Beatrice. – Foi sair com a número nove.

– Olha, vi mesmo agora a número cinco, que andava à procura dele – acrescentou Leonard.

– Pois é... Nós vamos ter de o dividir como o menino de Salomão – disse Beatrice.

Annie deu uma gargalhada.

– Ah, sim? – disse Leonard. – E com que bocado queres tu ficar?

– Sei lá – disse Beatrice. – As outras que escolham primeiro.

– E tu depois ficas com os restos? – disse Leonard, fazendo uma careta.

Annie estava às voltas com o forno. Miriam estava abandonada no seu canto. Paul entrou.

– Este pão está lindo, menino Paul – disse Annie.

– Então devias ter ficado a tomar conta dele – disse Paul.

– Tu é que devias ter feito aquilo que te compete – repontou Annie.

– Devia, não devia? – exclamou Beatrice.

– Mas se calhar estava com as mãos muito ocupadas... – atalhou Leonard.

– Viste-te aflita para cá chegar, não foi, Miriam? – disse Annie.

– Se vi... Mas tinha estado metida em casa toda a semana...

– E apeteceu-te mudar, hem? – insinuou Leonard, melífluo.

– Bem, não se pode passar a vida inteira dentro de casa – disse Annie, conciliadora. Beatrice vestiu o casaco e saiu com Leonard e Annie. Ia encontrar-se com o seu rapaz.

– Não te distraias com o pão, menino Paul – gritou Annie. – Boa noite, Miriam, acho que não vai chover mais.

Depois de todos saírem, Paul foi buscar o pão queimado, desembrulhou-o e olhou para ele com desalento.

– Está uma porcaria! – disse.

– Mas qual é o problema? – disse Miriam, enfadada. – Afinal são só... dois dinheiros e meio.

– Está bem... mas trata-se do pão da minha mãe, de que ela tanto se orgulha... e ela não vai gostar nada... Mas agora já não adianta preocuparmo-nos.

Levou o pão outra vez para a copa. Instalara-se uma certa distância entre ele e Miriam. Por uns momentos, Paul hesitou diante dela, a meditar, pesando o seu comportamento com Beatrice. No fundo, sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo contente. Não sabia explicar porquê, mas achava que era bem feito para Miriam. Não era agora que se ia arrepender. Miriam pensava no que ele estaria a cogitar, ali hesitante diante dela. Madeixas de cabelo espesso caíam-lhe ainda sobre a testa. E se lho puxasse para trás, para apagar as marcas do pente de Beatrice? E se lhe apertasse o corpo entre as suas mãos? Parecia tão rijo e palpitante. Se ele deixava as outras fazerem-lhe isso, porque não ela?

De súbito, Paul voltou à vida, e Miriam quase tremeu de susto quando ele arredou os cabelos da testa e avançou para ela.

– Oito e meia! – disse ele. – É melhor irmos a isto. Onde está o teu caderno de francês?

Miriam, contrariada, mostrou-lhe timidamente o caderno de exercícios de francês. Todas as semanas lhe entregava uma espécie de diário da sua vida íntima, escrito por ela em francês. Paul descobrira que era a única maneira de a convencer a fazer composições. O diário era acima de tudo uma carta de amor. Agora, ele ia lê-lo e era como se a história da sua alma fosse ser profanada por ele, no estado em que se encontrava. Paul sentou-se ao lado dela. Ela atentou na mão dele, firme e quente, percorrendo minuciosamente o seu trabalho.

Ele lia apenas as palavras em francês, ignorando a alma que encerravam. Mas, gradualmente, a mão esqueceu a tarefa e ele continuou a ler em silêncio, e em total imobilidade. Ela estremeceu.

– «Ce matin les oiseaux m’ont éveillé» – leu ele. – «II faisait encore un crépuscule. Mais la petite fenêtre de ma chambre était blême, et puis, jaûne, et tous les oiseaux du bois éclatèrent dans un chanson vif et résonnant. Toute l’aûbe tressaillit. J’avais rêvé de vous. Est-ce que vous voyez aussi 1’aube? Les oiseaux m’éveillent presque tous les matins, et toujours il y a quelque chose de terreur dans le cri des grives. II est si clair...».2

Miriam estava sentada, a tremer, envergonhada. Ele mantinha-se imóvel, tentando compreender. Apenas percebia que ela o amava, mas tinha medo do seu amor. Era mais do que ele merecia, e ele não era digno dela. Era ele que não a amava o suficiente, e não o contrário. Envergonhado, corrigiu-lhe o trabalho, anotando os erros timidamente por cima das palavras.

– Repara – disse ele, sereno. – Quando o particípio passado é conjugado com avoir, concorda com o complemento directo sempre que este o precede.

Ela inclinou-se para a frente, para ver melhor e poder compreender. Os seus caracóis finos e soltos roçaram-lhe ao de leve na cara, e ele deu um salto como se um ferro em brasa lhe tivesse tocado. Ao vê-la debruçada sobre a página, com os lábios rubros dolorosamente entreabertos, o cabelo negro caindo em finas madeixas sobre as faces afogueadas, corada como uma romã, a respiração tornou-se-lhe ofegante. Então, ela olhou para ele: os seus olhos negros punham a nu todo o seu amor, medo e desejo. E os olhos dele, negros também, feriram os dela. Pareciam dominá-los. E ela, perdendo o domínio de si própria, ali estava exposta, amedrontada, à mercê dele. Paul sabia, porém, que antes de a poder beijar, tinha de arrancar alguma coisa de si mesmo. E, então, um sopro de ódio por ela penetrou-lhe outra vez no coração, fazendo-o retomar as suas correcções.

De súbito, ele atirou com o lápis pelo ar e precipitou-se para o forno, para virar o pão. Era brusco de mais para o gosto dela. Miriam estremeceu em violento sobressalto, e a dor que sentiu era real. Até a maneira como ele se punha de cócoras diante do forno a magoava. Pressentia alguma crueldade nos seus gestos, alguma crueldade na brusquidão com que tirava os pães das formas, atirando-os ao ar e apanhando-os na queda. Se ao menos ele fosse gentil nos movimentos, sentir-se-ia mais rica e confortada no seu íntimo. Mas, assim, era só dor o que sentia.

Paul voltou para junto dela e acabou o exercício.

– Desta vez saíste-te bem – disse ele.

Ela percebeu que ele se sentia lisonjeado com o diário, mas isso não era recompensa suficiente.

– Sim senhora, de vez em quando fazes um brilharete – disse ele. – Devias escrever poesia.

Ela ergueu a cabeça, transbordante de alegria, mas logo a abanou desalentada.

– Falta-me confiança – disse ela.

– Mas devias tentar!

Mas ela abanou a cabeça.

– Vamos ler um bocado, ou achas que já é muito tarde? – perguntou ele.

– Lá tarde, é... mas podíamos ler só um bocadinho – pediu ela.


CONTINUA

Partiriam no sábado seguinte de manhã, no comboio das sete horas. Paul sugeriu a Miriam que dormisse em casa dele, pois morava muito longe, e ela já jantou de véspera em casa dele. Estavam todos tão excitados que a vinda de Miriam até foi recebida com entusiasmo. Contudo, mal ela chegou, a família tornou-se menos expansiva e mais fechada. Paul tinha descoberto um poema de Jean Ingelow que falava em Mablethorpe, e, por isso, tinha de o mostrar a Miriam. Sem ela, o seu sentimentalismo nunca teria chegado ao ponto de ler poesia para a família ouvir. Mas agora concordavam em ouvi-lo. Miriam, sentada no sofá, escutava-o enlevada. Quando ele estava presente, ela parecia sempre presa a ele e das palavras dele. Mrs. Morel, com ciúmes, sentou-se na sua cadeirinha de baloiço para o escutar. Annie e o pai escutavam-no também; Morel tinha a cabeça mais levantada de um lado, como alguém que escuta um sermão e está consciente do mesmo. Paul espreitou por cima do livro. Tinha agora a presença de quem mais gostava. E Mrs. Morel e Annie quase competiam com Miriam, sobre qual seria a ouvinte mais atenta, a preferida dele. Paul sentia-se nos píncaros.

– Mas – interrompeu Mrs. Morel – não percebo porque é que os sinos têm que tocar A Noiva de Enderbyt...?

– É uma velha melodia que os sinos costumavam tocar como aviso contra a cheia. Penso que a tal Noiva de Enderby morreu afogada numa enchente – respondeu ele. Não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer na realidade, mas nunca se teria rebaixado ao ponto de o confessar perante o seu público feminino. Elas escutavam-no e acreditavam. Ele próprio acreditava nas coisas que dizia.

– E as pessoas sabiam o significado dessa melodia? – quis saber a mãe.

– Sim... tal e qual os escoceses quando escutam As Flores da Floresta... e quando costumavam tocar os sinos em sinal de alarme em sentido contrário.

– Ah! – exclamou Annie. – Quer dizer que os sons de um sino são sempre os mesmos quando são tocados no seu sentido correcto, ou ao contrário.

– Mas – disse ele – se começares num tom grave e subires até ao agudo... lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá! – disse ele, percorrendo a escala completa, e todos o acharam muito inteligente. Ele também. Depois, aguardando um minuto, continuou a ler o poema.

– Hum! – disse Mrs. Morel, apreciativamente, quando ele terminou. – Só espero que tudo o que se tem escrito não seja assim tão triste.

– Num consig’intender porqu’é qu’houve tantos afogamentos – disse Morel. Houve uma pausa. Annie preparou-se para levantar a mesa.

– Acho Elizabeth um belo nome – disse Miriam, em voz baixa. – «A minha nora Elizabeth...»

– Concordo – disse Paul.

– Também acho – disse a mãe. – Mas não gosto de Lizzie e abomino Liza.

Nem Paul nem Miriam achavam que Lizzie ou Liza tivessem algo a ver com o assunto.

– Ah, mas «Elizabeth»! – murmurou Miriam.

– E ainda por cima, a Rainha Elizabeth adorava que a tratassem por «Grande Eliza» – disse Paul.

– E amanhã há mais! – disse Morel, não se contendo.

Mrs. Morel e Paul deram uma gargalhada.

– Aposto que nem sapatos tinha – disse Morel, continuando com a brincadeira.

– Não seja tão insolente com uma rainha – disse Annie.

– Rainhas! – exclamou Morel. – Num pensas noutra coisa senão nas rainhas? Num fazes mai nada senão viver à grande e à francesa!

Miriam levantou-se para ajudar a lavar a loiça.

– Deixa-me ser eu a lavar a loiça – disse ela.

– Não é necessário – exclamou Annie. – Vai-te sentar. É pouca loiça.

E Miriam, que não se sentia à vontade para insistir, sentou-se a ver o livro com Paul.

Paul era o chefe do grupo... para isso, o pai não prestava. E muito ele sofreu para que o baú de latão fosse descarregado em Firsby e não em Mablethorpe. E não foi também capaz de encontrar uma carruagem com lugares. Só a genica de Mrs. Morel o conseguiu.

– Aqui! – gritou ela para um homem. – Aqui!

Paul e Annie ficaram para trás envergonhadíssimos, mas perdidos de riso.

– Quanto é a viagem até Brook Cottage? – perguntou Mrs. Morel.

– Dois xelins.

– É assim tão longe?

– Ainda é um bom bocado.

– Não acredito – disse ela.

Contudo subiu para a carruagem. Iam os oito apertados numa velha carruagem da linha costeira.

– Bem vêem – disse Mrs. Morel –, são apenas três dinheiros por pessoa, mas se fosse um eléctrico...

A viagem prosseguiu. Sempre que passavam por uma casa típica, Mrs. Morel exclamava:

– É esta?... Não, agora é que é!

Estava toda a gente morta de ansiedade. A viagem prosseguiu. Houve um suspiro em uníssono.

– Estou agradecida por não ser aquela coisa horrorosa – disse Mrs. Morel. – Estava assustada.

Passou-se ainda mais algum tempo.

