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A cozinha era muito pequena e esquinada. A quinta tinha sido inicialmente o casebre de um jornaleiro, e a mobília estava velha e gasta. Mas Paul gostava da casa; gostava da serapilheira que substituía o tapete da chaminé e daquele vão patusco por baixo das escadas, e do postigo que se abria ao fundo e através do qual, se se curvasse, podia ver as ameixoeiras do jardim das traseiras e os graciosos cabeços arredondados que se recortavam à distância.
– Não te queres deitar? – disse Mrs. Leivers.
– Oh, não... não estou cansado – respondeu Paul. – É maravilhoso andar lá por fora, não é? Vi um abrunheiro em flor e muitas celidónias. Estou tão feliz por estar sol.
– Queres comer ou beber alguma coisa?
– Não, obrigada.
– Como está a tua mãe?
– Penso que se sente cansada... tem andado muito ocupada. Talvez vá em breve para Skegness comigo. Assim, terá oportunidade de descansar. Quem me dera que isso aconteça.
– Sim – respondeu Mrs. Leivers. – É um milagre que ela não esteja doente.
Miriam andava de um lado para o outro a preparar o jantar. Paul observava tudo o que se passava. As suas faces estavam pálidas e magras, mas os olhos continuavam, como sempre, rápidos e vivos. Ia observando os movimentos estranhos, quase rapsódicos, da rapariga, levando um tacho de guisado para o forno ou vigiando a panela. A atmosfera de sua casa era diferente, lá tudo parecia vulgar. Quando lá fora Mr. Leivers gritou com o cavalo, que se preparava para comer as roseiras no jardim, a rapariga assustou-se e olhou em volta com os seus olhos muito negros, como se algo tivesse vindo perturbar o seu mundo. Sentia-se o silêncio dentro e fora de casa. Miriam parecia estar a viver um conto de fadas, onde era uma donzela cativa e o seu espírito vagueava por uma terra distante e mágica. E a sua túnica azul, velha e desbotada, e as botas já muito gastas, pareciam os andrajos românticos da mendiga do Rei Cophetua.
Subitamente, sentiu os olhos dele, azuis e penetrantes, devorá-la. No mesmo instante as suas botas gastas e o seu velho vestido puído magoaram-na. Lamentava profundamente que ele estivesse a ver tudo. Pois se ele até sabia que a meia dela não estava completamente esticada. Dirigiu-se para a copa com as faces ruborizadas. Mais tarde, as mãos tremiam-lhe levemente durante as tarefas domésticas, quase deixando cair tudo aquilo em que pegava. Quando o seu sonho interior era abalado, o seu corpo estremecia com a trepidação. Lamentava profundamente que ele visse tanta coisa.
Mrs. Leivers sentou-se e conversou durante algum tempo com o rapaz, embora tivesse o trabalho à espera. Era todavia demasiado educada para o deixar sozinho. A certa altura, pediu licença e levantou-se. Daí a pouco olhou para a panela:
– Miriam, querida! – chamou. – As batatas estão sem água!
Miriam respondeu como se algum bicho lhe tivesse mordido.
– E depois, mãe? – exclamou ela.
– Não seria grave se eu não tas tivesse confiado – disse a mãe. – E espreitou para dentro da panela.
A rapariga pôs-se hirta como se tivesse levado um soco. Os seus olhos negros dilataram-se e ficou estática, no mesmo lugar.
– Tenho a certeza de que ainda há cinco minutos as vi – respondeu, crispada, sentindo-se culpada.
– Eu entendo – disse a mãe. – São coisas que acontecem.
– Não estão muito queimadas – disse Paul. – Não tem importância, pois não?
Mrs. Leivers olhou para o jovem com os seus olhos castanhos, magoados.
– Não teria importância, se não fosse pelos rapazes – disse ela. – Só Miriam sabe o barulho que eles fazem quando as batatas se pegam.
«Nesse caso», pensou Paul com os seus botões, «não deviam deixá-los fazer tanto barulho.»
Daí a nada, entrou Edgar. Vinha de perneiras e trazia as botas cobertas de terra. Era bastante baixo e muito formal para lavrador. Olhou de relance para Paul, cumprimentou-o de longe e perguntou:
– O comer está pronto?
– Está quase, Edgar – respondeu a mãe desculpando-se.
– Pois eu já estou pronto – disse o jovem, pegando no jornal e começando a ler. Entretanto, chegaram os restantes membros da família. O almoço foi para a mesa. A refeição decorreu com grande informalidade. A excessiva delicadeza e tom apologético da mãe realçavam mais o comportamento indelicado dos filhos. Edgar provou as batatas, mexeu a boca rapidamente como um coelho, olhou indignado para a mãe e disse:
– Estas batatas estão esturradas, mãe!
– Pois estão, Edgar... distraí-me por um minuto. Mas talvez possas comer pão, se não as conseguires comer.
Edgar olhou com raiva para Miriam.
– O que estava a Miriam a fazer, para não poder tomar conta delas? – disse ele.
Miriam levantou os olhos. A boca entreabriu-se-lhe, os seus olhos brilharam intensos, pestanejantes, mas permaneceu calada. Engoliu a raiva e a vergonha, e baixou a cabeça.
– Tenho a certeza de que não foi por mal – disse a mãe.
– Nem umas batatas sabe cozer – disse Edgar. – Pra que serv’ela aqui em casa?
– Pra ir prà despensa comer tudo o que sobra – disse Maurice.
– Eles não se esquecem daquela tarte de batata que a nossa Miriam comeu – disse o pai, a sorrir. Miriam sentia-se completamente humilhada. A mãe ficou calada, a sofrer como uma mártir, sentindo-se a mais nesta refeição atribulada.
Paul estava perplexo com tudo o que via. Não conseguia perceber a razão de tão violenta reacção só porque umas batatas se tinham queimado. A mãe dava a tudo, mesmo à mais insignificante tarefa doméstica, a importância de um dever religioso. Os filhos ressentiam-se com isso e, vendo cerceadas as suas liberdades, respondiam-lhe com brutalidade e também com irónica arrogância.
Paul estava a passar da infância à idade adulta. Esta atmosfera, onde tudo adquiria um valor religioso, tinha a seus olhos um fascínio subtil. Pairava no ar algo de indefinível. A sua própria mãe era lógica. Mas aqui havia algo de diferente, algo que ele amava, algo que por vezes detestava.
Miriam discutiu com os irmãos aguerridamente. Mais tarde, depois do almoço, quando todos já se tinham ido embora, a mãe disse:
– Desapontaste-me muito à hora do almoço, Miriam.
A rapariga baixou a cabeça.
– Eles são uns brutos! – exclamou subitamente, com os olhos flamejantes.
– Mas tu tinhas prometido que não respondias, não tinhas? – disse a mãe. – E eu acreditei em ti! Não suporto ver-te discutir.
– Mas eles são tão irritantes! – exclamou Miriam. – E... e malcriados.
– Sim, minha querida. Mas quantas vezes já te disse para não responderes ao Edgar? Será que não podes deixá-lo dizer o que lhe apetece?
– Mas porque há-de ele dizer o que lhe apetece?
– Miriam, será que não és suficientemente forte para o suportares, mesmo que o faças só por mim? Serás tão fraca que tenhas de discutir sempre com eles?
Mrs. Leivers pregava inflexivelmente a doutrina do «dar a outra face», mas não conseguia ensiná-la aos filhos. Era contudo bem-sucedida com as filhas, e Miriam era a sua filha dilecta. Os rapazes ficavam furiosos quando elas lhe davam a outra face, e Miriam era muitas vezes suficientemente orgulhosa para o fazer. Eles então cuspiam-lhe e detestavam-na. E ela refugiava-se na sua orgulhosa humildade, fechando-se em si mesma. Havia sempre este sentimento de conflito e de discórdia no seio da família Leivers. Embora os rapazes rejeitassem amargamente o eterno apelo aos seus sentimentos mais profundos de resignação e emproada humildade, acabavam por ceder. Não conseguiam imaginar apenas um sentimento humano comesinho ou uma simples amizade com um estranho: estavam sempre ansiosos por algo de mais profundo. O comum mortal era para eles superficial, trivial e insignificante. E, assim, por falta de hábito, eram dolorosamente rudes nos mais simples contactos sociais e, embora sofressem com isso, continuavam a arvorar uma insolente superioridade. Todavia, bem no fundo, ansiavam pela intimidade que não podiam lograr, pois eram demasiado reservados e qualquer tentativa de aproximação era imediatamente bloqueada pelo rude desprezo que nutriam pelos outros. Buscavam uma intimidade genuína, mas não se conseguiam aproximar normalmente das outras pessoas, pois recusavam-se a dar o primeiro passo e desprezavam a trivialidade que envolve a generalidade das relações humanas.
Paul deixou-se arrastar pelo sortilégio de Mrs. Leivers. Tudo adquiria um significado religioso e profundo quando ele estava com ela. A alma ferida dele, altamente evoluída, procurava-a em busca de alimento. Juntos pareciam filtrar de cada experiência a sua verdade vital.
Miriam era bem a filha de sua mãe. De tarde, ainda o sol brilhava, mãe e filha foram com ele passear pelos campos. Iam em busca de ninhos e encontraram um de carriça na cerca do pomar.
– Quero que vejas uma coisa – disse Mrs. Leivers.
Ele baixou-se e meteu o dedo cautelosamente por entre os espinhos, penetrando no orifício redondo da entrada do ninho.
– É quase como se metêssemos o dedo dentro do corpo de um pássaro – disse ele. – É tão quente. Dizem que o pássaro faz o ninho redondo como uma chávena, calcando-o com o peito. Sempre gostava de saber como é que ele fez o tecto redondo. – Para as duas mulheres, o ninho era o começo da vida. Depois desse dia, Miriam vinha visitá-lo todos os dias. Sentia-o tão próximo de si. Descendo novamente rente à cerca com a rapariga, Paul reparou nas celidónias, sobressaindo como salpicos de ouro na beira do valado.
– Gosto delas quando as pétalas se abrem completamente à luz do sol – disse ele. – Parecem comprimir-se contra o sol. – E foi quanto bastou para as celidónias passarem a exercer sobre ela um certo fascínio. Antropomórfica como era, incentivava-o a apreciar as coisas desta forma, e elas depois ganhavam vida para ela. Parecia necessitar que as coisas brilhassem na imaginação ou na alma dele primeiro, antes de sentir que as possuía. Sempre se vira privada de uma vida normal pelo seu próprio fervor religioso, que fazia o mundo parecer-lhe um jardim de convento ou um paraíso, onde o pecado e o conhecimento ou não existiam ou eram, pelo contrário, algo de cruel e feio.
Foi assim, nesta atmosfera de subtil intimidade, neste encontro de sentimentos comuns pelas coisas da natureza, que o amor nasceu.
Mas só passado muito tempo, Paul se deu verdadeiramente conta da existência de Miriam. Após a doença teve de permanecer em casa durante dez meses. Foi passar algum tempo a Skegness com a mãe e sentia-se verdadeiramente feliz. Mas até da praia ele escrevia longas cartas a Mrs. Leivers falando-lhe da praia e do mar. E trouxe consigo os seus queridos esboços da costa plana de Lincoln, ansioso por lhos mostrar. Iam com certeza interessar mais aos Leivers do que tinham interessado à sua própria mãe. Não era a sua arte que preocupava Mrs. Morel, mas sim ele próprio e o seu futuro. Porém, Mrs. Leivers e os filhos eram quase seus discípulos. Davam-lhe inspiração e faziam-no brilhar no seu trabalho, ao passo que a mãe o influenciava de forma a torná-lo determinado, paciente, obstinado, incansável.
Em breve se tornou amigo dos rapazes, cuja rudeza era apenas superficial. Todos patenteavam, quando podiam confiar neles próprios, uma bondade e amabilidade muito estranhas.
– Vens comigo para a leira? – perguntou Edgar, um tanto hesitante. Paul foi com ele alegremente e passou a tarde a cavar e a desbastar os nabos com o amigo. Paul costumava deitar-se com os três irmãos no monte de feno do celeiro a contar-lhes histórias sobre Nottingham e a Thomas Jordan. Eles, por sua vez, ensinaram-no a ordenhar e deixavam-no encarregar-se de pequenas tarefas tanto quanto quisesse, tais como segar feno ou despolpar nabos. Nos meados do Verão, Paul ajudou-os a segar o feno e tornou-se seu grande amigo. Aquela família vivia na verdade bem longe do mundo. Assemelhavam-se de certa forma a «les derniers fils d’une race épuisée»1. Embora os rapazes fossem robustos e saudáveis, eram esquivos e extremamente sensíveis, o que os tornava tão solitários. Mas, uma vez ganha a sua confiança, mostravam-se amigos fiéis e dedicados.
Miriam só mais tarde aconteceu. Mas ele entrara na vida dela antes de ela aparecer na sua. Numa tarde sombria, quando os homens estavam no campo e os mais novos na escola, apenas tendo ficado em casa Miriam e a mãe, ela perguntou-lhe, após breves momentos de hesitação:
– Já viste o baloiço?
– Não – respondeu ele. – Onde está?
– No estábulo – disse ela.
Ela hesitava sempre em dizer-lhe ou mostrar-lhe alguma coisa. Os homens têm uma noção de valor tão diferente da das mulheres que todos os seus objectos mais queridos e valiosos eram frequentemente motivo de escárnio e insulto por parte dos irmãos.
– Então vamos! – respondeu ele, levantando-se de imediato.
Havia dois estábulos, um de cada lado do celeiro. No estábulo mais baixo e escuro havia lugar para quatro vacas. As galinhas esvoaçavam sobre a manjedoura, cacarejando, enquanto o rapaz e a rapariga se aproximavam da corda grande e grossa, que pendia suspensa de uma viga na escuridão e estava presa à parede, a uma cavilha.
– Parece uma corda! – exclamou ele, satisfeito, e sentou-se ansioso por experimentar. Porém, levantou-se logo.
– Vá! Experimenta tu primeiro! – disse, voltando-se para a rapariga.
– Estás a ver – respondeu ela, entrando no celeiro –, é preciso pôr uns sacos no assento. – E assim tornou o assento mais confortável, o que muito o alegrou. Paul segurou-se à corda.
– Vem! – disse ele.
– Não, não quero ser a primeira – respondeu ela.
E manteve-se afastada, no seu jeito indiferente e calmo.
– Porquê?
– Vai tu agora! – insistiu ela.
Era talvez a primeira vez na vida que ela sentia prazer em fazer o que um homem lhe dizia, em poder mimá-lo. Paul olhou para ela.
– Está bem – disse ele, sentando-se no baloiço. – Cuidado!
Deu um salto para cima do baloiço e logo voou pelo ar, quase saindo pela porta, que tinha a parte superior aberta, podendo ver lá fora a chuva a cair miúda, o pátio sujo, o gado desolado junto à carroça preta do estábulo e, ao fundo, a cortina verde e cinza da floresta. Ela mantinha-se cá por baixo, com a sua boina vermelha à escocesa, a observá-lo. Ele olhou para ela, e ela viu os seus olhos azuis a brilharem.
– É um baloiço formidável – disse ele.
– Pois é.
Todo ele se lançava pelo ar, como um pássaro em voo picado, só pelo prazer do movimento. E então olhou para baixo, para ela, e a boina vermelha sobre os caracóis negros, o rosto bonito e afável, tão sereno como se estivesse a meditar, subiram até ele. Estava escuro e frio dentro do estábulo. Subitamente uma andorinha desceu das alturas do forro do telhado e saiu como uma seta pela porta.
– Não sabia que estávamos a ser observados por um passarinho – disse ele.
Ele baloiçava-se desabridamente. Ela sentia-o descer e subir no ar, como se impelido por uma força desconhecida.
– Agora vou morrer – disse ele, numa voz sonhadora e despojada, como se ele próprio fosse o movimento moribundo do baloiço. Ela olhava-o, fascinada. Bruscamente, ele travou e saltou.
– Já andei muito tempo – disse ele. – Isto é um baloiço formidável, é realmente um baloiço formidável.
Miriam estava divertidíssima, pois ele tinha levado o baloiço a sério e sentira-se bem a andar nele.
– Não, continua – disse ela.
– Porquê?... Não queres andar? – perguntou ele espantado.
– Não me apetece muito. Mas vou andar só um bocadinho.
Ela sentou-se no baloiço, enquanto ele segurava os sacos.
– É formidável, vais ver – disse ele, empurrando-a. – Mantém os calcanhares bem levantados, senão batem na manjedoura.
Miriam sentia a precisão com que ele a agarrava no momento exacto e a força certeira com que a empurrava, e sentia medo. Uma onda quente de medo percorreu-a até ao ventre. Ela estava nas mãos dele. O impulso firme e inevitável surgia de novo no momento certo. Ela agarrava-se à corda, quase a desmaiar.
– Oh – disse ela a rir, cheia de medo. – Mais alto não!
– Mas tu não vais nada alto – protestou ele.
– Mas mais alto não!
Paul apercebeu-se do medo na voz dela, e parou. O coração dela derreteu-se numa dor cálida, quando chegou o momento de novo impulso, mas ele deixou-a sozinha, e ela pôde respirar outra vez.
– Não queres mesmo ir mais alto? – perguntou ele. – Queres que te mantenha nessa altura?
– Não, eu ando sozinha – respondeu ela.
Então ele afastou-se e ficou a vê-la.
– Mal te mexes – comentou ele.
Ela esboçou um sorriso, envergonhada, e de repente desceu.
– Dizem que quem sabe andar de baloiço não enjoa no mar – disse ele, enquanto subia para o baloiço outra vez. – Não creio que alguma vez venha a enjoar.
Começou a andar novamente. Para ela havia algo nele que a fascinava. Naquele momento ele era apenas uma peça de um objecto em movimento e tudo nele se movia. Nem ela nem os irmãos conseguiam libertar-se assim. Sentia o entusiasmo desabrochar dentro de si. Era como se ele fosse uma chama, e tivesse ateado o entusiasmo dentro dela enquanto se baloiçava no ar.
E, gradualmente, a intimidade de Paul com a família Leivers privilegiava três pessoas: a mãe, Edgar e Miriam. Na mãe encontrava uma simpatia e um encanto que pareciam abrir-lhe o coração. Edgar era o seu melhor amigo. Quanto a Miriam, digamos que a ia aturando, pois parecia-lhe ser muito submissa.
Mas a rapariga, a pouco e pouco, foi-o atraindo. Quando ele trazia o caderno dos esboços, era sempre ela quem observava mais longamente o último desenho. E então, olhava para ele e perguntava, com os olhos negros a luzir, como águas agitadas por uma corrente dourada no meio da escuridão:
– Porque será que gosto tanto deste?
E algo no peito dele se retraía perante estas observações tão deslumbradas, tão íntimas e tão próximas.
– Sim, porque será? – perguntava ele.
– Não sei – parece tão real.
– É porque... é porque quase não tem sombras... é mais como uma cintilação... como se eu tivesse pintado a cintilação do protoplasma das folhas, e de tudo, e não a rigidez das formas. Isso para mim é coisa morta. Só a cintilação contém vida. A forma é uma crosta morta. A cintilação está, realmente, no interior.
E ela, mordendo o dedinho minúsculo, ponderava sobre tais afirmações. Davam-lhe uma nova sensação de vida e davam vida a coisas que até aí não significavam nada para ela. Conseguia encontrar algum significado nos discursos dele, sempre tão abstractos e intrincados. Era através deles que ela chegava claramente aos objectos amados.
Certo dia, ela tinha estado sentada junto dele, ao pôr do Sol, enquanto ele pintava alguns pinheiros batidos pelo clarão rubro que avançava do poente. Ele mantivera-se calado.
– Já está! – disse ele, de repente. – Mesmo o que eu queria. Agora, olha para eles e diz-me se são troncos de pinheiro ou carvões incandescentes, estacas de fogo a arder na escuridão. A sacra ardente de Deus, aquela que não se apaga.
Miriam olhou e sentiu medo. Mas distinguia perfeitamente os troncos de pinheiro e achava-os magníficos. Ele arrumou a caixa das tintas e levantou-se. De repente, olhou para ela.
– Porque estás sempre tão triste? – perguntou.
– Triste! – exclamou ela, olhando para ele com os seus olhos castanhos, admirados, maravilhosos.
– Sim – disse ele. – Tu andas sempre, sempre triste.
– Não... Nem um pouco! – exclamou ela.
– Até a tua alegria parece uma chama ateada pela tristeza – insistiu ele. – Nunca estás alegre, nem sequer normal.
– Pois não – disse ela, pensativa. – Dá que pensar... Porque será...?
– Porque tu não és.... porque tu és diferente por dentro... como um pinheiro... e depois incendeias-te... mas não és uma árvore qualquer, com folhas irrequietas e alegres...
Paul emaranhou-se no seu próprio discurso; mas ela bebia as suas palavras e ele teve uma sensação estranha e estimulante, como se os seus sentimentos fossem novos. Ela chegava-lhe tão perto da alma. Estranho estímulo este.
Mas às vezes odiava-a. O irmão mais novo de Miriam só tinha cinco anos. Era um menino débil, de enormes olhos castanhos e um rostinho frágil e esquisito; parecia um anjo do Coro dos Anjos, de Reynolds, com um toque de duende.
Miriam ajoelhava-se frequentemente junto da criança e apertava-o contra o peito.
– Meu Hubert! – cantarolava ela com uma voz possante, a transbordar de amor. – Meu Hubert!
E, envolvendo-o nos seus braços, embalava-o mansamente de um lado para o outro com amor, de face levantada ao céu, olhos semicerrados e voz embebida de ternura.
– Pára! – disse a criança, constrangida. – Pára, Miriam!
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela do fundo da garganta, como se estivesse em transe, balançando também, como se prestes a desfalecer num êxtase de amor.
– Pára! – repetiu a criança, franzindo a testa desanuviada.
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela.
– Porque fazes tanto espalhafato? – gritou Paul, profundamente afectado pela emoção exagerada de Miriam. – Porque não ages normalmente com ele?
Ela largou a criança e não respondeu. A sua intensidade, que não deixaria transparecer qualquer emoção numa situação normal, deixava o jovem quase num frenesim. Este contacto desprotegido e tímido com a alma dela chocava-o. A sua mãe era reservada, e ele estava habituado a ela. E, nessas alturas, sentia-se agradecido de alma e coração por ter a mãe que tinha, tão sensata e tão sã.
Toda a vida do corpo de Miriam se reflectia nos seus olhos, normalmente escuros como as igrejas, mas que podiam inflamar-se como uma conflagração. A sua expressão meditativa raramente se alterava. Talvez ela tivesse sido uma das mulheres que acompanharam Maria quando Jesus morreu. O seu corpo não era vivo, flexível. Andava de forma oscilante, pesada até, de cabeça inclinada para a frente, meditativa. Não sendo propriamente desajeitada, nenhum dos seus movimentos parecia o movimento correcto. Muitas vezes, quando limpava os pratos, ficava confusa e desgostosa, por ter partido em duas metades uma chávena ou um copo. Era como se, por medo e falta de confiança, se tivesse aplicado demasiado. Não sabia o que eram relaxamento ou abandono. Agarrava-se a tudo com rigidez e intensidade, e o seu esforço, de excessivo, fechava-a sobre si mesmo.
Raramente alterava a forma de andar, tensa, balançada, projectada para a frente. De vez em quando, ia com Paul dar uma corrida pelos campos e então os seus olhos brilhavam inteiros, num êxtase que o assustava. Mas tinha medo de fazer exercício físico. Se tivesse de saltar uma cerca, apertava as mãos de forma angustiante e perdia a presença de espírito. E ele não conseguia persuadi-la a saltar, mesmo um obstáculo baixo. Os olhos dela dilatavam-se, ficavam expostos, palpitantes.
– Não – gritava ela, sorrindo apavorada. – Não!
– Tens de tentar – gritou ele uma vez e, empurrando-a para a frente, fê-la cair da cerca. Mas o grito selvagem que ela deu, como se estivesse prestes a perder a consciência, feriu-lhe as entranhas. Mas ela caiu de pé e em segurança, e posteriormente passou a ter mais coragem.
Paul e Miriam iam muitas vezes passear juntos pelos campos até ao lago Nethermere. Ele era naturalmente ágil e muito activo. Andava sempre a saltar de um lado para outro. Ela, no entanto, mantinha sempre o mesmo curso, quase sem alterações. E ele, a pouco e pouco, vinha para junto dela, moderava o passo e caminhava com ela, de cabeça baixa, mas só até chegarem à água. A margem do lago estava pejada das penas brancas dos cisnes. Sentavam-se entre os seixos. Subitamente, ele descobria um seixo bonito e bem liso, levantava-se, e atirava-o à água para provocar ondinhas.
– Consegues fazê-los saltar? – perguntou Paul.
– Não muito bem! – respondeu ela, abanando a cabeça. E continuou sentada a observá-lo.
– Ora vê! – gritou ele. – Quatro saltinhos.
– Sim senhor – disse ela, elogiando-o. – Formidável. – Contudo, ele depressa se fartou e veio sentar-se novamente junto dela.
– Porque não queres também fazer ondinhas? – perguntou ele.
– Porque não sei – respondeu ela.
– Tu nunca queres fazer nada! – disse ele.
– Bem vês, tenho a lida da casa para fazer.
Paul não deu seguimento à discussão, preferindo encetar um diálogo sobre livros.
Miriam estava muito triste com o seu destino.
– Não gostas de estar em casa? – perguntou-lhe Paul surpreendido.
– E quem é que gosta? – respondeu ela, num tom cavo e profundo. – O que é estar em casa? Passar os dias a limpar o que os rapazes sujam em menos de cinco minutos. Não quero estar em casa!
– Então o que é que queres?
– Quero fazer alguma coisa. Quero ter uma oportunidade, como toda a gente. Porque é que eu, só por ser rapariga, tenho de ficar em casa e não me é permitido ser alguém? Que oportunidades é que eu tenho?
– Oportunidades para quê?
– Para saber de tudo, para aprender... para fazer qualquer coisa. Não é justo que isto aconteça apenas por eu ser mulher.
Ela falava com muita amargura. Paul pôs-se a pensar. Em casa, Annie parecia até quase contente por ser rapariga. Não tinha tantas responsabilidades e tudo era mais fácil para ela. Nunca quisera ser qualquer outra coisa além de rapariga. Mas Miriam desejava quase furiosamente ser homem. E, contudo, ao mesmo tempo detestava os homens.
– Mas ser homem ou mulher é a mesma coisa – disse Paul, franzindo a testa.
– Ai é?... Os homens têm tudo.
– Eu acho que as mulheres deviam estar contentes por serem mulheres, como os homens estão por serem homens – respondeu ele.
– Não! – Ela abanou a cabeça. – Nem pensar! Os homens têm tudo.
– Mas o que é que queres, afinal? – perguntou ele.
– Quero aprender. Porque é que eu hei-de ficar sem saber nada?
– Mas afinal o que queres tu aprender? Matemática e francês...?
– E porque é que eu não hei-de aprender matemática... Sim – gritou ela, abrindo os olhos em ar de desafio.
– Tu podes aprender tudo aquilo que eu sei – disse ele. – Eu ensino-te, se quiseres.
Os olhos dela arregalaram-se. Como professor, ele não lhe inspirava confiança.
– Gostavas? – perguntou Paul.
Ela estava de cabeça baixa a chuchar no dedo, sorumbática.
– Gostava... – disse ela, hesitante.
Ele conversava frequentemente com a mãe sobre todas estas coisas.
– Gostava de ser homem, mãe? – perguntou ele.
– Por vezes... mas é uma parvoíce... penso que não... não quero e nunca quis ser outra pessoa diferente da que sou.
– E porque é que gostava de ser homem, mesmo só às vezes?
– Bem, meu filho – respondeu a mãe a sorrir – penso que conseguiria fazer mais do que alguns homens, o que não é para admirar.
– Eu cá não quero ser mulher – disse ele, pensativo. – E acho que não conseguia ser uma mulher melhor do que as que já são mesmo mulheres.
– Não – disse a mãe a sorrir. – Também acho que não... Mas, por vezes, nós sentimos que poderíamos fazer mais do que os homens...
– Talvez a mãe pudesse... – disse ele.
– Bem... – respondeu ela com a sua curiosa fungadela habitual. – Sabes, meu filho – continuou ela – a natureza é para ser respeitada. E quando uma mulher deseja ardentemente ser homem, podes apostar a vida em como ela não é lá grande coisa como mulher.
– Detesto uma mulher que deseje ser homem – disse ele.
– Apenas demonstra que o seu orgulho de mulher está demasiado enfraquecido – respondeu a mãe. Paul falava sempre com a mãe, pois ela era a sua pedra de toque.
– Vou ensinar álgebra à Miriam – disse ele.
– Bem... – disse Mrs. Morel – espero que lhe seja proveitoso.
Aproximava-se o crepúsculo quando Paul se dirigiu para a quinta, na segunda-feira à tardinha. Miriam acabara de varrer a cozinha e estava ajoelhada junto à lareira quando ele entrou. Todos tinham saído, excepto ela. Olhou-o ruborizada, com os olhos negros a brilhar e os cabelos magníficos caídos à volta do rosto.
– Olá – disse ela, num tom suave e musical. – Já sabia que eras tu!
– Como é que adivinhaste?
– Reconheci os teus passos. Ninguém anda tão depressa e firmemente como tu.
Ele sentou-se e suspirou.
– Estás pronta para aprender álgebra? – perguntou ele, tirando um livrinho do bolso.
– Mas... – Ele sentiu-a recuar.
– Mas tu disseste que querias – insistiu ele.
– Mas hoje à noite... – começou ela, titubeante.
– Mas eu vim de propósito. E, se queres aprender, alguma vez tens de começar.
Ela apanhou as cinzas com a pá do lixo e olhou para ele, esboçando um sorriso trémulo.
– Sim, mas... esta noite... Sabes, ainda não pensei nisso.
– Por amor de Deus... Vai despejar as cinzas e vem ter comigo.
Paul saiu e sentou-se no banco de pedra do pátio das traseiras, perto das grandes bilhas de leite. Os homens estavam no estábulo. Ele conseguia ouvir o som cadenciado do leite, jorrando para os baldes. Ela voltou logo, com um punhado de maçãs grandes e esverdeadas.
– Estas são das que tu gostas – disse ela.
Ele deu uma trincadela na maçã.
– Senta-te – disse ele com a boca cheia.
Ela, míope, começou a espreitar por cima do ombro dele. Isso irritou-o tanto que lhe entregou logo o livro.
– Vê à vontade – disse ele. – Aqui há apenas letras para cada número. Escreves um a, em vez de um «2» ou um «6».
Começaram a trabalhar, ele a explicar e ela debruçada sobre o livro. Ele era rápido e impetuoso. Ela nunca respondia. Por vezes, quando ele lhe perguntava:
– Estás a perceber? – ela olhava-o com uns olhos sorridentes e amedrontados.
– Então, não estás a perceber nada! – gritava ele.
Tinha ido demasiado depressa. Mas ela não tinha dito nada. Ele fez-lhe mais perguntas e depois irritou-se. Ficava com o sangue a ferver de a ver ali à sua mercê, de boca aberta, olhos esbugalhados, com um sorriso medroso, apologético, envergonhado. Edgar chegou entretanto com dois baldes de leite.
– Olá! – disse ele. – O que estão vocês a fazer?
– Álgebra – respondeu Paul.
– Álgebra! – repetiu Edgar, intrigado. E seguiu em frente, dando uma gargalhada. Paul trincou a maçã já quase esquecida e, olhando para as pobres couves da horta, todas rendilhadas pelas galinhas, teve vontade de as arrancar. Depois, olhou para Miriam, que fitava o livro aparentemente absorta; porém tremia, receando não compreender. Estava corada e bonita. Todavia, a sua alma parecia suplicar ao livro de álgebra que a ajudasse. Ela fechou-se, retraiu-se, percebendo que ele estava aborrecido. Mas, no mesmo instante, ele tornou-se gentil ao vê-la magoada por não conseguir perceber o que lia.
– Diz lá, o que é que achas difícil? – perguntou ele, ternamente.
Este novo tom de voz fê-la levantar de imediato os olhos negros que pareciam querer vencer a todo o custo. O olhar dela doeu-lhe e uma onda de ternura percorreu-o.
– Sabes, para mim é fácil – disse ele. – Já estou habituado e esqueço-me de que não sabes. Vês...
E, então, todo ele gentileza e paciência, recomeçou. Edgar chegara entretanto e pusera-se atrás dele.
A cabeça escura de Miriam encontrava-se abaixo do nível dos olhos de Paul. Era uma cabeça pequenina com caracóis negros que pareciam flutuar como seda. Ela parecia esforçar-se tanto! A voz dele era uma contínua ternura.
– Vejo, pois! – exclamou Edgar, de repente, por detrás deles. – Mas... isto...
E o seu gordo indicador aproximou-se do livro. Miriam estremeceu. Paul virou-se para o amigo. Edgar era bem-parecido e os seus olhos, castanhos, perfeitos e saudáveis, pareciam interessados. Explicar-lhe algo era para Paul como respirar ar fresco.
Paul dava lições a Miriam com regularidade. As aulas tinham lugar na sala de estar. Foi aí que o jovem se estreou brilhantemente. Ela aprendia tudo e sabia sempre quais os exercícios que ele lhe mandara fazer na semana anterior. Frequentemente sabia até melhor do que ele. Mas as coisas para ela tinham de ser lentas. E quando se retraía e se mostrava completamente submissa durante a lição, isso enervava-o. Ele enfurecia-se, envergonhava-se, continuava a lição e enfurecia-se novamente, gritando com ela. Ela escutava-o em silêncio. Por vezes, muito raramente, defendia-se. Os seus olhos negros e transparentes fulminavam-no.
– Não me dás tempo para aprender – dizia ela.
– Pronto – respondia ele, atirando o livro para cima da mesa e acendendo um cigarro. Mais tarde, ia ter com ela arrependido. E assim decorriam as lições, com ele sempre ou muito enervado ou muito gentil.
– Porque é que a tua alma estremece durante a lição? – gritava ele. – Com essa tua bendita alma, nunca mais aprendes álgebra. Será que não consegues olhar para isto com a razão, de uma forma clara e simples?
Muitas vezes, quando ia para a cozinha, Mrs. Leivers olhava para ele aborrecida e repreendia-o:
– Paul não sejas tão severo com a Miriam. Ela pode não ser muito rápida, mas tenho a certeza de que se esforça.
– Não me consigo conter – dizia ele, desculpando-se. – Enervo--me facilmente.
– Miriam, não estás aborrecida comigo, pois não? – perguntava-lhe ele mais tarde.
– Não – assegurava-lhe ela, no seu tom profundo e melodioso. – Não, eu não me importo.
– Não me perdoes tão facilmente, pois eu sei que sou culpado.
Mas, apesar de tudo, o seu sangue começava a ferver novamente. Era estranho que mais ninguém o enervasse daquela forma. Mas ela enfurecia-o. Uma vez atirou-lhe um lápis à cara. Fez-se silêncio. Ela virou a face ligeiramente para o lado.
– Eu não... – começou ele, mas não continuou, pois sentia-se desfalecer. Ela nunca o censurava nem se zangava com ele, e ele sentia-se muitas vezes terrivelmente envergonhado. Contudo, a sua raiva rebentava novamente como uma bolha enfunada. Quando ele via à sua frente aquela cara ansiosa, silenciosa, como se fosse cega, sentia renascer dentro de si a vontade irreprimível de lhe atirar outra vez com o lápis. No entanto, quando via a mão dela tremer e a boca entreabrir-se em sofrimento, o seu coração ardia de compaixão por ela. E, assim, procurava-a, pela força e a intensidade que ela despertava nele.
Muitas vezes evitava-a e ia passear com Edgar. Miriam e o irmão eram naturalmente antagónicos. Edgar era um racionalista curioso e nutria um interesse científico pela vida. Para Miriam, era um grande desespero sentir-se abandonada por Paul em benefício de Edgar, que parecia muito mais inculto. Todavia, Paul sentia-se muito feliz com o irmão mais velho. Os dois homens passavam tardes juntos no campo, carpinteirando no celeiro quando chovia. Conversavam ou então Paul ensinava a Edgar as canções que ele próprio tinha aprendido com Annie ao piano. Frequentemente, todos os homens, incluindo Mr. Leivers, tinham acerbas discussões sobre a nacionalização da terra e problemas semelhantes. Paul já tinha ouvido as opiniões da mãe, e visto serem essas também as suas, discutia-as em seu lugar. Miriam assistia e participava, mas aguardava até que terminassem, e intervinha apenas quando a conversa voltava a ser mais íntima.
«Acima de tudo», pensava ela, «se as terras fossem nacionalizadas, Edgar, Paul e eu continuaríamos a ser os mesmos.»
E então esperava que Paul voltasse para junto dela.
Ele andava a estudar pintura. À noite adorava ficar a trabalhar em casa sozinho com a mãe. Ela cosia ou punha-se a ler. Por vezes, ele interrompia o seu trabalho e descansava os olhos por um momento no rosto da mãe, que brilhava de ternura, para depois retomar feliz a sua tarefa.
– Mãe, os meus melhores trabalhos são feitos quando está aqui sentada na cadeira de balouço – dizia ele.
– Tenho a certeza de que sim – exclamava ela, torcendo o nariz, num cepticismo simulado. Mas sabia que assim era e o seu coração pulsava de alegria. Mrs. Morel sentava-se em silêncio durante horas, costurando ou lendo um livro, atenta ao trabalho do filho. E ele, comandando o lápis com toda a intensidade da sua alma, sentia o calor dela dentro dele, incentivando-o. Eram os dois muito felizes assim e sem consciência de o serem. Estes momentos, tão significativos e tão reais, passavam-lhes quase despercebidos.
Ele apenas tomava consciência quando era estimulado. Quando terminava um esboço, desejava sempre mostrá-lo a Miriam. E então, sentia-se estimulado para conhecer o trabalho que tinha produzido inconscientemente. Em contacto com Miriam adquiria discernimento e a sua visão tornava-se mais profunda. Da mãe retirava o calor da vida e o incentivo para produzir; Miriam dava a esse calor a intensidade de uma luz muito branca.
Quando Paul voltou à fábrica, as condições de trabalho tinham melhorado. Tinha a quarta-feira à tarde livre para ir à escola de belas-artes – providência tomada por Miss Jordan – e regressava à tardinha. Além disso, às quintas e sextas-feiras à tarde, a fábrica fechava às seis em vez de ser às oito.
Em Bestwood havia uma pequena e respeitável biblioteca, cuja assinatura custava apenas quatro xelins e seis dinheiros por ano. Mrs. Morel e Mrs. Leivers tinham-se feito sócias quando os filhos começaram a crescer. A biblioteca ocupava duas salas do Clube dos Mecânicos, e estava aberta às terças-feiras à noite, das 19 às 21 horas. Paul ia sempre buscar os livros para a mãe, que lia muito, e Miriam arrastava-se sob o peso de cinco ou seis volumes para a família. Tornou-se habitual os dois encontrarem-se na biblioteca.
Paul conhecia bem as duas pequenas salas com as paredes forradas de livros. Eram acolhedoras e havia uma grande lareira ao canto. Mr. Sleath, o bibliotecário, tinha fartas suíças brancas em torno de uma cara acriançada. Era alto e curioso, mas muito afável; conhecia toda a gente e sabia da vida de todos. Mr. Smedley era roliço, careca e instruído.
Paul aguardou, enquanto Mr. Sleath acabava de pôr em dia os mexericos com o último leitor. Nessa altura, Paul deixou cair os livros em cima do balcão. Mr. Sleath olhou para ele com os seus olhos azul-vivo, mas mortiços.
– Vinte e dois, cinquenta e sete – disse Paul.
O bibliotecário, funcionário superior da companhia mineira e um cavalheiro comparado com o jovem, repetiu os números alegremente, virando as folhas do livro de registos.
– Ah!... Ah! – exclamou ele, olhando para a página. Depois olhou de uma forma carinhosa e acolhedora para o jovem, esfregou as mãos e disse:
– Ah!... Bem, Paul!... Ah! Como está a tua mãe?
– Muito bem, obrigado! – respondeu Paul.
– Óptimo! Não a vi na capela no domingo à noite!
– Pois não! Teve uma inflamação nos olhos.
– Meu Deus... Meu Deus... Lamento muito!
– Mas penso que disseste – interveio Mr. Smedley – que ela estava muito bem. – Paul não respondeu nem olhou para o homenzinho por detrás do balcão. Mr. Sleath ia assinalando os livros no seu livro de registo. Mr. Smedley pôs mais carvão na lareira. Algumas pessoas conversavam animadamente junto das estantes. Os tacões dos sapatos chiavam na tijoleira.
– Mas achas que ela já se sentirá bem para sair este fim-de-semana? – perguntou Mr. Sleath, quando acabou de registar todos os livros.
– Acho que sim – disse Paul.
– Óptimo... Óptimo. De facto, estranhei a ausência dela.
Para Paul já era um dado adquirido que as pessoas lhe perguntassem pela mãe e nunca mencionassem o pai.
Dirigiu-se para as estantes. Os leitores continuavam a entrar, deixando os chapéus-de-chuva no corredor e trocando agradáveis saudações. O jovem conhecia toda a gente e todas as suas histórias. Mas não lhe interessavam. Miriam talvez não viesse por causa da chuva. Olhou para o livro que tinha nas mãos, esqueceu-o por momentos, pensando nela, e voltou ao livro novamente. O tempo passava como num sono. Ouvia o ruído das pessoas a saírem, mas ninguém a entrar. E se ela não viesse? Só de pensar nisso a noite afigurava-se-lhe lúgubre e infrutífera. Mas ela viria. A atmosfera era quente e acolhedora e a noite não teria continuidade enquanto ela não chegasse.
– Uma noite dos diabos, Alfred, uma noite dos diabos – disse Mr. Sleath, procurando alguém com quem falar. A biblioteca estava vazia.
– Parece que sim – respondeu Mr. Smedley.
Então, Mr. Sleath reparou em Paul.
– Olá, Paul – exclamou. – Ainda não encontraste o que queres, hem?
– Não me parece que o Paul esteja à espera de nenhum livro – disse Mr. Smedley.
– Oh...Oh... – exclamou Mr. Sleath.
– Penso que é uma jovem que está por detrás disto tudo – disse Mr. Smedley. – Mas está uma noite péssima para se vir de Willey Woods.
Ouviram-se passos no corredor. Paul ficou à escuta. Não era ela. Entrou um rapaz. Quando Paul viu o rapaz no limiar da porta, onde ela deveria estar, ficou furioso com ele. Contudo ela viria. Era sempre tão cumpridora. Um dos seus maiores encantos, quanto a ele, era a sua rejeição das convenções. Se quisesse vir, viria mesmo que chovesse torrencialmente. E o tempo não estava assim tão mau. Paul pôs-se a escutar, para ver se chovia muito. E então ouviu o rapaz dizer que estava a chover a cântaros. Mas o rapaz não contava. Ela viria, sim, mesmo que chovesse a cântaros. E Paul agarrou-se a essa esperança. Podia senti-la, através da noite, desejando vir. E ela nunca o desapontava. Para ela a vida interior valia tudo, e a exterior nada.
Ouviu os passos dela no corredor e a sua ansiedade diminuiu. Ficou a vê-la chegar. Ela parou um momento à entrada da porta. A boina vermelha cintilava com as gotas de chuva, o cabelo revolto dançava em caracóis húmidos, as faces esplandeciam. Ela procurou-o ansiosamente com o olhar, e então os seus olhos míopes encontraram-no, e uma chama ateou-se dentro dela, queimando-o também a ele. Dirigiu-se ao balcão, satisfeita. Ele virou-lhe as costas.
Então, ela aproximou-se dele, hesitante.
– Estou atrasada? – perguntou ela.
– Como sempre – respondeu ele. – Estás muito molhada?
– Não... nadinha.
– Vieste pela linha férrea? – disse ele.
– Vim. Estavas com muito medo de que eu não aparecesse?
– Só um bocadinho.
Paul sorriu.
– Vem, vou mostrar-te os livros que escolhi para ti – disse ele. Ela foi. Os livros não tinham qualquer significado para ela. Mas ele insistia na sua aprovação. Olhou para os livros por cima do braço dele, sem conseguir ver nada. Mas ele estava contente.
– Concordas? – perguntou ele.
– Claro – respondeu ela.
Depois de registarem os livros, saíram os dois rapidamente da biblioteca. A escuridão enchia-os de alegria. Sentiam-se exacerbadamente felizes. Paul trazia uma enorme capa preta impermeável, por baixo da qual resguardou os livros. Caminharam lado a lado pela rua Mansfield, envolvidos pela escuridão e pela chuva, sob as árvores gotejantes.
A conversa surgiu rápida e vigorosa, passando imediatamente à discussão sobre um dos livro. Ele falava apaixonadamente, ela ouvia-o e a sua alma expandia-se. Do livro, passaram inevitavelmente a uma discussão sobre crenças íntimas, muito subjectiva.
– Parece que é como se não tivesse importância, um a mais ou um a menos, dentro do todo... – disse ele.
– Não – respondeu ela gravemente, em dúvida.
– Eu costumava pensar assim quando um pardal caía.... e o mesmo em relação aos cabelos da cabeça...
– Sim – disse ela. – E agora?
– Agora penso que a raça dos pardais é importante, e não apenas um pardal: todo o meu cabelo, e não apenas um fio de cabelo.
– Sim – disse ela, pouco convencida.
– E as pessoas são importantes. Mas uma só não é assim tão importante. Vê, por exemplo, o William.
– Sim – disse ela, pensativa.
– Chamo a isso apenas uma perda – disse ele – Uma perda, nada mais.
– Sim – disse ela, com a voz sumida.
Ela acreditava que quanto mais pessoas houvesse, menos importância tinham. Mas ouvi-lo falar assim era para ela como um sopro de vida: como o primeiro sopro de um recém-nascido.
– Contudo – disse ele – creio que há um caminho certo a seguir... se o seguirmos está tudo bem... ou se andarmos perto. Mas se não o seguirmos, morreremos. Tenho a certeza de que o nosso William fez a escolha errada.
– E se seguirmos o curso das nossas vidas não morremos? – perguntou ela.
– Não, não morremos. É o nosso íntimo que nos aconselha a seguir um determinado caminho e não outro.
– Mas nós sabemos quando é que estamos a seguir o caminho certo? – perguntou ela.
– Claro! Eu pelo menos sei. Eu sei que estou a seguir o meu caminho.
– Sabes mesmo? – perguntou ela.
– Sim... tenho a certeza.
Ele tinha parado por baixo de um lampião para pensar. O seu impermeável luzia com a chuva. Ela olhou para a cara dele. Os seus olhos, tão certeiros e tão fixos, fitaram os dela. Ele era realmente determinado. Ela seguiu para casa com o coração em brasa.
Mas ele, quando deu meia volta para retroceder, logo a esqueceu, ao pensar que a mãe ficaria aborrecida ao saber que ele tinha ido até tão longe debaixo de chuva. Estugou o passo, sentindo-se porém exultante com o contacto com Miriam. A noite tinha-lhe trazido alguma satisfação.
– Queres tu dizer que levaste a Miriam Leivers a casa numa noite como esta? – perguntou a sua mãe, fitando-o subitamente, um minuto depois de ele ter entrado.
– Demorei-me muito tempo na biblioteca – argumentou Paul.
– Mas ela apareceu, não apareceu? – exclamou Mrs. Morel, calma e severa. Paul estremeceu.
– Ela fica sem nada para ler durante toda a semana, se não vier à biblioteca – disse ele.
– Não sei o que é que a mãe dela anda a fazer para a deixar arrostar com cerca de 10 milhas debaixo desta chuva torrencial.
– Não está chover muito – disse ele. – Nem por isso.
– Basta olhar para o teu impermeável e para as tuas botas – disse a mãe.
– Olhe o que eu lhe trouxe – disse ele, mas ela estava demasiado zangada para condescender.
Certa tarde de Verão, Miriam e Paul resolveram atravessar os campos, por Herod Farm, no regresso da biblioteca. Assim, eram só três milhas até Willey Farm. A erva segada brilhava com reflexos dourados e os botões de azedas ardiam em tons de carmim. A pouco e pouco, enquanto atravessavam o planalto, os tons dourados do ocaso deslizaram para vermelho, o vermelho para o carmim e, por fim, o azul glacial apagou o clarão.
Foram dar à estrada principal de Alfreton, que singrava branca entre os campos anoitecidos. Aí, Paul hesitou. Eram cerca de duas milhas até sua casa, e uma milha até à casa de Miriam. Olharam para a estrada, que corria sombria sob a luminosidade ténue de noroeste. No cimo do monte, Selby, com as suas casas despojadas e as suas torres mineiras, recortava-se no céu, pequenina, em negras silhuetas.
Ele consultou o relógio.
– Já são nove horas! – disse.
Ambos estavam relutantes em partir, abraçados aos seus livros.
– O bosque é tão bonito a esta hora... – disse ela. – Queria tanto que o visses.
Ele atravessou a estrada atrás dela, lentamente, aproximando-se da cancela branca.
– Eles fazem cá um banzé, se eu chego tarde – disse ele.
– Mas não estás a fazer nada de mal – contrapôs ela, impaciente. E ele seguiu-a através das pastagens retouçadas, à luz do lusco-fusco. Havia uma frescura no bosque, um aroma a folhas e a madressilva, e o crepúsculo. Caminharam em silêncio. A noite desceu, maravilhosa, entre a imensidão de troncos negros. Ele olhou em volta, expectante.
Ela queria mostrar-lhe uma roseira-brava que tinha descoberto, pois achara-a lindíssima. Porém, sentia que só depois de ele a ter visto ela seria capaz de a assimilar. Só ele poderia fazer com que a roseira fosse dela para sempre, imortal. Por isso não estava satisfeita.
O orvalho já era visível pelos caminhos. Do velho bosque de carvalhos elevava-se uma névoa e ele hesitou, questionando-se se a mancha branca seria a linha de bruma ou apenas candelárias-dos-jardins, formando uma pálida nuvem.
Assim que chegaram aos pinheiros, Miriam começou a ficar muito tensa e ansiosa. O seu arbusto podia ter desaparecido. Poderia não o encontrar. E queria tanto descobri-lo. Desejava, quase com paixão, ter Paul perto de si quando descobrisse as flores. A comunhão seria mútua, algo que a iria emocionar, algo de divino. Ele caminhava a seu lado em silêncio. Estavam muito próximos um do outro. Ela estremeceu e ele escutou-a, levemente ansioso.
Assim que chegaram ao limite da floresta, o céu era de madrepérola e a terra escurecia. Algures nos recantos mais afastados do pinheiral a madressilva exalava o seu aroma.
– Onde? – perguntou ele.
– Lá em baixo, no trilho do meio – murmurou ela, tremendo.
Mal acabaram de contornar a curva do atalho, ela parou. Olhou por momentos assustada para o espaço que se abria entre os pinheiros, não conseguindo discernir o que quer que fosse, pois a luz empalidecida tinha apagado a cor das coisas. Mas, finalmente, descobriu o seu arbusto.
– Oh! – exclamou ela, precipitando-se para ele.
Tudo estava sereno. O arbusto era alto e esparso, espraiando as suas silvas sobre um espinheiro próximo, e deixando pender os ramos longos sobre a relva, salpicando a escuridão de grandes estrelas brancas, imaculadas. As rosas brilhavam como botões de marfim, estrelas abertas na escuridão da folhagem, dos troncos e da relva. Paul e Miriam em silêncio, lado a lado, observavam. Uma a uma, convictas, as rosas inundaram-nos de brilho, parecendo atear fogueiras nas suas almas. O crepúsculo envolveu-os como fumo, não conseguindo, todavia, extinguir o fulgor das rosas.
Paul olhou Miriam nos olhos. Estava pálida e deleitada; a boca entreaberta e os olhos negros fitavam-no, muito abertos. O olhar dele parecia descer ao fundo dela. A alma de Miriam estremeceu, pois ansiava a comunhão. Ele, porém, virou-se para o lado, como se sofresse, e olhou para o arbusto.
– Parecem voar como borboletas, agitando-se – disse Paul.
Miriam olhou para as suas rosas. Eram brancas, algumas encurvadas e divinas, outras expandiam-se como em êxtase. A árvore era negra como a sombra. Ela estendeu a mão impulsivamente para as flores e, aproximando-se, tocou-as em adoração.
– Vamos embora – disse ele.
Pairava um perfume fresco de rosas cor-de-marfim, um perfume branco, virginal. Algo o fez sentir-se ansioso e prisioneiro. Caminharam ambos em silêncio.
– Até domingo – disse ele baixinho, e deixou-a; ela regressou a casa lentamente, com a alma enriquecida pela noite divinal. Ele cambaleou pelo atalho. Assim que saiu da floresta e entrou no prado, onde podia respirar, desatou a correr o mais depressa que podia. Era como se um delírio delicioso lhe percorresse as veias.
Sempre que saía com Miriam e se atrasava, sabia que a mãe se afligia e ficava preocupada, apesar de ele não perceber porquê. Assim que chegou a casa, atirando com o boné, a mãe olhou para o relógio. Tinha estado sentada a pensar, pois uma inflamação ocular impedia-a de ler. Imaginara Paul a ser arrastado pela rapariga. Ela não gostava da rapariga. «É uma daquelas que suga a alma de um homem, até ele ficar vazio», dizia de si para si, «e ele é daqueles simplórios que se deixa dominar. Ela nunca o deixará ser um homem, nunca!» Assim, enquanto ele estava com Miriam, ela revoltava-se cada vez mais.
Olhou para o relógio e disse friamente, visivelmente cansada:
– Foste muito longe esta noite.
A alma dele, ainda quente e fragilizada do contacto com a rapariga, contraiu-se.
– Levaste-a certamente a casa – prosseguiu a sua mãe.
Ele não ia responder. Mrs. Morel, examinando o filho de relance, constatou que trazia o cabelo transpirado da correria e ele, em resposta, franziu a testa pronunciadamente como era seu costume, ressentido.
– Ela deve ser maravilhosamente fascinante, pois não te consegues afastar dela, e até és capaz de correr oito milhas a esta hora da noite.
Paul sofria, balançando entre o encantamento dos momentos passados com Miriam e a constatação da aflição de sua mãe. Tinha pensado não dizer nada, recusar-se a responder. Porém, o seu coração não era tão gélido que o levasse a ignorar a mãe.
– Eu gosto de conversar com ela – respondeu irritado.
– E não há mais ninguém com quem possas conversar?
– A mãe não ia dizer nada, se eu tivesse saído com o Edgar.
– Sabes bem que dizia. Sempre que sais com alguém de lá, acho que é muito longe para andares por aí à noite, depois de vires de Nottingham... Além disso... – de repente, a sua voz adquiriu um tom de revoltado desdém – é repugnante ver duas crianças a namoriscar.
– Não é namoro – gritou ele.
– Não sei que outra coisa se lhe poderá chamar.
– Mas não é! Pensa que nos pomos a fazer coisas? Nós apenas conversamos.
– Só Deus sabe até quando e até onde isso irá parar – replicou ela, sarcástica.
Furioso, Paul deu um esticão nos atacadores das botas.
– Porque está tão zangada? – perguntou ele. – Apenas porque não gosta dela?
– Não é que não goste. Mas não suporto e nunca suportei ver crianças a namorar.
– Mas a mãe não se importa que a nossa Annie saia com o Jim Inger.
– Esses são mais conscientes do que vocês.
– Porquê?
– A nossa Annie não é dessas.
Paul não entendeu o alcance do reparo. Mas a mãe parecia cansada. Nunca mais fora a mesma depois da morte de William. E doíam-lhe os olhos.
– Bem – disse ele –, o campo é tão bonito.... Mr. Sleath perguntou por si e disse que tinha tido saudades suas. ... Já se sente melhor, mãe?
– Já devia era estar na cama há muito tempo.
– Mas a mãe também nunca se ia deitar antes de um quarto para as dez.
– Isso é que ia!
– Ah, velhota... agora diz qualquer coisa só por estar zangada comigo, não é?
Depois, Paul beijou aquela testa que conhecia tão bem: as marcas profundas entre as sobrancelhas, a massa de cabelo, agora grisalho e a inclinação das têmporas. A sua mão demorou-se no ombro dela após tê-la beijado e, em seguida, Paul encaminhou-se lentamente para a cama. Tinha esquecido Miriam; apenas se lembrava do cabelo da mãe, puxado para trás, deixando a descoberto uma testa alta, afectuosa. E, fosse pelo que fosse, via que ela estava magoada.
Quando voltou a encontrar-se com Miriam, disse-lhe:
– Não me deixes chegar atrasado hoje... o mais tardar até às dez horas. A minha mãe fica muito aborrecida.
Miriam inclinou a cabeça e reflectiu.
– Fica aborrecida porquê? – perguntou.
– Acha que não devo ficar fora até tão tarde, quando tenho de me levantar cedo no dia seguinte.
– Muito bem! – disse Miriam, com voz calma, mas não isenta de um leve tom de sarcasmo. Isso ofendeu-o, e ele voltou a chegar tarde a casa.
Que o amor começava a desabrochar entre Paul e Miriam era algo que nenhum deles estava preparado para aceitar. Ele achava-se sensato de mais para tais sentimentalismos, e ela demasiado importante. Ainda não tinham atingido a maturidade e a sua pujança psíquica estava muito atrás da física. Miriam era excessivamente sensível, como a mãe sempre tinha sido. A mais leve grosseria angustiava-a. Os irmãos, embora muito rudes, evitavam a vulgaridade nos diálogos. Era fora de casa que os homens discutiam todos os assuntos relativos à quinta. Contudo, e devido talvez aos constantes nascimentos e cruzamentos, actos naturais em qualquer quinta, Miriam revelava uma extrema hipersensibilidade a tais situações, e o sangue revolvia-se-lhe de repugnância à mais vaga sugestão a tais contactos. Paul seguia-lhe as pisadas, e a relação entre eles mantinha-se castamente imaculada. Não se podia sequer mencionar que a égua estava prenha.
Aos dezanove anos, Paul ganhava apenas vinte xelins por semana, mas era feliz. A sua pintura evoluía a contento, e a vida corria-lhe bem. Na Sexta-Feira Santa, organizou um passeio a Hemlock Stone. O grupo era formado por três rapazes da sua idade, Annie, Arthur, Miriam e Geoffrey. Arthur, agora aprendiz de electricista em Nottingham, tinha vindo a casa passar a Páscoa. Como era habitual, Morel levantara-se cedo e estava no pátio a assobiar e a serrar umas tábuas. Às sete da manhã, a família ouviu-o comprar arrufadas quentes à porta, e conversar animadamente com a garota que as vendia, tratando-a até por «minha querida». Apareceram depois mais alguns rapazitos também a vender arrufadas, mas ele mandou-os embora, dizendo-lhes que tinham sido «batidos» pela «cachopinha». Quando Mrs. Morel se levantou, toda a família dispersou. Era uma sorte para todos eles quando a mãe ficava até mais tarde na cama num dia de semana. Paul e Arthur podiam ficar a ler à vontade antes do pequeno-almoço e depois tomar a refeição sem terem de se lavar primeiro e sentar-se à mesa em mangas de camisa. Este era outro dos luxos dos feriados. A sala estava aquecida e toda a casa se libertava de preocupações e ansiedades.
Enquanto os rapazes liam, Mrs. Morel foi para o jardim. Viviam agora numa nova casa, uma casa velha, também em Scargill Street, perto da que tinham ocupado anteriormente e de onde tinham saído logo após a morte de William. Um grito de excitação chegou directamente do jardim:
– Paul... Paul... Vem cá ver uma coisa!
Era a voz da mãe. Paul atirou o livro para o lado e saiu. O jardim era muito comprido e terminava num campo cultivado. Estava um dia cinzento e frio, batido por um vento agreste vindo das bandas do Derbyshire. Dois campos mais adiante começava Bestwood, um emaranhado de telhados e casas de tijolo vermelho, de onde sobressaía a torre da igreja e o pináculo da capela paroquial. Para trás, sucediam-se florestas e colinas até aos picos cinzentos e esbatidos da serra de Pennine.
Paul pôs-se à procura da mãe. A cabeça dela despontou entre as groselheiras ainda tenras.
– Vem cá! – disse ela.
– Para quê? – perguntou ele.
– Vem cá para veres uma coisa!
Ela tinha estado a examinar os pequenos botões das groselheiras. Paul foi ao seu encontro.
– E pensar que, aqui onde estão, podia nunca ter dado com eles! – disse Mrs. Morel.
O filho colocou-se ao seu lado. Por debaixo da cerca, num pequeno canteiro, havia um emaranhado de folhas finas, como se nascidas de bolbos ainda imaturos, com três campainhas em flor. Mrs. Morel apontou para as três florinhas muito azuis.
– Olha para elas! – exclamou. – Estava eu muito entretida a examinar as groselheiras, quando pensei cá com os meus botões, «Está ali qualquer coisa muito azul .... será o resto de algum saco de açúcar?» E olha só! Qual saco de açúcar! Três glórias-da-neve, e tão bonitas! Mas de onde é que teriam vindo?
– Não sei – disse Paul.
– São mesmo uma maravilha! E eu que pensava que conhecia todas as ervas e folhas neste jardim. E não é que estas se deram bem...? Repara que é a groselheira que as protege. Não são debicadas nem pisadas!
Paul baixou-se e levantou as corolas das pequenas flores azuis em forma de campainha.
– Têm uma cor magnífica!
– Têm, não têm? – exclamou a mãe. – Suponho que vêm da Suíça, onde dizem que há coisas maravilhosas. Imagina-as só em contraste com a neve! Mas como é que elas terão vindo aqui parar? O vento não as podia ter trazido, pois não?
Paul lembrou-se então de ter plantado ali uma porção de bolbos para amadurecerem.
– E não me disseste nada – disse a mãe.
– Pois não, estava a pensar deixá-las aqui só até terem medrado.
– Estás a ver?! E eu podia não as ter visto. Nunca em toda a minha vida tive uma glória-da-neve no jardim.
Mrs. Morel estava muito excitada e orgulhosa. O jardim era para ela uma fonte de infinito prazer. Paul dava graças por a mãe viver numa casa com um grande jardim que se estendia até ao campo. Todas as manhãs, após o pequeno-almoço, ela saía e deambulava feliz pelo jardim. E, na verdade, conhecia todas as ervas e folhas no seu jardim.
Todos compareceram para o tal passeio. Prepararam um farnel e o grupo partiu feliz e animado: debruçaram-se do alto do muro da azenha; atiraram papéis para dentro de água numa das extremidades do túnel e ficaram a vê-los sair pela outra; pararam no meio da passagem aérea para peões da estação de Boathouse, fascinados com o brilho gélido dos carris.
– Vocês deviam era ver o «foguete» que passa aqui às seis e meia – disse Leonard, cujo pai era guarda de uma passagem de nível. – Nem sequer o ouvem zunir, rapazes! – E o pequeno grupo seguiu com o olhar nos carris que conduziam a Londres e os que conduziam à Escócia, deixando-se inebriar por estes dois lugares mágicos.
Em Ilkeston, os mineiros aguardavam em grupos a abertura das tabernas. Era uma cidadezinha de ócio e divertimento. Em Stanton Gate, a oficina de fundição ardia incandescente. Eles iam conversando animadamente sobre tudo o que viam. Em Trowell, atravessaram a fronteira do Derbyshire para o Nottinghamshire, e chegaram a Hemlock Stone à hora de almoço. O campo povoava-se de pessoas vindas de Nottingham e Ilkeston.
Estavam à espera de encontrar um monumento digno e respeitável, mas descobriram apenas uma pedra, pequena e rugosa, semelhante a um cepo torcido, ou a um cogumelo putrefacto, despontando pateticamente no meio do descampado. Leonard e Dick gravaram logo as suas iniciais – L.W. e R.P. – na velha pedra de arenito vermelho, mas Paul não o fez, pois tinha lido no jornal críticas mordazes aos gravadores de iniciais, que não encontravam melhor caminho para a imortalidade. E, como não podia deixar de ser, todos treparam à pedra para contemplarem o panorama.
Em baixo, nos campos, rapazes e raparigas, todos eles operários e operárias, comiam ou brincavam. Mais além avistava-se o jardim de um velho solar, cercado de teixos, moitas frondosas e cercaduras de flores amarelas de açafrão.
– Olha que jardim tão tranquilo – disse Paul para Miriam.
Ela contemplou os teixos negros e os crocos amarelos e olhou para ele agradecida. Quando estavam acompanhados por outras pessoas, ele parecia não lhe pertencer; era diferente, não era aquele Paul que compreendia o mais leve estremecimento da sua alma misteriosa, mas uma outra pessoa, que falava uma linguagem diferente da sua. Ah, como isso a magoava e lhe enfraquecia a nitidez da percepção! Só se sentia reviver quando ele vinha ao seu encontro sem esse outro Eu de casta inferior. Mas agora ele tinha-lhe pedido para olhar o jardim, tentando desta forma chegar até ela. Sem paciência para aturar o grupo, Miriam entregou-se à contemplação daquele jardim tão calmo, rodeado de tufos de açafrão amarelo. Uma sensação de quietude, quase de êxtase, envolveu-a. Era como se estivesse sozinha com ele no jardim.
Mas ele abandonou-a novamente e foi juntar-se ao grupo. Em breve iniciaram o regresso a casa. Miriam deixou-se ficar para trás, sozinha. Não se enquadrava. Raramente se relacionava com alguém: na verdade, a sua grande amiga, companheira e amante era a natureza. Viu o sol declinar languidamente. Nas sebes frias e sombrias luziam algumas folhas vermelhas. Sem pressa, detinha-se para as colher com ternura, apaixonadamente. Os seus dedos acariciavam as folhas com amor e o coração incendiava-se-lhe de paixão.
De súbito, apercebeu-se de que estava sozinha numa estrada desconhecida e apressou-se. Depois de uma curva, encontrou Paul debruçado sobre qualquer coisa que ela não conseguia ver, mas que ele observava atentamente, aplicando-se com paciência, intento, e até algum desespero. Miriam hesitou em aproximar-se.
Ele continuava concentrado em plena estrada. Na tarde cinzenta, tão desprovida de cor, um fio dourado de sol, ao longe, parecia fazê-lo sobressair em sombrio baixo-relevo. Ela contemplou-o, delgado e firme, e era como se ele lhe tivesse sido oferecido pelo sol. Uma dor profunda penetrou-a e soube então que tinha de o amar. Tinha-o finalmente descoberto, descoberto nele uma rara potencialidade, descoberto a sua solidão. Tremeu emocionada, como se estivesse perante uma «Anunciação», e aproximou-se devagar.
Ele, finalmente, levantou os olhos.
– Oh! – exclamou, agradecido. – Esperaste por mim!
Ela descobriu uma sombra profunda nos seus olhos.
– O que aconteceu? – perguntou.
– A mola partiu-se.
E ele mostrou-lhe o seu chapéu-de-chuva danificado. Subitamente, um pouco envergonhada, ela apercebeu-se de que não fora ele quem estragara o chapéu-de-chuva, mas que o responsável era Geoffrey.
– Afinal era um chapéu-de-chuva velho, não era? – disse ela. Miriam não entendia a razão de tão exagerado zelo, pois ele não era geralmente de se prender com ninharias.
– Mas este era o chapéu-de-chuva do William... e a minha mãe vai ter de saber – disse ele baixinho, tentando pacientemente consertar o chapéu-de-chuva. Estas palavras rasgaram-na como uma lâmina. Eram a confirmação da imagem que tinha dele! Olhou-o. Havia nele, porém, uma certa reserva, e ela não se atreveu a confortá-lo, nem mesmo a falar-lhe com meiguice.
– Vamos – disse ele –, não consigo arranjá-lo.
E seguiram em silêncio estrada fora.
Iam eles nessa mesma tarde a passar em Nether Green, por entre o arvoredo, quando ele lhe confidenciou, num tom algo irritado, como se lutando para se autoconvencer.
– Sabes – disse com esforço –, se uma pessoa ama, a outra também ama.
– Ah! – exclamou ela. – A minha mãe disse-me o mesmo quando eu era pequena: «O amor gera o amor.»
– Sim... algo parecido com isso... penso que deve ser isso.
– Espero que sim... porque, se não fosse assim, o amor seria algo de terrível – acrescentou ela.
– Mas é isso que acontece... pelo menos com a maioria das pessoas – respondeu ele.
E Miriam pensando que ele estivesse mais animado, sentiu-se fortalecida. Tinha considerado aquele encontro fortuito na vereda como uma revelação. E este diálogo ficou gravado na sua mente como palavra de lei.
Agora, estava com ele e do lado dele. Quando, pela mesma altura, Paul ofendeu a família dela com um insulto arrogante, ela apoiou-o e achou que ele tinha razão.
Sonhava agora com ele de uma forma viva e inesquecível. Mais tarde, os sonhos voltaram, tendo evoluído para estados psicológicos mais subtis.
Na segunda-feira de Páscoa, o mesmo grupo fez uma excursão até ao solar de Wingfield. Foi um momento de grande excitação para Miriam ao apanhar o comboio em Lethey Bridge, por entre o alvoroço da multidão num dia feriado. Saíram do comboio em Alfreton. Paul estava interessado na rua e nos mineiros a passearem os seus cães. Aquela era uma nova raça de mineiros. Miriam não se sentiu viver senão quando chegaram à igreja. Todos se mostravam algo acanhados para entrarem na igreja com os sacos da merenda, pois tinham receio de serem expulsos. Leonard, um rapaz magro e brincalhão, foi o primeiro a entrar, e Paul, que teria preferido morrer a ser mandado embora, foi o último. A igreja estava enfeitada para a Páscoa: centenas de narcisos brancos pareciam desabrochar da pia baptismal, e a luminosidade era difusa e colorida, filtrada pelos vitrais e animada por um aroma subtil a lírios e narcisos. A alma de Miriam inflamou-se nesta atmosfera. Paul, sensível à envolvência do local, receava não saber comportar-se à altura. Miriam voltou-se para ele. Ele correspondeu. Estavam juntos. Paul não quis passar para lá da divisória da comunhão, e ela apreciou o seu gesto. A sua alma elevou-se em orações ao lado dele. Paul sentia um estranho fascínio por lugares religiosos e obscuros. Todo o seu misticismo latente palpitava de vida. Ela sentia-se atraída por ele. Ele estava nela, como uma oração.
No adro da igreja, os narcisos e os junquilhos já tinham desabrochado e brilhavam ao sol como se flutuassem. As ovelhas, no parque, faziam vibrar o ar com os seus múltiplos e ténues balidos. Leonard e Dick entraram numa taberna para tomar uma bebida, para grande tristeza de Paul e Annie.
– Para que entraram na taberna? – perguntou Paul aborrecido.
– Bem – disse Dick, sorrindo –, só lá fomos beber uma limonada.
– Podiam muito bem ter ido à venda – disse Annie.
– À venda! – exclamou Leonard. – Estão a imaginar-nos... nós... ingleses de gema, a beber limonada na venda?
– Não – respondeu Paul. – Mas imagino-te com a tua enorme caneca de cerveja... inglesa de gema.
– E que mal te faz a minha caneca? – disse Leonard, limpando a boca, por sinal enorme.
Miriam só raramente falava com os outros rapazes. Tinham sido malcriados com ela uma vez e, desde essa altura, mantinha-se geralmente calada.
Passava do meio-dia quando subiram a ladeira íngreme que conduzia ao solar. Tudo em redor brilhava com suavidade, à luz de um sol quente, intenso e estimulante. As celidónias e as violetas estavam em flor. A natureza transbordava de felicidade. Tudo era perfeito: o esplendor da hera, os tons suaves e cinzentos, atmosféricos, dos muros do castelo, a harmonia que rodeava as ruínas.
O solar era de pedra dura cinzento-pálido, e as paredes exteriores brancas e repousantes. Os jovens estavam extasiados. Sentiam-se excitados, quase receosos de que o prazer da exploração destas ruínas lhes fosse negado. No primeiro pátio, situado entre muros altos e derrubados, havia algumas carroças com os varais abandonados pelo chão, e os aros das rodas cintilavam em tons vermelho-dourado de ferrugem. A serenidade era total.
Todos se mostravam desejosos de pagarem os seis dinheiros da entrada, posto o que transpuseram a medo pelo arco harmonioso e bem lançado que dava acesso ao pátio interior. Mostravam-se tímidos. No local onde antes se erguera o muro, florescia agora um velho espinheiro. Todas as espécies de espaços abertos e salas em ruínas se abriam à sua volta, na penumbra.
– Digam lá se isto não é uma maravilha? – exclamou Leonard.
– É mesmo – acrescentou Paul.
E passaram de imediato à exploração.
– Eh, malta – chamou Leonard. – Venham ver o forno que eu descobri!
E, sem perder tempo, Leonard entrou pelo buraco. Dick e Paul entraram atrás dele e sentaram-se os três no chão a gritar, como se estivessem nas entranhas da terra.
– Aqui dava bem para assar um boi, ou até dois – disse Nick.
– E um veado ou dois – acrescentou Paul.
– E um burro ou dois – rematou Leonard, pondo-se a zurrar muito alto, enquanto os outros dois lhe batiam.
Paul voltou a sair para o ar livre e a exploração continuou. Finalmente, encontraram Geoffrey e as raparigas. Geoffrey estava a comer.
– Parece que tá na hora de dar ao dente – disse Leonard.
– Eu já m’adiantei – respondeu Geoffrey, que não fizera outra coisa desde que o grupo partira.
– Onde é que nos podemos sentar? – perguntou Miriam.
– Vamos para a sala dos banquetes – alvitrou Paul.
– Como é que sabes que aquela é a sala dos banquetes? – perguntou Leonard.
– Vi numa pintura.
– Pois então, toca a sentar – disse Leonard.
No enorme salão em ruínas, com as paredes frias erguidas para o céu azul, lá se sentaram todos a comer ao sol, observando os pássaros que chilreavam pousados no florão da ampla janela.
– Então, D. Cogumelo – disse Leonard, virando-se para Paul –, sois servido desta empada de veado?
– Mil agradecimentos, D. Trinca-Espinhas – respondeu Paul. – Comerei antes esta coxinha de pão com queijo.
– Por obséquio – disse Geoffrey –, podeis apertar-vos mais, pra eu me poder sentar?
– Perdoai, Insigne Cavaleiro – respondeu Leonard. – Mas será tão grande assim vossa gordura?
– Paul – disse Annie –, tens aqui o teu ovo cozido.
– Ilustres cortesãos, deleitamo-nos hoje com um festim de ovos de aves fabulosas, postos pela nossa única fénix, e ostentando todos eles o nosso brasão, tal como neles foi gravado pelas nossas aves mais colaborantes – disse Paul.
– Ou seja... um montinho de porcaria – disse Leonard.
– E direi mais... Um brasão que é o nosso orgulho desde há muitas gerações, ámen! – disse Annie.
– Oh, sublime insígnia! – rematou Paul, fazendo Miriam desatar a rir.
Depois do almoço partiram mais uma vez à exploração das ruínas. Desta feita, as raparigas acompanharam os rapazes, que assumiram o papel de guias e professores. Uma torre alta e deveras periclitante surgiu diante dos seus olhos ao virarem uma esquina, e os rapazes logo informaram que Mary, rainha da Escócia, tinha sido ali encarcerada.
– Imaginem a rainha a subir por aqui acima... – disse Miriam em voz baixa, enquanto subia as escadas tortuosas.
– Isso, se ela se conseguisse levantar – respondeu Paul. – Sofria muito do reumatismo. Aposto que a tratavam o pior possível.
– E não achas que merecia? – perguntou Miriam.
– Acho que não. Ela era apenas uma pessoa jovial.
Continuaram a subir a escada de caracol. Uma rajada agreste entrou pelas seteiras e rodopiou pelo vão das escadas, levantando a saia de Miriam em balão, para seu grande embaraço, até que Paul agarrou na barra do vestido e o puxou para baixo. Fê-lo com destreza e simplicidade, como se lhe apanhasse uma luva do chão. Ela recordaria para sempre este momento.
A hera pendia frondosa, vetusta e bela, em torno do torreão em ruínas. Havia também algumas cravinas esparsas, com os seus botões tristes e pálidos. Miriam quis debruçar-se para apanhar um raminho de hera, mas Paul não deixou, ficando ela atrás dele, a receber um a um cada raminho que ele lhe entregava, num gesto do mais genuíno cavalheirismo. A torre parecia ondular ao vento. Do alto avistavam-se milhas e milhas de terreno arborizado e terreno de pastagens.
A cripta subjacente ao solar era muito bela e em perfeito estado de conservação. Paul não perdeu a oportunidade de a desenhar. Miriam ficou junto dele, a pensar em Mary, rainha da Escócia, fitando os montes de onde não vinha qualquer ajuda, com os seus olhos exaustos e desesperados, que não compreendiam a miséria; imaginou-a também sentada naquela cripta, escutando a história de um Deus tão frio quanto o lugar onde se encontrava.
Puseram-se de novo a caminho, exultantes, lançando um último olhar àquele solar a que se sentiam presos e que se erguia tão nítido e imponente no alto da colina.
– Imagina que aquela quinta era tua – disse Paul a Miriam.
– Sim!!
– Não era maravilhoso eu ir lá visitar-te?
Encontravam-se agora num descampado com muros de pedra, de que ele tanto gostava, e que, embora só a algumas milhas de casa, parecia tão estranho a Miriam. O grupo seguia agora disperso. Ao atravessarem um extenso prado, muito íngreme, com o sol por trás, descendo por um caminho salpicado de incontáveis pontinhos cintilantes, Paul entrelaçou os dedos no saco de rede de Miriam, que logo sentiu Annie atrás de si, atenta e ciumenta. Mas o prado estava banhado numa luz gloriosa e o caminho luzia como uma jóia, e era tão raro ele dar-lhe algum sinal... Conservou por isso os dedos muito quietos entre as cordas do saco, aflorando os dedos dele. E o mundo dourou-se inteiro, como se numa visão.
Finalmente, chegaram à vilazinha isolada e pardacenta de Crich, situada a grande altura. Atrás da vila ficava o famoso Crich Stand, que Paul avistava do jardim de sua casa. O grupo estugou o passo. Grandes extensões de terrenos estendiam-se em baixo a toda a volta. Os rapazes estavam ansiosos por chegarem ao topo da colina, que era encimada por um cabeço redondo, de que metade já se tinha desmoronado, e no topo do qual se erguia um monumento antigo, grotesco e atarracado, usado noutros tempos para enviar sinais para as planícies do Nottinghamshire e do Leicestershire.