– Aquela mulher repelente disse que a casa ficava a dez minutos do mar...! – exclamou Mrs. Morel.

– Pra ela uma hora deve ser um minuto – reclamou Morel.

Todos o mandaram calar.

– Será que nunca mais chegamos? – exclamou Mrs. Morel, muito alto.

– Não grite assim, mãe – disse Annie. – O que é que ele irá pensar?

Mrs. Morel olhou de um modo esquisito para o condutor, e disse:

– Não sei! Mas, pelo aspecto, penso que não pensará nada de especial.

Finalmente, desceram perto de uma casa isolada, sobre o canal que passava na estrada principal. Houve grande alvoroço quando descobriram que tinham de atravessar uma pequena ponte para chegarem ao jardim da casa. Adoraram a casa, que ficava isolada, com o mar de um lado e, do outro, uma imensa extensão de terra plana que se estendia até ao céu, e onde se distinguia o branco da cevada, o amarelo da aveia, o vermelho do trigo e o verde dos nabos.

Paul registava as despesas e ele e a mãe governavam a casa. As despesas globais, incluindo o alojamento e a alimentação ascendiam a dezasseis xelins por pessoa e por semana. De manhã, Paul e Leonard iam tomar banho ao mar. Morel saía bastante cedo para ir dar um passeio.

– Paul – chamou a mãe do quarto. – Come uma fatia de pão com manteiga.

– Está bem – respondeu ele.

Quando regressou, a mãe estava sentada à cabeceira da mesa. A dona da casa era jovem. O marido era cego e ela cuidava da roupa. Assim, Mrs. Morel lavava a loiça na cozinha e fazia as camas.

– Mas a mãe prometeu que ia fazer umas férias a sério – disse Paul – e agora está a trabalhar.

– Trabalho? – exclamou ela. – De que é que estás a falar?

Paul adorava ir passear com ela pelos campos, até à aldeia ou até ao mar. Ela tinha medo de atravessar pontes de madeira e ele acusava-a de se portar como um bebé. Era apegado à mãe como se fosse o seu marido.

Miriam raramente andava com ele – excepto, talvez, quando iam todos ouvir os Coons. Os Coons eram insuportavelmente estúpidos para Miriam e, por isso, eram-no também para Paul, que pregava sermões presunçosos a Annie sobre a perda de tempo que era irem ouvi-los. Todavia, também ele sabia todas as suas canções de cor e as cantava desbragadamente pelas ruas. E, quando reparava que os estava a ouvir, a estupidez da situação agradava-lhe imenso. Contudo dizia para Annie:

– Que porcaria!... Não há um pingo de inteligência naquilo que cantam. Ninguém que tenha mais miolos que um gafanhoto consegue aguentá-los. – E dizia a Miriam, com algum desdém, onde estavam Annie e os outros:

– Suponho que foram aos Coons.

Era ridículo ouvir Miriam trautear as canções dos Coons. Tinha um queixo talhado a direito que descia na perpendicular desde o lábio inferior até à curvatura do maxilar. Quando ela cantava, Paul achava-a parecida com um anjo triste de Botticelli, mesmo quando entoava:


«Vem pela Estrada do Amor

Vem comigo passear, falar comigo...»


Miriam só tinha Paul todo para ela quando ele desenhava, ou à noite, quando todos os outros estavam a ouvir os Coons. Ele falava-lhe então interminavelmente do seu gosto pelos planos horizontais: como é que os grandes níveis do céu e da terra significavam para ele a eternidade da vontade, tal como os arcos normandos, arredondados e em série, significavam um salto em frente da alma humana voluntariosa, não se sabe para onde; pelo contrário, as linhas perpendiculares e o arco gótico apontavam para o céu e afloravam o êxtase, perdendo-se no divino. Ele era normando, Miriam era gótica. Submissa, ela concordava com tudo o que ele dizia.

Certa tarde, ele e ela foram passear pelo extenso areal que conduzia a Theddlethorpe. As alongadas vagas quebravam-se e elevavam-se em silvos agudos de espuma ao longo da costa. A tarde estava quente e eles completamente sozinhos na imensidão da areia, a sós com o barulho do mar. Paul adorava ouvir o mar a ressoar na areia. Adorava sentir-se entre o som do mar e o silêncio do areal. Miriam estava com ele. Tudo se tornava mais intenso. Já tinha anoitecido quando regressaram. O regresso a casa fazia-se através de uma passagem nas dunas, e depois através de uma estrada pejada de ervas, rasgada entre dois diques. A aldeia estava cinzenta e calma. Por detrás das dunas soava o murmúrio do mar. Paul e Miriam caminhavam em silêncio. De repente, ele estacou. O seu sangue parecia ter-se incendiado e ele mal podia respirar. Uma enorme lua alaranjada observava-os do alto das dunas. Ele continuava parado, olhando a lua.

– Oh! – exclamou Miriam, quando a viu também.

Ele estava ali, petrificado, olhando a lua dilatada e rubra, sozinha na escuridão imensa. O seu coração batia forte e tinha os músculos dos braços contraídos.

– O que foi? – murmurou ela, esperando por ele.

Ele voltou-se e fitou-a. Ela estava ao seu lado, para sempre na escuridão. A sua face, encoberta pela sombra do chapéu, olhava-o sem que ele a visse. E ela meditava. Estava um pouco receosa... profundamente emocionada e imbuída de religiosidade. Este era o seu melhor estado de alma. Ele sentia-se impotente face a esta situação. O sangue parecia concentrar-se como uma fogueira no seu peito, mas ele não lhe conseguia transmitir o sentimento. Pareciam disparar relâmpagos do seu sangue, mas, de algum modo, ela ignorava-os. Ela esperava vê-lo atingir um estado de graça. Ainda à espera, mas meio consciente da paixão que o possuía, Miriam fitou-o, preocupada.

– O que se passa? – murmurou novamente.

– É a Lua – respondeu ele, franzindo a testa.

– Sim – concordou ela. – É maravilhosa, não é? – Ela estava intrigada. A crise tinha passado.

Ele próprio não sabia o que lhe tinha acontecido. Era ainda tão jovem e a sua intimidade tão abstracta que não se apercebeu de que desejava esmagá-la contra o peito para aliviar a dor que o trespassava. Tinha medo dela. Talvez o facto de a desejar como um homem deseja uma mulher tivesse permanecido oculto dentro dele como uma humilhação. Quando ela fugia desses pensamentos, torturando-se em extrema agitação, ele recolhia-se até ao mais recôndito da alma. E, neste momento, esta «pureza» inibia o seu primeiro beijo de amor. Era como se ela mal pudesse suportar o choque do amor físico, ou apenas um beijo apaixonado, deixando-o demasiado reprimido e sensibilizado para lho dar.

Enquanto caminhavam ao longo da negra lagoa, Paul contemplava a Lua e mantinha-se em silêncio. Miriam caminhava a seu lado devagar. Ele sentia que a odiava, pois ela parecia, de certa forma, levá-lo a autodesprezar-se. Olhando em frente, descortinou uma luz na escuridão; era a janela iluminada da sua casa.

Adorava pensar na mãe e no resto das pessoas, todos alegres.

– Bem, já todos chegaram há bastante tempo – disse a mãe quando eles entraram.

– E o que é que isso importa? – exclamou ele, irritado. Posso ir passear quando me apetecer, não posso?

– Pensei que quisesses jantar com o resto do grupo – disse Mrs. Morel.

– Tenho de agradar a mim próprio – retorquiu ele. – Não é tarde e faço o que me apetece.

– Muito bem – disse a sua mãe, sarcasticamente. – Então faz o que te apetecer!

E nessa noite não falou mais com ele. Paul fingiu não notar nem estar preocupado com o assunto, e sentou-se a ler. Miriam lia também, tentando alienar-se. Mrs. Morel detestava-a por ela pôr o filho naquele estado. Via o filho irritadiço, presumido e melancólico, e culpava Miriam.

Annie e os amigos também se voltavam contra Miriam. O único amigo de Miriam era Paul. Mas ela não se importava, pois desprezava a trivialidade de todas essas pessoas.

E Paul detestava-a, pois ela perturbava, por assim dizer, o seu bem-estar e a sua naturalidade, torturando-o com sentimentos de humilhação.

1 «Os últimos representantes de uma raça extinta.» (N. da T.)


VIII

ZANGAS DE AMOR

ARTHUR terminou o estágio e arranjou emprego na central eléctrica da mina de Minton. Ganhava muito pouco, mas tinha possibilidades de progredir. Era, porém, rebelde e impaciente. Não bebia nem tinha o vício do jogo, mas envolvia-se constantemente em rixas devido às suas reacções intempestivas. Ia caçar coelhos para a floresta, qual caçador furtivo, e passava a noite em Nottingham em vez de voltar para casa, ou então ia nadar para o canal de Bestwood e falhava os cálculos do mergulho, ficando com o peito ferido, das rochas naturais e das latas que andavam a boiar à tona.

Tinha faltado ao emprego meses a fio, e uma noite não voltou para casa.

– Sabe por onde anda o Arthur? – perguntou Paul ao pequeno-almoço.

– Não – respondeu a mãe.

– É mesmo maluco – disse Paul. – Eu já nem ligaria, se ele ao menos fizesse mesmo alguma coisa. Mas não... não consegue resistir a um jogo de cartas, ou então vai levar alguma rapariga a casa depois da patinagem, com todo o decoro... e acaba por não voltar para casa. É maluco.

– Não vejo porque seria melhor se ele fizesse mesmo alguma coisa que nos envergonhasse – disse Mrs. Morel.

– Bem... eu, pelo meu lado, passaria a respeitá-lo mais – disse Paul.

– Duvido muito – respondeu a mãe secamente.

Continuaram a tomar o pequeno-almoço.

– A mãe gosta desvairadamente dele, não gosta? – perguntou Paul.

– Porque fazes essa pergunta?

– Dizem que as mães gostam sempre mais do filho mais novo.

– Talvez... mas eu não. Não... ele irrita-me.

– E gostava que ele se portasse melhor?

– Gostava que ele mostrasse algum bom senso masculino.

Paul estava ferido e irritado. Também ele irritava a mãe frequentemente. E ela ficava triste, pois via os melhores anos a fugirem-lhe.

Estavam a acabar o pequeno-almoço, quando o carteiro lhes entregou uma carta vinda de Derby. Mrs. Morel esforçou-se para ler o endereço.

– Dê cá isso, sua pitosga! – exclamou o filho, tirando-lhe a carta da mão. Ela assustou-se e quase lhe dava uma bofetada.

– É do seu filho Arthur – informou ele.

– Mas o que vem a ser isto? – exclamou Mrs. Morel.

– «Querida mãe» – leu Paul. – «Não sei o que me deu. Quero que me venha buscar. Ontem, em vez de ir trabalhar, vim alistar-me no exército com o Jack Brendon. Ele disse que estava farto de passar a vida sentado num escritório, e eu, idiota, como já sabe que sou, resolvi vir com ele.

«Já recebi o dinheiro referente ao recrutamento, mas se me vier buscar, talvez eles me deixem ir consigo. Foi uma loucura ter feito o que fiz. Não quero ficar no exército. Querida mãe, sei que não passo de um estorvo para si, mas, se me tirar desta situação, prometo que serei mais consciente e ponderado...»

Mrs. Morel sentou-se na cadeira de baloiço.

– Vejam só! – exclamou. – Ele que assente por uns tempos!

– Também acho – disse Paul. – Ele que assente!

Fez-se silêncio. A mãe estava sentada com as mãos cruzadas sobre o avental, o rosto imóvel, pensativa.

– Devo estar doente – exclamou de repente. – Doente!

– Então! – disse Paul, franzindo a testa – Não quero que se preocupe com isto, está a ouvir?

– Então queres que encare isto como uma bênção? – disse ela, de repente, virando-se para o filho.

– Agora não vai tornar isto numa tragédia, pois não? – retorquiu ele.

– Ele é maluco!... Maluquinho de todo! – gritou Mrs. Morel.

– Vai ficar todo bonito com a farda – disse Paul, para espicaçar a mãe.

Ela virou-se a ele, furiosa.

– Ah, vai? – gritou ela. – Mas não para mim!

– Devia ir para um regimento de cavalaria... Ele divertia-se à grande e nós passávamos a ser chiques.

– Chiques!... Chiques!... Muito chique, não haja dúvida!... Um soldado raso!

– Ora – disse Paul. – E o que sou eu, senão um reles escriturário?

– O que é muito mais, meu filho! – gritou a mãe, picada.

– Essa agora!

– De qualquer forma, és um homem e não uma coisa enfiada num casaco vermelho.

– Não me importava de andar enfiado num casaco vermelho... ou azul-escuro, que me ficaria melhor... se eles não me dessem muitas ordens.

Mas a mãe já não o ouvia.

– Agora que ele estava a progredir, ou poderia vir a progredir no emprego... um aborrecimento passageiro e aí vai ele... dar cabo da vida toda. Que vantagens é que tu pensas que isto lhe pode trazer?

– Vai pô-lo todo afinado! – disse Paul.

– Todo afinado!... E o que tem ele para afinar? Um soldado!... Um soldado raso!!... Nada mais do que um corpo que se mexe quando lhe dão ordens! Grande coisa!

– Não percebo porque é que isso a aborrece tanto – disse Paul.

– Não, talvez não percebas. Mas percebo eu. – E recostou-se na cadeira, de queixo apoiado numa das mãos e segurando o cotovelo com a outra, a transbordar de raiva e desilusão.

– Está a pensar ir a Derby? – perguntou Paul.

– Estou, pois.

– Não faça isso.

– Quero ver com os meus próprios olhos.

– Mas por que diabo é que não o deixa assentar? É isso mesmo que ele quer.

– Claro – exclamou a mãe. – Tu sabes muito bem o que ele quer...

Preparou-se e apanhou o primeiro comboio para Derby, onde se encontrou com o filho e com o sargento. Todavia, os seus esforços foram infrutíferos.

Morel estava a almoçar, quando ela disse de repente:

– Tenho de ir hoje a Derby.

O mineiro levantou os olhos, muito brancos numa face toda enfarruscada.

– Ah, vais, cachopa? E o que te leva lá?

– O menino Arthur!

– Qu’aprontou ele desta vez?

– Alistou-se no exército, só isso.

Morel pousou a faca e recostou-se na cadeira.

– Não – disse ele. – Num pode ser!

– E amanhã vai para Aldershot.

– Bom – exclamou o mineiro –, iss’é qu’é já uma grand’alhada.

Morel reflectiu por um momento, disse «Hum!» e continuou a jantar. Subitamente, a face contraiu-se-lhe de raiva.

– Espero qu’ele nunca mais volte a pôr as patas nesta casa – disse ele.

– Credo! – exclamou Mrs. Morel. – Isso é lá coisa que se diga!

– É o qu’eu penso – repetiu Morel. – O doidivanas pisga-se pa ser soldado... Atão é porque já tá na hora de fazer pela vida... Comigo na conta mais.

– Falar é fácil... – disse Mrs. Morel.

Nessa noite, Morel quase sentiu vergonha de ir para a taberna.

– Então, sempre lá foi? – perguntou Paul à mãe quando chegou a casa.

– Fui.

– E viu-o?

– Vi.

– E o que disse ele?

– Ficou lavado em lágrimas quando me vim embora.

– Hum!

– E eu fiz o mesmo, portanto não precisas de fazer «Hum!».

Mrs. Morel preocupava-se com o filho, pois sabia que ele não ia gostar de estar no exército. Como de facto não gostou. A disciplina era uma coisa que ele não conseguia tolerar.

– Mas o doutor disse que ele era bem proporcionado... quase na proporção exacta, e as suas medidas eram perfeitas – disse Mrs. Morel a Paul, cheia de orgulho. – Como tu sabes, ele é bem-parecido.

– Ele é muito bem-parecido. Mas não arranja raparigas como o William, pois não?

– Não... Tem uma personalidade diferente. Sai muito ao pai: é um irresponsável.

Para consolar a mãe, Paul passou nessa altura a ir muito menos a Willey Farm. No Outono, quando se realizou no castelo a habitual exposição dos trabalhos dos alunos da escola de belas-artes, ele apresentou dois trabalhos: uma paisagem a aguarela e uma natureza morta a óleo, que obtiveram dois primeiros prémios, o que o deixou deveras emocionado.

– Mãe, que lhe parece, acha que ganhei algum prémio com as minhas pinturas? – perguntou uma noite, ao chegar a casa. Pelos seus olhos, a mãe viu que ele estava feliz, e a sua face resplandeceu.

– Como queres que eu saiba, meu filho?!

– Um primeiro prémio por aquelas jarras de vidro...

– Ena!

– E outro primeiro prémio por aquele esboço que fiz em Willey Farm.

– Um primeiro prémio para cada coisa?

– Sim, senhora.

– Hum!

Mrs. Morel parecia envolvida numa aura brilhante, cor-de-rosa, mas não disse nada.

– É bem bom, não é, mãe? – disse ele.

– É, sim.

– Oh, mãe, porque não me põe nos píncaros?

Ela riu-se.

– É que depois tinha de ter o trabalho de te puxar cá para baixo outra vez.

No entanto, toda ela vibrava de alegria. William tinha-lhe trazido sempre os seus troféus desportivos. Ela ainda os guardava, e não perdoava a morte dele. Arthur era bonito e era pelo menos um belo exemplar masculino, terno e generoso, e provavelmente o futuro acabaria por lhe sorrir. Mas Paul iria destacar-se. Ela tinha uma grande fé no filho, e mais ainda por ele não ter consciência das suas capacidades. Ele tinha tanto para dar, e a vida parecia ter muito para lhe dar também. Ela iria sentir-se realizada através do filho. A sua luta não tinha sido em vão.

Durante o período da exposição, Mrs. Morel foi várias vezes ao castelo, sem que Paul a visse. Vagueava pelo longo salão, apreciando as restantes pinturas. Sim, eram muito boas. Mas faltava-lhes qualquer coisa para que a sua satisfação fosse completa. Observava-as longamente, tentando encontrar nelas alguma falha. De repente, algo lhe fazia disparar o coração. Aquela era a pintura de Paul. Conhecia-a como se a tivesse gravada no coração.

«Nome: Paul Morel. Primeiro Prémio.»

Parecia tão estranha, ali exposta ao público, nas paredes da galeria do castelo, onde já tinha visitado tantas exposições de pintura durante toda a sua vida. E, depois, olhou em volta, tentando descobrir se alguém a tinha tornado a ver em frente ao mesmo quadro.

Não cabia em si de orgulho, e quando se cruzava com senhoras bem vestidas, pensava para consigo:

«Pois sim, vocês estão muito bem vestidas... mas duvido que os vossos filhos consigam arrebatar dois primeiros prémios na exposição no castelo.»

E seguia o seu caminho, sentindo-se mais orgulhosa do que qualquer outra mãe de Nottingham. E Paul sentia que tinha feito algo por ela, mesmo não passando de uma insignificância. Todo o seu trabalho pertencia à sua mãe.

Um dia, encontrou Miriam quando se dirigia para o castelo. Tinha-a visto no domingo e não esperava encontrá-la na cidade. Vinha com ela uma mulher loura, espampanante, de expressão carregada e porte provocador. Era estranho como Miriam, tão meditativa e reverente, parecia insignificante ao lado desta mulher de ombros deslumbrantes. Miriam fitou Paul demoradamente. O olhar dele estava pregado na desconhecida, que o ignorava. Miriam via claramente o seu instinto masculino a erguer-se altaneiro.

– Olá – disse ele. – Não me disseste que vinhas à cidade.

– Pois não – retorquiu Miriam, em ar de desculpa. Fui à Feira do Gado com o meu pai.

Paul olhou para a companheira de Miriam.

– Já te tinha falado de Mrs. Dawes – disse Miriam, com a voz estrangulada. Estava nervosa. – Clara, já conheces o Paul?

– Penso que já o vi antes – respondeu Mrs. Dawes, indiferente, enquanto o cumprimentava. Tinha uns olhos cinzento-esverdeados, displicentes, a pele era mel claro, e a boca carnuda, com o lábio superior levemente levantado, não se percebendo se de desprezo por todos os homens ou desejo de ser beijada, sendo a primeira hipótese a mais provável. Tinha a cabeça inclinada para trás, como se ela se afastasse por desdém, talvez também dos homens. Usava um chapéu enorme e deselegante, de pele escura de castor, e um vestido simples levemente afectado, que lhe conferia as linhas de um saco. Obviamente era pobre e tinha falta de gosto. Miriam andava sempre bonita.

– Onde é que me viste? – perguntou Paul à outra mulher.

Ela olhou-o como se não tivesse qualquer dúvida em responder.

E depois:

– Vi-te a passear com a Louie Travers – respondeu ela.

Louie era uma das raparigas da secção Espiral da fábrica de Mr. Jordan.

– E como é que tu a conheces? – perguntou ele.

Ela não respondeu. Paul virou-se então para Miriam.

– Para onde vais agora? – perguntou.

– Para o castelo.

– A que horas é o comboio de regresso?

– Vou regressar com o meu pai. Gostava que também viesses connosco. A que horas estás livre?

– Já sabes que nunca antes das oito, que diabo!

E as duas mulheres seguiram o seu caminho.

Paul lembrou-se de que Clara Dawes era filha de um velho amigo de Mrs. Leivers. Miriam tinha-a procurado, pois ela tinha sido em tempos supervisora da secção Espiral da Jordan, e porque o marido, um tal Baxter Dawes que era ferreiro, trabalhava para a fábrica, fazendo entre outras coisas os ferros para as próteses ortopédicas. Miriam pensou que através dela pudesse contactar directamente com a fábrica, podendo assim assegurar o emprego de Paul. Mas Mrs. Dawes estava separada do marido, e agora dedicava-se à defesa dos direitos das mulheres. Era supostamente inteligente, e isso interessava a Paul.

Paul conhecia Baxter Dawes e detestava-o. O ferreiro tinha cerca de trinta e um ou trinta e dois anos. Paul encontrava-o de vez em quando: era um homem alto e bem constituído, bem-parecido, para quem dava gosto olhar. Havia uma curiosa semelhança entre ele e a mulher. Ele tinha a mesma pele clara, de tom de dourado. O seu cabelo era castanho-claro e o bigode dourado. E exalava um desprezo semelhante, pelo porte e pela conduta. Nisto surgiu a diferença. Os seus olhos castanhos, muito escuros e astuciosos, eram imorais. Eram levemente salientes e as pálpebras sobrepunham-se de uma forma tal que lhe suscitava o ódio. A boca era também sensual. A postura evidenciava um desprezo cobarde, como se estivesse preparado para derrubar o primeiro que o censurasse... talvez porque ele próprio se censurava.

O homem odiou Paul desde o primeiro dia que o viu. Ao captar o olhar deliberado e impessoal de um artista no rosto do rapaz, enfureceu-se.

– Pa’onde é que tás’olhar? – disse ele desdenhosamente, amedrontando-o.

O rapaz desviou o olhar. O ferreiro costumava encostar-se ao balcão a conversar com Mr. Pappleworth, e a sua conversa era sempre porca e depravada. Quando sentiu novamente os olhos frios e críticos do jovem pousados nele, o ferreiro virou-se, como se tivesse sido mordido por algum bicho.

– Pa’onde é que tás’olhar, ó parvalhão? – rosnou ele.

O rapaz encolheu os ombros.

– Olha que tu...! – berrou Dawes.

– Deixa-o em paz – disse Mr. Pappleworth, naquela sua voz insinuante que parecia dizer «ele é um pobre diabo, mas não faz por mal».

Desde essa altura, Paul passou a olhar para o homem, sempre que o encontrava, com o mesmo olhar crítico e curioso, desviando o olhar antes de encontrar os olhos do ferreiro, o que deixava Dawes fora de si. E, assim, odiavam-se em silêncio.