O vento soprava forte, lá no alto, naquele local tão exposto, e a única forma de se estar protegido era ser pregado pelo vento à parede da torre. Aos seus pés abria-se o precipício, de onde se extraía a pedra calcária. Em baixo, reinava uma confusão de colinas e pequenos povoados: Matlock, Ambergate, Stoney Middleton. Os rapazes estavam ansiosos por descortinarem a Igreja de Bestwood, que ficava muito distante, no meio da floresta, um pouco para a esquerda. Mas ficaram tristes ao verem que a igreja parecia erguer-se numa planície – as colinas do Derbyshire apagavam-se na monotonia das terras baixas que se estendiam para sul.
Miriam estava um pouco assustada com o vento, mas os rapazes estavam a gostar. Continuaram a caminhada, calcorreando milhas e milhas, até Whatstandwell. Todos estavam esfomeados, pois já tinham devorado a comida toda que levavam e já lhes restava pouco dinheiro para regressarem a casa. No entanto, ainda conseguiram arranjar uma broa e um pão de passas, que cortaram em fatias finas com os canivetes, sentando-se a comer num muro, perto da ponte onde o rio Derwent corria límpido, ao som do chiar dos freios do comboio em Matlock, perto da estalagem.
Paul estava pálido de cansaço. Tinha sido o chefe do grupo durante todo o dia, e agora estava morto de cansaço. Miriam, apercebendo-se disso, manteve-se junto dele, e Paul entregou-se à sua guarda.
Tiveram de esperar uma hora na estação de Ambergate. Os comboios passavam lotados com excursionistas que regressavam a Manchester, Birmingham e Londres.
– Também podíamos ir para lá... as pessoas facilmente pensariam que íamos para muito longe – disse Paul.
Chegaram a casa bastante tarde. No caminho de regresso a casa, com Geoffrey, Miriam viu a lua nascer redonda, rubra e velada, e sentiu-se realizada interiormente.
Miriam tinha uma irmã mais velha, Agatha, que era professora. A hostilidade entre as duas irmãs era notória. Miriam considerava Agatha uma pessoa demasiado mundana e o seu sonho era ser também professora primária.
Um sábado à tarde, Agatha e Miriam estavam a vestir-se no primeiro andar. O quarto delas ficava por cima do estábulo. Era um quarto de tectos baixos, não muito grande e de paredes nuas. Miriam tinha pregado na parede uma reprodução da Santa Catarina, de Veronese. Fascinava-a aquela mulher, sentada na janela a sonhar. As suas janelas eram demasiado pequenas para lá se poder sentar. Todavia, a da frente estava coberta de madressilva e hera americana, e de lá avistavam-se as copas do bosque de carvalhos, por detrás do quintal, enquanto a minúscula janela traseira, pouco maior do que um lenço, não passava de uma fresta voltada para oriente, para a aurora que se acendia atrás das colinas arredondadas que ela tanto amava.
As duas irmãs não falavam muito uma com a outra. Agatha, bonita, baixa e determinada, tinha-se revoltado contra a atmosfera do lar e contra a doutrina do «dar a outra face». Enfrentava agora o mundo exterior, lutando para se tornar independente. Insistia nos valores da cultura, nas aparências, nas boas maneiras, na posição social, tudo coisas que Miriam de bom grado teria ignorado.
Quando Paul chegou, ambas preferiram ficar invisíveis lá em cima, para poderem descer as escadas a correr, abrirem a portinhola do fundo das escadas e verem-no entrar, ansioso por encontrá-las. Miriam tentava desesperadamente enfiar pela cabeça o rosário que ele lhe tinha oferecido, e que ficara preso no fino emaranhado dos seus cabelos. Finalmente, conseguiu colocá-lo, e as contas de madeira, castanho-avermelhado, assentavam lindamente no seu pescoço fresco e mate. Era uma rapariga bem lançada e muito bonita. Contudo, só conseguia ver uma parcela do seu corpo de cada vez no pequeno espelho pregado na parede caiada de branco. Agatha tinha comprado um espelho só para ela, com o tamanho certo, que encostava à parede sempre que precisava. Miriam estava perto da janela. De repente, escutou o estalido bem conhecido do cadeado e viu Paul a abrir a cancela com um pontapé, entrando no pátio com a bicicleta. Ele olhou para cima e ela escondeu-se. Paul avançava com indiferença, e a bicicleta acompanhava-o como se fosse um objecto animado.
– O Paul já chegou! – exclamou Miriam.
– Não estás contente? – disse Agatha, evidenciando sarcasmo.
Miriam estava ainda surpresa e perplexa.
– Então, estás ou não estás? – insistiu a outra.
– Estou, mas não quero que ele perceba e pense que eu estava à espera.
Miriam estava perplexa. Ouviu-o meter a bicicleta no estábulo e falar com Jimmy, um cavalo decrépito que tinha trabalhado nas minas.
– Atão, Jimmy, meu amigo, como vai isso? Velho e cansado, hem? Pois é, é uma pena, amigo!
Escutou o som da corda a roçar na argola, quando o cavalo levantou a cabeça às carícias do rapaz. Como ela gostava de o ouvir quando ele pensava que o cavalo estava ali para o escutar. Porém, havia uma serpente no seu Éden. Ela procurava fervorosamente descobrir dentro si se amava Paul Morel. Sentia que poderia haver algo de errado nesse impulso. Enredada em sentimentos confusos, receava desejá-lo e condenava-se por isso. E logo a penetrou uma dor intensa, de vergonha, e todo o seu ser se contraiu num espasmo de tortura. Desejaria ela Paul Morel, e saberia ele que ela o desejava? Que subtil infâmia a ameaçava! E sentiu a alma enleada em nós de vergonha.
Agatha vestiu-se primeiro e desceu rapidamente para o rés-do--chão. Miriam ouviu-a cumprimentar o rapaz num tom jovial; conhecia bem o brilho dos olhos da irmã quando saudava alguém naquele tom. Ela própria se teria sentido corajosa por tê-lo cumprimentado daquela forma. Contudo, sentia dentro da alma a auto-flagelação de o desejar, aliada a um sentimento de tortura. Em perplexa amargura, ajoelhou-se e rezou:
– Senhor, não permitas que eu ame o Paul Morel. Afasta de mim esse sentimento, se achares que eu não devo amá-lo.
Algo de estranho a fez interromper a oração. Levantou a cabeça e reflectiu. Como é que amá-lo poderia ser errado? O amor era uma dádiva de Deus e, no entanto, causava-lhe vergonha. Era por ele, por Paul Morel, que a sentia. Mas esse não era assunto que lhe dissesse respeito, era só entre ela e Deus. Tinha de fazer o sacrifício, um sacrifício por Deus e não por Paul Morel ou por si mesma. Passados alguns minutos, escondeu a cara na almofada e disse:
– Meu Deus, se é Tua vontade que eu o ame, então submeto-me, como Cristo se submeteu e morreu pelas almas dos pecadores. Faz com que eu o ame fervorosamente, pois ele é Teu filho.
Permaneceu de joelhos por mais alguns instantes, serena, mas profundamente emocionada, com o cabelo negro espalhado sobre os quadrados da colcha de retalhos, vermelhos uns, outros com raminhos de alfazema. Rezar era algo de quase essencial para ela. Depois, caía naquele arrebatamento de auto-sacrifício, identificando-se com um Deus que fora sacrificado, acto que representa para tantas almas humanas a sua bênção mais sublime.
Quando Miriam desceu, Paul estava recostado no cadeirão, em acesa discussão com Agatha, que ridicularizava uma pequena pintura que ele tinha trazido para lhe mostrar. Miriam olhou-os e fugiu à sua frivolidade, indo para a sala de estar para ficar sozinha.
A hora do chá chegou sem que ela tivesse tido possibilidade de falar com Paul; mostrava-se tão distante que ele pensava tê-la ofendido.
Miriam quebrou a rotina de ir todas as terças-feiras à tardinha à biblioteca de Bestwood. Depois de se ter encontrado regularmente com Paul durante toda a Primavera, um número de incidentes insignificantes e pequenos reparos vindos da família levaram-na a aperceber-se das suas atitudes, e decidiu pôr fim às saídas. Assim, numa bela tarde, informou Paul de que não poderia voltar a ir ter a casa dele às terças-feiras à tarde.
– Porquê? – perguntou ele, com brusquidão.
– Por nada. Porque acho melhor assim.
– Muito bem.
– Mas... – gaguejou ela – ... se quiseres estar comigo, podemos ir juntos.
– E encontramo-nos onde?
– Algures... onde tu quiseres.
– Não te quero encontrar em lado nenhum. Não compreendo porque é que não podes continuar a vir buscar-me. Mas se não vieres, não quero encontrar-me contigo.
Assim, as terças-feiras à tarde, esses dias que tinham sido tão especiais para ela e para ele, terminaram. E Paul passou a ocupar esse tempo a trabalhar. Mrs. Morel viu com bons olhos esta decisão.
Paul não aceitava que fossem namorados. A intimidade entre eles tinha sido mantida ao nível do abstracto, era um assunto da alma; visto não passar de um conceito e de uma luta exaustiva ao nível da consciência, ele via nela apenas uma amizade platónica e negava peremptoriamente a existência de algo mais. Miriam permanecia em silêncio, ou então concordava sem discutir. E ele sentia-se um idiota, pois não entendia o que se passava no seu íntimo. Através de um acordo tácito, ignoravam os reparos e as insinuações das pessoas conhecidas.
– Não somos namorados, mas apenas amigos – disse-lhe ele. – Nós sabemos que é assim. Deixa-os falar. Não importa o que dizem.
Por vezes, quando caminhavam juntos, ela metia o braço timidamente no dele. Mas ele retraía-se sempre, e ela sabia-o, o que dava lugar a um conflito violento. Com Miriam, Paul sentia-se sempre no mais alto nível de abstracção, e a sua chama de amor natural transformava-se em energia mental. E ela aceitava-o assim. Se ele estivesse bem-disposto e, como ela dizia, brincalhão, ela aguardava que ele voltasse ao normal, que ele se transformasse, e o visse a lutar de novo consigo mesmo, empolgado, apaixonado, tentando compreender a situação. Nesta paixão pela compreensão, as suas almas tocavam-se e ele era totalmente dela. Todavia, tinha de se abstrair primeiro.
Assim, ela dar-lhe o braço era para ele quase uma tortura. A sua consciência parecia desintegrar-se. A parte do corpo onde ela lhe tocava ardia com a fricção. Era uma batalha mortal para ambos e por isso ele a tratava com crueldade.
Uma tardinha, nos meados do Verão, Miriam foi chamá-lo a casa, chegando transpirada devido à subida. Paul estava sozinho na cozinha e ouviam-se os passos da mãe no primeiro andar.
– Vem, vou mostrar-te as ervilhas-de-cheiro – disse ele.
Foram até ao jardim. O céu, por detrás da cidade e da igreja, era vermelho-alaranjado, e o jardim inundava-se de uma luminosidade estranha e quente que dava sentido a cada folha. Paul avançou pelo estreito carreiro ladeado de ervilhas-de-cheiro, colhendo flores creme e azul-pálido por aqui e por ali. Miriam seguia-o, aspirando as fragrâncias. As flores atraíam-na com tal intensidade que ela sentia necessidade de as tornar uma parte de si mesma. Quando se baixava e cheirava uma flor, era como se ambas se amassem uma à outra. Paul detestava vê-la fazer isso. Ela expunha-se demasiado naquela sua atitude, até mesmo intimamente.
Assim que o ramo ficou de bom tamanho, regressaram a casa. Ele escutou por momentos os passos calmos da mãe no andar de cima e, depois, disse:
– Vem cá, deixa-me enfeitar-te com elas.
E espetou duas ou três de cada vez à volta do decote do vestido, recuando em seguida para admirar o efeito.
– Sabes – disse ele, tirando o alfinete da boca – a mulher devia colocar sempre as flores em frente ao espelho.
Miriam sorriu. Para ela, as flores deviam ser colocadas no vestido sem qualquer preocupação. Se Paul se queria dar ao trabalho de lhe espetar as flores no vestido com rigor, isso era lá com ele.
Paul ficou muito ofendido com a gargalhada que ela deu.
– Algumas mulheres fazem-no.... as que são como devem ser – disse ele.
Miriam sorriu novamente, mas desta vez melancólica, por ele a ter misturado com as mulheres em geral. Teria ignorado a afronta, se tivesse partido de outro homem qualquer. Mas, vinda dele, magoava-a.
Estava ele a terminar o arranjo de flores quando ouviu os passos da mãe nas escadas. Espetou o último alfinete à pressa e afastou-se.
– Não deixes que a minha mãe perceba – disse ele.
Miriam pegou nos livros e ficou à entrada da porta, olhando desapontada para o belíssimo pôr do Sol. Não tornaria a vir a casa de Paul, disse ela.
– Boa tarde, Mrs. Morel – cumprimentou-a Miriam, respeitosamente. As suas palavras soaram como se ela não tivesse o direito de estar ali.
– Ah, és tu, Miriam! – respondeu Mrs. Morel friamente.
Paul insistia em que todos aceitassem a sua amizade com a rapariga, e Mrs. Morel era demasiado esperta para demonstrar abertamente qualquer relutância.
Só quando ele fez vinte anos é que a sua família teve possibilidades económicas para ir de férias. Desde que casara, Mrs. Morel nunca tinha ido de férias, excepto para visitar a irmã. Finalmente, Paul tinha conseguido juntar dinheiro suficiente para levar a família de férias. O grupo era o seguinte: alguns amigos de Annie, um amigo de Paul, um rapaz do escritório onde Paul tinha estado anteriormente e Miriam.
A reserva dos quartos provocou grande alarido. Paul e a mãe debateram várias vezes o assunto. Queriam uma casinha rústica mobilada para duas semanas. Ela achava que uma semana seria suficiente, mas ele insistia em duas. Paul saiu logo de manhã, antes de o correio chegar. Assim, quando voltou, as primeiras palavras da mãe foram:
– Paul, sabes uma coisa... aquela espertalhona de Skegness quer só quatro guinéus por semana por aquele seu barraco miserável.
– Então, vai ter muito de esperar – disse Paul.
– Também acho – respondeu a sua mãe, indignada. Nessa mesma noite, Paul escreveu outra carta. Receberam finalmente resposta de Mablethorpe – uma casinha que preenchia os seus desejos, por trinta xelins por semana. Houve uma explosão de alegria. Paul estava radiante pela mãe. Agora sim, ela ia ter umas verdadeiras férias. À noite, ficavam sentados a imaginar como seriam. Entretanto, chegaram Annie, Leonard, Alice e Kitty. Havia grande alegria e expectativa. Paul contou a Miriam. Ela pareceu feliz, mas comedida. Porém, o lar dos Morels vibrava de excitação.
CONTINUA
A cozinha era muito pequena e esquinada. A quinta tinha sido inicialmente o casebre de um jornaleiro, e a mobília estava velha e gasta. Mas Paul gostava da casa; gostava da serapilheira que substituía o tapete da chaminé e daquele vão patusco por baixo das escadas, e do postigo que se abria ao fundo e através do qual, se se curvasse, podia ver as ameixoeiras do jardim das traseiras e os graciosos cabeços arredondados que se recortavam à distância.
– Não te queres deitar? – disse Mrs. Leivers.
– Oh, não... não estou cansado – respondeu Paul. – É maravilhoso andar lá por fora, não é? Vi um abrunheiro em flor e muitas celidónias. Estou tão feliz por estar sol.
– Queres comer ou beber alguma coisa?
– Não, obrigada.
– Como está a tua mãe?
– Penso que se sente cansada... tem andado muito ocupada. Talvez vá em breve para Skegness comigo. Assim, terá oportunidade de descansar. Quem me dera que isso aconteça.
– Sim – respondeu Mrs. Leivers. – É um milagre que ela não esteja doente.
Miriam andava de um lado para o outro a preparar o jantar. Paul observava tudo o que se passava. As suas faces estavam pálidas e magras, mas os olhos continuavam, como sempre, rápidos e vivos. Ia observando os movimentos estranhos, quase rapsódicos, da rapariga, levando um tacho de guisado para o forno ou vigiando a panela. A atmosfera de sua casa era diferente, lá tudo parecia vulgar. Quando lá fora Mr. Leivers gritou com o cavalo, que se preparava para comer as roseiras no jardim, a rapariga assustou-se e olhou em volta com os seus olhos muito negros, como se algo tivesse vindo perturbar o seu mundo. Sentia-se o silêncio dentro e fora de casa. Miriam parecia estar a viver um conto de fadas, onde era uma donzela cativa e o seu espírito vagueava por uma terra distante e mágica. E a sua túnica azul, velha e desbotada, e as botas já muito gastas, pareciam os andrajos românticos da mendiga do Rei Cophetua.
Subitamente, sentiu os olhos dele, azuis e penetrantes, devorá-la. No mesmo instante as suas botas gastas e o seu velho vestido puído magoaram-na. Lamentava profundamente que ele estivesse a ver tudo. Pois se ele até sabia que a meia dela não estava completamente esticada. Dirigiu-se para a copa com as faces ruborizadas. Mais tarde, as mãos tremiam-lhe levemente durante as tarefas domésticas, quase deixando cair tudo aquilo em que pegava. Quando o seu sonho interior era abalado, o seu corpo estremecia com a trepidação. Lamentava profundamente que ele visse tanta coisa.
Mrs. Leivers sentou-se e conversou durante algum tempo com o rapaz, embora tivesse o trabalho à espera. Era todavia demasiado educada para o deixar sozinho. A certa altura, pediu licença e levantou-se. Daí a pouco olhou para a panela:
– Miriam, querida! – chamou. – As batatas estão sem água!
Miriam respondeu como se algum bicho lhe tivesse mordido.
– E depois, mãe? – exclamou ela.
– Não seria grave se eu não tas tivesse confiado – disse a mãe. – E espreitou para dentro da panela.
A rapariga pôs-se hirta como se tivesse levado um soco. Os seus olhos negros dilataram-se e ficou estática, no mesmo lugar.
– Tenho a certeza de que ainda há cinco minutos as vi – respondeu, crispada, sentindo-se culpada.
– Eu entendo – disse a mãe. – São coisas que acontecem.
– Não estão muito queimadas – disse Paul. – Não tem importância, pois não?
Mrs. Leivers olhou para o jovem com os seus olhos castanhos, magoados.
– Não teria importância, se não fosse pelos rapazes – disse ela. – Só Miriam sabe o barulho que eles fazem quando as batatas se pegam.
«Nesse caso», pensou Paul com os seus botões, «não deviam deixá-los fazer tanto barulho.»
Daí a nada, entrou Edgar. Vinha de perneiras e trazia as botas cobertas de terra. Era bastante baixo e muito formal para lavrador. Olhou de relance para Paul, cumprimentou-o de longe e perguntou:
– O comer está pronto?
– Está quase, Edgar – respondeu a mãe desculpando-se.
– Pois eu já estou pronto – disse o jovem, pegando no jornal e começando a ler. Entretanto, chegaram os restantes membros da família. O almoço foi para a mesa. A refeição decorreu com grande informalidade. A excessiva delicadeza e tom apologético da mãe realçavam mais o comportamento indelicado dos filhos. Edgar provou as batatas, mexeu a boca rapidamente como um coelho, olhou indignado para a mãe e disse:
– Estas batatas estão esturradas, mãe!
– Pois estão, Edgar... distraí-me por um minuto. Mas talvez possas comer pão, se não as conseguires comer.
Edgar olhou com raiva para Miriam.
– O que estava a Miriam a fazer, para não poder tomar conta delas? – disse ele.
Miriam levantou os olhos. A boca entreabriu-se-lhe, os seus olhos brilharam intensos, pestanejantes, mas permaneceu calada. Engoliu a raiva e a vergonha, e baixou a cabeça.
– Tenho a certeza de que não foi por mal – disse a mãe.
– Nem umas batatas sabe cozer – disse Edgar. – Pra que serv’ela aqui em casa?
– Pra ir prà despensa comer tudo o que sobra – disse Maurice.
– Eles não se esquecem daquela tarte de batata que a nossa Miriam comeu – disse o pai, a sorrir. Miriam sentia-se completamente humilhada. A mãe ficou calada, a sofrer como uma mártir, sentindo-se a mais nesta refeição atribulada.
Paul estava perplexo com tudo o que via. Não conseguia perceber a razão de tão violenta reacção só porque umas batatas se tinham queimado. A mãe dava a tudo, mesmo à mais insignificante tarefa doméstica, a importância de um dever religioso. Os filhos ressentiam-se com isso e, vendo cerceadas as suas liberdades, respondiam-lhe com brutalidade e também com irónica arrogância.
Paul estava a passar da infância à idade adulta. Esta atmosfera, onde tudo adquiria um valor religioso, tinha a seus olhos um fascínio subtil. Pairava no ar algo de indefinível. A sua própria mãe era lógica. Mas aqui havia algo de diferente, algo que ele amava, algo que por vezes detestava.
Miriam discutiu com os irmãos aguerridamente. Mais tarde, depois do almoço, quando todos já se tinham ido embora, a mãe disse:
– Desapontaste-me muito à hora do almoço, Miriam.
A rapariga baixou a cabeça.
– Eles são uns brutos! – exclamou subitamente, com os olhos flamejantes.
– Mas tu tinhas prometido que não respondias, não tinhas? – disse a mãe. – E eu acreditei em ti! Não suporto ver-te discutir.
– Mas eles são tão irritantes! – exclamou Miriam. – E... e malcriados.
– Sim, minha querida. Mas quantas vezes já te disse para não responderes ao Edgar? Será que não podes deixá-lo dizer o que lhe apetece?
– Mas porque há-de ele dizer o que lhe apetece?
– Miriam, será que não és suficientemente forte para o suportares, mesmo que o faças só por mim? Serás tão fraca que tenhas de discutir sempre com eles?
Mrs. Leivers pregava inflexivelmente a doutrina do «dar a outra face», mas não conseguia ensiná-la aos filhos. Era contudo bem-sucedida com as filhas, e Miriam era a sua filha dilecta. Os rapazes ficavam furiosos quando elas lhe davam a outra face, e Miriam era muitas vezes suficientemente orgulhosa para o fazer. Eles então cuspiam-lhe e detestavam-na. E ela refugiava-se na sua orgulhosa humildade, fechando-se em si mesma. Havia sempre este sentimento de conflito e de discórdia no seio da família Leivers. Embora os rapazes rejeitassem amargamente o eterno apelo aos seus sentimentos mais profundos de resignação e emproada humildade, acabavam por ceder. Não conseguiam imaginar apenas um sentimento humano comesinho ou uma simples amizade com um estranho: estavam sempre ansiosos por algo de mais profundo. O comum mortal era para eles superficial, trivial e insignificante. E, assim, por falta de hábito, eram dolorosamente rudes nos mais simples contactos sociais e, embora sofressem com isso, continuavam a arvorar uma insolente superioridade. Todavia, bem no fundo, ansiavam pela intimidade que não podiam lograr, pois eram demasiado reservados e qualquer tentativa de aproximação era imediatamente bloqueada pelo rude desprezo que nutriam pelos outros. Buscavam uma intimidade genuína, mas não se conseguiam aproximar normalmente das outras pessoas, pois recusavam-se a dar o primeiro passo e desprezavam a trivialidade que envolve a generalidade das relações humanas.
Paul deixou-se arrastar pelo sortilégio de Mrs. Leivers. Tudo adquiria um significado religioso e profundo quando ele estava com ela. A alma ferida dele, altamente evoluída, procurava-a em busca de alimento. Juntos pareciam filtrar de cada experiência a sua verdade vital.
Miriam era bem a filha de sua mãe. De tarde, ainda o sol brilhava, mãe e filha foram com ele passear pelos campos. Iam em busca de ninhos e encontraram um de carriça na cerca do pomar.
– Quero que vejas uma coisa – disse Mrs. Leivers.
Ele baixou-se e meteu o dedo cautelosamente por entre os espinhos, penetrando no orifício redondo da entrada do ninho.
– É quase como se metêssemos o dedo dentro do corpo de um pássaro – disse ele. – É tão quente. Dizem que o pássaro faz o ninho redondo como uma chávena, calcando-o com o peito. Sempre gostava de saber como é que ele fez o tecto redondo. – Para as duas mulheres, o ninho era o começo da vida. Depois desse dia, Miriam vinha visitá-lo todos os dias. Sentia-o tão próximo de si. Descendo novamente rente à cerca com a rapariga, Paul reparou nas celidónias, sobressaindo como salpicos de ouro na beira do valado.
– Gosto delas quando as pétalas se abrem completamente à luz do sol – disse ele. – Parecem comprimir-se contra o sol. – E foi quanto bastou para as celidónias passarem a exercer sobre ela um certo fascínio. Antropomórfica como era, incentivava-o a apreciar as coisas desta forma, e elas depois ganhavam vida para ela. Parecia necessitar que as coisas brilhassem na imaginação ou na alma dele primeiro, antes de sentir que as possuía. Sempre se vira privada de uma vida normal pelo seu próprio fervor religioso, que fazia o mundo parecer-lhe um jardim de convento ou um paraíso, onde o pecado e o conhecimento ou não existiam ou eram, pelo contrário, algo de cruel e feio.
Foi assim, nesta atmosfera de subtil intimidade, neste encontro de sentimentos comuns pelas coisas da natureza, que o amor nasceu.
Mas só passado muito tempo, Paul se deu verdadeiramente conta da existência de Miriam. Após a doença teve de permanecer em casa durante dez meses. Foi passar algum tempo a Skegness com a mãe e sentia-se verdadeiramente feliz. Mas até da praia ele escrevia longas cartas a Mrs. Leivers falando-lhe da praia e do mar. E trouxe consigo os seus queridos esboços da costa plana de Lincoln, ansioso por lhos mostrar. Iam com certeza interessar mais aos Leivers do que tinham interessado à sua própria mãe. Não era a sua arte que preocupava Mrs. Morel, mas sim ele próprio e o seu futuro. Porém, Mrs. Leivers e os filhos eram quase seus discípulos. Davam-lhe inspiração e faziam-no brilhar no seu trabalho, ao passo que a mãe o influenciava de forma a torná-lo determinado, paciente, obstinado, incansável.
Em breve se tornou amigo dos rapazes, cuja rudeza era apenas superficial. Todos patenteavam, quando podiam confiar neles próprios, uma bondade e amabilidade muito estranhas.
– Vens comigo para a leira? – perguntou Edgar, um tanto hesitante. Paul foi com ele alegremente e passou a tarde a cavar e a desbastar os nabos com o amigo. Paul costumava deitar-se com os três irmãos no monte de feno do celeiro a contar-lhes histórias sobre Nottingham e a Thomas Jordan. Eles, por sua vez, ensinaram-no a ordenhar e deixavam-no encarregar-se de pequenas tarefas tanto quanto quisesse, tais como segar feno ou despolpar nabos. Nos meados do Verão, Paul ajudou-os a segar o feno e tornou-se seu grande amigo. Aquela família vivia na verdade bem longe do mundo. Assemelhavam-se de certa forma a «les derniers fils d’une race épuisée»1. Embora os rapazes fossem robustos e saudáveis, eram esquivos e extremamente sensíveis, o que os tornava tão solitários. Mas, uma vez ganha a sua confiança, mostravam-se amigos fiéis e dedicados.
Miriam só mais tarde aconteceu. Mas ele entrara na vida dela antes de ela aparecer na sua. Numa tarde sombria, quando os homens estavam no campo e os mais novos na escola, apenas tendo ficado em casa Miriam e a mãe, ela perguntou-lhe, após breves momentos de hesitação:
– Já viste o baloiço?
– Não – respondeu ele. – Onde está?
– No estábulo – disse ela.
Ela hesitava sempre em dizer-lhe ou mostrar-lhe alguma coisa. Os homens têm uma noção de valor tão diferente da das mulheres que todos os seus objectos mais queridos e valiosos eram frequentemente motivo de escárnio e insulto por parte dos irmãos.
– Então vamos! – respondeu ele, levantando-se de imediato.
Havia dois estábulos, um de cada lado do celeiro. No estábulo mais baixo e escuro havia lugar para quatro vacas. As galinhas esvoaçavam sobre a manjedoura, cacarejando, enquanto o rapaz e a rapariga se aproximavam da corda grande e grossa, que pendia suspensa de uma viga na escuridão e estava presa à parede, a uma cavilha.
– Parece uma corda! – exclamou ele, satisfeito, e sentou-se ansioso por experimentar. Porém, levantou-se logo.
– Vá! Experimenta tu primeiro! – disse, voltando-se para a rapariga.
– Estás a ver – respondeu ela, entrando no celeiro –, é preciso pôr uns sacos no assento. – E assim tornou o assento mais confortável, o que muito o alegrou. Paul segurou-se à corda.
– Vem! – disse ele.
– Não, não quero ser a primeira – respondeu ela.
E manteve-se afastada, no seu jeito indiferente e calmo.
– Porquê?
– Vai tu agora! – insistiu ela.
Era talvez a primeira vez na vida que ela sentia prazer em fazer o que um homem lhe dizia, em poder mimá-lo. Paul olhou para ela.
– Está bem – disse ele, sentando-se no baloiço. – Cuidado!
Deu um salto para cima do baloiço e logo voou pelo ar, quase saindo pela porta, que tinha a parte superior aberta, podendo ver lá fora a chuva a cair miúda, o pátio sujo, o gado desolado junto à carroça preta do estábulo e, ao fundo, a cortina verde e cinza da floresta. Ela mantinha-se cá por baixo, com a sua boina vermelha à escocesa, a observá-lo. Ele olhou para ela, e ela viu os seus olhos azuis a brilharem.
– É um baloiço formidável – disse ele.
– Pois é.
Todo ele se lançava pelo ar, como um pássaro em voo picado, só pelo prazer do movimento. E então olhou para baixo, para ela, e a boina vermelha sobre os caracóis negros, o rosto bonito e afável, tão sereno como se estivesse a meditar, subiram até ele. Estava escuro e frio dentro do estábulo. Subitamente uma andorinha desceu das alturas do forro do telhado e saiu como uma seta pela porta.
– Não sabia que estávamos a ser observados por um passarinho – disse ele.
Ele baloiçava-se desabridamente. Ela sentia-o descer e subir no ar, como se impelido por uma força desconhecida.
– Agora vou morrer – disse ele, numa voz sonhadora e despojada, como se ele próprio fosse o movimento moribundo do baloiço. Ela olhava-o, fascinada. Bruscamente, ele travou e saltou.
– Já andei muito tempo – disse ele. – Isto é um baloiço formidável, é realmente um baloiço formidável.
Miriam estava divertidíssima, pois ele tinha levado o baloiço a sério e sentira-se bem a andar nele.
– Não, continua – disse ela.
– Porquê?... Não queres andar? – perguntou ele espantado.
– Não me apetece muito. Mas vou andar só um bocadinho.
Ela sentou-se no baloiço, enquanto ele segurava os sacos.
– É formidável, vais ver – disse ele, empurrando-a. – Mantém os calcanhares bem levantados, senão batem na manjedoura.
Miriam sentia a precisão com que ele a agarrava no momento exacto e a força certeira com que a empurrava, e sentia medo. Uma onda quente de medo percorreu-a até ao ventre. Ela estava nas mãos dele. O impulso firme e inevitável surgia de novo no momento certo. Ela agarrava-se à corda, quase a desmaiar.
– Oh – disse ela a rir, cheia de medo. – Mais alto não!
– Mas tu não vais nada alto – protestou ele.
– Mas mais alto não!
Paul apercebeu-se do medo na voz dela, e parou. O coração dela derreteu-se numa dor cálida, quando chegou o momento de novo impulso, mas ele deixou-a sozinha, e ela pôde respirar outra vez.
– Não queres mesmo ir mais alto? – perguntou ele. – Queres que te mantenha nessa altura?
– Não, eu ando sozinha – respondeu ela.
Então ele afastou-se e ficou a vê-la.
– Mal te mexes – comentou ele.
Ela esboçou um sorriso, envergonhada, e de repente desceu.
– Dizem que quem sabe andar de baloiço não enjoa no mar – disse ele, enquanto subia para o baloiço outra vez. – Não creio que alguma vez venha a enjoar.
Começou a andar novamente. Para ela havia algo nele que a fascinava. Naquele momento ele era apenas uma peça de um objecto em movimento e tudo nele se movia. Nem ela nem os irmãos conseguiam libertar-se assim. Sentia o entusiasmo desabrochar dentro de si. Era como se ele fosse uma chama, e tivesse ateado o entusiasmo dentro dela enquanto se baloiçava no ar.
E, gradualmente, a intimidade de Paul com a família Leivers privilegiava três pessoas: a mãe, Edgar e Miriam. Na mãe encontrava uma simpatia e um encanto que pareciam abrir-lhe o coração. Edgar era o seu melhor amigo. Quanto a Miriam, digamos que a ia aturando, pois parecia-lhe ser muito submissa.
Mas a rapariga, a pouco e pouco, foi-o atraindo. Quando ele trazia o caderno dos esboços, era sempre ela quem observava mais longamente o último desenho. E então, olhava para ele e perguntava, com os olhos negros a luzir, como águas agitadas por uma corrente dourada no meio da escuridão:
– Porque será que gosto tanto deste?
E algo no peito dele se retraía perante estas observações tão deslumbradas, tão íntimas e tão próximas.
– Sim, porque será? – perguntava ele.
– Não sei – parece tão real.
– É porque... é porque quase não tem sombras... é mais como uma cintilação... como se eu tivesse pintado a cintilação do protoplasma das folhas, e de tudo, e não a rigidez das formas. Isso para mim é coisa morta. Só a cintilação contém vida. A forma é uma crosta morta. A cintilação está, realmente, no interior.
E ela, mordendo o dedinho minúsculo, ponderava sobre tais afirmações. Davam-lhe uma nova sensação de vida e davam vida a coisas que até aí não significavam nada para ela. Conseguia encontrar algum significado nos discursos dele, sempre tão abstractos e intrincados. Era através deles que ela chegava claramente aos objectos amados.
Certo dia, ela tinha estado sentada junto dele, ao pôr do Sol, enquanto ele pintava alguns pinheiros batidos pelo clarão rubro que avançava do poente. Ele mantivera-se calado.
– Já está! – disse ele, de repente. – Mesmo o que eu queria. Agora, olha para eles e diz-me se são troncos de pinheiro ou carvões incandescentes, estacas de fogo a arder na escuridão. A sacra ardente de Deus, aquela que não se apaga.
Miriam olhou e sentiu medo. Mas distinguia perfeitamente os troncos de pinheiro e achava-os magníficos. Ele arrumou a caixa das tintas e levantou-se. De repente, olhou para ela.
– Porque estás sempre tão triste? – perguntou.
– Triste! – exclamou ela, olhando para ele com os seus olhos castanhos, admirados, maravilhosos.
– Sim – disse ele. – Tu andas sempre, sempre triste.
– Não... Nem um pouco! – exclamou ela.
– Até a tua alegria parece uma chama ateada pela tristeza – insistiu ele. – Nunca estás alegre, nem sequer normal.
– Pois não – disse ela, pensativa. – Dá que pensar... Porque será...?
– Porque tu não és.... porque tu és diferente por dentro... como um pinheiro... e depois incendeias-te... mas não és uma árvore qualquer, com folhas irrequietas e alegres...
Paul emaranhou-se no seu próprio discurso; mas ela bebia as suas palavras e ele teve uma sensação estranha e estimulante, como se os seus sentimentos fossem novos. Ela chegava-lhe tão perto da alma. Estranho estímulo este.
Mas às vezes odiava-a. O irmão mais novo de Miriam só tinha cinco anos. Era um menino débil, de enormes olhos castanhos e um rostinho frágil e esquisito; parecia um anjo do Coro dos Anjos, de Reynolds, com um toque de duende.
Miriam ajoelhava-se frequentemente junto da criança e apertava-o contra o peito.
– Meu Hubert! – cantarolava ela com uma voz possante, a transbordar de amor. – Meu Hubert!
E, envolvendo-o nos seus braços, embalava-o mansamente de um lado para o outro com amor, de face levantada ao céu, olhos semicerrados e voz embebida de ternura.
– Pára! – disse a criança, constrangida. – Pára, Miriam!
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela do fundo da garganta, como se estivesse em transe, balançando também, como se prestes a desfalecer num êxtase de amor.
– Pára! – repetiu a criança, franzindo a testa desanuviada.
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela.
– Porque fazes tanto espalhafato? – gritou Paul, profundamente afectado pela emoção exagerada de Miriam. – Porque não ages normalmente com ele?
Ela largou a criança e não respondeu. A sua intensidade, que não deixaria transparecer qualquer emoção numa situação normal, deixava o jovem quase num frenesim. Este contacto desprotegido e tímido com a alma dela chocava-o. A sua mãe era reservada, e ele estava habituado a ela. E, nessas alturas, sentia-se agradecido de alma e coração por ter a mãe que tinha, tão sensata e tão sã.
Toda a vida do corpo de Miriam se reflectia nos seus olhos, normalmente escuros como as igrejas, mas que podiam inflamar-se como uma conflagração. A sua expressão meditativa raramente se alterava. Talvez ela tivesse sido uma das mulheres que acompanharam Maria quando Jesus morreu. O seu corpo não era vivo, flexível. Andava de forma oscilante, pesada até, de cabeça inclinada para a frente, meditativa. Não sendo propriamente desajeitada, nenhum dos seus movimentos parecia o movimento correcto. Muitas vezes, quando limpava os pratos, ficava confusa e desgostosa, por ter partido em duas metades uma chávena ou um copo. Era como se, por medo e falta de confiança, se tivesse aplicado demasiado. Não sabia o que eram relaxamento ou abandono. Agarrava-se a tudo com rigidez e intensidade, e o seu esforço, de excessivo, fechava-a sobre si mesmo.
Raramente alterava a forma de andar, tensa, balançada, projectada para a frente. De vez em quando, ia com Paul dar uma corrida pelos campos e então os seus olhos brilhavam inteiros, num êxtase que o assustava. Mas tinha medo de fazer exercício físico. Se tivesse de saltar uma cerca, apertava as mãos de forma angustiante e perdia a presença de espírito. E ele não conseguia persuadi-la a saltar, mesmo um obstáculo baixo. Os olhos dela dilatavam-se, ficavam expostos, palpitantes.
– Não – gritava ela, sorrindo apavorada. – Não!
– Tens de tentar – gritou ele uma vez e, empurrando-a para a frente, fê-la cair da cerca. Mas o grito selvagem que ela deu, como se estivesse prestes a perder a consciência, feriu-lhe as entranhas. Mas ela caiu de pé e em segurança, e posteriormente passou a ter mais coragem.
Paul e Miriam iam muitas vezes passear juntos pelos campos até ao lago Nethermere. Ele era naturalmente ágil e muito activo. Andava sempre a saltar de um lado para outro. Ela, no entanto, mantinha sempre o mesmo curso, quase sem alterações. E ele, a pouco e pouco, vinha para junto dela, moderava o passo e caminhava com ela, de cabeça baixa, mas só até chegarem à água. A margem do lago estava pejada das penas brancas dos cisnes. Sentavam-se entre os seixos. Subitamente, ele descobria um seixo bonito e bem liso, levantava-se, e atirava-o à água para provocar ondinhas.
– Consegues fazê-los saltar? – perguntou Paul.
– Não muito bem! – respondeu ela, abanando a cabeça. E continuou sentada a observá-lo.
– Ora vê! – gritou ele. – Quatro saltinhos.
– Sim senhor – disse ela, elogiando-o. – Formidável. – Contudo, ele depressa se fartou e veio sentar-se novamente junto dela.
– Porque não queres também fazer ondinhas? – perguntou ele.
– Porque não sei – respondeu ela.
– Tu nunca queres fazer nada! – disse ele.
– Bem vês, tenho a lida da casa para fazer.
Paul não deu seguimento à discussão, preferindo encetar um diálogo sobre livros.
Miriam estava muito triste com o seu destino.
– Não gostas de estar em casa? – perguntou-lhe Paul surpreendido.
– E quem é que gosta? – respondeu ela, num tom cavo e profundo. – O que é estar em casa? Passar os dias a limpar o que os rapazes sujam em menos de cinco minutos. Não quero estar em casa!
– Então o que é que queres?
– Quero fazer alguma coisa. Quero ter uma oportunidade, como toda a gente. Porque é que eu, só por ser rapariga, tenho de ficar em casa e não me é permitido ser alguém? Que oportunidades é que eu tenho?
– Oportunidades para quê?
– Para saber de tudo, para aprender... para fazer qualquer coisa. Não é justo que isto aconteça apenas por eu ser mulher.
Ela falava com muita amargura. Paul pôs-se a pensar. Em casa, Annie parecia até quase contente por ser rapariga. Não tinha tantas responsabilidades e tudo era mais fácil para ela. Nunca quisera ser qualquer outra coisa além de rapariga. Mas Miriam desejava quase furiosamente ser homem. E, contudo, ao mesmo tempo detestava os homens.
– Mas ser homem ou mulher é a mesma coisa – disse Paul, franzindo a testa.
– Ai é?... Os homens têm tudo.
– Eu acho que as mulheres deviam estar contentes por serem mulheres, como os homens estão por serem homens – respondeu ele.
– Não! – Ela abanou a cabeça. – Nem pensar! Os homens têm tudo.
– Mas o que é que queres, afinal? – perguntou ele.
– Quero aprender. Porque é que eu hei-de ficar sem saber nada?
– Mas afinal o que queres tu aprender? Matemática e francês...?
– E porque é que eu não hei-de aprender matemática... Sim – gritou ela, abrindo os olhos em ar de desafio.
– Tu podes aprender tudo aquilo que eu sei – disse ele. – Eu ensino-te, se quiseres.
Os olhos dela arregalaram-se. Como professor, ele não lhe inspirava confiança.
– Gostavas? – perguntou Paul.
Ela estava de cabeça baixa a chuchar no dedo, sorumbática.
– Gostava... – disse ela, hesitante.
Ele conversava frequentemente com a mãe sobre todas estas coisas.
– Gostava de ser homem, mãe? – perguntou ele.
– Por vezes... mas é uma parvoíce... penso que não... não quero e nunca quis ser outra pessoa diferente da que sou.
– E porque é que gostava de ser homem, mesmo só às vezes?
– Bem, meu filho – respondeu a mãe a sorrir – penso que conseguiria fazer mais do que alguns homens, o que não é para admirar.
– Eu cá não quero ser mulher – disse ele, pensativo. – E acho que não conseguia ser uma mulher melhor do que as que já são mesmo mulheres.
– Não – disse a mãe a sorrir. – Também acho que não... Mas, por vezes, nós sentimos que poderíamos fazer mais do que os homens...
– Talvez a mãe pudesse... – disse ele.
– Bem... – respondeu ela com a sua curiosa fungadela habitual. – Sabes, meu filho – continuou ela – a natureza é para ser respeitada. E quando uma mulher deseja ardentemente ser homem, podes apostar a vida em como ela não é lá grande coisa como mulher.
– Detesto uma mulher que deseje ser homem – disse ele.
– Apenas demonstra que o seu orgulho de mulher está demasiado enfraquecido – respondeu a mãe. Paul falava sempre com a mãe, pois ela era a sua pedra de toque.
– Vou ensinar álgebra à Miriam – disse ele.
– Bem... – disse Mrs. Morel – espero que lhe seja proveitoso.
Aproximava-se o crepúsculo quando Paul se dirigiu para a quinta, na segunda-feira à tardinha. Miriam acabara de varrer a cozinha e estava ajoelhada junto à lareira quando ele entrou. Todos tinham saído, excepto ela. Olhou-o ruborizada, com os olhos negros a brilhar e os cabelos magníficos caídos à volta do rosto.
– Olá – disse ela, num tom suave e musical. – Já sabia que eras tu!
– Como é que adivinhaste?
– Reconheci os teus passos. Ninguém anda tão depressa e firmemente como tu.
Ele sentou-se e suspirou.
– Estás pronta para aprender álgebra? – perguntou ele, tirando um livrinho do bolso.
– Mas... – Ele sentiu-a recuar.
– Mas tu disseste que querias – insistiu ele.
– Mas hoje à noite... – começou ela, titubeante.
– Mas eu vim de propósito. E, se queres aprender, alguma vez tens de começar.
Ela apanhou as cinzas com a pá do lixo e olhou para ele, esboçando um sorriso trémulo.
– Sim, mas... esta noite... Sabes, ainda não pensei nisso.
– Por amor de Deus... Vai despejar as cinzas e vem ter comigo.
Paul saiu e sentou-se no banco de pedra do pátio das traseiras, perto das grandes bilhas de leite. Os homens estavam no estábulo. Ele conseguia ouvir o som cadenciado do leite, jorrando para os baldes. Ela voltou logo, com um punhado de maçãs grandes e esverdeadas.
– Estas são das que tu gostas – disse ela.
Ele deu uma trincadela na maçã.
– Senta-te – disse ele com a boca cheia.
Ela, míope, começou a espreitar por cima do ombro dele. Isso irritou-o tanto que lhe entregou logo o livro.
– Vê à vontade – disse ele. – Aqui há apenas letras para cada número. Escreves um a, em vez de um «2» ou um «6».
Começaram a trabalhar, ele a explicar e ela debruçada sobre o livro. Ele era rápido e impetuoso. Ela nunca respondia. Por vezes, quando ele lhe perguntava:
– Estás a perceber? – ela olhava-o com uns olhos sorridentes e amedrontados.
– Então, não estás a perceber nada! – gritava ele.
Tinha ido demasiado depressa. Mas ela não tinha dito nada. Ele fez-lhe mais perguntas e depois irritou-se. Ficava com o sangue a ferver de a ver ali à sua mercê, de boca aberta, olhos esbugalhados, com um sorriso medroso, apologético, envergonhado. Edgar chegou entretanto com dois baldes de leite.
– Olá! – disse ele. – O que estão vocês a fazer?
– Álgebra – respondeu Paul.
– Álgebra! – repetiu Edgar, intrigado. E seguiu em frente, dando uma gargalhada. Paul trincou a maçã já quase esquecida e, olhando para as pobres couves da horta, todas rendilhadas pelas galinhas, teve vontade de as arrancar. Depois, olhou para Miriam, que fitava o livro aparentemente absorta; porém tremia, receando não compreender. Estava corada e bonita. Todavia, a sua alma parecia suplicar ao livro de álgebra que a ajudasse. Ela fechou-se, retraiu-se, percebendo que ele estava aborrecido. Mas, no mesmo instante, ele tornou-se gentil ao vê-la magoada por não conseguir perceber o que lia.
– Diz lá, o que é que achas difícil? – perguntou ele, ternamente.
Este novo tom de voz fê-la levantar de imediato os olhos negros que pareciam querer vencer a todo o custo. O olhar dela doeu-lhe e uma onda de ternura percorreu-o.
– Sabes, para mim é fácil – disse ele. – Já estou habituado e esqueço-me de que não sabes. Vês...
E, então, todo ele gentileza e paciência, recomeçou. Edgar chegara entretanto e pusera-se atrás dele.
A cabeça escura de Miriam encontrava-se abaixo do nível dos olhos de Paul. Era uma cabeça pequenina com caracóis negros que pareciam flutuar como seda. Ela parecia esforçar-se tanto! A voz dele era uma contínua ternura.
– Vejo, pois! – exclamou Edgar, de repente, por detrás deles. – Mas... isto...
E o seu gordo indicador aproximou-se do livro. Miriam estremeceu. Paul virou-se para o amigo. Edgar era bem-parecido e os seus olhos, castanhos, perfeitos e saudáveis, pareciam interessados. Explicar-lhe algo era para Paul como respirar ar fresco.
Paul dava lições a Miriam com regularidade. As aulas tinham lugar na sala de estar. Foi aí que o jovem se estreou brilhantemente. Ela aprendia tudo e sabia sempre quais os exercícios que ele lhe mandara fazer na semana anterior. Frequentemente sabia até melhor do que ele. Mas as coisas para ela tinham de ser lentas. E quando se retraía e se mostrava completamente submissa durante a lição, isso enervava-o. Ele enfurecia-se, envergonhava-se, continuava a lição e enfurecia-se novamente, gritando com ela. Ela escutava-o em silêncio. Por vezes, muito raramente, defendia-se. Os seus olhos negros e transparentes fulminavam-no.
– Não me dás tempo para aprender – dizia ela.
– Pronto – respondia ele, atirando o livro para cima da mesa e acendendo um cigarro. Mais tarde, ia ter com ela arrependido. E assim decorriam as lições, com ele sempre ou muito enervado ou muito gentil.
– Porque é que a tua alma estremece durante a lição? – gritava ele. – Com essa tua bendita alma, nunca mais aprendes álgebra. Será que não consegues olhar para isto com a razão, de uma forma clara e simples?
Muitas vezes, quando ia para a cozinha, Mrs. Leivers olhava para ele aborrecida e repreendia-o:
– Paul não sejas tão severo com a Miriam. Ela pode não ser muito rápida, mas tenho a certeza de que se esforça.
– Não me consigo conter – dizia ele, desculpando-se. – Enervo--me facilmente.
– Miriam, não estás aborrecida comigo, pois não? – perguntava-lhe ele mais tarde.
– Não – assegurava-lhe ela, no seu tom profundo e melodioso. – Não, eu não me importo.
– Não me perdoes tão facilmente, pois eu sei que sou culpado.
Mas, apesar de tudo, o seu sangue começava a ferver novamente. Era estranho que mais ninguém o enervasse daquela forma. Mas ela enfurecia-o. Uma vez atirou-lhe um lápis à cara. Fez-se silêncio. Ela virou a face ligeiramente para o lado.
– Eu não... – começou ele, mas não continuou, pois sentia-se desfalecer. Ela nunca o censurava nem se zangava com ele, e ele sentia-se muitas vezes terrivelmente envergonhado. Contudo, a sua raiva rebentava novamente como uma bolha enfunada. Quando ele via à sua frente aquela cara ansiosa, silenciosa, como se fosse cega, sentia renascer dentro de si a vontade irreprimível de lhe atirar outra vez com o lápis. No entanto, quando via a mão dela tremer e a boca entreabrir-se em sofrimento, o seu coração ardia de compaixão por ela. E, assim, procurava-a, pela força e a intensidade que ela despertava nele.
Muitas vezes evitava-a e ia passear com Edgar. Miriam e o irmão eram naturalmente antagónicos. Edgar era um racionalista curioso e nutria um interesse científico pela vida. Para Miriam, era um grande desespero sentir-se abandonada por Paul em benefício de Edgar, que parecia muito mais inculto. Todavia, Paul sentia-se muito feliz com o irmão mais velho. Os dois homens passavam tardes juntos no campo, carpinteirando no celeiro quando chovia. Conversavam ou então Paul ensinava a Edgar as canções que ele próprio tinha aprendido com Annie ao piano. Frequentemente, todos os homens, incluindo Mr. Leivers, tinham acerbas discussões sobre a nacionalização da terra e problemas semelhantes. Paul já tinha ouvido as opiniões da mãe, e visto serem essas também as suas, discutia-as em seu lugar. Miriam assistia e participava, mas aguardava até que terminassem, e intervinha apenas quando a conversa voltava a ser mais íntima.
«Acima de tudo», pensava ela, «se as terras fossem nacionalizadas, Edgar, Paul e eu continuaríamos a ser os mesmos.»
E então esperava que Paul voltasse para junto dela.
Ele andava a estudar pintura. À noite adorava ficar a trabalhar em casa sozinho com a mãe. Ela cosia ou punha-se a ler. Por vezes, ele interrompia o seu trabalho e descansava os olhos por um momento no rosto da mãe, que brilhava de ternura, para depois retomar feliz a sua tarefa.
– Mãe, os meus melhores trabalhos são feitos quando está aqui sentada na cadeira de balouço – dizia ele.
– Tenho a certeza de que sim – exclamava ela, torcendo o nariz, num cepticismo simulado. Mas sabia que assim era e o seu coração pulsava de alegria. Mrs. Morel sentava-se em silêncio durante horas, costurando ou lendo um livro, atenta ao trabalho do filho. E ele, comandando o lápis com toda a intensidade da sua alma, sentia o calor dela dentro dele, incentivando-o. Eram os dois muito felizes assim e sem consciência de o serem. Estes momentos, tão significativos e tão reais, passavam-lhes quase despercebidos.
Ele apenas tomava consciência quando era estimulado. Quando terminava um esboço, desejava sempre mostrá-lo a Miriam. E então, sentia-se estimulado para conhecer o trabalho que tinha produzido inconscientemente. Em contacto com Miriam adquiria discernimento e a sua visão tornava-se mais profunda. Da mãe retirava o calor da vida e o incentivo para produzir; Miriam dava a esse calor a intensidade de uma luz muito branca.
Quando Paul voltou à fábrica, as condições de trabalho tinham melhorado. Tinha a quarta-feira à tarde livre para ir à escola de belas-artes – providência tomada por Miss Jordan – e regressava à tardinha. Além disso, às quintas e sextas-feiras à tarde, a fábrica fechava às seis em vez de ser às oito.
Em Bestwood havia uma pequena e respeitável biblioteca, cuja assinatura custava apenas quatro xelins e seis dinheiros por ano. Mrs. Morel e Mrs. Leivers tinham-se feito sócias quando os filhos começaram a crescer. A biblioteca ocupava duas salas do Clube dos Mecânicos, e estava aberta às terças-feiras à noite, das 19 às 21 horas. Paul ia sempre buscar os livros para a mãe, que lia muito, e Miriam arrastava-se sob o peso de cinco ou seis volumes para a família. Tornou-se habitual os dois encontrarem-se na biblioteca.
Paul conhecia bem as duas pequenas salas com as paredes forradas de livros. Eram acolhedoras e havia uma grande lareira ao canto. Mr. Sleath, o bibliotecário, tinha fartas suíças brancas em torno de uma cara acriançada. Era alto e curioso, mas muito afável; conhecia toda a gente e sabia da vida de todos. Mr. Smedley era roliço, careca e instruído.
Paul aguardou, enquanto Mr. Sleath acabava de pôr em dia os mexericos com o último leitor. Nessa altura, Paul deixou cair os livros em cima do balcão. Mr. Sleath olhou para ele com os seus olhos azul-vivo, mas mortiços.
– Vinte e dois, cinquenta e sete – disse Paul.
O bibliotecário, funcionário superior da companhia mineira e um cavalheiro comparado com o jovem, repetiu os números alegremente, virando as folhas do livro de registos.
– Ah!... Ah! – exclamou ele, olhando para a página. Depois olhou de uma forma carinhosa e acolhedora para o jovem, esfregou as mãos e disse:
– Ah!... Bem, Paul!... Ah! Como está a tua mãe?
– Muito bem, obrigado! – respondeu Paul.
– Óptimo! Não a vi na capela no domingo à noite!
– Pois não! Teve uma inflamação nos olhos.
– Meu Deus... Meu Deus... Lamento muito!
– Mas penso que disseste – interveio Mr. Smedley – que ela estava muito bem. – Paul não respondeu nem olhou para o homenzinho por detrás do balcão. Mr. Sleath ia assinalando os livros no seu livro de registo. Mr. Smedley pôs mais carvão na lareira. Algumas pessoas conversavam animadamente junto das estantes. Os tacões dos sapatos chiavam na tijoleira.
– Mas achas que ela já se sentirá bem para sair este fim-de-semana? – perguntou Mr. Sleath, quando acabou de registar todos os livros.
– Acho que sim – disse Paul.
– Óptimo... Óptimo. De facto, estranhei a ausência dela.
Para Paul já era um dado adquirido que as pessoas lhe perguntassem pela mãe e nunca mencionassem o pai.
Dirigiu-se para as estantes. Os leitores continuavam a entrar, deixando os chapéus-de-chuva no corredor e trocando agradáveis saudações. O jovem conhecia toda a gente e todas as suas histórias. Mas não lhe interessavam. Miriam talvez não viesse por causa da chuva. Olhou para o livro que tinha nas mãos, esqueceu-o por momentos, pensando nela, e voltou ao livro novamente. O tempo passava como num sono. Ouvia o ruído das pessoas a saírem, mas ninguém a entrar. E se ela não viesse? Só de pensar nisso a noite afigurava-se-lhe lúgubre e infrutífera. Mas ela viria. A atmosfera era quente e acolhedora e a noite não teria continuidade enquanto ela não chegasse.
– Uma noite dos diabos, Alfred, uma noite dos diabos – disse Mr. Sleath, procurando alguém com quem falar. A biblioteca estava vazia.
– Parece que sim – respondeu Mr. Smedley.
Então, Mr. Sleath reparou em Paul.
– Olá, Paul – exclamou. – Ainda não encontraste o que queres, hem?
– Não me parece que o Paul esteja à espera de nenhum livro – disse Mr. Smedley.
– Oh...Oh... – exclamou Mr. Sleath.
– Penso que é uma jovem que está por detrás disto tudo – disse Mr. Smedley. – Mas está uma noite péssima para se vir de Willey Woods.
Ouviram-se passos no corredor. Paul ficou à escuta. Não era ela. Entrou um rapaz. Quando Paul viu o rapaz no limiar da porta, onde ela deveria estar, ficou furioso com ele. Contudo ela viria. Era sempre tão cumpridora. Um dos seus maiores encantos, quanto a ele, era a sua rejeição das convenções. Se quisesse vir, viria mesmo que chovesse torrencialmente. E o tempo não estava assim tão mau. Paul pôs-se a escutar, para ver se chovia muito. E então ouviu o rapaz dizer que estava a chover a cântaros. Mas o rapaz não contava. Ela viria, sim, mesmo que chovesse a cântaros. E Paul agarrou-se a essa esperança. Podia senti-la, através da noite, desejando vir. E ela nunca o desapontava. Para ela a vida interior valia tudo, e a exterior nada.
Ouviu os passos dela no corredor e a sua ansiedade diminuiu. Ficou a vê-la chegar. Ela parou um momento à entrada da porta. A boina vermelha cintilava com as gotas de chuva, o cabelo revolto dançava em caracóis húmidos, as faces esplandeciam. Ela procurou-o ansiosamente com o olhar, e então os seus olhos míopes encontraram-no, e uma chama ateou-se dentro dela, queimando-o também a ele. Dirigiu-se ao balcão, satisfeita. Ele virou-lhe as costas.
Então, ela aproximou-se dele, hesitante.
– Estou atrasada? – perguntou ela.
– Como sempre – respondeu ele. – Estás muito molhada?
– Não... nadinha.
– Vieste pela linha férrea? – disse ele.
– Vim. Estavas com muito medo de que eu não aparecesse?
– Só um bocadinho.
Paul sorriu.
– Vem, vou mostrar-te os livros que escolhi para ti – disse ele. Ela foi. Os livros não tinham qualquer significado para ela. Mas ele insistia na sua aprovação. Olhou para os livros por cima do braço dele, sem conseguir ver nada. Mas ele estava contente.
– Concordas? – perguntou ele.
– Claro – respondeu ela.
Depois de registarem os livros, saíram os dois rapidamente da biblioteca. A escuridão enchia-os de alegria. Sentiam-se exacerbadamente felizes. Paul trazia uma enorme capa preta impermeável, por baixo da qual resguardou os livros. Caminharam lado a lado pela rua Mansfield, envolvidos pela escuridão e pela chuva, sob as árvores gotejantes.
A conversa surgiu rápida e vigorosa, passando imediatamente à discussão sobre um dos livro. Ele falava apaixonadamente, ela ouvia-o e a sua alma expandia-se. Do livro, passaram inevitavelmente a uma discussão sobre crenças íntimas, muito subjectiva.
– Parece que é como se não tivesse importância, um a mais ou um a menos, dentro do todo... – disse ele.
– Não – respondeu ela gravemente, em dúvida.
– Eu costumava pensar assim quando um pardal caía.... e o mesmo em relação aos cabelos da cabeça...
– Sim – disse ela. – E agora?
– Agora penso que a raça dos pardais é importante, e não apenas um pardal: todo o meu cabelo, e não apenas um fio de cabelo.
– Sim – disse ela, pouco convencida.
– E as pessoas são importantes. Mas uma só não é assim tão importante. Vê, por exemplo, o William.
– Sim – disse ela, pensativa.
– Chamo a isso apenas uma perda – disse ele – Uma perda, nada mais.
– Sim – disse ela, com a voz sumida.
Ela acreditava que quanto mais pessoas houvesse, menos importância tinham. Mas ouvi-lo falar assim era para ela como um sopro de vida: como o primeiro sopro de um recém-nascido.
– Contudo – disse ele – creio que há um caminho certo a seguir... se o seguirmos está tudo bem... ou se andarmos perto. Mas se não o seguirmos, morreremos. Tenho a certeza de que o nosso William fez a escolha errada.
– E se seguirmos o curso das nossas vidas não morremos? – perguntou ela.
– Não, não morremos. É o nosso íntimo que nos aconselha a seguir um determinado caminho e não outro.
– Mas nós sabemos quando é que estamos a seguir o caminho certo? – perguntou ela.
– Claro! Eu pelo menos sei. Eu sei que estou a seguir o meu caminho.
– Sabes mesmo? – perguntou ela.
– Sim... tenho a certeza.
Ele tinha parado por baixo de um lampião para pensar. O seu impermeável luzia com a chuva. Ela olhou para a cara dele. Os seus olhos, tão certeiros e tão fixos, fitaram os dela. Ele era realmente determinado. Ela seguiu para casa com o coração em brasa.
Mas ele, quando deu meia volta para retroceder, logo a esqueceu, ao pensar que a mãe ficaria aborrecida ao saber que ele tinha ido até tão longe debaixo de chuva. Estugou o passo, sentindo-se porém exultante com o contacto com Miriam. A noite tinha-lhe trazido alguma satisfação.
– Queres tu dizer que levaste a Miriam Leivers a casa numa noite como esta? – perguntou a sua mãe, fitando-o subitamente, um minuto depois de ele ter entrado.
– Demorei-me muito tempo na biblioteca – argumentou Paul.
– Mas ela apareceu, não apareceu? – exclamou Mrs. Morel, calma e severa. Paul estremeceu.
– Ela fica sem nada para ler durante toda a semana, se não vier à biblioteca – disse ele.
– Não sei o que é que a mãe dela anda a fazer para a deixar arrostar com cerca de 10 milhas debaixo desta chuva torrencial.
– Não está chover muito – disse ele. – Nem por isso.
– Basta olhar para o teu impermeável e para as tuas botas – disse a mãe.
– Olhe o que eu lhe trouxe – disse ele, mas ela estava demasiado zangada para condescender.
Certa tarde de Verão, Miriam e Paul resolveram atravessar os campos, por Herod Farm, no regresso da biblioteca. Assim, eram só três milhas até Willey Farm. A erva segada brilhava com reflexos dourados e os botões de azedas ardiam em tons de carmim. A pouco e pouco, enquanto atravessavam o planalto, os tons dourados do ocaso deslizaram para vermelho, o vermelho para o carmim e, por fim, o azul glacial apagou o clarão.
Foram dar à estrada principal de Alfreton, que singrava branca entre os campos anoitecidos. Aí, Paul hesitou. Eram cerca de duas milhas até sua casa, e uma milha até à casa de Miriam. Olharam para a estrada, que corria sombria sob a luminosidade ténue de noroeste. No cimo do monte, Selby, com as suas casas despojadas e as suas torres mineiras, recortava-se no céu, pequenina, em negras silhuetas.
Ele consultou o relógio.
– Já são nove horas! – disse.
Ambos estavam relutantes em partir, abraçados aos seus livros.
– O bosque é tão bonito a esta hora... – disse ela. – Queria tanto que o visses.
Ele atravessou a estrada atrás dela, lentamente, aproximando-se da cancela branca.
– Eles fazem cá um banzé, se eu chego tarde – disse ele.
– Mas não estás a fazer nada de mal – contrapôs ela, impaciente. E ele seguiu-a através das pastagens retouçadas, à luz do lusco-fusco. Havia uma frescura no bosque, um aroma a folhas e a madressilva, e o crepúsculo. Caminharam em silêncio. A noite desceu, maravilhosa, entre a imensidão de troncos negros. Ele olhou em volta, expectante.
Ela queria mostrar-lhe uma roseira-brava que tinha descoberto, pois achara-a lindíssima. Porém, sentia que só depois de ele a ter visto ela seria capaz de a assimilar. Só ele poderia fazer com que a roseira fosse dela para sempre, imortal. Por isso não estava satisfeita.
O orvalho já era visível pelos caminhos. Do velho bosque de carvalhos elevava-se uma névoa e ele hesitou, questionando-se se a mancha branca seria a linha de bruma ou apenas candelárias-dos-jardins, formando uma pálida nuvem.
Assim que chegaram aos pinheiros, Miriam começou a ficar muito tensa e ansiosa. O seu arbusto podia ter desaparecido. Poderia não o encontrar. E queria tanto descobri-lo. Desejava, quase com paixão, ter Paul perto de si quando descobrisse as flores. A comunhão seria mútua, algo que a iria emocionar, algo de divino. Ele caminhava a seu lado em silêncio. Estavam muito próximos um do outro. Ela estremeceu e ele escutou-a, levemente ansioso.
Assim que chegaram ao limite da floresta, o céu era de madrepérola e a terra escurecia. Algures nos recantos mais afastados do pinheiral a madressilva exalava o seu aroma.
– Onde? – perguntou ele.
– Lá em baixo, no trilho do meio – murmurou ela, tremendo.
Mal acabaram de contornar a curva do atalho, ela parou. Olhou por momentos assustada para o espaço que se abria entre os pinheiros, não conseguindo discernir o que quer que fosse, pois a luz empalidecida tinha apagado a cor das coisas. Mas, finalmente, descobriu o seu arbusto.
– Oh! – exclamou ela, precipitando-se para ele.
Tudo estava sereno. O arbusto era alto e esparso, espraiando as suas silvas sobre um espinheiro próximo, e deixando pender os ramos longos sobre a relva, salpicando a escuridão de grandes estrelas brancas, imaculadas. As rosas brilhavam como botões de marfim, estrelas abertas na escuridão da folhagem, dos troncos e da relva. Paul e Miriam em silêncio, lado a lado, observavam. Uma a uma, convictas, as rosas inundaram-nos de brilho, parecendo atear fogueiras nas suas almas. O crepúsculo envolveu-os como fumo, não conseguindo, todavia, extinguir o fulgor das rosas.
Paul olhou Miriam nos olhos. Estava pálida e deleitada; a boca entreaberta e os olhos negros fitavam-no, muito abertos. O olhar dele parecia descer ao fundo dela. A alma de Miriam estremeceu, pois ansiava a comunhão. Ele, porém, virou-se para o lado, como se sofresse, e olhou para o arbusto.
– Parecem voar como borboletas, agitando-se – disse Paul.
Miriam olhou para as suas rosas. Eram brancas, algumas encurvadas e divinas, outras expandiam-se como em êxtase. A árvore era negra como a sombra. Ela estendeu a mão impulsivamente para as flores e, aproximando-se, tocou-as em adoração.
– Vamos embora – disse ele.
Pairava um perfume fresco de rosas cor-de-marfim, um perfume branco, virginal. Algo o fez sentir-se ansioso e prisioneiro. Caminharam ambos em silêncio.
– Até domingo – disse ele baixinho, e deixou-a; ela regressou a casa lentamente, com a alma enriquecida pela noite divinal. Ele cambaleou pelo atalho. Assim que saiu da floresta e entrou no prado, onde podia respirar, desatou a correr o mais depressa que podia. Era como se um delírio delicioso lhe percorresse as veias.
Sempre que saía com Miriam e se atrasava, sabia que a mãe se afligia e ficava preocupada, apesar de ele não perceber porquê. Assim que chegou a casa, atirando com o boné, a mãe olhou para o relógio. Tinha estado sentada a pensar, pois uma inflamação ocular impedia-a de ler. Imaginara Paul a ser arrastado pela rapariga. Ela não gostava da rapariga. «É uma daquelas que suga a alma de um homem, até ele ficar vazio», dizia de si para si, «e ele é daqueles simplórios que se deixa dominar. Ela nunca o deixará ser um homem, nunca!» Assim, enquanto ele estava com Miriam, ela revoltava-se cada vez mais.
Olhou para o relógio e disse friamente, visivelmente cansada:
– Foste muito longe esta noite.
A alma dele, ainda quente e fragilizada do contacto com a rapariga, contraiu-se.
– Levaste-a certamente a casa – prosseguiu a sua mãe.
Ele não ia responder. Mrs. Morel, examinando o filho de relance, constatou que trazia o cabelo transpirado da correria e ele, em resposta, franziu a testa pronunciadamente como era seu costume, ressentido.
– Ela deve ser maravilhosamente fascinante, pois não te consegues afastar dela, e até és capaz de correr oito milhas a esta hora da noite.
Paul sofria, balançando entre o encantamento dos momentos passados com Miriam e a constatação da aflição de sua mãe. Tinha pensado não dizer nada, recusar-se a responder. Porém, o seu coração não era tão gélido que o levasse a ignorar a mãe.
– Eu gosto de conversar com ela – respondeu irritado.
– E não há mais ninguém com quem possas conversar?
– A mãe não ia dizer nada, se eu tivesse saído com o Edgar.
– Sabes bem que dizia. Sempre que sais com alguém de lá, acho que é muito longe para andares por aí à noite, depois de vires de Nottingham... Além disso... – de repente, a sua voz adquiriu um tom de revoltado desdém – é repugnante ver duas crianças a namoriscar.
– Não é namoro – gritou ele.
– Não sei que outra coisa se lhe poderá chamar.
– Mas não é! Pensa que nos pomos a fazer coisas? Nós apenas conversamos.
– Só Deus sabe até quando e até onde isso irá parar – replicou ela, sarcástica.
Furioso, Paul deu um esticão nos atacadores das botas.
– Porque está tão zangada? – perguntou ele. – Apenas porque não gosta dela?
– Não é que não goste. Mas não suporto e nunca suportei ver crianças a namorar.
– Mas a mãe não se importa que a nossa Annie saia com o Jim Inger.
– Esses são mais conscientes do que vocês.
– Porquê?
– A nossa Annie não é dessas.
Paul não entendeu o alcance do reparo. Mas a mãe parecia cansada. Nunca mais fora a mesma depois da morte de William. E doíam-lhe os olhos.
– Bem – disse ele –, o campo é tão bonito.... Mr. Sleath perguntou por si e disse que tinha tido saudades suas. ... Já se sente melhor, mãe?
– Já devia era estar na cama há muito tempo.
– Mas a mãe também nunca se ia deitar antes de um quarto para as dez.
– Isso é que ia!
– Ah, velhota... agora diz qualquer coisa só por estar zangada comigo, não é?
Depois, Paul beijou aquela testa que conhecia tão bem: as marcas profundas entre as sobrancelhas, a massa de cabelo, agora grisalho e a inclinação das têmporas. A sua mão demorou-se no ombro dela após tê-la beijado e, em seguida, Paul encaminhou-se lentamente para a cama. Tinha esquecido Miriam; apenas se lembrava do cabelo da mãe, puxado para trás, deixando a descoberto uma testa alta, afectuosa. E, fosse pelo que fosse, via que ela estava magoada.
Quando voltou a encontrar-se com Miriam, disse-lhe:
– Não me deixes chegar atrasado hoje... o mais tardar até às dez horas. A minha mãe fica muito aborrecida.
Miriam inclinou a cabeça e reflectiu.
– Fica aborrecida porquê? – perguntou.
– Acha que não devo ficar fora até tão tarde, quando tenho de me levantar cedo no dia seguinte.
– Muito bem! – disse Miriam, com voz calma, mas não isenta de um leve tom de sarcasmo. Isso ofendeu-o, e ele voltou a chegar tarde a casa.
Que o amor começava a desabrochar entre Paul e Miriam era algo que nenhum deles estava preparado para aceitar. Ele achava-se sensato de mais para tais sentimentalismos, e ela demasiado importante. Ainda não tinham atingido a maturidade e a sua pujança psíquica estava muito atrás da física. Miriam era excessivamente sensível, como a mãe sempre tinha sido. A mais leve grosseria angustiava-a. Os irmãos, embora muito rudes, evitavam a vulgaridade nos diálogos. Era fora de casa que os homens discutiam todos os assuntos relativos à quinta. Contudo, e devido talvez aos constantes nascimentos e cruzamentos, actos naturais em qualquer quinta, Miriam revelava uma extrema hipersensibilidade a tais situações, e o sangue revolvia-se-lhe de repugnância à mais vaga sugestão a tais contactos. Paul seguia-lhe as pisadas, e a relação entre eles mantinha-se castamente imaculada. Não se podia sequer mencionar que a égua estava prenha.
Aos dezanove anos, Paul ganhava apenas vinte xelins por semana, mas era feliz. A sua pintura evoluía a contento, e a vida corria-lhe bem. Na Sexta-Feira Santa, organizou um passeio a Hemlock Stone. O grupo era formado por três rapazes da sua idade, Annie, Arthur, Miriam e Geoffrey. Arthur, agora aprendiz de electricista em Nottingham, tinha vindo a casa passar a Páscoa. Como era habitual, Morel levantara-se cedo e estava no pátio a assobiar e a serrar umas tábuas. Às sete da manhã, a família ouviu-o comprar arrufadas quentes à porta, e conversar animadamente com a garota que as vendia, tratando-a até por «minha querida». Apareceram depois mais alguns rapazitos também a vender arrufadas, mas ele mandou-os embora, dizendo-lhes que tinham sido «batidos» pela «cachopinha». Quando Mrs. Morel se levantou, toda a família dispersou. Era uma sorte para todos eles quando a mãe ficava até mais tarde na cama num dia de semana. Paul e Arthur podiam ficar a ler à vontade antes do pequeno-almoço e depois tomar a refeição sem terem de se lavar primeiro e sentar-se à mesa em mangas de camisa. Este era outro dos luxos dos feriados. A sala estava aquecida e toda a casa se libertava de preocupações e ansiedades.
Enquanto os rapazes liam, Mrs. Morel foi para o jardim. Viviam agora numa nova casa, uma casa velha, também em Scargill Street, perto da que tinham ocupado anteriormente e de onde tinham saído logo após a morte de William. Um grito de excitação chegou directamente do jardim:
– Paul... Paul... Vem cá ver uma coisa!
Era a voz da mãe. Paul atirou o livro para o lado e saiu. O jardim era muito comprido e terminava num campo cultivado. Estava um dia cinzento e frio, batido por um vento agreste vindo das bandas do Derbyshire. Dois campos mais adiante começava Bestwood, um emaranhado de telhados e casas de tijolo vermelho, de onde sobressaía a torre da igreja e o pináculo da capela paroquial. Para trás, sucediam-se florestas e colinas até aos picos cinzentos e esbatidos da serra de Pennine.
Paul pôs-se à procura da mãe. A cabeça dela despontou entre as groselheiras ainda tenras.
– Vem cá! – disse ela.
– Para quê? – perguntou ele.
– Vem cá para veres uma coisa!
Ela tinha estado a examinar os pequenos botões das groselheiras. Paul foi ao seu encontro.
– E pensar que, aqui onde estão, podia nunca ter dado com eles! – disse Mrs. Morel.
O filho colocou-se ao seu lado. Por debaixo da cerca, num pequeno canteiro, havia um emaranhado de folhas finas, como se nascidas de bolbos ainda imaturos, com três campainhas em flor. Mrs. Morel apontou para as três florinhas muito azuis.
– Olha para elas! – exclamou. – Estava eu muito entretida a examinar as groselheiras, quando pensei cá com os meus botões, «Está ali qualquer coisa muito azul .... será o resto de algum saco de açúcar?» E olha só! Qual saco de açúcar! Três glórias-da-neve, e tão bonitas! Mas de onde é que teriam vindo?
– Não sei – disse Paul.
– São mesmo uma maravilha! E eu que pensava que conhecia todas as ervas e folhas neste jardim. E não é que estas se deram bem...? Repara que é a groselheira que as protege. Não são debicadas nem pisadas!
Paul baixou-se e levantou as corolas das pequenas flores azuis em forma de campainha.
– Têm uma cor magnífica!
– Têm, não têm? – exclamou a mãe. – Suponho que vêm da Suíça, onde dizem que há coisas maravilhosas. Imagina-as só em contraste com a neve! Mas como é que elas terão vindo aqui parar? O vento não as podia ter trazido, pois não?
Paul lembrou-se então de ter plantado ali uma porção de bolbos para amadurecerem.
– E não me disseste nada – disse a mãe.
– Pois não, estava a pensar deixá-las aqui só até terem medrado.
– Estás a ver?! E eu podia não as ter visto. Nunca em toda a minha vida tive uma glória-da-neve no jardim.
Mrs. Morel estava muito excitada e orgulhosa. O jardim era para ela uma fonte de infinito prazer. Paul dava graças por a mãe viver numa casa com um grande jardim que se estendia até ao campo. Todas as manhãs, após o pequeno-almoço, ela saía e deambulava feliz pelo jardim. E, na verdade, conhecia todas as ervas e folhas no seu jardim.
Todos compareceram para o tal passeio. Prepararam um farnel e o grupo partiu feliz e animado: debruçaram-se do alto do muro da azenha; atiraram papéis para dentro de água numa das extremidades do túnel e ficaram a vê-los sair pela outra; pararam no meio da passagem aérea para peões da estação de Boathouse, fascinados com o brilho gélido dos carris.
– Vocês deviam era ver o «foguete» que passa aqui às seis e meia – disse Leonard, cujo pai era guarda de uma passagem de nível. – Nem sequer o ouvem zunir, rapazes! – E o pequeno grupo seguiu com o olhar nos carris que conduziam a Londres e os que conduziam à Escócia, deixando-se inebriar por estes dois lugares mágicos.
Em Ilkeston, os mineiros aguardavam em grupos a abertura das tabernas. Era uma cidadezinha de ócio e divertimento. Em Stanton Gate, a oficina de fundição ardia incandescente. Eles iam conversando animadamente sobre tudo o que viam. Em Trowell, atravessaram a fronteira do Derbyshire para o Nottinghamshire, e chegaram a Hemlock Stone à hora de almoço. O campo povoava-se de pessoas vindas de Nottingham e Ilkeston.