Clara Dawes não tinha filhos. Quando deixou o marido, desfizeram a casa e ela foi viver com a mãe, enquanto Dawes passou a viver em casa da irmã. Na mesma casa vivia também uma cunhada, e Paul veio a descobrir que a tal rapariga, a Louie Travers, era agora a amante de Dawes. Era uma atrevida bonitona e insolente, que escarnecia do rapaz, mas que se empolgava toda se ele a acompanhava à estação.

A vez seguinte em que Paul foi visitar Miriam era um sábado à tarde. Ela tinha a lareira acesa na sala de visitas e estava à espera dele. Os outros tinham saído, com excepção dos pais e dos irmãos mais novos, pelo que tinham a sala de visitas só para eles. A sala era comprida, de tectos baixos e aconchegada. Na parede havia três pequenos quadros de Paul e o seu retrato estava pousado ao canto da lareira. Em cima da mesa e em cima do piano de pau-rosa, estavam jarras com folhas coloridas. Ele sentou-se na poltrona e ela ajoelhou-se no tapete aos seus pés. A luz da fogueira reflectia-se na sua cara bonita e pensativa.

– O que achaste de Mrs. Dawes? – perguntou Miriam, num tom calmo.

– Não me pareceu muito amistosa – respondeu ele.

– Lá isso não, mas não a achas elegante?

– Sim... no que diz respeito à sua altura. Mas não tem um pingo de bom gosto. Gosto de algumas coisas nela. Ela é sempre assim antipática?

– Penso que não. Penso que não anda satisfeita.

– Com o quê?

– Bem, como é que te sentirias a viver com um homem daqueles?

– Então, porque é que ela casou com ele, sabendo que o ia detestar tão rapidamente?

– Sim, porque é que ela casou com ele? – repetiu Miriam, com aspereza.

– E eu que pensei que ela fosse suficientemente forte para medir forças com ele – disse Paul.

Miriam baixou a cabeça.

– Ah, sim? – perguntou, satiricamente. E o que é que te leva a pensar isso?

– Basta olhar para a boca dela... nascida para a paixão... e a maneira como estica a garganta.

E atirou a cabeça para trás imitando o jeito provocador de Clara.

Miriam baixou ainda mais a cabeça.

– Sim – disse ela.

Fez-se silêncio durante alguns momentos, e Paul pensava em Clara.

– E o que é que te agradou nela? – continuou Miriam.

– Não sei... a pele e a textura da... da... não sei... emana dela uma certa violência... Aprecio-a apenas como artista.

– Pois.

Paul não entendia por que razão Miriam estava ali sentada no chão, meditando de uma forma tão estranha, e isso irritava-o.

– Não gostas mesmo dela, pois não? – perguntou ele à rapariga.

Ela olhou-o com os seus enormes olhos escuros, encantadores.

– Gosto – respondeu.

– Não gostas, não... não podes gostar... muito.

– E pode saber-se porquê? – perguntou ela calmamente.

– Oh, não sei... Talvez gostes dela porque ela odeia os homens.

Esta era provavelmente uma das razões pelas quais ele gostava de Mrs. Dawes, mas isso não lhe tinha ocorrido. Calaram-se. Ele franziu a testa, algo que já se estava a tornar habitual, particularmente quando estava com Miriam. Ela ansiava fazer-lhe desaparecer as rugas da testa, mas tinha medo. Parecia haver um outro homem dentro de Paul Morel, mas que não era o seu.

Algumas bagas vermelhas sobressaíam entre as folhas do vaso. Ele esticou-se e arrancou um raminho.

– Porque será que, se colocares bagas vermelhas no cabelo – disse ele – pareces uma bruxa ou uma sacerdotisa, mas nunca uma libertina.

Ela rasgou um sorriso doloroso, despojado.

– Não sei – disse.

As suas mãos fortes e quentes brincavam alegremente com as bagas.

– Porque não te ris? – disse ele. – Nunca sorris abertamente. Apenas te ris quando algo é estranho ou incongruente, e até isso parece magoar-te.

Miriam baixou a cabeça como se ele a estivesse a admoestar.

– Gostaria muito que sorrisses apenas um minuto para mim... apenas por um minuto. Sinto que isso libertaria alguma coisa dentro de ti.

– Mas... – e olhou-o com uns olhos assustados e lutadores. – ... Mas eu rio-me... sim, eu rio-me.

– Mentira, nunca te ris. Só se for por algo de muito intenso. Sempre que te ris, apetece-me chorar; parece que o teu riso transmite sofrimento. Oh, só de pensar nisso, fazes com que eu enrugue a minha alma.

– Não é minha intenção fazê-lo – disse.

– Eu sou sempre tão espiritual contigo – exclamou ele.

Ela manteve-se em silêncio, a pensar: «Então porque não és de outra forma?» E ele olhou para o seu corpo dobrado, em meditação, e pareceu dividi-lo em dois.

– Estamos no Outono – disse ele – e todas as pessoas libertam o seu espírito.

Caiu novamente o silêncio. Este estranho desentendimento entre eles despedaçava a alma de Miriam. Ele parecia tão bonito, com os seus olhos escuros e um olhar tão profundo como a nascente mais funda.

– Tornas-me tão espiritual – lamentou-se ele. – E eu não quero ser espiritual.

Ela retirou o dedo da boca com um pequeno estalido, e olhou-o em tom provocador. Mas a sua alma continuava nua nos seus olhos grandes e castanhos e o mesmo desejo ardente dominava-a. Se isso fosse possível, ele tê-la-ia beijado na pureza da abstracção. Mas ele não a podia beijar assim... e ela não parecia dar-lhe qualquer outra alternativa. E, no entanto, desejava-o.

Paul sorriu.

– Bem – disse ele –, vamos lá estudar francês... vamos ler Verlaine.

– Sim – disse ela num tom profundo, quase de resignação. Levantou-se e foi buscar os livros. As suas mãos avermelhadas e nervosas metiam dó; como ele desejava confortá-la e beijá-la!! Mas não se atrevia... ou não podia. Algo o impedia. Os seus beijos eram para ela reprováveis. Continuaram a ler até às dez horas, e depois foram para a cozinha; Paul mostrava-se de novo alegre e natural para com os pais de Miriam. Os seus olhos eram escuros e brilhantes e envolvia-o uma aura de fascinação.

Quando foi buscar a bicicleta ao celeiro descobriu que o pneu dianteiro estava furado.

– Vai-me buscar uma tigela com uma pinguinha de água – pediu ele a Miriam. – Vou chegar tarde e já sei que vou ouvir um sermão.

Acendeu a lanterna à prova do vento, despiu o casaco, virou a bicicleta ao contrário e meteu mãos à obra rapidamente. Miriam trouxe-lhe a tigela com água e ficou junto dele, observando-o. Adorava ver as mãos dele em acção. Era elegante e forte, e até os seus movimentos mais rápidos eram feitos com desembaraço. Ocupado como estava, parecia tê-la esquecido. Mas ela amava-o de uma forma absorvente, desejava poder passar as mãos ao longo do seu corpo. Sempre desejara abraçá-lo, desde que ele não a quisesse.

– Já está – disse Paul, levantando-se de repente. – Mais rápido não podia ser!

– Lá isso é verdade! – concordou ela, sorrindo.

Paul endireitou-se. Estava de costas para Miriam. Ela colocou as mãos nas ancas dele, fazendo-as deslizar rapidamente ao longo das pernas.

– És tão elegante! – disse ela.

Ele sorriu. Detestava o tom da voz dela, mas o sangue incendiou-se-lhe ao sentir o contacto das mãos. Ela, pelo contrário, parecia nem dar por ele. Era como se ele fosse um objecto, como se não se apercebesse do homem que ali estava.

Paul acendeu a luz da bicicleta, experimentou-a, bateu com ela no chão do celeiro para verificar o som dos pneus, e apertou o casaco.

– Tudo em ordem! – disse ele.

Ela experimentou os travões, pois sabia que estavam avariados.

– Já os arranjaste? – perguntou ela.

– Não!

– E porque não?

– O travão traseiro funciona mais ou menos.

– Mas não é seguro.

– Posso travar com o pé.

– Era melhor que os tivesses arranjado – murmurou ela.

– Não te preocupes... Amanhã vem tomar chá a minha casa e traz o Edgar.

– A sério?

– A sério... Por volta das quatro... Vou ter convosco.

– Combinado!

Ela estava feliz. Atravessaram o pátio às escuras até ao portão. Olhando em frente, Paul viu as cabeças de Mr. e Mrs. Leivers atrás da vidraça sem cortinas da cozinha, iluminadas pelo fulgor da lareira. O ambiente parecia muito aconchegado. À sua frente, a estrada ladeada de pinheiros abria-se escura.

– Até amanhã – disse ele, montando na bicicleta.

– Vais ter cuidado, não vais? – recomendou ela, como quem pede.

– Vou.

A voz dele soou já da escuridão. Ela deixou-se ficar mais uns instantes a ver a lanterna afastar-se e entrar na noite. Depois, voltou lentamente para casa. Orion elevava-se por cima da floresta, seguida do seu cão cintilante, meio apagado. Fora essa luz, o mundo estava mergulhado na mais densa escuridão e no silêncio, quebrado apenas pelo resfolegar do gado nos estábulos. E ela rezou com devoção pela segurança dele nessa noite. Quando ele a deixava, ficava sempre num estado de extrema ansiedade, imaginando se ele teria chegado bem a casa.

Paul deixava a bicicleta embalar pelas encostas abaixo. As estradas eram escorregadias e ele não podia meter travões. Era um prazer quando a bicicleta se precipitava pelo declive mais íngreme da colina. «Cá vou eu!», dizia ele. Era arriscado por causa da curva completamente às cegas à chegada ao vale, e das carroças dos cervejeiros com os carroceiros bêbados, a dormir. A bicicleta parecia desintegrar-se debaixo dele e Paul adorava a sensação. O descuido é a vingança de um homem sobre a mulher. Sentindo que não é devidamente apreciado, arrisca a sua própria destruição, para que ela sinta a sua falta.

Ao passar veloz pelo lago, as estrelas reflectidas na água pareciam saltar da escuridão como gafanhotos prateados. Depois surgia a longa subida até casa.

– Olha, mãe! – disse ele, atirando as bagas e as folhas para cima da mesa.

– Hum! – fez ela, olhando para a mesa e desviando o olhar. Como sempre, estava sozinha, sentada a ler.

– Não são bonitas?

– São.

Ele sabia que a mãe estava aborrecida. Passados alguns minutos disse:

– O Edgar e a Miriam vêm cá tomar chá amanhã.

A mãe não respondeu.

– Não se importa?

Ela continuou sem responder.

– Então importa-se? – perguntou ele.

– Sabes bem se me importo ou não.

– Não vejo porque se há-de importar... eu como lá tantas vezes...

– Pois comes.

– Então porque lhes recusa um chá?

– A quem é que eu recuso um chá?

– Porque é que a mãe é sempre tão difícil?

– Pronto, não digas mais nada! Convidaste-a para o chá, e isso já é o suficiente. Ela não falta.

Paul ficou muito aborrecido com a mãe. Sabia que ela não gostava de Miriam. Atirou com as botas e foi deitar-se.

Paul foi abrir a porta aos amigos no dia seguinte. Estava feliz de os ver chegar. Vieram por volta das quatro horas. Tudo estava sereno e calmo para domingo à tarde. Mrs. Morel estava sentada, com o seu vestido preto e o avental branco, mas levantou-se para receber as visitas. Foi cordial com Edgar, mas fria e muito esquiva com Miriam. Todavia, Paul achava que a rapariga estava bem bonita no seu vestido castanho de caxemira.

Ajudou a mãe a preparar o chá. Miriam ter-se-ia oferecido de agrado para ajudar, mas tinha receio. Paul tinha muito orgulho da sua casa. Havia nela uma certa distinção, pensava ele. As cadeiras eram simples, de madeira, e o sofá já velho. Mas o tapete e as almofadas eram aconchegantes; os quadros eram gravuras de bom gosto; a simplicidade dominava e havia muitos livros. Nem ele nem Miriam se envergonhavam das casas que tinham, pois eram tudo aquilo que deviam ser, e ainda acolhedoras. Então na mesa tinha grande orgulho; o serviço de chá era bonito e a toalha fina; pouco importava que as colheres não fossem de prata e nem o cabo das facas de marfim; tudo estava bonito. Mrs. Morel tinha cuidado maravilhosamente de tudo enquanto os filhos cresceram. Assim, nada se encontrava fora do lugar.

Miriam falou um pouco de livros, pois era um assunto que dominava bem. Mas Mrs. Morel não se mostrou interessada, virando-se rapidamente para Edgar.

A princípio, quando Edgar e Miriam iam à igreja, sentavam-se no banco de Mrs. Morel. Morel nunca lá ia, pois preferia a taberna. Mrs. Morel, arvorando-se em chefe da família, sentava-se numa extremidade do banco e Paul na outra extremidade; a princípio, Miriam sentava-se ao lado dele. A capela lembrava a Paul a sua casa. Era um lugar bonito, com bancos escuros e pilares estreitos e elegantes, e com muitas, muitas flores. As mesmas pessoas sentavam-se sempre nos mesmos lugares desde que ele era menino. Era bastante agradável e reconfortante estar ali sentado durante uma hora e meia, ao lado de Miriam e perto da mãe, unindo os seus dois amores sob o fascínio daquele local de culto. Sentia-se a um tempo entusiasmado, feliz e religioso. Terminada a missa, acompanhava Miriam a casa, enquanto Mrs. Morel passava o resto da tarde com a sua velha amiga Mrs. Burns. Sentia-se verdadeiramente vivo durante os passeios que dava ao domingo pela tardinha com Edgar e Miriam. Sempre que passava de noite pelas minas, pelo depósito das lanternas, todo iluminado, pelas torres altas e negras e pelas filas de vagões parados em frente das ventoinhas que giravam lentamente na escuridão, tinha a sensação intensa e quase insuportável de que Miriam voltaria para si.

Mas Miriam não ocupou por muito tempo o banco da família Morel, pois o pai arranjou novamente um outro banco. Ficava mesmo por baixo da pequena galeria, em frente ao banco dos Morels. Quando Paul e a mãe chegavam à capela, o banco dos Leivers estava sempre vazio. Ele receava que não viessem: a capela ficava muito longe e eram muitos os domingos chuvosos. Mas a dado momento, quase sempre atrasada, Miriam chegava com o seu passo amplo, cabeça baixa e face oculta pelo chapéu de veludo verde-escuro. Visto sentar-se do lado oposto, a sua cara ficava sempre na sombra, o que até o fazia sentir-se bem, pois ao vê-la ali à sua frente era como se a alma se lhe agitasse dentro do corpo. Não era o mesmo calor, a mesma alegria e o mesmo orgulho que sentia ao ter a mãe a seu lado, como chefe: era algo mais maravilhoso ainda, menos humano, um sentimento intenso temperado pela dor, algo que ele sabia que não podia alcançar.

Foi nesta altura que começou a pôr em questão a doutrina ortodoxa. Ele tinha vinte e um anos e ela vinte. Miriam receava a chegada da Primavera: ele tornava-se agressivo e magoava-a muito. Tudo o que mais queria era destruir cruelmente as crenças dela. Edgar, crítico por natureza e sem sentimentos, gostava desta situação. Mas Miriam sofria amargamente, pois o homem que amava possuía uma inteligência cortante que dissecava a religião em que ela fora criada e se movimentava, e onde habitava o seu Eu. Mas ele não a poupava e mostrava-se muito cruel. Quando estavam sozinhos, tornava-se ainda mais violento, como se quisesse matar-lhe a alma, explorando as suas crenças até ela quase perder a consciência.

– Ela regozija-se... regozija-se quando afasta o meu filho de mim – gritava Mrs. Morel do fundo do coração, quando Paul saía de casa. – Ela não é como qualquer mulher comum, que permite que eu faça parte do meu filho. Ela quer absorvê-lo. Quer tirar-mo e absorvê-lo, até que nada reste dele, nem sequer para ele próprio. Assim, ele nunca será senhor de si... ela irá sugá-lo completamente. – E Mrs. Morel sentava-se, debatendo pressentimentos e meditando tristemente.

Quando regressava dos seus passeios com Miriam, Paul vinha trespassado de sofrimento. Caminhava com passo apressado, mordendo os lábios e cerrando os punhos. Quando chegava a uma cerca, parava por alguns minutos, imobilizado. À sua frente estendia-se a escuridão sem fim; as negras encostas salpicavam-se de florescências luminosas; e, nos recônditos da noite, brilhava o clarão da mina. Tudo era estranho e ameaçador. Porque estava ele tão dilacerado, quase em êxtase, incapaz de se mover? Porque estava a mãe sentada em casa a sofrer? E sabia que ela sofria bastante. Mas porquê? E porque detestava ele Miriam e era tão cruel para ela, quando pensava na mãe? Já que Miriam fazia a mãe sofrer, ele tinha de a detestar. E com facilidade a detestava. Porque o levava ela a duvidar de si próprio, deixando-o inseguro, indefinido, como se não pudesse evitar que a noite e o espaço caíssem sobre ele? Como ele a odiava! Mas logo um ímpeto de ternura e humilhação o envolvia.

De repente, precipitava-se para casa a correr. A mãe reconhecia nele as marcas da agonia, mas nada dizia. Ele, porém, tinha de obrigá-la a falar, pois via-a zangada por ele ter ido passear com Miriam para tão longe.

– Porque é que não gosta dela, mãe? – gritou ele um dia, desesperado.

– Não sei, meu filho – respondeu ela num tom comovente. – Já tentei gostar, tentei com todas as minhas forças... mas não consigo... não consigo...

E, entre ambas, ele sentia-se triste e sem esperanças. A Primavera era a pior das estações. Ele ficava instável, enérgico e cruel. Assim, decidiu afastar-se dela. Surgiam então as horas a que ele sabia que Miriam o esperava, e a mãe apercebia-se da sua impaciência. Paul não conseguia progredir no seu trabalho, não conseguia fazer nada. Era como se algo transportasse a sua alma até Willey Farm. De repente, punha o chapéu e saía sem dizer nada. E a mãe sabia que ele tinha partido. Assim que se punha a caminho respirava de alívio. Mas, mal chegava ao pé de Miriam, tornava-se novamente cruel.

Certo dia, em Março, estava Paul deitado nas margens do lago Nethermere, com Miriam sentada a seu lado. Estava um dia resplandecente, branco e azul. Nuvens grandes e brilhantes passavam altas, e as suas sombras moviam-se silenciosas sobre a água. Os espaços abertos no céu tinham um tom glacial de azul. Paul estava deitado de costas sobre a relva, olhando o céu. Não conseguia olhar para Miriam. Ela parecia desejá-lo e ele resistia. Resistia sempre. Ela queria dar-lhe a sua paixão, a sua ternura, mas não era capaz. Ele sentia que ela não o queria; que apenas queria a sua alma. Miriam retirava-lhe as forças e a energia através de um canal que os unia. Ela não queria o corpo dele, pois nesse caso seria apenas duas pessoas, homem e mulher, em comunhão. Queria absorvê-lo completamente. E ele sentia-se estimulado por um impulso quase de loucura, que o fascinava, com um fascínio de droga.

Ele falava sobre Miguel Angelo. Ao escutá-lo, ela sentia que tocava o protoplasma da vida, as próprias células palpitantes, e a sua satisfação era plena. Mas, no final, isso assustava-a. Ali estava ele deitado, na intensidade imaculada da procura, e a sua voz amedrontava-a num crescendo, levando-a quase a tocar as raias do inumano, como se num transe.

– Não digas mais nada – pediu Miriam, com ternura, pousando a mão na testa dele. Ele permanecia estático, incapaz de se mover. O seu corpo estava de algum modo abandonado.

– Porquê... estás cansada?

– Estou, e tu também vais ficar.

Ele deu uma pequena gargalhada, apercebendo-se da situação.

– Contudo, sabe-me bem – disse ele.

– Mas não é essa a minha intenção – disse ela, muito baixinho.

– Não quando já foste longe de mais e sentes que já não és capaz de te dominar. Mas o teu eu inconsciente clama por isso. E eu suponho que também quero o mesmo.

– Então como posso evitá-lo?

– Penso que não podes, pois tu fazes sempre o mesmo. Desligas-me algures e retiras-me de mim próprio. Sinto-me como um fantasma, sem corpo.

– Não! – implorou ela.

– Agora mesmo, neste momento, olho para as minhas mãos e pergunto-me o que estão elas ali a fazer. Aquela água, por exemplo, ondula através de mim. Eu sou a ondulação. Corre através de mim e eu através dela. Não há barreiras entre nós.

– Mas...! – E Miriam hesitou.

– O que resta de mim é apenas uma consciência disseminada. Sinto que o meu corpo está deitado aqui, vazio, como se eu estivesse dentro de outras coisas... das nuvens e da água...

Ela olhou para ele e reparou naquele olhar tão estranho, como se ele fosse uma coisa e não uma pessoa, o que a fascinava tanto, mas que tanto receava. E era precisamente esse receio que a impelia a ter muito mais. Mas, agora, queria que ele parasse.

– Sabes – prosseguiu – o meu eu físico está liberto. Mas, se assim for, então eu não estou vivo. Tenho a certeza de que me destruiria. O que tu queres é pores-me gordo e banal, e não uma sombra. Queres fechar bem a minha alma dentro da sua bainha. Mas ela um destes dias libertava-se, tal como a espada que se libertou de uma bainha lassa e caiu ao mar.

Miriam meditava tristemente. Nisto, levantou a cabeça e olhou-o com os olhos muito brilhantes.

– Então deixa-me ser a tua protecção – disse ela.

E estendeu as mãos para as dele.

– Se tu pudesses... – disse ele. – Mas tu és aquilo que o teu eu inconsciente te impõe, e não aquilo que queres ser. Nenhum de nós dois é completamente normal... porém, agora eu quero sê-lo, mas penso que tu não queres. Tu queres ser algo fora do comum.

– Não, não quero – exclamou ela. Mas havia medo na sua voz.

– De qualquer forma – continuou Paul, num tom apático –, isso agora não é possível. Não me podes ter dessa maneira. Neste momento eu e tu somos apenas almas desprovidas de sangue. E isso provocaria uma vibração diferente, que se entrechocaria com este estado actual numa verdadeira tortura... Se ao menos pudesses querer-me, e não apenas quereres aquilo que eu tenho para te papaguear.

– Eu! – exclamou Miriam num tom áspero. – Eu! Quando é que eu te posso ter?

– Então a culpa é minha – disse ele, e juntando as partes dispersas do seu eu, levantou-se e começou a falar de coisas triviais. Sentia-se irreal. De uma forma vaga, detestava-a por isso. Sabia que era ele o culpado e, no entanto, isso não o impedia de a odiar.

Certa noite, na mesma época, em que Paul tinha ido levar Miriam a casa, pararam perto do prado que se estendia até à floresta, incapazes de se separarem. Assim que as estrelas surgiram, as nuvens desapareceram e eles captaram fugazmente a sua Orion, que se dirigia para oeste. As jóias de Orion brilharam por um breve instante, com o seu cão correndo rasteiro, lutando com dificuldade para atravessar a espuma de uma nuvem.

Orion era para eles a constelação mais carregada de significado. Era nela que os seus olhos se haviam fixado nos momentos mais estranhos e intensos, até sentirem que viviam em cada uma das suas estrelas. Nessa noite, Paul mostrava-se taciturno e perverso. Orion parecia-lhe apenas uma constelação, nada mais. Lutava contra o seu brilho, o seu fascínio. Miriam observava atentamente a disposição do seu amado, mas ele nada disse que o comprometesse até ao momento da partida, quando, de testa franzida, ficou parado a olhar tristemente para o castelo de nuvens, por detrás do qual a grande constelação estaria ainda a transitar.