Estavam à espera de encontrar um monumento digno e respeitável, mas descobriram apenas uma pedra, pequena e rugosa, semelhante a um cepo torcido, ou a um cogumelo putrefacto, despontando pateticamente no meio do descampado. Leonard e Dick gravaram logo as suas iniciais – L.W. e R.P. – na velha pedra de arenito vermelho, mas Paul não o fez, pois tinha lido no jornal críticas mordazes aos gravadores de iniciais, que não encontravam melhor caminho para a imortalidade. E, como não podia deixar de ser, todos treparam à pedra para contemplarem o panorama.
Em baixo, nos campos, rapazes e raparigas, todos eles operários e operárias, comiam ou brincavam. Mais além avistava-se o jardim de um velho solar, cercado de teixos, moitas frondosas e cercaduras de flores amarelas de açafrão.
– Olha que jardim tão tranquilo – disse Paul para Miriam.
Ela contemplou os teixos negros e os crocos amarelos e olhou para ele agradecida. Quando estavam acompanhados por outras pessoas, ele parecia não lhe pertencer; era diferente, não era aquele Paul que compreendia o mais leve estremecimento da sua alma misteriosa, mas uma outra pessoa, que falava uma linguagem diferente da sua. Ah, como isso a magoava e lhe enfraquecia a nitidez da percepção! Só se sentia reviver quando ele vinha ao seu encontro sem esse outro Eu de casta inferior. Mas agora ele tinha-lhe pedido para olhar o jardim, tentando desta forma chegar até ela. Sem paciência para aturar o grupo, Miriam entregou-se à contemplação daquele jardim tão calmo, rodeado de tufos de açafrão amarelo. Uma sensação de quietude, quase de êxtase, envolveu-a. Era como se estivesse sozinha com ele no jardim.
Mas ele abandonou-a novamente e foi juntar-se ao grupo. Em breve iniciaram o regresso a casa. Miriam deixou-se ficar para trás, sozinha. Não se enquadrava. Raramente se relacionava com alguém: na verdade, a sua grande amiga, companheira e amante era a natureza. Viu o sol declinar languidamente. Nas sebes frias e sombrias luziam algumas folhas vermelhas. Sem pressa, detinha-se para as colher com ternura, apaixonadamente. Os seus dedos acariciavam as folhas com amor e o coração incendiava-se-lhe de paixão.
De súbito, apercebeu-se de que estava sozinha numa estrada desconhecida e apressou-se. Depois de uma curva, encontrou Paul debruçado sobre qualquer coisa que ela não conseguia ver, mas que ele observava atentamente, aplicando-se com paciência, intento, e até algum desespero. Miriam hesitou em aproximar-se.
Ele continuava concentrado em plena estrada. Na tarde cinzenta, tão desprovida de cor, um fio dourado de sol, ao longe, parecia fazê-lo sobressair em sombrio baixo-relevo. Ela contemplou-o, delgado e firme, e era como se ele lhe tivesse sido oferecido pelo sol. Uma dor profunda penetrou-a e soube então que tinha de o amar. Tinha-o finalmente descoberto, descoberto nele uma rara potencialidade, descoberto a sua solidão. Tremeu emocionada, como se estivesse perante uma «Anunciação», e aproximou-se devagar.
Ele, finalmente, levantou os olhos.
– Oh! – exclamou, agradecido. – Esperaste por mim!
Ela descobriu uma sombra profunda nos seus olhos.
– O que aconteceu? – perguntou.
– A mola partiu-se.
E ele mostrou-lhe o seu chapéu-de-chuva danificado. Subitamente, um pouco envergonhada, ela apercebeu-se de que não fora ele quem estragara o chapéu-de-chuva, mas que o responsável era Geoffrey.
– Afinal era um chapéu-de-chuva velho, não era? – disse ela. Miriam não entendia a razão de tão exagerado zelo, pois ele não era geralmente de se prender com ninharias.
– Mas este era o chapéu-de-chuva do William... e a minha mãe vai ter de saber – disse ele baixinho, tentando pacientemente consertar o chapéu-de-chuva. Estas palavras rasgaram-na como uma lâmina. Eram a confirmação da imagem que tinha dele! Olhou-o. Havia nele, porém, uma certa reserva, e ela não se atreveu a confortá-lo, nem mesmo a falar-lhe com meiguice.
– Vamos – disse ele –, não consigo arranjá-lo.
E seguiram em silêncio estrada fora.
Iam eles nessa mesma tarde a passar em Nether Green, por entre o arvoredo, quando ele lhe confidenciou, num tom algo irritado, como se lutando para se autoconvencer.
– Sabes – disse com esforço –, se uma pessoa ama, a outra também ama.
– Ah! – exclamou ela. – A minha mãe disse-me o mesmo quando eu era pequena: «O amor gera o amor.»
– Sim... algo parecido com isso... penso que deve ser isso.
– Espero que sim... porque, se não fosse assim, o amor seria algo de terrível – acrescentou ela.
– Mas é isso que acontece... pelo menos com a maioria das pessoas – respondeu ele.
E Miriam pensando que ele estivesse mais animado, sentiu-se fortalecida. Tinha considerado aquele encontro fortuito na vereda como uma revelação. E este diálogo ficou gravado na sua mente como palavra de lei.
Agora, estava com ele e do lado dele. Quando, pela mesma altura, Paul ofendeu a família dela com um insulto arrogante, ela apoiou-o e achou que ele tinha razão.
Sonhava agora com ele de uma forma viva e inesquecível. Mais tarde, os sonhos voltaram, tendo evoluído para estados psicológicos mais subtis.
Na segunda-feira de Páscoa, o mesmo grupo fez uma excursão até ao solar de Wingfield. Foi um momento de grande excitação para Miriam ao apanhar o comboio em Lethey Bridge, por entre o alvoroço da multidão num dia feriado. Saíram do comboio em Alfreton. Paul estava interessado na rua e nos mineiros a passearem os seus cães. Aquela era uma nova raça de mineiros. Miriam não se sentiu viver senão quando chegaram à igreja. Todos se mostravam algo acanhados para entrarem na igreja com os sacos da merenda, pois tinham receio de serem expulsos. Leonard, um rapaz magro e brincalhão, foi o primeiro a entrar, e Paul, que teria preferido morrer a ser mandado embora, foi o último. A igreja estava enfeitada para a Páscoa: centenas de narcisos brancos pareciam desabrochar da pia baptismal, e a luminosidade era difusa e colorida, filtrada pelos vitrais e animada por um aroma subtil a lírios e narcisos. A alma de Miriam inflamou-se nesta atmosfera. Paul, sensível à envolvência do local, receava não saber comportar-se à altura. Miriam voltou-se para ele. Ele correspondeu. Estavam juntos. Paul não quis passar para lá da divisória da comunhão, e ela apreciou o seu gesto. A sua alma elevou-se em orações ao lado dele. Paul sentia um estranho fascínio por lugares religiosos e obscuros. Todo o seu misticismo latente palpitava de vida. Ela sentia-se atraída por ele. Ele estava nela, como uma oração.
No adro da igreja, os narcisos e os junquilhos já tinham desabrochado e brilhavam ao sol como se flutuassem. As ovelhas, no parque, faziam vibrar o ar com os seus múltiplos e ténues balidos. Leonard e Dick entraram numa taberna para tomar uma bebida, para grande tristeza de Paul e Annie.
– Para que entraram na taberna? – perguntou Paul aborrecido.
– Bem – disse Dick, sorrindo –, só lá fomos beber uma limonada.
– Podiam muito bem ter ido à venda – disse Annie.
– À venda! – exclamou Leonard. – Estão a imaginar-nos... nós... ingleses de gema, a beber limonada na venda?
– Não – respondeu Paul. – Mas imagino-te com a tua enorme caneca de cerveja... inglesa de gema.
– E que mal te faz a minha caneca? – disse Leonard, limpando a boca, por sinal enorme.
Miriam só raramente falava com os outros rapazes. Tinham sido malcriados com ela uma vez e, desde essa altura, mantinha-se geralmente calada.
Passava do meio-dia quando subiram a ladeira íngreme que conduzia ao solar. Tudo em redor brilhava com suavidade, à luz de um sol quente, intenso e estimulante. As celidónias e as violetas estavam em flor. A natureza transbordava de felicidade. Tudo era perfeito: o esplendor da hera, os tons suaves e cinzentos, atmosféricos, dos muros do castelo, a harmonia que rodeava as ruínas.
O solar era de pedra dura cinzento-pálido, e as paredes exteriores brancas e repousantes. Os jovens estavam extasiados. Sentiam-se excitados, quase receosos de que o prazer da exploração destas ruínas lhes fosse negado. No primeiro pátio, situado entre muros altos e derrubados, havia algumas carroças com os varais abandonados pelo chão, e os aros das rodas cintilavam em tons vermelho-dourado de ferrugem. A serenidade era total.
Todos se mostravam desejosos de pagarem os seis dinheiros da entrada, posto o que transpuseram a medo pelo arco harmonioso e bem lançado que dava acesso ao pátio interior. Mostravam-se tímidos. No local onde antes se erguera o muro, florescia agora um velho espinheiro. Todas as espécies de espaços abertos e salas em ruínas se abriam à sua volta, na penumbra.
– Digam lá se isto não é uma maravilha? – exclamou Leonard.
– É mesmo – acrescentou Paul.
E passaram de imediato à exploração.
– Eh, malta – chamou Leonard. – Venham ver o forno que eu descobri!
E, sem perder tempo, Leonard entrou pelo buraco. Dick e Paul entraram atrás dele e sentaram-se os três no chão a gritar, como se estivessem nas entranhas da terra.
– Aqui dava bem para assar um boi, ou até dois – disse Nick.
– E um veado ou dois – acrescentou Paul.
– E um burro ou dois – rematou Leonard, pondo-se a zurrar muito alto, enquanto os outros dois lhe batiam.
Paul voltou a sair para o ar livre e a exploração continuou. Finalmente, encontraram Geoffrey e as raparigas. Geoffrey estava a comer.
– Parece que tá na hora de dar ao dente – disse Leonard.
– Eu já m’adiantei – respondeu Geoffrey, que não fizera outra coisa desde que o grupo partira.
– Onde é que nos podemos sentar? – perguntou Miriam.
– Vamos para a sala dos banquetes – alvitrou Paul.
– Como é que sabes que aquela é a sala dos banquetes? – perguntou Leonard.
– Vi numa pintura.
– Pois então, toca a sentar – disse Leonard.
No enorme salão em ruínas, com as paredes frias erguidas para o céu azul, lá se sentaram todos a comer ao sol, observando os pássaros que chilreavam pousados no florão da ampla janela.
– Então, D. Cogumelo – disse Leonard, virando-se para Paul –, sois servido desta empada de veado?
– Mil agradecimentos, D. Trinca-Espinhas – respondeu Paul. – Comerei antes esta coxinha de pão com queijo.
– Por obséquio – disse Geoffrey –, podeis apertar-vos mais, pra eu me poder sentar?
– Perdoai, Insigne Cavaleiro – respondeu Leonard. – Mas será tão grande assim vossa gordura?
– Paul – disse Annie –, tens aqui o teu ovo cozido.
– Ilustres cortesãos, deleitamo-nos hoje com um festim de ovos de aves fabulosas, postos pela nossa única fénix, e ostentando todos eles o nosso brasão, tal como neles foi gravado pelas nossas aves mais colaborantes – disse Paul.
– Ou seja... um montinho de porcaria – disse Leonard.
– E direi mais... Um brasão que é o nosso orgulho desde há muitas gerações, ámen! – disse Annie.
– Oh, sublime insígnia! – rematou Paul, fazendo Miriam desatar a rir.
Depois do almoço partiram mais uma vez à exploração das ruínas. Desta feita, as raparigas acompanharam os rapazes, que assumiram o papel de guias e professores. Uma torre alta e deveras periclitante surgiu diante dos seus olhos ao virarem uma esquina, e os rapazes logo informaram que Mary, rainha da Escócia, tinha sido ali encarcerada.
– Imaginem a rainha a subir por aqui acima... – disse Miriam em voz baixa, enquanto subia as escadas tortuosas.
– Isso, se ela se conseguisse levantar – respondeu Paul. – Sofria muito do reumatismo. Aposto que a tratavam o pior possível.
– E não achas que merecia? – perguntou Miriam.
– Acho que não. Ela era apenas uma pessoa jovial.
Continuaram a subir a escada de caracol. Uma rajada agreste entrou pelas seteiras e rodopiou pelo vão das escadas, levantando a saia de Miriam em balão, para seu grande embaraço, até que Paul agarrou na barra do vestido e o puxou para baixo. Fê-lo com destreza e simplicidade, como se lhe apanhasse uma luva do chão. Ela recordaria para sempre este momento.
A hera pendia frondosa, vetusta e bela, em torno do torreão em ruínas. Havia também algumas cravinas esparsas, com os seus botões tristes e pálidos. Miriam quis debruçar-se para apanhar um raminho de hera, mas Paul não deixou, ficando ela atrás dele, a receber um a um cada raminho que ele lhe entregava, num gesto do mais genuíno cavalheirismo. A torre parecia ondular ao vento. Do alto avistavam-se milhas e milhas de terreno arborizado e terreno de pastagens.
A cripta subjacente ao solar era muito bela e em perfeito estado de conservação. Paul não perdeu a oportunidade de a desenhar. Miriam ficou junto dele, a pensar em Mary, rainha da Escócia, fitando os montes de onde não vinha qualquer ajuda, com os seus olhos exaustos e desesperados, que não compreendiam a miséria; imaginou-a também sentada naquela cripta, escutando a história de um Deus tão frio quanto o lugar onde se encontrava.
Puseram-se de novo a caminho, exultantes, lançando um último olhar àquele solar a que se sentiam presos e que se erguia tão nítido e imponente no alto da colina.
– Imagina que aquela quinta era tua – disse Paul a Miriam.
– Sim!!
– Não era maravilhoso eu ir lá visitar-te?
Encontravam-se agora num descampado com muros de pedra, de que ele tanto gostava, e que, embora só a algumas milhas de casa, parecia tão estranho a Miriam. O grupo seguia agora disperso. Ao atravessarem um extenso prado, muito íngreme, com o sol por trás, descendo por um caminho salpicado de incontáveis pontinhos cintilantes, Paul entrelaçou os dedos no saco de rede de Miriam, que logo sentiu Annie atrás de si, atenta e ciumenta. Mas o prado estava banhado numa luz gloriosa e o caminho luzia como uma jóia, e era tão raro ele dar-lhe algum sinal... Conservou por isso os dedos muito quietos entre as cordas do saco, aflorando os dedos dele. E o mundo dourou-se inteiro, como se numa visão.
Finalmente, chegaram à vilazinha isolada e pardacenta de Crich, situada a grande altura. Atrás da vila ficava o famoso Crich Stand, que Paul avistava do jardim de sua casa. O grupo estugou o passo. Grandes extensões de terrenos estendiam-se em baixo a toda a volta. Os rapazes estavam ansiosos por chegarem ao topo da colina, que era encimada por um cabeço redondo, de que metade já se tinha desmoronado, e no topo do qual se erguia um monumento antigo, grotesco e atarracado, usado noutros tempos para enviar sinais para as planícies do Nottinghamshire e do Leicestershire.
O vento soprava forte, lá no alto, naquele local tão exposto, e a única forma de se estar protegido era ser pregado pelo vento à parede da torre. Aos seus pés abria-se o precipício, de onde se extraía a pedra calcária. Em baixo, reinava uma confusão de colinas e pequenos povoados: Matlock, Ambergate, Stoney Middleton. Os rapazes estavam ansiosos por descortinarem a Igreja de Bestwood, que ficava muito distante, no meio da floresta, um pouco para a esquerda. Mas ficaram tristes ao verem que a igreja parecia erguer-se numa planície – as colinas do Derbyshire apagavam-se na monotonia das terras baixas que se estendiam para sul.
Miriam estava um pouco assustada com o vento, mas os rapazes estavam a gostar. Continuaram a caminhada, calcorreando milhas e milhas, até Whatstandwell. Todos estavam esfomeados, pois já tinham devorado a comida toda que levavam e já lhes restava pouco dinheiro para regressarem a casa. No entanto, ainda conseguiram arranjar uma broa e um pão de passas, que cortaram em fatias finas com os canivetes, sentando-se a comer num muro, perto da ponte onde o rio Derwent corria límpido, ao som do chiar dos freios do comboio em Matlock, perto da estalagem.
Paul estava pálido de cansaço. Tinha sido o chefe do grupo durante todo o dia, e agora estava morto de cansaço. Miriam, apercebendo-se disso, manteve-se junto dele, e Paul entregou-se à sua guarda.
Tiveram de esperar uma hora na estação de Ambergate. Os comboios passavam lotados com excursionistas que regressavam a Manchester, Birmingham e Londres.
– Também podíamos ir para lá... as pessoas facilmente pensariam que íamos para muito longe – disse Paul.
Chegaram a casa bastante tarde. No caminho de regresso a casa, com Geoffrey, Miriam viu a lua nascer redonda, rubra e velada, e sentiu-se realizada interiormente.
Miriam tinha uma irmã mais velha, Agatha, que era professora. A hostilidade entre as duas irmãs era notória. Miriam considerava Agatha uma pessoa demasiado mundana e o seu sonho era ser também professora primária.
Um sábado à tarde, Agatha e Miriam estavam a vestir-se no primeiro andar. O quarto delas ficava por cima do estábulo. Era um quarto de tectos baixos, não muito grande e de paredes nuas. Miriam tinha pregado na parede uma reprodução da Santa Catarina, de Veronese. Fascinava-a aquela mulher, sentada na janela a sonhar. As suas janelas eram demasiado pequenas para lá se poder sentar. Todavia, a da frente estava coberta de madressilva e hera americana, e de lá avistavam-se as copas do bosque de carvalhos, por detrás do quintal, enquanto a minúscula janela traseira, pouco maior do que um lenço, não passava de uma fresta voltada para oriente, para a aurora que se acendia atrás das colinas arredondadas que ela tanto amava.
As duas irmãs não falavam muito uma com a outra. Agatha, bonita, baixa e determinada, tinha-se revoltado contra a atmosfera do lar e contra a doutrina do «dar a outra face». Enfrentava agora o mundo exterior, lutando para se tornar independente. Insistia nos valores da cultura, nas aparências, nas boas maneiras, na posição social, tudo coisas que Miriam de bom grado teria ignorado.
Quando Paul chegou, ambas preferiram ficar invisíveis lá em cima, para poderem descer as escadas a correr, abrirem a portinhola do fundo das escadas e verem-no entrar, ansioso por encontrá-las. Miriam tentava desesperadamente enfiar pela cabeça o rosário que ele lhe tinha oferecido, e que ficara preso no fino emaranhado dos seus cabelos. Finalmente, conseguiu colocá-lo, e as contas de madeira, castanho-avermelhado, assentavam lindamente no seu pescoço fresco e mate. Era uma rapariga bem lançada e muito bonita. Contudo, só conseguia ver uma parcela do seu corpo de cada vez no pequeno espelho pregado na parede caiada de branco. Agatha tinha comprado um espelho só para ela, com o tamanho certo, que encostava à parede sempre que precisava. Miriam estava perto da janela. De repente, escutou o estalido bem conhecido do cadeado e viu Paul a abrir a cancela com um pontapé, entrando no pátio com a bicicleta. Ele olhou para cima e ela escondeu-se. Paul avançava com indiferença, e a bicicleta acompanhava-o como se fosse um objecto animado.
– O Paul já chegou! – exclamou Miriam.
– Não estás contente? – disse Agatha, evidenciando sarcasmo.
Miriam estava ainda surpresa e perplexa.
– Então, estás ou não estás? – insistiu a outra.
– Estou, mas não quero que ele perceba e pense que eu estava à espera.
Miriam estava perplexa. Ouviu-o meter a bicicleta no estábulo e falar com Jimmy, um cavalo decrépito que tinha trabalhado nas minas.
– Atão, Jimmy, meu amigo, como vai isso? Velho e cansado, hem? Pois é, é uma pena, amigo!
Escutou o som da corda a roçar na argola, quando o cavalo levantou a cabeça às carícias do rapaz. Como ela gostava de o ouvir quando ele pensava que o cavalo estava ali para o escutar. Porém, havia uma serpente no seu Éden. Ela procurava fervorosamente descobrir dentro si se amava Paul Morel. Sentia que poderia haver algo de errado nesse impulso. Enredada em sentimentos confusos, receava desejá-lo e condenava-se por isso. E logo a penetrou uma dor intensa, de vergonha, e todo o seu ser se contraiu num espasmo de tortura. Desejaria ela Paul Morel, e saberia ele que ela o desejava? Que subtil infâmia a ameaçava! E sentiu a alma enleada em nós de vergonha.
Agatha vestiu-se primeiro e desceu rapidamente para o rés-do--chão. Miriam ouviu-a cumprimentar o rapaz num tom jovial; conhecia bem o brilho dos olhos da irmã quando saudava alguém naquele tom. Ela própria se teria sentido corajosa por tê-lo cumprimentado daquela forma. Contudo, sentia dentro da alma a auto-flagelação de o desejar, aliada a um sentimento de tortura. Em perplexa amargura, ajoelhou-se e rezou:
– Senhor, não permitas que eu ame o Paul Morel. Afasta de mim esse sentimento, se achares que eu não devo amá-lo.
Algo de estranho a fez interromper a oração. Levantou a cabeça e reflectiu. Como é que amá-lo poderia ser errado? O amor era uma dádiva de Deus e, no entanto, causava-lhe vergonha. Era por ele, por Paul Morel, que a sentia. Mas esse não era assunto que lhe dissesse respeito, era só entre ela e Deus. Tinha de fazer o sacrifício, um sacrifício por Deus e não por Paul Morel ou por si mesma. Passados alguns minutos, escondeu a cara na almofada e disse:
– Meu Deus, se é Tua vontade que eu o ame, então submeto-me, como Cristo se submeteu e morreu pelas almas dos pecadores. Faz com que eu o ame fervorosamente, pois ele é Teu filho.
Permaneceu de joelhos por mais alguns instantes, serena, mas profundamente emocionada, com o cabelo negro espalhado sobre os quadrados da colcha de retalhos, vermelhos uns, outros com raminhos de alfazema. Rezar era algo de quase essencial para ela. Depois, caía naquele arrebatamento de auto-sacrifício, identificando-se com um Deus que fora sacrificado, acto que representa para tantas almas humanas a sua bênção mais sublime.
Quando Miriam desceu, Paul estava recostado no cadeirão, em acesa discussão com Agatha, que ridicularizava uma pequena pintura que ele tinha trazido para lhe mostrar. Miriam olhou-os e fugiu à sua frivolidade, indo para a sala de estar para ficar sozinha.
A hora do chá chegou sem que ela tivesse tido possibilidade de falar com Paul; mostrava-se tão distante que ele pensava tê-la ofendido.
Miriam quebrou a rotina de ir todas as terças-feiras à tardinha à biblioteca de Bestwood. Depois de se ter encontrado regularmente com Paul durante toda a Primavera, um número de incidentes insignificantes e pequenos reparos vindos da família levaram-na a aperceber-se das suas atitudes, e decidiu pôr fim às saídas. Assim, numa bela tarde, informou Paul de que não poderia voltar a ir ter a casa dele às terças-feiras à tarde.
– Porquê? – perguntou ele, com brusquidão.
– Por nada. Porque acho melhor assim.
– Muito bem.
– Mas... – gaguejou ela – ... se quiseres estar comigo, podemos ir juntos.
– E encontramo-nos onde?
– Algures... onde tu quiseres.
– Não te quero encontrar em lado nenhum. Não compreendo porque é que não podes continuar a vir buscar-me. Mas se não vieres, não quero encontrar-me contigo.
Assim, as terças-feiras à tarde, esses dias que tinham sido tão especiais para ela e para ele, terminaram. E Paul passou a ocupar esse tempo a trabalhar. Mrs. Morel viu com bons olhos esta decisão.
Paul não aceitava que fossem namorados. A intimidade entre eles tinha sido mantida ao nível do abstracto, era um assunto da alma; visto não passar de um conceito e de uma luta exaustiva ao nível da consciência, ele via nela apenas uma amizade platónica e negava peremptoriamente a existência de algo mais. Miriam permanecia em silêncio, ou então concordava sem discutir. E ele sentia-se um idiota, pois não entendia o que se passava no seu íntimo. Através de um acordo tácito, ignoravam os reparos e as insinuações das pessoas conhecidas.
– Não somos namorados, mas apenas amigos – disse-lhe ele. – Nós sabemos que é assim. Deixa-os falar. Não importa o que dizem.
Por vezes, quando caminhavam juntos, ela metia o braço timidamente no dele. Mas ele retraía-se sempre, e ela sabia-o, o que dava lugar a um conflito violento. Com Miriam, Paul sentia-se sempre no mais alto nível de abstracção, e a sua chama de amor natural transformava-se em energia mental. E ela aceitava-o assim. Se ele estivesse bem-disposto e, como ela dizia, brincalhão, ela aguardava que ele voltasse ao normal, que ele se transformasse, e o visse a lutar de novo consigo mesmo, empolgado, apaixonado, tentando compreender a situação. Nesta paixão pela compreensão, as suas almas tocavam-se e ele era totalmente dela. Todavia, tinha de se abstrair primeiro.
Assim, ela dar-lhe o braço era para ele quase uma tortura. A sua consciência parecia desintegrar-se. A parte do corpo onde ela lhe tocava ardia com a fricção. Era uma batalha mortal para ambos e por isso ele a tratava com crueldade.
Uma tardinha, nos meados do Verão, Miriam foi chamá-lo a casa, chegando transpirada devido à subida. Paul estava sozinho na cozinha e ouviam-se os passos da mãe no primeiro andar.
– Vem, vou mostrar-te as ervilhas-de-cheiro – disse ele.
Foram até ao jardim. O céu, por detrás da cidade e da igreja, era vermelho-alaranjado, e o jardim inundava-se de uma luminosidade estranha e quente que dava sentido a cada folha. Paul avançou pelo estreito carreiro ladeado de ervilhas-de-cheiro, colhendo flores creme e azul-pálido por aqui e por ali. Miriam seguia-o, aspirando as fragrâncias. As flores atraíam-na com tal intensidade que ela sentia necessidade de as tornar uma parte de si mesma. Quando se baixava e cheirava uma flor, era como se ambas se amassem uma à outra. Paul detestava vê-la fazer isso. Ela expunha-se demasiado naquela sua atitude, até mesmo intimamente.
Assim que o ramo ficou de bom tamanho, regressaram a casa. Ele escutou por momentos os passos calmos da mãe no andar de cima e, depois, disse:
– Vem cá, deixa-me enfeitar-te com elas.
E espetou duas ou três de cada vez à volta do decote do vestido, recuando em seguida para admirar o efeito.
– Sabes – disse ele, tirando o alfinete da boca – a mulher devia colocar sempre as flores em frente ao espelho.
Miriam sorriu. Para ela, as flores deviam ser colocadas no vestido sem qualquer preocupação. Se Paul se queria dar ao trabalho de lhe espetar as flores no vestido com rigor, isso era lá com ele.
Paul ficou muito ofendido com a gargalhada que ela deu.
– Algumas mulheres fazem-no.... as que são como devem ser – disse ele.
Miriam sorriu novamente, mas desta vez melancólica, por ele a ter misturado com as mulheres em geral. Teria ignorado a afronta, se tivesse partido de outro homem qualquer. Mas, vinda dele, magoava-a.
Estava ele a terminar o arranjo de flores quando ouviu os passos da mãe nas escadas. Espetou o último alfinete à pressa e afastou-se.
– Não deixes que a minha mãe perceba – disse ele.
Miriam pegou nos livros e ficou à entrada da porta, olhando desapontada para o belíssimo pôr do Sol. Não tornaria a vir a casa de Paul, disse ela.
– Boa tarde, Mrs. Morel – cumprimentou-a Miriam, respeitosamente. As suas palavras soaram como se ela não tivesse o direito de estar ali.
– Ah, és tu, Miriam! – respondeu Mrs. Morel friamente.
Paul insistia em que todos aceitassem a sua amizade com a rapariga, e Mrs. Morel era demasiado esperta para demonstrar abertamente qualquer relutância.
Só quando ele fez vinte anos é que a sua família teve possibilidades económicas para ir de férias. Desde que casara, Mrs. Morel nunca tinha ido de férias, excepto para visitar a irmã. Finalmente, Paul tinha conseguido juntar dinheiro suficiente para levar a família de férias. O grupo era o seguinte: alguns amigos de Annie, um amigo de Paul, um rapaz do escritório onde Paul tinha estado anteriormente e Miriam.
A reserva dos quartos provocou grande alarido. Paul e a mãe debateram várias vezes o assunto. Queriam uma casinha rústica mobilada para duas semanas. Ela achava que uma semana seria suficiente, mas ele insistia em duas. Paul saiu logo de manhã, antes de o correio chegar. Assim, quando voltou, as primeiras palavras da mãe foram:
– Paul, sabes uma coisa... aquela espertalhona de Skegness quer só quatro guinéus por semana por aquele seu barraco miserável.
– Então, vai ter muito de esperar – disse Paul.
– Também acho – respondeu a sua mãe, indignada. Nessa mesma noite, Paul escreveu outra carta. Receberam finalmente resposta de Mablethorpe – uma casinha que preenchia os seus desejos, por trinta xelins por semana. Houve uma explosão de alegria. Paul estava radiante pela mãe. Agora sim, ela ia ter umas verdadeiras férias. À noite, ficavam sentados a imaginar como seriam. Entretanto, chegaram Annie, Leonard, Alice e Kitty. Havia grande alegria e expectativa. Paul contou a Miriam. Ela pareceu feliz, mas comedida. Porém, o lar dos Morels vibrava de excitação.
CONTINUA
A cozinha era muito pequena e esquinada. A quinta tinha sido inicialmente o casebre de um jornaleiro, e a mobília estava velha e gasta. Mas Paul gostava da casa; gostava da serapilheira que substituía o tapete da chaminé e daquele vão patusco por baixo das escadas, e do postigo que se abria ao fundo e através do qual, se se curvasse, podia ver as ameixoeiras do jardim das traseiras e os graciosos cabeços arredondados que se recortavam à distância.
– Não te queres deitar? – disse Mrs. Leivers.
– Oh, não... não estou cansado – respondeu Paul. – É maravilhoso andar lá por fora, não é? Vi um abrunheiro em flor e muitas celidónias. Estou tão feliz por estar sol.
– Queres comer ou beber alguma coisa?
– Não, obrigada.
– Como está a tua mãe?
– Penso que se sente cansada... tem andado muito ocupada. Talvez vá em breve para Skegness comigo. Assim, terá oportunidade de descansar. Quem me dera que isso aconteça.
– Sim – respondeu Mrs. Leivers. – É um milagre que ela não esteja doente.
Miriam andava de um lado para o outro a preparar o jantar. Paul observava tudo o que se passava. As suas faces estavam pálidas e magras, mas os olhos continuavam, como sempre, rápidos e vivos. Ia observando os movimentos estranhos, quase rapsódicos, da rapariga, levando um tacho de guisado para o forno ou vigiando a panela. A atmosfera de sua casa era diferente, lá tudo parecia vulgar. Quando lá fora Mr. Leivers gritou com o cavalo, que se preparava para comer as roseiras no jardim, a rapariga assustou-se e olhou em volta com os seus olhos muito negros, como se algo tivesse vindo perturbar o seu mundo. Sentia-se o silêncio dentro e fora de casa. Miriam parecia estar a viver um conto de fadas, onde era uma donzela cativa e o seu espírito vagueava por uma terra distante e mágica. E a sua túnica azul, velha e desbotada, e as botas já muito gastas, pareciam os andrajos românticos da mendiga do Rei Cophetua.
Subitamente, sentiu os olhos dele, azuis e penetrantes, devorá-la. No mesmo instante as suas botas gastas e o seu velho vestido puído magoaram-na. Lamentava profundamente que ele estivesse a ver tudo. Pois se ele até sabia que a meia dela não estava completamente esticada. Dirigiu-se para a copa com as faces ruborizadas. Mais tarde, as mãos tremiam-lhe levemente durante as tarefas domésticas, quase deixando cair tudo aquilo em que pegava. Quando o seu sonho interior era abalado, o seu corpo estremecia com a trepidação. Lamentava profundamente que ele visse tanta coisa.
Mrs. Leivers sentou-se e conversou durante algum tempo com o rapaz, embora tivesse o trabalho à espera. Era todavia demasiado educada para o deixar sozinho. A certa altura, pediu licença e levantou-se. Daí a pouco olhou para a panela:
– Miriam, querida! – chamou. – As batatas estão sem água!
Miriam respondeu como se algum bicho lhe tivesse mordido.
– E depois, mãe? – exclamou ela.
– Não seria grave se eu não tas tivesse confiado – disse a mãe. – E espreitou para dentro da panela.
A rapariga pôs-se hirta como se tivesse levado um soco. Os seus olhos negros dilataram-se e ficou estática, no mesmo lugar.
– Tenho a certeza de que ainda há cinco minutos as vi – respondeu, crispada, sentindo-se culpada.
– Eu entendo – disse a mãe. – São coisas que acontecem.
– Não estão muito queimadas – disse Paul. – Não tem importância, pois não?
Mrs. Leivers olhou para o jovem com os seus olhos castanhos, magoados.
– Não teria importância, se não fosse pelos rapazes – disse ela. – Só Miriam sabe o barulho que eles fazem quando as batatas se pegam.
«Nesse caso», pensou Paul com os seus botões, «não deviam deixá-los fazer tanto barulho.»
Daí a nada, entrou Edgar. Vinha de perneiras e trazia as botas cobertas de terra. Era bastante baixo e muito formal para lavrador. Olhou de relance para Paul, cumprimentou-o de longe e perguntou:
– O comer está pronto?
– Está quase, Edgar – respondeu a mãe desculpando-se.
– Pois eu já estou pronto – disse o jovem, pegando no jornal e começando a ler. Entretanto, chegaram os restantes membros da família. O almoço foi para a mesa. A refeição decorreu com grande informalidade. A excessiva delicadeza e tom apologético da mãe realçavam mais o comportamento indelicado dos filhos. Edgar provou as batatas, mexeu a boca rapidamente como um coelho, olhou indignado para a mãe e disse:
– Estas batatas estão esturradas, mãe!
– Pois estão, Edgar... distraí-me por um minuto. Mas talvez possas comer pão, se não as conseguires comer.
Edgar olhou com raiva para Miriam.
– O que estava a Miriam a fazer, para não poder tomar conta delas? – disse ele.
Miriam levantou os olhos. A boca entreabriu-se-lhe, os seus olhos brilharam intensos, pestanejantes, mas permaneceu calada. Engoliu a raiva e a vergonha, e baixou a cabeça.
– Tenho a certeza de que não foi por mal – disse a mãe.
– Nem umas batatas sabe cozer – disse Edgar. – Pra que serv’ela aqui em casa?
– Pra ir prà despensa comer tudo o que sobra – disse Maurice.
– Eles não se esquecem daquela tarte de batata que a nossa Miriam comeu – disse o pai, a sorrir. Miriam sentia-se completamente humilhada. A mãe ficou calada, a sofrer como uma mártir, sentindo-se a mais nesta refeição atribulada.
Paul estava perplexo com tudo o que via. Não conseguia perceber a razão de tão violenta reacção só porque umas batatas se tinham queimado. A mãe dava a tudo, mesmo à mais insignificante tarefa doméstica, a importância de um dever religioso. Os filhos ressentiam-se com isso e, vendo cerceadas as suas liberdades, respondiam-lhe com brutalidade e também com irónica arrogância.
Paul estava a passar da infância à idade adulta. Esta atmosfera, onde tudo adquiria um valor religioso, tinha a seus olhos um fascínio subtil. Pairava no ar algo de indefinível. A sua própria mãe era lógica. Mas aqui havia algo de diferente, algo que ele amava, algo que por vezes detestava.
Miriam discutiu com os irmãos aguerridamente. Mais tarde, depois do almoço, quando todos já se tinham ido embora, a mãe disse:
– Desapontaste-me muito à hora do almoço, Miriam.
A rapariga baixou a cabeça.
– Eles são uns brutos! – exclamou subitamente, com os olhos flamejantes.
– Mas tu tinhas prometido que não respondias, não tinhas? – disse a mãe. – E eu acreditei em ti! Não suporto ver-te discutir.
– Mas eles são tão irritantes! – exclamou Miriam. – E... e malcriados.
– Sim, minha querida. Mas quantas vezes já te disse para não responderes ao Edgar? Será que não podes deixá-lo dizer o que lhe apetece?
– Mas porque há-de ele dizer o que lhe apetece?
– Miriam, será que não és suficientemente forte para o suportares, mesmo que o faças só por mim? Serás tão fraca que tenhas de discutir sempre com eles?
Mrs. Leivers pregava inflexivelmente a doutrina do «dar a outra face», mas não conseguia ensiná-la aos filhos. Era contudo bem-sucedida com as filhas, e Miriam era a sua filha dilecta. Os rapazes ficavam furiosos quando elas lhe davam a outra face, e Miriam era muitas vezes suficientemente orgulhosa para o fazer. Eles então cuspiam-lhe e detestavam-na. E ela refugiava-se na sua orgulhosa humildade, fechando-se em si mesma. Havia sempre este sentimento de conflito e de discórdia no seio da família Leivers. Embora os rapazes rejeitassem amargamente o eterno apelo aos seus sentimentos mais profundos de resignação e emproada humildade, acabavam por ceder. Não conseguiam imaginar apenas um sentimento humano comesinho ou uma simples amizade com um estranho: estavam sempre ansiosos por algo de mais profundo. O comum mortal era para eles superficial, trivial e insignificante. E, assim, por falta de hábito, eram dolorosamente rudes nos mais simples contactos sociais e, embora sofressem com isso, continuavam a arvorar uma insolente superioridade. Todavia, bem no fundo, ansiavam pela intimidade que não podiam lograr, pois eram demasiado reservados e qualquer tentativa de aproximação era imediatamente bloqueada pelo rude desprezo que nutriam pelos outros. Buscavam uma intimidade genuína, mas não se conseguiam aproximar normalmente das outras pessoas, pois recusavam-se a dar o primeiro passo e desprezavam a trivialidade que envolve a generalidade das relações humanas.
Paul deixou-se arrastar pelo sortilégio de Mrs. Leivers. Tudo adquiria um significado religioso e profundo quando ele estava com ela. A alma ferida dele, altamente evoluída, procurava-a em busca de alimento. Juntos pareciam filtrar de cada experiência a sua verdade vital.
Miriam era bem a filha de sua mãe. De tarde, ainda o sol brilhava, mãe e filha foram com ele passear pelos campos. Iam em busca de ninhos e encontraram um de carriça na cerca do pomar.
– Quero que vejas uma coisa – disse Mrs. Leivers.
Ele baixou-se e meteu o dedo cautelosamente por entre os espinhos, penetrando no orifício redondo da entrada do ninho.
– É quase como se metêssemos o dedo dentro do corpo de um pássaro – disse ele. – É tão quente. Dizem que o pássaro faz o ninho redondo como uma chávena, calcando-o com o peito. Sempre gostava de saber como é que ele fez o tecto redondo. – Para as duas mulheres, o ninho era o começo da vida. Depois desse dia, Miriam vinha visitá-lo todos os dias. Sentia-o tão próximo de si. Descendo novamente rente à cerca com a rapariga, Paul reparou nas celidónias, sobressaindo como salpicos de ouro na beira do valado.
– Gosto delas quando as pétalas se abrem completamente à luz do sol – disse ele. – Parecem comprimir-se contra o sol. – E foi quanto bastou para as celidónias passarem a exercer sobre ela um certo fascínio. Antropomórfica como era, incentivava-o a apreciar as coisas desta forma, e elas depois ganhavam vida para ela. Parecia necessitar que as coisas brilhassem na imaginação ou na alma dele primeiro, antes de sentir que as possuía. Sempre se vira privada de uma vida normal pelo seu próprio fervor religioso, que fazia o mundo parecer-lhe um jardim de convento ou um paraíso, onde o pecado e o conhecimento ou não existiam ou eram, pelo contrário, algo de cruel e feio.
Foi assim, nesta atmosfera de subtil intimidade, neste encontro de sentimentos comuns pelas coisas da natureza, que o amor nasceu.
Mas só passado muito tempo, Paul se deu verdadeiramente conta da existência de Miriam. Após a doença teve de permanecer em casa durante dez meses. Foi passar algum tempo a Skegness com a mãe e sentia-se verdadeiramente feliz. Mas até da praia ele escrevia longas cartas a Mrs. Leivers falando-lhe da praia e do mar. E trouxe consigo os seus queridos esboços da costa plana de Lincoln, ansioso por lhos mostrar. Iam com certeza interessar mais aos Leivers do que tinham interessado à sua própria mãe. Não era a sua arte que preocupava Mrs. Morel, mas sim ele próprio e o seu futuro. Porém, Mrs. Leivers e os filhos eram quase seus discípulos. Davam-lhe inspiração e faziam-no brilhar no seu trabalho, ao passo que a mãe o influenciava de forma a torná-lo determinado, paciente, obstinado, incansável.
Em breve se tornou amigo dos rapazes, cuja rudeza era apenas superficial. Todos patenteavam, quando podiam confiar neles próprios, uma bondade e amabilidade muito estranhas.
– Vens comigo para a leira? – perguntou Edgar, um tanto hesitante. Paul foi com ele alegremente e passou a tarde a cavar e a desbastar os nabos com o amigo. Paul costumava deitar-se com os três irmãos no monte de feno do celeiro a contar-lhes histórias sobre Nottingham e a Thomas Jordan. Eles, por sua vez, ensinaram-no a ordenhar e deixavam-no encarregar-se de pequenas tarefas tanto quanto quisesse, tais como segar feno ou despolpar nabos. Nos meados do Verão, Paul ajudou-os a segar o feno e tornou-se seu grande amigo. Aquela família vivia na verdade bem longe do mundo. Assemelhavam-se de certa forma a «les derniers fils d’une race épuisée»1. Embora os rapazes fossem robustos e saudáveis, eram esquivos e extremamente sensíveis, o que os tornava tão solitários. Mas, uma vez ganha a sua confiança, mostravam-se amigos fiéis e dedicados.
Miriam só mais tarde aconteceu. Mas ele entrara na vida dela antes de ela aparecer na sua. Numa tarde sombria, quando os homens estavam no campo e os mais novos na escola, apenas tendo ficado em casa Miriam e a mãe, ela perguntou-lhe, após breves momentos de hesitação:
– Já viste o baloiço?
– Não – respondeu ele. – Onde está?
– No estábulo – disse ela.
Ela hesitava sempre em dizer-lhe ou mostrar-lhe alguma coisa. Os homens têm uma noção de valor tão diferente da das mulheres que todos os seus objectos mais queridos e valiosos eram frequentemente motivo de escárnio e insulto por parte dos irmãos.
– Então vamos! – respondeu ele, levantando-se de imediato.
Havia dois estábulos, um de cada lado do celeiro. No estábulo mais baixo e escuro havia lugar para quatro vacas. As galinhas esvoaçavam sobre a manjedoura, cacarejando, enquanto o rapaz e a rapariga se aproximavam da corda grande e grossa, que pendia suspensa de uma viga na escuridão e estava presa à parede, a uma cavilha.
– Parece uma corda! – exclamou ele, satisfeito, e sentou-se ansioso por experimentar. Porém, levantou-se logo.
– Vá! Experimenta tu primeiro! – disse, voltando-se para a rapariga.
– Estás a ver – respondeu ela, entrando no celeiro –, é preciso pôr uns sacos no assento. – E assim tornou o assento mais confortável, o que muito o alegrou. Paul segurou-se à corda.
– Vem! – disse ele.
– Não, não quero ser a primeira – respondeu ela.
E manteve-se afastada, no seu jeito indiferente e calmo.
– Porquê?
– Vai tu agora! – insistiu ela.
Era talvez a primeira vez na vida que ela sentia prazer em fazer o que um homem lhe dizia, em poder mimá-lo. Paul olhou para ela.
– Está bem – disse ele, sentando-se no baloiço. – Cuidado!
Deu um salto para cima do baloiço e logo voou pelo ar, quase saindo pela porta, que tinha a parte superior aberta, podendo ver lá fora a chuva a cair miúda, o pátio sujo, o gado desolado junto à carroça preta do estábulo e, ao fundo, a cortina verde e cinza da floresta. Ela mantinha-se cá por baixo, com a sua boina vermelha à escocesa, a observá-lo. Ele olhou para ela, e ela viu os seus olhos azuis a brilharem.
– É um baloiço formidável – disse ele.
– Pois é.
Todo ele se lançava pelo ar, como um pássaro em voo picado, só pelo prazer do movimento. E então olhou para baixo, para ela, e a boina vermelha sobre os caracóis negros, o rosto bonito e afável, tão sereno como se estivesse a meditar, subiram até ele. Estava escuro e frio dentro do estábulo. Subitamente uma andorinha desceu das alturas do forro do telhado e saiu como uma seta pela porta.
– Não sabia que estávamos a ser observados por um passarinho – disse ele.
Ele baloiçava-se desabridamente. Ela sentia-o descer e subir no ar, como se impelido por uma força desconhecida.
– Agora vou morrer – disse ele, numa voz sonhadora e despojada, como se ele próprio fosse o movimento moribundo do baloiço. Ela olhava-o, fascinada. Bruscamente, ele travou e saltou.
– Já andei muito tempo – disse ele. – Isto é um baloiço formidável, é realmente um baloiço formidável.
Miriam estava divertidíssima, pois ele tinha levado o baloiço a sério e sentira-se bem a andar nele.
– Não, continua – disse ela.
– Porquê?... Não queres andar? – perguntou ele espantado.
– Não me apetece muito. Mas vou andar só um bocadinho.
Ela sentou-se no baloiço, enquanto ele segurava os sacos.
– É formidável, vais ver – disse ele, empurrando-a. – Mantém os calcanhares bem levantados, senão batem na manjedoura.
Miriam sentia a precisão com que ele a agarrava no momento exacto e a força certeira com que a empurrava, e sentia medo. Uma onda quente de medo percorreu-a até ao ventre. Ela estava nas mãos dele. O impulso firme e inevitável surgia de novo no momento certo. Ela agarrava-se à corda, quase a desmaiar.
– Oh – disse ela a rir, cheia de medo. – Mais alto não!
– Mas tu não vais nada alto – protestou ele.
– Mas mais alto não!
Paul apercebeu-se do medo na voz dela, e parou. O coração dela derreteu-se numa dor cálida, quando chegou o momento de novo impulso, mas ele deixou-a sozinha, e ela pôde respirar outra vez.
– Não queres mesmo ir mais alto? – perguntou ele. – Queres que te mantenha nessa altura?
– Não, eu ando sozinha – respondeu ela.
Então ele afastou-se e ficou a vê-la.
– Mal te mexes – comentou ele.
Ela esboçou um sorriso, envergonhada, e de repente desceu.
– Dizem que quem sabe andar de baloiço não enjoa no mar – disse ele, enquanto subia para o baloiço outra vez. – Não creio que alguma vez venha a enjoar.
Começou a andar novamente. Para ela havia algo nele que a fascinava. Naquele momento ele era apenas uma peça de um objecto em movimento e tudo nele se movia. Nem ela nem os irmãos conseguiam libertar-se assim. Sentia o entusiasmo desabrochar dentro de si. Era como se ele fosse uma chama, e tivesse ateado o entusiasmo dentro dela enquanto se baloiçava no ar.
E, gradualmente, a intimidade de Paul com a família Leivers privilegiava três pessoas: a mãe, Edgar e Miriam. Na mãe encontrava uma simpatia e um encanto que pareciam abrir-lhe o coração. Edgar era o seu melhor amigo. Quanto a Miriam, digamos que a ia aturando, pois parecia-lhe ser muito submissa.
Mas a rapariga, a pouco e pouco, foi-o atraindo. Quando ele trazia o caderno dos esboços, era sempre ela quem observava mais longamente o último desenho. E então, olhava para ele e perguntava, com os olhos negros a luzir, como águas agitadas por uma corrente dourada no meio da escuridão:
– Porque será que gosto tanto deste?
E algo no peito dele se retraía perante estas observações tão deslumbradas, tão íntimas e tão próximas.
– Sim, porque será? – perguntava ele.
– Não sei – parece tão real.
– É porque... é porque quase não tem sombras... é mais como uma cintilação... como se eu tivesse pintado a cintilação do protoplasma das folhas, e de tudo, e não a rigidez das formas. Isso para mim é coisa morta. Só a cintilação contém vida. A forma é uma crosta morta. A cintilação está, realmente, no interior.
E ela, mordendo o dedinho minúsculo, ponderava sobre tais afirmações. Davam-lhe uma nova sensação de vida e davam vida a coisas que até aí não significavam nada para ela. Conseguia encontrar algum significado nos discursos dele, sempre tão abstractos e intrincados. Era através deles que ela chegava claramente aos objectos amados.
Certo dia, ela tinha estado sentada junto dele, ao pôr do Sol, enquanto ele pintava alguns pinheiros batidos pelo clarão rubro que avançava do poente. Ele mantivera-se calado.
– Já está! – disse ele, de repente. – Mesmo o que eu queria. Agora, olha para eles e diz-me se são troncos de pinheiro ou carvões incandescentes, estacas de fogo a arder na escuridão. A sacra ardente de Deus, aquela que não se apaga.
Miriam olhou e sentiu medo. Mas distinguia perfeitamente os troncos de pinheiro e achava-os magníficos. Ele arrumou a caixa das tintas e levantou-se. De repente, olhou para ela.
– Porque estás sempre tão triste? – perguntou.
– Triste! – exclamou ela, olhando para ele com os seus olhos castanhos, admirados, maravilhosos.
– Sim – disse ele. – Tu andas sempre, sempre triste.
– Não... Nem um pouco! – exclamou ela.
– Até a tua alegria parece uma chama ateada pela tristeza – insistiu ele. – Nunca estás alegre, nem sequer normal.
– Pois não – disse ela, pensativa. – Dá que pensar... Porque será...?
– Porque tu não és.... porque tu és diferente por dentro... como um pinheiro... e depois incendeias-te... mas não és uma árvore qualquer, com folhas irrequietas e alegres...
Paul emaranhou-se no seu próprio discurso; mas ela bebia as suas palavras e ele teve uma sensação estranha e estimulante, como se os seus sentimentos fossem novos. Ela chegava-lhe tão perto da alma. Estranho estímulo este.
Mas às vezes odiava-a. O irmão mais novo de Miriam só tinha cinco anos. Era um menino débil, de enormes olhos castanhos e um rostinho frágil e esquisito; parecia um anjo do Coro dos Anjos, de Reynolds, com um toque de duende.
Miriam ajoelhava-se frequentemente junto da criança e apertava-o contra o peito.
– Meu Hubert! – cantarolava ela com uma voz possante, a transbordar de amor. – Meu Hubert!
E, envolvendo-o nos seus braços, embalava-o mansamente de um lado para o outro com amor, de face levantada ao céu, olhos semicerrados e voz embebida de ternura.
– Pára! – disse a criança, constrangida. – Pára, Miriam!
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela do fundo da garganta, como se estivesse em transe, balançando também, como se prestes a desfalecer num êxtase de amor.
– Pára! – repetiu a criança, franzindo a testa desanuviada.
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela.
– Porque fazes tanto espalhafato? – gritou Paul, profundamente afectado pela emoção exagerada de Miriam. – Porque não ages normalmente com ele?
Ela largou a criança e não respondeu. A sua intensidade, que não deixaria transparecer qualquer emoção numa situação normal, deixava o jovem quase num frenesim. Este contacto desprotegido e tímido com a alma dela chocava-o. A sua mãe era reservada, e ele estava habituado a ela. E, nessas alturas, sentia-se agradecido de alma e coração por ter a mãe que tinha, tão sensata e tão sã.
Toda a vida do corpo de Miriam se reflectia nos seus olhos, normalmente escuros como as igrejas, mas que podiam inflamar-se como uma conflagração. A sua expressão meditativa raramente se alterava. Talvez ela tivesse sido uma das mulheres que acompanharam Maria quando Jesus morreu. O seu corpo não era vivo, flexível. Andava de forma oscilante, pesada até, de cabeça inclinada para a frente, meditativa. Não sendo propriamente desajeitada, nenhum dos seus movimentos parecia o movimento correcto. Muitas vezes, quando limpava os pratos, ficava confusa e desgostosa, por ter partido em duas metades uma chávena ou um copo. Era como se, por medo e falta de confiança, se tivesse aplicado demasiado. Não sabia o que eram relaxamento ou abandono. Agarrava-se a tudo com rigidez e intensidade, e o seu esforço, de excessivo, fechava-a sobre si mesmo.
Raramente alterava a forma de andar, tensa, balançada, projectada para a frente. De vez em quando, ia com Paul dar uma corrida pelos campos e então os seus olhos brilhavam inteiros, num êxtase que o assustava. Mas tinha medo de fazer exercício físico. Se tivesse de saltar uma cerca, apertava as mãos de forma angustiante e perdia a presença de espírito. E ele não conseguia persuadi-la a saltar, mesmo um obstáculo baixo. Os olhos dela dilatavam-se, ficavam expostos, palpitantes.
– Não – gritava ela, sorrindo apavorada. – Não!
– Tens de tentar – gritou ele uma vez e, empurrando-a para a frente, fê-la cair da cerca. Mas o grito selvagem que ela deu, como se estivesse prestes a perder a consciência, feriu-lhe as entranhas. Mas ela caiu de pé e em segurança, e posteriormente passou a ter mais coragem.
Paul e Miriam iam muitas vezes passear juntos pelos campos até ao lago Nethermere. Ele era naturalmente ágil e muito activo. Andava sempre a saltar de um lado para outro. Ela, no entanto, mantinha sempre o mesmo curso, quase sem alterações. E ele, a pouco e pouco, vinha para junto dela, moderava o passo e caminhava com ela, de cabeça baixa, mas só até chegarem à água. A margem do lago estava pejada das penas brancas dos cisnes. Sentavam-se entre os seixos. Subitamente, ele descobria um seixo bonito e bem liso, levantava-se, e atirava-o à água para provocar ondinhas.
– Consegues fazê-los saltar? – perguntou Paul.
– Não muito bem! – respondeu ela, abanando a cabeça. E continuou sentada a observá-lo.
– Ora vê! – gritou ele. – Quatro saltinhos.
– Sim senhor – disse ela, elogiando-o. – Formidável. – Contudo, ele depressa se fartou e veio sentar-se novamente junto dela.
– Porque não queres também fazer ondinhas? – perguntou ele.
– Porque não sei – respondeu ela.
– Tu nunca queres fazer nada! – disse ele.
– Bem vês, tenho a lida da casa para fazer.
Paul não deu seguimento à discussão, preferindo encetar um diálogo sobre livros.
Miriam estava muito triste com o seu destino.
– Não gostas de estar em casa? – perguntou-lhe Paul surpreendido.
– E quem é que gosta? – respondeu ela, num tom cavo e profundo. – O que é estar em casa? Passar os dias a limpar o que os rapazes sujam em menos de cinco minutos. Não quero estar em casa!
– Então o que é que queres?
– Quero fazer alguma coisa. Quero ter uma oportunidade, como toda a gente. Porque é que eu, só por ser rapariga, tenho de ficar em casa e não me é permitido ser alguém? Que oportunidades é que eu tenho?
– Oportunidades para quê?
– Para saber de tudo, para aprender... para fazer qualquer coisa. Não é justo que isto aconteça apenas por eu ser mulher.
Ela falava com muita amargura. Paul pôs-se a pensar. Em casa, Annie parecia até quase contente por ser rapariga. Não tinha tantas responsabilidades e tudo era mais fácil para ela. Nunca quisera ser qualquer outra coisa além de rapariga. Mas Miriam desejava quase furiosamente ser homem. E, contudo, ao mesmo tempo detestava os homens.
– Mas ser homem ou mulher é a mesma coisa – disse Paul, franzindo a testa.
– Ai é?... Os homens têm tudo.
– Eu acho que as mulheres deviam estar contentes por serem mulheres, como os homens estão por serem homens – respondeu ele.
– Não! – Ela abanou a cabeça. – Nem pensar! Os homens têm tudo.
– Mas o que é que queres, afinal? – perguntou ele.
– Quero aprender. Porque é que eu hei-de ficar sem saber nada?
– Mas afinal o que queres tu aprender? Matemática e francês...?
– E porque é que eu não hei-de aprender matemática... Sim – gritou ela, abrindo os olhos em ar de desafio.
– Tu podes aprender tudo aquilo que eu sei – disse ele. – Eu ensino-te, se quiseres.
Os olhos dela arregalaram-se. Como professor, ele não lhe inspirava confiança.
– Gostavas? – perguntou Paul.
Ela estava de cabeça baixa a chuchar no dedo, sorumbática.
– Gostava... – disse ela, hesitante.
Ele conversava frequentemente com a mãe sobre todas estas coisas.
– Gostava de ser homem, mãe? – perguntou ele.
– Por vezes... mas é uma parvoíce... penso que não... não quero e nunca quis ser outra pessoa diferente da que sou.
– E porque é que gostava de ser homem, mesmo só às vezes?
– Bem, meu filho – respondeu a mãe a sorrir – penso que conseguiria fazer mais do que alguns homens, o que não é para admirar.
– Eu cá não quero ser mulher – disse ele, pensativo. – E acho que não conseguia ser uma mulher melhor do que as que já são mesmo mulheres.
– Não – disse a mãe a sorrir. – Também acho que não... Mas, por vezes, nós sentimos que poderíamos fazer mais do que os homens...
– Talvez a mãe pudesse... – disse ele.
– Bem... – respondeu ela com a sua curiosa fungadela habitual. – Sabes, meu filho – continuou ela – a natureza é para ser respeitada. E quando uma mulher deseja ardentemente ser homem, podes apostar a vida em como ela não é lá grande coisa como mulher.
– Detesto uma mulher que deseje ser homem – disse ele.
– Apenas demonstra que o seu orgulho de mulher está demasiado enfraquecido – respondeu a mãe. Paul falava sempre com a mãe, pois ela era a sua pedra de toque.
– Vou ensinar álgebra à Miriam – disse ele.
– Bem... – disse Mrs. Morel – espero que lhe seja proveitoso.
Aproximava-se o crepúsculo quando Paul se dirigiu para a quinta, na segunda-feira à tardinha. Miriam acabara de varrer a cozinha e estava ajoelhada junto à lareira quando ele entrou. Todos tinham saído, excepto ela. Olhou-o ruborizada, com os olhos negros a brilhar e os cabelos magníficos caídos à volta do rosto.
– Olá – disse ela, num tom suave e musical. – Já sabia que eras tu!
– Como é que adivinhaste?
– Reconheci os teus passos. Ninguém anda tão depressa e firmemente como tu.
Ele sentou-se e suspirou.
– Estás pronta para aprender álgebra? – perguntou ele, tirando um livrinho do bolso.
– Mas... – Ele sentiu-a recuar.
– Mas tu disseste que querias – insistiu ele.
– Mas hoje à noite... – começou ela, titubeante.
– Mas eu vim de propósito. E, se queres aprender, alguma vez tens de começar.
Ela apanhou as cinzas com a pá do lixo e olhou para ele, esboçando um sorriso trémulo.
– Sim, mas... esta noite... Sabes, ainda não pensei nisso.
– Por amor de Deus... Vai despejar as cinzas e vem ter comigo.
Paul saiu e sentou-se no banco de pedra do pátio das traseiras, perto das grandes bilhas de leite. Os homens estavam no estábulo. Ele conseguia ouvir o som cadenciado do leite, jorrando para os baldes. Ela voltou logo, com um punhado de maçãs grandes e esverdeadas.
– Estas são das que tu gostas – disse ela.
Ele deu uma trincadela na maçã.
– Senta-te – disse ele com a boca cheia.
Ela, míope, começou a espreitar por cima do ombro dele. Isso irritou-o tanto que lhe entregou logo o livro.
– Vê à vontade – disse ele. – Aqui há apenas letras para cada número. Escreves um a, em vez de um «2» ou um «6».
Começaram a trabalhar, ele a explicar e ela debruçada sobre o livro. Ele era rápido e impetuoso. Ela nunca respondia. Por vezes, quando ele lhe perguntava:
– Estás a perceber? – ela olhava-o com uns olhos sorridentes e amedrontados.
– Então, não estás a perceber nada! – gritava ele.
Tinha ido demasiado depressa. Mas ela não tinha dito nada. Ele fez-lhe mais perguntas e depois irritou-se. Ficava com o sangue a ferver de a ver ali à sua mercê, de boca aberta, olhos esbugalhados, com um sorriso medroso, apologético, envergonhado. Edgar chegou entretanto com dois baldes de leite.
– Olá! – disse ele. – O que estão vocês a fazer?
– Álgebra – respondeu Paul.
– Álgebra! – repetiu Edgar, intrigado. E seguiu em frente, dando uma gargalhada. Paul trincou a maçã já quase esquecida e, olhando para as pobres couves da horta, todas rendilhadas pelas galinhas, teve vontade de as arrancar. Depois, olhou para Miriam, que fitava o livro aparentemente absorta; porém tremia, receando não compreender. Estava corada e bonita. Todavia, a sua alma parecia suplicar ao livro de álgebra que a ajudasse. Ela fechou-se, retraiu-se, percebendo que ele estava aborrecido. Mas, no mesmo instante, ele tornou-se gentil ao vê-la magoada por não conseguir perceber o que lia.
– Diz lá, o que é que achas difícil? – perguntou ele, ternamente.
Este novo tom de voz fê-la levantar de imediato os olhos negros que pareciam querer vencer a todo o custo. O olhar dela doeu-lhe e uma onda de ternura percorreu-o.
– Sabes, para mim é fácil – disse ele. – Já estou habituado e esqueço-me de que não sabes. Vês...
E, então, todo ele gentileza e paciência, recomeçou. Edgar chegara entretanto e pusera-se atrás dele.
A cabeça escura de Miriam encontrava-se abaixo do nível dos olhos de Paul. Era uma cabeça pequenina com caracóis negros que pareciam flutuar como seda. Ela parecia esforçar-se tanto! A voz dele era uma contínua ternura.
– Vejo, pois! – exclamou Edgar, de repente, por detrás deles. – Mas... isto...
E o seu gordo indicador aproximou-se do livro. Miriam estremeceu. Paul virou-se para o amigo. Edgar era bem-parecido e os seus olhos, castanhos, perfeitos e saudáveis, pareciam interessados. Explicar-lhe algo era para Paul como respirar ar fresco.
Paul dava lições a Miriam com regularidade. As aulas tinham lugar na sala de estar. Foi aí que o jovem se estreou brilhantemente. Ela aprendia tudo e sabia sempre quais os exercícios que ele lhe mandara fazer na semana anterior. Frequentemente sabia até melhor do que ele. Mas as coisas para ela tinham de ser lentas. E quando se retraía e se mostrava completamente submissa durante a lição, isso enervava-o. Ele enfurecia-se, envergonhava-se, continuava a lição e enfurecia-se novamente, gritando com ela. Ela escutava-o em silêncio. Por vezes, muito raramente, defendia-se. Os seus olhos negros e transparentes fulminavam-no.
– Não me dás tempo para aprender – dizia ela.
– Pronto – respondia ele, atirando o livro para cima da mesa e acendendo um cigarro. Mais tarde, ia ter com ela arrependido. E assim decorriam as lições, com ele sempre ou muito enervado ou muito gentil.
– Porque é que a tua alma estremece durante a lição? – gritava ele. – Com essa tua bendita alma, nunca mais aprendes álgebra. Será que não consegues olhar para isto com a razão, de uma forma clara e simples?
Muitas vezes, quando ia para a cozinha, Mrs. Leivers olhava para ele aborrecida e repreendia-o:
– Paul não sejas tão severo com a Miriam. Ela pode não ser muito rápida, mas tenho a certeza de que se esforça.
– Não me consigo conter – dizia ele, desculpando-se. – Enervo--me facilmente.
– Miriam, não estás aborrecida comigo, pois não? – perguntava-lhe ele mais tarde.
– Não – assegurava-lhe ela, no seu tom profundo e melodioso. – Não, eu não me importo.
– Não me perdoes tão facilmente, pois eu sei que sou culpado.
Mas, apesar de tudo, o seu sangue começava a ferver novamente. Era estranho que mais ninguém o enervasse daquela forma. Mas ela enfurecia-o. Uma vez atirou-lhe um lápis à cara. Fez-se silêncio. Ela virou a face ligeiramente para o lado.
– Eu não... – começou ele, mas não continuou, pois sentia-se desfalecer. Ela nunca o censurava nem se zangava com ele, e ele sentia-se muitas vezes terrivelmente envergonhado. Contudo, a sua raiva rebentava novamente como uma bolha enfunada. Quando ele via à sua frente aquela cara ansiosa, silenciosa, como se fosse cega, sentia renascer dentro de si a vontade irreprimível de lhe atirar outra vez com o lápis. No entanto, quando via a mão dela tremer e a boca entreabrir-se em sofrimento, o seu coração ardia de compaixão por ela. E, assim, procurava-a, pela força e a intensidade que ela despertava nele.
Muitas vezes evitava-a e ia passear com Edgar. Miriam e o irmão eram naturalmente antagónicos. Edgar era um racionalista curioso e nutria um interesse científico pela vida. Para Miriam, era um grande desespero sentir-se abandonada por Paul em benefício de Edgar, que parecia muito mais inculto. Todavia, Paul sentia-se muito feliz com o irmão mais velho. Os dois homens passavam tardes juntos no campo, carpinteirando no celeiro quando chovia. Conversavam ou então Paul ensinava a Edgar as canções que ele próprio tinha aprendido com Annie ao piano. Frequentemente, todos os homens, incluindo Mr. Leivers, tinham acerbas discussões sobre a nacionalização da terra e problemas semelhantes. Paul já tinha ouvido as opiniões da mãe, e visto serem essas também as suas, discutia-as em seu lugar. Miriam assistia e participava, mas aguardava até que terminassem, e intervinha apenas quando a conversa voltava a ser mais íntima.
«Acima de tudo», pensava ela, «se as terras fossem nacionalizadas, Edgar, Paul e eu continuaríamos a ser os mesmos.»
E então esperava que Paul voltasse para junto dela.
Ele andava a estudar pintura. À noite adorava ficar a trabalhar em casa sozinho com a mãe. Ela cosia ou punha-se a ler. Por vezes, ele interrompia o seu trabalho e descansava os olhos por um momento no rosto da mãe, que brilhava de ternura, para depois retomar feliz a sua tarefa.
– Mãe, os meus melhores trabalhos são feitos quando está aqui sentada na cadeira de balouço – dizia ele.
– Tenho a certeza de que sim – exclamava ela, torcendo o nariz, num cepticismo simulado. Mas sabia que assim era e o seu coração pulsava de alegria. Mrs. Morel sentava-se em silêncio durante horas, costurando ou lendo um livro, atenta ao trabalho do filho. E ele, comandando o lápis com toda a intensidade da sua alma, sentia o calor dela dentro dele, incentivando-o. Eram os dois muito felizes assim e sem consciência de o serem. Estes momentos, tão significativos e tão reais, passavam-lhes quase despercebidos.
Ele apenas tomava consciência quando era estimulado. Quando terminava um esboço, desejava sempre mostrá-lo a Miriam. E então, sentia-se estimulado para conhecer o trabalho que tinha produzido inconscientemente. Em contacto com Miriam adquiria discernimento e a sua visão tornava-se mais profunda. Da mãe retirava o calor da vida e o incentivo para produzir; Miriam dava a esse calor a intensidade de uma luz muito branca.
Quando Paul voltou à fábrica, as condições de trabalho tinham melhorado. Tinha a quarta-feira à tarde livre para ir à escola de belas-artes – providência tomada por Miss Jordan – e regressava à tardinha. Além disso, às quintas e sextas-feiras à tarde, a fábrica fechava às seis em vez de ser às oito.
Em Bestwood havia uma pequena e respeitável biblioteca, cuja assinatura custava apenas quatro xelins e seis dinheiros por ano. Mrs. Morel e Mrs. Leivers tinham-se feito sócias quando os filhos começaram a crescer. A biblioteca ocupava duas salas do Clube dos Mecânicos, e estava aberta às terças-feiras à noite, das 19 às 21 horas. Paul ia sempre buscar os livros para a mãe, que lia muito, e Miriam arrastava-se sob o peso de cinco ou seis volumes para a família. Tornou-se habitual os dois encontrarem-se na biblioteca.
Paul conhecia bem as duas pequenas salas com as paredes forradas de livros. Eram acolhedoras e havia uma grande lareira ao canto. Mr. Sleath, o bibliotecário, tinha fartas suíças brancas em torno de uma cara acriançada. Era alto e curioso, mas muito afável; conhecia toda a gente e sabia da vida de todos. Mr. Smedley era roliço, careca e instruído.
Paul aguardou, enquanto Mr. Sleath acabava de pôr em dia os mexericos com o último leitor. Nessa altura, Paul deixou cair os livros em cima do balcão. Mr. Sleath olhou para ele com os seus olhos azul-vivo, mas mortiços.
– Vinte e dois, cinquenta e sete – disse Paul.
O bibliotecário, funcionário superior da companhia mineira e um cavalheiro comparado com o jovem, repetiu os números alegremente, virando as folhas do livro de registos.
– Ah!... Ah! – exclamou ele, olhando para a página. Depois olhou de uma forma carinhosa e acolhedora para o jovem, esfregou as mãos e disse:
– Ah!... Bem, Paul!... Ah! Como está a tua mãe?
– Muito bem, obrigado! – respondeu Paul.
– Óptimo! Não a vi na capela no domingo à noite!
– Pois não! Teve uma inflamação nos olhos.
– Meu Deus... Meu Deus... Lamento muito!
– Mas penso que disseste – interveio Mr. Smedley – que ela estava muito bem. – Paul não respondeu nem olhou para o homenzinho por detrás do balcão. Mr. Sleath ia assinalando os livros no seu livro de registo. Mr. Smedley pôs mais carvão na lareira. Algumas pessoas conversavam animadamente junto das estantes. Os tacões dos sapatos chiavam na tijoleira.
– Mas achas que ela já se sentirá bem para sair este fim-de-semana? – perguntou Mr. Sleath, quando acabou de registar todos os livros.
– Acho que sim – disse Paul.
– Óptimo... Óptimo. De facto, estranhei a ausência dela.
Para Paul já era um dado adquirido que as pessoas lhe perguntassem pela mãe e nunca mencionassem o pai.
Dirigiu-se para as estantes. Os leitores continuavam a entrar, deixando os chapéus-de-chuva no corredor e trocando agradáveis saudações. O jovem conhecia toda a gente e todas as suas histórias. Mas não lhe interessavam. Miriam talvez não viesse por causa da chuva. Olhou para o livro que tinha nas mãos, esqueceu-o por momentos, pensando nela, e voltou ao livro novamente. O tempo passava como num sono. Ouvia o ruído das pessoas a saírem, mas ninguém a entrar. E se ela não viesse? Só de pensar nisso a noite afigurava-se-lhe lúgubre e infrutífera. Mas ela viria. A atmosfera era quente e acolhedora e a noite não teria continuidade enquanto ela não chegasse.
– Uma noite dos diabos, Alfred, uma noite dos diabos – disse Mr. Sleath, procurando alguém com quem falar. A biblioteca estava vazia.
– Parece que sim – respondeu Mr. Smedley.
Então, Mr. Sleath reparou em Paul.
– Olá, Paul – exclamou. – Ainda não encontraste o que queres, hem?
– Não me parece que o Paul esteja à espera de nenhum livro – disse Mr. Smedley.
– Oh...Oh... – exclamou Mr. Sleath.
– Penso que é uma jovem que está por detrás disto tudo – disse Mr. Smedley. – Mas está uma noite péssima para se vir de Willey Woods.
Ouviram-se passos no corredor. Paul ficou à escuta. Não era ela. Entrou um rapaz. Quando Paul viu o rapaz no limiar da porta, onde ela deveria estar, ficou furioso com ele. Contudo ela viria. Era sempre tão cumpridora. Um dos seus maiores encantos, quanto a ele, era a sua rejeição das convenções. Se quisesse vir, viria mesmo que chovesse torrencialmente. E o tempo não estava assim tão mau. Paul pôs-se a escutar, para ver se chovia muito. E então ouviu o rapaz dizer que estava a chover a cântaros. Mas o rapaz não contava. Ela viria, sim, mesmo que chovesse a cântaros. E Paul agarrou-se a essa esperança. Podia senti-la, através da noite, desejando vir. E ela nunca o desapontava. Para ela a vida interior valia tudo, e a exterior nada.
Ouviu os passos dela no corredor e a sua ansiedade diminuiu. Ficou a vê-la chegar. Ela parou um momento à entrada da porta. A boina vermelha cintilava com as gotas de chuva, o cabelo revolto dançava em caracóis húmidos, as faces esplandeciam. Ela procurou-o ansiosamente com o olhar, e então os seus olhos míopes encontraram-no, e uma chama ateou-se dentro dela, queimando-o também a ele. Dirigiu-se ao balcão, satisfeita. Ele virou-lhe as costas.
Então, ela aproximou-se dele, hesitante.
– Estou atrasada? – perguntou ela.
– Como sempre – respondeu ele. – Estás muito molhada?
– Não... nadinha.
– Vieste pela linha férrea? – disse ele.
– Vim. Estavas com muito medo de que eu não aparecesse?
– Só um bocadinho.
Paul sorriu.
– Vem, vou mostrar-te os livros que escolhi para ti – disse ele. Ela foi. Os livros não tinham qualquer significado para ela. Mas ele insistia na sua aprovação. Olhou para os livros por cima do braço dele, sem conseguir ver nada. Mas ele estava contente.
– Concordas? – perguntou ele.
– Claro – respondeu ela.
Depois de registarem os livros, saíram os dois rapidamente da biblioteca. A escuridão enchia-os de alegria. Sentiam-se exacerbadamente felizes. Paul trazia uma enorme capa preta impermeável, por baixo da qual resguardou os livros. Caminharam lado a lado pela rua Mansfield, envolvidos pela escuridão e pela chuva, sob as árvores gotejantes.
A conversa surgiu rápida e vigorosa, passando imediatamente à discussão sobre um dos livro. Ele falava apaixonadamente, ela ouvia-o e a sua alma expandia-se. Do livro, passaram inevitavelmente a uma discussão sobre crenças íntimas, muito subjectiva.
– Parece que é como se não tivesse importância, um a mais ou um a menos, dentro do todo... – disse ele.
– Não – respondeu ela gravemente, em dúvida.
– Eu costumava pensar assim quando um pardal caía.... e o mesmo em relação aos cabelos da cabeça...
– Sim – disse ela. – E agora?
– Agora penso que a raça dos pardais é importante, e não apenas um pardal: todo o meu cabelo, e não apenas um fio de cabelo.
– Sim – disse ela, pouco convencida.
– E as pessoas são importantes. Mas uma só não é assim tão importante. Vê, por exemplo, o William.
– Sim – disse ela, pensativa.
– Chamo a isso apenas uma perda – disse ele – Uma perda, nada mais.
– Sim – disse ela, com a voz sumida.
Ela acreditava que quanto mais pessoas houvesse, menos importância tinham. Mas ouvi-lo falar assim era para ela como um sopro de vida: como o primeiro sopro de um recém-nascido.
– Contudo – disse ele – creio que há um caminho certo a seguir... se o seguirmos está tudo bem... ou se andarmos perto. Mas se não o seguirmos, morreremos. Tenho a certeza de que o nosso William fez a escolha errada.
– E se seguirmos o curso das nossas vidas não morremos? – perguntou ela.
– Não, não morremos. É o nosso íntimo que nos aconselha a seguir um determinado caminho e não outro.
– Mas nós sabemos quando é que estamos a seguir o caminho certo? – perguntou ela.
– Claro! Eu pelo menos sei. Eu sei que estou a seguir o meu caminho.
– Sabes mesmo? – perguntou ela.
– Sim... tenho a certeza.
Ele tinha parado por baixo de um lampião para pensar. O seu impermeável luzia com a chuva. Ela olhou para a cara dele. Os seus olhos, tão certeiros e tão fixos, fitaram os dela. Ele era realmente determinado. Ela seguiu para casa com o coração em brasa.
Mas ele, quando deu meia volta para retroceder, logo a esqueceu, ao pensar que a mãe ficaria aborrecida ao saber que ele tinha ido até tão longe debaixo de chuva. Estugou o passo, sentindo-se porém exultante com o contacto com Miriam. A noite tinha-lhe trazido alguma satisfação.
– Queres tu dizer que levaste a Miriam Leivers a casa numa noite como esta? – perguntou a sua mãe, fitando-o subitamente, um minuto depois de ele ter entrado.
– Demorei-me muito tempo na biblioteca – argumentou Paul.
– Mas ela apareceu, não apareceu? – exclamou Mrs. Morel, calma e severa. Paul estremeceu.
– Ela fica sem nada para ler durante toda a semana, se não vier à biblioteca – disse ele.
– Não sei o que é que a mãe dela anda a fazer para a deixar arrostar com cerca de 10 milhas debaixo desta chuva torrencial.
– Não está chover muito – disse ele. – Nem por isso.
– Basta olhar para o teu impermeável e para as tuas botas – disse a mãe.
– Olhe o que eu lhe trouxe – disse ele, mas ela estava demasiado zangada para condescender.
Certa tarde de Verão, Miriam e Paul resolveram atravessar os campos, por Herod Farm, no regresso da biblioteca. Assim, eram só três milhas até Willey Farm. A erva segada brilhava com reflexos dourados e os botões de azedas ardiam em tons de carmim. A pouco e pouco, enquanto atravessavam o planalto, os tons dourados do ocaso deslizaram para vermelho, o vermelho para o carmim e, por fim, o azul glacial apagou o clarão.
Foram dar à estrada principal de Alfreton, que singrava branca entre os campos anoitecidos. Aí, Paul hesitou. Eram cerca de duas milhas até sua casa, e uma milha até à casa de Miriam. Olharam para a estrada, que corria sombria sob a luminosidade ténue de noroeste. No cimo do monte, Selby, com as suas casas despojadas e as suas torres mineiras, recortava-se no céu, pequenina, em negras silhuetas.
Ele consultou o relógio.
– Já são nove horas! – disse.
Ambos estavam relutantes em partir, abraçados aos seus livros.
– O bosque é tão bonito a esta hora... – disse ela. – Queria tanto que o visses.
Ele atravessou a estrada atrás dela, lentamente, aproximando-se da cancela branca.
– Eles fazem cá um banzé, se eu chego tarde – disse ele.
– Mas não estás a fazer nada de mal – contrapôs ela, impaciente. E ele seguiu-a através das pastagens retouçadas, à luz do lusco-fusco. Havia uma frescura no bosque, um aroma a folhas e a madressilva, e o crepúsculo. Caminharam em silêncio. A noite desceu, maravilhosa, entre a imensidão de troncos negros. Ele olhou em volta, expectante.
Ela queria mostrar-lhe uma roseira-brava que tinha descoberto, pois achara-a lindíssima. Porém, sentia que só depois de ele a ter visto ela seria capaz de a assimilar. Só ele poderia fazer com que a roseira fosse dela para sempre, imortal. Por isso não estava satisfeita.
O orvalho já era visível pelos caminhos. Do velho bosque de carvalhos elevava-se uma névoa e ele hesitou, questionando-se se a mancha branca seria a linha de bruma ou apenas candelárias-dos-jardins, formando uma pálida nuvem.
Assim que chegaram aos pinheiros, Miriam começou a ficar muito tensa e ansiosa. O seu arbusto podia ter desaparecido. Poderia não o encontrar. E queria tanto descobri-lo. Desejava, quase com paixão, ter Paul perto de si quando descobrisse as flores. A comunhão seria mútua, algo que a iria emocionar, algo de divino. Ele caminhava a seu lado em silêncio. Estavam muito próximos um do outro. Ela estremeceu e ele escutou-a, levemente ansioso.
Assim que chegaram ao limite da floresta, o céu era de madrepérola e a terra escurecia. Algures nos recantos mais afastados do pinheiral a madressilva exalava o seu aroma.
– Onde? – perguntou ele.
– Lá em baixo, no trilho do meio – murmurou ela, tremendo.
Mal acabaram de contornar a curva do atalho, ela parou. Olhou por momentos assustada para o espaço que se abria entre os pinheiros, não conseguindo discernir o que quer que fosse, pois a luz empalidecida tinha apagado a cor das coisas. Mas, finalmente, descobriu o seu arbusto.
– Oh! – exclamou ela, precipitando-se para ele.
Tudo estava sereno. O arbusto era alto e esparso, espraiando as suas silvas sobre um espinheiro próximo, e deixando pender os ramos longos sobre a relva, salpicando a escuridão de grandes estrelas brancas, imaculadas. As rosas brilhavam como botões de marfim, estrelas abertas na escuridão da folhagem, dos troncos e da relva. Paul e Miriam em silêncio, lado a lado, observavam. Uma a uma, convictas, as rosas inundaram-nos de brilho, parecendo atear fogueiras nas suas almas. O crepúsculo envolveu-os como fumo, não conseguindo, todavia, extinguir o fulgor das rosas.
Paul olhou Miriam nos olhos. Estava pálida e deleitada; a boca entreaberta e os olhos negros fitavam-no, muito abertos. O olhar dele parecia descer ao fundo dela. A alma de Miriam estremeceu, pois ansiava a comunhão. Ele, porém, virou-se para o lado, como se sofresse, e olhou para o arbusto.
– Parecem voar como borboletas, agitando-se – disse Paul.
Miriam olhou para as suas rosas. Eram brancas, algumas encurvadas e divinas, outras expandiam-se como em êxtase. A árvore era negra como a sombra. Ela estendeu a mão impulsivamente para as flores e, aproximando-se, tocou-as em adoração.
– Vamos embora – disse ele.
Pairava um perfume fresco de rosas cor-de-marfim, um perfume branco, virginal. Algo o fez sentir-se ansioso e prisioneiro. Caminharam ambos em silêncio.
– Até domingo – disse ele baixinho, e deixou-a; ela regressou a casa lentamente, com a alma enriquecida pela noite divinal. Ele cambaleou pelo atalho. Assim que saiu da floresta e entrou no prado, onde podia respirar, desatou a correr o mais depressa que podia. Era como se um delírio delicioso lhe percorresse as veias.
Sempre que saía com Miriam e se atrasava, sabia que a mãe se afligia e ficava preocupada, apesar de ele não perceber porquê. Assim que chegou a casa, atirando com o boné, a mãe olhou para o relógio. Tinha estado sentada a pensar, pois uma inflamação ocular impedia-a de ler. Imaginara Paul a ser arrastado pela rapariga. Ela não gostava da rapariga. «É uma daquelas que suga a alma de um homem, até ele ficar vazio», dizia de si para si, «e ele é daqueles simplórios que se deixa dominar. Ela nunca o deixará ser um homem, nunca!» Assim, enquanto ele estava com Miriam, ela revoltava-se cada vez mais.
Olhou para o relógio e disse friamente, visivelmente cansada:
– Foste muito longe esta noite.
A alma dele, ainda quente e fragilizada do contacto com a rapariga, contraiu-se.
– Levaste-a certamente a casa – prosseguiu a sua mãe.
Ele não ia responder. Mrs. Morel, examinando o filho de relance, constatou que trazia o cabelo transpirado da correria e ele, em resposta, franziu a testa pronunciadamente como era seu costume, ressentido.
– Ela deve ser maravilhosamente fascinante, pois não te consegues afastar dela, e até és capaz de correr oito milhas a esta hora da noite.
Paul sofria, balançando entre o encantamento dos momentos passados com Miriam e a constatação da aflição de sua mãe. Tinha pensado não dizer nada, recusar-se a responder. Porém, o seu coração não era tão gélido que o levasse a ignorar a mãe.
– Eu gosto de conversar com ela – respondeu irritado.
– E não há mais ninguém com quem possas conversar?
– A mãe não ia dizer nada, se eu tivesse saído com o Edgar.
– Sabes bem que dizia. Sempre que sais com alguém de lá, acho que é muito longe para andares por aí à noite, depois de vires de Nottingham... Além disso... – de repente, a sua voz adquiriu um tom de revoltado desdém – é repugnante ver duas crianças a namoriscar.
– Não é namoro – gritou ele.
– Não sei que outra coisa se lhe poderá chamar.
– Mas não é! Pensa que nos pomos a fazer coisas? Nós apenas conversamos.
– Só Deus sabe até quando e até onde isso irá parar – replicou ela, sarcástica.
Furioso, Paul deu um esticão nos atacadores das botas.
– Porque está tão zangada? – perguntou ele. – Apenas porque não gosta dela?
– Não é que não goste. Mas não suporto e nunca suportei ver crianças a namorar.
– Mas a mãe não se importa que a nossa Annie saia com o Jim Inger.
– Esses são mais conscientes do que vocês.
– Porquê?
– A nossa Annie não é dessas.
Paul não entendeu o alcance do reparo. Mas a mãe parecia cansada. Nunca mais fora a mesma depois da morte de William. E doíam-lhe os olhos.
– Bem – disse ele –, o campo é tão bonito.... Mr. Sleath perguntou por si e disse que tinha tido saudades suas. ... Já se sente melhor, mãe?
– Já devia era estar na cama há muito tempo.
– Mas a mãe também nunca se ia deitar antes de um quarto para as dez.
– Isso é que ia!
– Ah, velhota... agora diz qualquer coisa só por estar zangada comigo, não é?
Depois, Paul beijou aquela testa que conhecia tão bem: as marcas profundas entre as sobrancelhas, a massa de cabelo, agora grisalho e a inclinação das têmporas. A sua mão demorou-se no ombro dela após tê-la beijado e, em seguida, Paul encaminhou-se lentamente para a cama. Tinha esquecido Miriam; apenas se lembrava do cabelo da mãe, puxado para trás, deixando a descoberto uma testa alta, afectuosa. E, fosse pelo que fosse, via que ela estava magoada.
Quando voltou a encontrar-se com Miriam, disse-lhe:
– Não me deixes chegar atrasado hoje... o mais tardar até às dez horas. A minha mãe fica muito aborrecida.
Miriam inclinou a cabeça e reflectiu.
– Fica aborrecida porquê? – perguntou.
– Acha que não devo ficar fora até tão tarde, quando tenho de me levantar cedo no dia seguinte.
– Muito bem! – disse Miriam, com voz calma, mas não isenta de um leve tom de sarcasmo. Isso ofendeu-o, e ele voltou a chegar tarde a casa.
Que o amor começava a desabrochar entre Paul e Miriam era algo que nenhum deles estava preparado para aceitar. Ele achava-se sensato de mais para tais sentimentalismos, e ela demasiado importante. Ainda não tinham atingido a maturidade e a sua pujança psíquica estava muito atrás da física. Miriam era excessivamente sensível, como a mãe sempre tinha sido. A mais leve grosseria angustiava-a. Os irmãos, embora muito rudes, evitavam a vulgaridade nos diálogos. Era fora de casa que os homens discutiam todos os assuntos relativos à quinta. Contudo, e devido talvez aos constantes nascimentos e cruzamentos, actos naturais em qualquer quinta, Miriam revelava uma extrema hipersensibilidade a tais situações, e o sangue revolvia-se-lhe de repugnância à mais vaga sugestão a tais contactos. Paul seguia-lhe as pisadas, e a relação entre eles mantinha-se castamente imaculada. Não se podia sequer mencionar que a égua estava prenha.
Aos dezanove anos, Paul ganhava apenas vinte xelins por semana, mas era feliz. A sua pintura evoluía a contento, e a vida corria-lhe bem. Na Sexta-Feira Santa, organizou um passeio a Hemlock Stone. O grupo era formado por três rapazes da sua idade, Annie, Arthur, Miriam e Geoffrey. Arthur, agora aprendiz de electricista em Nottingham, tinha vindo a casa passar a Páscoa. Como era habitual, Morel levantara-se cedo e estava no pátio a assobiar e a serrar umas tábuas. Às sete da manhã, a família ouviu-o comprar arrufadas quentes à porta, e conversar animadamente com a garota que as vendia, tratando-a até por «minha querida». Apareceram depois mais alguns rapazitos também a vender arrufadas, mas ele mandou-os embora, dizendo-lhes que tinham sido «batidos» pela «cachopinha». Quando Mrs. Morel se levantou, toda a família dispersou. Era uma sorte para todos eles quando a mãe ficava até mais tarde na cama num dia de semana. Paul e Arthur podiam ficar a ler à vontade antes do pequeno-almoço e depois tomar a refeição sem terem de se lavar primeiro e sentar-se à mesa em mangas de camisa. Este era outro dos luxos dos feriados. A sala estava aquecida e toda a casa se libertava de preocupações e ansiedades.
Enquanto os rapazes liam, Mrs. Morel foi para o jardim. Viviam agora numa nova casa, uma casa velha, também em Scargill Street, perto da que tinham ocupado anteriormente e de onde tinham saído logo após a morte de William. Um grito de excitação chegou directamente do jardim:
– Paul... Paul... Vem cá ver uma coisa!
Era a voz da mãe. Paul atirou o livro para o lado e saiu. O jardim era muito comprido e terminava num campo cultivado. Estava um dia cinzento e frio, batido por um vento agreste vindo das bandas do Derbyshire. Dois campos mais adiante começava Bestwood, um emaranhado de telhados e casas de tijolo vermelho, de onde sobressaía a torre da igreja e o pináculo da capela paroquial. Para trás, sucediam-se florestas e colinas até aos picos cinzentos e esbatidos da serra de Pennine.
Paul pôs-se à procura da mãe. A cabeça dela despontou entre as groselheiras ainda tenras.
– Vem cá! – disse ela.
– Para quê? – perguntou ele.
– Vem cá para veres uma coisa!
Ela tinha estado a examinar os pequenos botões das groselheiras. Paul foi ao seu encontro.
– E pensar que, aqui onde estão, podia nunca ter dado com eles! – disse Mrs. Morel.
O filho colocou-se ao seu lado. Por debaixo da cerca, num pequeno canteiro, havia um emaranhado de folhas finas, como se nascidas de bolbos ainda imaturos, com três campainhas em flor. Mrs. Morel apontou para as três florinhas muito azuis.
– Olha para elas! – exclamou. – Estava eu muito entretida a examinar as groselheiras, quando pensei cá com os meus botões, «Está ali qualquer coisa muito azul .... será o resto de algum saco de açúcar?» E olha só! Qual saco de açúcar! Três glórias-da-neve, e tão bonitas! Mas de onde é que teriam vindo?
– Não sei – disse Paul.
– São mesmo uma maravilha! E eu que pensava que conhecia todas as ervas e folhas neste jardim. E não é que estas se deram bem...? Repara que é a groselheira que as protege. Não são debicadas nem pisadas!
Paul baixou-se e levantou as corolas das pequenas flores azuis em forma de campainha.
– Têm uma cor magnífica!
– Têm, não têm? – exclamou a mãe. – Suponho que vêm da Suíça, onde dizem que há coisas maravilhosas. Imagina-as só em contraste com a neve! Mas como é que elas terão vindo aqui parar? O vento não as podia ter trazido, pois não?
Paul lembrou-se então de ter plantado ali uma porção de bolbos para amadurecerem.
– E não me disseste nada – disse a mãe.
– Pois não, estava a pensar deixá-las aqui só até terem medrado.
– Estás a ver?! E eu podia não as ter visto. Nunca em toda a minha vida tive uma glória-da-neve no jardim.
Mrs. Morel estava muito excitada e orgulhosa. O jardim era para ela uma fonte de infinito prazer. Paul dava graças por a mãe viver numa casa com um grande jardim que se estendia até ao campo. Todas as manhãs, após o pequeno-almoço, ela saía e deambulava feliz pelo jardim. E, na verdade, conhecia todas as ervas e folhas no seu jardim.
Todos compareceram para o tal passeio. Prepararam um farnel e o grupo partiu feliz e animado: debruçaram-se do alto do muro da azenha; atiraram papéis para dentro de água numa das extremidades do túnel e ficaram a vê-los sair pela outra; pararam no meio da passagem aérea para peões da estação de Boathouse, fascinados com o brilho gélido dos carris.
– Vocês deviam era ver o «foguete» que passa aqui às seis e meia – disse Leonard, cujo pai era guarda de uma passagem de nível. – Nem sequer o ouvem zunir, rapazes! – E o pequeno grupo seguiu com o olhar nos carris que conduziam a Londres e os que conduziam à Escócia, deixando-se inebriar por estes dois lugares mágicos.
Em Ilkeston, os mineiros aguardavam em grupos a abertura das tabernas. Era uma cidadezinha de ócio e divertimento. Em Stanton Gate, a oficina de fundição ardia incandescente. Eles iam conversando animadamente sobre tudo o que viam. Em Trowell, atravessaram a fronteira do Derbyshire para o Nottinghamshire, e chegaram a Hemlock Stone à hora de almoço. O campo povoava-se de pessoas vindas de Nottingham e Ilkeston.
Estavam à espera de encontrar um monumento digno e respeitável, mas descobriram apenas uma pedra, pequena e rugosa, semelhante a um cepo torcido, ou a um cogumelo putrefacto, despontando pateticamente no meio do descampado. Leonard e Dick gravaram logo as suas iniciais – L.W. e R.P. – na velha pedra de arenito vermelho, mas Paul não o fez, pois tinha lido no jornal críticas mordazes aos gravadores de iniciais, que não encontravam melhor caminho para a imortalidade. E, como não podia deixar de ser, todos treparam à pedra para contemplarem o panorama.
Em baixo, nos campos, rapazes e raparigas, todos eles operários e operárias, comiam ou brincavam. Mais além avistava-se o jardim de um velho solar, cercado de teixos, moitas frondosas e cercaduras de flores amarelas de açafrão.
– Olha que jardim tão tranquilo – disse Paul para Miriam.
Ela contemplou os teixos negros e os crocos amarelos e olhou para ele agradecida. Quando estavam acompanhados por outras pessoas, ele parecia não lhe pertencer; era diferente, não era aquele Paul que compreendia o mais leve estremecimento da sua alma misteriosa, mas uma outra pessoa, que falava uma linguagem diferente da sua. Ah, como isso a magoava e lhe enfraquecia a nitidez da percepção! Só se sentia reviver quando ele vinha ao seu encontro sem esse outro Eu de casta inferior. Mas agora ele tinha-lhe pedido para olhar o jardim, tentando desta forma chegar até ela. Sem paciência para aturar o grupo, Miriam entregou-se à contemplação daquele jardim tão calmo, rodeado de tufos de açafrão amarelo. Uma sensação de quietude, quase de êxtase, envolveu-a. Era como se estivesse sozinha com ele no jardim.
Mas ele abandonou-a novamente e foi juntar-se ao grupo. Em breve iniciaram o regresso a casa. Miriam deixou-se ficar para trás, sozinha. Não se enquadrava. Raramente se relacionava com alguém: na verdade, a sua grande amiga, companheira e amante era a natureza. Viu o sol declinar languidamente. Nas sebes frias e sombrias luziam algumas folhas vermelhas. Sem pressa, detinha-se para as colher com ternura, apaixonadamente. Os seus dedos acariciavam as folhas com amor e o coração incendiava-se-lhe de paixão.
De súbito, apercebeu-se de que estava sozinha numa estrada desconhecida e apressou-se. Depois de uma curva, encontrou Paul debruçado sobre qualquer coisa que ela não conseguia ver, mas que ele observava atentamente, aplicando-se com paciência, intento, e até algum desespero. Miriam hesitou em aproximar-se.
Ele continuava concentrado em plena estrada. Na tarde cinzenta, tão desprovida de cor, um fio dourado de sol, ao longe, parecia fazê-lo sobressair em sombrio baixo-relevo. Ela contemplou-o, delgado e firme, e era como se ele lhe tivesse sido oferecido pelo sol. Uma dor profunda penetrou-a e soube então que tinha de o amar. Tinha-o finalmente descoberto, descoberto nele uma rara potencialidade, descoberto a sua solidão. Tremeu emocionada, como se estivesse perante uma «Anunciação», e aproximou-se devagar.
Ele, finalmente, levantou os olhos.
– Oh! – exclamou, agradecido. – Esperaste por mim!
Ela descobriu uma sombra profunda nos seus olhos.
– O que aconteceu? – perguntou.
– A mola partiu-se.
E ele mostrou-lhe o seu chapéu-de-chuva danificado. Subitamente, um pouco envergonhada, ela apercebeu-se de que não fora ele quem estragara o chapéu-de-chuva, mas que o responsável era Geoffrey.
– Afinal era um chapéu-de-chuva velho, não era? – disse ela. Miriam não entendia a razão de tão exagerado zelo, pois ele não era geralmente de se prender com ninharias.
– Mas este era o chapéu-de-chuva do William... e a minha mãe vai ter de saber – disse ele baixinho, tentando pacientemente consertar o chapéu-de-chuva. Estas palavras rasgaram-na como uma lâmina. Eram a confirmação da imagem que tinha dele! Olhou-o. Havia nele, porém, uma certa reserva, e ela não se atreveu a confortá-lo, nem mesmo a falar-lhe com meiguice.
– Vamos – disse ele –, não consigo arranjá-lo.
E seguiram em silêncio estrada fora.
Iam eles nessa mesma tarde a passar em Nether Green, por entre o arvoredo, quando ele lhe confidenciou, num tom algo irritado, como se lutando para se autoconvencer.
– Sabes – disse com esforço –, se uma pessoa ama, a outra também ama.
– Ah! – exclamou ela. – A minha mãe disse-me o mesmo quando eu era pequena: «O amor gera o amor.»
– Sim... algo parecido com isso... penso que deve ser isso.
– Espero que sim... porque, se não fosse assim, o amor seria algo de terrível – acrescentou ela.
– Mas é isso que acontece... pelo menos com a maioria das pessoas – respondeu ele.
E Miriam pensando que ele estivesse mais animado, sentiu-se fortalecida. Tinha considerado aquele encontro fortuito na vereda como uma revelação. E este diálogo ficou gravado na sua mente como palavra de lei.
Agora, estava com ele e do lado dele. Quando, pela mesma altura, Paul ofendeu a família dela com um insulto arrogante, ela apoiou-o e achou que ele tinha razão.
Sonhava agora com ele de uma forma viva e inesquecível. Mais tarde, os sonhos voltaram, tendo evoluído para estados psicológicos mais subtis.
Na segunda-feira de Páscoa, o mesmo grupo fez uma excursão até ao solar de Wingfield. Foi um momento de grande excitação para Miriam ao apanhar o comboio em Lethey Bridge, por entre o alvoroço da multidão num dia feriado. Saíram do comboio em Alfreton. Paul estava interessado na rua e nos mineiros a passearem os seus cães. Aquela era uma nova raça de mineiros. Miriam não se sentiu viver senão quando chegaram à igreja. Todos se mostravam algo acanhados para entrarem na igreja com os sacos da merenda, pois tinham receio de serem expulsos. Leonard, um rapaz magro e brincalhão, foi o primeiro a entrar, e Paul, que teria preferido morrer a ser mandado embora, foi o último. A igreja estava enfeitada para a Páscoa: centenas de narcisos brancos pareciam desabrochar da pia baptismal, e a luminosidade era difusa e colorida, filtrada pelos vitrais e animada por um aroma subtil a lírios e narcisos. A alma de Miriam inflamou-se nesta atmosfera. Paul, sensível à envolvência do local, receava não saber comportar-se à altura. Miriam voltou-se para ele. Ele correspondeu. Estavam juntos. Paul não quis passar para lá da divisória da comunhão, e ela apreciou o seu gesto. A sua alma elevou-se em orações ao lado dele. Paul sentia um estranho fascínio por lugares religiosos e obscuros. Todo o seu misticismo latente palpitava de vida. Ela sentia-se atraída por ele. Ele estava nela, como uma oração.
No adro da igreja, os narcisos e os junquilhos já tinham desabrochado e brilhavam ao sol como se flutuassem. As ovelhas, no parque, faziam vibrar o ar com os seus múltiplos e ténues balidos. Leonard e Dick entraram numa taberna para tomar uma bebida, para grande tristeza de Paul e Annie.
– Para que entraram na taberna? – perguntou Paul aborrecido.
– Bem – disse Dick, sorrindo –, só lá fomos beber uma limonada.
– Podiam muito bem ter ido à venda – disse Annie.
– À venda! – exclamou Leonard. – Estão a imaginar-nos... nós... ingleses de gema, a beber limonada na venda?
– Não – respondeu Paul. – Mas imagino-te com a tua enorme caneca de cerveja... inglesa de gema.
– E que mal te faz a minha caneca? – disse Leonard, limpando a boca, por sinal enorme.
Miriam só raramente falava com os outros rapazes. Tinham sido malcriados com ela uma vez e, desde essa altura, mantinha-se geralmente calada.
Passava do meio-dia quando subiram a ladeira íngreme que conduzia ao solar. Tudo em redor brilhava com suavidade, à luz de um sol quente, intenso e estimulante. As celidónias e as violetas estavam em flor. A natureza transbordava de felicidade. Tudo era perfeito: o esplendor da hera, os tons suaves e cinzentos, atmosféricos, dos muros do castelo, a harmonia que rodeava as ruínas.
O solar era de pedra dura cinzento-pálido, e as paredes exteriores brancas e repousantes. Os jovens estavam extasiados. Sentiam-se excitados, quase receosos de que o prazer da exploração destas ruínas lhes fosse negado. No primeiro pátio, situado entre muros altos e derrubados, havia algumas carroças com os varais abandonados pelo chão, e os aros das rodas cintilavam em tons vermelho-dourado de ferrugem. A serenidade era total.
Todos se mostravam desejosos de pagarem os seis dinheiros da entrada, posto o que transpuseram a medo pelo arco harmonioso e bem lançado que dava acesso ao pátio interior. Mostravam-se tímidos. No local onde antes se erguera o muro, florescia agora um velho espinheiro. Todas as espécies de espaços abertos e salas em ruínas se abriam à sua volta, na penumbra.
– Digam lá se isto não é uma maravilha? – exclamou Leonard.
– É mesmo – acrescentou Paul.
E passaram de imediato à exploração.
– Eh, malta – chamou Leonard. – Venham ver o forno que eu descobri!
E, sem perder tempo, Leonard entrou pelo buraco. Dick e Paul entraram atrás dele e sentaram-se os três no chão a gritar, como se estivessem nas entranhas da terra.
– Aqui dava bem para assar um boi, ou até dois – disse Nick.
– E um veado ou dois – acrescentou Paul.
– E um burro ou dois – rematou Leonard, pondo-se a zurrar muito alto, enquanto os outros dois lhe batiam.
Paul voltou a sair para o ar livre e a exploração continuou. Finalmente, encontraram Geoffrey e as raparigas. Geoffrey estava a comer.
– Parece que tá na hora de dar ao dente – disse Leonard.
– Eu já m’adiantei – respondeu Geoffrey, que não fizera outra coisa desde que o grupo partira.
– Onde é que nos podemos sentar? – perguntou Miriam.
– Vamos para a sala dos banquetes – alvitrou Paul.
– Como é que sabes que aquela é a sala dos banquetes? – perguntou Leonard.
– Vi numa pintura.
– Pois então, toca a sentar – disse Leonard.
No enorme salão em ruínas, com as paredes frias erguidas para o céu azul, lá se sentaram todos a comer ao sol, observando os pássaros que chilreavam pousados no florão da ampla janela.
– Então, D. Cogumelo – disse Leonard, virando-se para Paul –, sois servido desta empada de veado?
– Mil agradecimentos, D. Trinca-Espinhas – respondeu Paul. – Comerei antes esta coxinha de pão com queijo.
– Por obséquio – disse Geoffrey –, podeis apertar-vos mais, pra eu me poder sentar?
– Perdoai, Insigne Cavaleiro – respondeu Leonard. – Mas será tão grande assim vossa gordura?
– Paul – disse Annie –, tens aqui o teu ovo cozido.
– Ilustres cortesãos, deleitamo-nos hoje com um festim de ovos de aves fabulosas, postos pela nossa única fénix, e ostentando todos eles o nosso brasão, tal como neles foi gravado pelas nossas aves mais colaborantes – disse Paul.
– Ou seja... um montinho de porcaria – disse Leonard.
– E direi mais... Um brasão que é o nosso orgulho desde há muitas gerações, ámen! – disse Annie.
– Oh, sublime insígnia! – rematou Paul, fazendo Miriam desatar a rir.
Depois do almoço partiram mais uma vez à exploração das ruínas. Desta feita, as raparigas acompanharam os rapazes, que assumiram o papel de guias e professores. Uma torre alta e deveras periclitante surgiu diante dos seus olhos ao virarem uma esquina, e os rapazes logo informaram que Mary, rainha da Escócia, tinha sido ali encarcerada.
– Imaginem a rainha a subir por aqui acima... – disse Miriam em voz baixa, enquanto subia as escadas tortuosas.
– Isso, se ela se conseguisse levantar – respondeu Paul. – Sofria muito do reumatismo. Aposto que a tratavam o pior possível.
– E não achas que merecia? – perguntou Miriam.
– Acho que não. Ela era apenas uma pessoa jovial.
Continuaram a subir a escada de caracol. Uma rajada agreste entrou pelas seteiras e rodopiou pelo vão das escadas, levantando a saia de Miriam em balão, para seu grande embaraço, até que Paul agarrou na barra do vestido e o puxou para baixo. Fê-lo com destreza e simplicidade, como se lhe apanhasse uma luva do chão. Ela recordaria para sempre este momento.
A hera pendia frondosa, vetusta e bela, em torno do torreão em ruínas. Havia também algumas cravinas esparsas, com os seus botões tristes e pálidos. Miriam quis debruçar-se para apanhar um raminho de hera, mas Paul não deixou, ficando ela atrás dele, a receber um a um cada raminho que ele lhe entregava, num gesto do mais genuíno cavalheirismo. A torre parecia ondular ao vento. Do alto avistavam-se milhas e milhas de terreno arborizado e terreno de pastagens.
A cripta subjacente ao solar era muito bela e em perfeito estado de conservação. Paul não perdeu a oportunidade de a desenhar. Miriam ficou junto dele, a pensar em Mary, rainha da Escócia, fitando os montes de onde não vinha qualquer ajuda, com os seus olhos exaustos e desesperados, que não compreendiam a miséria; imaginou-a também sentada naquela cripta, escutando a história de um Deus tão frio quanto o lugar onde se encontrava.
Puseram-se de novo a caminho, exultantes, lançando um último olhar àquele solar a que se sentiam presos e que se erguia tão nítido e imponente no alto da colina.
– Imagina que aquela quinta era tua – disse Paul a Miriam.
– Sim!!
– Não era maravilhoso eu ir lá visitar-te?
Encontravam-se agora num descampado com muros de pedra, de que ele tanto gostava, e que, embora só a algumas milhas de casa, parecia tão estranho a Miriam. O grupo seguia agora disperso. Ao atravessarem um extenso prado, muito íngreme, com o sol por trás, descendo por um caminho salpicado de incontáveis pontinhos cintilantes, Paul entrelaçou os dedos no saco de rede de Miriam, que logo sentiu Annie atrás de si, atenta e ciumenta. Mas o prado estava banhado numa luz gloriosa e o caminho luzia como uma jóia, e era tão raro ele dar-lhe algum sinal... Conservou por isso os dedos muito quietos entre as cordas do saco, aflorando os dedos dele. E o mundo dourou-se inteiro, como se numa visão.
Finalmente, chegaram à vilazinha isolada e pardacenta de Crich, situada a grande altura. Atrás da vila ficava o famoso Crich Stand, que Paul avistava do jardim de sua casa. O grupo estugou o passo. Grandes extensões de terrenos estendiam-se em baixo a toda a volta. Os rapazes estavam ansiosos por chegarem ao topo da colina, que era encimada por um cabeço redondo, de que metade já se tinha desmoronado, e no topo do qual se erguia um monumento antigo, grotesco e atarracado, usado noutros tempos para enviar sinais para as planícies do Nottinghamshire e do Leicestershire.
O vento soprava forte, lá no alto, naquele local tão exposto, e a única forma de se estar protegido era ser pregado pelo vento à parede da torre. Aos seus pés abria-se o precipício, de onde se extraía a pedra calcária. Em baixo, reinava uma confusão de colinas e pequenos povoados: Matlock, Ambergate, Stoney Middleton. Os rapazes estavam ansiosos por descortinarem a Igreja de Bestwood, que ficava muito distante, no meio da floresta, um pouco para a esquerda. Mas ficaram tristes ao verem que a igreja parecia erguer-se numa planície – as colinas do Derbyshire apagavam-se na monotonia das terras baixas que se estendiam para sul.
Miriam estava um pouco assustada com o vento, mas os rapazes estavam a gostar. Continuaram a caminhada, calcorreando milhas e milhas, até Whatstandwell. Todos estavam esfomeados, pois já tinham devorado a comida toda que levavam e já lhes restava pouco dinheiro para regressarem a casa. No entanto, ainda conseguiram arranjar uma broa e um pão de passas, que cortaram em fatias finas com os canivetes, sentando-se a comer num muro, perto da ponte onde o rio Derwent corria límpido, ao som do chiar dos freios do comboio em Matlock, perto da estalagem.
Paul estava pálido de cansaço. Tinha sido o chefe do grupo durante todo o dia, e agora estava morto de cansaço. Miriam, apercebendo-se disso, manteve-se junto dele, e Paul entregou-se à sua guarda.
Tiveram de esperar uma hora na estação de Ambergate. Os comboios passavam lotados com excursionistas que regressavam a Manchester, Birmingham e Londres.
– Também podíamos ir para lá... as pessoas facilmente pensariam que íamos para muito longe – disse Paul.
Chegaram a casa bastante tarde. No caminho de regresso a casa, com Geoffrey, Miriam viu a lua nascer redonda, rubra e velada, e sentiu-se realizada interiormente.
Miriam tinha uma irmã mais velha, Agatha, que era professora. A hostilidade entre as duas irmãs era notória. Miriam considerava Agatha uma pessoa demasiado mundana e o seu sonho era ser também professora primária.
Um sábado à tarde, Agatha e Miriam estavam a vestir-se no primeiro andar. O quarto delas ficava por cima do estábulo. Era um quarto de tectos baixos, não muito grande e de paredes nuas. Miriam tinha pregado na parede uma reprodução da Santa Catarina, de Veronese. Fascinava-a aquela mulher, sentada na janela a sonhar. As suas janelas eram demasiado pequenas para lá se poder sentar. Todavia, a da frente estava coberta de madressilva e hera americana, e de lá avistavam-se as copas do bosque de carvalhos, por detrás do quintal, enquanto a minúscula janela traseira, pouco maior do que um lenço, não passava de uma fresta voltada para oriente, para a aurora que se acendia atrás das colinas arredondadas que ela tanto amava.
As duas irmãs não falavam muito uma com a outra. Agatha, bonita, baixa e determinada, tinha-se revoltado contra a atmosfera do lar e contra a doutrina do «dar a outra face». Enfrentava agora o mundo exterior, lutando para se tornar independente. Insistia nos valores da cultura, nas aparências, nas boas maneiras, na posição social, tudo coisas que Miriam de bom grado teria ignorado.
Quando Paul chegou, ambas preferiram ficar invisíveis lá em cima, para poderem descer as escadas a correr, abrirem a portinhola do fundo das escadas e verem-no entrar, ansioso por encontrá-las. Miriam tentava desesperadamente enfiar pela cabeça o rosário que ele lhe tinha oferecido, e que ficara preso no fino emaranhado dos seus cabelos. Finalmente, conseguiu colocá-lo, e as contas de madeira, castanho-avermelhado, assentavam lindamente no seu pescoço fresco e mate. Era uma rapariga bem lançada e muito bonita. Contudo, só conseguia ver uma parcela do seu corpo de cada vez no pequeno espelho pregado na parede caiada de branco. Agatha tinha comprado um espelho só para ela, com o tamanho certo, que encostava à parede sempre que precisava. Miriam estava perto da janela. De repente, escutou o estalido bem conhecido do cadeado e viu Paul a abrir a cancela com um pontapé, entrando no pátio com a bicicleta. Ele olhou para cima e ela escondeu-se. Paul avançava com indiferença, e a bicicleta acompanhava-o como se fosse um objecto animado.
– O Paul já chegou! – exclamou Miriam.
– Não estás contente? – disse Agatha, evidenciando sarcasmo.
Miriam estava ainda surpresa e perplexa.
– Então, estás ou não estás? – insistiu a outra.
– Estou, mas não quero que ele perceba e pense que eu estava à espera.
Miriam estava perplexa. Ouviu-o meter a bicicleta no estábulo e falar com Jimmy, um cavalo decrépito que tinha trabalhado nas minas.
– Atão, Jimmy, meu amigo, como vai isso? Velho e cansado, hem? Pois é, é uma pena, amigo!
Escutou o som da corda a roçar na argola, quando o cavalo levantou a cabeça às carícias do rapaz. Como ela gostava de o ouvir quando ele pensava que o cavalo estava ali para o escutar. Porém, havia uma serpente no seu Éden. Ela procurava fervorosamente descobrir dentro si se amava Paul Morel. Sentia que poderia haver algo de errado nesse impulso. Enredada em sentimentos confusos, receava desejá-lo e condenava-se por isso. E logo a penetrou uma dor intensa, de vergonha, e todo o seu ser se contraiu num espasmo de tortura. Desejaria ela Paul Morel, e saberia ele que ela o desejava? Que subtil infâmia a ameaçava! E sentiu a alma enleada em nós de vergonha.
Agatha vestiu-se primeiro e desceu rapidamente para o rés-do--chão. Miriam ouviu-a cumprimentar o rapaz num tom jovial; conhecia bem o brilho dos olhos da irmã quando saudava alguém naquele tom. Ela própria se teria sentido corajosa por tê-lo cumprimentado daquela forma. Contudo, sentia dentro da alma a auto-flagelação de o desejar, aliada a um sentimento de tortura. Em perplexa amargura, ajoelhou-se e rezou:
– Senhor, não permitas que eu ame o Paul Morel. Afasta de mim esse sentimento, se achares que eu não devo amá-lo.
Algo de estranho a fez interromper a oração. Levantou a cabeça e reflectiu. Como é que amá-lo poderia ser errado? O amor era uma dádiva de Deus e, no entanto, causava-lhe vergonha. Era por ele, por Paul Morel, que a sentia. Mas esse não era assunto que lhe dissesse respeito, era só entre ela e Deus. Tinha de fazer o sacrifício, um sacrifício por Deus e não por Paul Morel ou por si mesma. Passados alguns minutos, escondeu a cara na almofada e disse:
– Meu Deus, se é Tua vontade que eu o ame, então submeto-me, como Cristo se submeteu e morreu pelas almas dos pecadores. Faz com que eu o ame fervorosamente, pois ele é Teu filho.
Permaneceu de joelhos por mais alguns instantes, serena, mas profundamente emocionada, com o cabelo negro espalhado sobre os quadrados da colcha de retalhos, vermelhos uns, outros com raminhos de alfazema. Rezar era algo de quase essencial para ela. Depois, caía naquele arrebatamento de auto-sacrifício, identificando-se com um Deus que fora sacrificado, acto que representa para tantas almas humanas a sua bênção mais sublime.
Quando Miriam desceu, Paul estava recostado no cadeirão, em acesa discussão com Agatha, que ridicularizava uma pequena pintura que ele tinha trazido para lhe mostrar. Miriam olhou-os e fugiu à sua frivolidade, indo para a sala de estar para ficar sozinha.
A hora do chá chegou sem que ela tivesse tido possibilidade de falar com Paul; mostrava-se tão distante que ele pensava tê-la ofendido.
Miriam quebrou a rotina de ir todas as terças-feiras à tardinha à biblioteca de Bestwood. Depois de se ter encontrado regularmente com Paul durante toda a Primavera, um número de incidentes insignificantes e pequenos reparos vindos da família levaram-na a aperceber-se das suas atitudes, e decidiu pôr fim às saídas. Assim, numa bela tarde, informou Paul de que não poderia voltar a ir ter a casa dele às terças-feiras à tarde.
– Porquê? – perguntou ele, com brusquidão.
– Por nada. Porque acho melhor assim.
– Muito bem.
– Mas... – gaguejou ela – ... se quiseres estar comigo, podemos ir juntos.
– E encontramo-nos onde?
– Algures... onde tu quiseres.
– Não te quero encontrar em lado nenhum. Não compreendo porque é que não podes continuar a vir buscar-me. Mas se não vieres, não quero encontrar-me contigo.
Assim, as terças-feiras à tarde, esses dias que tinham sido tão especiais para ela e para ele, terminaram. E Paul passou a ocupar esse tempo a trabalhar. Mrs. Morel viu com bons olhos esta decisão.
Paul não aceitava que fossem namorados. A intimidade entre eles tinha sido mantida ao nível do abstracto, era um assunto da alma; visto não passar de um conceito e de uma luta exaustiva ao nível da consciência, ele via nela apenas uma amizade platónica e negava peremptoriamente a existência de algo mais. Miriam permanecia em silêncio, ou então concordava sem discutir. E ele sentia-se um idiota, pois não entendia o que se passava no seu íntimo. Através de um acordo tácito, ignoravam os reparos e as insinuações das pessoas conhecidas.
– Não somos namorados, mas apenas amigos – disse-lhe ele. – Nós sabemos que é assim. Deixa-os falar. Não importa o que dizem.
Por vezes, quando caminhavam juntos, ela metia o braço timidamente no dele. Mas ele retraía-se sempre, e ela sabia-o, o que dava lugar a um conflito violento. Com Miriam, Paul sentia-se sempre no mais alto nível de abstracção, e a sua chama de amor natural transformava-se em energia mental. E ela aceitava-o assim. Se ele estivesse bem-disposto e, como ela dizia, brincalhão, ela aguardava que ele voltasse ao normal, que ele se transformasse, e o visse a lutar de novo consigo mesmo, empolgado, apaixonado, tentando compreender a situação. Nesta paixão pela compreensão, as suas almas tocavam-se e ele era totalmente dela. Todavia, tinha de se abstrair primeiro.
Assim, ela dar-lhe o braço era para ele quase uma tortura. A sua consciência parecia desintegrar-se. A parte do corpo onde ela lhe tocava ardia com a fricção. Era uma batalha mortal para ambos e por isso ele a tratava com crueldade.
Uma tardinha, nos meados do Verão, Miriam foi chamá-lo a casa, chegando transpirada devido à subida. Paul estava sozinho na cozinha e ouviam-se os passos da mãe no primeiro andar.
– Vem, vou mostrar-te as ervilhas-de-cheiro – disse ele.
Foram até ao jardim. O céu, por detrás da cidade e da igreja, era vermelho-alaranjado, e o jardim inundava-se de uma luminosidade estranha e quente que dava sentido a cada folha. Paul avançou pelo estreito carreiro ladeado de ervilhas-de-cheiro, colhendo flores creme e azul-pálido por aqui e por ali. Miriam seguia-o, aspirando as fragrâncias. As flores atraíam-na com tal intensidade que ela sentia necessidade de as tornar uma parte de si mesma. Quando se baixava e cheirava uma flor, era como se ambas se amassem uma à outra. Paul detestava vê-la fazer isso. Ela expunha-se demasiado naquela sua atitude, até mesmo intimamente.
Assim que o ramo ficou de bom tamanho, regressaram a casa. Ele escutou por momentos os passos calmos da mãe no andar de cima e, depois, disse:
– Vem cá, deixa-me enfeitar-te com elas.
E espetou duas ou três de cada vez à volta do decote do vestido, recuando em seguida para admirar o efeito.
– Sabes – disse ele, tirando o alfinete da boca – a mulher devia colocar sempre as flores em frente ao espelho.
Miriam sorriu. Para ela, as flores deviam ser colocadas no vestido sem qualquer preocupação. Se Paul se queria dar ao trabalho de lhe espetar as flores no vestido com rigor, isso era lá com ele.
Paul ficou muito ofendido com a gargalhada que ela deu.
– Algumas mulheres fazem-no.... as que são como devem ser – disse ele.
Miriam sorriu novamente, mas desta vez melancólica, por ele a ter misturado com as mulheres em geral. Teria ignorado a afronta, se tivesse partido de outro homem qualquer. Mas, vinda dele, magoava-a.
Estava ele a terminar o arranjo de flores quando ouviu os passos da mãe nas escadas. Espetou o último alfinete à pressa e afastou-se.
– Não deixes que a minha mãe perceba – disse ele.
Miriam pegou nos livros e ficou à entrada da porta, olhando desapontada para o belíssimo pôr do Sol. Não tornaria a vir a casa de Paul, disse ela.
– Boa tarde, Mrs. Morel – cumprimentou-a Miriam, respeitosamente. As suas palavras soaram como se ela não tivesse o direito de estar ali.
– Ah, és tu, Miriam! – respondeu Mrs. Morel friamente.
Paul insistia em que todos aceitassem a sua amizade com a rapariga, e Mrs. Morel era demasiado esperta para demonstrar abertamente qualquer relutância.
Só quando ele fez vinte anos é que a sua família teve possibilidades económicas para ir de férias. Desde que casara, Mrs. Morel nunca tinha ido de férias, excepto para visitar a irmã. Finalmente, Paul tinha conseguido juntar dinheiro suficiente para levar a família de férias. O grupo era o seguinte: alguns amigos de Annie, um amigo de Paul, um rapaz do escritório onde Paul tinha estado anteriormente e Miriam.
A reserva dos quartos provocou grande alarido. Paul e a mãe debateram várias vezes o assunto. Queriam uma casinha rústica mobilada para duas semanas. Ela achava que uma semana seria suficiente, mas ele insistia em duas. Paul saiu logo de manhã, antes de o correio chegar. Assim, quando voltou, as primeiras palavras da mãe foram:
– Paul, sabes uma coisa... aquela espertalhona de Skegness quer só quatro guinéus por semana por aquele seu barraco miserável.
– Então, vai ter muito de esperar – disse Paul.
– Também acho – respondeu a sua mãe, indignada. Nessa mesma noite, Paul escreveu outra carta. Receberam finalmente resposta de Mablethorpe – uma casinha que preenchia os seus desejos, por trinta xelins por semana. Houve uma explosão de alegria. Paul estava radiante pela mãe. Agora sim, ela ia ter umas verdadeiras férias. À noite, ficavam sentados a imaginar como seriam. Entretanto, chegaram Annie, Leonard, Alice e Kitty. Havia grande alegria e expectativa. Paul contou a Miriam. Ela pareceu feliz, mas comedida. Porém, o lar dos Morels vibrava de excitação.
CONTINUA
A cozinha era muito pequena e esquinada. A quinta tinha sido inicialmente o casebre de um jornaleiro, e a mobília estava velha e gasta. Mas Paul gostava da casa; gostava da serapilheira que substituía o tapete da chaminé e daquele vão patusco por baixo das escadas, e do postigo que se abria ao fundo e através do qual, se se curvasse, podia ver as ameixoeiras do jardim das traseiras e os graciosos cabeços arredondados que se recortavam à distância.
– Não te queres deitar? – disse Mrs. Leivers.
– Oh, não... não estou cansado – respondeu Paul. – É maravilhoso andar lá por fora, não é? Vi um abrunheiro em flor e muitas celidónias. Estou tão feliz por estar sol.
– Queres comer ou beber alguma coisa?
– Não, obrigada.
– Como está a tua mãe?
– Penso que se sente cansada... tem andado muito ocupada. Talvez vá em breve para Skegness comigo. Assim, terá oportunidade de descansar. Quem me dera que isso aconteça.
– Sim – respondeu Mrs. Leivers. – É um milagre que ela não esteja doente.
Miriam andava de um lado para o outro a preparar o jantar. Paul observava tudo o que se passava. As suas faces estavam pálidas e magras, mas os olhos continuavam, como sempre, rápidos e vivos. Ia observando os movimentos estranhos, quase rapsódicos, da rapariga, levando um tacho de guisado para o forno ou vigiando a panela. A atmosfera de sua casa era diferente, lá tudo parecia vulgar. Quando lá fora Mr. Leivers gritou com o cavalo, que se preparava para comer as roseiras no jardim, a rapariga assustou-se e olhou em volta com os seus olhos muito negros, como se algo tivesse vindo perturbar o seu mundo. Sentia-se o silêncio dentro e fora de casa. Miriam parecia estar a viver um conto de fadas, onde era uma donzela cativa e o seu espírito vagueava por uma terra distante e mágica. E a sua túnica azul, velha e desbotada, e as botas já muito gastas, pareciam os andrajos românticos da mendiga do Rei Cophetua.
Subitamente, sentiu os olhos dele, azuis e penetrantes, devorá-la. No mesmo instante as suas botas gastas e o seu velho vestido puído magoaram-na. Lamentava profundamente que ele estivesse a ver tudo. Pois se ele até sabia que a meia dela não estava completamente esticada. Dirigiu-se para a copa com as faces ruborizadas. Mais tarde, as mãos tremiam-lhe levemente durante as tarefas domésticas, quase deixando cair tudo aquilo em que pegava. Quando o seu sonho interior era abalado, o seu corpo estremecia com a trepidação. Lamentava profundamente que ele visse tanta coisa.
Mrs. Leivers sentou-se e conversou durante algum tempo com o rapaz, embora tivesse o trabalho à espera. Era todavia demasiado educada para o deixar sozinho. A certa altura, pediu licença e levantou-se. Daí a pouco olhou para a panela:
– Miriam, querida! – chamou. – As batatas estão sem água!
Miriam respondeu como se algum bicho lhe tivesse mordido.
– E depois, mãe? – exclamou ela.
– Não seria grave se eu não tas tivesse confiado – disse a mãe. – E espreitou para dentro da panela.
A rapariga pôs-se hirta como se tivesse levado um soco. Os seus olhos negros dilataram-se e ficou estática, no mesmo lugar.
– Tenho a certeza de que ainda há cinco minutos as vi – respondeu, crispada, sentindo-se culpada.
– Eu entendo – disse a mãe. – São coisas que acontecem.
– Não estão muito queimadas – disse Paul. – Não tem importância, pois não?
Mrs. Leivers olhou para o jovem com os seus olhos castanhos, magoados.
– Não teria importância, se não fosse pelos rapazes – disse ela. – Só Miriam sabe o barulho que eles fazem quando as batatas se pegam.
«Nesse caso», pensou Paul com os seus botões, «não deviam deixá-los fazer tanto barulho.»
Daí a nada, entrou Edgar. Vinha de perneiras e trazia as botas cobertas de terra. Era bastante baixo e muito formal para lavrador. Olhou de relance para Paul, cumprimentou-o de longe e perguntou:
– O comer está pronto?
– Está quase, Edgar – respondeu a mãe desculpando-se.
– Pois eu já estou pronto – disse o jovem, pegando no jornal e começando a ler. Entretanto, chegaram os restantes membros da família. O almoço foi para a mesa. A refeição decorreu com grande informalidade. A excessiva delicadeza e tom apologético da mãe realçavam mais o comportamento indelicado dos filhos. Edgar provou as batatas, mexeu a boca rapidamente como um coelho, olhou indignado para a mãe e disse:
– Estas batatas estão esturradas, mãe!
– Pois estão, Edgar... distraí-me por um minuto. Mas talvez possas comer pão, se não as conseguires comer.
Edgar olhou com raiva para Miriam.
– O que estava a Miriam a fazer, para não poder tomar conta delas? – disse ele.
Miriam levantou os olhos. A boca entreabriu-se-lhe, os seus olhos brilharam intensos, pestanejantes, mas permaneceu calada. Engoliu a raiva e a vergonha, e baixou a cabeça.
– Tenho a certeza de que não foi por mal – disse a mãe.
– Nem umas batatas sabe cozer – disse Edgar. – Pra que serv’ela aqui em casa?
– Pra ir prà despensa comer tudo o que sobra – disse Maurice.
– Eles não se esquecem daquela tarte de batata que a nossa Miriam comeu – disse o pai, a sorrir. Miriam sentia-se completamente humilhada. A mãe ficou calada, a sofrer como uma mártir, sentindo-se a mais nesta refeição atribulada.
Paul estava perplexo com tudo o que via. Não conseguia perceber a razão de tão violenta reacção só porque umas batatas se tinham queimado. A mãe dava a tudo, mesmo à mais insignificante tarefa doméstica, a importância de um dever religioso. Os filhos ressentiam-se com isso e, vendo cerceadas as suas liberdades, respondiam-lhe com brutalidade e também com irónica arrogância.
Paul estava a passar da infância à idade adulta. Esta atmosfera, onde tudo adquiria um valor religioso, tinha a seus olhos um fascínio subtil. Pairava no ar algo de indefinível. A sua própria mãe era lógica. Mas aqui havia algo de diferente, algo que ele amava, algo que por vezes detestava.
Miriam discutiu com os irmãos aguerridamente. Mais tarde, depois do almoço, quando todos já se tinham ido embora, a mãe disse:
– Desapontaste-me muito à hora do almoço, Miriam.
A rapariga baixou a cabeça.
– Eles são uns brutos! – exclamou subitamente, com os olhos flamejantes.
– Mas tu tinhas prometido que não respondias, não tinhas? – disse a mãe. – E eu acreditei em ti! Não suporto ver-te discutir.
– Mas eles são tão irritantes! – exclamou Miriam. – E... e malcriados.
– Sim, minha querida. Mas quantas vezes já te disse para não responderes ao Edgar? Será que não podes deixá-lo dizer o que lhe apetece?
– Mas porque há-de ele dizer o que lhe apetece?
– Miriam, será que não és suficientemente forte para o suportares, mesmo que o faças só por mim? Serás tão fraca que tenhas de discutir sempre com eles?
Mrs. Leivers pregava inflexivelmente a doutrina do «dar a outra face», mas não conseguia ensiná-la aos filhos. Era contudo bem-sucedida com as filhas, e Miriam era a sua filha dilecta. Os rapazes ficavam furiosos quando elas lhe davam a outra face, e Miriam era muitas vezes suficientemente orgulhosa para o fazer. Eles então cuspiam-lhe e detestavam-na. E ela refugiava-se na sua orgulhosa humildade, fechando-se em si mesma. Havia sempre este sentimento de conflito e de discórdia no seio da família Leivers. Embora os rapazes rejeitassem amargamente o eterno apelo aos seus sentimentos mais profundos de resignação e emproada humildade, acabavam por ceder. Não conseguiam imaginar apenas um sentimento humano comesinho ou uma simples amizade com um estranho: estavam sempre ansiosos por algo de mais profundo. O comum mortal era para eles superficial, trivial e insignificante. E, assim, por falta de hábito, eram dolorosamente rudes nos mais simples contactos sociais e, embora sofressem com isso, continuavam a arvorar uma insolente superioridade. Todavia, bem no fundo, ansiavam pela intimidade que não podiam lograr, pois eram demasiado reservados e qualquer tentativa de aproximação era imediatamente bloqueada pelo rude desprezo que nutriam pelos outros. Buscavam uma intimidade genuína, mas não se conseguiam aproximar normalmente das outras pessoas, pois recusavam-se a dar o primeiro passo e desprezavam a trivialidade que envolve a generalidade das relações humanas.
Paul deixou-se arrastar pelo sortilégio de Mrs. Leivers. Tudo adquiria um significado religioso e profundo quando ele estava com ela. A alma ferida dele, altamente evoluída, procurava-a em busca de alimento. Juntos pareciam filtrar de cada experiência a sua verdade vital.
Miriam era bem a filha de sua mãe. De tarde, ainda o sol brilhava, mãe e filha foram com ele passear pelos campos. Iam em busca de ninhos e encontraram um de carriça na cerca do pomar.
– Quero que vejas uma coisa – disse Mrs. Leivers.
Ele baixou-se e meteu o dedo cautelosamente por entre os espinhos, penetrando no orifício redondo da entrada do ninho.
– É quase como se metêssemos o dedo dentro do corpo de um pássaro – disse ele. – É tão quente. Dizem que o pássaro faz o ninho redondo como uma chávena, calcando-o com o peito. Sempre gostava de saber como é que ele fez o tecto redondo. – Para as duas mulheres, o ninho era o começo da vida. Depois desse dia, Miriam vinha visitá-lo todos os dias. Sentia-o tão próximo de si. Descendo novamente rente à cerca com a rapariga, Paul reparou nas celidónias, sobressaindo como salpicos de ouro na beira do valado.
– Gosto delas quando as pétalas se abrem completamente à luz do sol – disse ele. – Parecem comprimir-se contra o sol. – E foi quanto bastou para as celidónias passarem a exercer sobre ela um certo fascínio. Antropomórfica como era, incentivava-o a apreciar as coisas desta forma, e elas depois ganhavam vida para ela. Parecia necessitar que as coisas brilhassem na imaginação ou na alma dele primeiro, antes de sentir que as possuía. Sempre se vira privada de uma vida normal pelo seu próprio fervor religioso, que fazia o mundo parecer-lhe um jardim de convento ou um paraíso, onde o pecado e o conhecimento ou não existiam ou eram, pelo contrário, algo de cruel e feio.
Foi assim, nesta atmosfera de subtil intimidade, neste encontro de sentimentos comuns pelas coisas da natureza, que o amor nasceu.
Mas só passado muito tempo, Paul se deu verdadeiramente conta da existência de Miriam. Após a doença teve de permanecer em casa durante dez meses. Foi passar algum tempo a Skegness com a mãe e sentia-se verdadeiramente feliz. Mas até da praia ele escrevia longas cartas a Mrs. Leivers falando-lhe da praia e do mar. E trouxe consigo os seus queridos esboços da costa plana de Lincoln, ansioso por lhos mostrar. Iam com certeza interessar mais aos Leivers do que tinham interessado à sua própria mãe. Não era a sua arte que preocupava Mrs. Morel, mas sim ele próprio e o seu futuro. Porém, Mrs. Leivers e os filhos eram quase seus discípulos. Davam-lhe inspiração e faziam-no brilhar no seu trabalho, ao passo que a mãe o influenciava de forma a torná-lo determinado, paciente, obstinado, incansável.
Em breve se tornou amigo dos rapazes, cuja rudeza era apenas superficial. Todos patenteavam, quando podiam confiar neles próprios, uma bondade e amabilidade muito estranhas.
– Vens comigo para a leira? – perguntou Edgar, um tanto hesitante. Paul foi com ele alegremente e passou a tarde a cavar e a desbastar os nabos com o amigo. Paul costumava deitar-se com os três irmãos no monte de feno do celeiro a contar-lhes histórias sobre Nottingham e a Thomas Jordan. Eles, por sua vez, ensinaram-no a ordenhar e deixavam-no encarregar-se de pequenas tarefas tanto quanto quisesse, tais como segar feno ou despolpar nabos. Nos meados do Verão, Paul ajudou-os a segar o feno e tornou-se seu grande amigo. Aquela família vivia na verdade bem longe do mundo. Assemelhavam-se de certa forma a «les derniers fils d’une race épuisée»1. Embora os rapazes fossem robustos e saudáveis, eram esquivos e extremamente sensíveis, o que os tornava tão solitários. Mas, uma vez ganha a sua confiança, mostravam-se amigos fiéis e dedicados.
Miriam só mais tarde aconteceu. Mas ele entrara na vida dela antes de ela aparecer na sua. Numa tarde sombria, quando os homens estavam no campo e os mais novos na escola, apenas tendo ficado em casa Miriam e a mãe, ela perguntou-lhe, após breves momentos de hesitação:
– Já viste o baloiço?
– Não – respondeu ele. – Onde está?
– No estábulo – disse ela.
Ela hesitava sempre em dizer-lhe ou mostrar-lhe alguma coisa. Os homens têm uma noção de valor tão diferente da das mulheres que todos os seus objectos mais queridos e valiosos eram frequentemente motivo de escárnio e insulto por parte dos irmãos.
– Então vamos! – respondeu ele, levantando-se de imediato.
Havia dois estábulos, um de cada lado do celeiro. No estábulo mais baixo e escuro havia lugar para quatro vacas. As galinhas esvoaçavam sobre a manjedoura, cacarejando, enquanto o rapaz e a rapariga se aproximavam da corda grande e grossa, que pendia suspensa de uma viga na escuridão e estava presa à parede, a uma cavilha.
– Parece uma corda! – exclamou ele, satisfeito, e sentou-se ansioso por experimentar. Porém, levantou-se logo.
– Vá! Experimenta tu primeiro! – disse, voltando-se para a rapariga.
– Estás a ver – respondeu ela, entrando no celeiro –, é preciso pôr uns sacos no assento. – E assim tornou o assento mais confortável, o que muito o alegrou. Paul segurou-se à corda.
– Vem! – disse ele.
– Não, não quero ser a primeira – respondeu ela.
E manteve-se afastada, no seu jeito indiferente e calmo.
– Porquê?
– Vai tu agora! – insistiu ela.
Era talvez a primeira vez na vida que ela sentia prazer em fazer o que um homem lhe dizia, em poder mimá-lo. Paul olhou para ela.
– Está bem – disse ele, sentando-se no baloiço. – Cuidado!
Deu um salto para cima do baloiço e logo voou pelo ar, quase saindo pela porta, que tinha a parte superior aberta, podendo ver lá fora a chuva a cair miúda, o pátio sujo, o gado desolado junto à carroça preta do estábulo e, ao fundo, a cortina verde e cinza da floresta. Ela mantinha-se cá por baixo, com a sua boina vermelha à escocesa, a observá-lo. Ele olhou para ela, e ela viu os seus olhos azuis a brilharem.
– É um baloiço formidável – disse ele.
– Pois é.
Todo ele se lançava pelo ar, como um pássaro em voo picado, só pelo prazer do movimento. E então olhou para baixo, para ela, e a boina vermelha sobre os caracóis negros, o rosto bonito e afável, tão sereno como se estivesse a meditar, subiram até ele. Estava escuro e frio dentro do estábulo. Subitamente uma andorinha desceu das alturas do forro do telhado e saiu como uma seta pela porta.
– Não sabia que estávamos a ser observados por um passarinho – disse ele.
Ele baloiçava-se desabridamente. Ela sentia-o descer e subir no ar, como se impelido por uma força desconhecida.
– Agora vou morrer – disse ele, numa voz sonhadora e despojada, como se ele próprio fosse o movimento moribundo do baloiço. Ela olhava-o, fascinada. Bruscamente, ele travou e saltou.
– Já andei muito tempo – disse ele. – Isto é um baloiço formidável, é realmente um baloiço formidável.
Miriam estava divertidíssima, pois ele tinha levado o baloiço a sério e sentira-se bem a andar nele.
– Não, continua – disse ela.
– Porquê?... Não queres andar? – perguntou ele espantado.
– Não me apetece muito. Mas vou andar só um bocadinho.
Ela sentou-se no baloiço, enquanto ele segurava os sacos.
– É formidável, vais ver – disse ele, empurrando-a. – Mantém os calcanhares bem levantados, senão batem na manjedoura.
Miriam sentia a precisão com que ele a agarrava no momento exacto e a força certeira com que a empurrava, e sentia medo. Uma onda quente de medo percorreu-a até ao ventre. Ela estava nas mãos dele. O impulso firme e inevitável surgia de novo no momento certo. Ela agarrava-se à corda, quase a desmaiar.
– Oh – disse ela a rir, cheia de medo. – Mais alto não!
– Mas tu não vais nada alto – protestou ele.
– Mas mais alto não!
Paul apercebeu-se do medo na voz dela, e parou. O coração dela derreteu-se numa dor cálida, quando chegou o momento de novo impulso, mas ele deixou-a sozinha, e ela pôde respirar outra vez.
– Não queres mesmo ir mais alto? – perguntou ele. – Queres que te mantenha nessa altura?
– Não, eu ando sozinha – respondeu ela.
Então ele afastou-se e ficou a vê-la.
– Mal te mexes – comentou ele.
Ela esboçou um sorriso, envergonhada, e de repente desceu.
– Dizem que quem sabe andar de baloiço não enjoa no mar – disse ele, enquanto subia para o baloiço outra vez. – Não creio que alguma vez venha a enjoar.
Começou a andar novamente. Para ela havia algo nele que a fascinava. Naquele momento ele era apenas uma peça de um objecto em movimento e tudo nele se movia. Nem ela nem os irmãos conseguiam libertar-se assim. Sentia o entusiasmo desabrochar dentro de si. Era como se ele fosse uma chama, e tivesse ateado o entusiasmo dentro dela enquanto se baloiçava no ar.
E, gradualmente, a intimidade de Paul com a família Leivers privilegiava três pessoas: a mãe, Edgar e Miriam. Na mãe encontrava uma simpatia e um encanto que pareciam abrir-lhe o coração. Edgar era o seu melhor amigo. Quanto a Miriam, digamos que a ia aturando, pois parecia-lhe ser muito submissa.
Mas a rapariga, a pouco e pouco, foi-o atraindo. Quando ele trazia o caderno dos esboços, era sempre ela quem observava mais longamente o último desenho. E então, olhava para ele e perguntava, com os olhos negros a luzir, como águas agitadas por uma corrente dourada no meio da escuridão:
– Porque será que gosto tanto deste?
E algo no peito dele se retraía perante estas observações tão deslumbradas, tão íntimas e tão próximas.
– Sim, porque será? – perguntava ele.
– Não sei – parece tão real.
– É porque... é porque quase não tem sombras... é mais como uma cintilação... como se eu tivesse pintado a cintilação do protoplasma das folhas, e de tudo, e não a rigidez das formas. Isso para mim é coisa morta. Só a cintilação contém vida. A forma é uma crosta morta. A cintilação está, realmente, no interior.
E ela, mordendo o dedinho minúsculo, ponderava sobre tais afirmações. Davam-lhe uma nova sensação de vida e davam vida a coisas que até aí não significavam nada para ela. Conseguia encontrar algum significado nos discursos dele, sempre tão abstractos e intrincados. Era através deles que ela chegava claramente aos objectos amados.
Certo dia, ela tinha estado sentada junto dele, ao pôr do Sol, enquanto ele pintava alguns pinheiros batidos pelo clarão rubro que avançava do poente. Ele mantivera-se calado.
– Já está! – disse ele, de repente. – Mesmo o que eu queria. Agora, olha para eles e diz-me se são troncos de pinheiro ou carvões incandescentes, estacas de fogo a arder na escuridão. A sacra ardente de Deus, aquela que não se apaga.
Miriam olhou e sentiu medo. Mas distinguia perfeitamente os troncos de pinheiro e achava-os magníficos. Ele arrumou a caixa das tintas e levantou-se. De repente, olhou para ela.
– Porque estás sempre tão triste? – perguntou.
– Triste! – exclamou ela, olhando para ele com os seus olhos castanhos, admirados, maravilhosos.
– Sim – disse ele. – Tu andas sempre, sempre triste.
– Não... Nem um pouco! – exclamou ela.
– Até a tua alegria parece uma chama ateada pela tristeza – insistiu ele. – Nunca estás alegre, nem sequer normal.
– Pois não – disse ela, pensativa. – Dá que pensar... Porque será...?
– Porque tu não és.... porque tu és diferente por dentro... como um pinheiro... e depois incendeias-te... mas não és uma árvore qualquer, com folhas irrequietas e alegres...
Paul emaranhou-se no seu próprio discurso; mas ela bebia as suas palavras e ele teve uma sensação estranha e estimulante, como se os seus sentimentos fossem novos. Ela chegava-lhe tão perto da alma. Estranho estímulo este.
Mas às vezes odiava-a. O irmão mais novo de Miriam só tinha cinco anos. Era um menino débil, de enormes olhos castanhos e um rostinho frágil e esquisito; parecia um anjo do Coro dos Anjos, de Reynolds, com um toque de duende.
Miriam ajoelhava-se frequentemente junto da criança e apertava-o contra o peito.
– Meu Hubert! – cantarolava ela com uma voz possante, a transbordar de amor. – Meu Hubert!
E, envolvendo-o nos seus braços, embalava-o mansamente de um lado para o outro com amor, de face levantada ao céu, olhos semicerrados e voz embebida de ternura.
– Pára! – disse a criança, constrangida. – Pára, Miriam!
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela do fundo da garganta, como se estivesse em transe, balançando também, como se prestes a desfalecer num êxtase de amor.
– Pára! – repetiu a criança, franzindo a testa desanuviada.
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela.
– Porque fazes tanto espalhafato? – gritou Paul, profundamente afectado pela emoção exagerada de Miriam. – Porque não ages normalmente com ele?
Ela largou a criança e não respondeu. A sua intensidade, que não deixaria transparecer qualquer emoção numa situação normal, deixava o jovem quase num frenesim. Este contacto desprotegido e tímido com a alma dela chocava-o. A sua mãe era reservada, e ele estava habituado a ela. E, nessas alturas, sentia-se agradecido de alma e coração por ter a mãe que tinha, tão sensata e tão sã.
Toda a vida do corpo de Miriam se reflectia nos seus olhos, normalmente escuros como as igrejas, mas que podiam inflamar-se como uma conflagração. A sua expressão meditativa raramente se alterava. Talvez ela tivesse sido uma das mulheres que acompanharam Maria quando Jesus morreu. O seu corpo não era vivo, flexível. Andava de forma oscilante, pesada até, de cabeça inclinada para a frente, meditativa. Não sendo propriamente desajeitada, nenhum dos seus movimentos parecia o movimento correcto. Muitas vezes, quando limpava os pratos, ficava confusa e desgostosa, por ter partido em duas metades uma chávena ou um copo. Era como se, por medo e falta de confiança, se tivesse aplicado demasiado. Não sabia o que eram relaxamento ou abandono. Agarrava-se a tudo com rigidez e intensidade, e o seu esforço, de excessivo, fechava-a sobre si mesmo.
Raramente alterava a forma de andar, tensa, balançada, projectada para a frente. De vez em quando, ia com Paul dar uma corrida pelos campos e então os seus olhos brilhavam inteiros, num êxtase que o assustava. Mas tinha medo de fazer exercício físico. Se tivesse de saltar uma cerca, apertava as mãos de forma angustiante e perdia a presença de espírito. E ele não conseguia persuadi-la a saltar, mesmo um obstáculo baixo. Os olhos dela dilatavam-se, ficavam expostos, palpitantes.
– Não – gritava ela, sorrindo apavorada. – Não!
– Tens de tentar – gritou ele uma vez e, empurrando-a para a frente, fê-la cair da cerca. Mas o grito selvagem que ela deu, como se estivesse prestes a perder a consciência, feriu-lhe as entranhas. Mas ela caiu de pé e em segurança, e posteriormente passou a ter mais coragem.
Paul e Miriam iam muitas vezes passear juntos pelos campos até ao lago Nethermere. Ele era naturalmente ágil e muito activo. Andava sempre a saltar de um lado para outro. Ela, no entanto, mantinha sempre o mesmo curso, quase sem alterações. E ele, a pouco e pouco, vinha para junto dela, moderava o passo e caminhava com ela, de cabeça baixa, mas só até chegarem à água. A margem do lago estava pejada das penas brancas dos cisnes. Sentavam-se entre os seixos. Subitamente, ele descobria um seixo bonito e bem liso, levantava-se, e atirava-o à água para provocar ondinhas.
– Consegues fazê-los saltar? – perguntou Paul.
– Não muito bem! – respondeu ela, abanando a cabeça. E continuou sentada a observá-lo.
– Ora vê! – gritou ele. – Quatro saltinhos.
– Sim senhor – disse ela, elogiando-o. – Formidável. – Contudo, ele depressa se fartou e veio sentar-se novamente junto dela.
– Porque não queres também fazer ondinhas? – perguntou ele.
– Porque não sei – respondeu ela.
– Tu nunca queres fazer nada! – disse ele.
– Bem vês, tenho a lida da casa para fazer.
Paul não deu seguimento à discussão, preferindo encetar um diálogo sobre livros.
Miriam estava muito triste com o seu destino.
– Não gostas de estar em casa? – perguntou-lhe Paul surpreendido.
– E quem é que gosta? – respondeu ela, num tom cavo e profundo. – O que é estar em casa? Passar os dias a limpar o que os rapazes sujam em menos de cinco minutos. Não quero estar em casa!
– Então o que é que queres?
– Quero fazer alguma coisa. Quero ter uma oportunidade, como toda a gente. Porque é que eu, só por ser rapariga, tenho de ficar em casa e não me é permitido ser alguém? Que oportunidades é que eu tenho?
– Oportunidades para quê?
– Para saber de tudo, para aprender... para fazer qualquer coisa. Não é justo que isto aconteça apenas por eu ser mulher.
Ela falava com muita amargura. Paul pôs-se a pensar. Em casa, Annie parecia até quase contente por ser rapariga. Não tinha tantas responsabilidades e tudo era mais fácil para ela. Nunca quisera ser qualquer outra coisa além de rapariga. Mas Miriam desejava quase furiosamente ser homem. E, contudo, ao mesmo tempo detestava os homens.
– Mas ser homem ou mulher é a mesma coisa – disse Paul, franzindo a testa.
– Ai é?... Os homens têm tudo.
– Eu acho que as mulheres deviam estar contentes por serem mulheres, como os homens estão por serem homens – respondeu ele.
– Não! – Ela abanou a cabeça. – Nem pensar! Os homens têm tudo.
– Mas o que é que queres, afinal? – perguntou ele.
– Quero aprender. Porque é que eu hei-de ficar sem saber nada?
– Mas afinal o que queres tu aprender? Matemática e francês...?
– E porque é que eu não hei-de aprender matemática... Sim – gritou ela, abrindo os olhos em ar de desafio.
– Tu podes aprender tudo aquilo que eu sei – disse ele. – Eu ensino-te, se quiseres.
Os olhos dela arregalaram-se. Como professor, ele não lhe inspirava confiança.
– Gostavas? – perguntou Paul.
Ela estava de cabeça baixa a chuchar no dedo, sorumbática.
– Gostava... – disse ela, hesitante.
Ele conversava frequentemente com a mãe sobre todas estas coisas.
– Gostava de ser homem, mãe? – perguntou ele.
– Por vezes... mas é uma parvoíce... penso que não... não quero e nunca quis ser outra pessoa diferente da que sou.
– E porque é que gostava de ser homem, mesmo só às vezes?
– Bem, meu filho – respondeu a mãe a sorrir – penso que conseguiria fazer mais do que alguns homens, o que não é para admirar.
– Eu cá não quero ser mulher – disse ele, pensativo. – E acho que não conseguia ser uma mulher melhor do que as que já são mesmo mulheres.
– Não – disse a mãe a sorrir. – Também acho que não... Mas, por vezes, nós sentimos que poderíamos fazer mais do que os homens...
– Talvez a mãe pudesse... – disse ele.
– Bem... – respondeu ela com a sua curiosa fungadela habitual. – Sabes, meu filho – continuou ela – a natureza é para ser respeitada. E quando uma mulher deseja ardentemente ser homem, podes apostar a vida em como ela não é lá grande coisa como mulher.
– Detesto uma mulher que deseje ser homem – disse ele.
– Apenas demonstra que o seu orgulho de mulher está demasiado enfraquecido – respondeu a mãe. Paul falava sempre com a mãe, pois ela era a sua pedra de toque.
– Vou ensinar álgebra à Miriam – disse ele.
– Bem... – disse Mrs. Morel – espero que lhe seja proveitoso.
Aproximava-se o crepúsculo quando Paul se dirigiu para a quinta, na segunda-feira à tardinha. Miriam acabara de varrer a cozinha e estava ajoelhada junto à lareira quando ele entrou. Todos tinham saído, excepto ela. Olhou-o ruborizada, com os olhos negros a brilhar e os cabelos magníficos caídos à volta do rosto.
– Olá – disse ela, num tom suave e musical. – Já sabia que eras tu!
– Como é que adivinhaste?
– Reconheci os teus passos. Ninguém anda tão depressa e firmemente como tu.
Ele sentou-se e suspirou.
– Estás pronta para aprender álgebra? – perguntou ele, tirando um livrinho do bolso.
– Mas... – Ele sentiu-a recuar.
– Mas tu disseste que querias – insistiu ele.
– Mas hoje à noite... – começou ela, titubeante.
– Mas eu vim de propósito. E, se queres aprender, alguma vez tens de começar.
Ela apanhou as cinzas com a pá do lixo e olhou para ele, esboçando um sorriso trémulo.
– Sim, mas... esta noite... Sabes, ainda não pensei nisso.
– Por amor de Deus... Vai despejar as cinzas e vem ter comigo.
Paul saiu e sentou-se no banco de pedra do pátio das traseiras, perto das grandes bilhas de leite. Os homens estavam no estábulo. Ele conseguia ouvir o som cadenciado do leite, jorrando para os baldes. Ela voltou logo, com um punhado de maçãs grandes e esverdeadas.
– Estas são das que tu gostas – disse ela.
Ele deu uma trincadela na maçã.
– Senta-te – disse ele com a boca cheia.
Ela, míope, começou a espreitar por cima do ombro dele. Isso irritou-o tanto que lhe entregou logo o livro.
– Vê à vontade – disse ele. – Aqui há apenas letras para cada número. Escreves um a, em vez de um «2» ou um «6».
Começaram a trabalhar, ele a explicar e ela debruçada sobre o livro. Ele era rápido e impetuoso. Ela nunca respondia. Por vezes, quando ele lhe perguntava:
– Estás a perceber? – ela olhava-o com uns olhos sorridentes e amedrontados.
– Então, não estás a perceber nada! – gritava ele.
Tinha ido demasiado depressa. Mas ela não tinha dito nada. Ele fez-lhe mais perguntas e depois irritou-se. Ficava com o sangue a ferver de a ver ali à sua mercê, de boca aberta, olhos esbugalhados, com um sorriso medroso, apologético, envergonhado. Edgar chegou entretanto com dois baldes de leite.
– Olá! – disse ele. – O que estão vocês a fazer?
– Álgebra – respondeu Paul.
– Álgebra! – repetiu Edgar, intrigado. E seguiu em frente, dando uma gargalhada. Paul trincou a maçã já quase esquecida e, olhando para as pobres couves da horta, todas rendilhadas pelas galinhas, teve vontade de as arrancar. Depois, olhou para Miriam, que fitava o livro aparentemente absorta; porém tremia, receando não compreender. Estava corada e bonita. Todavia, a sua alma parecia suplicar ao livro de álgebra que a ajudasse. Ela fechou-se, retraiu-se, percebendo que ele estava aborrecido. Mas, no mesmo instante, ele tornou-se gentil ao vê-la magoada por não conseguir perceber o que lia.
– Diz lá, o que é que achas difícil? – perguntou ele, ternamente.
Este novo tom de voz fê-la levantar de imediato os olhos negros que pareciam querer vencer a todo o custo. O olhar dela doeu-lhe e uma onda de ternura percorreu-o.
– Sabes, para mim é fácil – disse ele. – Já estou habituado e esqueço-me de que não sabes. Vês...
E, então, todo ele gentileza e paciência, recomeçou. Edgar chegara entretanto e pusera-se atrás dele.
A cabeça escura de Miriam encontrava-se abaixo do nível dos olhos de Paul. Era uma cabeça pequenina com caracóis negros que pareciam flutuar como seda. Ela parecia esforçar-se tanto! A voz dele era uma contínua ternura.
– Vejo, pois! – exclamou Edgar, de repente, por detrás deles. – Mas... isto...
E o seu gordo indicador aproximou-se do livro. Miriam estremeceu. Paul virou-se para o amigo. Edgar era bem-parecido e os seus olhos, castanhos, perfeitos e saudáveis, pareciam interessados. Explicar-lhe algo era para Paul como respirar ar fresco.
Paul dava lições a Miriam com regularidade. As aulas tinham lugar na sala de estar. Foi aí que o jovem se estreou brilhantemente. Ela aprendia tudo e sabia sempre quais os exercícios que ele lhe mandara fazer na semana anterior. Frequentemente sabia até melhor do que ele. Mas as coisas para ela tinham de ser lentas. E quando se retraía e se mostrava completamente submissa durante a lição, isso enervava-o. Ele enfurecia-se, envergonhava-se, continuava a lição e enfurecia-se novamente, gritando com ela. Ela escutava-o em silêncio. Por vezes, muito raramente, defendia-se. Os seus olhos negros e transparentes fulminavam-no.
– Não me dás tempo para aprender – dizia ela.