No dia seguinte havia uma pequena festa em casa dele, para a qual Miriam estava convidada.

– Não posso vir buscar-te – disse ele.

– Não faz mal... O tempo também não está dos melhores para andar na rua... – respondeu ela serenamente.

– Não é isso... eles é que não gostam que eu venha. Dizem que me preocupo mais contigo do que com eles. E tu compreendes, não é verdade?... Tu sabes que entre nós existe apenas amizade.

Miriam ficou perplexa e com pena dele. Como lhe devia ter custado dizer aquelas palavras. Deixou-o, para lhe poupar outra humilhação. Uma chuva fina batia-lhe no rosto enquanto caminhava. Estava profundamente magoada e desprezava-o por ele se deixar levar pelo mais leve sopro de autoridade. No fundo do seu coração, sentia inconscientemente que ele tentava afastar-se dela, mas como jamais teria a coragem de o admitir, sentia pena dele.

Por esta altura, Paul tornou-se num elemento imprescindível do armazém da Jordan. Mr. Pappleworth saiu para se estabelecer por conta própria e Paul passou a supervisor da Espiral. Se tudo corresse bem, o seu salário seria aumentado para trinta xelins no final do ano.

Miriam vinha quase todas as sextas-feiras à noite para a lição de francês. Paul já não ia tão amiúde a Willey Farm, e ela receava que a sua aprendizagem estivesse prestes a terminar; por outro lado, e apesar das discórdias, gostavam de estar um com o outro. Liam Balzac, escreviam composições e sentiam-se bastante cultos.

A noite de sexta-feira era a noite de pagamento para os mineiros. Morel «repartia o bolo», ou seja, dividia os lucros da empreitada, quer no New Inn, em Bretty, quer na sua própria casa, conforme os seus companheiros preferissem. Barker tinha deixado de beber, e agora os homens «dividiam o bolo» em casa de Morel.

Annie, que tinha estado a dar aulas longe dali, regressara de novo a casa. Era ainda uma rapariga endiabrada. Estava noiva e ia casar. Paul andava a estudar desenho.

Morel estava sempre bem-disposto às sextas-feiras à noite, a não ser que os ganhos dessa semana fossem escassos. Depois do jantar, entregava-se a longos preparativos para se lavar. A decência exigia que as mulheres se ausentassem durante as reuniões masculinas. As mulheres não deviam assistir à reunião dos sócios, que era considerada assunto estritamente masculino... e nem deviam ficar a saber qual o montante exacto dos ganhos semanais. Assim, enquanto o pai barafustava na cozinha, Annie saiu e foi por uma hora para casa da vizinha, e Mrs. Morel foi à cozinha ver se o pão já estava cozido.

– Fecha a porta! – berrou Morel, furioso.

Annie bateu com a porta e saiu.

– S’ela torna a abrir a porta enquant’eu tou a tomar banho, amando-lh’um murro que lhe parto os queixos – berrou ele, ameaçador, por entre a espuma do sabão. Paul e a mãe franziram as sobrancelhas ao ouvi-lo.

Logo depois, saiu da cozinha, tremendo de frio e pingando o chão todo de água ensaboada.

– Oh, cos diabos! – disse ele. – Onde está a minha toalha?

Estava pousada numa cadeira, frente à lareira, para aquecer, pois, se assim não fosse, ele teria feito um grande estardalhaço. Aninhou-se sobre os calcanhares frente ao lume vivo, para secar.

– Brrrr... – continuou, fingindo tremer de frio.

– Ó homem, não sejas criança! – disse Mrs. Morel. – Não está frio nenhum.

– Exprimenta despires-te e tomares banho naquela cozinha – disse o mineiro, enxugando o cabelo. – Mas que gelo de casa!

– Eu não faria com certeza tanto alarido – respondeu a mulher.

– Ah, poi não. Caías redonda no chão que nem uma pedra.

– Porque é que uma pedra há-de ser mais redonda do que outra coisa qualquer? – perguntou Paul curioso.

– Essa agora... sei lá... é o que se diz – argumentou o pai. – Nesta tua cozinha há muitas correntes de ar, e quando ele passa através das costelas parece vento a passar por uma cancela de cinco traves.

– Sempre teria alguma dificuldade em passar através das tuas costelas – disse Mrs. Morel.

Morel olhou desanimado para ambos os lados do seu corpo.

– Eu! – exclamou. – Eu cá num tenho pele de coelho. Os meus ossos vêem-se no meu corpo!

– Gostaria de saber onde – retorquiu a mulher.

– Por todo o lado! Mas também num sou nenhuma carga de ossos.

Mrs. Morel deu uma gargalhada. Ele tinha um corpo ainda belo, jovem e musculado, sem gorduras. A pele era macia e clara. Poderia bem ser o corpo de um homem com vinte e oito anos, se não fossem as várias cicatrizes azuladas, semelhantes a tatuagens, onde o pó do carvão se tinha alojado, e o seu peito peludo. Morel pôs as mãos nos quadris, desanimado. Acreditava piamente que, por não engordar, era magro como um rato esfomeado.

Paul olhou para as mãos do pai, calejadas, escuras, cobertas de cicatrizes e com as unhas partidas, a esfregarem a maciez do seu corpo, e ficou admirado, pois parecia-lhe estranho serem feitas da mesma carne.

– Suponho – disse, virando-se para o pai – que antigamente tinha uma bela figura.

– Eh, olha lá o que dizes! – exclamou o mineiro, olhando em volta, espantado e tímido, como uma criança.

– Tinha uma bela figura, sim senhor! – exclamou Mrs. Morel. – O pior foi ele andar sempre aos encontrões a tudo, como se quisesse meter-se no buraco mais pequeno que encontrava.

– Eu? – exclamou Morel. – Eu, uma bela figura! Nunca passei de um esqueleto.

– Credo, homem! – gritou a mulher. – Não sejas tão piegas!

– É ve’dade – disse ele. – Tu nunca me viste qu’eu não parecesse qu’emagrecia de dia pra dia.

Mrs. Morel sentou-se e deu uma gargalhada.

– Tens um corpo de ferro – disse ela. – No tocante ao corpo, nunca nenhum homem te levou a melhor. Devias ter visto o teu pai em novo... – exclamou, de repente, virando-se para Paul e empertigando-se, para imitar a postura outrora garbosa do marido. Morel observava-a, envergonhado. Viu novamente a paixão que ela sentia por ele, e que brilhou durante alguns momentos à volta dela. Ele era tímido, assustadiço e humilde. Agora, porém, sentia de novo a velha força de outros tempos. Mas imediatamente sentiu na carne os estragos praticados ao longo de todos estes anos e só queria desaparecer, fugir de tudo.

– Lava-me as costas – pediu ele à mulher.

Ela trouxe uma toalha ensopada e ensaboada e colocou-lha sobre os ombros. Ele deu um salto.

– Oh, desgraçada! – berrou ele. – Tá gelada como a morte!

– Devias ter nascido salamandra – disse ela a rir, lavando-lhe as costas. Só raramente o ajudava nestas tarefas tão pessoais. Geralmente, eram os filhos quem fazia este tipo de coisas.

– O outro mundo não vai ser suficientemente quente para ti – acrescentou ela.

– Poi não – disse ele. – Tu vais fazer com que sopre uma aragem pra m’arrefecer.

Mas ela já tinha terminado. Enxugou-o rapidamente e subiu ao primeiro-andar, regressando em seguida com um par de calças limpas. Assim que se secou, Morel vestiu a camisola. Depois, rosado e luzidio, com o cabelo em pé e a camisola de flanela vestida por cima das calças de mineiro, aqueceu as ceroulas que ia vestir a seguir. Virou-as, pô-las do avesso e ressequiu-as.

– Oh, homem, veste-te! – exclamou Mrs. Morel.

– Queria ver se gostavas de vestir uma roupa tão fria como a água da banheira – disse ele.

Por fim, despiu as calças e vestiu-se condignamente de preto. Fez tudo isto em cima do tapete da lareira, e teria feito o mesmo se Annie e os amigos íntimos estivessem presentes.

Mrs. Morel virou o pão no forno. Depois, retirou uma mão-cheia de massa do alguidar de barro, que se encontrava a um canto da cozinha; trabalhou a massa dando-lhe a forma adequada e meteu-a numa tigela. Enquanto fazia isto, Barker bateu à porta e entrou. Era um homem baixo, compacto e calmo, que parecia capaz de atravessar um muro de pedra. O cabelo era preto e curto e a cara bem-parecida. Tal como a maioria dos mineiros, era pálido, mas saudável e rijo.

– Boa noite, ‘nha senhora – disse o homem, curvando a cabeça e sentando-se, com um suspiro.

– Boa noite – respondeu ela, cordialmente.

– Fizeste ranger os tacões – disse Morel.

– Num dei por nada – disse Barker.

Retraído, sentou-se num dos bancos da cozinha, como os colegas normalmente faziam.

– Como está a sua senhora? – perguntou-lhe Mrs. Morel. Há algum tempo, ele tinha-lhe dito: «Sabe, estamos à espera do terceiro...»

– Bem – respondeu ele, coçando a cabeça –, penso que está tão boa quanto o possível.

– Ora deixa cá ver... para quando é? – perguntou Mrs. Morel.

– Bem... penso que está para chegar a qualquer momento...

– Ah, sim? E tem passado bem?

– Sim... tudo em ordem.

– É um milagre, pois ela não é muito forte.

– É verdade. ... E eu fiz outra asneira.

– O que foi?

Mrs. Morel sabia que Barker não teria feito nada de muito errado.

– Não consegui dar co’a alcofa das compras.

– Pode levar a minha.

– Não... óspois vossemecê pode precisar.

– Não preciso, não. Levo sempre um saco de rede.

Todas as sextas-feiras à noite, Mrs. Morel via o mineiro, baixo e desembaraçado, a comprar os legumes e a carne para toda a semana, e sentia grande admiração por ele.

– O Barker pode ser baixo, mas é dez vezes mais homem do que tu – tinha dito ela ao marido.

Nisto, entrou Nessen. Apesar de pai de sete filhos, era magro, muito frágil, com uma ingenuidade de adolescente e um sorriso levemente matreiro. Mas a mulher dele era uma mulher apaixonada.

– Estou a ver que me batest’òs pontos – disse, sorrindo sem brilho.

– Pois foi – respondeu Barker.

O recém-chegado tirou o boné e o grosso cachecol de lã. Tinha um nariz pontiagudo e vermelho.

– É capaz de ter frio, Mr. Wesson – disse Mrs. Morel.

– Aqui tá um bocado de frio – respondeu.

– Então aproxime-se do lume.

– Não, tou bem aqui.

Os dois mineiros sentaram-se um pouco mais arredados. Não queriam ficar em cima do tapete da lareira, pois esse lugar era sagrado para a família.

– Senta-te no cadeirão – exclamou Morel, alegremente.

– Não, obrigado. Tou muito bem aqui.

– Ora essa, chegue-se para aqui – insistiu Mrs. Morel.

O homem levantou-se e, avançando desajeitadamente, sentou-se no cadeirão de Morel, envergonhado. Era tomar demasiada confiança. Mas estar ao pé do lume deixava-o muito feliz.

– E então como está o seu peito? – perguntou Mrs. Morel.

Ele sorriu novamente, com uns olhos azuis muito brilhantes.

– Ora, vai indo! – disse ele.

– Como um chocalho – atalhou Barker.

– T..t..t..t – fez Mrs. Morel com a língua. – Já mandou fazer a camisa de flanela?

– Ainda não – disse ele sorrindo.

– E porque não? – perguntou ela.

– Lá chegará o dia... – disse ele, sorrindo.

– Ah, o dia de São Nunca, estou a ver – exclamou Barker.

Barker e Morel preocupavam-se com Wesson, pois fisicamente eram ambos fortes que nem touros.