– Pronto – respondia ele, atirando o livro para cima da mesa e acendendo um cigarro. Mais tarde, ia ter com ela arrependido. E assim decorriam as lições, com ele sempre ou muito enervado ou muito gentil.
– Porque é que a tua alma estremece durante a lição? – gritava ele. – Com essa tua bendita alma, nunca mais aprendes álgebra. Será que não consegues olhar para isto com a razão, de uma forma clara e simples?
Muitas vezes, quando ia para a cozinha, Mrs. Leivers olhava para ele aborrecida e repreendia-o:
– Paul não sejas tão severo com a Miriam. Ela pode não ser muito rápida, mas tenho a certeza de que se esforça.
– Não me consigo conter – dizia ele, desculpando-se. – Enervo--me facilmente.
– Miriam, não estás aborrecida comigo, pois não? – perguntava-lhe ele mais tarde.
– Não – assegurava-lhe ela, no seu tom profundo e melodioso. – Não, eu não me importo.
– Não me perdoes tão facilmente, pois eu sei que sou culpado.
Mas, apesar de tudo, o seu sangue começava a ferver novamente. Era estranho que mais ninguém o enervasse daquela forma. Mas ela enfurecia-o. Uma vez atirou-lhe um lápis à cara. Fez-se silêncio. Ela virou a face ligeiramente para o lado.
– Eu não... – começou ele, mas não continuou, pois sentia-se desfalecer. Ela nunca o censurava nem se zangava com ele, e ele sentia-se muitas vezes terrivelmente envergonhado. Contudo, a sua raiva rebentava novamente como uma bolha enfunada. Quando ele via à sua frente aquela cara ansiosa, silenciosa, como se fosse cega, sentia renascer dentro de si a vontade irreprimível de lhe atirar outra vez com o lápis. No entanto, quando via a mão dela tremer e a boca entreabrir-se em sofrimento, o seu coração ardia de compaixão por ela. E, assim, procurava-a, pela força e a intensidade que ela despertava nele.
Muitas vezes evitava-a e ia passear com Edgar. Miriam e o irmão eram naturalmente antagónicos. Edgar era um racionalista curioso e nutria um interesse científico pela vida. Para Miriam, era um grande desespero sentir-se abandonada por Paul em benefício de Edgar, que parecia muito mais inculto. Todavia, Paul sentia-se muito feliz com o irmão mais velho. Os dois homens passavam tardes juntos no campo, carpinteirando no celeiro quando chovia. Conversavam ou então Paul ensinava a Edgar as canções que ele próprio tinha aprendido com Annie ao piano. Frequentemente, todos os homens, incluindo Mr. Leivers, tinham acerbas discussões sobre a nacionalização da terra e problemas semelhantes. Paul já tinha ouvido as opiniões da mãe, e visto serem essas também as suas, discutia-as em seu lugar. Miriam assistia e participava, mas aguardava até que terminassem, e intervinha apenas quando a conversa voltava a ser mais íntima.
«Acima de tudo», pensava ela, «se as terras fossem nacionalizadas, Edgar, Paul e eu continuaríamos a ser os mesmos.»
E então esperava que Paul voltasse para junto dela.
Ele andava a estudar pintura. À noite adorava ficar a trabalhar em casa sozinho com a mãe. Ela cosia ou punha-se a ler. Por vezes, ele interrompia o seu trabalho e descansava os olhos por um momento no rosto da mãe, que brilhava de ternura, para depois retomar feliz a sua tarefa.
– Mãe, os meus melhores trabalhos são feitos quando está aqui sentada na cadeira de balouço – dizia ele.
– Tenho a certeza de que sim – exclamava ela, torcendo o nariz, num cepticismo simulado. Mas sabia que assim era e o seu coração pulsava de alegria. Mrs. Morel sentava-se em silêncio durante horas, costurando ou lendo um livro, atenta ao trabalho do filho. E ele, comandando o lápis com toda a intensidade da sua alma, sentia o calor dela dentro dele, incentivando-o. Eram os dois muito felizes assim e sem consciência de o serem. Estes momentos, tão significativos e tão reais, passavam-lhes quase despercebidos.
Ele apenas tomava consciência quando era estimulado. Quando terminava um esboço, desejava sempre mostrá-lo a Miriam. E então, sentia-se estimulado para conhecer o trabalho que tinha produzido inconscientemente. Em contacto com Miriam adquiria discernimento e a sua visão tornava-se mais profunda. Da mãe retirava o calor da vida e o incentivo para produzir; Miriam dava a esse calor a intensidade de uma luz muito branca.
Quando Paul voltou à fábrica, as condições de trabalho tinham melhorado. Tinha a quarta-feira à tarde livre para ir à escola de belas-artes – providência tomada por Miss Jordan – e regressava à tardinha. Além disso, às quintas e sextas-feiras à tarde, a fábrica fechava às seis em vez de ser às oito.
Em Bestwood havia uma pequena e respeitável biblioteca, cuja assinatura custava apenas quatro xelins e seis dinheiros por ano. Mrs. Morel e Mrs. Leivers tinham-se feito sócias quando os filhos começaram a crescer. A biblioteca ocupava duas salas do Clube dos Mecânicos, e estava aberta às terças-feiras à noite, das 19 às 21 horas. Paul ia sempre buscar os livros para a mãe, que lia muito, e Miriam arrastava-se sob o peso de cinco ou seis volumes para a família. Tornou-se habitual os dois encontrarem-se na biblioteca.
Paul conhecia bem as duas pequenas salas com as paredes forradas de livros. Eram acolhedoras e havia uma grande lareira ao canto. Mr. Sleath, o bibliotecário, tinha fartas suíças brancas em torno de uma cara acriançada. Era alto e curioso, mas muito afável; conhecia toda a gente e sabia da vida de todos. Mr. Smedley era roliço, careca e instruído.
Paul aguardou, enquanto Mr. Sleath acabava de pôr em dia os mexericos com o último leitor. Nessa altura, Paul deixou cair os livros em cima do balcão. Mr. Sleath olhou para ele com os seus olhos azul-vivo, mas mortiços.
– Vinte e dois, cinquenta e sete – disse Paul.
O bibliotecário, funcionário superior da companhia mineira e um cavalheiro comparado com o jovem, repetiu os números alegremente, virando as folhas do livro de registos.
– Ah!... Ah! – exclamou ele, olhando para a página. Depois olhou de uma forma carinhosa e acolhedora para o jovem, esfregou as mãos e disse:
– Ah!... Bem, Paul!... Ah! Como está a tua mãe?
– Muito bem, obrigado! – respondeu Paul.
– Óptimo! Não a vi na capela no domingo à noite!
– Pois não! Teve uma inflamação nos olhos.
– Meu Deus... Meu Deus... Lamento muito!
– Mas penso que disseste – interveio Mr. Smedley – que ela estava muito bem. – Paul não respondeu nem olhou para o homenzinho por detrás do balcão. Mr. Sleath ia assinalando os livros no seu livro de registo. Mr. Smedley pôs mais carvão na lareira. Algumas pessoas conversavam animadamente junto das estantes. Os tacões dos sapatos chiavam na tijoleira.
– Mas achas que ela já se sentirá bem para sair este fim-de-semana? – perguntou Mr. Sleath, quando acabou de registar todos os livros.
– Acho que sim – disse Paul.
– Óptimo... Óptimo. De facto, estranhei a ausência dela.
Para Paul já era um dado adquirido que as pessoas lhe perguntassem pela mãe e nunca mencionassem o pai.
Dirigiu-se para as estantes. Os leitores continuavam a entrar, deixando os chapéus-de-chuva no corredor e trocando agradáveis saudações. O jovem conhecia toda a gente e todas as suas histórias. Mas não lhe interessavam. Miriam talvez não viesse por causa da chuva. Olhou para o livro que tinha nas mãos, esqueceu-o por momentos, pensando nela, e voltou ao livro novamente. O tempo passava como num sono. Ouvia o ruído das pessoas a saírem, mas ninguém a entrar. E se ela não viesse? Só de pensar nisso a noite afigurava-se-lhe lúgubre e infrutífera. Mas ela viria. A atmosfera era quente e acolhedora e a noite não teria continuidade enquanto ela não chegasse.
– Uma noite dos diabos, Alfred, uma noite dos diabos – disse Mr. Sleath, procurando alguém com quem falar. A biblioteca estava vazia.
– Parece que sim – respondeu Mr. Smedley.
Então, Mr. Sleath reparou em Paul.
– Olá, Paul – exclamou. – Ainda não encontraste o que queres, hem?
– Não me parece que o Paul esteja à espera de nenhum livro – disse Mr. Smedley.
– Oh...Oh... – exclamou Mr. Sleath.
– Penso que é uma jovem que está por detrás disto tudo – disse Mr. Smedley. – Mas está uma noite péssima para se vir de Willey Woods.
Ouviram-se passos no corredor. Paul ficou à escuta. Não era ela. Entrou um rapaz. Quando Paul viu o rapaz no limiar da porta, onde ela deveria estar, ficou furioso com ele. Contudo ela viria. Era sempre tão cumpridora. Um dos seus maiores encantos, quanto a ele, era a sua rejeição das convenções. Se quisesse vir, viria mesmo que chovesse torrencialmente. E o tempo não estava assim tão mau. Paul pôs-se a escutar, para ver se chovia muito. E então ouviu o rapaz dizer que estava a chover a cântaros. Mas o rapaz não contava. Ela viria, sim, mesmo que chovesse a cântaros. E Paul agarrou-se a essa esperança. Podia senti-la, através da noite, desejando vir. E ela nunca o desapontava. Para ela a vida interior valia tudo, e a exterior nada.
Ouviu os passos dela no corredor e a sua ansiedade diminuiu. Ficou a vê-la chegar. Ela parou um momento à entrada da porta. A boina vermelha cintilava com as gotas de chuva, o cabelo revolto dançava em caracóis húmidos, as faces esplandeciam. Ela procurou-o ansiosamente com o olhar, e então os seus olhos míopes encontraram-no, e uma chama ateou-se dentro dela, queimando-o também a ele. Dirigiu-se ao balcão, satisfeita. Ele virou-lhe as costas.
Então, ela aproximou-se dele, hesitante.
– Estou atrasada? – perguntou ela.
– Como sempre – respondeu ele. – Estás muito molhada?
– Não... nadinha.
– Vieste pela linha férrea? – disse ele.
– Vim. Estavas com muito medo de que eu não aparecesse?
– Só um bocadinho.
Paul sorriu.
– Vem, vou mostrar-te os livros que escolhi para ti – disse ele. Ela foi. Os livros não tinham qualquer significado para ela. Mas ele insistia na sua aprovação. Olhou para os livros por cima do braço dele, sem conseguir ver nada. Mas ele estava contente.
– Concordas? – perguntou ele.
– Claro – respondeu ela.
Depois de registarem os livros, saíram os dois rapidamente da biblioteca. A escuridão enchia-os de alegria. Sentiam-se exacerbadamente felizes. Paul trazia uma enorme capa preta impermeável, por baixo da qual resguardou os livros. Caminharam lado a lado pela rua Mansfield, envolvidos pela escuridão e pela chuva, sob as árvores gotejantes.
A conversa surgiu rápida e vigorosa, passando imediatamente à discussão sobre um dos livro. Ele falava apaixonadamente, ela ouvia-o e a sua alma expandia-se. Do livro, passaram inevitavelmente a uma discussão sobre crenças íntimas, muito subjectiva.
– Parece que é como se não tivesse importância, um a mais ou um a menos, dentro do todo... – disse ele.
– Não – respondeu ela gravemente, em dúvida.
– Eu costumava pensar assim quando um pardal caía.... e o mesmo em relação aos cabelos da cabeça...
– Sim – disse ela. – E agora?
– Agora penso que a raça dos pardais é importante, e não apenas um pardal: todo o meu cabelo, e não apenas um fio de cabelo.
– Sim – disse ela, pouco convencida.
– E as pessoas são importantes. Mas uma só não é assim tão importante. Vê, por exemplo, o William.
– Sim – disse ela, pensativa.
– Chamo a isso apenas uma perda – disse ele – Uma perda, nada mais.
– Sim – disse ela, com a voz sumida.
Ela acreditava que quanto mais pessoas houvesse, menos importância tinham. Mas ouvi-lo falar assim era para ela como um sopro de vida: como o primeiro sopro de um recém-nascido.
– Contudo – disse ele – creio que há um caminho certo a seguir... se o seguirmos está tudo bem... ou se andarmos perto. Mas se não o seguirmos, morreremos. Tenho a certeza de que o nosso William fez a escolha errada.
– E se seguirmos o curso das nossas vidas não morremos? – perguntou ela.
– Não, não morremos. É o nosso íntimo que nos aconselha a seguir um determinado caminho e não outro.
– Mas nós sabemos quando é que estamos a seguir o caminho certo? – perguntou ela.
– Claro! Eu pelo menos sei. Eu sei que estou a seguir o meu caminho.
– Sabes mesmo? – perguntou ela.
– Sim... tenho a certeza.
Ele tinha parado por baixo de um lampião para pensar. O seu impermeável luzia com a chuva. Ela olhou para a cara dele. Os seus olhos, tão certeiros e tão fixos, fitaram os dela. Ele era realmente determinado. Ela seguiu para casa com o coração em brasa.
Mas ele, quando deu meia volta para retroceder, logo a esqueceu, ao pensar que a mãe ficaria aborrecida ao saber que ele tinha ido até tão longe debaixo de chuva. Estugou o passo, sentindo-se porém exultante com o contacto com Miriam. A noite tinha-lhe trazido alguma satisfação.
– Queres tu dizer que levaste a Miriam Leivers a casa numa noite como esta? – perguntou a sua mãe, fitando-o subitamente, um minuto depois de ele ter entrado.
– Demorei-me muito tempo na biblioteca – argumentou Paul.
– Mas ela apareceu, não apareceu? – exclamou Mrs. Morel, calma e severa. Paul estremeceu.
– Ela fica sem nada para ler durante toda a semana, se não vier à biblioteca – disse ele.
– Não sei o que é que a mãe dela anda a fazer para a deixar arrostar com cerca de 10 milhas debaixo desta chuva torrencial.
– Não está chover muito – disse ele. – Nem por isso.
– Basta olhar para o teu impermeável e para as tuas botas – disse a mãe.
– Olhe o que eu lhe trouxe – disse ele, mas ela estava demasiado zangada para condescender.
Certa tarde de Verão, Miriam e Paul resolveram atravessar os campos, por Herod Farm, no regresso da biblioteca. Assim, eram só três milhas até Willey Farm. A erva segada brilhava com reflexos dourados e os botões de azedas ardiam em tons de carmim. A pouco e pouco, enquanto atravessavam o planalto, os tons dourados do ocaso deslizaram para vermelho, o vermelho para o carmim e, por fim, o azul glacial apagou o clarão.
Foram dar à estrada principal de Alfreton, que singrava branca entre os campos anoitecidos. Aí, Paul hesitou. Eram cerca de duas milhas até sua casa, e uma milha até à casa de Miriam. Olharam para a estrada, que corria sombria sob a luminosidade ténue de noroeste. No cimo do monte, Selby, com as suas casas despojadas e as suas torres mineiras, recortava-se no céu, pequenina, em negras silhuetas.
Ele consultou o relógio.
– Já são nove horas! – disse.
Ambos estavam relutantes em partir, abraçados aos seus livros.
– O bosque é tão bonito a esta hora... – disse ela. – Queria tanto que o visses.
Ele atravessou a estrada atrás dela, lentamente, aproximando-se da cancela branca.
– Eles fazem cá um banzé, se eu chego tarde – disse ele.
– Mas não estás a fazer nada de mal – contrapôs ela, impaciente. E ele seguiu-a através das pastagens retouçadas, à luz do lusco-fusco. Havia uma frescura no bosque, um aroma a folhas e a madressilva, e o crepúsculo. Caminharam em silêncio. A noite desceu, maravilhosa, entre a imensidão de troncos negros. Ele olhou em volta, expectante.
Ela queria mostrar-lhe uma roseira-brava que tinha descoberto, pois achara-a lindíssima. Porém, sentia que só depois de ele a ter visto ela seria capaz de a assimilar. Só ele poderia fazer com que a roseira fosse dela para sempre, imortal. Por isso não estava satisfeita.
O orvalho já era visível pelos caminhos. Do velho bosque de carvalhos elevava-se uma névoa e ele hesitou, questionando-se se a mancha branca seria a linha de bruma ou apenas candelárias-dos-jardins, formando uma pálida nuvem.
Assim que chegaram aos pinheiros, Miriam começou a ficar muito tensa e ansiosa. O seu arbusto podia ter desaparecido. Poderia não o encontrar. E queria tanto descobri-lo. Desejava, quase com paixão, ter Paul perto de si quando descobrisse as flores. A comunhão seria mútua, algo que a iria emocionar, algo de divino. Ele caminhava a seu lado em silêncio. Estavam muito próximos um do outro. Ela estremeceu e ele escutou-a, levemente ansioso.
Assim que chegaram ao limite da floresta, o céu era de madrepérola e a terra escurecia. Algures nos recantos mais afastados do pinheiral a madressilva exalava o seu aroma.
– Onde? – perguntou ele.
– Lá em baixo, no trilho do meio – murmurou ela, tremendo.
Mal acabaram de contornar a curva do atalho, ela parou. Olhou por momentos assustada para o espaço que se abria entre os pinheiros, não conseguindo discernir o que quer que fosse, pois a luz empalidecida tinha apagado a cor das coisas. Mas, finalmente, descobriu o seu arbusto.
– Oh! – exclamou ela, precipitando-se para ele.
Tudo estava sereno. O arbusto era alto e esparso, espraiando as suas silvas sobre um espinheiro próximo, e deixando pender os ramos longos sobre a relva, salpicando a escuridão de grandes estrelas brancas, imaculadas. As rosas brilhavam como botões de marfim, estrelas abertas na escuridão da folhagem, dos troncos e da relva. Paul e Miriam em silêncio, lado a lado, observavam. Uma a uma, convictas, as rosas inundaram-nos de brilho, parecendo atear fogueiras nas suas almas. O crepúsculo envolveu-os como fumo, não conseguindo, todavia, extinguir o fulgor das rosas.
Paul olhou Miriam nos olhos. Estava pálida e deleitada; a boca entreaberta e os olhos negros fitavam-no, muito abertos. O olhar dele parecia descer ao fundo dela. A alma de Miriam estremeceu, pois ansiava a comunhão. Ele, porém, virou-se para o lado, como se sofresse, e olhou para o arbusto.
– Parecem voar como borboletas, agitando-se – disse Paul.
Miriam olhou para as suas rosas. Eram brancas, algumas encurvadas e divinas, outras expandiam-se como em êxtase. A árvore era negra como a sombra. Ela estendeu a mão impulsivamente para as flores e, aproximando-se, tocou-as em adoração.
– Vamos embora – disse ele.
Pairava um perfume fresco de rosas cor-de-marfim, um perfume branco, virginal. Algo o fez sentir-se ansioso e prisioneiro. Caminharam ambos em silêncio.
– Até domingo – disse ele baixinho, e deixou-a; ela regressou a casa lentamente, com a alma enriquecida pela noite divinal. Ele cambaleou pelo atalho. Assim que saiu da floresta e entrou no prado, onde podia respirar, desatou a correr o mais depressa que podia. Era como se um delírio delicioso lhe percorresse as veias.
Sempre que saía com Miriam e se atrasava, sabia que a mãe se afligia e ficava preocupada, apesar de ele não perceber porquê. Assim que chegou a casa, atirando com o boné, a mãe olhou para o relógio. Tinha estado sentada a pensar, pois uma inflamação ocular impedia-a de ler. Imaginara Paul a ser arrastado pela rapariga. Ela não gostava da rapariga. «É uma daquelas que suga a alma de um homem, até ele ficar vazio», dizia de si para si, «e ele é daqueles simplórios que se deixa dominar. Ela nunca o deixará ser um homem, nunca!» Assim, enquanto ele estava com Miriam, ela revoltava-se cada vez mais.
Olhou para o relógio e disse friamente, visivelmente cansada:
– Foste muito longe esta noite.
A alma dele, ainda quente e fragilizada do contacto com a rapariga, contraiu-se.
– Levaste-a certamente a casa – prosseguiu a sua mãe.
Ele não ia responder. Mrs. Morel, examinando o filho de relance, constatou que trazia o cabelo transpirado da correria e ele, em resposta, franziu a testa pronunciadamente como era seu costume, ressentido.
– Ela deve ser maravilhosamente fascinante, pois não te consegues afastar dela, e até és capaz de correr oito milhas a esta hora da noite.
Paul sofria, balançando entre o encantamento dos momentos passados com Miriam e a constatação da aflição de sua mãe. Tinha pensado não dizer nada, recusar-se a responder. Porém, o seu coração não era tão gélido que o levasse a ignorar a mãe.
– Eu gosto de conversar com ela – respondeu irritado.
– E não há mais ninguém com quem possas conversar?
– A mãe não ia dizer nada, se eu tivesse saído com o Edgar.
– Sabes bem que dizia. Sempre que sais com alguém de lá, acho que é muito longe para andares por aí à noite, depois de vires de Nottingham... Além disso... – de repente, a sua voz adquiriu um tom de revoltado desdém – é repugnante ver duas crianças a namoriscar.
– Não é namoro – gritou ele.
– Não sei que outra coisa se lhe poderá chamar.
– Mas não é! Pensa que nos pomos a fazer coisas? Nós apenas conversamos.
– Só Deus sabe até quando e até onde isso irá parar – replicou ela, sarcástica.
Furioso, Paul deu um esticão nos atacadores das botas.
– Porque está tão zangada? – perguntou ele. – Apenas porque não gosta dela?
– Não é que não goste. Mas não suporto e nunca suportei ver crianças a namorar.
– Mas a mãe não se importa que a nossa Annie saia com o Jim Inger.
– Esses são mais conscientes do que vocês.
– Porquê?
– A nossa Annie não é dessas.
Paul não entendeu o alcance do reparo. Mas a mãe parecia cansada. Nunca mais fora a mesma depois da morte de William. E doíam-lhe os olhos.
– Bem – disse ele –, o campo é tão bonito.... Mr. Sleath perguntou por si e disse que tinha tido saudades suas. ... Já se sente melhor, mãe?
– Já devia era estar na cama há muito tempo.
– Mas a mãe também nunca se ia deitar antes de um quarto para as dez.
– Isso é que ia!
– Ah, velhota... agora diz qualquer coisa só por estar zangada comigo, não é?
Depois, Paul beijou aquela testa que conhecia tão bem: as marcas profundas entre as sobrancelhas, a massa de cabelo, agora grisalho e a inclinação das têmporas. A sua mão demorou-se no ombro dela após tê-la beijado e, em seguida, Paul encaminhou-se lentamente para a cama. Tinha esquecido Miriam; apenas se lembrava do cabelo da mãe, puxado para trás, deixando a descoberto uma testa alta, afectuosa. E, fosse pelo que fosse, via que ela estava magoada.
Quando voltou a encontrar-se com Miriam, disse-lhe:
– Não me deixes chegar atrasado hoje... o mais tardar até às dez horas. A minha mãe fica muito aborrecida.
Miriam inclinou a cabeça e reflectiu.
– Fica aborrecida porquê? – perguntou.
– Acha que não devo ficar fora até tão tarde, quando tenho de me levantar cedo no dia seguinte.
– Muito bem! – disse Miriam, com voz calma, mas não isenta de um leve tom de sarcasmo. Isso ofendeu-o, e ele voltou a chegar tarde a casa.
Que o amor começava a desabrochar entre Paul e Miriam era algo que nenhum deles estava preparado para aceitar. Ele achava-se sensato de mais para tais sentimentalismos, e ela demasiado importante. Ainda não tinham atingido a maturidade e a sua pujança psíquica estava muito atrás da física. Miriam era excessivamente sensível, como a mãe sempre tinha sido. A mais leve grosseria angustiava-a. Os irmãos, embora muito rudes, evitavam a vulgaridade nos diálogos. Era fora de casa que os homens discutiam todos os assuntos relativos à quinta. Contudo, e devido talvez aos constantes nascimentos e cruzamentos, actos naturais em qualquer quinta, Miriam revelava uma extrema hipersensibilidade a tais situações, e o sangue revolvia-se-lhe de repugnância à mais vaga sugestão a tais contactos. Paul seguia-lhe as pisadas, e a relação entre eles mantinha-se castamente imaculada. Não se podia sequer mencionar que a égua estava prenha.
Aos dezanove anos, Paul ganhava apenas vinte xelins por semana, mas era feliz. A sua pintura evoluía a contento, e a vida corria-lhe bem. Na Sexta-Feira Santa, organizou um passeio a Hemlock Stone. O grupo era formado por três rapazes da sua idade, Annie, Arthur, Miriam e Geoffrey. Arthur, agora aprendiz de electricista em Nottingham, tinha vindo a casa passar a Páscoa. Como era habitual, Morel levantara-se cedo e estava no pátio a assobiar e a serrar umas tábuas. Às sete da manhã, a família ouviu-o comprar arrufadas quentes à porta, e conversar animadamente com a garota que as vendia, tratando-a até por «minha querida». Apareceram depois mais alguns rapazitos também a vender arrufadas, mas ele mandou-os embora, dizendo-lhes que tinham sido «batidos» pela «cachopinha». Quando Mrs. Morel se levantou, toda a família dispersou. Era uma sorte para todos eles quando a mãe ficava até mais tarde na cama num dia de semana. Paul e Arthur podiam ficar a ler à vontade antes do pequeno-almoço e depois tomar a refeição sem terem de se lavar primeiro e sentar-se à mesa em mangas de camisa. Este era outro dos luxos dos feriados. A sala estava aquecida e toda a casa se libertava de preocupações e ansiedades.
Enquanto os rapazes liam, Mrs. Morel foi para o jardim. Viviam agora numa nova casa, uma casa velha, também em Scargill Street, perto da que tinham ocupado anteriormente e de onde tinham saído logo após a morte de William. Um grito de excitação chegou directamente do jardim:
– Paul... Paul... Vem cá ver uma coisa!
Era a voz da mãe. Paul atirou o livro para o lado e saiu. O jardim era muito comprido e terminava num campo cultivado. Estava um dia cinzento e frio, batido por um vento agreste vindo das bandas do Derbyshire. Dois campos mais adiante começava Bestwood, um emaranhado de telhados e casas de tijolo vermelho, de onde sobressaía a torre da igreja e o pináculo da capela paroquial. Para trás, sucediam-se florestas e colinas até aos picos cinzentos e esbatidos da serra de Pennine.
Paul pôs-se à procura da mãe. A cabeça dela despontou entre as groselheiras ainda tenras.
– Vem cá! – disse ela.
– Para quê? – perguntou ele.
– Vem cá para veres uma coisa!
Ela tinha estado a examinar os pequenos botões das groselheiras. Paul foi ao seu encontro.
– E pensar que, aqui onde estão, podia nunca ter dado com eles! – disse Mrs. Morel.
O filho colocou-se ao seu lado. Por debaixo da cerca, num pequeno canteiro, havia um emaranhado de folhas finas, como se nascidas de bolbos ainda imaturos, com três campainhas em flor. Mrs. Morel apontou para as três florinhas muito azuis.
– Olha para elas! – exclamou. – Estava eu muito entretida a examinar as groselheiras, quando pensei cá com os meus botões, «Está ali qualquer coisa muito azul .... será o resto de algum saco de açúcar?» E olha só! Qual saco de açúcar! Três glórias-da-neve, e tão bonitas! Mas de onde é que teriam vindo?
– Não sei – disse Paul.
– São mesmo uma maravilha! E eu que pensava que conhecia todas as ervas e folhas neste jardim. E não é que estas se deram bem...? Repara que é a groselheira que as protege. Não são debicadas nem pisadas!
Paul baixou-se e levantou as corolas das pequenas flores azuis em forma de campainha.
– Têm uma cor magnífica!
– Têm, não têm? – exclamou a mãe. – Suponho que vêm da Suíça, onde dizem que há coisas maravilhosas. Imagina-as só em contraste com a neve! Mas como é que elas terão vindo aqui parar? O vento não as podia ter trazido, pois não?
Paul lembrou-se então de ter plantado ali uma porção de bolbos para amadurecerem.
– E não me disseste nada – disse a mãe.
– Pois não, estava a pensar deixá-las aqui só até terem medrado.
– Estás a ver?! E eu podia não as ter visto. Nunca em toda a minha vida tive uma glória-da-neve no jardim.
Mrs. Morel estava muito excitada e orgulhosa. O jardim era para ela uma fonte de infinito prazer. Paul dava graças por a mãe viver numa casa com um grande jardim que se estendia até ao campo. Todas as manhãs, após o pequeno-almoço, ela saía e deambulava feliz pelo jardim. E, na verdade, conhecia todas as ervas e folhas no seu jardim.
Todos compareceram para o tal passeio. Prepararam um farnel e o grupo partiu feliz e animado: debruçaram-se do alto do muro da azenha; atiraram papéis para dentro de água numa das extremidades do túnel e ficaram a vê-los sair pela outra; pararam no meio da passagem aérea para peões da estação de Boathouse, fascinados com o brilho gélido dos carris.
– Vocês deviam era ver o «foguete» que passa aqui às seis e meia – disse Leonard, cujo pai era guarda de uma passagem de nível. – Nem sequer o ouvem zunir, rapazes! – E o pequeno grupo seguiu com o olhar nos carris que conduziam a Londres e os que conduziam à Escócia, deixando-se inebriar por estes dois lugares mágicos.
Em Ilkeston, os mineiros aguardavam em grupos a abertura das tabernas. Era uma cidadezinha de ócio e divertimento. Em Stanton Gate, a oficina de fundição ardia incandescente. Eles iam conversando animadamente sobre tudo o que viam. Em Trowell, atravessaram a fronteira do Derbyshire para o Nottinghamshire, e chegaram a Hemlock Stone à hora de almoço. O campo povoava-se de pessoas vindas de Nottingham e Ilkeston.
Estavam à espera de encontrar um monumento digno e respeitável, mas descobriram apenas uma pedra, pequena e rugosa, semelhante a um cepo torcido, ou a um cogumelo putrefacto, despontando pateticamente no meio do descampado. Leonard e Dick gravaram logo as suas iniciais – L.W. e R.P. – na velha pedra de arenito vermelho, mas Paul não o fez, pois tinha lido no jornal críticas mordazes aos gravadores de iniciais, que não encontravam melhor caminho para a imortalidade. E, como não podia deixar de ser, todos treparam à pedra para contemplarem o panorama.
Em baixo, nos campos, rapazes e raparigas, todos eles operários e operárias, comiam ou brincavam. Mais além avistava-se o jardim de um velho solar, cercado de teixos, moitas frondosas e cercaduras de flores amarelas de açafrão.
– Olha que jardim tão tranquilo – disse Paul para Miriam.
Ela contemplou os teixos negros e os crocos amarelos e olhou para ele agradecida. Quando estavam acompanhados por outras pessoas, ele parecia não lhe pertencer; era diferente, não era aquele Paul que compreendia o mais leve estremecimento da sua alma misteriosa, mas uma outra pessoa, que falava uma linguagem diferente da sua. Ah, como isso a magoava e lhe enfraquecia a nitidez da percepção! Só se sentia reviver quando ele vinha ao seu encontro sem esse outro Eu de casta inferior. Mas agora ele tinha-lhe pedido para olhar o jardim, tentando desta forma chegar até ela. Sem paciência para aturar o grupo, Miriam entregou-se à contemplação daquele jardim tão calmo, rodeado de tufos de açafrão amarelo. Uma sensação de quietude, quase de êxtase, envolveu-a. Era como se estivesse sozinha com ele no jardim.
Mas ele abandonou-a novamente e foi juntar-se ao grupo. Em breve iniciaram o regresso a casa. Miriam deixou-se ficar para trás, sozinha. Não se enquadrava. Raramente se relacionava com alguém: na verdade, a sua grande amiga, companheira e amante era a natureza. Viu o sol declinar languidamente. Nas sebes frias e sombrias luziam algumas folhas vermelhas. Sem pressa, detinha-se para as colher com ternura, apaixonadamente. Os seus dedos acariciavam as folhas com amor e o coração incendiava-se-lhe de paixão.
De súbito, apercebeu-se de que estava sozinha numa estrada desconhecida e apressou-se. Depois de uma curva, encontrou Paul debruçado sobre qualquer coisa que ela não conseguia ver, mas que ele observava atentamente, aplicando-se com paciência, intento, e até algum desespero. Miriam hesitou em aproximar-se.
Ele continuava concentrado em plena estrada. Na tarde cinzenta, tão desprovida de cor, um fio dourado de sol, ao longe, parecia fazê-lo sobressair em sombrio baixo-relevo. Ela contemplou-o, delgado e firme, e era como se ele lhe tivesse sido oferecido pelo sol. Uma dor profunda penetrou-a e soube então que tinha de o amar. Tinha-o finalmente descoberto, descoberto nele uma rara potencialidade, descoberto a sua solidão. Tremeu emocionada, como se estivesse perante uma «Anunciação», e aproximou-se devagar.
Ele, finalmente, levantou os olhos.
– Oh! – exclamou, agradecido. – Esperaste por mim!
Ela descobriu uma sombra profunda nos seus olhos.
– O que aconteceu? – perguntou.
– A mola partiu-se.
E ele mostrou-lhe o seu chapéu-de-chuva danificado. Subitamente, um pouco envergonhada, ela apercebeu-se de que não fora ele quem estragara o chapéu-de-chuva, mas que o responsável era Geoffrey.
– Afinal era um chapéu-de-chuva velho, não era? – disse ela. Miriam não entendia a razão de tão exagerado zelo, pois ele não era geralmente de se prender com ninharias.
– Mas este era o chapéu-de-chuva do William... e a minha mãe vai ter de saber – disse ele baixinho, tentando pacientemente consertar o chapéu-de-chuva. Estas palavras rasgaram-na como uma lâmina. Eram a confirmação da imagem que tinha dele! Olhou-o. Havia nele, porém, uma certa reserva, e ela não se atreveu a confortá-lo, nem mesmo a falar-lhe com meiguice.
– Vamos – disse ele –, não consigo arranjá-lo.
E seguiram em silêncio estrada fora.
Iam eles nessa mesma tarde a passar em Nether Green, por entre o arvoredo, quando ele lhe confidenciou, num tom algo irritado, como se lutando para se autoconvencer.
– Sabes – disse com esforço –, se uma pessoa ama, a outra também ama.
– Ah! – exclamou ela. – A minha mãe disse-me o mesmo quando eu era pequena: «O amor gera o amor.»
– Sim... algo parecido com isso... penso que deve ser isso.
– Espero que sim... porque, se não fosse assim, o amor seria algo de terrível – acrescentou ela.
– Mas é isso que acontece... pelo menos com a maioria das pessoas – respondeu ele.
E Miriam pensando que ele estivesse mais animado, sentiu-se fortalecida. Tinha considerado aquele encontro fortuito na vereda como uma revelação. E este diálogo ficou gravado na sua mente como palavra de lei.
Agora, estava com ele e do lado dele. Quando, pela mesma altura, Paul ofendeu a família dela com um insulto arrogante, ela apoiou-o e achou que ele tinha razão.
Sonhava agora com ele de uma forma viva e inesquecível. Mais tarde, os sonhos voltaram, tendo evoluído para estados psicológicos mais subtis.
Na segunda-feira de Páscoa, o mesmo grupo fez uma excursão até ao solar de Wingfield. Foi um momento de grande excitação para Miriam ao apanhar o comboio em Lethey Bridge, por entre o alvoroço da multidão num dia feriado. Saíram do comboio em Alfreton. Paul estava interessado na rua e nos mineiros a passearem os seus cães. Aquela era uma nova raça de mineiros. Miriam não se sentiu viver senão quando chegaram à igreja. Todos se mostravam algo acanhados para entrarem na igreja com os sacos da merenda, pois tinham receio de serem expulsos. Leonard, um rapaz magro e brincalhão, foi o primeiro a entrar, e Paul, que teria preferido morrer a ser mandado embora, foi o último. A igreja estava enfeitada para a Páscoa: centenas de narcisos brancos pareciam desabrochar da pia baptismal, e a luminosidade era difusa e colorida, filtrada pelos vitrais e animada por um aroma subtil a lírios e narcisos. A alma de Miriam inflamou-se nesta atmosfera. Paul, sensível à envolvência do local, receava não saber comportar-se à altura. Miriam voltou-se para ele. Ele correspondeu. Estavam juntos. Paul não quis passar para lá da divisória da comunhão, e ela apreciou o seu gesto. A sua alma elevou-se em orações ao lado dele. Paul sentia um estranho fascínio por lugares religiosos e obscuros. Todo o seu misticismo latente palpitava de vida. Ela sentia-se atraída por ele. Ele estava nela, como uma oração.
No adro da igreja, os narcisos e os junquilhos já tinham desabrochado e brilhavam ao sol como se flutuassem. As ovelhas, no parque, faziam vibrar o ar com os seus múltiplos e ténues balidos. Leonard e Dick entraram numa taberna para tomar uma bebida, para grande tristeza de Paul e Annie.
– Para que entraram na taberna? – perguntou Paul aborrecido.
– Bem – disse Dick, sorrindo –, só lá fomos beber uma limonada.
– Podiam muito bem ter ido à venda – disse Annie.
– À venda! – exclamou Leonard. – Estão a imaginar-nos... nós... ingleses de gema, a beber limonada na venda?
– Não – respondeu Paul. – Mas imagino-te com a tua enorme caneca de cerveja... inglesa de gema.
– E que mal te faz a minha caneca? – disse Leonard, limpando a boca, por sinal enorme.
Miriam só raramente falava com os outros rapazes. Tinham sido malcriados com ela uma vez e, desde essa altura, mantinha-se geralmente calada.
Passava do meio-dia quando subiram a ladeira íngreme que conduzia ao solar. Tudo em redor brilhava com suavidade, à luz de um sol quente, intenso e estimulante. As celidónias e as violetas estavam em flor. A natureza transbordava de felicidade. Tudo era perfeito: o esplendor da hera, os tons suaves e cinzentos, atmosféricos, dos muros do castelo, a harmonia que rodeava as ruínas.
O solar era de pedra dura cinzento-pálido, e as paredes exteriores brancas e repousantes. Os jovens estavam extasiados. Sentiam-se excitados, quase receosos de que o prazer da exploração destas ruínas lhes fosse negado. No primeiro pátio, situado entre muros altos e derrubados, havia algumas carroças com os varais abandonados pelo chão, e os aros das rodas cintilavam em tons vermelho-dourado de ferrugem. A serenidade era total.
Todos se mostravam desejosos de pagarem os seis dinheiros da entrada, posto o que transpuseram a medo pelo arco harmonioso e bem lançado que dava acesso ao pátio interior. Mostravam-se tímidos. No local onde antes se erguera o muro, florescia agora um velho espinheiro. Todas as espécies de espaços abertos e salas em ruínas se abriam à sua volta, na penumbra.
– Digam lá se isto não é uma maravilha? – exclamou Leonard.
– É mesmo – acrescentou Paul.
E passaram de imediato à exploração.
– Eh, malta – chamou Leonard. – Venham ver o forno que eu descobri!
E, sem perder tempo, Leonard entrou pelo buraco. Dick e Paul entraram atrás dele e sentaram-se os três no chão a gritar, como se estivessem nas entranhas da terra.
– Aqui dava bem para assar um boi, ou até dois – disse Nick.
– E um veado ou dois – acrescentou Paul.
– E um burro ou dois – rematou Leonard, pondo-se a zurrar muito alto, enquanto os outros dois lhe batiam.
Paul voltou a sair para o ar livre e a exploração continuou. Finalmente, encontraram Geoffrey e as raparigas. Geoffrey estava a comer.
– Parece que tá na hora de dar ao dente – disse Leonard.
– Eu já m’adiantei – respondeu Geoffrey, que não fizera outra coisa desde que o grupo partira.
– Onde é que nos podemos sentar? – perguntou Miriam.
– Vamos para a sala dos banquetes – alvitrou Paul.
– Como é que sabes que aquela é a sala dos banquetes? – perguntou Leonard.
– Vi numa pintura.
– Pois então, toca a sentar – disse Leonard.
No enorme salão em ruínas, com as paredes frias erguidas para o céu azul, lá se sentaram todos a comer ao sol, observando os pássaros que chilreavam pousados no florão da ampla janela.
– Então, D. Cogumelo – disse Leonard, virando-se para Paul –, sois servido desta empada de veado?
– Mil agradecimentos, D. Trinca-Espinhas – respondeu Paul. – Comerei antes esta coxinha de pão com queijo.
– Por obséquio – disse Geoffrey –, podeis apertar-vos mais, pra eu me poder sentar?
– Perdoai, Insigne Cavaleiro – respondeu Leonard. – Mas será tão grande assim vossa gordura?
– Paul – disse Annie –, tens aqui o teu ovo cozido.
– Ilustres cortesãos, deleitamo-nos hoje com um festim de ovos de aves fabulosas, postos pela nossa única fénix, e ostentando todos eles o nosso brasão, tal como neles foi gravado pelas nossas aves mais colaborantes – disse Paul.
– Ou seja... um montinho de porcaria – disse Leonard.
– E direi mais... Um brasão que é o nosso orgulho desde há muitas gerações, ámen! – disse Annie.
– Oh, sublime insígnia! – rematou Paul, fazendo Miriam desatar a rir.
Depois do almoço partiram mais uma vez à exploração das ruínas. Desta feita, as raparigas acompanharam os rapazes, que assumiram o papel de guias e professores. Uma torre alta e deveras periclitante surgiu diante dos seus olhos ao virarem uma esquina, e os rapazes logo informaram que Mary, rainha da Escócia, tinha sido ali encarcerada.
– Imaginem a rainha a subir por aqui acima... – disse Miriam em voz baixa, enquanto subia as escadas tortuosas.
– Isso, se ela se conseguisse levantar – respondeu Paul. – Sofria muito do reumatismo. Aposto que a tratavam o pior possível.
– E não achas que merecia? – perguntou Miriam.
– Acho que não. Ela era apenas uma pessoa jovial.
Continuaram a subir a escada de caracol. Uma rajada agreste entrou pelas seteiras e rodopiou pelo vão das escadas, levantando a saia de Miriam em balão, para seu grande embaraço, até que Paul agarrou na barra do vestido e o puxou para baixo. Fê-lo com destreza e simplicidade, como se lhe apanhasse uma luva do chão. Ela recordaria para sempre este momento.
A hera pendia frondosa, vetusta e bela, em torno do torreão em ruínas. Havia também algumas cravinas esparsas, com os seus botões tristes e pálidos. Miriam quis debruçar-se para apanhar um raminho de hera, mas Paul não deixou, ficando ela atrás dele, a receber um a um cada raminho que ele lhe entregava, num gesto do mais genuíno cavalheirismo. A torre parecia ondular ao vento. Do alto avistavam-se milhas e milhas de terreno arborizado e terreno de pastagens.
A cripta subjacente ao solar era muito bela e em perfeito estado de conservação. Paul não perdeu a oportunidade de a desenhar. Miriam ficou junto dele, a pensar em Mary, rainha da Escócia, fitando os montes de onde não vinha qualquer ajuda, com os seus olhos exaustos e desesperados, que não compreendiam a miséria; imaginou-a também sentada naquela cripta, escutando a história de um Deus tão frio quanto o lugar onde se encontrava.
Puseram-se de novo a caminho, exultantes, lançando um último olhar àquele solar a que se sentiam presos e que se erguia tão nítido e imponente no alto da colina.
– Imagina que aquela quinta era tua – disse Paul a Miriam.
– Sim!!
– Não era maravilhoso eu ir lá visitar-te?
Encontravam-se agora num descampado com muros de pedra, de que ele tanto gostava, e que, embora só a algumas milhas de casa, parecia tão estranho a Miriam. O grupo seguia agora disperso. Ao atravessarem um extenso prado, muito íngreme, com o sol por trás, descendo por um caminho salpicado de incontáveis pontinhos cintilantes, Paul entrelaçou os dedos no saco de rede de Miriam, que logo sentiu Annie atrás de si, atenta e ciumenta. Mas o prado estava banhado numa luz gloriosa e o caminho luzia como uma jóia, e era tão raro ele dar-lhe algum sinal... Conservou por isso os dedos muito quietos entre as cordas do saco, aflorando os dedos dele. E o mundo dourou-se inteiro, como se numa visão.
Finalmente, chegaram à vilazinha isolada e pardacenta de Crich, situada a grande altura. Atrás da vila ficava o famoso Crich Stand, que Paul avistava do jardim de sua casa. O grupo estugou o passo. Grandes extensões de terrenos estendiam-se em baixo a toda a volta. Os rapazes estavam ansiosos por chegarem ao topo da colina, que era encimada por um cabeço redondo, de que metade já se tinha desmoronado, e no topo do qual se erguia um monumento antigo, grotesco e atarracado, usado noutros tempos para enviar sinais para as planícies do Nottinghamshire e do Leicestershire.
O vento soprava forte, lá no alto, naquele local tão exposto, e a única forma de se estar protegido era ser pregado pelo vento à parede da torre. Aos seus pés abria-se o precipício, de onde se extraía a pedra calcária. Em baixo, reinava uma confusão de colinas e pequenos povoados: Matlock, Ambergate, Stoney Middleton. Os rapazes estavam ansiosos por descortinarem a Igreja de Bestwood, que ficava muito distante, no meio da floresta, um pouco para a esquerda. Mas ficaram tristes ao verem que a igreja parecia erguer-se numa planície – as colinas do Derbyshire apagavam-se na monotonia das terras baixas que se estendiam para sul.
Miriam estava um pouco assustada com o vento, mas os rapazes estavam a gostar. Continuaram a caminhada, calcorreando milhas e milhas, até Whatstandwell. Todos estavam esfomeados, pois já tinham devorado a comida toda que levavam e já lhes restava pouco dinheiro para regressarem a casa. No entanto, ainda conseguiram arranjar uma broa e um pão de passas, que cortaram em fatias finas com os canivetes, sentando-se a comer num muro, perto da ponte onde o rio Derwent corria límpido, ao som do chiar dos freios do comboio em Matlock, perto da estalagem.
Paul estava pálido de cansaço. Tinha sido o chefe do grupo durante todo o dia, e agora estava morto de cansaço. Miriam, apercebendo-se disso, manteve-se junto dele, e Paul entregou-se à sua guarda.
Tiveram de esperar uma hora na estação de Ambergate. Os comboios passavam lotados com excursionistas que regressavam a Manchester, Birmingham e Londres.
– Também podíamos ir para lá... as pessoas facilmente pensariam que íamos para muito longe – disse Paul.
Chegaram a casa bastante tarde. No caminho de regresso a casa, com Geoffrey, Miriam viu a lua nascer redonda, rubra e velada, e sentiu-se realizada interiormente.
Miriam tinha uma irmã mais velha, Agatha, que era professora. A hostilidade entre as duas irmãs era notória. Miriam considerava Agatha uma pessoa demasiado mundana e o seu sonho era ser também professora primária.
Um sábado à tarde, Agatha e Miriam estavam a vestir-se no primeiro andar. O quarto delas ficava por cima do estábulo. Era um quarto de tectos baixos, não muito grande e de paredes nuas. Miriam tinha pregado na parede uma reprodução da Santa Catarina, de Veronese. Fascinava-a aquela mulher, sentada na janela a sonhar. As suas janelas eram demasiado pequenas para lá se poder sentar. Todavia, a da frente estava coberta de madressilva e hera americana, e de lá avistavam-se as copas do bosque de carvalhos, por detrás do quintal, enquanto a minúscula janela traseira, pouco maior do que um lenço, não passava de uma fresta voltada para oriente, para a aurora que se acendia atrás das colinas arredondadas que ela tanto amava.
As duas irmãs não falavam muito uma com a outra. Agatha, bonita, baixa e determinada, tinha-se revoltado contra a atmosfera do lar e contra a doutrina do «dar a outra face». Enfrentava agora o mundo exterior, lutando para se tornar independente. Insistia nos valores da cultura, nas aparências, nas boas maneiras, na posição social, tudo coisas que Miriam de bom grado teria ignorado.
Quando Paul chegou, ambas preferiram ficar invisíveis lá em cima, para poderem descer as escadas a correr, abrirem a portinhola do fundo das escadas e verem-no entrar, ansioso por encontrá-las. Miriam tentava desesperadamente enfiar pela cabeça o rosário que ele lhe tinha oferecido, e que ficara preso no fino emaranhado dos seus cabelos. Finalmente, conseguiu colocá-lo, e as contas de madeira, castanho-avermelhado, assentavam lindamente no seu pescoço fresco e mate. Era uma rapariga bem lançada e muito bonita. Contudo, só conseguia ver uma parcela do seu corpo de cada vez no pequeno espelho pregado na parede caiada de branco. Agatha tinha comprado um espelho só para ela, com o tamanho certo, que encostava à parede sempre que precisava. Miriam estava perto da janela. De repente, escutou o estalido bem conhecido do cadeado e viu Paul a abrir a cancela com um pontapé, entrando no pátio com a bicicleta. Ele olhou para cima e ela escondeu-se. Paul avançava com indiferença, e a bicicleta acompanhava-o como se fosse um objecto animado.
– O Paul já chegou! – exclamou Miriam.
– Não estás contente? – disse Agatha, evidenciando sarcasmo.
Miriam estava ainda surpresa e perplexa.
– Então, estás ou não estás? – insistiu a outra.
– Estou, mas não quero que ele perceba e pense que eu estava à espera.
Miriam estava perplexa. Ouviu-o meter a bicicleta no estábulo e falar com Jimmy, um cavalo decrépito que tinha trabalhado nas minas.
– Atão, Jimmy, meu amigo, como vai isso? Velho e cansado, hem? Pois é, é uma pena, amigo!
Escutou o som da corda a roçar na argola, quando o cavalo levantou a cabeça às carícias do rapaz. Como ela gostava de o ouvir quando ele pensava que o cavalo estava ali para o escutar. Porém, havia uma serpente no seu Éden. Ela procurava fervorosamente descobrir dentro si se amava Paul Morel. Sentia que poderia haver algo de errado nesse impulso. Enredada em sentimentos confusos, receava desejá-lo e condenava-se por isso. E logo a penetrou uma dor intensa, de vergonha, e todo o seu ser se contraiu num espasmo de tortura. Desejaria ela Paul Morel, e saberia ele que ela o desejava? Que subtil infâmia a ameaçava! E sentiu a alma enleada em nós de vergonha.
Agatha vestiu-se primeiro e desceu rapidamente para o rés-do--chão. Miriam ouviu-a cumprimentar o rapaz num tom jovial; conhecia bem o brilho dos olhos da irmã quando saudava alguém naquele tom. Ela própria se teria sentido corajosa por tê-lo cumprimentado daquela forma. Contudo, sentia dentro da alma a auto-flagelação de o desejar, aliada a um sentimento de tortura. Em perplexa amargura, ajoelhou-se e rezou:
– Senhor, não permitas que eu ame o Paul Morel. Afasta de mim esse sentimento, se achares que eu não devo amá-lo.
Algo de estranho a fez interromper a oração. Levantou a cabeça e reflectiu. Como é que amá-lo poderia ser errado? O amor era uma dádiva de Deus e, no entanto, causava-lhe vergonha. Era por ele, por Paul Morel, que a sentia. Mas esse não era assunto que lhe dissesse respeito, era só entre ela e Deus. Tinha de fazer o sacrifício, um sacrifício por Deus e não por Paul Morel ou por si mesma. Passados alguns minutos, escondeu a cara na almofada e disse:
– Meu Deus, se é Tua vontade que eu o ame, então submeto-me, como Cristo se submeteu e morreu pelas almas dos pecadores. Faz com que eu o ame fervorosamente, pois ele é Teu filho.
Permaneceu de joelhos por mais alguns instantes, serena, mas profundamente emocionada, com o cabelo negro espalhado sobre os quadrados da colcha de retalhos, vermelhos uns, outros com raminhos de alfazema. Rezar era algo de quase essencial para ela. Depois, caía naquele arrebatamento de auto-sacrifício, identificando-se com um Deus que fora sacrificado, acto que representa para tantas almas humanas a sua bênção mais sublime.
Quando Miriam desceu, Paul estava recostado no cadeirão, em acesa discussão com Agatha, que ridicularizava uma pequena pintura que ele tinha trazido para lhe mostrar. Miriam olhou-os e fugiu à sua frivolidade, indo para a sala de estar para ficar sozinha.
A hora do chá chegou sem que ela tivesse tido possibilidade de falar com Paul; mostrava-se tão distante que ele pensava tê-la ofendido.
Miriam quebrou a rotina de ir todas as terças-feiras à tardinha à biblioteca de Bestwood. Depois de se ter encontrado regularmente com Paul durante toda a Primavera, um número de incidentes insignificantes e pequenos reparos vindos da família levaram-na a aperceber-se das suas atitudes, e decidiu pôr fim às saídas. Assim, numa bela tarde, informou Paul de que não poderia voltar a ir ter a casa dele às terças-feiras à tarde.
– Porquê? – perguntou ele, com brusquidão.
– Por nada. Porque acho melhor assim.
– Muito bem.
– Mas... – gaguejou ela – ... se quiseres estar comigo, podemos ir juntos.
– E encontramo-nos onde?
– Algures... onde tu quiseres.
– Não te quero encontrar em lado nenhum. Não compreendo porque é que não podes continuar a vir buscar-me. Mas se não vieres, não quero encontrar-me contigo.
Assim, as terças-feiras à tarde, esses dias que tinham sido tão especiais para ela e para ele, terminaram. E Paul passou a ocupar esse tempo a trabalhar. Mrs. Morel viu com bons olhos esta decisão.
Paul não aceitava que fossem namorados. A intimidade entre eles tinha sido mantida ao nível do abstracto, era um assunto da alma; visto não passar de um conceito e de uma luta exaustiva ao nível da consciência, ele via nela apenas uma amizade platónica e negava peremptoriamente a existência de algo mais. Miriam permanecia em silêncio, ou então concordava sem discutir. E ele sentia-se um idiota, pois não entendia o que se passava no seu íntimo. Através de um acordo tácito, ignoravam os reparos e as insinuações das pessoas conhecidas.
– Não somos namorados, mas apenas amigos – disse-lhe ele. – Nós sabemos que é assim. Deixa-os falar. Não importa o que dizem.
Por vezes, quando caminhavam juntos, ela metia o braço timidamente no dele. Mas ele retraía-se sempre, e ela sabia-o, o que dava lugar a um conflito violento. Com Miriam, Paul sentia-se sempre no mais alto nível de abstracção, e a sua chama de amor natural transformava-se em energia mental. E ela aceitava-o assim. Se ele estivesse bem-disposto e, como ela dizia, brincalhão, ela aguardava que ele voltasse ao normal, que ele se transformasse, e o visse a lutar de novo consigo mesmo, empolgado, apaixonado, tentando compreender a situação. Nesta paixão pela compreensão, as suas almas tocavam-se e ele era totalmente dela. Todavia, tinha de se abstrair primeiro.
Assim, ela dar-lhe o braço era para ele quase uma tortura. A sua consciência parecia desintegrar-se. A parte do corpo onde ela lhe tocava ardia com a fricção. Era uma batalha mortal para ambos e por isso ele a tratava com crueldade.
Uma tardinha, nos meados do Verão, Miriam foi chamá-lo a casa, chegando transpirada devido à subida. Paul estava sozinho na cozinha e ouviam-se os passos da mãe no primeiro andar.
– Vem, vou mostrar-te as ervilhas-de-cheiro – disse ele.
Foram até ao jardim. O céu, por detrás da cidade e da igreja, era vermelho-alaranjado, e o jardim inundava-se de uma luminosidade estranha e quente que dava sentido a cada folha. Paul avançou pelo estreito carreiro ladeado de ervilhas-de-cheiro, colhendo flores creme e azul-pálido por aqui e por ali. Miriam seguia-o, aspirando as fragrâncias. As flores atraíam-na com tal intensidade que ela sentia necessidade de as tornar uma parte de si mesma. Quando se baixava e cheirava uma flor, era como se ambas se amassem uma à outra. Paul detestava vê-la fazer isso. Ela expunha-se demasiado naquela sua atitude, até mesmo intimamente.
Assim que o ramo ficou de bom tamanho, regressaram a casa. Ele escutou por momentos os passos calmos da mãe no andar de cima e, depois, disse:
– Vem cá, deixa-me enfeitar-te com elas.
E espetou duas ou três de cada vez à volta do decote do vestido, recuando em seguida para admirar o efeito.
– Sabes – disse ele, tirando o alfinete da boca – a mulher devia colocar sempre as flores em frente ao espelho.
Miriam sorriu. Para ela, as flores deviam ser colocadas no vestido sem qualquer preocupação. Se Paul se queria dar ao trabalho de lhe espetar as flores no vestido com rigor, isso era lá com ele.
Paul ficou muito ofendido com a gargalhada que ela deu.
– Algumas mulheres fazem-no.... as que são como devem ser – disse ele.
Miriam sorriu novamente, mas desta vez melancólica, por ele a ter misturado com as mulheres em geral. Teria ignorado a afronta, se tivesse partido de outro homem qualquer. Mas, vinda dele, magoava-a.
Estava ele a terminar o arranjo de flores quando ouviu os passos da mãe nas escadas. Espetou o último alfinete à pressa e afastou-se.
– Não deixes que a minha mãe perceba – disse ele.
Miriam pegou nos livros e ficou à entrada da porta, olhando desapontada para o belíssimo pôr do Sol. Não tornaria a vir a casa de Paul, disse ela.
– Boa tarde, Mrs. Morel – cumprimentou-a Miriam, respeitosamente. As suas palavras soaram como se ela não tivesse o direito de estar ali.
– Ah, és tu, Miriam! – respondeu Mrs. Morel friamente.
Paul insistia em que todos aceitassem a sua amizade com a rapariga, e Mrs. Morel era demasiado esperta para demonstrar abertamente qualquer relutância.
Só quando ele fez vinte anos é que a sua família teve possibilidades económicas para ir de férias. Desde que casara, Mrs. Morel nunca tinha ido de férias, excepto para visitar a irmã. Finalmente, Paul tinha conseguido juntar dinheiro suficiente para levar a família de férias. O grupo era o seguinte: alguns amigos de Annie, um amigo de Paul, um rapaz do escritório onde Paul tinha estado anteriormente e Miriam.
A reserva dos quartos provocou grande alarido. Paul e a mãe debateram várias vezes o assunto. Queriam uma casinha rústica mobilada para duas semanas. Ela achava que uma semana seria suficiente, mas ele insistia em duas. Paul saiu logo de manhã, antes de o correio chegar. Assim, quando voltou, as primeiras palavras da mãe foram:
– Paul, sabes uma coisa... aquela espertalhona de Skegness quer só quatro guinéus por semana por aquele seu barraco miserável.
– Então, vai ter muito de esperar – disse Paul.
– Também acho – respondeu a sua mãe, indignada. Nessa mesma noite, Paul escreveu outra carta. Receberam finalmente resposta de Mablethorpe – uma casinha que preenchia os seus desejos, por trinta xelins por semana. Houve uma explosão de alegria. Paul estava radiante pela mãe. Agora sim, ela ia ter umas verdadeiras férias. À noite, ficavam sentados a imaginar como seriam. Entretanto, chegaram Annie, Leonard, Alice e Kitty. Havia grande alegria e expectativa. Paul contou a Miriam. Ela pareceu feliz, mas comedida. Porém, o lar dos Morels vibrava de excitação.
CONTINUA
A cozinha era muito pequena e esquinada. A quinta tinha sido inicialmente o casebre de um jornaleiro, e a mobília estava velha e gasta. Mas Paul gostava da casa; gostava da serapilheira que substituía o tapete da chaminé e daquele vão patusco por baixo das escadas, e do postigo que se abria ao fundo e através do qual, se se curvasse, podia ver as ameixoeiras do jardim das traseiras e os graciosos cabeços arredondados que se recortavam à distância.
– Não te queres deitar? – disse Mrs. Leivers.
– Oh, não... não estou cansado – respondeu Paul. – É maravilhoso andar lá por fora, não é? Vi um abrunheiro em flor e muitas celidónias. Estou tão feliz por estar sol.
– Queres comer ou beber alguma coisa?
– Não, obrigada.
– Como está a tua mãe?
– Penso que se sente cansada... tem andado muito ocupada. Talvez vá em breve para Skegness comigo. Assim, terá oportunidade de descansar. Quem me dera que isso aconteça.
– Sim – respondeu Mrs. Leivers. – É um milagre que ela não esteja doente.
Miriam andava de um lado para o outro a preparar o jantar. Paul observava tudo o que se passava. As suas faces estavam pálidas e magras, mas os olhos continuavam, como sempre, rápidos e vivos. Ia observando os movimentos estranhos, quase rapsódicos, da rapariga, levando um tacho de guisado para o forno ou vigiando a panela. A atmosfera de sua casa era diferente, lá tudo parecia vulgar. Quando lá fora Mr. Leivers gritou com o cavalo, que se preparava para comer as roseiras no jardim, a rapariga assustou-se e olhou em volta com os seus olhos muito negros, como se algo tivesse vindo perturbar o seu mundo. Sentia-se o silêncio dentro e fora de casa. Miriam parecia estar a viver um conto de fadas, onde era uma donzela cativa e o seu espírito vagueava por uma terra distante e mágica. E a sua túnica azul, velha e desbotada, e as botas já muito gastas, pareciam os andrajos românticos da mendiga do Rei Cophetua.
Subitamente, sentiu os olhos dele, azuis e penetrantes, devorá-la. No mesmo instante as suas botas gastas e o seu velho vestido puído magoaram-na. Lamentava profundamente que ele estivesse a ver tudo. Pois se ele até sabia que a meia dela não estava completamente esticada. Dirigiu-se para a copa com as faces ruborizadas. Mais tarde, as mãos tremiam-lhe levemente durante as tarefas domésticas, quase deixando cair tudo aquilo em que pegava. Quando o seu sonho interior era abalado, o seu corpo estremecia com a trepidação. Lamentava profundamente que ele visse tanta coisa.
Mrs. Leivers sentou-se e conversou durante algum tempo com o rapaz, embora tivesse o trabalho à espera. Era todavia demasiado educada para o deixar sozinho. A certa altura, pediu licença e levantou-se. Daí a pouco olhou para a panela:
– Miriam, querida! – chamou. – As batatas estão sem água!
Miriam respondeu como se algum bicho lhe tivesse mordido.
– E depois, mãe? – exclamou ela.
– Não seria grave se eu não tas tivesse confiado – disse a mãe. – E espreitou para dentro da panela.
A rapariga pôs-se hirta como se tivesse levado um soco. Os seus olhos negros dilataram-se e ficou estática, no mesmo lugar.
– Tenho a certeza de que ainda há cinco minutos as vi – respondeu, crispada, sentindo-se culpada.
– Eu entendo – disse a mãe. – São coisas que acontecem.
– Não estão muito queimadas – disse Paul. – Não tem importância, pois não?
Mrs. Leivers olhou para o jovem com os seus olhos castanhos, magoados.
– Não teria importância, se não fosse pelos rapazes – disse ela. – Só Miriam sabe o barulho que eles fazem quando as batatas se pegam.
«Nesse caso», pensou Paul com os seus botões, «não deviam deixá-los fazer tanto barulho.»
Daí a nada, entrou Edgar. Vinha de perneiras e trazia as botas cobertas de terra. Era bastante baixo e muito formal para lavrador. Olhou de relance para Paul, cumprimentou-o de longe e perguntou:
– O comer está pronto?
– Está quase, Edgar – respondeu a mãe desculpando-se.
– Pois eu já estou pronto – disse o jovem, pegando no jornal e começando a ler. Entretanto, chegaram os restantes membros da família. O almoço foi para a mesa. A refeição decorreu com grande informalidade. A excessiva delicadeza e tom apologético da mãe realçavam mais o comportamento indelicado dos filhos. Edgar provou as batatas, mexeu a boca rapidamente como um coelho, olhou indignado para a mãe e disse:
– Estas batatas estão esturradas, mãe!
– Pois estão, Edgar... distraí-me por um minuto. Mas talvez possas comer pão, se não as conseguires comer.
Edgar olhou com raiva para Miriam.
– O que estava a Miriam a fazer, para não poder tomar conta delas? – disse ele.
Miriam levantou os olhos. A boca entreabriu-se-lhe, os seus olhos brilharam intensos, pestanejantes, mas permaneceu calada. Engoliu a raiva e a vergonha, e baixou a cabeça.
– Tenho a certeza de que não foi por mal – disse a mãe.
– Nem umas batatas sabe cozer – disse Edgar. – Pra que serv’ela aqui em casa?
– Pra ir prà despensa comer tudo o que sobra – disse Maurice.
– Eles não se esquecem daquela tarte de batata que a nossa Miriam comeu – disse o pai, a sorrir. Miriam sentia-se completamente humilhada. A mãe ficou calada, a sofrer como uma mártir, sentindo-se a mais nesta refeição atribulada.
Paul estava perplexo com tudo o que via. Não conseguia perceber a razão de tão violenta reacção só porque umas batatas se tinham queimado. A mãe dava a tudo, mesmo à mais insignificante tarefa doméstica, a importância de um dever religioso. Os filhos ressentiam-se com isso e, vendo cerceadas as suas liberdades, respondiam-lhe com brutalidade e também com irónica arrogância.
Paul estava a passar da infância à idade adulta. Esta atmosfera, onde tudo adquiria um valor religioso, tinha a seus olhos um fascínio subtil. Pairava no ar algo de indefinível. A sua própria mãe era lógica. Mas aqui havia algo de diferente, algo que ele amava, algo que por vezes detestava.
Miriam discutiu com os irmãos aguerridamente. Mais tarde, depois do almoço, quando todos já se tinham ido embora, a mãe disse:
– Desapontaste-me muito à hora do almoço, Miriam.
A rapariga baixou a cabeça.
– Eles são uns brutos! – exclamou subitamente, com os olhos flamejantes.
– Mas tu tinhas prometido que não respondias, não tinhas? – disse a mãe. – E eu acreditei em ti! Não suporto ver-te discutir.
– Mas eles são tão irritantes! – exclamou Miriam. – E... e malcriados.
– Sim, minha querida. Mas quantas vezes já te disse para não responderes ao Edgar? Será que não podes deixá-lo dizer o que lhe apetece?
– Mas porque há-de ele dizer o que lhe apetece?
– Miriam, será que não és suficientemente forte para o suportares, mesmo que o faças só por mim? Serás tão fraca que tenhas de discutir sempre com eles?
Mrs. Leivers pregava inflexivelmente a doutrina do «dar a outra face», mas não conseguia ensiná-la aos filhos. Era contudo bem-sucedida com as filhas, e Miriam era a sua filha dilecta. Os rapazes ficavam furiosos quando elas lhe davam a outra face, e Miriam era muitas vezes suficientemente orgulhosa para o fazer. Eles então cuspiam-lhe e detestavam-na. E ela refugiava-se na sua orgulhosa humildade, fechando-se em si mesma. Havia sempre este sentimento de conflito e de discórdia no seio da família Leivers. Embora os rapazes rejeitassem amargamente o eterno apelo aos seus sentimentos mais profundos de resignação e emproada humildade, acabavam por ceder. Não conseguiam imaginar apenas um sentimento humano comesinho ou uma simples amizade com um estranho: estavam sempre ansiosos por algo de mais profundo. O comum mortal era para eles superficial, trivial e insignificante. E, assim, por falta de hábito, eram dolorosamente rudes nos mais simples contactos sociais e, embora sofressem com isso, continuavam a arvorar uma insolente superioridade. Todavia, bem no fundo, ansiavam pela intimidade que não podiam lograr, pois eram demasiado reservados e qualquer tentativa de aproximação era imediatamente bloqueada pelo rude desprezo que nutriam pelos outros. Buscavam uma intimidade genuína, mas não se conseguiam aproximar normalmente das outras pessoas, pois recusavam-se a dar o primeiro passo e desprezavam a trivialidade que envolve a generalidade das relações humanas.
Paul deixou-se arrastar pelo sortilégio de Mrs. Leivers. Tudo adquiria um significado religioso e profundo quando ele estava com ela. A alma ferida dele, altamente evoluída, procurava-a em busca de alimento. Juntos pareciam filtrar de cada experiência a sua verdade vital.
Miriam era bem a filha de sua mãe. De tarde, ainda o sol brilhava, mãe e filha foram com ele passear pelos campos. Iam em busca de ninhos e encontraram um de carriça na cerca do pomar.
– Quero que vejas uma coisa – disse Mrs. Leivers.
Ele baixou-se e meteu o dedo cautelosamente por entre os espinhos, penetrando no orifício redondo da entrada do ninho.
– É quase como se metêssemos o dedo dentro do corpo de um pássaro – disse ele. – É tão quente. Dizem que o pássaro faz o ninho redondo como uma chávena, calcando-o com o peito. Sempre gostava de saber como é que ele fez o tecto redondo. – Para as duas mulheres, o ninho era o começo da vida. Depois desse dia, Miriam vinha visitá-lo todos os dias. Sentia-o tão próximo de si. Descendo novamente rente à cerca com a rapariga, Paul reparou nas celidónias, sobressaindo como salpicos de ouro na beira do valado.
– Gosto delas quando as pétalas se abrem completamente à luz do sol – disse ele. – Parecem comprimir-se contra o sol. – E foi quanto bastou para as celidónias passarem a exercer sobre ela um certo fascínio. Antropomórfica como era, incentivava-o a apreciar as coisas desta forma, e elas depois ganhavam vida para ela. Parecia necessitar que as coisas brilhassem na imaginação ou na alma dele primeiro, antes de sentir que as possuía. Sempre se vira privada de uma vida normal pelo seu próprio fervor religioso, que fazia o mundo parecer-lhe um jardim de convento ou um paraíso, onde o pecado e o conhecimento ou não existiam ou eram, pelo contrário, algo de cruel e feio.
Foi assim, nesta atmosfera de subtil intimidade, neste encontro de sentimentos comuns pelas coisas da natureza, que o amor nasceu.
Mas só passado muito tempo, Paul se deu verdadeiramente conta da existência de Miriam. Após a doença teve de permanecer em casa durante dez meses. Foi passar algum tempo a Skegness com a mãe e sentia-se verdadeiramente feliz. Mas até da praia ele escrevia longas cartas a Mrs. Leivers falando-lhe da praia e do mar. E trouxe consigo os seus queridos esboços da costa plana de Lincoln, ansioso por lhos mostrar. Iam com certeza interessar mais aos Leivers do que tinham interessado à sua própria mãe. Não era a sua arte que preocupava Mrs. Morel, mas sim ele próprio e o seu futuro. Porém, Mrs. Leivers e os filhos eram quase seus discípulos. Davam-lhe inspiração e faziam-no brilhar no seu trabalho, ao passo que a mãe o influenciava de forma a torná-lo determinado, paciente, obstinado, incansável.
Em breve se tornou amigo dos rapazes, cuja rudeza era apenas superficial. Todos patenteavam, quando podiam confiar neles próprios, uma bondade e amabilidade muito estranhas.
– Vens comigo para a leira? – perguntou Edgar, um tanto hesitante. Paul foi com ele alegremente e passou a tarde a cavar e a desbastar os nabos com o amigo. Paul costumava deitar-se com os três irmãos no monte de feno do celeiro a contar-lhes histórias sobre Nottingham e a Thomas Jordan. Eles, por sua vez, ensinaram-no a ordenhar e deixavam-no encarregar-se de pequenas tarefas tanto quanto quisesse, tais como segar feno ou despolpar nabos. Nos meados do Verão, Paul ajudou-os a segar o feno e tornou-se seu grande amigo. Aquela família vivia na verdade bem longe do mundo. Assemelhavam-se de certa forma a «les derniers fils d’une race épuisée»1. Embora os rapazes fossem robustos e saudáveis, eram esquivos e extremamente sensíveis, o que os tornava tão solitários. Mas, uma vez ganha a sua confiança, mostravam-se amigos fiéis e dedicados.
Miriam só mais tarde aconteceu. Mas ele entrara na vida dela antes de ela aparecer na sua. Numa tarde sombria, quando os homens estavam no campo e os mais novos na escola, apenas tendo ficado em casa Miriam e a mãe, ela perguntou-lhe, após breves momentos de hesitação:
– Já viste o baloiço?
– Não – respondeu ele. – Onde está?
– No estábulo – disse ela.
Ela hesitava sempre em dizer-lhe ou mostrar-lhe alguma coisa. Os homens têm uma noção de valor tão diferente da das mulheres que todos os seus objectos mais queridos e valiosos eram frequentemente motivo de escárnio e insulto por parte dos irmãos.
– Então vamos! – respondeu ele, levantando-se de imediato.
Havia dois estábulos, um de cada lado do celeiro. No estábulo mais baixo e escuro havia lugar para quatro vacas. As galinhas esvoaçavam sobre a manjedoura, cacarejando, enquanto o rapaz e a rapariga se aproximavam da corda grande e grossa, que pendia suspensa de uma viga na escuridão e estava presa à parede, a uma cavilha.
– Parece uma corda! – exclamou ele, satisfeito, e sentou-se ansioso por experimentar. Porém, levantou-se logo.
– Vá! Experimenta tu primeiro! – disse, voltando-se para a rapariga.
– Estás a ver – respondeu ela, entrando no celeiro –, é preciso pôr uns sacos no assento. – E assim tornou o assento mais confortável, o que muito o alegrou. Paul segurou-se à corda.
– Vem! – disse ele.
– Não, não quero ser a primeira – respondeu ela.
E manteve-se afastada, no seu jeito indiferente e calmo.
– Porquê?
– Vai tu agora! – insistiu ela.
Era talvez a primeira vez na vida que ela sentia prazer em fazer o que um homem lhe dizia, em poder mimá-lo. Paul olhou para ela.
– Está bem – disse ele, sentando-se no baloiço. – Cuidado!
Deu um salto para cima do baloiço e logo voou pelo ar, quase saindo pela porta, que tinha a parte superior aberta, podendo ver lá fora a chuva a cair miúda, o pátio sujo, o gado desolado junto à carroça preta do estábulo e, ao fundo, a cortina verde e cinza da floresta. Ela mantinha-se cá por baixo, com a sua boina vermelha à escocesa, a observá-lo. Ele olhou para ela, e ela viu os seus olhos azuis a brilharem.
– É um baloiço formidável – disse ele.
– Pois é.
Todo ele se lançava pelo ar, como um pássaro em voo picado, só pelo prazer do movimento. E então olhou para baixo, para ela, e a boina vermelha sobre os caracóis negros, o rosto bonito e afável, tão sereno como se estivesse a meditar, subiram até ele. Estava escuro e frio dentro do estábulo. Subitamente uma andorinha desceu das alturas do forro do telhado e saiu como uma seta pela porta.
– Não sabia que estávamos a ser observados por um passarinho – disse ele.
Ele baloiçava-se desabridamente. Ela sentia-o descer e subir no ar, como se impelido por uma força desconhecida.
– Agora vou morrer – disse ele, numa voz sonhadora e despojada, como se ele próprio fosse o movimento moribundo do baloiço. Ela olhava-o, fascinada. Bruscamente, ele travou e saltou.
– Já andei muito tempo – disse ele. – Isto é um baloiço formidável, é realmente um baloiço formidável.
Miriam estava divertidíssima, pois ele tinha levado o baloiço a sério e sentira-se bem a andar nele.
– Não, continua – disse ela.
– Porquê?... Não queres andar? – perguntou ele espantado.
– Não me apetece muito. Mas vou andar só um bocadinho.
Ela sentou-se no baloiço, enquanto ele segurava os sacos.
– É formidável, vais ver – disse ele, empurrando-a. – Mantém os calcanhares bem levantados, senão batem na manjedoura.
Miriam sentia a precisão com que ele a agarrava no momento exacto e a força certeira com que a empurrava, e sentia medo. Uma onda quente de medo percorreu-a até ao ventre. Ela estava nas mãos dele. O impulso firme e inevitável surgia de novo no momento certo. Ela agarrava-se à corda, quase a desmaiar.
– Oh – disse ela a rir, cheia de medo. – Mais alto não!
– Mas tu não vais nada alto – protestou ele.
– Mas mais alto não!
Paul apercebeu-se do medo na voz dela, e parou. O coração dela derreteu-se numa dor cálida, quando chegou o momento de novo impulso, mas ele deixou-a sozinha, e ela pôde respirar outra vez.
– Não queres mesmo ir mais alto? – perguntou ele. – Queres que te mantenha nessa altura?
– Não, eu ando sozinha – respondeu ela.
Então ele afastou-se e ficou a vê-la.
– Mal te mexes – comentou ele.
Ela esboçou um sorriso, envergonhada, e de repente desceu.
– Dizem que quem sabe andar de baloiço não enjoa no mar – disse ele, enquanto subia para o baloiço outra vez. – Não creio que alguma vez venha a enjoar.
Começou a andar novamente. Para ela havia algo nele que a fascinava. Naquele momento ele era apenas uma peça de um objecto em movimento e tudo nele se movia. Nem ela nem os irmãos conseguiam libertar-se assim. Sentia o entusiasmo desabrochar dentro de si. Era como se ele fosse uma chama, e tivesse ateado o entusiasmo dentro dela enquanto se baloiçava no ar.
E, gradualmente, a intimidade de Paul com a família Leivers privilegiava três pessoas: a mãe, Edgar e Miriam. Na mãe encontrava uma simpatia e um encanto que pareciam abrir-lhe o coração. Edgar era o seu melhor amigo. Quanto a Miriam, digamos que a ia aturando, pois parecia-lhe ser muito submissa.
Mas a rapariga, a pouco e pouco, foi-o atraindo. Quando ele trazia o caderno dos esboços, era sempre ela quem observava mais longamente o último desenho. E então, olhava para ele e perguntava, com os olhos negros a luzir, como águas agitadas por uma corrente dourada no meio da escuridão:
– Porque será que gosto tanto deste?
E algo no peito dele se retraía perante estas observações tão deslumbradas, tão íntimas e tão próximas.
– Sim, porque será? – perguntava ele.
– Não sei – parece tão real.
– É porque... é porque quase não tem sombras... é mais como uma cintilação... como se eu tivesse pintado a cintilação do protoplasma das folhas, e de tudo, e não a rigidez das formas. Isso para mim é coisa morta. Só a cintilação contém vida. A forma é uma crosta morta. A cintilação está, realmente, no interior.
E ela, mordendo o dedinho minúsculo, ponderava sobre tais afirmações. Davam-lhe uma nova sensação de vida e davam vida a coisas que até aí não significavam nada para ela. Conseguia encontrar algum significado nos discursos dele, sempre tão abstractos e intrincados. Era através deles que ela chegava claramente aos objectos amados.
Certo dia, ela tinha estado sentada junto dele, ao pôr do Sol, enquanto ele pintava alguns pinheiros batidos pelo clarão rubro que avançava do poente. Ele mantivera-se calado.
– Já está! – disse ele, de repente. – Mesmo o que eu queria. Agora, olha para eles e diz-me se são troncos de pinheiro ou carvões incandescentes, estacas de fogo a arder na escuridão. A sacra ardente de Deus, aquela que não se apaga.
Miriam olhou e sentiu medo. Mas distinguia perfeitamente os troncos de pinheiro e achava-os magníficos. Ele arrumou a caixa das tintas e levantou-se. De repente, olhou para ela.
– Porque estás sempre tão triste? – perguntou.
– Triste! – exclamou ela, olhando para ele com os seus olhos castanhos, admirados, maravilhosos.
– Sim – disse ele. – Tu andas sempre, sempre triste.
– Não... Nem um pouco! – exclamou ela.
– Até a tua alegria parece uma chama ateada pela tristeza – insistiu ele. – Nunca estás alegre, nem sequer normal.
– Pois não – disse ela, pensativa. – Dá que pensar... Porque será...?
– Porque tu não és.... porque tu és diferente por dentro... como um pinheiro... e depois incendeias-te... mas não és uma árvore qualquer, com folhas irrequietas e alegres...
Paul emaranhou-se no seu próprio discurso; mas ela bebia as suas palavras e ele teve uma sensação estranha e estimulante, como se os seus sentimentos fossem novos. Ela chegava-lhe tão perto da alma. Estranho estímulo este.
Mas às vezes odiava-a. O irmão mais novo de Miriam só tinha cinco anos. Era um menino débil, de enormes olhos castanhos e um rostinho frágil e esquisito; parecia um anjo do Coro dos Anjos, de Reynolds, com um toque de duende.
Miriam ajoelhava-se frequentemente junto da criança e apertava-o contra o peito.
– Meu Hubert! – cantarolava ela com uma voz possante, a transbordar de amor. – Meu Hubert!
E, envolvendo-o nos seus braços, embalava-o mansamente de um lado para o outro com amor, de face levantada ao céu, olhos semicerrados e voz embebida de ternura.
– Pára! – disse a criança, constrangida. – Pára, Miriam!
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela do fundo da garganta, como se estivesse em transe, balançando também, como se prestes a desfalecer num êxtase de amor.
– Pára! – repetiu a criança, franzindo a testa desanuviada.
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela.
– Porque fazes tanto espalhafato? – gritou Paul, profundamente afectado pela emoção exagerada de Miriam. – Porque não ages normalmente com ele?
Ela largou a criança e não respondeu. A sua intensidade, que não deixaria transparecer qualquer emoção numa situação normal, deixava o jovem quase num frenesim. Este contacto desprotegido e tímido com a alma dela chocava-o. A sua mãe era reservada, e ele estava habituado a ela. E, nessas alturas, sentia-se agradecido de alma e coração por ter a mãe que tinha, tão sensata e tão sã.
Toda a vida do corpo de Miriam se reflectia nos seus olhos, normalmente escuros como as igrejas, mas que podiam inflamar-se como uma conflagração. A sua expressão meditativa raramente se alterava. Talvez ela tivesse sido uma das mulheres que acompanharam Maria quando Jesus morreu. O seu corpo não era vivo, flexível. Andava de forma oscilante, pesada até, de cabeça inclinada para a frente, meditativa. Não sendo propriamente desajeitada, nenhum dos seus movimentos parecia o movimento correcto. Muitas vezes, quando limpava os pratos, ficava confusa e desgostosa, por ter partido em duas metades uma chávena ou um copo. Era como se, por medo e falta de confiança, se tivesse aplicado demasiado. Não sabia o que eram relaxamento ou abandono. Agarrava-se a tudo com rigidez e intensidade, e o seu esforço, de excessivo, fechava-a sobre si mesmo.
Raramente alterava a forma de andar, tensa, balançada, projectada para a frente. De vez em quando, ia com Paul dar uma corrida pelos campos e então os seus olhos brilhavam inteiros, num êxtase que o assustava. Mas tinha medo de fazer exercício físico. Se tivesse de saltar uma cerca, apertava as mãos de forma angustiante e perdia a presença de espírito. E ele não conseguia persuadi-la a saltar, mesmo um obstáculo baixo. Os olhos dela dilatavam-se, ficavam expostos, palpitantes.
– Não – gritava ela, sorrindo apavorada. – Não!
– Tens de tentar – gritou ele uma vez e, empurrando-a para a frente, fê-la cair da cerca. Mas o grito selvagem que ela deu, como se estivesse prestes a perder a consciência, feriu-lhe as entranhas. Mas ela caiu de pé e em segurança, e posteriormente passou a ter mais coragem.
Paul e Miriam iam muitas vezes passear juntos pelos campos até ao lago Nethermere. Ele era naturalmente ágil e muito activo. Andava sempre a saltar de um lado para outro. Ela, no entanto, mantinha sempre o mesmo curso, quase sem alterações. E ele, a pouco e pouco, vinha para junto dela, moderava o passo e caminhava com ela, de cabeça baixa, mas só até chegarem à água. A margem do lago estava pejada das penas brancas dos cisnes. Sentavam-se entre os seixos. Subitamente, ele descobria um seixo bonito e bem liso, levantava-se, e atirava-o à água para provocar ondinhas.
– Consegues fazê-los saltar? – perguntou Paul.
– Não muito bem! – respondeu ela, abanando a cabeça. E continuou sentada a observá-lo.
– Ora vê! – gritou ele. – Quatro saltinhos.
– Sim senhor – disse ela, elogiando-o. – Formidável. – Contudo, ele depressa se fartou e veio sentar-se novamente junto dela.
– Porque não queres também fazer ondinhas? – perguntou ele.
– Porque não sei – respondeu ela.
– Tu nunca queres fazer nada! – disse ele.
– Bem vês, tenho a lida da casa para fazer.
Paul não deu seguimento à discussão, preferindo encetar um diálogo sobre livros.
Miriam estava muito triste com o seu destino.
– Não gostas de estar em casa? – perguntou-lhe Paul surpreendido.
– E quem é que gosta? – respondeu ela, num tom cavo e profundo. – O que é estar em casa? Passar os dias a limpar o que os rapazes sujam em menos de cinco minutos. Não quero estar em casa!
– Então o que é que queres?
– Quero fazer alguma coisa. Quero ter uma oportunidade, como toda a gente. Porque é que eu, só por ser rapariga, tenho de ficar em casa e não me é permitido ser alguém? Que oportunidades é que eu tenho?
– Oportunidades para quê?
– Para saber de tudo, para aprender... para fazer qualquer coisa. Não é justo que isto aconteça apenas por eu ser mulher.
Ela falava com muita amargura. Paul pôs-se a pensar. Em casa, Annie parecia até quase contente por ser rapariga. Não tinha tantas responsabilidades e tudo era mais fácil para ela. Nunca quisera ser qualquer outra coisa além de rapariga. Mas Miriam desejava quase furiosamente ser homem. E, contudo, ao mesmo tempo detestava os homens.
– Mas ser homem ou mulher é a mesma coisa – disse Paul, franzindo a testa.
– Ai é?... Os homens têm tudo.
– Eu acho que as mulheres deviam estar contentes por serem mulheres, como os homens estão por serem homens – respondeu ele.
– Não! – Ela abanou a cabeça. – Nem pensar! Os homens têm tudo.
– Mas o que é que queres, afinal? – perguntou ele.
– Quero aprender. Porque é que eu hei-de ficar sem saber nada?
– Mas afinal o que queres tu aprender? Matemática e francês...?
– E porque é que eu não hei-de aprender matemática... Sim – gritou ela, abrindo os olhos em ar de desafio.
– Tu podes aprender tudo aquilo que eu sei – disse ele. – Eu ensino-te, se quiseres.
Os olhos dela arregalaram-se. Como professor, ele não lhe inspirava confiança.
– Gostavas? – perguntou Paul.
Ela estava de cabeça baixa a chuchar no dedo, sorumbática.
– Gostava... – disse ela, hesitante.
Ele conversava frequentemente com a mãe sobre todas estas coisas.
– Gostava de ser homem, mãe? – perguntou ele.
– Por vezes... mas é uma parvoíce... penso que não... não quero e nunca quis ser outra pessoa diferente da que sou.
– E porque é que gostava de ser homem, mesmo só às vezes?
– Bem, meu filho – respondeu a mãe a sorrir – penso que conseguiria fazer mais do que alguns homens, o que não é para admirar.
– Eu cá não quero ser mulher – disse ele, pensativo. – E acho que não conseguia ser uma mulher melhor do que as que já são mesmo mulheres.
– Não – disse a mãe a sorrir. – Também acho que não... Mas, por vezes, nós sentimos que poderíamos fazer mais do que os homens...
– Talvez a mãe pudesse... – disse ele.
– Bem... – respondeu ela com a sua curiosa fungadela habitual. – Sabes, meu filho – continuou ela – a natureza é para ser respeitada. E quando uma mulher deseja ardentemente ser homem, podes apostar a vida em como ela não é lá grande coisa como mulher.
– Detesto uma mulher que deseje ser homem – disse ele.
– Apenas demonstra que o seu orgulho de mulher está demasiado enfraquecido – respondeu a mãe. Paul falava sempre com a mãe, pois ela era a sua pedra de toque.
– Vou ensinar álgebra à Miriam – disse ele.
– Bem... – disse Mrs. Morel – espero que lhe seja proveitoso.
Aproximava-se o crepúsculo quando Paul se dirigiu para a quinta, na segunda-feira à tardinha. Miriam acabara de varrer a cozinha e estava ajoelhada junto à lareira quando ele entrou. Todos tinham saído, excepto ela. Olhou-o ruborizada, com os olhos negros a brilhar e os cabelos magníficos caídos à volta do rosto.
– Olá – disse ela, num tom suave e musical. – Já sabia que eras tu!
– Como é que adivinhaste?
– Reconheci os teus passos. Ninguém anda tão depressa e firmemente como tu.
Ele sentou-se e suspirou.
– Estás pronta para aprender álgebra? – perguntou ele, tirando um livrinho do bolso.
– Mas... – Ele sentiu-a recuar.
– Mas tu disseste que querias – insistiu ele.
– Mas hoje à noite... – começou ela, titubeante.
– Mas eu vim de propósito. E, se queres aprender, alguma vez tens de começar.
Ela apanhou as cinzas com a pá do lixo e olhou para ele, esboçando um sorriso trémulo.
– Sim, mas... esta noite... Sabes, ainda não pensei nisso.
– Por amor de Deus... Vai despejar as cinzas e vem ter comigo.
Paul saiu e sentou-se no banco de pedra do pátio das traseiras, perto das grandes bilhas de leite. Os homens estavam no estábulo. Ele conseguia ouvir o som cadenciado do leite, jorrando para os baldes. Ela voltou logo, com um punhado de maçãs grandes e esverdeadas.
– Estas são das que tu gostas – disse ela.
Ele deu uma trincadela na maçã.
– Senta-te – disse ele com a boca cheia.
Ela, míope, começou a espreitar por cima do ombro dele. Isso irritou-o tanto que lhe entregou logo o livro.
– Vê à vontade – disse ele. – Aqui há apenas letras para cada número. Escreves um a, em vez de um «2» ou um «6».
Começaram a trabalhar, ele a explicar e ela debruçada sobre o livro. Ele era rápido e impetuoso. Ela nunca respondia. Por vezes, quando ele lhe perguntava:
– Estás a perceber? – ela olhava-o com uns olhos sorridentes e amedrontados.
– Então, não estás a perceber nada! – gritava ele.
Tinha ido demasiado depressa. Mas ela não tinha dito nada. Ele fez-lhe mais perguntas e depois irritou-se. Ficava com o sangue a ferver de a ver ali à sua mercê, de boca aberta, olhos esbugalhados, com um sorriso medroso, apologético, envergonhado. Edgar chegou entretanto com dois baldes de leite.
– Olá! – disse ele. – O que estão vocês a fazer?
– Álgebra – respondeu Paul.
– Álgebra! – repetiu Edgar, intrigado. E seguiu em frente, dando uma gargalhada. Paul trincou a maçã já quase esquecida e, olhando para as pobres couves da horta, todas rendilhadas pelas galinhas, teve vontade de as arrancar. Depois, olhou para Miriam, que fitava o livro aparentemente absorta; porém tremia, receando não compreender. Estava corada e bonita. Todavia, a sua alma parecia suplicar ao livro de álgebra que a ajudasse. Ela fechou-se, retraiu-se, percebendo que ele estava aborrecido. Mas, no mesmo instante, ele tornou-se gentil ao vê-la magoada por não conseguir perceber o que lia.
– Diz lá, o que é que achas difícil? – perguntou ele, ternamente.
Este novo tom de voz fê-la levantar de imediato os olhos negros que pareciam querer vencer a todo o custo. O olhar dela doeu-lhe e uma onda de ternura percorreu-o.
– Sabes, para mim é fácil – disse ele. – Já estou habituado e esqueço-me de que não sabes. Vês...
E, então, todo ele gentileza e paciência, recomeçou. Edgar chegara entretanto e pusera-se atrás dele.
A cabeça escura de Miriam encontrava-se abaixo do nível dos olhos de Paul. Era uma cabeça pequenina com caracóis negros que pareciam flutuar como seda. Ela parecia esforçar-se tanto! A voz dele era uma contínua ternura.
– Vejo, pois! – exclamou Edgar, de repente, por detrás deles. – Mas... isto...
E o seu gordo indicador aproximou-se do livro. Miriam estremeceu. Paul virou-se para o amigo. Edgar era bem-parecido e os seus olhos, castanhos, perfeitos e saudáveis, pareciam interessados. Explicar-lhe algo era para Paul como respirar ar fresco.
Paul dava lições a Miriam com regularidade. As aulas tinham lugar na sala de estar. Foi aí que o jovem se estreou brilhantemente. Ela aprendia tudo e sabia sempre quais os exercícios que ele lhe mandara fazer na semana anterior. Frequentemente sabia até melhor do que ele. Mas as coisas para ela tinham de ser lentas. E quando se retraía e se mostrava completamente submissa durante a lição, isso enervava-o. Ele enfurecia-se, envergonhava-se, continuava a lição e enfurecia-se novamente, gritando com ela. Ela escutava-o em silêncio. Por vezes, muito raramente, defendia-se. Os seus olhos negros e transparentes fulminavam-no.
– Não me dás tempo para aprender – dizia ela.
– Pronto – respondia ele, atirando o livro para cima da mesa e acendendo um cigarro. Mais tarde, ia ter com ela arrependido. E assim decorriam as lições, com ele sempre ou muito enervado ou muito gentil.
– Porque é que a tua alma estremece durante a lição? – gritava ele. – Com essa tua bendita alma, nunca mais aprendes álgebra. Será que não consegues olhar para isto com a razão, de uma forma clara e simples?
Muitas vezes, quando ia para a cozinha, Mrs. Leivers olhava para ele aborrecida e repreendia-o:
– Paul não sejas tão severo com a Miriam. Ela pode não ser muito rápida, mas tenho a certeza de que se esforça.
– Não me consigo conter – dizia ele, desculpando-se. – Enervo--me facilmente.
– Miriam, não estás aborrecida comigo, pois não? – perguntava-lhe ele mais tarde.
– Não – assegurava-lhe ela, no seu tom profundo e melodioso. – Não, eu não me importo.
– Não me perdoes tão facilmente, pois eu sei que sou culpado.
Mas, apesar de tudo, o seu sangue começava a ferver novamente. Era estranho que mais ninguém o enervasse daquela forma. Mas ela enfurecia-o. Uma vez atirou-lhe um lápis à cara. Fez-se silêncio. Ela virou a face ligeiramente para o lado.
– Eu não... – começou ele, mas não continuou, pois sentia-se desfalecer. Ela nunca o censurava nem se zangava com ele, e ele sentia-se muitas vezes terrivelmente envergonhado. Contudo, a sua raiva rebentava novamente como uma bolha enfunada. Quando ele via à sua frente aquela cara ansiosa, silenciosa, como se fosse cega, sentia renascer dentro de si a vontade irreprimível de lhe atirar outra vez com o lápis. No entanto, quando via a mão dela tremer e a boca entreabrir-se em sofrimento, o seu coração ardia de compaixão por ela. E, assim, procurava-a, pela força e a intensidade que ela despertava nele.
Muitas vezes evitava-a e ia passear com Edgar. Miriam e o irmão eram naturalmente antagónicos. Edgar era um racionalista curioso e nutria um interesse científico pela vida. Para Miriam, era um grande desespero sentir-se abandonada por Paul em benefício de Edgar, que parecia muito mais inculto. Todavia, Paul sentia-se muito feliz com o irmão mais velho. Os dois homens passavam tardes juntos no campo, carpinteirando no celeiro quando chovia. Conversavam ou então Paul ensinava a Edgar as canções que ele próprio tinha aprendido com Annie ao piano. Frequentemente, todos os homens, incluindo Mr. Leivers, tinham acerbas discussões sobre a nacionalização da terra e problemas semelhantes. Paul já tinha ouvido as opiniões da mãe, e visto serem essas também as suas, discutia-as em seu lugar. Miriam assistia e participava, mas aguardava até que terminassem, e intervinha apenas quando a conversa voltava a ser mais íntima.
«Acima de tudo», pensava ela, «se as terras fossem nacionalizadas, Edgar, Paul e eu continuaríamos a ser os mesmos.»
E então esperava que Paul voltasse para junto dela.
Ele andava a estudar pintura. À noite adorava ficar a trabalhar em casa sozinho com a mãe. Ela cosia ou punha-se a ler. Por vezes, ele interrompia o seu trabalho e descansava os olhos por um momento no rosto da mãe, que brilhava de ternura, para depois retomar feliz a sua tarefa.
– Mãe, os meus melhores trabalhos são feitos quando está aqui sentada na cadeira de balouço – dizia ele.
– Tenho a certeza de que sim – exclamava ela, torcendo o nariz, num cepticismo simulado. Mas sabia que assim era e o seu coração pulsava de alegria. Mrs. Morel sentava-se em silêncio durante horas, costurando ou lendo um livro, atenta ao trabalho do filho. E ele, comandando o lápis com toda a intensidade da sua alma, sentia o calor dela dentro dele, incentivando-o. Eram os dois muito felizes assim e sem consciência de o serem. Estes momentos, tão significativos e tão reais, passavam-lhes quase despercebidos.
Ele apenas tomava consciência quando era estimulado. Quando terminava um esboço, desejava sempre mostrá-lo a Miriam. E então, sentia-se estimulado para conhecer o trabalho que tinha produzido inconscientemente. Em contacto com Miriam adquiria discernimento e a sua visão tornava-se mais profunda. Da mãe retirava o calor da vida e o incentivo para produzir; Miriam dava a esse calor a intensidade de uma luz muito branca.
Quando Paul voltou à fábrica, as condições de trabalho tinham melhorado. Tinha a quarta-feira à tarde livre para ir à escola de belas-artes – providência tomada por Miss Jordan – e regressava à tardinha. Além disso, às quintas e sextas-feiras à tarde, a fábrica fechava às seis em vez de ser às oito.
Em Bestwood havia uma pequena e respeitável biblioteca, cuja assinatura custava apenas quatro xelins e seis dinheiros por ano. Mrs. Morel e Mrs. Leivers tinham-se feito sócias quando os filhos começaram a crescer. A biblioteca ocupava duas salas do Clube dos Mecânicos, e estava aberta às terças-feiras à noite, das 19 às 21 horas. Paul ia sempre buscar os livros para a mãe, que lia muito, e Miriam arrastava-se sob o peso de cinco ou seis volumes para a família. Tornou-se habitual os dois encontrarem-se na biblioteca.
Paul conhecia bem as duas pequenas salas com as paredes forradas de livros. Eram acolhedoras e havia uma grande lareira ao canto. Mr. Sleath, o bibliotecário, tinha fartas suíças brancas em torno de uma cara acriançada. Era alto e curioso, mas muito afável; conhecia toda a gente e sabia da vida de todos. Mr. Smedley era roliço, careca e instruído.
Paul aguardou, enquanto Mr. Sleath acabava de pôr em dia os mexericos com o último leitor. Nessa altura, Paul deixou cair os livros em cima do balcão. Mr. Sleath olhou para ele com os seus olhos azul-vivo, mas mortiços.
– Vinte e dois, cinquenta e sete – disse Paul.
O bibliotecário, funcionário superior da companhia mineira e um cavalheiro comparado com o jovem, repetiu os números alegremente, virando as folhas do livro de registos.
– Ah!... Ah! – exclamou ele, olhando para a página. Depois olhou de uma forma carinhosa e acolhedora para o jovem, esfregou as mãos e disse:
– Ah!... Bem, Paul!... Ah! Como está a tua mãe?
– Muito bem, obrigado! – respondeu Paul.
– Óptimo! Não a vi na capela no domingo à noite!
– Pois não! Teve uma inflamação nos olhos.
– Meu Deus... Meu Deus... Lamento muito!
– Mas penso que disseste – interveio Mr. Smedley – que ela estava muito bem. – Paul não respondeu nem olhou para o homenzinho por detrás do balcão. Mr. Sleath ia assinalando os livros no seu livro de registo. Mr. Smedley pôs mais carvão na lareira. Algumas pessoas conversavam animadamente junto das estantes. Os tacões dos sapatos chiavam na tijoleira.
– Mas achas que ela já se sentirá bem para sair este fim-de-semana? – perguntou Mr. Sleath, quando acabou de registar todos os livros.
– Acho que sim – disse Paul.
– Óptimo... Óptimo. De facto, estranhei a ausência dela.
Para Paul já era um dado adquirido que as pessoas lhe perguntassem pela mãe e nunca mencionassem o pai.
Dirigiu-se para as estantes. Os leitores continuavam a entrar, deixando os chapéus-de-chuva no corredor e trocando agradáveis saudações. O jovem conhecia toda a gente e todas as suas histórias. Mas não lhe interessavam. Miriam talvez não viesse por causa da chuva. Olhou para o livro que tinha nas mãos, esqueceu-o por momentos, pensando nela, e voltou ao livro novamente. O tempo passava como num sono. Ouvia o ruído das pessoas a saírem, mas ninguém a entrar. E se ela não viesse? Só de pensar nisso a noite afigurava-se-lhe lúgubre e infrutífera. Mas ela viria. A atmosfera era quente e acolhedora e a noite não teria continuidade enquanto ela não chegasse.
– Uma noite dos diabos, Alfred, uma noite dos diabos – disse Mr. Sleath, procurando alguém com quem falar. A biblioteca estava vazia.
– Parece que sim – respondeu Mr. Smedley.
Então, Mr. Sleath reparou em Paul.
– Olá, Paul – exclamou. – Ainda não encontraste o que queres, hem?
– Não me parece que o Paul esteja à espera de nenhum livro – disse Mr. Smedley.
– Oh...Oh... – exclamou Mr. Sleath.
– Penso que é uma jovem que está por detrás disto tudo – disse Mr. Smedley. – Mas está uma noite péssima para se vir de Willey Woods.
Ouviram-se passos no corredor. Paul ficou à escuta. Não era ela. Entrou um rapaz. Quando Paul viu o rapaz no limiar da porta, onde ela deveria estar, ficou furioso com ele. Contudo ela viria. Era sempre tão cumpridora. Um dos seus maiores encantos, quanto a ele, era a sua rejeição das convenções. Se quisesse vir, viria mesmo que chovesse torrencialmente. E o tempo não estava assim tão mau. Paul pôs-se a escutar, para ver se chovia muito. E então ouviu o rapaz dizer que estava a chover a cântaros. Mas o rapaz não contava. Ela viria, sim, mesmo que chovesse a cântaros. E Paul agarrou-se a essa esperança. Podia senti-la, através da noite, desejando vir. E ela nunca o desapontava. Para ela a vida interior valia tudo, e a exterior nada.
Ouviu os passos dela no corredor e a sua ansiedade diminuiu. Ficou a vê-la chegar. Ela parou um momento à entrada da porta. A boina vermelha cintilava com as gotas de chuva, o cabelo revolto dançava em caracóis húmidos, as faces esplandeciam. Ela procurou-o ansiosamente com o olhar, e então os seus olhos míopes encontraram-no, e uma chama ateou-se dentro dela, queimando-o também a ele. Dirigiu-se ao balcão, satisfeita. Ele virou-lhe as costas.
Então, ela aproximou-se dele, hesitante.
– Estou atrasada? – perguntou ela.
– Como sempre – respondeu ele. – Estás muito molhada?
– Não... nadinha.
– Vieste pela linha férrea? – disse ele.
– Vim. Estavas com muito medo de que eu não aparecesse?
– Só um bocadinho.
Paul sorriu.
– Vem, vou mostrar-te os livros que escolhi para ti – disse ele. Ela foi. Os livros não tinham qualquer significado para ela. Mas ele insistia na sua aprovação. Olhou para os livros por cima do braço dele, sem conseguir ver nada. Mas ele estava contente.
– Concordas? – perguntou ele.
– Claro – respondeu ela.
Depois de registarem os livros, saíram os dois rapidamente da biblioteca. A escuridão enchia-os de alegria. Sentiam-se exacerbadamente felizes. Paul trazia uma enorme capa preta impermeável, por baixo da qual resguardou os livros. Caminharam lado a lado pela rua Mansfield, envolvidos pela escuridão e pela chuva, sob as árvores gotejantes.
A conversa surgiu rápida e vigorosa, passando imediatamente à discussão sobre um dos livro. Ele falava apaixonadamente, ela ouvia-o e a sua alma expandia-se. Do livro, passaram inevitavelmente a uma discussão sobre crenças íntimas, muito subjectiva.
– Parece que é como se não tivesse importância, um a mais ou um a menos, dentro do todo... – disse ele.
– Não – respondeu ela gravemente, em dúvida.
– Eu costumava pensar assim quando um pardal caía.... e o mesmo em relação aos cabelos da cabeça...
– Sim – disse ela. – E agora?
– Agora penso que a raça dos pardais é importante, e não apenas um pardal: todo o meu cabelo, e não apenas um fio de cabelo.
– Sim – disse ela, pouco convencida.
– E as pessoas são importantes. Mas uma só não é assim tão importante. Vê, por exemplo, o William.
– Sim – disse ela, pensativa.
– Chamo a isso apenas uma perda – disse ele – Uma perda, nada mais.
– Sim – disse ela, com a voz sumida.
Ela acreditava que quanto mais pessoas houvesse, menos importância tinham. Mas ouvi-lo falar assim era para ela como um sopro de vida: como o primeiro sopro de um recém-nascido.
– Contudo – disse ele – creio que há um caminho certo a seguir... se o seguirmos está tudo bem... ou se andarmos perto. Mas se não o seguirmos, morreremos. Tenho a certeza de que o nosso William fez a escolha errada.
– E se seguirmos o curso das nossas vidas não morremos? – perguntou ela.
– Não, não morremos. É o nosso íntimo que nos aconselha a seguir um determinado caminho e não outro.
– Mas nós sabemos quando é que estamos a seguir o caminho certo? – perguntou ela.
– Claro! Eu pelo menos sei. Eu sei que estou a seguir o meu caminho.
– Sabes mesmo? – perguntou ela.
– Sim... tenho a certeza.
Ele tinha parado por baixo de um lampião para pensar. O seu impermeável luzia com a chuva. Ela olhou para a cara dele. Os seus olhos, tão certeiros e tão fixos, fitaram os dela. Ele era realmente determinado. Ela seguiu para casa com o coração em brasa.
Mas ele, quando deu meia volta para retroceder, logo a esqueceu, ao pensar que a mãe ficaria aborrecida ao saber que ele tinha ido até tão longe debaixo de chuva. Estugou o passo, sentindo-se porém exultante com o contacto com Miriam. A noite tinha-lhe trazido alguma satisfação.
– Queres tu dizer que levaste a Miriam Leivers a casa numa noite como esta? – perguntou a sua mãe, fitando-o subitamente, um minuto depois de ele ter entrado.
– Demorei-me muito tempo na biblioteca – argumentou Paul.
– Mas ela apareceu, não apareceu? – exclamou Mrs. Morel, calma e severa. Paul estremeceu.
– Ela fica sem nada para ler durante toda a semana, se não vier à biblioteca – disse ele.
– Não sei o que é que a mãe dela anda a fazer para a deixar arrostar com cerca de 10 milhas debaixo desta chuva torrencial.
– Não está chover muito – disse ele. – Nem por isso.
– Basta olhar para o teu impermeável e para as tuas botas – disse a mãe.
– Olhe o que eu lhe trouxe – disse ele, mas ela estava demasiado zangada para condescender.
Certa tarde de Verão, Miriam e Paul resolveram atravessar os campos, por Herod Farm, no regresso da biblioteca. Assim, eram só três milhas até Willey Farm. A erva segada brilhava com reflexos dourados e os botões de azedas ardiam em tons de carmim. A pouco e pouco, enquanto atravessavam o planalto, os tons dourados do ocaso deslizaram para vermelho, o vermelho para o carmim e, por fim, o azul glacial apagou o clarão.
Foram dar à estrada principal de Alfreton, que singrava branca entre os campos anoitecidos. Aí, Paul hesitou. Eram cerca de duas milhas até sua casa, e uma milha até à casa de Miriam. Olharam para a estrada, que corria sombria sob a luminosidade ténue de noroeste. No cimo do monte, Selby, com as suas casas despojadas e as suas torres mineiras, recortava-se no céu, pequenina, em negras silhuetas.
Ele consultou o relógio.
– Já são nove horas! – disse.
Ambos estavam relutantes em partir, abraçados aos seus livros.
– O bosque é tão bonito a esta hora... – disse ela. – Queria tanto que o visses.
Ele atravessou a estrada atrás dela, lentamente, aproximando-se da cancela branca.
– Eles fazem cá um banzé, se eu chego tarde – disse ele.
– Mas não estás a fazer nada de mal – contrapôs ela, impaciente. E ele seguiu-a através das pastagens retouçadas, à luz do lusco-fusco. Havia uma frescura no bosque, um aroma a folhas e a madressilva, e o crepúsculo. Caminharam em silêncio. A noite desceu, maravilhosa, entre a imensidão de troncos negros. Ele olhou em volta, expectante.
Ela queria mostrar-lhe uma roseira-brava que tinha descoberto, pois achara-a lindíssima. Porém, sentia que só depois de ele a ter visto ela seria capaz de a assimilar. Só ele poderia fazer com que a roseira fosse dela para sempre, imortal. Por isso não estava satisfeita.
O orvalho já era visível pelos caminhos. Do velho bosque de carvalhos elevava-se uma névoa e ele hesitou, questionando-se se a mancha branca seria a linha de bruma ou apenas candelárias-dos-jardins, formando uma pálida nuvem.
Assim que chegaram aos pinheiros, Miriam começou a ficar muito tensa e ansiosa. O seu arbusto podia ter desaparecido. Poderia não o encontrar. E queria tanto descobri-lo. Desejava, quase com paixão, ter Paul perto de si quando descobrisse as flores. A comunhão seria mútua, algo que a iria emocionar, algo de divino. Ele caminhava a seu lado em silêncio. Estavam muito próximos um do outro. Ela estremeceu e ele escutou-a, levemente ansioso.
Assim que chegaram ao limite da floresta, o céu era de madrepérola e a terra escurecia. Algures nos recantos mais afastados do pinheiral a madressilva exalava o seu aroma.
– Onde? – perguntou ele.
– Lá em baixo, no trilho do meio – murmurou ela, tremendo.
Mal acabaram de contornar a curva do atalho, ela parou. Olhou por momentos assustada para o espaço que se abria entre os pinheiros, não conseguindo discernir o que quer que fosse, pois a luz empalidecida tinha apagado a cor das coisas. Mas, finalmente, descobriu o seu arbusto.
– Oh! – exclamou ela, precipitando-se para ele.
Tudo estava sereno. O arbusto era alto e esparso, espraiando as suas silvas sobre um espinheiro próximo, e deixando pender os ramos longos sobre a relva, salpicando a escuridão de grandes estrelas brancas, imaculadas. As rosas brilhavam como botões de marfim, estrelas abertas na escuridão da folhagem, dos troncos e da relva. Paul e Miriam em silêncio, lado a lado, observavam. Uma a uma, convictas, as rosas inundaram-nos de brilho, parecendo atear fogueiras nas suas almas. O crepúsculo envolveu-os como fumo, não conseguindo, todavia, extinguir o fulgor das rosas.
Paul olhou Miriam nos olhos. Estava pálida e deleitada; a boca entreaberta e os olhos negros fitavam-no, muito abertos. O olhar dele parecia descer ao fundo dela. A alma de Miriam estremeceu, pois ansiava a comunhão. Ele, porém, virou-se para o lado, como se sofresse, e olhou para o arbusto.
– Parecem voar como borboletas, agitando-se – disse Paul.
Miriam olhou para as suas rosas. Eram brancas, algumas encurvadas e divinas, outras expandiam-se como em êxtase. A árvore era negra como a sombra. Ela estendeu a mão impulsivamente para as flores e, aproximando-se, tocou-as em adoração.
– Vamos embora – disse ele.
Pairava um perfume fresco de rosas cor-de-marfim, um perfume branco, virginal. Algo o fez sentir-se ansioso e prisioneiro. Caminharam ambos em silêncio.
– Até domingo – disse ele baixinho, e deixou-a; ela regressou a casa lentamente, com a alma enriquecida pela noite divinal. Ele cambaleou pelo atalho. Assim que saiu da floresta e entrou no prado, onde podia respirar, desatou a correr o mais depressa que podia. Era como se um delírio delicioso lhe percorresse as veias.
Sempre que saía com Miriam e se atrasava, sabia que a mãe se afligia e ficava preocupada, apesar de ele não perceber porquê. Assim que chegou a casa, atirando com o boné, a mãe olhou para o relógio. Tinha estado sentada a pensar, pois uma inflamação ocular impedia-a de ler. Imaginara Paul a ser arrastado pela rapariga. Ela não gostava da rapariga. «É uma daquelas que suga a alma de um homem, até ele ficar vazio», dizia de si para si, «e ele é daqueles simplórios que se deixa dominar. Ela nunca o deixará ser um homem, nunca!» Assim, enquanto ele estava com Miriam, ela revoltava-se cada vez mais.
Olhou para o relógio e disse friamente, visivelmente cansada:
– Foste muito longe esta noite.
A alma dele, ainda quente e fragilizada do contacto com a rapariga, contraiu-se.
– Levaste-a certamente a casa – prosseguiu a sua mãe.
Ele não ia responder. Mrs. Morel, examinando o filho de relance, constatou que trazia o cabelo transpirado da correria e ele, em resposta, franziu a testa pronunciadamente como era seu costume, ressentido.
– Ela deve ser maravilhosamente fascinante, pois não te consegues afastar dela, e até és capaz de correr oito milhas a esta hora da noite.
Paul sofria, balançando entre o encantamento dos momentos passados com Miriam e a constatação da aflição de sua mãe. Tinha pensado não dizer nada, recusar-se a responder. Porém, o seu coração não era tão gélido que o levasse a ignorar a mãe.
– Eu gosto de conversar com ela – respondeu irritado.
– E não há mais ninguém com quem possas conversar?
– A mãe não ia dizer nada, se eu tivesse saído com o Edgar.
– Sabes bem que dizia. Sempre que sais com alguém de lá, acho que é muito longe para andares por aí à noite, depois de vires de Nottingham... Além disso... – de repente, a sua voz adquiriu um tom de revoltado desdém – é repugnante ver duas crianças a namoriscar.
– Não é namoro – gritou ele.
– Não sei que outra coisa se lhe poderá chamar.
– Mas não é! Pensa que nos pomos a fazer coisas? Nós apenas conversamos.
– Só Deus sabe até quando e até onde isso irá parar – replicou ela, sarcástica.
Furioso, Paul deu um esticão nos atacadores das botas.
– Porque está tão zangada? – perguntou ele. – Apenas porque não gosta dela?
– Não é que não goste. Mas não suporto e nunca suportei ver crianças a namorar.
– Mas a mãe não se importa que a nossa Annie saia com o Jim Inger.
– Esses são mais conscientes do que vocês.
– Porquê?
– A nossa Annie não é dessas.
Paul não entendeu o alcance do reparo. Mas a mãe parecia cansada. Nunca mais fora a mesma depois da morte de William. E doíam-lhe os olhos.
– Bem – disse ele –, o campo é tão bonito.... Mr. Sleath perguntou por si e disse que tinha tido saudades suas. ... Já se sente melhor, mãe?
– Já devia era estar na cama há muito tempo.
– Mas a mãe também nunca se ia deitar antes de um quarto para as dez.
– Isso é que ia!
– Ah, velhota... agora diz qualquer coisa só por estar zangada comigo, não é?
Depois, Paul beijou aquela testa que conhecia tão bem: as marcas profundas entre as sobrancelhas, a massa de cabelo, agora grisalho e a inclinação das têmporas. A sua mão demorou-se no ombro dela após tê-la beijado e, em seguida, Paul encaminhou-se lentamente para a cama. Tinha esquecido Miriam; apenas se lembrava do cabelo da mãe, puxado para trás, deixando a descoberto uma testa alta, afectuosa. E, fosse pelo que fosse, via que ela estava magoada.
Quando voltou a encontrar-se com Miriam, disse-lhe:
– Não me deixes chegar atrasado hoje... o mais tardar até às dez horas. A minha mãe fica muito aborrecida.
Miriam inclinou a cabeça e reflectiu.
– Fica aborrecida porquê? – perguntou.
– Acha que não devo ficar fora até tão tarde, quando tenho de me levantar cedo no dia seguinte.
– Muito bem! – disse Miriam, com voz calma, mas não isenta de um leve tom de sarcasmo. Isso ofendeu-o, e ele voltou a chegar tarde a casa.
Que o amor começava a desabrochar entre Paul e Miriam era algo que nenhum deles estava preparado para aceitar. Ele achava-se sensato de mais para tais sentimentalismos, e ela demasiado importante. Ainda não tinham atingido a maturidade e a sua pujança psíquica estava muito atrás da física. Miriam era excessivamente sensível, como a mãe sempre tinha sido. A mais leve grosseria angustiava-a. Os irmãos, embora muito rudes, evitavam a vulgaridade nos diálogos. Era fora de casa que os homens discutiam todos os assuntos relativos à quinta. Contudo, e devido talvez aos constantes nascimentos e cruzamentos, actos naturais em qualquer quinta, Miriam revelava uma extrema hipersensibilidade a tais situações, e o sangue revolvia-se-lhe de repugnância à mais vaga sugestão a tais contactos. Paul seguia-lhe as pisadas, e a relação entre eles mantinha-se castamente imaculada. Não se podia sequer mencionar que a égua estava prenha.
Aos dezanove anos, Paul ganhava apenas vinte xelins por semana, mas era feliz. A sua pintura evoluía a contento, e a vida corria-lhe bem. Na Sexta-Feira Santa, organizou um passeio a Hemlock Stone. O grupo era formado por três rapazes da sua idade, Annie, Arthur, Miriam e Geoffrey. Arthur, agora aprendiz de electricista em Nottingham, tinha vindo a casa passar a Páscoa. Como era habitual, Morel levantara-se cedo e estava no pátio a assobiar e a serrar umas tábuas. Às sete da manhã, a família ouviu-o comprar arrufadas quentes à porta, e conversar animadamente com a garota que as vendia, tratando-a até por «minha querida». Apareceram depois mais alguns rapazitos também a vender arrufadas, mas ele mandou-os embora, dizendo-lhes que tinham sido «batidos» pela «cachopinha». Quando Mrs. Morel se levantou, toda a família dispersou. Era uma sorte para todos eles quando a mãe ficava até mais tarde na cama num dia de semana. Paul e Arthur podiam ficar a ler à vontade antes do pequeno-almoço e depois tomar a refeição sem terem de se lavar primeiro e sentar-se à mesa em mangas de camisa. Este era outro dos luxos dos feriados. A sala estava aquecida e toda a casa se libertava de preocupações e ansiedades.
Enquanto os rapazes liam, Mrs. Morel foi para o jardim. Viviam agora numa nova casa, uma casa velha, também em Scargill Street, perto da que tinham ocupado anteriormente e de onde tinham saído logo após a morte de William. Um grito de excitação chegou directamente do jardim:
– Paul... Paul... Vem cá ver uma coisa!
Era a voz da mãe. Paul atirou o livro para o lado e saiu. O jardim era muito comprido e terminava num campo cultivado. Estava um dia cinzento e frio, batido por um vento agreste vindo das bandas do Derbyshire. Dois campos mais adiante começava Bestwood, um emaranhado de telhados e casas de tijolo vermelho, de onde sobressaía a torre da igreja e o pináculo da capela paroquial. Para trás, sucediam-se florestas e colinas até aos picos cinzentos e esbatidos da serra de Pennine.
Paul pôs-se à procura da mãe. A cabeça dela despontou entre as groselheiras ainda tenras.
– Vem cá! – disse ela.
– Para quê? – perguntou ele.
– Vem cá para veres uma coisa!
Ela tinha estado a examinar os pequenos botões das groselheiras. Paul foi ao seu encontro.
– E pensar que, aqui onde estão, podia nunca ter dado com eles! – disse Mrs. Morel.
O filho colocou-se ao seu lado. Por debaixo da cerca, num pequeno canteiro, havia um emaranhado de folhas finas, como se nascidas de bolbos ainda imaturos, com três campainhas em flor. Mrs. Morel apontou para as três florinhas muito azuis.
– Olha para elas! – exclamou. – Estava eu muito entretida a examinar as groselheiras, quando pensei cá com os meus botões, «Está ali qualquer coisa muito azul .... será o resto de algum saco de açúcar?» E olha só! Qual saco de açúcar! Três glórias-da-neve, e tão bonitas! Mas de onde é que teriam vindo?
– Não sei – disse Paul.
– São mesmo uma maravilha! E eu que pensava que conhecia todas as ervas e folhas neste jardim. E não é que estas se deram bem...? Repara que é a groselheira que as protege. Não são debicadas nem pisadas!
Paul baixou-se e levantou as corolas das pequenas flores azuis em forma de campainha.
– Têm uma cor magnífica!
– Têm, não têm? – exclamou a mãe. – Suponho que vêm da Suíça, onde dizem que há coisas maravilhosas. Imagina-as só em contraste com a neve! Mas como é que elas terão vindo aqui parar? O vento não as podia ter trazido, pois não?
Paul lembrou-se então de ter plantado ali uma porção de bolbos para amadurecerem.
– E não me disseste nada – disse a mãe.
– Pois não, estava a pensar deixá-las aqui só até terem medrado.
– Estás a ver?! E eu podia não as ter visto. Nunca em toda a minha vida tive uma glória-da-neve no jardim.
Mrs. Morel estava muito excitada e orgulhosa. O jardim era para ela uma fonte de infinito prazer. Paul dava graças por a mãe viver numa casa com um grande jardim que se estendia até ao campo. Todas as manhãs, após o pequeno-almoço, ela saía e deambulava feliz pelo jardim. E, na verdade, conhecia todas as ervas e folhas no seu jardim.
Todos compareceram para o tal passeio. Prepararam um farnel e o grupo partiu feliz e animado: debruçaram-se do alto do muro da azenha; atiraram papéis para dentro de água numa das extremidades do túnel e ficaram a vê-los sair pela outra; pararam no meio da passagem aérea para peões da estação de Boathouse, fascinados com o brilho gélido dos carris.
– Vocês deviam era ver o «foguete» que passa aqui às seis e meia – disse Leonard, cujo pai era guarda de uma passagem de nível. – Nem sequer o ouvem zunir, rapazes! – E o pequeno grupo seguiu com o olhar nos carris que conduziam a Londres e os que conduziam à Escócia, deixando-se inebriar por estes dois lugares mágicos.
Em Ilkeston, os mineiros aguardavam em grupos a abertura das tabernas. Era uma cidadezinha de ócio e divertimento. Em Stanton Gate, a oficina de fundição ardia incandescente. Eles iam conversando animadamente sobre tudo o que viam. Em Trowell, atravessaram a fronteira do Derbyshire para o Nottinghamshire, e chegaram a Hemlock Stone à hora de almoço. O campo povoava-se de pessoas vindas de Nottingham e Ilkeston.
Estavam à espera de encontrar um monumento digno e respeitável, mas descobriram apenas uma pedra, pequena e rugosa, semelhante a um cepo torcido, ou a um cogumelo putrefacto, despontando pateticamente no meio do descampado. Leonard e Dick gravaram logo as suas iniciais – L.W. e R.P. – na velha pedra de arenito vermelho, mas Paul não o fez, pois tinha lido no jornal críticas mordazes aos gravadores de iniciais, que não encontravam melhor caminho para a imortalidade. E, como não podia deixar de ser, todos treparam à pedra para contemplarem o panorama.
Em baixo, nos campos, rapazes e raparigas, todos eles operários e operárias, comiam ou brincavam. Mais além avistava-se o jardim de um velho solar, cercado de teixos, moitas frondosas e cercaduras de flores amarelas de açafrão.
– Olha que jardim tão tranquilo – disse Paul para Miriam.
Ela contemplou os teixos negros e os crocos amarelos e olhou para ele agradecida. Quando estavam acompanhados por outras pessoas, ele parecia não lhe pertencer; era diferente, não era aquele Paul que compreendia o mais leve estremecimento da sua alma misteriosa, mas uma outra pessoa, que falava uma linguagem diferente da sua. Ah, como isso a magoava e lhe enfraquecia a nitidez da percepção! Só se sentia reviver quando ele vinha ao seu encontro sem esse outro Eu de casta inferior. Mas agora ele tinha-lhe pedido para olhar o jardim, tentando desta forma chegar até ela. Sem paciência para aturar o grupo, Miriam entregou-se à contemplação daquele jardim tão calmo, rodeado de tufos de açafrão amarelo. Uma sensação de quietude, quase de êxtase, envolveu-a. Era como se estivesse sozinha com ele no jardim.
Mas ele abandonou-a novamente e foi juntar-se ao grupo. Em breve iniciaram o regresso a casa. Miriam deixou-se ficar para trás, sozinha. Não se enquadrava. Raramente se relacionava com alguém: na verdade, a sua grande amiga, companheira e amante era a natureza. Viu o sol declinar languidamente. Nas sebes frias e sombrias luziam algumas folhas vermelhas. Sem pressa, detinha-se para as colher com ternura, apaixonadamente. Os seus dedos acariciavam as folhas com amor e o coração incendiava-se-lhe de paixão.
De súbito, apercebeu-se de que estava sozinha numa estrada desconhecida e apressou-se. Depois de uma curva, encontrou Paul debruçado sobre qualquer coisa que ela não conseguia ver, mas que ele observava atentamente, aplicando-se com paciência, intento, e até algum desespero. Miriam hesitou em aproximar-se.
Ele continuava concentrado em plena estrada. Na tarde cinzenta, tão desprovida de cor, um fio dourado de sol, ao longe, parecia fazê-lo sobressair em sombrio baixo-relevo. Ela contemplou-o, delgado e firme, e era como se ele lhe tivesse sido oferecido pelo sol. Uma dor profunda penetrou-a e soube então que tinha de o amar. Tinha-o finalmente descoberto, descoberto nele uma rara potencialidade, descoberto a sua solidão. Tremeu emocionada, como se estivesse perante uma «Anunciação», e aproximou-se devagar.
Ele, finalmente, levantou os olhos.
– Oh! – exclamou, agradecido. – Esperaste por mim!
Ela descobriu uma sombra profunda nos seus olhos.
– O que aconteceu? – perguntou.
– A mola partiu-se.
E ele mostrou-lhe o seu chapéu-de-chuva danificado. Subitamente, um pouco envergonhada, ela apercebeu-se de que não fora ele quem estragara o chapéu-de-chuva, mas que o responsável era Geoffrey.
– Afinal era um chapéu-de-chuva velho, não era? – disse ela. Miriam não entendia a razão de tão exagerado zelo, pois ele não era geralmente de se prender com ninharias.
– Mas este era o chapéu-de-chuva do William... e a minha mãe vai ter de saber – disse ele baixinho, tentando pacientemente consertar o chapéu-de-chuva. Estas palavras rasgaram-na como uma lâmina. Eram a confirmação da imagem que tinha dele! Olhou-o. Havia nele, porém, uma certa reserva, e ela não se atreveu a confortá-lo, nem mesmo a falar-lhe com meiguice.
– Vamos – disse ele –, não consigo arranjá-lo.
E seguiram em silêncio estrada fora.
Iam eles nessa mesma tarde a passar em Nether Green, por entre o arvoredo, quando ele lhe confidenciou, num tom algo irritado, como se lutando para se autoconvencer.
– Sabes – disse com esforço –, se uma pessoa ama, a outra também ama.
– Ah! – exclamou ela. – A minha mãe disse-me o mesmo quando eu era pequena: «O amor gera o amor.»
– Sim... algo parecido com isso... penso que deve ser isso.
– Espero que sim... porque, se não fosse assim, o amor seria algo de terrível – acrescentou ela.
– Mas é isso que acontece... pelo menos com a maioria das pessoas – respondeu ele.
E Miriam pensando que ele estivesse mais animado, sentiu-se fortalecida. Tinha considerado aquele encontro fortuito na vereda como uma revelação. E este diálogo ficou gravado na sua mente como palavra de lei.
Agora, estava com ele e do lado dele. Quando, pela mesma altura, Paul ofendeu a família dela com um insulto arrogante, ela apoiou-o e achou que ele tinha razão.
Sonhava agora com ele de uma forma viva e inesquecível. Mais tarde, os sonhos voltaram, tendo evoluído para estados psicológicos mais subtis.
Na segunda-feira de Páscoa, o mesmo grupo fez uma excursão até ao solar de Wingfield. Foi um momento de grande excitação para Miriam ao apanhar o comboio em Lethey Bridge, por entre o alvoroço da multidão num dia feriado. Saíram do comboio em Alfreton. Paul estava interessado na rua e nos mineiros a passearem os seus cães. Aquela era uma nova raça de mineiros. Miriam não se sentiu viver senão quando chegaram à igreja. Todos se mostravam algo acanhados para entrarem na igreja com os sacos da merenda, pois tinham receio de serem expulsos. Leonard, um rapaz magro e brincalhão, foi o primeiro a entrar, e Paul, que teria preferido morrer a ser mandado embora, foi o último. A igreja estava enfeitada para a Páscoa: centenas de narcisos brancos pareciam desabrochar da pia baptismal, e a luminosidade era difusa e colorida, filtrada pelos vitrais e animada por um aroma subtil a lírios e narcisos. A alma de Miriam inflamou-se nesta atmosfera. Paul, sensível à envolvência do local, receava não saber comportar-se à altura. Miriam voltou-se para ele. Ele correspondeu. Estavam juntos. Paul não quis passar para lá da divisória da comunhão, e ela apreciou o seu gesto. A sua alma elevou-se em orações ao lado dele. Paul sentia um estranho fascínio por lugares religiosos e obscuros. Todo o seu misticismo latente palpitava de vida. Ela sentia-se atraída por ele. Ele estava nela, como uma oração.
No adro da igreja, os narcisos e os junquilhos já tinham desabrochado e brilhavam ao sol como se flutuassem. As ovelhas, no parque, faziam vibrar o ar com os seus múltiplos e ténues balidos. Leonard e Dick entraram numa taberna para tomar uma bebida, para grande tristeza de Paul e Annie.
– Para que entraram na taberna? – perguntou Paul aborrecido.
– Bem – disse Dick, sorrindo –, só lá fomos beber uma limonada.
– Podiam muito bem ter ido à venda – disse Annie.
– À venda! – exclamou Leonard. – Estão a imaginar-nos... nós... ingleses de gema, a beber limonada na venda?
– Não – respondeu Paul. – Mas imagino-te com a tua enorme caneca de cerveja... inglesa de gema.
– E que mal te faz a minha caneca? – disse Leonard, limpando a boca, por sinal enorme.
Miriam só raramente falava com os outros rapazes. Tinham sido malcriados com ela uma vez e, desde essa altura, mantinha-se geralmente calada.
Passava do meio-dia quando subiram a ladeira íngreme que conduzia ao solar. Tudo em redor brilhava com suavidade, à luz de um sol quente, intenso e estimulante. As celidónias e as violetas estavam em flor. A natureza transbordava de felicidade. Tudo era perfeito: o esplendor da hera, os tons suaves e cinzentos, atmosféricos, dos muros do castelo, a harmonia que rodeava as ruínas.
O solar era de pedra dura cinzento-pálido, e as paredes exteriores brancas e repousantes. Os jovens estavam extasiados. Sentiam-se excitados, quase receosos de que o prazer da exploração destas ruínas lhes fosse negado. No primeiro pátio, situado entre muros altos e derrubados, havia algumas carroças com os varais abandonados pelo chão, e os aros das rodas cintilavam em tons vermelho-dourado de ferrugem. A serenidade era total.
Todos se mostravam desejosos de pagarem os seis dinheiros da entrada, posto o que transpuseram a medo pelo arco harmonioso e bem lançado que dava acesso ao pátio interior. Mostravam-se tímidos. No local onde antes se erguera o muro, florescia agora um velho espinheiro. Todas as espécies de espaços abertos e salas em ruínas se abriam à sua volta, na penumbra.
– Digam lá se isto não é uma maravilha? – exclamou Leonard.
– É mesmo – acrescentou Paul.
E passaram de imediato à exploração.
– Eh, malta – chamou Leonard. – Venham ver o forno que eu descobri!
E, sem perder tempo, Leonard entrou pelo buraco. Dick e Paul entraram atrás dele e sentaram-se os três no chão a gritar, como se estivessem nas entranhas da terra.
– Aqui dava bem para assar um boi, ou até dois – disse Nick.
– E um veado ou dois – acrescentou Paul.
– E um burro ou dois – rematou Leonard, pondo-se a zurrar muito alto, enquanto os outros dois lhe batiam.
Paul voltou a sair para o ar livre e a exploração continuou. Finalmente, encontraram Geoffrey e as raparigas. Geoffrey estava a comer.
– Parece que tá na hora de dar ao dente – disse Leonard.
– Eu já m’adiantei – respondeu Geoffrey, que não fizera outra coisa desde que o grupo partira.
– Onde é que nos podemos sentar? – perguntou Miriam.
– Vamos para a sala dos banquetes – alvitrou Paul.
– Como é que sabes que aquela é a sala dos banquetes? – perguntou Leonard.
– Vi numa pintura.
– Pois então, toca a sentar – disse Leonard.
No enorme salão em ruínas, com as paredes frias erguidas para o céu azul, lá se sentaram todos a comer ao sol, observando os pássaros que chilreavam pousados no florão da ampla janela.
– Então, D. Cogumelo – disse Leonard, virando-se para Paul –, sois servido desta empada de veado?
– Mil agradecimentos, D. Trinca-Espinhas – respondeu Paul. – Comerei antes esta coxinha de pão com queijo.
– Por obséquio – disse Geoffrey –, podeis apertar-vos mais, pra eu me poder sentar?
– Perdoai, Insigne Cavaleiro – respondeu Leonard. – Mas será tão grande assim vossa gordura?
– Paul – disse Annie –, tens aqui o teu ovo cozido.
– Ilustres cortesãos, deleitamo-nos hoje com um festim de ovos de aves fabulosas, postos pela nossa única fénix, e ostentando todos eles o nosso brasão, tal como neles foi gravado pelas nossas aves mais colaborantes – disse Paul.
– Ou seja... um montinho de porcaria – disse Leonard.
– E direi mais... Um brasão que é o nosso orgulho desde há muitas gerações, ámen! – disse Annie.
– Oh, sublime insígnia! – rematou Paul, fazendo Miriam desatar a rir.
Depois do almoço partiram mais uma vez à exploração das ruínas. Desta feita, as raparigas acompanharam os rapazes, que assumiram o papel de guias e professores. Uma torre alta e deveras periclitante surgiu diante dos seus olhos ao virarem uma esquina, e os rapazes logo informaram que Mary, rainha da Escócia, tinha sido ali encarcerada.
– Imaginem a rainha a subir por aqui acima... – disse Miriam em voz baixa, enquanto subia as escadas tortuosas.
– Isso, se ela se conseguisse levantar – respondeu Paul. – Sofria muito do reumatismo. Aposto que a tratavam o pior possível.
– E não achas que merecia? – perguntou Miriam.
– Acho que não. Ela era apenas uma pessoa jovial.
Continuaram a subir a escada de caracol. Uma rajada agreste entrou pelas seteiras e rodopiou pelo vão das escadas, levantando a saia de Miriam em balão, para seu grande embaraço, até que Paul agarrou na barra do vestido e o puxou para baixo. Fê-lo com destreza e simplicidade, como se lhe apanhasse uma luva do chão. Ela recordaria para sempre este momento.
A hera pendia frondosa, vetusta e bela, em torno do torreão em ruínas. Havia também algumas cravinas esparsas, com os seus botões tristes e pálidos. Miriam quis debruçar-se para apanhar um raminho de hera, mas Paul não deixou, ficando ela atrás dele, a receber um a um cada raminho que ele lhe entregava, num gesto do mais genuíno cavalheirismo. A torre parecia ondular ao vento. Do alto avistavam-se milhas e milhas de terreno arborizado e terreno de pastagens.
A cripta subjacente ao solar era muito bela e em perfeito estado de conservação. Paul não perdeu a oportunidade de a desenhar. Miriam ficou junto dele, a pensar em Mary, rainha da Escócia, fitando os montes de onde não vinha qualquer ajuda, com os seus olhos exaustos e desesperados, que não compreendiam a miséria; imaginou-a também sentada naquela cripta, escutando a história de um Deus tão frio quanto o lugar onde se encontrava.
Puseram-se de novo a caminho, exultantes, lançando um último olhar àquele solar a que se sentiam presos e que se erguia tão nítido e imponente no alto da colina.
– Imagina que aquela quinta era tua – disse Paul a Miriam.
– Sim!!
– Não era maravilhoso eu ir lá visitar-te?
Encontravam-se agora num descampado com muros de pedra, de que ele tanto gostava, e que, embora só a algumas milhas de casa, parecia tão estranho a Miriam. O grupo seguia agora disperso. Ao atravessarem um extenso prado, muito íngreme, com o sol por trás, descendo por um caminho salpicado de incontáveis pontinhos cintilantes, Paul entrelaçou os dedos no saco de rede de Miriam, que logo sentiu Annie atrás de si, atenta e ciumenta. Mas o prado estava banhado numa luz gloriosa e o caminho luzia como uma jóia, e era tão raro ele dar-lhe algum sinal... Conservou por isso os dedos muito quietos entre as cordas do saco, aflorando os dedos dele. E o mundo dourou-se inteiro, como se numa visão.
Finalmente, chegaram à vilazinha isolada e pardacenta de Crich, situada a grande altura. Atrás da vila ficava o famoso Crich Stand, que Paul avistava do jardim de sua casa. O grupo estugou o passo. Grandes extensões de terrenos estendiam-se em baixo a toda a volta. Os rapazes estavam ansiosos por chegarem ao topo da colina, que era encimada por um cabeço redondo, de que metade já se tinha desmoronado, e no topo do qual se erguia um monumento antigo, grotesco e atarracado, usado noutros tempos para enviar sinais para as planícies do Nottinghamshire e do Leicestershire.
O vento soprava forte, lá no alto, naquele local tão exposto, e a única forma de se estar protegido era ser pregado pelo vento à parede da torre. Aos seus pés abria-se o precipício, de onde se extraía a pedra calcária. Em baixo, reinava uma confusão de colinas e pequenos povoados: Matlock, Ambergate, Stoney Middleton. Os rapazes estavam ansiosos por descortinarem a Igreja de Bestwood, que ficava muito distante, no meio da floresta, um pouco para a esquerda. Mas ficaram tristes ao verem que a igreja parecia erguer-se numa planície – as colinas do Derbyshire apagavam-se na monotonia das terras baixas que se estendiam para sul.
Miriam estava um pouco assustada com o vento, mas os rapazes estavam a gostar. Continuaram a caminhada, calcorreando milhas e milhas, até Whatstandwell. Todos estavam esfomeados, pois já tinham devorado a comida toda que levavam e já lhes restava pouco dinheiro para regressarem a casa. No entanto, ainda conseguiram arranjar uma broa e um pão de passas, que cortaram em fatias finas com os canivetes, sentando-se a comer num muro, perto da ponte onde o rio Derwent corria límpido, ao som do chiar dos freios do comboio em Matlock, perto da estalagem.
Paul estava pálido de cansaço. Tinha sido o chefe do grupo durante todo o dia, e agora estava morto de cansaço. Miriam, apercebendo-se disso, manteve-se junto dele, e Paul entregou-se à sua guarda.
Tiveram de esperar uma hora na estação de Ambergate. Os comboios passavam lotados com excursionistas que regressavam a Manchester, Birmingham e Londres.
– Também podíamos ir para lá... as pessoas facilmente pensariam que íamos para muito longe – disse Paul.
Chegaram a casa bastante tarde. No caminho de regresso a casa, com Geoffrey, Miriam viu a lua nascer redonda, rubra e velada, e sentiu-se realizada interiormente.
Miriam tinha uma irmã mais velha, Agatha, que era professora. A hostilidade entre as duas irmãs era notória. Miriam considerava Agatha uma pessoa demasiado mundana e o seu sonho era ser também professora primária.
Um sábado à tarde, Agatha e Miriam estavam a vestir-se no primeiro andar. O quarto delas ficava por cima do estábulo. Era um quarto de tectos baixos, não muito grande e de paredes nuas. Miriam tinha pregado na parede uma reprodução da Santa Catarina, de Veronese. Fascinava-a aquela mulher, sentada na janela a sonhar. As suas janelas eram demasiado pequenas para lá se poder sentar. Todavia, a da frente estava coberta de madressilva e hera americana, e de lá avistavam-se as copas do bosque de carvalhos, por detrás do quintal, enquanto a minúscula janela traseira, pouco maior do que um lenço, não passava de uma fresta voltada para oriente, para a aurora que se acendia atrás das colinas arredondadas que ela tanto amava.
As duas irmãs não falavam muito uma com a outra. Agatha, bonita, baixa e determinada, tinha-se revoltado contra a atmosfera do lar e contra a doutrina do «dar a outra face». Enfrentava agora o mundo exterior, lutando para se tornar independente. Insistia nos valores da cultura, nas aparências, nas boas maneiras, na posição social, tudo coisas que Miriam de bom grado teria ignorado.
Quando Paul chegou, ambas preferiram ficar invisíveis lá em cima, para poderem descer as escadas a correr, abrirem a portinhola do fundo das escadas e verem-no entrar, ansioso por encontrá-las. Miriam tentava desesperadamente enfiar pela cabeça o rosário que ele lhe tinha oferecido, e que ficara preso no fino emaranhado dos seus cabelos. Finalmente, conseguiu colocá-lo, e as contas de madeira, castanho-avermelhado, assentavam lindamente no seu pescoço fresco e mate. Era uma rapariga bem lançada e muito bonita. Contudo, só conseguia ver uma parcela do seu corpo de cada vez no pequeno espelho pregado na parede caiada de branco. Agatha tinha comprado um espelho só para ela, com o tamanho certo, que encostava à parede sempre que precisava. Miriam estava perto da janela. De repente, escutou o estalido bem conhecido do cadeado e viu Paul a abrir a cancela com um pontapé, entrando no pátio com a bicicleta. Ele olhou para cima e ela escondeu-se. Paul avançava com indiferença, e a bicicleta acompanhava-o como se fosse um objecto animado.
– O Paul já chegou! – exclamou Miriam.
– Não estás contente? – disse Agatha, evidenciando sarcasmo.
Miriam estava ainda surpresa e perplexa.
– Então, estás ou não estás? – insistiu a outra.
– Estou, mas não quero que ele perceba e pense que eu estava à espera.
Miriam estava perplexa. Ouviu-o meter a bicicleta no estábulo e falar com Jimmy, um cavalo decrépito que tinha trabalhado nas minas.
– Atão, Jimmy, meu amigo, como vai isso? Velho e cansado, hem? Pois é, é uma pena, amigo!
Escutou o som da corda a roçar na argola, quando o cavalo levantou a cabeça às carícias do rapaz. Como ela gostava de o ouvir quando ele pensava que o cavalo estava ali para o escutar. Porém, havia uma serpente no seu Éden. Ela procurava fervorosamente descobrir dentro si se amava Paul Morel. Sentia que poderia haver algo de errado nesse impulso. Enredada em sentimentos confusos, receava desejá-lo e condenava-se por isso. E logo a penetrou uma dor intensa, de vergonha, e todo o seu ser se contraiu num espasmo de tortura. Desejaria ela Paul Morel, e saberia ele que ela o desejava? Que subtil infâmia a ameaçava! E sentiu a alma enleada em nós de vergonha.
Agatha vestiu-se primeiro e desceu rapidamente para o rés-do--chão. Miriam ouviu-a cumprimentar o rapaz num tom jovial; conhecia bem o brilho dos olhos da irmã quando saudava alguém naquele tom. Ela própria se teria sentido corajosa por tê-lo cumprimentado daquela forma. Contudo, sentia dentro da alma a auto-flagelação de o desejar, aliada a um sentimento de tortura. Em perplexa amargura, ajoelhou-se e rezou:
– Senhor, não permitas que eu ame o Paul Morel. Afasta de mim esse sentimento, se achares que eu não devo amá-lo.
Algo de estranho a fez interromper a oração. Levantou a cabeça e reflectiu. Como é que amá-lo poderia ser errado? O amor era uma dádiva de Deus e, no entanto, causava-lhe vergonha. Era por ele, por Paul Morel, que a sentia. Mas esse não era assunto que lhe dissesse respeito, era só entre ela e Deus. Tinha de fazer o sacrifício, um sacrifício por Deus e não por Paul Morel ou por si mesma. Passados alguns minutos, escondeu a cara na almofada e disse:
– Meu Deus, se é Tua vontade que eu o ame, então submeto-me, como Cristo se submeteu e morreu pelas almas dos pecadores. Faz com que eu o ame fervorosamente, pois ele é Teu filho.
Permaneceu de joelhos por mais alguns instantes, serena, mas profundamente emocionada, com o cabelo negro espalhado sobre os quadrados da colcha de retalhos, vermelhos uns, outros com raminhos de alfazema. Rezar era algo de quase essencial para ela. Depois, caía naquele arrebatamento de auto-sacrifício, identificando-se com um Deus que fora sacrificado, acto que representa para tantas almas humanas a sua bênção mais sublime.
Quando Miriam desceu, Paul estava recostado no cadeirão, em acesa discussão com Agatha, que ridicularizava uma pequena pintura que ele tinha trazido para lhe mostrar. Miriam olhou-os e fugiu à sua frivolidade, indo para a sala de estar para ficar sozinha.
A hora do chá chegou sem que ela tivesse tido possibilidade de falar com Paul; mostrava-se tão distante que ele pensava tê-la ofendido.
Miriam quebrou a rotina de ir todas as terças-feiras à tardinha à biblioteca de Bestwood. Depois de se ter encontrado regularmente com Paul durante toda a Primavera, um número de incidentes insignificantes e pequenos reparos vindos da família levaram-na a aperceber-se das suas atitudes, e decidiu pôr fim às saídas. Assim, numa bela tarde, informou Paul de que não poderia voltar a ir ter a casa dele às terças-feiras à tarde.
– Porquê? – perguntou ele, com brusquidão.
– Por nada. Porque acho melhor assim.
– Muito bem.
– Mas... – gaguejou ela – ... se quiseres estar comigo, podemos ir juntos.
– E encontramo-nos onde?
– Algures... onde tu quiseres.
– Não te quero encontrar em lado nenhum. Não compreendo porque é que não podes continuar a vir buscar-me. Mas se não vieres, não quero encontrar-me contigo.
Assim, as terças-feiras à tarde, esses dias que tinham sido tão especiais para ela e para ele, terminaram. E Paul passou a ocupar esse tempo a trabalhar. Mrs. Morel viu com bons olhos esta decisão.
Paul não aceitava que fossem namorados. A intimidade entre eles tinha sido mantida ao nível do abstracto, era um assunto da alma; visto não passar de um conceito e de uma luta exaustiva ao nível da consciência, ele via nela apenas uma amizade platónica e negava peremptoriamente a existência de algo mais. Miriam permanecia em silêncio, ou então concordava sem discutir. E ele sentia-se um idiota, pois não entendia o que se passava no seu íntimo. Através de um acordo tácito, ignoravam os reparos e as insinuações das pessoas conhecidas.
– Não somos namorados, mas apenas amigos – disse-lhe ele. – Nós sabemos que é assim. Deixa-os falar. Não importa o que dizem.
Por vezes, quando caminhavam juntos, ela metia o braço timidamente no dele. Mas ele retraía-se sempre, e ela sabia-o, o que dava lugar a um conflito violento. Com Miriam, Paul sentia-se sempre no mais alto nível de abstracção, e a sua chama de amor natural transformava-se em energia mental. E ela aceitava-o assim. Se ele estivesse bem-disposto e, como ela dizia, brincalhão, ela aguardava que ele voltasse ao normal, que ele se transformasse, e o visse a lutar de novo consigo mesmo, empolgado, apaixonado, tentando compreender a situação. Nesta paixão pela compreensão, as suas almas tocavam-se e ele era totalmente dela. Todavia, tinha de se abstrair primeiro.
Assim, ela dar-lhe o braço era para ele quase uma tortura. A sua consciência parecia desintegrar-se. A parte do corpo onde ela lhe tocava ardia com a fricção. Era uma batalha mortal para ambos e por isso ele a tratava com crueldade.
Uma tardinha, nos meados do Verão, Miriam foi chamá-lo a casa, chegando transpirada devido à subida. Paul estava sozinho na cozinha e ouviam-se os passos da mãe no primeiro andar.
– Vem, vou mostrar-te as ervilhas-de-cheiro – disse ele.
Foram até ao jardim. O céu, por detrás da cidade e da igreja, era vermelho-alaranjado, e o jardim inundava-se de uma luminosidade estranha e quente que dava sentido a cada folha. Paul avançou pelo estreito carreiro ladeado de ervilhas-de-cheiro, colhendo flores creme e azul-pálido por aqui e por ali. Miriam seguia-o, aspirando as fragrâncias. As flores atraíam-na com tal intensidade que ela sentia necessidade de as tornar uma parte de si mesma. Quando se baixava e cheirava uma flor, era como se ambas se amassem uma à outra. Paul detestava vê-la fazer isso. Ela expunha-se demasiado naquela sua atitude, até mesmo intimamente.
Assim que o ramo ficou de bom tamanho, regressaram a casa. Ele escutou por momentos os passos calmos da mãe no andar de cima e, depois, disse:
– Vem cá, deixa-me enfeitar-te com elas.
E espetou duas ou três de cada vez à volta do decote do vestido, recuando em seguida para admirar o efeito.
– Sabes – disse ele, tirando o alfinete da boca – a mulher devia colocar sempre as flores em frente ao espelho.
Miriam sorriu. Para ela, as flores deviam ser colocadas no vestido sem qualquer preocupação. Se Paul se queria dar ao trabalho de lhe espetar as flores no vestido com rigor, isso era lá com ele.
Paul ficou muito ofendido com a gargalhada que ela deu.
– Algumas mulheres fazem-no.... as que são como devem ser – disse ele.
Miriam sorriu novamente, mas desta vez melancólica, por ele a ter misturado com as mulheres em geral. Teria ignorado a afronta, se tivesse partido de outro homem qualquer. Mas, vinda dele, magoava-a.
Estava ele a terminar o arranjo de flores quando ouviu os passos da mãe nas escadas. Espetou o último alfinete à pressa e afastou-se.
– Não deixes que a minha mãe perceba – disse ele.
Miriam pegou nos livros e ficou à entrada da porta, olhando desapontada para o belíssimo pôr do Sol. Não tornaria a vir a casa de Paul, disse ela.
– Boa tarde, Mrs. Morel – cumprimentou-a Miriam, respeitosamente. As suas palavras soaram como se ela não tivesse o direito de estar ali.
– Ah, és tu, Miriam! – respondeu Mrs. Morel friamente.
Paul insistia em que todos aceitassem a sua amizade com a rapariga, e Mrs. Morel era demasiado esperta para demonstrar abertamente qualquer relutância.
Só quando ele fez vinte anos é que a sua família teve possibilidades económicas para ir de férias. Desde que casara, Mrs. Morel nunca tinha ido de férias, excepto para visitar a irmã. Finalmente, Paul tinha conseguido juntar dinheiro suficiente para levar a família de férias. O grupo era o seguinte: alguns amigos de Annie, um amigo de Paul, um rapaz do escritório onde Paul tinha estado anteriormente e Miriam.
A reserva dos quartos provocou grande alarido. Paul e a mãe debateram várias vezes o assunto. Queriam uma casinha rústica mobilada para duas semanas. Ela achava que uma semana seria suficiente, mas ele insistia em duas. Paul saiu logo de manhã, antes de o correio chegar. Assim, quando voltou, as primeiras palavras da mãe foram:
– Paul, sabes uma coisa... aquela espertalhona de Skegness quer só quatro guinéus por semana por aquele seu barraco miserável.
– Então, vai ter muito de esperar – disse Paul.
– Também acho – respondeu a sua mãe, indignada. Nessa mesma noite, Paul escreveu outra carta. Receberam finalmente resposta de Mablethorpe – uma casinha que preenchia os seus desejos, por trinta xelins por semana. Houve uma explosão de alegria. Paul estava radiante pela mãe. Agora sim, ela ia ter umas verdadeiras férias. À noite, ficavam sentados a imaginar como seriam. Entretanto, chegaram Annie, Leonard, Alice e Kitty. Havia grande alegria e expectativa. Paul contou a Miriam. Ela pareceu feliz, mas comedida. Porém, o lar dos Morels vibrava de excitação.
CONTINUA
A cozinha era muito pequena e esquinada. A quinta tinha sido inicialmente o casebre de um jornaleiro, e a mobília estava velha e gasta. Mas Paul gostava da casa; gostava da serapilheira que substituía o tapete da chaminé e daquele vão patusco por baixo das escadas, e do postigo que se abria ao fundo e através do qual, se se curvasse, podia ver as ameixoeiras do jardim das traseiras e os graciosos cabeços arredondados que se recortavam à distância.
– Não te queres deitar? – disse Mrs. Leivers.
– Oh, não... não estou cansado – respondeu Paul. – É maravilhoso andar lá por fora, não é? Vi um abrunheiro em flor e muitas celidónias. Estou tão feliz por estar sol.
– Queres comer ou beber alguma coisa?
– Não, obrigada.
– Como está a tua mãe?
– Penso que se sente cansada... tem andado muito ocupada. Talvez vá em breve para Skegness comigo. Assim, terá oportunidade de descansar. Quem me dera que isso aconteça.
– Sim – respondeu Mrs. Leivers. – É um milagre que ela não esteja doente.
Miriam andava de um lado para o outro a preparar o jantar. Paul observava tudo o que se passava. As suas faces estavam pálidas e magras, mas os olhos continuavam, como sempre, rápidos e vivos. Ia observando os movimentos estranhos, quase rapsódicos, da rapariga, levando um tacho de guisado para o forno ou vigiando a panela. A atmosfera de sua casa era diferente, lá tudo parecia vulgar. Quando lá fora Mr. Leivers gritou com o cavalo, que se preparava para comer as roseiras no jardim, a rapariga assustou-se e olhou em volta com os seus olhos muito negros, como se algo tivesse vindo perturbar o seu mundo. Sentia-se o silêncio dentro e fora de casa. Miriam parecia estar a viver um conto de fadas, onde era uma donzela cativa e o seu espírito vagueava por uma terra distante e mágica. E a sua túnica azul, velha e desbotada, e as botas já muito gastas, pareciam os andrajos românticos da mendiga do Rei Cophetua.
Subitamente, sentiu os olhos dele, azuis e penetrantes, devorá-la. No mesmo instante as suas botas gastas e o seu velho vestido puído magoaram-na. Lamentava profundamente que ele estivesse a ver tudo. Pois se ele até sabia que a meia dela não estava completamente esticada. Dirigiu-se para a copa com as faces ruborizadas. Mais tarde, as mãos tremiam-lhe levemente durante as tarefas domésticas, quase deixando cair tudo aquilo em que pegava. Quando o seu sonho interior era abalado, o seu corpo estremecia com a trepidação. Lamentava profundamente que ele visse tanta coisa.
Mrs. Leivers sentou-se e conversou durante algum tempo com o rapaz, embora tivesse o trabalho à espera. Era todavia demasiado educada para o deixar sozinho. A certa altura, pediu licença e levantou-se. Daí a pouco olhou para a panela:
– Miriam, querida! – chamou. – As batatas estão sem água!
Miriam respondeu como se algum bicho lhe tivesse mordido.
– E depois, mãe? – exclamou ela.
– Não seria grave se eu não tas tivesse confiado – disse a mãe. – E espreitou para dentro da panela.
A rapariga pôs-se hirta como se tivesse levado um soco. Os seus olhos negros dilataram-se e ficou estática, no mesmo lugar.
– Tenho a certeza de que ainda há cinco minutos as vi – respondeu, crispada, sentindo-se culpada.
– Eu entendo – disse a mãe. – São coisas que acontecem.
– Não estão muito queimadas – disse Paul. – Não tem importância, pois não?
Mrs. Leivers olhou para o jovem com os seus olhos castanhos, magoados.
– Não teria importância, se não fosse pelos rapazes – disse ela. – Só Miriam sabe o barulho que eles fazem quando as batatas se pegam.
«Nesse caso», pensou Paul com os seus botões, «não deviam deixá-los fazer tanto barulho.»