Quando Morel estava quase pronto, entregou o saco do dinheiro a Paul.

– Contó lá, rapaz – pediu com humildade.

Impaciente, Paul abandonou os livros e os lápis e despejou o saco para cima da mesa. Continha cinco libras em moedas de prata, várias moedas de vinte xelins e alguns trocados. Paul contou o dinheiro rapidamente, incluindo os cheques e os papéis com os totais do carvão, e pôs as moedas por ordem. Então Barker deu uma olhadela aos cheques.

Mrs. Morel subiu ao primeiro andar e os três homens sentaram-se à mesa. Morel, como dono da casa, sentou-se no seu cadeirão com as costas viradas para a lareira. Os outros dois sentaram-se em cadeiras frias. Nenhum deles contou o dinheiro.

– Quant’é que dissemos qu’era prò Simpson? – perguntou Morel. E, durante um minuto, discutiram os ganhos diários do companheiro, sendo o valor respectivo posto de lado em seguida.

– E quant’é prò Bill Naylor?

Também este valor foi retirado do saco.

E então, visto que Wesson vivia numa casa da companhia e a renda já tinha sido deduzida, Morel e Barker retiraram quatro xelins e seis dinheiros cada um. E, para compensar o carvão que Morel já tinha trazido, Barker e Wesson receberam mais quatro xelins cada. Depois, a distribuição foi simples: Morel deu a cada um uma moeda de vinte xelins, até não restar nenhuma; mais meia coroa a cada um, até não restarem mais; e ainda uma moeda de um xelim, até acabarem. Se no fim restasse alguma coisa que não pudesse ser dividida, Morel guardava esse dinheiro para pagar uma rodada de cerveja.

Finalmente, os três homens levantaram-se e saíram. Morel tratou de se escapar antes de a mulher descer. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu. Deu uma olhadela rápida ao pão que tinha no forno e, olhando para a mesa, viu o seu dinheiro. Paul tinha estado sempre embrenhado no trabalho. Mas agora apercebia-se de que a mãe, ao contar a semanada, se enfurecia.

– T..t..t – era o barulho que ela fazia com a língua.

Paul franziu a testa. Não conseguia trabalhar quando a via aborrecida. Mrs. Morel contou novamente o dinheiro.

– Uns míseros vinte e cinco xelins! – exclamou ela. – Qual era o valor do cheque?

– Dez libras e onze xelins – disse Paul, irritado. Ele receava o que estava para vir.

– E esta semana ele dá-me uma porcaria de vinte e cinco xelins, e ainda tenho de tirar o dinheiro para o clube. Eu bem o conheço... Pensa que por tu ganhares, já não precisa de sustentar a casa. Ele que coma o dinheiro, se quiser. Mas eu digo-lhe como é...

– Oh, mãe, não... – exclamou Paul.

– Não, o quê, posso saber? – disse ela.

– Não reaja assim... senão não consigo trabalhar.

Ela continuou, mas já um pouco mais calma.

– Pronto, está certo – disse ela. – Mas como é que pensas que me vou governar?

– Eu sei, mas não adianta nada piorar a situação.

– Gostava de saber o que é que farias se tivesses de aturar isto?

– Já não será por muito tempo... Vai ter o meu dinheiro não tarda, e ele que vá para o diabo.

Retomou o trabalho, e ela apertou as fitas do chapéu com desalento.

O filho não suportava vê-la assim, quando ela estava zangada. Todavia, começava agora a tentar dar-lhe isso a perceber.

– Os dois pães do tabuleiro de cima estão prontos dentro de vinte minutos – disse Mrs. Morel. – Não te esqueças.

– Está bem – respondeu ele, e Mrs. Morel saiu para o mercado.

Paul ficou sozinho a trabalhar. Mas a sua habitual concentração estava perturbada. Ouviu bater a cancela do pátio. Cerca das sete e um quarto, bateram ao de leve na porta e Miriam entrou.

– Estás sozinho? – perguntou.

– Estou.

Como se estivesse na sua própria casa, tirou a boina escocesa e o casaco comprido e pendurou-os. Ele sentiu uma tremura. Esta podia ser a casa deles, dele e dela.

Miriam aproximou-se e espreitou o que ele estava a fazer.

– O que é? – perguntou.

– Uma natureza morta... para decorar objectos e bordados.

Ela inclinou-se mais, aproximando os olhos míopes do desenho.

– E gostas do que fazes? – inquiriu.

– Adoro. Neste momento ando em maré de convencionalizar tudo.

– Ah...

Miriam não se interessava por estudos convencionais, mas reconhecia que ele devia saber mais do que ela sobre tais coisas. Eram coisas de homens, coisas que não lhe diziam respeito. No entanto, havia de descobrir a razão por que ele andava, como dizia, em maré de convencionalizar tudo. Que fascínio poderia ter para ele o convencional?

– O que é que te faz gostar disto? – perguntou ela, intrigada.

Ele, como já era seu hábito, procurou justificar-se. Lutando com as palavras, tentou explicar-lhe a teoria de que a força de gravitação é o agente mais poderoso, o factor responsável pela forma das coisas, e que, se pudesse agir em completa liberdade, apareceria uma rosa geometricamente correcta nas linhas e nas proporções... e assim por diante. Isto fez desabrochar nela um certo conceito de desenho convencional que até aí lhe parecia ser pura mentira. Por fim, ele empurrou os livros para o lado.

– Posso...? – disse ele, ansioso e hesitante.

– Podes o quê?

– Mostrar-te isto... Não era minha intenção enquanto não estivesse pronto.

Paul não conseguia esconder-lhe nada do que fazia. Foi à sala e voltou com uma trouxa de linho cru. Desembrulhou-a cautelosamente e estendeu-a no chão. Era um cortinado, ou melhor, um portière, magnificamente decorado com rosas, estampadas a stencil.

– Ah, que bonito! – exclamou ela.

O tecido espraiou-se aos pés dela, com as suas maravilhosas rosas em tons rubros e caules em verde-escuro, tudo muito simples, mas com um não sei quê de perverso. Ela ajoelhou-se, deixando pender soltos os caracóis. Ele, ao vê-la assim, voluptuosamente debruçada sobre a sua obra, sentiu bater mais depressa o coração. De repente, ela ergueu os olhos para ele.

– Porque é que isto parece tão cruel? – perguntou.

– O quê?

– Parece haver neste padrão uma certa crueldade – disse ela.

– Haja ou não haja, a mim parece-me óptimo – replicou ele, dobrando o trabalho com mãos de amante. Ela levantou-se devagar, pensativa.

– Que vais fazer com isto? – perguntou ela.

– Mandá-lo para os armazéns Liberty. Fi-lo para a minha mãe... mas acho que ela prefere o dinheiro.

– Estou a ver... – disse Miriam. Havia na voz dele um travo de amargura, e ela ficou com pena. A ela, o dinheiro jamais lhe interessaria.

Paul levou o tecido novamente para a sala, e, quando voltou, atirou a Miriam um retalho mais pequeno. Era a fronha de uma almofada, com um padrão idêntico.

– Fi-la para ti.

Miriam apalpou o trabalho com mãos trémulas, em silêncio. Paul ficou embaraçado.

– Meu Deus, o pão! – gritou ele.

Tirou os pães do tabuleiro superior e bateu-lhes vigorosamente. Já estavam cozidos. Pô-los ao lado da lareira, para arrefecerem. Em seguida, foi à copa, molhou as mãos, retirou do alguidar a massa, muito branca, que ainda restava, e colocou-a dentro de uma forma de pão. Miriam continuava debruçada sobre o tecido pintado. Enquanto isso, Paul esfregava as mãos, esforçando-se por tirar os bocadinhos de massa que se lhe tinham agarrado.

– Gostas? – perguntou ele.

Ela levantou para ele os seus olhos profundos, inflamados de amor. Ele riu-se, contrafeito. Depois começou a falar do seu desenho. Falar com Miriam sobre os trabalhos que fazia era para ele fonte do mais intenso prazer. Punha toda a sua paixão, toda a violência do seu sangue, nestas conversas com ela, em que discutia e concebia as suas obras. Ela fazia-lhe desabrochar a imaginação, embora não entendesse, como nenhuma mulher entende, quando concebe uma criança no seu ventre. Mas isto para ela, sim, era viver. E para ele também.

Enquanto conversavam, uma rapariga que andaria pelos vinte e dois anos, baixa e descorada, de olhos encovados, mas olhar determinado, entrou na sala. Era uma amiga dos Morels.

– Põe-te à vontade – disse Paul.

– Não... não me demoro.

Sentou-se no cadeirão de braços, em frente de Paul e de Miriam, que estavam no sofá. Miriam afastou-se um pouco mais de Paul. A casa estava quente e cheirava a pão acabado de fazer: os pães tostadinhos, a estalar, pousados ao lado da chaminé.

– Não esperava vir encontrar-te hoje aqui, Miriam Leivers – disse Beatrice, maldosa.

– Não sei porquê! – resmungou Miriam, asperamente.

– Porque... Ora deixa lá ver os teus sapatos.

Miriam, constrangida, não se mexeu.

– Se não sabes, não sabes, e pronto – disse Beatrice, dando uma gargalhada.

Miriam tirou os pés de baixo do vestido. As suas botas tinham aquele ar indeciso e patético que evidenciava bem o quanto ela era insegura e complexada. E estavam, além disso, cobertas de lama.

– Santa Maria!... És mêmo um monte de lama! – exclamou Beatrice. – Quem te limp’as botas?

– Limpo-as eu.

– Então não deves ter mai nada que fazer – disse a outra. – Havia de ser preciso muitos homens pra me fazerem vir ‘té’qui esta noite... Mas o amor zomba da lama... não é, ‘Póstolo, meu lindo?

– Inter alia – disse ele.

– Valha-me Deus, não me digas que te vais pôr agora a vomitar línguas estrangeiras!... O qu’é que isso quer dizer, Miriam?

– «Entre outras coisas», julgo eu – disse ela, humildemente. Beatrice riu-se maliciosamente, com a ponta da língua a despontar entre os dentes.

– «Entre outras coisas», ‘Póstolo? – repetiu ela. – Queres tu dizer qu’o amor se ri das mães e dos pais e das irmãs e dos irmãos e dos amigos e das amigas, e se calhar até do próprio ser amado?

Estava a fazer-se de ingénua.

– Na verdade, o amor é um sorriso rasgado – retorquiu ele.

– Isso é qu’era bom, ‘Póstolo Morel... Vai por mim... – disse ela.

E riu-se de novo, com malícia, muito baixinho.

Miriam continuava calada, fechada sobre si mesma. Todas as amigas de Paul adoravam meter-se com ela, e ele deixava-a entregue a si própria, como se aproveitasse para se vingar.

– Ainda continuas na mesma escola? – perguntou Miriam a Beatrice.

– Continuo.

– Então ainda não te mandaram embora?

– Devem mandar na Páscoa.

– Não achas uma pouca-vergonha... mandarem-te embora só por não teres passado no exame?!

– Não sei – ripostou Beatrice, friamente.

– A Agatha diz que és tão boa professora como as outras. A mim parece-me ridículo. Porque será que não passaste?

– Cabeça dura, hem, ‘Póstolo? – disse Beatrice, secamente.

– Só lhe serve para morder – retorquiu Paul, a rir.

– Monstro! – gritou ela, e, saltando do lugar, atirou-se a ele e deu-lhe um puxão de orelhas. As mãos dela eram pequeninas e elegantes. Ele prendeu-lhe os pulsos enquanto ela se debatia. Conseguiu por fim libertar-se e, apanhando dois punhados do cabelo dele, castanho e espesso, puxou com toda a força.

– Oh, Bea – disse ele, alisando o cabelo com os dedos. – Odeio-te.

Ela riu, consolada.

– Com licença! – disse ela. – Quero sentar-me ao pé de ti.

– Antes estar sentado ao lado duma fera – disse ele, deixando no entanto espaço para a outra se sentar entre ele e Miriam.

– Olha, ficou com o cabelinho todo despenteado! – exclamou Beatrice, penteando-o com o seu próprio pente.

– E o bigodinho também! – continuou ela. E, atirando a cabeça para trás, com um trejeito, penteou-lho.

– Tens um bigodinho todo malandro, ‘Póstolo – disse ela. – Vermelho, sinal de perigo... Ainda tens daqueles cigarros?

Paul tirou a cigarreira do bolso. Beatrice olhou.

– Já não tens nenhum daqueles charros qu’a Connie te deu? – perguntou.

– Ainda devo ter um por aí...

Procurou no bolso e encontrou uma caixinha. Beatrice pegou-lhe.

– É isso, só tens um! – disse ela. – Devia ser para a Miriam. Não queres o charro da Connie, Miriam?

– Não, obrigada – replicou Miriam. – Quem é a Connie?

– Ele não te contou? – exclamou Beatrice, surpresa. – Bem, ‘Póstolo Morel, acho que não é bonito deixar uma menina tão linda às escuras.

– Não queres mesmo fumar? – perguntou Paul a Miriam.

– Sabes bem que não – respondeu ela.

– Imaginem só, eu a fumar o último cigarro da Connie – disse Beatrice, metendo o cigarro entre os dentes. Paul estendeu-lhe um fósforo aceso e ela aspirou sofisticadamente.

– Obrigadíssima, querido – disse, trocista.

Dizer estas coisas dava-lhe um prazer perverso a que não conseguia resistir.

– Que jeitinho que ele tem, não achas, Miriam? – perguntou.

– Se tem! – disse Miriam.

Paul tirou um cigarro.

– Lume, menino? – disse Beatrice, chegando o seu cigarro ao dele.

Ele inclinou-se para a frente, para acender o cigarro no dela. Ela piscou-lhe o olho. Miriam viu os olhos dele a brilharem de malícia e os seus lábios carnudos, quase sensuais, a tremerem. Ele já não estava em si, e isso para ela era insuportável. Aquele que ali estava agora não tinha nada a ver com ela, era como se ela não existisse para ele. Via-lhe o cigarro a bailar nos lábios cheios, bem vermelhos, e odiava aquelas madeixas espessas que lhe caíam livres sobre a testa.

– Meu torrãozinho de açúcar! – disse Beatrice, levantando-lhe o queixo e dando-lhe um beijo na face.

– Agora é a minha vez, Beat – disse ele.

– Isso é que não! – disse ela, com uma risadinha, fugindo para longe. – Ele é mesmo descarado, não achas, Miriam?

– Do pior! – disse Miriam. – A propósito, não te esqueceste do pão?

– Meu Deus! – gritou Paul, abrindo a porta do forno, de onde saiu um fumo azulado e um cheiro a pão queimado.

– Céus! – gritou Beatrice, correndo para junto dele. Paul ajoelhou-se diante do forno e ela espreitou-lhe por cima do ombro. – Aí está o resultado de só pensares no amor, meu lindo.

Paul, contrito, tirava os pães do forno. Um deles estava todo preto por baixo e o outro duro que nem uma pedra.

– Pobre Mater! – disse Paul.

– Agora tens de o raspar – disse Beatrice. – Traz-me o ralador de noz-moscada.

Ela compôs os pães que ainda estavam no forno, ele trouxe-lhe o ralador e ela raspou a parte queimada em cima da mesa, para um jornal. Paul abriu as portas, para eliminar o cheiro a queimado, e Beatrice continuou a raspar o pão, fumando enquanto arrancava a crosta carbonizada da pobre carcaça.

– Ai, ai, Miriam, desta vez estás bem arranjada – disse Beatrice.

– Eu! – exclamou Miriam, espantada.

– É melhor saíres antes de a mãe dele chegar... Agora é que eu percebo porque é que o Rei Alfred queimou os bolos. Agora, sim. O ‘Póstolo inda podia dizer que se tinha esquecido por causa do trabalho, se achasse que isso ia pegar. Se a velha da lenda tivesse chegado um nadinha mais cedo, teria dado cabo das orelhas da desavergonhada que provocou o esquecimento, e não das do pobre Alfred...

E riu-se, enquanto raspava o pão. Até Miriam, não se contendo, se riu também. Paul, pesaroso, pôs mais carvão na fogueira.

Ouviu-se bater o portão do jardim.

– Depressa! – gritou Beatrice, estendendo a Paul a carcaça já raspada. – Embrulha-a numa toalha húmida.

Paul correu para a copa. Beatrice soprou apressadamente as raspadelas para a fogueira e foi sentar-se com ar inocente. Annie entrou de rompante. Era uma rapariga muito esperta e sem rodeios. A luz intensa fê-la piscar os olhos.

– Cheira-me a queimado! – exclamou.

– É dos cigarros – explicou Beatrice, muito séria.

– Onde está o Paul?

Leonard entrou logo a seguir a Annie. Tinha uma cara comprida e engraçada, e uns olhos azuis muito tristes.

– Acho que se retirou para vocês se entenderem as duas – disse ele.

Depois, cumprimentou Miriam com ar penalizado, e mostrou-se suavemente sarcástico com Beatrice.

– Nada disso – disse Beatrice. – Foi sair com a número nove.

– Olha, vi mesmo agora a número cinco, que andava à procura dele – acrescentou Leonard.

– Pois é... Nós vamos ter de o dividir como o menino de Salomão – disse Beatrice.

Annie deu uma gargalhada.

– Ah, sim? – disse Leonard. – E com que bocado queres tu ficar?

– Sei lá – disse Beatrice. – As outras que escolham primeiro.

– E tu depois ficas com os restos? – disse Leonard, fazendo uma careta.

Annie estava às voltas com o forno. Miriam estava abandonada no seu canto. Paul entrou.

– Este pão está lindo, menino Paul – disse Annie.

– Então devias ter ficado a tomar conta dele – disse Paul.

– Tu é que devias ter feito aquilo que te compete – repontou Annie.

– Devia, não devia? – exclamou Beatrice.

– Mas se calhar estava com as mãos muito ocupadas... – atalhou Leonard.

– Viste-te aflita para cá chegar, não foi, Miriam? – disse Annie.

– Se vi... Mas tinha estado metida em casa toda a semana...

– E apeteceu-te mudar, hem? – insinuou Leonard, melífluo.

– Bem, não se pode passar a vida inteira dentro de casa – disse Annie, conciliadora. Beatrice vestiu o casaco e saiu com Leonard e Annie. Ia encontrar-se com o seu rapaz.

– Não te distraias com o pão, menino Paul – gritou Annie. – Boa noite, Miriam, acho que não vai chover mais.

Depois de todos saírem, Paul foi buscar o pão queimado, desembrulhou-o e olhou para ele com desalento.

– Está uma porcaria! – disse.

– Mas qual é o problema? – disse Miriam, enfadada. – Afinal são só... dois dinheiros e meio.

– Está bem... mas trata-se do pão da minha mãe, de que ela tanto se orgulha... e ela não vai gostar nada... Mas agora já não adianta preocuparmo-nos.

Levou o pão outra vez para a copa. Instalara-se uma certa distância entre ele e Miriam. Por uns momentos, Paul hesitou diante dela, a meditar, pesando o seu comportamento com Beatrice. No fundo, sentia-se culpado, mas ao mesmo tempo contente. Não sabia explicar porquê, mas achava que era bem feito para Miriam. Não era agora que se ia arrepender. Miriam pensava no que ele estaria a cogitar, ali hesitante diante dela. Madeixas de cabelo espesso caíam-lhe ainda sobre a testa. E se lho puxasse para trás, para apagar as marcas do pente de Beatrice? E se lhe apertasse o corpo entre as suas mãos? Parecia tão rijo e palpitante. Se ele deixava as outras fazerem-lhe isso, porque não ela?

De súbito, Paul voltou à vida, e Miriam quase tremeu de susto quando ele arredou os cabelos da testa e avançou para ela.

– Oito e meia! – disse ele. – É melhor irmos a isto. Onde está o teu caderno de francês?

Miriam, contrariada, mostrou-lhe timidamente o caderno de exercícios de francês. Todas as semanas lhe entregava uma espécie de diário da sua vida íntima, escrito por ela em francês. Paul descobrira que era a única maneira de a convencer a fazer composições. O diário era acima de tudo uma carta de amor. Agora, ele ia lê-lo e era como se a história da sua alma fosse ser profanada por ele, no estado em que se encontrava. Paul sentou-se ao lado dela. Ela atentou na mão dele, firme e quente, percorrendo minuciosamente o seu trabalho.

Ele lia apenas as palavras em francês, ignorando a alma que encerravam. Mas, gradualmente, a mão esqueceu a tarefa e ele continuou a ler em silêncio, e em total imobilidade. Ela estremeceu.

– «Ce matin les oiseaux m’ont éveillé» – leu ele. – «II faisait encore un crépuscule. Mais la petite fenêtre de ma chambre était blême, et puis, jaûne, et tous les oiseaux du bois éclatèrent dans un chanson vif et résonnant. Toute l’aûbe tressaillit. J’avais rêvé de vous. Est-ce que vous voyez aussi 1’aube? Les oiseaux m’éveillent presque tous les matins, et toujours il y a quelque chose de terreur dans le cri des grives. II est si clair...».2

Miriam estava sentada, a tremer, envergonhada. Ele mantinha-se imóvel, tentando compreender. Apenas percebia que ela o amava, mas tinha medo do seu amor. Era mais do que ele merecia, e ele não era digno dela. Era ele que não a amava o suficiente, e não o contrário. Envergonhado, corrigiu-lhe o trabalho, anotando os erros timidamente por cima das palavras.

– Repara – disse ele, sereno. – Quando o particípio passado é conjugado com avoir, concorda com o complemento directo sempre que este o precede.

Ela inclinou-se para a frente, para ver melhor e poder compreender. Os seus caracóis finos e soltos roçaram-lhe ao de leve na cara, e ele deu um salto como se um ferro em brasa lhe tivesse tocado. Ao vê-la debruçada sobre a página, com os lábios rubros dolorosamente entreabertos, o cabelo negro caindo em finas madeixas sobre as faces afogueadas, corada como uma romã, a respiração tornou-se-lhe ofegante. Então, ela olhou para ele: os seus olhos negros punham a nu todo o seu amor, medo e desejo. E os olhos dele, negros também, feriram os dela. Pareciam dominá-los. E ela, perdendo o domínio de si própria, ali estava exposta, amedrontada, à mercê dele. Paul sabia, porém, que antes de a poder beijar, tinha de arrancar alguma coisa de si mesmo. E, então, um sopro de ódio por ela penetrou-lhe outra vez no coração, fazendo-o retomar as suas correcções.

De súbito, ele atirou com o lápis pelo ar e precipitou-se para o forno, para virar o pão. Era brusco de mais para o gosto dela. Miriam estremeceu em violento sobressalto, e a dor que sentiu era real. Até a maneira como ele se punha de cócoras diante do forno a magoava. Pressentia alguma crueldade nos seus gestos, alguma crueldade na brusquidão com que tirava os pães das formas, atirando-os ao ar e apanhando-os na queda. Se ao menos ele fosse gentil nos movimentos, sentir-se-ia mais rica e confortada no seu íntimo. Mas, assim, era só dor o que sentia.

Paul voltou para junto dela e acabou o exercício.

– Desta vez saíste-te bem – disse ele.

Ela percebeu que ele se sentia lisonjeado com o diário, mas isso não era recompensa suficiente.

– Sim senhora, de vez em quando fazes um brilharete – disse ele. – Devias escrever poesia.

Ela ergueu a cabeça, transbordante de alegria, mas logo a abanou desalentada.

– Falta-me confiança – disse ela.

– Mas devias tentar!

Mas ela abanou a cabeça.

– Vamos ler um bocado, ou achas que já é muito tarde? – perguntou ele.

– Lá tarde, é... mas podíamos ler só um bocadinho – pediu ela.

 


                              CONTINUA

 

 

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