Daí a nada, entrou Edgar. Vinha de perneiras e trazia as botas cobertas de terra. Era bastante baixo e muito formal para lavrador. Olhou de relance para Paul, cumprimentou-o de longe e perguntou:
– O comer está pronto?
– Está quase, Edgar – respondeu a mãe desculpando-se.
– Pois eu já estou pronto – disse o jovem, pegando no jornal e começando a ler. Entretanto, chegaram os restantes membros da família. O almoço foi para a mesa. A refeição decorreu com grande informalidade. A excessiva delicadeza e tom apologético da mãe realçavam mais o comportamento indelicado dos filhos. Edgar provou as batatas, mexeu a boca rapidamente como um coelho, olhou indignado para a mãe e disse:
– Estas batatas estão esturradas, mãe!
– Pois estão, Edgar... distraí-me por um minuto. Mas talvez possas comer pão, se não as conseguires comer.
Edgar olhou com raiva para Miriam.
– O que estava a Miriam a fazer, para não poder tomar conta delas? – disse ele.
Miriam levantou os olhos. A boca entreabriu-se-lhe, os seus olhos brilharam intensos, pestanejantes, mas permaneceu calada. Engoliu a raiva e a vergonha, e baixou a cabeça.
– Tenho a certeza de que não foi por mal – disse a mãe.
– Nem umas batatas sabe cozer – disse Edgar. – Pra que serv’ela aqui em casa?
– Pra ir prà despensa comer tudo o que sobra – disse Maurice.
– Eles não se esquecem daquela tarte de batata que a nossa Miriam comeu – disse o pai, a sorrir. Miriam sentia-se completamente humilhada. A mãe ficou calada, a sofrer como uma mártir, sentindo-se a mais nesta refeição atribulada.
Paul estava perplexo com tudo o que via. Não conseguia perceber a razão de tão violenta reacção só porque umas batatas se tinham queimado. A mãe dava a tudo, mesmo à mais insignificante tarefa doméstica, a importância de um dever religioso. Os filhos ressentiam-se com isso e, vendo cerceadas as suas liberdades, respondiam-lhe com brutalidade e também com irónica arrogância.
Paul estava a passar da infância à idade adulta. Esta atmosfera, onde tudo adquiria um valor religioso, tinha a seus olhos um fascínio subtil. Pairava no ar algo de indefinível. A sua própria mãe era lógica. Mas aqui havia algo de diferente, algo que ele amava, algo que por vezes detestava.
Miriam discutiu com os irmãos aguerridamente. Mais tarde, depois do almoço, quando todos já se tinham ido embora, a mãe disse:
– Desapontaste-me muito à hora do almoço, Miriam.
A rapariga baixou a cabeça.
– Eles são uns brutos! – exclamou subitamente, com os olhos flamejantes.
– Mas tu tinhas prometido que não respondias, não tinhas? – disse a mãe. – E eu acreditei em ti! Não suporto ver-te discutir.
– Mas eles são tão irritantes! – exclamou Miriam. – E... e malcriados.
– Sim, minha querida. Mas quantas vezes já te disse para não responderes ao Edgar? Será que não podes deixá-lo dizer o que lhe apetece?
– Mas porque há-de ele dizer o que lhe apetece?
– Miriam, será que não és suficientemente forte para o suportares, mesmo que o faças só por mim? Serás tão fraca que tenhas de discutir sempre com eles?
Mrs. Leivers pregava inflexivelmente a doutrina do «dar a outra face», mas não conseguia ensiná-la aos filhos. Era contudo bem-sucedida com as filhas, e Miriam era a sua filha dilecta. Os rapazes ficavam furiosos quando elas lhe davam a outra face, e Miriam era muitas vezes suficientemente orgulhosa para o fazer. Eles então cuspiam-lhe e detestavam-na. E ela refugiava-se na sua orgulhosa humildade, fechando-se em si mesma. Havia sempre este sentimento de conflito e de discórdia no seio da família Leivers. Embora os rapazes rejeitassem amargamente o eterno apelo aos seus sentimentos mais profundos de resignação e emproada humildade, acabavam por ceder. Não conseguiam imaginar apenas um sentimento humano comesinho ou uma simples amizade com um estranho: estavam sempre ansiosos por algo de mais profundo. O comum mortal era para eles superficial, trivial e insignificante. E, assim, por falta de hábito, eram dolorosamente rudes nos mais simples contactos sociais e, embora sofressem com isso, continuavam a arvorar uma insolente superioridade. Todavia, bem no fundo, ansiavam pela intimidade que não podiam lograr, pois eram demasiado reservados e qualquer tentativa de aproximação era imediatamente bloqueada pelo rude desprezo que nutriam pelos outros. Buscavam uma intimidade genuína, mas não se conseguiam aproximar normalmente das outras pessoas, pois recusavam-se a dar o primeiro passo e desprezavam a trivialidade que envolve a generalidade das relações humanas.
Paul deixou-se arrastar pelo sortilégio de Mrs. Leivers. Tudo adquiria um significado religioso e profundo quando ele estava com ela. A alma ferida dele, altamente evoluída, procurava-a em busca de alimento. Juntos pareciam filtrar de cada experiência a sua verdade vital.
Miriam era bem a filha de sua mãe. De tarde, ainda o sol brilhava, mãe e filha foram com ele passear pelos campos. Iam em busca de ninhos e encontraram um de carriça na cerca do pomar.
– Quero que vejas uma coisa – disse Mrs. Leivers.
Ele baixou-se e meteu o dedo cautelosamente por entre os espinhos, penetrando no orifício redondo da entrada do ninho.
– É quase como se metêssemos o dedo dentro do corpo de um pássaro – disse ele. – É tão quente. Dizem que o pássaro faz o ninho redondo como uma chávena, calcando-o com o peito. Sempre gostava de saber como é que ele fez o tecto redondo. – Para as duas mulheres, o ninho era o começo da vida. Depois desse dia, Miriam vinha visitá-lo todos os dias. Sentia-o tão próximo de si. Descendo novamente rente à cerca com a rapariga, Paul reparou nas celidónias, sobressaindo como salpicos de ouro na beira do valado.
– Gosto delas quando as pétalas se abrem completamente à luz do sol – disse ele. – Parecem comprimir-se contra o sol. – E foi quanto bastou para as celidónias passarem a exercer sobre ela um certo fascínio. Antropomórfica como era, incentivava-o a apreciar as coisas desta forma, e elas depois ganhavam vida para ela. Parecia necessitar que as coisas brilhassem na imaginação ou na alma dele primeiro, antes de sentir que as possuía. Sempre se vira privada de uma vida normal pelo seu próprio fervor religioso, que fazia o mundo parecer-lhe um jardim de convento ou um paraíso, onde o pecado e o conhecimento ou não existiam ou eram, pelo contrário, algo de cruel e feio.
Foi assim, nesta atmosfera de subtil intimidade, neste encontro de sentimentos comuns pelas coisas da natureza, que o amor nasceu.
Mas só passado muito tempo, Paul se deu verdadeiramente conta da existência de Miriam. Após a doença teve de permanecer em casa durante dez meses. Foi passar algum tempo a Skegness com a mãe e sentia-se verdadeiramente feliz. Mas até da praia ele escrevia longas cartas a Mrs. Leivers falando-lhe da praia e do mar. E trouxe consigo os seus queridos esboços da costa plana de Lincoln, ansioso por lhos mostrar. Iam com certeza interessar mais aos Leivers do que tinham interessado à sua própria mãe. Não era a sua arte que preocupava Mrs. Morel, mas sim ele próprio e o seu futuro. Porém, Mrs. Leivers e os filhos eram quase seus discípulos. Davam-lhe inspiração e faziam-no brilhar no seu trabalho, ao passo que a mãe o influenciava de forma a torná-lo determinado, paciente, obstinado, incansável.
Em breve se tornou amigo dos rapazes, cuja rudeza era apenas superficial. Todos patenteavam, quando podiam confiar neles próprios, uma bondade e amabilidade muito estranhas.
– Vens comigo para a leira? – perguntou Edgar, um tanto hesitante. Paul foi com ele alegremente e passou a tarde a cavar e a desbastar os nabos com o amigo. Paul costumava deitar-se com os três irmãos no monte de feno do celeiro a contar-lhes histórias sobre Nottingham e a Thomas Jordan. Eles, por sua vez, ensinaram-no a ordenhar e deixavam-no encarregar-se de pequenas tarefas tanto quanto quisesse, tais como segar feno ou despolpar nabos. Nos meados do Verão, Paul ajudou-os a segar o feno e tornou-se seu grande amigo. Aquela família vivia na verdade bem longe do mundo. Assemelhavam-se de certa forma a «les derniers fils d’une race épuisée»1. Embora os rapazes fossem robustos e saudáveis, eram esquivos e extremamente sensíveis, o que os tornava tão solitários. Mas, uma vez ganha a sua confiança, mostravam-se amigos fiéis e dedicados.
Miriam só mais tarde aconteceu. Mas ele entrara na vida dela antes de ela aparecer na sua. Numa tarde sombria, quando os homens estavam no campo e os mais novos na escola, apenas tendo ficado em casa Miriam e a mãe, ela perguntou-lhe, após breves momentos de hesitação:
– Já viste o baloiço?
– Não – respondeu ele. – Onde está?
– No estábulo – disse ela.
Ela hesitava sempre em dizer-lhe ou mostrar-lhe alguma coisa. Os homens têm uma noção de valor tão diferente da das mulheres que todos os seus objectos mais queridos e valiosos eram frequentemente motivo de escárnio e insulto por parte dos irmãos.
– Então vamos! – respondeu ele, levantando-se de imediato.
Havia dois estábulos, um de cada lado do celeiro. No estábulo mais baixo e escuro havia lugar para quatro vacas. As galinhas esvoaçavam sobre a manjedoura, cacarejando, enquanto o rapaz e a rapariga se aproximavam da corda grande e grossa, que pendia suspensa de uma viga na escuridão e estava presa à parede, a uma cavilha.
– Parece uma corda! – exclamou ele, satisfeito, e sentou-se ansioso por experimentar. Porém, levantou-se logo.
– Vá! Experimenta tu primeiro! – disse, voltando-se para a rapariga.
– Estás a ver – respondeu ela, entrando no celeiro –, é preciso pôr uns sacos no assento. – E assim tornou o assento mais confortável, o que muito o alegrou. Paul segurou-se à corda.
– Vem! – disse ele.
– Não, não quero ser a primeira – respondeu ela.
E manteve-se afastada, no seu jeito indiferente e calmo.
– Porquê?
– Vai tu agora! – insistiu ela.
Era talvez a primeira vez na vida que ela sentia prazer em fazer o que um homem lhe dizia, em poder mimá-lo. Paul olhou para ela.
– Está bem – disse ele, sentando-se no baloiço. – Cuidado!
Deu um salto para cima do baloiço e logo voou pelo ar, quase saindo pela porta, que tinha a parte superior aberta, podendo ver lá fora a chuva a cair miúda, o pátio sujo, o gado desolado junto à carroça preta do estábulo e, ao fundo, a cortina verde e cinza da floresta. Ela mantinha-se cá por baixo, com a sua boina vermelha à escocesa, a observá-lo. Ele olhou para ela, e ela viu os seus olhos azuis a brilharem.
– É um baloiço formidável – disse ele.
– Pois é.
Todo ele se lançava pelo ar, como um pássaro em voo picado, só pelo prazer do movimento. E então olhou para baixo, para ela, e a boina vermelha sobre os caracóis negros, o rosto bonito e afável, tão sereno como se estivesse a meditar, subiram até ele. Estava escuro e frio dentro do estábulo. Subitamente uma andorinha desceu das alturas do forro do telhado e saiu como uma seta pela porta.
– Não sabia que estávamos a ser observados por um passarinho – disse ele.
Ele baloiçava-se desabridamente. Ela sentia-o descer e subir no ar, como se impelido por uma força desconhecida.
– Agora vou morrer – disse ele, numa voz sonhadora e despojada, como se ele próprio fosse o movimento moribundo do baloiço. Ela olhava-o, fascinada. Bruscamente, ele travou e saltou.
– Já andei muito tempo – disse ele. – Isto é um baloiço formidável, é realmente um baloiço formidável.
Miriam estava divertidíssima, pois ele tinha levado o baloiço a sério e sentira-se bem a andar nele.
– Não, continua – disse ela.
– Porquê?... Não queres andar? – perguntou ele espantado.
– Não me apetece muito. Mas vou andar só um bocadinho.
Ela sentou-se no baloiço, enquanto ele segurava os sacos.
– É formidável, vais ver – disse ele, empurrando-a. – Mantém os calcanhares bem levantados, senão batem na manjedoura.
Miriam sentia a precisão com que ele a agarrava no momento exacto e a força certeira com que a empurrava, e sentia medo. Uma onda quente de medo percorreu-a até ao ventre. Ela estava nas mãos dele. O impulso firme e inevitável surgia de novo no momento certo. Ela agarrava-se à corda, quase a desmaiar.
– Oh – disse ela a rir, cheia de medo. – Mais alto não!
– Mas tu não vais nada alto – protestou ele.
– Mas mais alto não!
Paul apercebeu-se do medo na voz dela, e parou. O coração dela derreteu-se numa dor cálida, quando chegou o momento de novo impulso, mas ele deixou-a sozinha, e ela pôde respirar outra vez.
– Não queres mesmo ir mais alto? – perguntou ele. – Queres que te mantenha nessa altura?
– Não, eu ando sozinha – respondeu ela.
Então ele afastou-se e ficou a vê-la.
– Mal te mexes – comentou ele.
Ela esboçou um sorriso, envergonhada, e de repente desceu.
– Dizem que quem sabe andar de baloiço não enjoa no mar – disse ele, enquanto subia para o baloiço outra vez. – Não creio que alguma vez venha a enjoar.
Começou a andar novamente. Para ela havia algo nele que a fascinava. Naquele momento ele era apenas uma peça de um objecto em movimento e tudo nele se movia. Nem ela nem os irmãos conseguiam libertar-se assim. Sentia o entusiasmo desabrochar dentro de si. Era como se ele fosse uma chama, e tivesse ateado o entusiasmo dentro dela enquanto se baloiçava no ar.
E, gradualmente, a intimidade de Paul com a família Leivers privilegiava três pessoas: a mãe, Edgar e Miriam. Na mãe encontrava uma simpatia e um encanto que pareciam abrir-lhe o coração. Edgar era o seu melhor amigo. Quanto a Miriam, digamos que a ia aturando, pois parecia-lhe ser muito submissa.
Mas a rapariga, a pouco e pouco, foi-o atraindo. Quando ele trazia o caderno dos esboços, era sempre ela quem observava mais longamente o último desenho. E então, olhava para ele e perguntava, com os olhos negros a luzir, como águas agitadas por uma corrente dourada no meio da escuridão:
– Porque será que gosto tanto deste?
E algo no peito dele se retraía perante estas observações tão deslumbradas, tão íntimas e tão próximas.
– Sim, porque será? – perguntava ele.
– Não sei – parece tão real.
– É porque... é porque quase não tem sombras... é mais como uma cintilação... como se eu tivesse pintado a cintilação do protoplasma das folhas, e de tudo, e não a rigidez das formas. Isso para mim é coisa morta. Só a cintilação contém vida. A forma é uma crosta morta. A cintilação está, realmente, no interior.
E ela, mordendo o dedinho minúsculo, ponderava sobre tais afirmações. Davam-lhe uma nova sensação de vida e davam vida a coisas que até aí não significavam nada para ela. Conseguia encontrar algum significado nos discursos dele, sempre tão abstractos e intrincados. Era através deles que ela chegava claramente aos objectos amados.
Certo dia, ela tinha estado sentada junto dele, ao pôr do Sol, enquanto ele pintava alguns pinheiros batidos pelo clarão rubro que avançava do poente. Ele mantivera-se calado.
– Já está! – disse ele, de repente. – Mesmo o que eu queria. Agora, olha para eles e diz-me se são troncos de pinheiro ou carvões incandescentes, estacas de fogo a arder na escuridão. A sacra ardente de Deus, aquela que não se apaga.
Miriam olhou e sentiu medo. Mas distinguia perfeitamente os troncos de pinheiro e achava-os magníficos. Ele arrumou a caixa das tintas e levantou-se. De repente, olhou para ela.
– Porque estás sempre tão triste? – perguntou.
– Triste! – exclamou ela, olhando para ele com os seus olhos castanhos, admirados, maravilhosos.
– Sim – disse ele. – Tu andas sempre, sempre triste.
– Não... Nem um pouco! – exclamou ela.
– Até a tua alegria parece uma chama ateada pela tristeza – insistiu ele. – Nunca estás alegre, nem sequer normal.
– Pois não – disse ela, pensativa. – Dá que pensar... Porque será...?
– Porque tu não és.... porque tu és diferente por dentro... como um pinheiro... e depois incendeias-te... mas não és uma árvore qualquer, com folhas irrequietas e alegres...
Paul emaranhou-se no seu próprio discurso; mas ela bebia as suas palavras e ele teve uma sensação estranha e estimulante, como se os seus sentimentos fossem novos. Ela chegava-lhe tão perto da alma. Estranho estímulo este.
Mas às vezes odiava-a. O irmão mais novo de Miriam só tinha cinco anos. Era um menino débil, de enormes olhos castanhos e um rostinho frágil e esquisito; parecia um anjo do Coro dos Anjos, de Reynolds, com um toque de duende.
Miriam ajoelhava-se frequentemente junto da criança e apertava-o contra o peito.
– Meu Hubert! – cantarolava ela com uma voz possante, a transbordar de amor. – Meu Hubert!
E, envolvendo-o nos seus braços, embalava-o mansamente de um lado para o outro com amor, de face levantada ao céu, olhos semicerrados e voz embebida de ternura.
– Pára! – disse a criança, constrangida. – Pára, Miriam!
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela do fundo da garganta, como se estivesse em transe, balançando também, como se prestes a desfalecer num êxtase de amor.
– Pára! – repetiu a criança, franzindo a testa desanuviada.
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela.
– Porque fazes tanto espalhafato? – gritou Paul, profundamente afectado pela emoção exagerada de Miriam. – Porque não ages normalmente com ele?
Ela largou a criança e não respondeu. A sua intensidade, que não deixaria transparecer qualquer emoção numa situação normal, deixava o jovem quase num frenesim. Este contacto desprotegido e tímido com a alma dela chocava-o. A sua mãe era reservada, e ele estava habituado a ela. E, nessas alturas, sentia-se agradecido de alma e coração por ter a mãe que tinha, tão sensata e tão sã.
Toda a vida do corpo de Miriam se reflectia nos seus olhos, normalmente escuros como as igrejas, mas que podiam inflamar-se como uma conflagração. A sua expressão meditativa raramente se alterava. Talvez ela tivesse sido uma das mulheres que acompanharam Maria quando Jesus morreu. O seu corpo não era vivo, flexível. Andava de forma oscilante, pesada até, de cabeça inclinada para a frente, meditativa. Não sendo propriamente desajeitada, nenhum dos seus movimentos parecia o movimento correcto. Muitas vezes, quando limpava os pratos, ficava confusa e desgostosa, por ter partido em duas metades uma chávena ou um copo. Era como se, por medo e falta de confiança, se tivesse aplicado demasiado. Não sabia o que eram relaxamento ou abandono. Agarrava-se a tudo com rigidez e intensidade, e o seu esforço, de excessivo, fechava-a sobre si mesmo.
Raramente alterava a forma de andar, tensa, balançada, projectada para a frente. De vez em quando, ia com Paul dar uma corrida pelos campos e então os seus olhos brilhavam inteiros, num êxtase que o assustava. Mas tinha medo de fazer exercício físico. Se tivesse de saltar uma cerca, apertava as mãos de forma angustiante e perdia a presença de espírito. E ele não conseguia persuadi-la a saltar, mesmo um obstáculo baixo. Os olhos dela dilatavam-se, ficavam expostos, palpitantes.
– Não – gritava ela, sorrindo apavorada. – Não!
– Tens de tentar – gritou ele uma vez e, empurrando-a para a frente, fê-la cair da cerca. Mas o grito selvagem que ela deu, como se estivesse prestes a perder a consciência, feriu-lhe as entranhas. Mas ela caiu de pé e em segurança, e posteriormente passou a ter mais coragem.
Paul e Miriam iam muitas vezes passear juntos pelos campos até ao lago Nethermere. Ele era naturalmente ágil e muito activo. Andava sempre a saltar de um lado para outro. Ela, no entanto, mantinha sempre o mesmo curso, quase sem alterações. E ele, a pouco e pouco, vinha para junto dela, moderava o passo e caminhava com ela, de cabeça baixa, mas só até chegarem à água. A margem do lago estava pejada das penas brancas dos cisnes. Sentavam-se entre os seixos. Subitamente, ele descobria um seixo bonito e bem liso, levantava-se, e atirava-o à água para provocar ondinhas.
– Consegues fazê-los saltar? – perguntou Paul.
– Não muito bem! – respondeu ela, abanando a cabeça. E continuou sentada a observá-lo.
– Ora vê! – gritou ele. – Quatro saltinhos.
– Sim senhor – disse ela, elogiando-o. – Formidável. – Contudo, ele depressa se fartou e veio sentar-se novamente junto dela.
– Porque não queres também fazer ondinhas? – perguntou ele.
– Porque não sei – respondeu ela.
– Tu nunca queres fazer nada! – disse ele.
– Bem vês, tenho a lida da casa para fazer.
Paul não deu seguimento à discussão, preferindo encetar um diálogo sobre livros.
Miriam estava muito triste com o seu destino.
– Não gostas de estar em casa? – perguntou-lhe Paul surpreendido.
– E quem é que gosta? – respondeu ela, num tom cavo e profundo. – O que é estar em casa? Passar os dias a limpar o que os rapazes sujam em menos de cinco minutos. Não quero estar em casa!
– Então o que é que queres?
– Quero fazer alguma coisa. Quero ter uma oportunidade, como toda a gente. Porque é que eu, só por ser rapariga, tenho de ficar em casa e não me é permitido ser alguém? Que oportunidades é que eu tenho?
– Oportunidades para quê?
– Para saber de tudo, para aprender... para fazer qualquer coisa. Não é justo que isto aconteça apenas por eu ser mulher.
Ela falava com muita amargura. Paul pôs-se a pensar. Em casa, Annie parecia até quase contente por ser rapariga. Não tinha tantas responsabilidades e tudo era mais fácil para ela. Nunca quisera ser qualquer outra coisa além de rapariga. Mas Miriam desejava quase furiosamente ser homem. E, contudo, ao mesmo tempo detestava os homens.
– Mas ser homem ou mulher é a mesma coisa – disse Paul, franzindo a testa.
– Ai é?... Os homens têm tudo.
– Eu acho que as mulheres deviam estar contentes por serem mulheres, como os homens estão por serem homens – respondeu ele.
– Não! – Ela abanou a cabeça. – Nem pensar! Os homens têm tudo.
– Mas o que é que queres, afinal? – perguntou ele.
– Quero aprender. Porque é que eu hei-de ficar sem saber nada?
– Mas afinal o que queres tu aprender? Matemática e francês...?
– E porque é que eu não hei-de aprender matemática... Sim – gritou ela, abrindo os olhos em ar de desafio.
– Tu podes aprender tudo aquilo que eu sei – disse ele. – Eu ensino-te, se quiseres.
Os olhos dela arregalaram-se. Como professor, ele não lhe inspirava confiança.
– Gostavas? – perguntou Paul.
Ela estava de cabeça baixa a chuchar no dedo, sorumbática.
– Gostava... – disse ela, hesitante.
Ele conversava frequentemente com a mãe sobre todas estas coisas.
– Gostava de ser homem, mãe? – perguntou ele.
– Por vezes... mas é uma parvoíce... penso que não... não quero e nunca quis ser outra pessoa diferente da que sou.
– E porque é que gostava de ser homem, mesmo só às vezes?
– Bem, meu filho – respondeu a mãe a sorrir – penso que conseguiria fazer mais do que alguns homens, o que não é para admirar.
– Eu cá não quero ser mulher – disse ele, pensativo. – E acho que não conseguia ser uma mulher melhor do que as que já são mesmo mulheres.
– Não – disse a mãe a sorrir. – Também acho que não... Mas, por vezes, nós sentimos que poderíamos fazer mais do que os homens...
– Talvez a mãe pudesse... – disse ele.
– Bem... – respondeu ela com a sua curiosa fungadela habitual. – Sabes, meu filho – continuou ela – a natureza é para ser respeitada. E quando uma mulher deseja ardentemente ser homem, podes apostar a vida em como ela não é lá grande coisa como mulher.
– Detesto uma mulher que deseje ser homem – disse ele.
– Apenas demonstra que o seu orgulho de mulher está demasiado enfraquecido – respondeu a mãe. Paul falava sempre com a mãe, pois ela era a sua pedra de toque.
– Vou ensinar álgebra à Miriam – disse ele.
– Bem... – disse Mrs. Morel – espero que lhe seja proveitoso.
Aproximava-se o crepúsculo quando Paul se dirigiu para a quinta, na segunda-feira à tardinha. Miriam acabara de varrer a cozinha e estava ajoelhada junto à lareira quando ele entrou. Todos tinham saído, excepto ela. Olhou-o ruborizada, com os olhos negros a brilhar e os cabelos magníficos caídos à volta do rosto.
– Olá – disse ela, num tom suave e musical. – Já sabia que eras tu!
– Como é que adivinhaste?
– Reconheci os teus passos. Ninguém anda tão depressa e firmemente como tu.
Ele sentou-se e suspirou.
– Estás pronta para aprender álgebra? – perguntou ele, tirando um livrinho do bolso.
– Mas... – Ele sentiu-a recuar.
– Mas tu disseste que querias – insistiu ele.
– Mas hoje à noite... – começou ela, titubeante.
– Mas eu vim de propósito. E, se queres aprender, alguma vez tens de começar.
Ela apanhou as cinzas com a pá do lixo e olhou para ele, esboçando um sorriso trémulo.
– Sim, mas... esta noite... Sabes, ainda não pensei nisso.
– Por amor de Deus... Vai despejar as cinzas e vem ter comigo.
Paul saiu e sentou-se no banco de pedra do pátio das traseiras, perto das grandes bilhas de leite. Os homens estavam no estábulo. Ele conseguia ouvir o som cadenciado do leite, jorrando para os baldes. Ela voltou logo, com um punhado de maçãs grandes e esverdeadas.
– Estas são das que tu gostas – disse ela.
Ele deu uma trincadela na maçã.
– Senta-te – disse ele com a boca cheia.
Ela, míope, começou a espreitar por cima do ombro dele. Isso irritou-o tanto que lhe entregou logo o livro.
– Vê à vontade – disse ele. – Aqui há apenas letras para cada número. Escreves um a, em vez de um «2» ou um «6».
Começaram a trabalhar, ele a explicar e ela debruçada sobre o livro. Ele era rápido e impetuoso. Ela nunca respondia. Por vezes, quando ele lhe perguntava:
– Estás a perceber? – ela olhava-o com uns olhos sorridentes e amedrontados.
– Então, não estás a perceber nada! – gritava ele.
Tinha ido demasiado depressa. Mas ela não tinha dito nada. Ele fez-lhe mais perguntas e depois irritou-se. Ficava com o sangue a ferver de a ver ali à sua mercê, de boca aberta, olhos esbugalhados, com um sorriso medroso, apologético, envergonhado. Edgar chegou entretanto com dois baldes de leite.
– Olá! – disse ele. – O que estão vocês a fazer?
– Álgebra – respondeu Paul.
– Álgebra! – repetiu Edgar, intrigado. E seguiu em frente, dando uma gargalhada. Paul trincou a maçã já quase esquecida e, olhando para as pobres couves da horta, todas rendilhadas pelas galinhas, teve vontade de as arrancar. Depois, olhou para Miriam, que fitava o livro aparentemente absorta; porém tremia, receando não compreender. Estava corada e bonita. Todavia, a sua alma parecia suplicar ao livro de álgebra que a ajudasse. Ela fechou-se, retraiu-se, percebendo que ele estava aborrecido. Mas, no mesmo instante, ele tornou-se gentil ao vê-la magoada por não conseguir perceber o que lia.
– Diz lá, o que é que achas difícil? – perguntou ele, ternamente.
Este novo tom de voz fê-la levantar de imediato os olhos negros que pareciam querer vencer a todo o custo. O olhar dela doeu-lhe e uma onda de ternura percorreu-o.
– Sabes, para mim é fácil – disse ele. – Já estou habituado e esqueço-me de que não sabes. Vês...
E, então, todo ele gentileza e paciência, recomeçou. Edgar chegara entretanto e pusera-se atrás dele.
A cabeça escura de Miriam encontrava-se abaixo do nível dos olhos de Paul. Era uma cabeça pequenina com caracóis negros que pareciam flutuar como seda. Ela parecia esforçar-se tanto! A voz dele era uma contínua ternura.
– Vejo, pois! – exclamou Edgar, de repente, por detrás deles. – Mas... isto...
E o seu gordo indicador aproximou-se do livro. Miriam estremeceu. Paul virou-se para o amigo. Edgar era bem-parecido e os seus olhos, castanhos, perfeitos e saudáveis, pareciam interessados. Explicar-lhe algo era para Paul como respirar ar fresco.
Paul dava lições a Miriam com regularidade. As aulas tinham lugar na sala de estar. Foi aí que o jovem se estreou brilhantemente. Ela aprendia tudo e sabia sempre quais os exercícios que ele lhe mandara fazer na semana anterior. Frequentemente sabia até melhor do que ele. Mas as coisas para ela tinham de ser lentas. E quando se retraía e se mostrava completamente submissa durante a lição, isso enervava-o. Ele enfurecia-se, envergonhava-se, continuava a lição e enfurecia-se novamente, gritando com ela. Ela escutava-o em silêncio. Por vezes, muito raramente, defendia-se. Os seus olhos negros e transparentes fulminavam-no.
– Não me dás tempo para aprender – dizia ela.
– Pronto – respondia ele, atirando o livro para cima da mesa e acendendo um cigarro. Mais tarde, ia ter com ela arrependido. E assim decorriam as lições, com ele sempre ou muito enervado ou muito gentil.
– Porque é que a tua alma estremece durante a lição? – gritava ele. – Com essa tua bendita alma, nunca mais aprendes álgebra. Será que não consegues olhar para isto com a razão, de uma forma clara e simples?
Muitas vezes, quando ia para a cozinha, Mrs. Leivers olhava para ele aborrecida e repreendia-o:
– Paul não sejas tão severo com a Miriam. Ela pode não ser muito rápida, mas tenho a certeza de que se esforça.
– Não me consigo conter – dizia ele, desculpando-se. – Enervo--me facilmente.
– Miriam, não estás aborrecida comigo, pois não? – perguntava-lhe ele mais tarde.
– Não – assegurava-lhe ela, no seu tom profundo e melodioso. – Não, eu não me importo.
– Não me perdoes tão facilmente, pois eu sei que sou culpado.
Mas, apesar de tudo, o seu sangue começava a ferver novamente. Era estranho que mais ninguém o enervasse daquela forma. Mas ela enfurecia-o. Uma vez atirou-lhe um lápis à cara. Fez-se silêncio. Ela virou a face ligeiramente para o lado.
– Eu não... – começou ele, mas não continuou, pois sentia-se desfalecer. Ela nunca o censurava nem se zangava com ele, e ele sentia-se muitas vezes terrivelmente envergonhado. Contudo, a sua raiva rebentava novamente como uma bolha enfunada. Quando ele via à sua frente aquela cara ansiosa, silenciosa, como se fosse cega, sentia renascer dentro de si a vontade irreprimível de lhe atirar outra vez com o lápis. No entanto, quando via a mão dela tremer e a boca entreabrir-se em sofrimento, o seu coração ardia de compaixão por ela. E, assim, procurava-a, pela força e a intensidade que ela despertava nele.
Muitas vezes evitava-a e ia passear com Edgar. Miriam e o irmão eram naturalmente antagónicos. Edgar era um racionalista curioso e nutria um interesse científico pela vida. Para Miriam, era um grande desespero sentir-se abandonada por Paul em benefício de Edgar, que parecia muito mais inculto. Todavia, Paul sentia-se muito feliz com o irmão mais velho. Os dois homens passavam tardes juntos no campo, carpinteirando no celeiro quando chovia. Conversavam ou então Paul ensinava a Edgar as canções que ele próprio tinha aprendido com Annie ao piano. Frequentemente, todos os homens, incluindo Mr. Leivers, tinham acerbas discussões sobre a nacionalização da terra e problemas semelhantes. Paul já tinha ouvido as opiniões da mãe, e visto serem essas também as suas, discutia-as em seu lugar. Miriam assistia e participava, mas aguardava até que terminassem, e intervinha apenas quando a conversa voltava a ser mais íntima.
«Acima de tudo», pensava ela, «se as terras fossem nacionalizadas, Edgar, Paul e eu continuaríamos a ser os mesmos.»
E então esperava que Paul voltasse para junto dela.
Ele andava a estudar pintura. À noite adorava ficar a trabalhar em casa sozinho com a mãe. Ela cosia ou punha-se a ler. Por vezes, ele interrompia o seu trabalho e descansava os olhos por um momento no rosto da mãe, que brilhava de ternura, para depois retomar feliz a sua tarefa.
– Mãe, os meus melhores trabalhos são feitos quando está aqui sentada na cadeira de balouço – dizia ele.
– Tenho a certeza de que sim – exclamava ela, torcendo o nariz, num cepticismo simulado. Mas sabia que assim era e o seu coração pulsava de alegria. Mrs. Morel sentava-se em silêncio durante horas, costurando ou lendo um livro, atenta ao trabalho do filho. E ele, comandando o lápis com toda a intensidade da sua alma, sentia o calor dela dentro dele, incentivando-o. Eram os dois muito felizes assim e sem consciência de o serem. Estes momentos, tão significativos e tão reais, passavam-lhes quase despercebidos.
Ele apenas tomava consciência quando era estimulado. Quando terminava um esboço, desejava sempre mostrá-lo a Miriam. E então, sentia-se estimulado para conhecer o trabalho que tinha produzido inconscientemente. Em contacto com Miriam adquiria discernimento e a sua visão tornava-se mais profunda. Da mãe retirava o calor da vida e o incentivo para produzir; Miriam dava a esse calor a intensidade de uma luz muito branca.
Quando Paul voltou à fábrica, as condições de trabalho tinham melhorado. Tinha a quarta-feira à tarde livre para ir à escola de belas-artes – providência tomada por Miss Jordan – e regressava à tardinha. Além disso, às quintas e sextas-feiras à tarde, a fábrica fechava às seis em vez de ser às oito.
Em Bestwood havia uma pequena e respeitável biblioteca, cuja assinatura custava apenas quatro xelins e seis dinheiros por ano. Mrs. Morel e Mrs. Leivers tinham-se feito sócias quando os filhos começaram a crescer. A biblioteca ocupava duas salas do Clube dos Mecânicos, e estava aberta às terças-feiras à noite, das 19 às 21 horas. Paul ia sempre buscar os livros para a mãe, que lia muito, e Miriam arrastava-se sob o peso de cinco ou seis volumes para a família. Tornou-se habitual os dois encontrarem-se na biblioteca.
Paul conhecia bem as duas pequenas salas com as paredes forradas de livros. Eram acolhedoras e havia uma grande lareira ao canto. Mr. Sleath, o bibliotecário, tinha fartas suíças brancas em torno de uma cara acriançada. Era alto e curioso, mas muito afável; conhecia toda a gente e sabia da vida de todos. Mr. Smedley era roliço, careca e instruído.
Paul aguardou, enquanto Mr. Sleath acabava de pôr em dia os mexericos com o último leitor. Nessa altura, Paul deixou cair os livros em cima do balcão. Mr. Sleath olhou para ele com os seus olhos azul-vivo, mas mortiços.
– Vinte e dois, cinquenta e sete – disse Paul.
O bibliotecário, funcionário superior da companhia mineira e um cavalheiro comparado com o jovem, repetiu os números alegremente, virando as folhas do livro de registos.
– Ah!... Ah! – exclamou ele, olhando para a página. Depois olhou de uma forma carinhosa e acolhedora para o jovem, esfregou as mãos e disse:
– Ah!... Bem, Paul!... Ah! Como está a tua mãe?
– Muito bem, obrigado! – respondeu Paul.
– Óptimo! Não a vi na capela no domingo à noite!
– Pois não! Teve uma inflamação nos olhos.
– Meu Deus... Meu Deus... Lamento muito!
– Mas penso que disseste – interveio Mr. Smedley – que ela estava muito bem. – Paul não respondeu nem olhou para o homenzinho por detrás do balcão. Mr. Sleath ia assinalando os livros no seu livro de registo. Mr. Smedley pôs mais carvão na lareira. Algumas pessoas conversavam animadamente junto das estantes. Os tacões dos sapatos chiavam na tijoleira.
– Mas achas que ela já se sentirá bem para sair este fim-de-semana? – perguntou Mr. Sleath, quando acabou de registar todos os livros.
– Acho que sim – disse Paul.
– Óptimo... Óptimo. De facto, estranhei a ausência dela.
Para Paul já era um dado adquirido que as pessoas lhe perguntassem pela mãe e nunca mencionassem o pai.
Dirigiu-se para as estantes. Os leitores continuavam a entrar, deixando os chapéus-de-chuva no corredor e trocando agradáveis saudações. O jovem conhecia toda a gente e todas as suas histórias. Mas não lhe interessavam. Miriam talvez não viesse por causa da chuva. Olhou para o livro que tinha nas mãos, esqueceu-o por momentos, pensando nela, e voltou ao livro novamente. O tempo passava como num sono. Ouvia o ruído das pessoas a saírem, mas ninguém a entrar. E se ela não viesse? Só de pensar nisso a noite afigurava-se-lhe lúgubre e infrutífera. Mas ela viria. A atmosfera era quente e acolhedora e a noite não teria continuidade enquanto ela não chegasse.
– Uma noite dos diabos, Alfred, uma noite dos diabos – disse Mr. Sleath, procurando alguém com quem falar. A biblioteca estava vazia.
– Parece que sim – respondeu Mr. Smedley.
Então, Mr. Sleath reparou em Paul.
– Olá, Paul – exclamou. – Ainda não encontraste o que queres, hem?
– Não me parece que o Paul esteja à espera de nenhum livro – disse Mr. Smedley.
– Oh...Oh... – exclamou Mr. Sleath.
– Penso que é uma jovem que está por detrás disto tudo – disse Mr. Smedley. – Mas está uma noite péssima para se vir de Willey Woods.
Ouviram-se passos no corredor. Paul ficou à escuta. Não era ela. Entrou um rapaz. Quando Paul viu o rapaz no limiar da porta, onde ela deveria estar, ficou furioso com ele. Contudo ela viria. Era sempre tão cumpridora. Um dos seus maiores encantos, quanto a ele, era a sua rejeição das convenções. Se quisesse vir, viria mesmo que chovesse torrencialmente. E o tempo não estava assim tão mau. Paul pôs-se a escutar, para ver se chovia muito. E então ouviu o rapaz dizer que estava a chover a cântaros. Mas o rapaz não contava. Ela viria, sim, mesmo que chovesse a cântaros. E Paul agarrou-se a essa esperança. Podia senti-la, através da noite, desejando vir. E ela nunca o desapontava. Para ela a vida interior valia tudo, e a exterior nada.
Ouviu os passos dela no corredor e a sua ansiedade diminuiu. Ficou a vê-la chegar. Ela parou um momento à entrada da porta. A boina vermelha cintilava com as gotas de chuva, o cabelo revolto dançava em caracóis húmidos, as faces esplandeciam. Ela procurou-o ansiosamente com o olhar, e então os seus olhos míopes encontraram-no, e uma chama ateou-se dentro dela, queimando-o também a ele. Dirigiu-se ao balcão, satisfeita. Ele virou-lhe as costas.
Então, ela aproximou-se dele, hesitante.
– Estou atrasada? – perguntou ela.
– Como sempre – respondeu ele. – Estás muito molhada?
– Não... nadinha.
– Vieste pela linha férrea? – disse ele.
– Vim. Estavas com muito medo de que eu não aparecesse?
– Só um bocadinho.
Paul sorriu.
– Vem, vou mostrar-te os livros que escolhi para ti – disse ele. Ela foi. Os livros não tinham qualquer significado para ela. Mas ele insistia na sua aprovação. Olhou para os livros por cima do braço dele, sem conseguir ver nada. Mas ele estava contente.
– Concordas? – perguntou ele.
– Claro – respondeu ela.
Depois de registarem os livros, saíram os dois rapidamente da biblioteca. A escuridão enchia-os de alegria. Sentiam-se exacerbadamente felizes. Paul trazia uma enorme capa preta impermeável, por baixo da qual resguardou os livros. Caminharam lado a lado pela rua Mansfield, envolvidos pela escuridão e pela chuva, sob as árvores gotejantes.
A conversa surgiu rápida e vigorosa, passando imediatamente à discussão sobre um dos livro. Ele falava apaixonadamente, ela ouvia-o e a sua alma expandia-se. Do livro, passaram inevitavelmente a uma discussão sobre crenças íntimas, muito subjectiva.
– Parece que é como se não tivesse importância, um a mais ou um a menos, dentro do todo... – disse ele.
– Não – respondeu ela gravemente, em dúvida.
– Eu costumava pensar assim quando um pardal caía.... e o mesmo em relação aos cabelos da cabeça...
– Sim – disse ela. – E agora?
– Agora penso que a raça dos pardais é importante, e não apenas um pardal: todo o meu cabelo, e não apenas um fio de cabelo.
– Sim – disse ela, pouco convencida.
– E as pessoas são importantes. Mas uma só não é assim tão importante. Vê, por exemplo, o William.
– Sim – disse ela, pensativa.
– Chamo a isso apenas uma perda – disse ele – Uma perda, nada mais.
– Sim – disse ela, com a voz sumida.
Ela acreditava que quanto mais pessoas houvesse, menos importância tinham. Mas ouvi-lo falar assim era para ela como um sopro de vida: como o primeiro sopro de um recém-nascido.
– Contudo – disse ele – creio que há um caminho certo a seguir... se o seguirmos está tudo bem... ou se andarmos perto. Mas se não o seguirmos, morreremos. Tenho a certeza de que o nosso William fez a escolha errada.
– E se seguirmos o curso das nossas vidas não morremos? – perguntou ela.
– Não, não morremos. É o nosso íntimo que nos aconselha a seguir um determinado caminho e não outro.
– Mas nós sabemos quando é que estamos a seguir o caminho certo? – perguntou ela.
– Claro! Eu pelo menos sei. Eu sei que estou a seguir o meu caminho.
– Sabes mesmo? – perguntou ela.
– Sim... tenho a certeza.
Ele tinha parado por baixo de um lampião para pensar. O seu impermeável luzia com a chuva. Ela olhou para a cara dele. Os seus olhos, tão certeiros e tão fixos, fitaram os dela. Ele era realmente determinado. Ela seguiu para casa com o coração em brasa.
Mas ele, quando deu meia volta para retroceder, logo a esqueceu, ao pensar que a mãe ficaria aborrecida ao saber que ele tinha ido até tão longe debaixo de chuva. Estugou o passo, sentindo-se porém exultante com o contacto com Miriam. A noite tinha-lhe trazido alguma satisfação.
– Queres tu dizer que levaste a Miriam Leivers a casa numa noite como esta? – perguntou a sua mãe, fitando-o subitamente, um minuto depois de ele ter entrado.
– Demorei-me muito tempo na biblioteca – argumentou Paul.
– Mas ela apareceu, não apareceu? – exclamou Mrs. Morel, calma e severa. Paul estremeceu.
– Ela fica sem nada para ler durante toda a semana, se não vier à biblioteca – disse ele.
– Não sei o que é que a mãe dela anda a fazer para a deixar arrostar com cerca de 10 milhas debaixo desta chuva torrencial.
– Não está chover muito – disse ele. – Nem por isso.
– Basta olhar para o teu impermeável e para as tuas botas – disse a mãe.
– Olhe o que eu lhe trouxe – disse ele, mas ela estava demasiado zangada para condescender.
Certa tarde de Verão, Miriam e Paul resolveram atravessar os campos, por Herod Farm, no regresso da biblioteca. Assim, eram só três milhas até Willey Farm. A erva segada brilhava com reflexos dourados e os botões de azedas ardiam em tons de carmim. A pouco e pouco, enquanto atravessavam o planalto, os tons dourados do ocaso deslizaram para vermelho, o vermelho para o carmim e, por fim, o azul glacial apagou o clarão.
Foram dar à estrada principal de Alfreton, que singrava branca entre os campos anoitecidos. Aí, Paul hesitou. Eram cerca de duas milhas até sua casa, e uma milha até à casa de Miriam. Olharam para a estrada, que corria sombria sob a luminosidade ténue de noroeste. No cimo do monte, Selby, com as suas casas despojadas e as suas torres mineiras, recortava-se no céu, pequenina, em negras silhuetas.
Ele consultou o relógio.
– Já são nove horas! – disse.
Ambos estavam relutantes em partir, abraçados aos seus livros.
– O bosque é tão bonito a esta hora... – disse ela. – Queria tanto que o visses.
Ele atravessou a estrada atrás dela, lentamente, aproximando-se da cancela branca.
– Eles fazem cá um banzé, se eu chego tarde – disse ele.
– Mas não estás a fazer nada de mal – contrapôs ela, impaciente. E ele seguiu-a através das pastagens retouçadas, à luz do lusco-fusco. Havia uma frescura no bosque, um aroma a folhas e a madressilva, e o crepúsculo. Caminharam em silêncio. A noite desceu, maravilhosa, entre a imensidão de troncos negros. Ele olhou em volta, expectante.
Ela queria mostrar-lhe uma roseira-brava que tinha descoberto, pois achara-a lindíssima. Porém, sentia que só depois de ele a ter visto ela seria capaz de a assimilar. Só ele poderia fazer com que a roseira fosse dela para sempre, imortal. Por isso não estava satisfeita.
O orvalho já era visível pelos caminhos. Do velho bosque de carvalhos elevava-se uma névoa e ele hesitou, questionando-se se a mancha branca seria a linha de bruma ou apenas candelárias-dos-jardins, formando uma pálida nuvem.
Assim que chegaram aos pinheiros, Miriam começou a ficar muito tensa e ansiosa. O seu arbusto podia ter desaparecido. Poderia não o encontrar. E queria tanto descobri-lo. Desejava, quase com paixão, ter Paul perto de si quando descobrisse as flores. A comunhão seria mútua, algo que a iria emocionar, algo de divino. Ele caminhava a seu lado em silêncio. Estavam muito próximos um do outro. Ela estremeceu e ele escutou-a, levemente ansioso.
Assim que chegaram ao limite da floresta, o céu era de madrepérola e a terra escurecia. Algures nos recantos mais afastados do pinheiral a madressilva exalava o seu aroma.
– Onde? – perguntou ele.
– Lá em baixo, no trilho do meio – murmurou ela, tremendo.
Mal acabaram de contornar a curva do atalho, ela parou. Olhou por momentos assustada para o espaço que se abria entre os pinheiros, não conseguindo discernir o que quer que fosse, pois a luz empalidecida tinha apagado a cor das coisas. Mas, finalmente, descobriu o seu arbusto.
– Oh! – exclamou ela, precipitando-se para ele.
Tudo estava sereno. O arbusto era alto e esparso, espraiando as suas silvas sobre um espinheiro próximo, e deixando pender os ramos longos sobre a relva, salpicando a escuridão de grandes estrelas brancas, imaculadas. As rosas brilhavam como botões de marfim, estrelas abertas na escuridão da folhagem, dos troncos e da relva. Paul e Miriam em silêncio, lado a lado, observavam. Uma a uma, convictas, as rosas inundaram-nos de brilho, parecendo atear fogueiras nas suas almas. O crepúsculo envolveu-os como fumo, não conseguindo, todavia, extinguir o fulgor das rosas.
Paul olhou Miriam nos olhos. Estava pálida e deleitada; a boca entreaberta e os olhos negros fitavam-no, muito abertos. O olhar dele parecia descer ao fundo dela. A alma de Miriam estremeceu, pois ansiava a comunhão. Ele, porém, virou-se para o lado, como se sofresse, e olhou para o arbusto.
– Parecem voar como borboletas, agitando-se – disse Paul.
Miriam olhou para as suas rosas. Eram brancas, algumas encurvadas e divinas, outras expandiam-se como em êxtase. A árvore era negra como a sombra. Ela estendeu a mão impulsivamente para as flores e, aproximando-se, tocou-as em adoração.
– Vamos embora – disse ele.
Pairava um perfume fresco de rosas cor-de-marfim, um perfume branco, virginal. Algo o fez sentir-se ansioso e prisioneiro. Caminharam ambos em silêncio.
– Até domingo – disse ele baixinho, e deixou-a; ela regressou a casa lentamente, com a alma enriquecida pela noite divinal. Ele cambaleou pelo atalho. Assim que saiu da floresta e entrou no prado, onde podia respirar, desatou a correr o mais depressa que podia. Era como se um delírio delicioso lhe percorresse as veias.
Sempre que saía com Miriam e se atrasava, sabia que a mãe se afligia e ficava preocupada, apesar de ele não perceber porquê. Assim que chegou a casa, atirando com o boné, a mãe olhou para o relógio. Tinha estado sentada a pensar, pois uma inflamação ocular impedia-a de ler. Imaginara Paul a ser arrastado pela rapariga. Ela não gostava da rapariga. «É uma daquelas que suga a alma de um homem, até ele ficar vazio», dizia de si para si, «e ele é daqueles simplórios que se deixa dominar. Ela nunca o deixará ser um homem, nunca!» Assim, enquanto ele estava com Miriam, ela revoltava-se cada vez mais.
Olhou para o relógio e disse friamente, visivelmente cansada:
– Foste muito longe esta noite.
A alma dele, ainda quente e fragilizada do contacto com a rapariga, contraiu-se.
– Levaste-a certamente a casa – prosseguiu a sua mãe.
Ele não ia responder. Mrs. Morel, examinando o filho de relance, constatou que trazia o cabelo transpirado da correria e ele, em resposta, franziu a testa pronunciadamente como era seu costume, ressentido.
– Ela deve ser maravilhosamente fascinante, pois não te consegues afastar dela, e até és capaz de correr oito milhas a esta hora da noite.
Paul sofria, balançando entre o encantamento dos momentos passados com Miriam e a constatação da aflição de sua mãe. Tinha pensado não dizer nada, recusar-se a responder. Porém, o seu coração não era tão gélido que o levasse a ignorar a mãe.
– Eu gosto de conversar com ela – respondeu irritado.
– E não há mais ninguém com quem possas conversar?
– A mãe não ia dizer nada, se eu tivesse saído com o Edgar.
– Sabes bem que dizia. Sempre que sais com alguém de lá, acho que é muito longe para andares por aí à noite, depois de vires de Nottingham... Além disso... – de repente, a sua voz adquiriu um tom de revoltado desdém – é repugnante ver duas crianças a namoriscar.
– Não é namoro – gritou ele.
– Não sei que outra coisa se lhe poderá chamar.
– Mas não é! Pensa que nos pomos a fazer coisas? Nós apenas conversamos.
– Só Deus sabe até quando e até onde isso irá parar – replicou ela, sarcástica.
Furioso, Paul deu um esticão nos atacadores das botas.
– Porque está tão zangada? – perguntou ele. – Apenas porque não gosta dela?
– Não é que não goste. Mas não suporto e nunca suportei ver crianças a namorar.
– Mas a mãe não se importa que a nossa Annie saia com o Jim Inger.
– Esses são mais conscientes do que vocês.
– Porquê?
– A nossa Annie não é dessas.
Paul não entendeu o alcance do reparo. Mas a mãe parecia cansada. Nunca mais fora a mesma depois da morte de William. E doíam-lhe os olhos.
– Bem – disse ele –, o campo é tão bonito.... Mr. Sleath perguntou por si e disse que tinha tido saudades suas. ... Já se sente melhor, mãe?
– Já devia era estar na cama há muito tempo.
– Mas a mãe também nunca se ia deitar antes de um quarto para as dez.
– Isso é que ia!
– Ah, velhota... agora diz qualquer coisa só por estar zangada comigo, não é?
Depois, Paul beijou aquela testa que conhecia tão bem: as marcas profundas entre as sobrancelhas, a massa de cabelo, agora grisalho e a inclinação das têmporas. A sua mão demorou-se no ombro dela após tê-la beijado e, em seguida, Paul encaminhou-se lentamente para a cama. Tinha esquecido Miriam; apenas se lembrava do cabelo da mãe, puxado para trás, deixando a descoberto uma testa alta, afectuosa. E, fosse pelo que fosse, via que ela estava magoada.
Quando voltou a encontrar-se com Miriam, disse-lhe:
– Não me deixes chegar atrasado hoje... o mais tardar até às dez horas. A minha mãe fica muito aborrecida.
Miriam inclinou a cabeça e reflectiu.
– Fica aborrecida porquê? – perguntou.
– Acha que não devo ficar fora até tão tarde, quando tenho de me levantar cedo no dia seguinte.
– Muito bem! – disse Miriam, com voz calma, mas não isenta de um leve tom de sarcasmo. Isso ofendeu-o, e ele voltou a chegar tarde a casa.
Que o amor começava a desabrochar entre Paul e Miriam era algo que nenhum deles estava preparado para aceitar. Ele achava-se sensato de mais para tais sentimentalismos, e ela demasiado importante. Ainda não tinham atingido a maturidade e a sua pujança psíquica estava muito atrás da física. Miriam era excessivamente sensível, como a mãe sempre tinha sido. A mais leve grosseria angustiava-a. Os irmãos, embora muito rudes, evitavam a vulgaridade nos diálogos. Era fora de casa que os homens discutiam todos os assuntos relativos à quinta. Contudo, e devido talvez aos constantes nascimentos e cruzamentos, actos naturais em qualquer quinta, Miriam revelava uma extrema hipersensibilidade a tais situações, e o sangue revolvia-se-lhe de repugnância à mais vaga sugestão a tais contactos. Paul seguia-lhe as pisadas, e a relação entre eles mantinha-se castamente imaculada. Não se podia sequer mencionar que a égua estava prenha.
Aos dezanove anos, Paul ganhava apenas vinte xelins por semana, mas era feliz. A sua pintura evoluía a contento, e a vida corria-lhe bem. Na Sexta-Feira Santa, organizou um passeio a Hemlock Stone. O grupo era formado por três rapazes da sua idade, Annie, Arthur, Miriam e Geoffrey. Arthur, agora aprendiz de electricista em Nottingham, tinha vindo a casa passar a Páscoa. Como era habitual, Morel levantara-se cedo e estava no pátio a assobiar e a serrar umas tábuas. Às sete da manhã, a família ouviu-o comprar arrufadas quentes à porta, e conversar animadamente com a garota que as vendia, tratando-a até por «minha querida». Apareceram depois mais alguns rapazitos também a vender arrufadas, mas ele mandou-os embora, dizendo-lhes que tinham sido «batidos» pela «cachopinha». Quando Mrs. Morel se levantou, toda a família dispersou. Era uma sorte para todos eles quando a mãe ficava até mais tarde na cama num dia de semana. Paul e Arthur podiam ficar a ler à vontade antes do pequeno-almoço e depois tomar a refeição sem terem de se lavar primeiro e sentar-se à mesa em mangas de camisa. Este era outro dos luxos dos feriados. A sala estava aquecida e toda a casa se libertava de preocupações e ansiedades.
Enquanto os rapazes liam, Mrs. Morel foi para o jardim. Viviam agora numa nova casa, uma casa velha, também em Scargill Street, perto da que tinham ocupado anteriormente e de onde tinham saído logo após a morte de William. Um grito de excitação chegou directamente do jardim:
– Paul... Paul... Vem cá ver uma coisa!
Era a voz da mãe. Paul atirou o livro para o lado e saiu. O jardim era muito comprido e terminava num campo cultivado. Estava um dia cinzento e frio, batido por um vento agreste vindo das bandas do Derbyshire. Dois campos mais adiante começava Bestwood, um emaranhado de telhados e casas de tijolo vermelho, de onde sobressaía a torre da igreja e o pináculo da capela paroquial. Para trás, sucediam-se florestas e colinas até aos picos cinzentos e esbatidos da serra de Pennine.
Paul pôs-se à procura da mãe. A cabeça dela despontou entre as groselheiras ainda tenras.
– Vem cá! – disse ela.
– Para quê? – perguntou ele.
– Vem cá para veres uma coisa!
Ela tinha estado a examinar os pequenos botões das groselheiras. Paul foi ao seu encontro.
– E pensar que, aqui onde estão, podia nunca ter dado com eles! – disse Mrs. Morel.
O filho colocou-se ao seu lado. Por debaixo da cerca, num pequeno canteiro, havia um emaranhado de folhas finas, como se nascidas de bolbos ainda imaturos, com três campainhas em flor. Mrs. Morel apontou para as três florinhas muito azuis.
– Olha para elas! – exclamou. – Estava eu muito entretida a examinar as groselheiras, quando pensei cá com os meus botões, «Está ali qualquer coisa muito azul .... será o resto de algum saco de açúcar?» E olha só! Qual saco de açúcar! Três glórias-da-neve, e tão bonitas! Mas de onde é que teriam vindo?
– Não sei – disse Paul.
– São mesmo uma maravilha! E eu que pensava que conhecia todas as ervas e folhas neste jardim. E não é que estas se deram bem...? Repara que é a groselheira que as protege. Não são debicadas nem pisadas!
Paul baixou-se e levantou as corolas das pequenas flores azuis em forma de campainha.
– Têm uma cor magnífica!
– Têm, não têm? – exclamou a mãe. – Suponho que vêm da Suíça, onde dizem que há coisas maravilhosas. Imagina-as só em contraste com a neve! Mas como é que elas terão vindo aqui parar? O vento não as podia ter trazido, pois não?
Paul lembrou-se então de ter plantado ali uma porção de bolbos para amadurecerem.
– E não me disseste nada – disse a mãe.
– Pois não, estava a pensar deixá-las aqui só até terem medrado.
– Estás a ver?! E eu podia não as ter visto. Nunca em toda a minha vida tive uma glória-da-neve no jardim.
Mrs. Morel estava muito excitada e orgulhosa. O jardim era para ela uma fonte de infinito prazer. Paul dava graças por a mãe viver numa casa com um grande jardim que se estendia até ao campo. Todas as manhãs, após o pequeno-almoço, ela saía e deambulava feliz pelo jardim. E, na verdade, conhecia todas as ervas e folhas no seu jardim.
Todos compareceram para o tal passeio. Prepararam um farnel e o grupo partiu feliz e animado: debruçaram-se do alto do muro da azenha; atiraram papéis para dentro de água numa das extremidades do túnel e ficaram a vê-los sair pela outra; pararam no meio da passagem aérea para peões da estação de Boathouse, fascinados com o brilho gélido dos carris.
– Vocês deviam era ver o «foguete» que passa aqui às seis e meia – disse Leonard, cujo pai era guarda de uma passagem de nível. – Nem sequer o ouvem zunir, rapazes! – E o pequeno grupo seguiu com o olhar nos carris que conduziam a Londres e os que conduziam à Escócia, deixando-se inebriar por estes dois lugares mágicos.
Em Ilkeston, os mineiros aguardavam em grupos a abertura das tabernas. Era uma cidadezinha de ócio e divertimento. Em Stanton Gate, a oficina de fundição ardia incandescente. Eles iam conversando animadamente sobre tudo o que viam. Em Trowell, atravessaram a fronteira do Derbyshire para o Nottinghamshire, e chegaram a Hemlock Stone à hora de almoço. O campo povoava-se de pessoas vindas de Nottingham e Ilkeston.
Estavam à espera de encontrar um monumento digno e respeitável, mas descobriram apenas uma pedra, pequena e rugosa, semelhante a um cepo torcido, ou a um cogumelo putrefacto, despontando pateticamente no meio do descampado. Leonard e Dick gravaram logo as suas iniciais – L.W. e R.P. – na velha pedra de arenito vermelho, mas Paul não o fez, pois tinha lido no jornal críticas mordazes aos gravadores de iniciais, que não encontravam melhor caminho para a imortalidade. E, como não podia deixar de ser, todos treparam à pedra para contemplarem o panorama.
Em baixo, nos campos, rapazes e raparigas, todos eles operários e operárias, comiam ou brincavam. Mais além avistava-se o jardim de um velho solar, cercado de teixos, moitas frondosas e cercaduras de flores amarelas de açafrão.
– Olha que jardim tão tranquilo – disse Paul para Miriam.
Ela contemplou os teixos negros e os crocos amarelos e olhou para ele agradecida. Quando estavam acompanhados por outras pessoas, ele parecia não lhe pertencer; era diferente, não era aquele Paul que compreendia o mais leve estremecimento da sua alma misteriosa, mas uma outra pessoa, que falava uma linguagem diferente da sua. Ah, como isso a magoava e lhe enfraquecia a nitidez da percepção! Só se sentia reviver quando ele vinha ao seu encontro sem esse outro Eu de casta inferior. Mas agora ele tinha-lhe pedido para olhar o jardim, tentando desta forma chegar até ela. Sem paciência para aturar o grupo, Miriam entregou-se à contemplação daquele jardim tão calmo, rodeado de tufos de açafrão amarelo. Uma sensação de quietude, quase de êxtase, envolveu-a. Era como se estivesse sozinha com ele no jardim.
Mas ele abandonou-a novamente e foi juntar-se ao grupo. Em breve iniciaram o regresso a casa. Miriam deixou-se ficar para trás, sozinha. Não se enquadrava. Raramente se relacionava com alguém: na verdade, a sua grande amiga, companheira e amante era a natureza. Viu o sol declinar languidamente. Nas sebes frias e sombrias luziam algumas folhas vermelhas. Sem pressa, detinha-se para as colher com ternura, apaixonadamente. Os seus dedos acariciavam as folhas com amor e o coração incendiava-se-lhe de paixão.
De súbito, apercebeu-se de que estava sozinha numa estrada desconhecida e apressou-se. Depois de uma curva, encontrou Paul debruçado sobre qualquer coisa que ela não conseguia ver, mas que ele observava atentamente, aplicando-se com paciência, intento, e até algum desespero. Miriam hesitou em aproximar-se.
Ele continuava concentrado em plena estrada. Na tarde cinzenta, tão desprovida de cor, um fio dourado de sol, ao longe, parecia fazê-lo sobressair em sombrio baixo-relevo. Ela contemplou-o, delgado e firme, e era como se ele lhe tivesse sido oferecido pelo sol. Uma dor profunda penetrou-a e soube então que tinha de o amar. Tinha-o finalmente descoberto, descoberto nele uma rara potencialidade, descoberto a sua solidão. Tremeu emocionada, como se estivesse perante uma «Anunciação», e aproximou-se devagar.
Ele, finalmente, levantou os olhos.
– Oh! – exclamou, agradecido. – Esperaste por mim!
Ela descobriu uma sombra profunda nos seus olhos.
– O que aconteceu? – perguntou.
– A mola partiu-se.
E ele mostrou-lhe o seu chapéu-de-chuva danificado. Subitamente, um pouco envergonhada, ela apercebeu-se de que não fora ele quem estragara o chapéu-de-chuva, mas que o responsável era Geoffrey.
– Afinal era um chapéu-de-chuva velho, não era? – disse ela. Miriam não entendia a razão de tão exagerado zelo, pois ele não era geralmente de se prender com ninharias.
– Mas este era o chapéu-de-chuva do William... e a minha mãe vai ter de saber – disse ele baixinho, tentando pacientemente consertar o chapéu-de-chuva. Estas palavras rasgaram-na como uma lâmina. Eram a confirmação da imagem que tinha dele! Olhou-o. Havia nele, porém, uma certa reserva, e ela não se atreveu a confortá-lo, nem mesmo a falar-lhe com meiguice.
– Vamos – disse ele –, não consigo arranjá-lo.
E seguiram em silêncio estrada fora.
Iam eles nessa mesma tarde a passar em Nether Green, por entre o arvoredo, quando ele lhe confidenciou, num tom algo irritado, como se lutando para se autoconvencer.
– Sabes – disse com esforço –, se uma pessoa ama, a outra também ama.
– Ah! – exclamou ela. – A minha mãe disse-me o mesmo quando eu era pequena: «O amor gera o amor.»
– Sim... algo parecido com isso... penso que deve ser isso.
– Espero que sim... porque, se não fosse assim, o amor seria algo de terrível – acrescentou ela.
– Mas é isso que acontece... pelo menos com a maioria das pessoas – respondeu ele.
E Miriam pensando que ele estivesse mais animado, sentiu-se fortalecida. Tinha considerado aquele encontro fortuito na vereda como uma revelação. E este diálogo ficou gravado na sua mente como palavra de lei.
Agora, estava com ele e do lado dele. Quando, pela mesma altura, Paul ofendeu a família dela com um insulto arrogante, ela apoiou-o e achou que ele tinha razão.
Sonhava agora com ele de uma forma viva e inesquecível. Mais tarde, os sonhos voltaram, tendo evoluído para estados psicológicos mais subtis.
Na segunda-feira de Páscoa, o mesmo grupo fez uma excursão até ao solar de Wingfield. Foi um momento de grande excitação para Miriam ao apanhar o comboio em Lethey Bridge, por entre o alvoroço da multidão num dia feriado. Saíram do comboio em Alfreton. Paul estava interessado na rua e nos mineiros a passearem os seus cães. Aquela era uma nova raça de mineiros. Miriam não se sentiu viver senão quando chegaram à igreja. Todos se mostravam algo acanhados para entrarem na igreja com os sacos da merenda, pois tinham receio de serem expulsos. Leonard, um rapaz magro e brincalhão, foi o primeiro a entrar, e Paul, que teria preferido morrer a ser mandado embora, foi o último. A igreja estava enfeitada para a Páscoa: centenas de narcisos brancos pareciam desabrochar da pia baptismal, e a luminosidade era difusa e colorida, filtrada pelos vitrais e animada por um aroma subtil a lírios e narcisos. A alma de Miriam inflamou-se nesta atmosfera. Paul, sensível à envolvência do local, receava não saber comportar-se à altura. Miriam voltou-se para ele. Ele correspondeu. Estavam juntos. Paul não quis passar para lá da divisória da comunhão, e ela apreciou o seu gesto. A sua alma elevou-se em orações ao lado dele. Paul sentia um estranho fascínio por lugares religiosos e obscuros. Todo o seu misticismo latente palpitava de vida. Ela sentia-se atraída por ele. Ele estava nela, como uma oração.
No adro da igreja, os narcisos e os junquilhos já tinham desabrochado e brilhavam ao sol como se flutuassem. As ovelhas, no parque, faziam vibrar o ar com os seus múltiplos e ténues balidos. Leonard e Dick entraram numa taberna para tomar uma bebida, para grande tristeza de Paul e Annie.
– Para que entraram na taberna? – perguntou Paul aborrecido.
– Bem – disse Dick, sorrindo –, só lá fomos beber uma limonada.
– Podiam muito bem ter ido à venda – disse Annie.
– À venda! – exclamou Leonard. – Estão a imaginar-nos... nós... ingleses de gema, a beber limonada na venda?
– Não – respondeu Paul. – Mas imagino-te com a tua enorme caneca de cerveja... inglesa de gema.
– E que mal te faz a minha caneca? – disse Leonard, limpando a boca, por sinal enorme.
Miriam só raramente falava com os outros rapazes. Tinham sido malcriados com ela uma vez e, desde essa altura, mantinha-se geralmente calada.
Passava do meio-dia quando subiram a ladeira íngreme que conduzia ao solar. Tudo em redor brilhava com suavidade, à luz de um sol quente, intenso e estimulante. As celidónias e as violetas estavam em flor. A natureza transbordava de felicidade. Tudo era perfeito: o esplendor da hera, os tons suaves e cinzentos, atmosféricos, dos muros do castelo, a harmonia que rodeava as ruínas.
O solar era de pedra dura cinzento-pálido, e as paredes exteriores brancas e repousantes. Os jovens estavam extasiados. Sentiam-se excitados, quase receosos de que o prazer da exploração destas ruínas lhes fosse negado. No primeiro pátio, situado entre muros altos e derrubados, havia algumas carroças com os varais abandonados pelo chão, e os aros das rodas cintilavam em tons vermelho-dourado de ferrugem. A serenidade era total.
Todos se mostravam desejosos de pagarem os seis dinheiros da entrada, posto o que transpuseram a medo pelo arco harmonioso e bem lançado que dava acesso ao pátio interior. Mostravam-se tímidos. No local onde antes se erguera o muro, florescia agora um velho espinheiro. Todas as espécies de espaços abertos e salas em ruínas se abriam à sua volta, na penumbra.
– Digam lá se isto não é uma maravilha? – exclamou Leonard.
– É mesmo – acrescentou Paul.
E passaram de imediato à exploração.
– Eh, malta – chamou Leonard. – Venham ver o forno que eu descobri!
E, sem perder tempo, Leonard entrou pelo buraco. Dick e Paul entraram atrás dele e sentaram-se os três no chão a gritar, como se estivessem nas entranhas da terra.
– Aqui dava bem para assar um boi, ou até dois – disse Nick.
– E um veado ou dois – acrescentou Paul.
– E um burro ou dois – rematou Leonard, pondo-se a zurrar muito alto, enquanto os outros dois lhe batiam.
Paul voltou a sair para o ar livre e a exploração continuou. Finalmente, encontraram Geoffrey e as raparigas. Geoffrey estava a comer.
– Parece que tá na hora de dar ao dente – disse Leonard.
– Eu já m’adiantei – respondeu Geoffrey, que não fizera outra coisa desde que o grupo partira.
– Onde é que nos podemos sentar? – perguntou Miriam.
– Vamos para a sala dos banquetes – alvitrou Paul.
– Como é que sabes que aquela é a sala dos banquetes? – perguntou Leonard.
– Vi numa pintura.
– Pois então, toca a sentar – disse Leonard.
No enorme salão em ruínas, com as paredes frias erguidas para o céu azul, lá se sentaram todos a comer ao sol, observando os pássaros que chilreavam pousados no florão da ampla janela.
– Então, D. Cogumelo – disse Leonard, virando-se para Paul –, sois servido desta empada de veado?
– Mil agradecimentos, D. Trinca-Espinhas – respondeu Paul. – Comerei antes esta coxinha de pão com queijo.
– Por obséquio – disse Geoffrey –, podeis apertar-vos mais, pra eu me poder sentar?
– Perdoai, Insigne Cavaleiro – respondeu Leonard. – Mas será tão grande assim vossa gordura?
– Paul – disse Annie –, tens aqui o teu ovo cozido.
– Ilustres cortesãos, deleitamo-nos hoje com um festim de ovos de aves fabulosas, postos pela nossa única fénix, e ostentando todos eles o nosso brasão, tal como neles foi gravado pelas nossas aves mais colaborantes – disse Paul.
– Ou seja... um montinho de porcaria – disse Leonard.
– E direi mais... Um brasão que é o nosso orgulho desde há muitas gerações, ámen! – disse Annie.
– Oh, sublime insígnia! – rematou Paul, fazendo Miriam desatar a rir.
Depois do almoço partiram mais uma vez à exploração das ruínas. Desta feita, as raparigas acompanharam os rapazes, que assumiram o papel de guias e professores. Uma torre alta e deveras periclitante surgiu diante dos seus olhos ao virarem uma esquina, e os rapazes logo informaram que Mary, rainha da Escócia, tinha sido ali encarcerada.
– Imaginem a rainha a subir por aqui acima... – disse Miriam em voz baixa, enquanto subia as escadas tortuosas.
– Isso, se ela se conseguisse levantar – respondeu Paul. – Sofria muito do reumatismo. Aposto que a tratavam o pior possível.
– E não achas que merecia? – perguntou Miriam.
– Acho que não. Ela era apenas uma pessoa jovial.
Continuaram a subir a escada de caracol. Uma rajada agreste entrou pelas seteiras e rodopiou pelo vão das escadas, levantando a saia de Miriam em balão, para seu grande embaraço, até que Paul agarrou na barra do vestido e o puxou para baixo. Fê-lo com destreza e simplicidade, como se lhe apanhasse uma luva do chão. Ela recordaria para sempre este momento.
A hera pendia frondosa, vetusta e bela, em torno do torreão em ruínas. Havia também algumas cravinas esparsas, com os seus botões tristes e pálidos. Miriam quis debruçar-se para apanhar um raminho de hera, mas Paul não deixou, ficando ela atrás dele, a receber um a um cada raminho que ele lhe entregava, num gesto do mais genuíno cavalheirismo. A torre parecia ondular ao vento. Do alto avistavam-se milhas e milhas de terreno arborizado e terreno de pastagens.
A cripta subjacente ao solar era muito bela e em perfeito estado de conservação. Paul não perdeu a oportunidade de a desenhar. Miriam ficou junto dele, a pensar em Mary, rainha da Escócia, fitando os montes de onde não vinha qualquer ajuda, com os seus olhos exaustos e desesperados, que não compreendiam a miséria; imaginou-a também sentada naquela cripta, escutando a história de um Deus tão frio quanto o lugar onde se encontrava.
Puseram-se de novo a caminho, exultantes, lançando um último olhar àquele solar a que se sentiam presos e que se erguia tão nítido e imponente no alto da colina.
– Imagina que aquela quinta era tua – disse Paul a Miriam.
– Sim!!
– Não era maravilhoso eu ir lá visitar-te?
Encontravam-se agora num descampado com muros de pedra, de que ele tanto gostava, e que, embora só a algumas milhas de casa, parecia tão estranho a Miriam. O grupo seguia agora disperso. Ao atravessarem um extenso prado, muito íngreme, com o sol por trás, descendo por um caminho salpicado de incontáveis pontinhos cintilantes, Paul entrelaçou os dedos no saco de rede de Miriam, que logo sentiu Annie atrás de si, atenta e ciumenta. Mas o prado estava banhado numa luz gloriosa e o caminho luzia como uma jóia, e era tão raro ele dar-lhe algum sinal... Conservou por isso os dedos muito quietos entre as cordas do saco, aflorando os dedos dele. E o mundo dourou-se inteiro, como se numa visão.
Finalmente, chegaram à vilazinha isolada e pardacenta de Crich, situada a grande altura. Atrás da vila ficava o famoso Crich Stand, que Paul avistava do jardim de sua casa. O grupo estugou o passo. Grandes extensões de terrenos estendiam-se em baixo a toda a volta. Os rapazes estavam ansiosos por chegarem ao topo da colina, que era encimada por um cabeço redondo, de que metade já se tinha desmoronado, e no topo do qual se erguia um monumento antigo, grotesco e atarracado, usado noutros tempos para enviar sinais para as planícies do Nottinghamshire e do Leicestershire.
O vento soprava forte, lá no alto, naquele local tão exposto, e a única forma de se estar protegido era ser pregado pelo vento à parede da torre. Aos seus pés abria-se o precipício, de onde se extraía a pedra calcária. Em baixo, reinava uma confusão de colinas e pequenos povoados: Matlock, Ambergate, Stoney Middleton. Os rapazes estavam ansiosos por descortinarem a Igreja de Bestwood, que ficava muito distante, no meio da floresta, um pouco para a esquerda. Mas ficaram tristes ao verem que a igreja parecia erguer-se numa planície – as colinas do Derbyshire apagavam-se na monotonia das terras baixas que se estendiam para sul.
Miriam estava um pouco assustada com o vento, mas os rapazes estavam a gostar. Continuaram a caminhada, calcorreando milhas e milhas, até Whatstandwell. Todos estavam esfomeados, pois já tinham devorado a comida toda que levavam e já lhes restava pouco dinheiro para regressarem a casa. No entanto, ainda conseguiram arranjar uma broa e um pão de passas, que cortaram em fatias finas com os canivetes, sentando-se a comer num muro, perto da ponte onde o rio Derwent corria límpido, ao som do chiar dos freios do comboio em Matlock, perto da estalagem.
Paul estava pálido de cansaço. Tinha sido o chefe do grupo durante todo o dia, e agora estava morto de cansaço. Miriam, apercebendo-se disso, manteve-se junto dele, e Paul entregou-se à sua guarda.
Tiveram de esperar uma hora na estação de Ambergate. Os comboios passavam lotados com excursionistas que regressavam a Manchester, Birmingham e Londres.
– Também podíamos ir para lá... as pessoas facilmente pensariam que íamos para muito longe – disse Paul.
Chegaram a casa bastante tarde. No caminho de regresso a casa, com Geoffrey, Miriam viu a lua nascer redonda, rubra e velada, e sentiu-se realizada interiormente.
Miriam tinha uma irmã mais velha, Agatha, que era professora. A hostilidade entre as duas irmãs era notória. Miriam considerava Agatha uma pessoa demasiado mundana e o seu sonho era ser também professora primária.
Um sábado à tarde, Agatha e Miriam estavam a vestir-se no primeiro andar. O quarto delas ficava por cima do estábulo. Era um quarto de tectos baixos, não muito grande e de paredes nuas. Miriam tinha pregado na parede uma reprodução da Santa Catarina, de Veronese. Fascinava-a aquela mulher, sentada na janela a sonhar. As suas janelas eram demasiado pequenas para lá se poder sentar. Todavia, a da frente estava coberta de madressilva e hera americana, e de lá avistavam-se as copas do bosque de carvalhos, por detrás do quintal, enquanto a minúscula janela traseira, pouco maior do que um lenço, não passava de uma fresta voltada para oriente, para a aurora que se acendia atrás das colinas arredondadas que ela tanto amava.
As duas irmãs não falavam muito uma com a outra. Agatha, bonita, baixa e determinada, tinha-se revoltado contra a atmosfera do lar e contra a doutrina do «dar a outra face». Enfrentava agora o mundo exterior, lutando para se tornar independente. Insistia nos valores da cultura, nas aparências, nas boas maneiras, na posição social, tudo coisas que Miriam de bom grado teria ignorado.
Quando Paul chegou, ambas preferiram ficar invisíveis lá em cima, para poderem descer as escadas a correr, abrirem a portinhola do fundo das escadas e verem-no entrar, ansioso por encontrá-las. Miriam tentava desesperadamente enfiar pela cabeça o rosário que ele lhe tinha oferecido, e que ficara preso no fino emaranhado dos seus cabelos. Finalmente, conseguiu colocá-lo, e as contas de madeira, castanho-avermelhado, assentavam lindamente no seu pescoço fresco e mate. Era uma rapariga bem lançada e muito bonita. Contudo, só conseguia ver uma parcela do seu corpo de cada vez no pequeno espelho pregado na parede caiada de branco. Agatha tinha comprado um espelho só para ela, com o tamanho certo, que encostava à parede sempre que precisava. Miriam estava perto da janela. De repente, escutou o estalido bem conhecido do cadeado e viu Paul a abrir a cancela com um pontapé, entrando no pátio com a bicicleta. Ele olhou para cima e ela escondeu-se. Paul avançava com indiferença, e a bicicleta acompanhava-o como se fosse um objecto animado.
– O Paul já chegou! – exclamou Miriam.
– Não estás contente? – disse Agatha, evidenciando sarcasmo.
Miriam estava ainda surpresa e perplexa.
– Então, estás ou não estás? – insistiu a outra.
– Estou, mas não quero que ele perceba e pense que eu estava à espera.
Miriam estava perplexa. Ouviu-o meter a bicicleta no estábulo e falar com Jimmy, um cavalo decrépito que tinha trabalhado nas minas.
– Atão, Jimmy, meu amigo, como vai isso? Velho e cansado, hem? Pois é, é uma pena, amigo!
Escutou o som da corda a roçar na argola, quando o cavalo levantou a cabeça às carícias do rapaz. Como ela gostava de o ouvir quando ele pensava que o cavalo estava ali para o escutar. Porém, havia uma serpente no seu Éden. Ela procurava fervorosamente descobrir dentro si se amava Paul Morel. Sentia que poderia haver algo de errado nesse impulso. Enredada em sentimentos confusos, receava desejá-lo e condenava-se por isso. E logo a penetrou uma dor intensa, de vergonha, e todo o seu ser se contraiu num espasmo de tortura. Desejaria ela Paul Morel, e saberia ele que ela o desejava? Que subtil infâmia a ameaçava! E sentiu a alma enleada em nós de vergonha.
Agatha vestiu-se primeiro e desceu rapidamente para o rés-do--chão. Miriam ouviu-a cumprimentar o rapaz num tom jovial; conhecia bem o brilho dos olhos da irmã quando saudava alguém naquele tom. Ela própria se teria sentido corajosa por tê-lo cumprimentado daquela forma. Contudo, sentia dentro da alma a auto-flagelação de o desejar, aliada a um sentimento de tortura. Em perplexa amargura, ajoelhou-se e rezou:
– Senhor, não permitas que eu ame o Paul Morel. Afasta de mim esse sentimento, se achares que eu não devo amá-lo.
Algo de estranho a fez interromper a oração. Levantou a cabeça e reflectiu. Como é que amá-lo poderia ser errado? O amor era uma dádiva de Deus e, no entanto, causava-lhe vergonha. Era por ele, por Paul Morel, que a sentia. Mas esse não era assunto que lhe dissesse respeito, era só entre ela e Deus. Tinha de fazer o sacrifício, um sacrifício por Deus e não por Paul Morel ou por si mesma. Passados alguns minutos, escondeu a cara na almofada e disse:
– Meu Deus, se é Tua vontade que eu o ame, então submeto-me, como Cristo se submeteu e morreu pelas almas dos pecadores. Faz com que eu o ame fervorosamente, pois ele é Teu filho.
Permaneceu de joelhos por mais alguns instantes, serena, mas profundamente emocionada, com o cabelo negro espalhado sobre os quadrados da colcha de retalhos, vermelhos uns, outros com raminhos de alfazema. Rezar era algo de quase essencial para ela. Depois, caía naquele arrebatamento de auto-sacrifício, identificando-se com um Deus que fora sacrificado, acto que representa para tantas almas humanas a sua bênção mais sublime.
Quando Miriam desceu, Paul estava recostado no cadeirão, em acesa discussão com Agatha, que ridicularizava uma pequena pintura que ele tinha trazido para lhe mostrar. Miriam olhou-os e fugiu à sua frivolidade, indo para a sala de estar para ficar sozinha.
A hora do chá chegou sem que ela tivesse tido possibilidade de falar com Paul; mostrava-se tão distante que ele pensava tê-la ofendido.
Miriam quebrou a rotina de ir todas as terças-feiras à tardinha à biblioteca de Bestwood. Depois de se ter encontrado regularmente com Paul durante toda a Primavera, um número de incidentes insignificantes e pequenos reparos vindos da família levaram-na a aperceber-se das suas atitudes, e decidiu pôr fim às saídas. Assim, numa bela tarde, informou Paul de que não poderia voltar a ir ter a casa dele às terças-feiras à tarde.
– Porquê? – perguntou ele, com brusquidão.
– Por nada. Porque acho melhor assim.
– Muito bem.
– Mas... – gaguejou ela – ... se quiseres estar comigo, podemos ir juntos.
– E encontramo-nos onde?
– Algures... onde tu quiseres.
– Não te quero encontrar em lado nenhum. Não compreendo porque é que não podes continuar a vir buscar-me. Mas se não vieres, não quero encontrar-me contigo.
Assim, as terças-feiras à tarde, esses dias que tinham sido tão especiais para ela e para ele, terminaram. E Paul passou a ocupar esse tempo a trabalhar. Mrs. Morel viu com bons olhos esta decisão.
Paul não aceitava que fossem namorados. A intimidade entre eles tinha sido mantida ao nível do abstracto, era um assunto da alma; visto não passar de um conceito e de uma luta exaustiva ao nível da consciência, ele via nela apenas uma amizade platónica e negava peremptoriamente a existência de algo mais. Miriam permanecia em silêncio, ou então concordava sem discutir. E ele sentia-se um idiota, pois não entendia o que se passava no seu íntimo. Através de um acordo tácito, ignoravam os reparos e as insinuações das pessoas conhecidas.
– Não somos namorados, mas apenas amigos – disse-lhe ele. – Nós sabemos que é assim. Deixa-os falar. Não importa o que dizem.
Por vezes, quando caminhavam juntos, ela metia o braço timidamente no dele. Mas ele retraía-se sempre, e ela sabia-o, o que dava lugar a um conflito violento. Com Miriam, Paul sentia-se sempre no mais alto nível de abstracção, e a sua chama de amor natural transformava-se em energia mental. E ela aceitava-o assim. Se ele estivesse bem-disposto e, como ela dizia, brincalhão, ela aguardava que ele voltasse ao normal, que ele se transformasse, e o visse a lutar de novo consigo mesmo, empolgado, apaixonado, tentando compreender a situação. Nesta paixão pela compreensão, as suas almas tocavam-se e ele era totalmente dela. Todavia, tinha de se abstrair primeiro.
Assim, ela dar-lhe o braço era para ele quase uma tortura. A sua consciência parecia desintegrar-se. A parte do corpo onde ela lhe tocava ardia com a fricção. Era uma batalha mortal para ambos e por isso ele a tratava com crueldade.
Uma tardinha, nos meados do Verão, Miriam foi chamá-lo a casa, chegando transpirada devido à subida. Paul estava sozinho na cozinha e ouviam-se os passos da mãe no primeiro andar.
– Vem, vou mostrar-te as ervilhas-de-cheiro – disse ele.
Foram até ao jardim. O céu, por detrás da cidade e da igreja, era vermelho-alaranjado, e o jardim inundava-se de uma luminosidade estranha e quente que dava sentido a cada folha. Paul avançou pelo estreito carreiro ladeado de ervilhas-de-cheiro, colhendo flores creme e azul-pálido por aqui e por ali. Miriam seguia-o, aspirando as fragrâncias. As flores atraíam-na com tal intensidade que ela sentia necessidade de as tornar uma parte de si mesma. Quando se baixava e cheirava uma flor, era como se ambas se amassem uma à outra. Paul detestava vê-la fazer isso. Ela expunha-se demasiado naquela sua atitude, até mesmo intimamente.
Assim que o ramo ficou de bom tamanho, regressaram a casa. Ele escutou por momentos os passos calmos da mãe no andar de cima e, depois, disse:
– Vem cá, deixa-me enfeitar-te com elas.
E espetou duas ou três de cada vez à volta do decote do vestido, recuando em seguida para admirar o efeito.
– Sabes – disse ele, tirando o alfinete da boca – a mulher devia colocar sempre as flores em frente ao espelho.
Miriam sorriu. Para ela, as flores deviam ser colocadas no vestido sem qualquer preocupação. Se Paul se queria dar ao trabalho de lhe espetar as flores no vestido com rigor, isso era lá com ele.
Paul ficou muito ofendido com a gargalhada que ela deu.
– Algumas mulheres fazem-no.... as que são como devem ser – disse ele.
Miriam sorriu novamente, mas desta vez melancólica, por ele a ter misturado com as mulheres em geral. Teria ignorado a afronta, se tivesse partido de outro homem qualquer. Mas, vinda dele, magoava-a.
Estava ele a terminar o arranjo de flores quando ouviu os passos da mãe nas escadas. Espetou o último alfinete à pressa e afastou-se.
– Não deixes que a minha mãe perceba – disse ele.
Miriam pegou nos livros e ficou à entrada da porta, olhando desapontada para o belíssimo pôr do Sol. Não tornaria a vir a casa de Paul, disse ela.
– Boa tarde, Mrs. Morel – cumprimentou-a Miriam, respeitosamente. As suas palavras soaram como se ela não tivesse o direito de estar ali.
– Ah, és tu, Miriam! – respondeu Mrs. Morel friamente.
Paul insistia em que todos aceitassem a sua amizade com a rapariga, e Mrs. Morel era demasiado esperta para demonstrar abertamente qualquer relutância.
Só quando ele fez vinte anos é que a sua família teve possibilidades económicas para ir de férias. Desde que casara, Mrs. Morel nunca tinha ido de férias, excepto para visitar a irmã. Finalmente, Paul tinha conseguido juntar dinheiro suficiente para levar a família de férias. O grupo era o seguinte: alguns amigos de Annie, um amigo de Paul, um rapaz do escritório onde Paul tinha estado anteriormente e Miriam.
A reserva dos quartos provocou grande alarido. Paul e a mãe debateram várias vezes o assunto. Queriam uma casinha rústica mobilada para duas semanas. Ela achava que uma semana seria suficiente, mas ele insistia em duas. Paul saiu logo de manhã, antes de o correio chegar. Assim, quando voltou, as primeiras palavras da mãe foram:
– Paul, sabes uma coisa... aquela espertalhona de Skegness quer só quatro guinéus por semana por aquele seu barraco miserável.
– Então, vai ter muito de esperar – disse Paul.
– Também acho – respondeu a sua mãe, indignada. Nessa mesma noite, Paul escreveu outra carta. Receberam finalmente resposta de Mablethorpe – uma casinha que preenchia os seus desejos, por trinta xelins por semana. Houve uma explosão de alegria. Paul estava radiante pela mãe. Agora sim, ela ia ter umas verdadeiras férias. À noite, ficavam sentados a imaginar como seriam. Entretanto, chegaram Annie, Leonard, Alice e Kitty. Havia grande alegria e expectativa. Paul contou a Miriam. Ela pareceu feliz, mas comedida. Porém, o lar dos Morels vibrava de excitação.
CONTINUA
A cozinha era muito pequena e esquinada. A quinta tinha sido inicialmente o casebre de um jornaleiro, e a mobília estava velha e gasta. Mas Paul gostava da casa; gostava da serapilheira que substituía o tapete da chaminé e daquele vão patusco por baixo das escadas, e do postigo que se abria ao fundo e através do qual, se se curvasse, podia ver as ameixoeiras do jardim das traseiras e os graciosos cabeços arredondados que se recortavam à distância.
– Não te queres deitar? – disse Mrs. Leivers.
– Oh, não... não estou cansado – respondeu Paul. – É maravilhoso andar lá por fora, não é? Vi um abrunheiro em flor e muitas celidónias. Estou tão feliz por estar sol.
– Queres comer ou beber alguma coisa?
– Não, obrigada.
– Como está a tua mãe?
– Penso que se sente cansada... tem andado muito ocupada. Talvez vá em breve para Skegness comigo. Assim, terá oportunidade de descansar. Quem me dera que isso aconteça.
– Sim – respondeu Mrs. Leivers. – É um milagre que ela não esteja doente.
Miriam andava de um lado para o outro a preparar o jantar. Paul observava tudo o que se passava. As suas faces estavam pálidas e magras, mas os olhos continuavam, como sempre, rápidos e vivos. Ia observando os movimentos estranhos, quase rapsódicos, da rapariga, levando um tacho de guisado para o forno ou vigiando a panela. A atmosfera de sua casa era diferente, lá tudo parecia vulgar. Quando lá fora Mr. Leivers gritou com o cavalo, que se preparava para comer as roseiras no jardim, a rapariga assustou-se e olhou em volta com os seus olhos muito negros, como se algo tivesse vindo perturbar o seu mundo. Sentia-se o silêncio dentro e fora de casa. Miriam parecia estar a viver um conto de fadas, onde era uma donzela cativa e o seu espírito vagueava por uma terra distante e mágica. E a sua túnica azul, velha e desbotada, e as botas já muito gastas, pareciam os andrajos românticos da mendiga do Rei Cophetua.
Subitamente, sentiu os olhos dele, azuis e penetrantes, devorá-la. No mesmo instante as suas botas gastas e o seu velho vestido puído magoaram-na. Lamentava profundamente que ele estivesse a ver tudo. Pois se ele até sabia que a meia dela não estava completamente esticada. Dirigiu-se para a copa com as faces ruborizadas. Mais tarde, as mãos tremiam-lhe levemente durante as tarefas domésticas, quase deixando cair tudo aquilo em que pegava. Quando o seu sonho interior era abalado, o seu corpo estremecia com a trepidação. Lamentava profundamente que ele visse tanta coisa.
Mrs. Leivers sentou-se e conversou durante algum tempo com o rapaz, embora tivesse o trabalho à espera. Era todavia demasiado educada para o deixar sozinho. A certa altura, pediu licença e levantou-se. Daí a pouco olhou para a panela:
– Miriam, querida! – chamou. – As batatas estão sem água!
Miriam respondeu como se algum bicho lhe tivesse mordido.
– E depois, mãe? – exclamou ela.
– Não seria grave se eu não tas tivesse confiado – disse a mãe. – E espreitou para dentro da panela.
A rapariga pôs-se hirta como se tivesse levado um soco. Os seus olhos negros dilataram-se e ficou estática, no mesmo lugar.
– Tenho a certeza de que ainda há cinco minutos as vi – respondeu, crispada, sentindo-se culpada.
– Eu entendo – disse a mãe. – São coisas que acontecem.
– Não estão muito queimadas – disse Paul. – Não tem importância, pois não?
Mrs. Leivers olhou para o jovem com os seus olhos castanhos, magoados.
– Não teria importância, se não fosse pelos rapazes – disse ela. – Só Miriam sabe o barulho que eles fazem quando as batatas se pegam.
«Nesse caso», pensou Paul com os seus botões, «não deviam deixá-los fazer tanto barulho.»
Daí a nada, entrou Edgar. Vinha de perneiras e trazia as botas cobertas de terra. Era bastante baixo e muito formal para lavrador. Olhou de relance para Paul, cumprimentou-o de longe e perguntou:
– O comer está pronto?
– Está quase, Edgar – respondeu a mãe desculpando-se.
– Pois eu já estou pronto – disse o jovem, pegando no jornal e começando a ler. Entretanto, chegaram os restantes membros da família. O almoço foi para a mesa. A refeição decorreu com grande informalidade. A excessiva delicadeza e tom apologético da mãe realçavam mais o comportamento indelicado dos filhos. Edgar provou as batatas, mexeu a boca rapidamente como um coelho, olhou indignado para a mãe e disse:
– Estas batatas estão esturradas, mãe!
– Pois estão, Edgar... distraí-me por um minuto. Mas talvez possas comer pão, se não as conseguires comer.
Edgar olhou com raiva para Miriam.
– O que estava a Miriam a fazer, para não poder tomar conta delas? – disse ele.
Miriam levantou os olhos. A boca entreabriu-se-lhe, os seus olhos brilharam intensos, pestanejantes, mas permaneceu calada. Engoliu a raiva e a vergonha, e baixou a cabeça.
– Tenho a certeza de que não foi por mal – disse a mãe.
– Nem umas batatas sabe cozer – disse Edgar. – Pra que serv’ela aqui em casa?
– Pra ir prà despensa comer tudo o que sobra – disse Maurice.
– Eles não se esquecem daquela tarte de batata que a nossa Miriam comeu – disse o pai, a sorrir. Miriam sentia-se completamente humilhada. A mãe ficou calada, a sofrer como uma mártir, sentindo-se a mais nesta refeição atribulada.
Paul estava perplexo com tudo o que via. Não conseguia perceber a razão de tão violenta reacção só porque umas batatas se tinham queimado. A mãe dava a tudo, mesmo à mais insignificante tarefa doméstica, a importância de um dever religioso. Os filhos ressentiam-se com isso e, vendo cerceadas as suas liberdades, respondiam-lhe com brutalidade e também com irónica arrogância.
Paul estava a passar da infância à idade adulta. Esta atmosfera, onde tudo adquiria um valor religioso, tinha a seus olhos um fascínio subtil. Pairava no ar algo de indefinível. A sua própria mãe era lógica. Mas aqui havia algo de diferente, algo que ele amava, algo que por vezes detestava.
Miriam discutiu com os irmãos aguerridamente. Mais tarde, depois do almoço, quando todos já se tinham ido embora, a mãe disse:
– Desapontaste-me muito à hora do almoço, Miriam.
A rapariga baixou a cabeça.
– Eles são uns brutos! – exclamou subitamente, com os olhos flamejantes.
– Mas tu tinhas prometido que não respondias, não tinhas? – disse a mãe. – E eu acreditei em ti! Não suporto ver-te discutir.
– Mas eles são tão irritantes! – exclamou Miriam. – E... e malcriados.
– Sim, minha querida. Mas quantas vezes já te disse para não responderes ao Edgar? Será que não podes deixá-lo dizer o que lhe apetece?
– Mas porque há-de ele dizer o que lhe apetece?
– Miriam, será que não és suficientemente forte para o suportares, mesmo que o faças só por mim? Serás tão fraca que tenhas de discutir sempre com eles?
Mrs. Leivers pregava inflexivelmente a doutrina do «dar a outra face», mas não conseguia ensiná-la aos filhos. Era contudo bem-sucedida com as filhas, e Miriam era a sua filha dilecta. Os rapazes ficavam furiosos quando elas lhe davam a outra face, e Miriam era muitas vezes suficientemente orgulhosa para o fazer. Eles então cuspiam-lhe e detestavam-na. E ela refugiava-se na sua orgulhosa humildade, fechando-se em si mesma. Havia sempre este sentimento de conflito e de discórdia no seio da família Leivers. Embora os rapazes rejeitassem amargamente o eterno apelo aos seus sentimentos mais profundos de resignação e emproada humildade, acabavam por ceder. Não conseguiam imaginar apenas um sentimento humano comesinho ou uma simples amizade com um estranho: estavam sempre ansiosos por algo de mais profundo. O comum mortal era para eles superficial, trivial e insignificante. E, assim, por falta de hábito, eram dolorosamente rudes nos mais simples contactos sociais e, embora sofressem com isso, continuavam a arvorar uma insolente superioridade. Todavia, bem no fundo, ansiavam pela intimidade que não podiam lograr, pois eram demasiado reservados e qualquer tentativa de aproximação era imediatamente bloqueada pelo rude desprezo que nutriam pelos outros. Buscavam uma intimidade genuína, mas não se conseguiam aproximar normalmente das outras pessoas, pois recusavam-se a dar o primeiro passo e desprezavam a trivialidade que envolve a generalidade das relações humanas.
Paul deixou-se arrastar pelo sortilégio de Mrs. Leivers. Tudo adquiria um significado religioso e profundo quando ele estava com ela. A alma ferida dele, altamente evoluída, procurava-a em busca de alimento. Juntos pareciam filtrar de cada experiência a sua verdade vital.
Miriam era bem a filha de sua mãe. De tarde, ainda o sol brilhava, mãe e filha foram com ele passear pelos campos. Iam em busca de ninhos e encontraram um de carriça na cerca do pomar.
– Quero que vejas uma coisa – disse Mrs. Leivers.
Ele baixou-se e meteu o dedo cautelosamente por entre os espinhos, penetrando no orifício redondo da entrada do ninho.
– É quase como se metêssemos o dedo dentro do corpo de um pássaro – disse ele. – É tão quente. Dizem que o pássaro faz o ninho redondo como uma chávena, calcando-o com o peito. Sempre gostava de saber como é que ele fez o tecto redondo. – Para as duas mulheres, o ninho era o começo da vida. Depois desse dia, Miriam vinha visitá-lo todos os dias. Sentia-o tão próximo de si. Descendo novamente rente à cerca com a rapariga, Paul reparou nas celidónias, sobressaindo como salpicos de ouro na beira do valado.
– Gosto delas quando as pétalas se abrem completamente à luz do sol – disse ele. – Parecem comprimir-se contra o sol. – E foi quanto bastou para as celidónias passarem a exercer sobre ela um certo fascínio. Antropomórfica como era, incentivava-o a apreciar as coisas desta forma, e elas depois ganhavam vida para ela. Parecia necessitar que as coisas brilhassem na imaginação ou na alma dele primeiro, antes de sentir que as possuía. Sempre se vira privada de uma vida normal pelo seu próprio fervor religioso, que fazia o mundo parecer-lhe um jardim de convento ou um paraíso, onde o pecado e o conhecimento ou não existiam ou eram, pelo contrário, algo de cruel e feio.
Foi assim, nesta atmosfera de subtil intimidade, neste encontro de sentimentos comuns pelas coisas da natureza, que o amor nasceu.
Mas só passado muito tempo, Paul se deu verdadeiramente conta da existência de Miriam. Após a doença teve de permanecer em casa durante dez meses. Foi passar algum tempo a Skegness com a mãe e sentia-se verdadeiramente feliz. Mas até da praia ele escrevia longas cartas a Mrs. Leivers falando-lhe da praia e do mar. E trouxe consigo os seus queridos esboços da costa plana de Lincoln, ansioso por lhos mostrar. Iam com certeza interessar mais aos Leivers do que tinham interessado à sua própria mãe. Não era a sua arte que preocupava Mrs. Morel, mas sim ele próprio e o seu futuro. Porém, Mrs. Leivers e os filhos eram quase seus discípulos. Davam-lhe inspiração e faziam-no brilhar no seu trabalho, ao passo que a mãe o influenciava de forma a torná-lo determinado, paciente, obstinado, incansável.
Em breve se tornou amigo dos rapazes, cuja rudeza era apenas superficial. Todos patenteavam, quando podiam confiar neles próprios, uma bondade e amabilidade muito estranhas.
– Vens comigo para a leira? – perguntou Edgar, um tanto hesitante. Paul foi com ele alegremente e passou a tarde a cavar e a desbastar os nabos com o amigo. Paul costumava deitar-se com os três irmãos no monte de feno do celeiro a contar-lhes histórias sobre Nottingham e a Thomas Jordan. Eles, por sua vez, ensinaram-no a ordenhar e deixavam-no encarregar-se de pequenas tarefas tanto quanto quisesse, tais como segar feno ou despolpar nabos. Nos meados do Verão, Paul ajudou-os a segar o feno e tornou-se seu grande amigo. Aquela família vivia na verdade bem longe do mundo. Assemelhavam-se de certa forma a «les derniers fils d’une race épuisée»1. Embora os rapazes fossem robustos e saudáveis, eram esquivos e extremamente sensíveis, o que os tornava tão solitários. Mas, uma vez ganha a sua confiança, mostravam-se amigos fiéis e dedicados.
Miriam só mais tarde aconteceu. Mas ele entrara na vida dela antes de ela aparecer na sua. Numa tarde sombria, quando os homens estavam no campo e os mais novos na escola, apenas tendo ficado em casa Miriam e a mãe, ela perguntou-lhe, após breves momentos de hesitação:
– Já viste o baloiço?
– Não – respondeu ele. – Onde está?
– No estábulo – disse ela.
Ela hesitava sempre em dizer-lhe ou mostrar-lhe alguma coisa. Os homens têm uma noção de valor tão diferente da das mulheres que todos os seus objectos mais queridos e valiosos eram frequentemente motivo de escárnio e insulto por parte dos irmãos.
– Então vamos! – respondeu ele, levantando-se de imediato.
Havia dois estábulos, um de cada lado do celeiro. No estábulo mais baixo e escuro havia lugar para quatro vacas. As galinhas esvoaçavam sobre a manjedoura, cacarejando, enquanto o rapaz e a rapariga se aproximavam da corda grande e grossa, que pendia suspensa de uma viga na escuridão e estava presa à parede, a uma cavilha.
– Parece uma corda! – exclamou ele, satisfeito, e sentou-se ansioso por experimentar. Porém, levantou-se logo.
– Vá! Experimenta tu primeiro! – disse, voltando-se para a rapariga.
– Estás a ver – respondeu ela, entrando no celeiro –, é preciso pôr uns sacos no assento. – E assim tornou o assento mais confortável, o que muito o alegrou. Paul segurou-se à corda.
– Vem! – disse ele.
– Não, não quero ser a primeira – respondeu ela.
E manteve-se afastada, no seu jeito indiferente e calmo.
– Porquê?
– Vai tu agora! – insistiu ela.
Era talvez a primeira vez na vida que ela sentia prazer em fazer o que um homem lhe dizia, em poder mimá-lo. Paul olhou para ela.
– Está bem – disse ele, sentando-se no baloiço. – Cuidado!
Deu um salto para cima do baloiço e logo voou pelo ar, quase saindo pela porta, que tinha a parte superior aberta, podendo ver lá fora a chuva a cair miúda, o pátio sujo, o gado desolado junto à carroça preta do estábulo e, ao fundo, a cortina verde e cinza da floresta. Ela mantinha-se cá por baixo, com a sua boina vermelha à escocesa, a observá-lo. Ele olhou para ela, e ela viu os seus olhos azuis a brilharem.
– É um baloiço formidável – disse ele.
– Pois é.
Todo ele se lançava pelo ar, como um pássaro em voo picado, só pelo prazer do movimento. E então olhou para baixo, para ela, e a boina vermelha sobre os caracóis negros, o rosto bonito e afável, tão sereno como se estivesse a meditar, subiram até ele. Estava escuro e frio dentro do estábulo. Subitamente uma andorinha desceu das alturas do forro do telhado e saiu como uma seta pela porta.
– Não sabia que estávamos a ser observados por um passarinho – disse ele.
Ele baloiçava-se desabridamente. Ela sentia-o descer e subir no ar, como se impelido por uma força desconhecida.
– Agora vou morrer – disse ele, numa voz sonhadora e despojada, como se ele próprio fosse o movimento moribundo do baloiço. Ela olhava-o, fascinada. Bruscamente, ele travou e saltou.
– Já andei muito tempo – disse ele. – Isto é um baloiço formidável, é realmente um baloiço formidável.
Miriam estava divertidíssima, pois ele tinha levado o baloiço a sério e sentira-se bem a andar nele.
– Não, continua – disse ela.
– Porquê?... Não queres andar? – perguntou ele espantado.
– Não me apetece muito. Mas vou andar só um bocadinho.
Ela sentou-se no baloiço, enquanto ele segurava os sacos.
– É formidável, vais ver – disse ele, empurrando-a. – Mantém os calcanhares bem levantados, senão batem na manjedoura.
Miriam sentia a precisão com que ele a agarrava no momento exacto e a força certeira com que a empurrava, e sentia medo. Uma onda quente de medo percorreu-a até ao ventre. Ela estava nas mãos dele. O impulso firme e inevitável surgia de novo no momento certo. Ela agarrava-se à corda, quase a desmaiar.
– Oh – disse ela a rir, cheia de medo. – Mais alto não!
– Mas tu não vais nada alto – protestou ele.
– Mas mais alto não!
Paul apercebeu-se do medo na voz dela, e parou. O coração dela derreteu-se numa dor cálida, quando chegou o momento de novo impulso, mas ele deixou-a sozinha, e ela pôde respirar outra vez.
– Não queres mesmo ir mais alto? – perguntou ele. – Queres que te mantenha nessa altura?
– Não, eu ando sozinha – respondeu ela.
Então ele afastou-se e ficou a vê-la.
– Mal te mexes – comentou ele.
Ela esboçou um sorriso, envergonhada, e de repente desceu.
– Dizem que quem sabe andar de baloiço não enjoa no mar – disse ele, enquanto subia para o baloiço outra vez. – Não creio que alguma vez venha a enjoar.
Começou a andar novamente. Para ela havia algo nele que a fascinava. Naquele momento ele era apenas uma peça de um objecto em movimento e tudo nele se movia. Nem ela nem os irmãos conseguiam libertar-se assim. Sentia o entusiasmo desabrochar dentro de si. Era como se ele fosse uma chama, e tivesse ateado o entusiasmo dentro dela enquanto se baloiçava no ar.
E, gradualmente, a intimidade de Paul com a família Leivers privilegiava três pessoas: a mãe, Edgar e Miriam. Na mãe encontrava uma simpatia e um encanto que pareciam abrir-lhe o coração. Edgar era o seu melhor amigo. Quanto a Miriam, digamos que a ia aturando, pois parecia-lhe ser muito submissa.
Mas a rapariga, a pouco e pouco, foi-o atraindo. Quando ele trazia o caderno dos esboços, era sempre ela quem observava mais longamente o último desenho. E então, olhava para ele e perguntava, com os olhos negros a luzir, como águas agitadas por uma corrente dourada no meio da escuridão:
– Porque será que gosto tanto deste?
E algo no peito dele se retraía perante estas observações tão deslumbradas, tão íntimas e tão próximas.
– Sim, porque será? – perguntava ele.
– Não sei – parece tão real.
– É porque... é porque quase não tem sombras... é mais como uma cintilação... como se eu tivesse pintado a cintilação do protoplasma das folhas, e de tudo, e não a rigidez das formas. Isso para mim é coisa morta. Só a cintilação contém vida. A forma é uma crosta morta. A cintilação está, realmente, no interior.
E ela, mordendo o dedinho minúsculo, ponderava sobre tais afirmações. Davam-lhe uma nova sensação de vida e davam vida a coisas que até aí não significavam nada para ela. Conseguia encontrar algum significado nos discursos dele, sempre tão abstractos e intrincados. Era através deles que ela chegava claramente aos objectos amados.
Certo dia, ela tinha estado sentada junto dele, ao pôr do Sol, enquanto ele pintava alguns pinheiros batidos pelo clarão rubro que avançava do poente. Ele mantivera-se calado.
– Já está! – disse ele, de repente. – Mesmo o que eu queria. Agora, olha para eles e diz-me se são troncos de pinheiro ou carvões incandescentes, estacas de fogo a arder na escuridão. A sacra ardente de Deus, aquela que não se apaga.
Miriam olhou e sentiu medo. Mas distinguia perfeitamente os troncos de pinheiro e achava-os magníficos. Ele arrumou a caixa das tintas e levantou-se. De repente, olhou para ela.
– Porque estás sempre tão triste? – perguntou.
– Triste! – exclamou ela, olhando para ele com os seus olhos castanhos, admirados, maravilhosos.
– Sim – disse ele. – Tu andas sempre, sempre triste.
– Não... Nem um pouco! – exclamou ela.
– Até a tua alegria parece uma chama ateada pela tristeza – insistiu ele. – Nunca estás alegre, nem sequer normal.
– Pois não – disse ela, pensativa. – Dá que pensar... Porque será...?
– Porque tu não és.... porque tu és diferente por dentro... como um pinheiro... e depois incendeias-te... mas não és uma árvore qualquer, com folhas irrequietas e alegres...
Paul emaranhou-se no seu próprio discurso; mas ela bebia as suas palavras e ele teve uma sensação estranha e estimulante, como se os seus sentimentos fossem novos. Ela chegava-lhe tão perto da alma. Estranho estímulo este.
Mas às vezes odiava-a. O irmão mais novo de Miriam só tinha cinco anos. Era um menino débil, de enormes olhos castanhos e um rostinho frágil e esquisito; parecia um anjo do Coro dos Anjos, de Reynolds, com um toque de duende.
Miriam ajoelhava-se frequentemente junto da criança e apertava-o contra o peito.
– Meu Hubert! – cantarolava ela com uma voz possante, a transbordar de amor. – Meu Hubert!
E, envolvendo-o nos seus braços, embalava-o mansamente de um lado para o outro com amor, de face levantada ao céu, olhos semicerrados e voz embebida de ternura.
– Pára! – disse a criança, constrangida. – Pára, Miriam!
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela do fundo da garganta, como se estivesse em transe, balançando também, como se prestes a desfalecer num êxtase de amor.
– Pára! – repetiu a criança, franzindo a testa desanuviada.
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela.
– Porque fazes tanto espalhafato? – gritou Paul, profundamente afectado pela emoção exagerada de Miriam. – Porque não ages normalmente com ele?
Ela largou a criança e não respondeu. A sua intensidade, que não deixaria transparecer qualquer emoção numa situação normal, deixava o jovem quase num frenesim. Este contacto desprotegido e tímido com a alma dela chocava-o. A sua mãe era reservada, e ele estava habituado a ela. E, nessas alturas, sentia-se agradecido de alma e coração por ter a mãe que tinha, tão sensata e tão sã.
Toda a vida do corpo de Miriam se reflectia nos seus olhos, normalmente escuros como as igrejas, mas que podiam inflamar-se como uma conflagração. A sua expressão meditativa raramente se alterava. Talvez ela tivesse sido uma das mulheres que acompanharam Maria quando Jesus morreu. O seu corpo não era vivo, flexível. Andava de forma oscilante, pesada até, de cabeça inclinada para a frente, meditativa. Não sendo propriamente desajeitada, nenhum dos seus movimentos parecia o movimento correcto. Muitas vezes, quando limpava os pratos, ficava confusa e desgostosa, por ter partido em duas metades uma chávena ou um copo. Era como se, por medo e falta de confiança, se tivesse aplicado demasiado. Não sabia o que eram relaxamento ou abandono. Agarrava-se a tudo com rigidez e intensidade, e o seu esforço, de excessivo, fechava-a sobre si mesmo.
Raramente alterava a forma de andar, tensa, balançada, projectada para a frente. De vez em quando, ia com Paul dar uma corrida pelos campos e então os seus olhos brilhavam inteiros, num êxtase que o assustava. Mas tinha medo de fazer exercício físico. Se tivesse de saltar uma cerca, apertava as mãos de forma angustiante e perdia a presença de espírito. E ele não conseguia persuadi-la a saltar, mesmo um obstáculo baixo. Os olhos dela dilatavam-se, ficavam expostos, palpitantes.
– Não – gritava ela, sorrindo apavorada. – Não!
– Tens de tentar – gritou ele uma vez e, empurrando-a para a frente, fê-la cair da cerca. Mas o grito selvagem que ela deu, como se estivesse prestes a perder a consciência, feriu-lhe as entranhas. Mas ela caiu de pé e em segurança, e posteriormente passou a ter mais coragem.
Paul e Miriam iam muitas vezes passear juntos pelos campos até ao lago Nethermere. Ele era naturalmente ágil e muito activo. Andava sempre a saltar de um lado para outro. Ela, no entanto, mantinha sempre o mesmo curso, quase sem alterações. E ele, a pouco e pouco, vinha para junto dela, moderava o passo e caminhava com ela, de cabeça baixa, mas só até chegarem à água. A margem do lago estava pejada das penas brancas dos cisnes. Sentavam-se entre os seixos. Subitamente, ele descobria um seixo bonito e bem liso, levantava-se, e atirava-o à água para provocar ondinhas.
– Consegues fazê-los saltar? – perguntou Paul.
– Não muito bem! – respondeu ela, abanando a cabeça. E continuou sentada a observá-lo.
– Ora vê! – gritou ele. – Quatro saltinhos.
– Sim senhor – disse ela, elogiando-o. – Formidável. – Contudo, ele depressa se fartou e veio sentar-se novamente junto dela.
– Porque não queres também fazer ondinhas? – perguntou ele.
– Porque não sei – respondeu ela.
– Tu nunca queres fazer nada! – disse ele.
– Bem vês, tenho a lida da casa para fazer.
Paul não deu seguimento à discussão, preferindo encetar um diálogo sobre livros.
Miriam estava muito triste com o seu destino.
– Não gostas de estar em casa? – perguntou-lhe Paul surpreendido.
– E quem é que gosta? – respondeu ela, num tom cavo e profundo. – O que é estar em casa? Passar os dias a limpar o que os rapazes sujam em menos de cinco minutos. Não quero estar em casa!
– Então o que é que queres?
– Quero fazer alguma coisa. Quero ter uma oportunidade, como toda a gente. Porque é que eu, só por ser rapariga, tenho de ficar em casa e não me é permitido ser alguém? Que oportunidades é que eu tenho?
– Oportunidades para quê?
– Para saber de tudo, para aprender... para fazer qualquer coisa. Não é justo que isto aconteça apenas por eu ser mulher.
Ela falava com muita amargura. Paul pôs-se a pensar. Em casa, Annie parecia até quase contente por ser rapariga. Não tinha tantas responsabilidades e tudo era mais fácil para ela. Nunca quisera ser qualquer outra coisa além de rapariga. Mas Miriam desejava quase furiosamente ser homem. E, contudo, ao mesmo tempo detestava os homens.
– Mas ser homem ou mulher é a mesma coisa – disse Paul, franzindo a testa.
– Ai é?... Os homens têm tudo.
– Eu acho que as mulheres deviam estar contentes por serem mulheres, como os homens estão por serem homens – respondeu ele.
– Não! – Ela abanou a cabeça. – Nem pensar! Os homens têm tudo.
– Mas o que é que queres, afinal? – perguntou ele.
– Quero aprender. Porque é que eu hei-de ficar sem saber nada?
– Mas afinal o que queres tu aprender? Matemática e francês...?
– E porque é que eu não hei-de aprender matemática... Sim – gritou ela, abrindo os olhos em ar de desafio.
– Tu podes aprender tudo aquilo que eu sei – disse ele. – Eu ensino-te, se quiseres.
Os olhos dela arregalaram-se. Como professor, ele não lhe inspirava confiança.
– Gostavas? – perguntou Paul.
Ela estava de cabeça baixa a chuchar no dedo, sorumbática.
– Gostava... – disse ela, hesitante.
Ele conversava frequentemente com a mãe sobre todas estas coisas.
– Gostava de ser homem, mãe? – perguntou ele.
– Por vezes... mas é uma parvoíce... penso que não... não quero e nunca quis ser outra pessoa diferente da que sou.
– E porque é que gostava de ser homem, mesmo só às vezes?
– Bem, meu filho – respondeu a mãe a sorrir – penso que conseguiria fazer mais do que alguns homens, o que não é para admirar.
– Eu cá não quero ser mulher – disse ele, pensativo. – E acho que não conseguia ser uma mulher melhor do que as que já são mesmo mulheres.
– Não – disse a mãe a sorrir. – Também acho que não... Mas, por vezes, nós sentimos que poderíamos fazer mais do que os homens...
– Talvez a mãe pudesse... – disse ele.
– Bem... – respondeu ela com a sua curiosa fungadela habitual. – Sabes, meu filho – continuou ela – a natureza é para ser respeitada. E quando uma mulher deseja ardentemente ser homem, podes apostar a vida em como ela não é lá grande coisa como mulher.
– Detesto uma mulher que deseje ser homem – disse ele.
– Apenas demonstra que o seu orgulho de mulher está demasiado enfraquecido – respondeu a mãe. Paul falava sempre com a mãe, pois ela era a sua pedra de toque.
– Vou ensinar álgebra à Miriam – disse ele.
– Bem... – disse Mrs. Morel – espero que lhe seja proveitoso.
Aproximava-se o crepúsculo quando Paul se dirigiu para a quinta, na segunda-feira à tardinha. Miriam acabara de varrer a cozinha e estava ajoelhada junto à lareira quando ele entrou. Todos tinham saído, excepto ela. Olhou-o ruborizada, com os olhos negros a brilhar e os cabelos magníficos caídos à volta do rosto.
– Olá – disse ela, num tom suave e musical. – Já sabia que eras tu!
– Como é que adivinhaste?
– Reconheci os teus passos. Ninguém anda tão depressa e firmemente como tu.
Ele sentou-se e suspirou.
– Estás pronta para aprender álgebra? – perguntou ele, tirando um livrinho do bolso.
– Mas... – Ele sentiu-a recuar.
– Mas tu disseste que querias – insistiu ele.
– Mas hoje à noite... – começou ela, titubeante.
– Mas eu vim de propósito. E, se queres aprender, alguma vez tens de começar.
Ela apanhou as cinzas com a pá do lixo e olhou para ele, esboçando um sorriso trémulo.
– Sim, mas... esta noite... Sabes, ainda não pensei nisso.
– Por amor de Deus... Vai despejar as cinzas e vem ter comigo.
Paul saiu e sentou-se no banco de pedra do pátio das traseiras, perto das grandes bilhas de leite. Os homens estavam no estábulo. Ele conseguia ouvir o som cadenciado do leite, jorrando para os baldes. Ela voltou logo, com um punhado de maçãs grandes e esverdeadas.
– Estas são das que tu gostas – disse ela.
Ele deu uma trincadela na maçã.
– Senta-te – disse ele com a boca cheia.
Ela, míope, começou a espreitar por cima do ombro dele. Isso irritou-o tanto que lhe entregou logo o livro.
– Vê à vontade – disse ele. – Aqui há apenas letras para cada número. Escreves um a, em vez de um «2» ou um «6».
Começaram a trabalhar, ele a explicar e ela debruçada sobre o livro. Ele era rápido e impetuoso. Ela nunca respondia. Por vezes, quando ele lhe perguntava:
– Estás a perceber? – ela olhava-o com uns olhos sorridentes e amedrontados.
– Então, não estás a perceber nada! – gritava ele.
Tinha ido demasiado depressa. Mas ela não tinha dito nada. Ele fez-lhe mais perguntas e depois irritou-se. Ficava com o sangue a ferver de a ver ali à sua mercê, de boca aberta, olhos esbugalhados, com um sorriso medroso, apologético, envergonhado. Edgar chegou entretanto com dois baldes de leite.
– Olá! – disse ele. – O que estão vocês a fazer?
– Álgebra – respondeu Paul.
– Álgebra! – repetiu Edgar, intrigado. E seguiu em frente, dando uma gargalhada. Paul trincou a maçã já quase esquecida e, olhando para as pobres couves da horta, todas rendilhadas pelas galinhas, teve vontade de as arrancar. Depois, olhou para Miriam, que fitava o livro aparentemente absorta; porém tremia, receando não compreender. Estava corada e bonita. Todavia, a sua alma parecia suplicar ao livro de álgebra que a ajudasse. Ela fechou-se, retraiu-se, percebendo que ele estava aborrecido. Mas, no mesmo instante, ele tornou-se gentil ao vê-la magoada por não conseguir perceber o que lia.
– Diz lá, o que é que achas difícil? – perguntou ele, ternamente.
Este novo tom de voz fê-la levantar de imediato os olhos negros que pareciam querer vencer a todo o custo. O olhar dela doeu-lhe e uma onda de ternura percorreu-o.
– Sabes, para mim é fácil – disse ele. – Já estou habituado e esqueço-me de que não sabes. Vês...
E, então, todo ele gentileza e paciência, recomeçou. Edgar chegara entretanto e pusera-se atrás dele.
A cabeça escura de Miriam encontrava-se abaixo do nível dos olhos de Paul. Era uma cabeça pequenina com caracóis negros que pareciam flutuar como seda. Ela parecia esforçar-se tanto! A voz dele era uma contínua ternura.
– Vejo, pois! – exclamou Edgar, de repente, por detrás deles. – Mas... isto...
E o seu gordo indicador aproximou-se do livro. Miriam estremeceu. Paul virou-se para o amigo. Edgar era bem-parecido e os seus olhos, castanhos, perfeitos e saudáveis, pareciam interessados. Explicar-lhe algo era para Paul como respirar ar fresco.
Paul dava lições a Miriam com regularidade. As aulas tinham lugar na sala de estar. Foi aí que o jovem se estreou brilhantemente. Ela aprendia tudo e sabia sempre quais os exercícios que ele lhe mandara fazer na semana anterior. Frequentemente sabia até melhor do que ele. Mas as coisas para ela tinham de ser lentas. E quando se retraía e se mostrava completamente submissa durante a lição, isso enervava-o. Ele enfurecia-se, envergonhava-se, continuava a lição e enfurecia-se novamente, gritando com ela. Ela escutava-o em silêncio. Por vezes, muito raramente, defendia-se. Os seus olhos negros e transparentes fulminavam-no.
– Não me dás tempo para aprender – dizia ela.
– Pronto – respondia ele, atirando o livro para cima da mesa e acendendo um cigarro. Mais tarde, ia ter com ela arrependido. E assim decorriam as lições, com ele sempre ou muito enervado ou muito gentil.
– Porque é que a tua alma estremece durante a lição? – gritava ele. – Com essa tua bendita alma, nunca mais aprendes álgebra. Será que não consegues olhar para isto com a razão, de uma forma clara e simples?
Muitas vezes, quando ia para a cozinha, Mrs. Leivers olhava para ele aborrecida e repreendia-o:
– Paul não sejas tão severo com a Miriam. Ela pode não ser muito rápida, mas tenho a certeza de que se esforça.
– Não me consigo conter – dizia ele, desculpando-se. – Enervo--me facilmente.
– Miriam, não estás aborrecida comigo, pois não? – perguntava-lhe ele mais tarde.
– Não – assegurava-lhe ela, no seu tom profundo e melodioso. – Não, eu não me importo.
– Não me perdoes tão facilmente, pois eu sei que sou culpado.
Mas, apesar de tudo, o seu sangue começava a ferver novamente. Era estranho que mais ninguém o enervasse daquela forma. Mas ela enfurecia-o. Uma vez atirou-lhe um lápis à cara. Fez-se silêncio. Ela virou a face ligeiramente para o lado.
– Eu não... – começou ele, mas não continuou, pois sentia-se desfalecer. Ela nunca o censurava nem se zangava com ele, e ele sentia-se muitas vezes terrivelmente envergonhado. Contudo, a sua raiva rebentava novamente como uma bolha enfunada. Quando ele via à sua frente aquela cara ansiosa, silenciosa, como se fosse cega, sentia renascer dentro de si a vontade irreprimível de lhe atirar outra vez com o lápis. No entanto, quando via a mão dela tremer e a boca entreabrir-se em sofrimento, o seu coração ardia de compaixão por ela. E, assim, procurava-a, pela força e a intensidade que ela despertava nele.
Muitas vezes evitava-a e ia passear com Edgar. Miriam e o irmão eram naturalmente antagónicos. Edgar era um racionalista curioso e nutria um interesse científico pela vida. Para Miriam, era um grande desespero sentir-se abandonada por Paul em benefício de Edgar, que parecia muito mais inculto. Todavia, Paul sentia-se muito feliz com o irmão mais velho. Os dois homens passavam tardes juntos no campo, carpinteirando no celeiro quando chovia. Conversavam ou então Paul ensinava a Edgar as canções que ele próprio tinha aprendido com Annie ao piano. Frequentemente, todos os homens, incluindo Mr. Leivers, tinham acerbas discussões sobre a nacionalização da terra e problemas semelhantes. Paul já tinha ouvido as opiniões da mãe, e visto serem essas também as suas, discutia-as em seu lugar. Miriam assistia e participava, mas aguardava até que terminassem, e intervinha apenas quando a conversa voltava a ser mais íntima.
«Acima de tudo», pensava ela, «se as terras fossem nacionalizadas, Edgar, Paul e eu continuaríamos a ser os mesmos.»
E então esperava que Paul voltasse para junto dela.
Ele andava a estudar pintura. À noite adorava ficar a trabalhar em casa sozinho com a mãe. Ela cosia ou punha-se a ler. Por vezes, ele interrompia o seu trabalho e descansava os olhos por um momento no rosto da mãe, que brilhava de ternura, para depois retomar feliz a sua tarefa.
– Mãe, os meus melhores trabalhos são feitos quando está aqui sentada na cadeira de balouço – dizia ele.
– Tenho a certeza de que sim – exclamava ela, torcendo o nariz, num cepticismo simulado. Mas sabia que assim era e o seu coração pulsava de alegria. Mrs. Morel sentava-se em silêncio durante horas, costurando ou lendo um livro, atenta ao trabalho do filho. E ele, comandando o lápis com toda a intensidade da sua alma, sentia o calor dela dentro dele, incentivando-o. Eram os dois muito felizes assim e sem consciência de o serem. Estes momentos, tão significativos e tão reais, passavam-lhes quase despercebidos.
Ele apenas tomava consciência quando era estimulado. Quando terminava um esboço, desejava sempre mostrá-lo a Miriam. E então, sentia-se estimulado para conhecer o trabalho que tinha produzido inconscientemente. Em contacto com Miriam adquiria discernimento e a sua visão tornava-se mais profunda. Da mãe retirava o calor da vida e o incentivo para produzir; Miriam dava a esse calor a intensidade de uma luz muito branca.
Quando Paul voltou à fábrica, as condições de trabalho tinham melhorado. Tinha a quarta-feira à tarde livre para ir à escola de belas-artes – providência tomada por Miss Jordan – e regressava à tardinha. Além disso, às quintas e sextas-feiras à tarde, a fábrica fechava às seis em vez de ser às oito.
Em Bestwood havia uma pequena e respeitável biblioteca, cuja assinatura custava apenas quatro xelins e seis dinheiros por ano. Mrs. Morel e Mrs. Leivers tinham-se feito sócias quando os filhos começaram a crescer. A biblioteca ocupava duas salas do Clube dos Mecânicos, e estava aberta às terças-feiras à noite, das 19 às 21 horas. Paul ia sempre buscar os livros para a mãe, que lia muito, e Miriam arrastava-se sob o peso de cinco ou seis volumes para a família. Tornou-se habitual os dois encontrarem-se na biblioteca.
Paul conhecia bem as duas pequenas salas com as paredes forradas de livros. Eram acolhedoras e havia uma grande lareira ao canto. Mr. Sleath, o bibliotecário, tinha fartas suíças brancas em torno de uma cara acriançada. Era alto e curioso, mas muito afável; conhecia toda a gente e sabia da vida de todos. Mr. Smedley era roliço, careca e instruído.
Paul aguardou, enquanto Mr. Sleath acabava de pôr em dia os mexericos com o último leitor. Nessa altura, Paul deixou cair os livros em cima do balcão. Mr. Sleath olhou para ele com os seus olhos azul-vivo, mas mortiços.
– Vinte e dois, cinquenta e sete – disse Paul.
O bibliotecário, funcionário superior da companhia mineira e um cavalheiro comparado com o jovem, repetiu os números alegremente, virando as folhas do livro de registos.
– Ah!... Ah! – exclamou ele, olhando para a página. Depois olhou de uma forma carinhosa e acolhedora para o jovem, esfregou as mãos e disse:
– Ah!... Bem, Paul!... Ah! Como está a tua mãe?
– Muito bem, obrigado! – respondeu Paul.
– Óptimo! Não a vi na capela no domingo à noite!
– Pois não! Teve uma inflamação nos olhos.
– Meu Deus... Meu Deus... Lamento muito!
– Mas penso que disseste – interveio Mr. Smedley – que ela estava muito bem. – Paul não respondeu nem olhou para o homenzinho por detrás do balcão. Mr. Sleath ia assinalando os livros no seu livro de registo. Mr. Smedley pôs mais carvão na lareira. Algumas pessoas conversavam animadamente junto das estantes. Os tacões dos sapatos chiavam na tijoleira.
– Mas achas que ela já se sentirá bem para sair este fim-de-semana? – perguntou Mr. Sleath, quando acabou de registar todos os livros.
– Acho que sim – disse Paul.
– Óptimo... Óptimo. De facto, estranhei a ausência dela.
Para Paul já era um dado adquirido que as pessoas lhe perguntassem pela mãe e nunca mencionassem o pai.
Dirigiu-se para as estantes. Os leitores continuavam a entrar, deixando os chapéus-de-chuva no corredor e trocando agradáveis saudações. O jovem conhecia toda a gente e todas as suas histórias. Mas não lhe interessavam. Miriam talvez não viesse por causa da chuva. Olhou para o livro que tinha nas mãos, esqueceu-o por momentos, pensando nela, e voltou ao livro novamente. O tempo passava como num sono. Ouvia o ruído das pessoas a saírem, mas ninguém a entrar. E se ela não viesse? Só de pensar nisso a noite afigurava-se-lhe lúgubre e infrutífera. Mas ela viria. A atmosfera era quente e acolhedora e a noite não teria continuidade enquanto ela não chegasse.
– Uma noite dos diabos, Alfred, uma noite dos diabos – disse Mr. Sleath, procurando alguém com quem falar. A biblioteca estava vazia.
– Parece que sim – respondeu Mr. Smedley.
Então, Mr. Sleath reparou em Paul.
– Olá, Paul – exclamou. – Ainda não encontraste o que queres, hem?
– Não me parece que o Paul esteja à espera de nenhum livro – disse Mr. Smedley.
– Oh...Oh... – exclamou Mr. Sleath.
– Penso que é uma jovem que está por detrás disto tudo – disse Mr. Smedley. – Mas está uma noite péssima para se vir de Willey Woods.
Ouviram-se passos no corredor. Paul ficou à escuta. Não era ela. Entrou um rapaz. Quando Paul viu o rapaz no limiar da porta, onde ela deveria estar, ficou furioso com ele. Contudo ela viria. Era sempre tão cumpridora. Um dos seus maiores encantos, quanto a ele, era a sua rejeição das convenções. Se quisesse vir, viria mesmo que chovesse torrencialmente. E o tempo não estava assim tão mau. Paul pôs-se a escutar, para ver se chovia muito. E então ouviu o rapaz dizer que estava a chover a cântaros. Mas o rapaz não contava. Ela viria, sim, mesmo que chovesse a cântaros. E Paul agarrou-se a essa esperança. Podia senti-la, através da noite, desejando vir. E ela nunca o desapontava. Para ela a vida interior valia tudo, e a exterior nada.
Ouviu os passos dela no corredor e a sua ansiedade diminuiu. Ficou a vê-la chegar. Ela parou um momento à entrada da porta. A boina vermelha cintilava com as gotas de chuva, o cabelo revolto dançava em caracóis húmidos, as faces esplandeciam. Ela procurou-o ansiosamente com o olhar, e então os seus olhos míopes encontraram-no, e uma chama ateou-se dentro dela, queimando-o também a ele. Dirigiu-se ao balcão, satisfeita. Ele virou-lhe as costas.
Então, ela aproximou-se dele, hesitante.
– Estou atrasada? – perguntou ela.
– Como sempre – respondeu ele. – Estás muito molhada?
– Não... nadinha.
– Vieste pela linha férrea? – disse ele.
– Vim. Estavas com muito medo de que eu não aparecesse?
– Só um bocadinho.
Paul sorriu.
– Vem, vou mostrar-te os livros que escolhi para ti – disse ele. Ela foi. Os livros não tinham qualquer significado para ela. Mas ele insistia na sua aprovação. Olhou para os livros por cima do braço dele, sem conseguir ver nada. Mas ele estava contente.
– Concordas? – perguntou ele.
– Claro – respondeu ela.
Depois de registarem os livros, saíram os dois rapidamente da biblioteca. A escuridão enchia-os de alegria. Sentiam-se exacerbadamente felizes. Paul trazia uma enorme capa preta impermeável, por baixo da qual resguardou os livros. Caminharam lado a lado pela rua Mansfield, envolvidos pela escuridão e pela chuva, sob as árvores gotejantes.
A conversa surgiu rápida e vigorosa, passando imediatamente à discussão sobre um dos livro. Ele falava apaixonadamente, ela ouvia-o e a sua alma expandia-se. Do livro, passaram inevitavelmente a uma discussão sobre crenças íntimas, muito subjectiva.
– Parece que é como se não tivesse importância, um a mais ou um a menos, dentro do todo... – disse ele.
– Não – respondeu ela gravemente, em dúvida.
– Eu costumava pensar assim quando um pardal caía.... e o mesmo em relação aos cabelos da cabeça...
– Sim – disse ela. – E agora?
– Agora penso que a raça dos pardais é importante, e não apenas um pardal: todo o meu cabelo, e não apenas um fio de cabelo.
– Sim – disse ela, pouco convencida.
– E as pessoas são importantes. Mas uma só não é assim tão importante. Vê, por exemplo, o William.
– Sim – disse ela, pensativa.
– Chamo a isso apenas uma perda – disse ele – Uma perda, nada mais.
– Sim – disse ela, com a voz sumida.
Ela acreditava que quanto mais pessoas houvesse, menos importância tinham. Mas ouvi-lo falar assim era para ela como um sopro de vida: como o primeiro sopro de um recém-nascido.
– Contudo – disse ele – creio que há um caminho certo a seguir... se o seguirmos está tudo bem... ou se andarmos perto. Mas se não o seguirmos, morreremos. Tenho a certeza de que o nosso William fez a escolha errada.
– E se seguirmos o curso das nossas vidas não morremos? – perguntou ela.
– Não, não morremos. É o nosso íntimo que nos aconselha a seguir um determinado caminho e não outro.
– Mas nós sabemos quando é que estamos a seguir o caminho certo? – perguntou ela.
– Claro! Eu pelo menos sei. Eu sei que estou a seguir o meu caminho.
– Sabes mesmo? – perguntou ela.
– Sim... tenho a certeza.
Ele tinha parado por baixo de um lampião para pensar. O seu impermeável luzia com a chuva. Ela olhou para a cara dele. Os seus olhos, tão certeiros e tão fixos, fitaram os dela. Ele era realmente determinado. Ela seguiu para casa com o coração em brasa.
Mas ele, quando deu meia volta para retroceder, logo a esqueceu, ao pensar que a mãe ficaria aborrecida ao saber que ele tinha ido até tão longe debaixo de chuva. Estugou o passo, sentindo-se porém exultante com o contacto com Miriam. A noite tinha-lhe trazido alguma satisfação.
– Queres tu dizer que levaste a Miriam Leivers a casa numa noite como esta? – perguntou a sua mãe, fitando-o subitamente, um minuto depois de ele ter entrado.
– Demorei-me muito tempo na biblioteca – argumentou Paul.
– Mas ela apareceu, não apareceu? – exclamou Mrs. Morel, calma e severa. Paul estremeceu.
– Ela fica sem nada para ler durante toda a semana, se não vier à biblioteca – disse ele.
– Não sei o que é que a mãe dela anda a fazer para a deixar arrostar com cerca de 10 milhas debaixo desta chuva torrencial.
– Não está chover muito – disse ele. – Nem por isso.
– Basta olhar para o teu impermeável e para as tuas botas – disse a mãe.
– Olhe o que eu lhe trouxe – disse ele, mas ela estava demasiado zangada para condescender.
Certa tarde de Verão, Miriam e Paul resolveram atravessar os campos, por Herod Farm, no regresso da biblioteca. Assim, eram só três milhas até Willey Farm. A erva segada brilhava com reflexos dourados e os botões de azedas ardiam em tons de carmim. A pouco e pouco, enquanto atravessavam o planalto, os tons dourados do ocaso deslizaram para vermelho, o vermelho para o carmim e, por fim, o azul glacial apagou o clarão.
Foram dar à estrada principal de Alfreton, que singrava branca entre os campos anoitecidos. Aí, Paul hesitou. Eram cerca de duas milhas até sua casa, e uma milha até à casa de Miriam. Olharam para a estrada, que corria sombria sob a luminosidade ténue de noroeste. No cimo do monte, Selby, com as suas casas despojadas e as suas torres mineiras, recortava-se no céu, pequenina, em negras silhuetas.
Ele consultou o relógio.
– Já são nove horas! – disse.
Ambos estavam relutantes em partir, abraçados aos seus livros.
– O bosque é tão bonito a esta hora... – disse ela. – Queria tanto que o visses.
Ele atravessou a estrada atrás dela, lentamente, aproximando-se da cancela branca.
– Eles fazem cá um banzé, se eu chego tarde – disse ele.
– Mas não estás a fazer nada de mal – contrapôs ela, impaciente. E ele seguiu-a através das pastagens retouçadas, à luz do lusco-fusco. Havia uma frescura no bosque, um aroma a folhas e a madressilva, e o crepúsculo. Caminharam em silêncio. A noite desceu, maravilhosa, entre a imensidão de troncos negros. Ele olhou em volta, expectante.
Ela queria mostrar-lhe uma roseira-brava que tinha descoberto, pois achara-a lindíssima. Porém, sentia que só depois de ele a ter visto ela seria capaz de a assimilar. Só ele poderia fazer com que a roseira fosse dela para sempre, imortal. Por isso não estava satisfeita.
O orvalho já era visível pelos caminhos. Do velho bosque de carvalhos elevava-se uma névoa e ele hesitou, questionando-se se a mancha branca seria a linha de bruma ou apenas candelárias-dos-jardins, formando uma pálida nuvem.
Assim que chegaram aos pinheiros, Miriam começou a ficar muito tensa e ansiosa. O seu arbusto podia ter desaparecido. Poderia não o encontrar. E queria tanto descobri-lo. Desejava, quase com paixão, ter Paul perto de si quando descobrisse as flores. A comunhão seria mútua, algo que a iria emocionar, algo de divino. Ele caminhava a seu lado em silêncio. Estavam muito próximos um do outro. Ela estremeceu e ele escutou-a, levemente ansioso.
Assim que chegaram ao limite da floresta, o céu era de madrepérola e a terra escurecia. Algures nos recantos mais afastados do pinheiral a madressilva exalava o seu aroma.
– Onde? – perguntou ele.
– Lá em baixo, no trilho do meio – murmurou ela, tremendo.
Mal acabaram de contornar a curva do atalho, ela parou. Olhou por momentos assustada para o espaço que se abria entre os pinheiros, não conseguindo discernir o que quer que fosse, pois a luz empalidecida tinha apagado a cor das coisas. Mas, finalmente, descobriu o seu arbusto.
– Oh! – exclamou ela, precipitando-se para ele.
Tudo estava sereno. O arbusto era alto e esparso, espraiando as suas silvas sobre um espinheiro próximo, e deixando pender os ramos longos sobre a relva, salpicando a escuridão de grandes estrelas brancas, imaculadas. As rosas brilhavam como botões de marfim, estrelas abertas na escuridão da folhagem, dos troncos e da relva. Paul e Miriam em silêncio, lado a lado, observavam. Uma a uma, convictas, as rosas inundaram-nos de brilho, parecendo atear fogueiras nas suas almas. O crepúsculo envolveu-os como fumo, não conseguindo, todavia, extinguir o fulgor das rosas.
Paul olhou Miriam nos olhos. Estava pálida e deleitada; a boca entreaberta e os olhos negros fitavam-no, muito abertos. O olhar dele parecia descer ao fundo dela. A alma de Miriam estremeceu, pois ansiava a comunhão. Ele, porém, virou-se para o lado, como se sofresse, e olhou para o arbusto.
– Parecem voar como borboletas, agitando-se – disse Paul.
Miriam olhou para as suas rosas. Eram brancas, algumas encurvadas e divinas, outras expandiam-se como em êxtase. A árvore era negra como a sombra. Ela estendeu a mão impulsivamente para as flores e, aproximando-se, tocou-as em adoração.
– Vamos embora – disse ele.
Pairava um perfume fresco de rosas cor-de-marfim, um perfume branco, virginal. Algo o fez sentir-se ansioso e prisioneiro. Caminharam ambos em silêncio.
– Até domingo – disse ele baixinho, e deixou-a; ela regressou a casa lentamente, com a alma enriquecida pela noite divinal. Ele cambaleou pelo atalho. Assim que saiu da floresta e entrou no prado, onde podia respirar, desatou a correr o mais depressa que podia. Era como se um delírio delicioso lhe percorresse as veias.
Sempre que saía com Miriam e se atrasava, sabia que a mãe se afligia e ficava preocupada, apesar de ele não perceber porquê. Assim que chegou a casa, atirando com o boné, a mãe olhou para o relógio. Tinha estado sentada a pensar, pois uma inflamação ocular impedia-a de ler. Imaginara Paul a ser arrastado pela rapariga. Ela não gostava da rapariga. «É uma daquelas que suga a alma de um homem, até ele ficar vazio», dizia de si para si, «e ele é daqueles simplórios que se deixa dominar. Ela nunca o deixará ser um homem, nunca!» Assim, enquanto ele estava com Miriam, ela revoltava-se cada vez mais.
Olhou para o relógio e disse friamente, visivelmente cansada:
– Foste muito longe esta noite.
A alma dele, ainda quente e fragilizada do contacto com a rapariga, contraiu-se.
– Levaste-a certamente a casa – prosseguiu a sua mãe.
Ele não ia responder. Mrs. Morel, examinando o filho de relance, constatou que trazia o cabelo transpirado da correria e ele, em resposta, franziu a testa pronunciadamente como era seu costume, ressentido.
– Ela deve ser maravilhosamente fascinante, pois não te consegues afastar dela, e até és capaz de correr oito milhas a esta hora da noite.
Paul sofria, balançando entre o encantamento dos momentos passados com Miriam e a constatação da aflição de sua mãe. Tinha pensado não dizer nada, recusar-se a responder. Porém, o seu coração não era tão gélido que o levasse a ignorar a mãe.
– Eu gosto de conversar com ela – respondeu irritado.
– E não há mais ninguém com quem possas conversar?
– A mãe não ia dizer nada, se eu tivesse saído com o Edgar.
– Sabes bem que dizia. Sempre que sais com alguém de lá, acho que é muito longe para andares por aí à noite, depois de vires de Nottingham... Além disso... – de repente, a sua voz adquiriu um tom de revoltado desdém – é repugnante ver duas crianças a namoriscar.
– Não é namoro – gritou ele.
– Não sei que outra coisa se lhe poderá chamar.
– Mas não é! Pensa que nos pomos a fazer coisas? Nós apenas conversamos.
– Só Deus sabe até quando e até onde isso irá parar – replicou ela, sarcástica.
Furioso, Paul deu um esticão nos atacadores das botas.
– Porque está tão zangada? – perguntou ele. – Apenas porque não gosta dela?
– Não é que não goste. Mas não suporto e nunca suportei ver crianças a namorar.
– Mas a mãe não se importa que a nossa Annie saia com o Jim Inger.
– Esses são mais conscientes do que vocês.
– Porquê?
– A nossa Annie não é dessas.
Paul não entendeu o alcance do reparo. Mas a mãe parecia cansada. Nunca mais fora a mesma depois da morte de William. E doíam-lhe os olhos.
– Bem – disse ele –, o campo é tão bonito.... Mr. Sleath perguntou por si e disse que tinha tido saudades suas. ... Já se sente melhor, mãe?
– Já devia era estar na cama há muito tempo.
– Mas a mãe também nunca se ia deitar antes de um quarto para as dez.
– Isso é que ia!
– Ah, velhota... agora diz qualquer coisa só por estar zangada comigo, não é?
Depois, Paul beijou aquela testa que conhecia tão bem: as marcas profundas entre as sobrancelhas, a massa de cabelo, agora grisalho e a inclinação das têmporas. A sua mão demorou-se no ombro dela após tê-la beijado e, em seguida, Paul encaminhou-se lentamente para a cama. Tinha esquecido Miriam; apenas se lembrava do cabelo da mãe, puxado para trás, deixando a descoberto uma testa alta, afectuosa. E, fosse pelo que fosse, via que ela estava magoada.
Quando voltou a encontrar-se com Miriam, disse-lhe:
– Não me deixes chegar atrasado hoje... o mais tardar até às dez horas. A minha mãe fica muito aborrecida.
Miriam inclinou a cabeça e reflectiu.
– Fica aborrecida porquê? – perguntou.
– Acha que não devo ficar fora até tão tarde, quando tenho de me levantar cedo no dia seguinte.
– Muito bem! – disse Miriam, com voz calma, mas não isenta de um leve tom de sarcasmo. Isso ofendeu-o, e ele voltou a chegar tarde a casa.
Que o amor começava a desabrochar entre Paul e Miriam era algo que nenhum deles estava preparado para aceitar. Ele achava-se sensato de mais para tais sentimentalismos, e ela demasiado importante. Ainda não tinham atingido a maturidade e a sua pujança psíquica estava muito atrás da física. Miriam era excessivamente sensível, como a mãe sempre tinha sido. A mais leve grosseria angustiava-a. Os irmãos, embora muito rudes, evitavam a vulgaridade nos diálogos. Era fora de casa que os homens discutiam todos os assuntos relativos à quinta. Contudo, e devido talvez aos constantes nascimentos e cruzamentos, actos naturais em qualquer quinta, Miriam revelava uma extrema hipersensibilidade a tais situações, e o sangue revolvia-se-lhe de repugnância à mais vaga sugestão a tais contactos. Paul seguia-lhe as pisadas, e a relação entre eles mantinha-se castamente imaculada. Não se podia sequer mencionar que a égua estava prenha.
Aos dezanove anos, Paul ganhava apenas vinte xelins por semana, mas era feliz. A sua pintura evoluía a contento, e a vida corria-lhe bem. Na Sexta-Feira Santa, organizou um passeio a Hemlock Stone. O grupo era formado por três rapazes da sua idade, Annie, Arthur, Miriam e Geoffrey. Arthur, agora aprendiz de electricista em Nottingham, tinha vindo a casa passar a Páscoa. Como era habitual, Morel levantara-se cedo e estava no pátio a assobiar e a serrar umas tábuas. Às sete da manhã, a família ouviu-o comprar arrufadas quentes à porta, e conversar animadamente com a garota que as vendia, tratando-a até por «minha querida». Apareceram depois mais alguns rapazitos também a vender arrufadas, mas ele mandou-os embora, dizendo-lhes que tinham sido «batidos» pela «cachopinha». Quando Mrs. Morel se levantou, toda a família dispersou. Era uma sorte para todos eles quando a mãe ficava até mais tarde na cama num dia de semana. Paul e Arthur podiam ficar a ler à vontade antes do pequeno-almoço e depois tomar a refeição sem terem de se lavar primeiro e sentar-se à mesa em mangas de camisa. Este era outro dos luxos dos feriados. A sala estava aquecida e toda a casa se libertava de preocupações e ansiedades.
Enquanto os rapazes liam, Mrs. Morel foi para o jardim. Viviam agora numa nova casa, uma casa velha, também em Scargill Street, perto da que tinham ocupado anteriormente e de onde tinham saído logo após a morte de William. Um grito de excitação chegou directamente do jardim:
– Paul... Paul... Vem cá ver uma coisa!
Era a voz da mãe. Paul atirou o livro para o lado e saiu. O jardim era muito comprido e terminava num campo cultivado. Estava um dia cinzento e frio, batido por um vento agreste vindo das bandas do Derbyshire. Dois campos mais adiante começava Bestwood, um emaranhado de telhados e casas de tijolo vermelho, de onde sobressaía a torre da igreja e o pináculo da capela paroquial. Para trás, sucediam-se florestas e colinas até aos picos cinzentos e esbatidos da serra de Pennine.
Paul pôs-se à procura da mãe. A cabeça dela despontou entre as groselheiras ainda tenras.
– Vem cá! – disse ela.
– Para quê? – perguntou ele.
– Vem cá para veres uma coisa!
Ela tinha estado a examinar os pequenos botões das groselheiras. Paul foi ao seu encontro.
– E pensar que, aqui onde estão, podia nunca ter dado com eles! – disse Mrs. Morel.
O filho colocou-se ao seu lado. Por debaixo da cerca, num pequeno canteiro, havia um emaranhado de folhas finas, como se nascidas de bolbos ainda imaturos, com três campainhas em flor. Mrs. Morel apontou para as três florinhas muito azuis.
– Olha para elas! – exclamou. – Estava eu muito entretida a examinar as groselheiras, quando pensei cá com os meus botões, «Está ali qualquer coisa muito azul .... será o resto de algum saco de açúcar?» E olha só! Qual saco de açúcar! Três glórias-da-neve, e tão bonitas! Mas de onde é que teriam vindo?
– Não sei – disse Paul.
– São mesmo uma maravilha! E eu que pensava que conhecia todas as ervas e folhas neste jardim. E não é que estas se deram bem...? Repara que é a groselheira que as protege. Não são debicadas nem pisadas!
Paul baixou-se e levantou as corolas das pequenas flores azuis em forma de campainha.
– Têm uma cor magnífica!
– Têm, não têm? – exclamou a mãe. – Suponho que vêm da Suíça, onde dizem que há coisas maravilhosas. Imagina-as só em contraste com a neve! Mas como é que elas terão vindo aqui parar? O vento não as podia ter trazido, pois não?
Paul lembrou-se então de ter plantado ali uma porção de bolbos para amadurecerem.
– E não me disseste nada – disse a mãe.
– Pois não, estava a pensar deixá-las aqui só até terem medrado.
– Estás a ver?! E eu podia não as ter visto. Nunca em toda a minha vida tive uma glória-da-neve no jardim.
Mrs. Morel estava muito excitada e orgulhosa. O jardim era para ela uma fonte de infinito prazer. Paul dava graças por a mãe viver numa casa com um grande jardim que se estendia até ao campo. Todas as manhãs, após o pequeno-almoço, ela saía e deambulava feliz pelo jardim. E, na verdade, conhecia todas as ervas e folhas no seu jardim.
Todos compareceram para o tal passeio. Prepararam um farnel e o grupo partiu feliz e animado: debruçaram-se do alto do muro da azenha; atiraram papéis para dentro de água numa das extremidades do túnel e ficaram a vê-los sair pela outra; pararam no meio da passagem aérea para peões da estação de Boathouse, fascinados com o brilho gélido dos carris.
– Vocês deviam era ver o «foguete» que passa aqui às seis e meia – disse Leonard, cujo pai era guarda de uma passagem de nível. – Nem sequer o ouvem zunir, rapazes! – E o pequeno grupo seguiu com o olhar nos carris que conduziam a Londres e os que conduziam à Escócia, deixando-se inebriar por estes dois lugares mágicos.
Em Ilkeston, os mineiros aguardavam em grupos a abertura das tabernas. Era uma cidadezinha de ócio e divertimento. Em Stanton Gate, a oficina de fundição ardia incandescente. Eles iam conversando animadamente sobre tudo o que viam. Em Trowell, atravessaram a fronteira do Derbyshire para o Nottinghamshire, e chegaram a Hemlock Stone à hora de almoço. O campo povoava-se de pessoas vindas de Nottingham e Ilkeston.
Estavam à espera de encontrar um monumento digno e respeitável, mas descobriram apenas uma pedra, pequena e rugosa, semelhante a um cepo torcido, ou a um cogumelo putrefacto, despontando pateticamente no meio do descampado. Leonard e Dick gravaram logo as suas iniciais – L.W. e R.P. – na velha pedra de arenito vermelho, mas Paul não o fez, pois tinha lido no jornal críticas mordazes aos gravadores de iniciais, que não encontravam melhor caminho para a imortalidade. E, como não podia deixar de ser, todos treparam à pedra para contemplarem o panorama.
Em baixo, nos campos, rapazes e raparigas, todos eles operários e operárias, comiam ou brincavam. Mais além avistava-se o jardim de um velho solar, cercado de teixos, moitas frondosas e cercaduras de flores amarelas de açafrão.
– Olha que jardim tão tranquilo – disse Paul para Miriam.
Ela contemplou os teixos negros e os crocos amarelos e olhou para ele agradecida. Quando estavam acompanhados por outras pessoas, ele parecia não lhe pertencer; era diferente, não era aquele Paul que compreendia o mais leve estremecimento da sua alma misteriosa, mas uma outra pessoa, que falava uma linguagem diferente da sua. Ah, como isso a magoava e lhe enfraquecia a nitidez da percepção! Só se sentia reviver quando ele vinha ao seu encontro sem esse outro Eu de casta inferior. Mas agora ele tinha-lhe pedido para olhar o jardim, tentando desta forma chegar até ela. Sem paciência para aturar o grupo, Miriam entregou-se à contemplação daquele jardim tão calmo, rodeado de tufos de açafrão amarelo. Uma sensação de quietude, quase de êxtase, envolveu-a. Era como se estivesse sozinha com ele no jardim.
Mas ele abandonou-a novamente e foi juntar-se ao grupo. Em breve iniciaram o regresso a casa. Miriam deixou-se ficar para trás, sozinha. Não se enquadrava. Raramente se relacionava com alguém: na verdade, a sua grande amiga, companheira e amante era a natureza. Viu o sol declinar languidamente. Nas sebes frias e sombrias luziam algumas folhas vermelhas. Sem pressa, detinha-se para as colher com ternura, apaixonadamente. Os seus dedos acariciavam as folhas com amor e o coração incendiava-se-lhe de paixão.
De súbito, apercebeu-se de que estava sozinha numa estrada desconhecida e apressou-se. Depois de uma curva, encontrou Paul debruçado sobre qualquer coisa que ela não conseguia ver, mas que ele observava atentamente, aplicando-se com paciência, intento, e até algum desespero. Miriam hesitou em aproximar-se.
Ele continuava concentrado em plena estrada. Na tarde cinzenta, tão desprovida de cor, um fio dourado de sol, ao longe, parecia fazê-lo sobressair em sombrio baixo-relevo. Ela contemplou-o, delgado e firme, e era como se ele lhe tivesse sido oferecido pelo sol. Uma dor profunda penetrou-a e soube então que tinha de o amar. Tinha-o finalmente descoberto, descoberto nele uma rara potencialidade, descoberto a sua solidão. Tremeu emocionada, como se estivesse perante uma «Anunciação», e aproximou-se devagar.
Ele, finalmente, levantou os olhos.
– Oh! – exclamou, agradecido. – Esperaste por mim!
Ela descobriu uma sombra profunda nos seus olhos.
– O que aconteceu? – perguntou.
– A mola partiu-se.
E ele mostrou-lhe o seu chapéu-de-chuva danificado. Subitamente, um pouco envergonhada, ela apercebeu-se de que não fora ele quem estragara o chapéu-de-chuva, mas que o responsável era Geoffrey.
– Afinal era um chapéu-de-chuva velho, não era? – disse ela. Miriam não entendia a razão de tão exagerado zelo, pois ele não era geralmente de se prender com ninharias.
– Mas este era o chapéu-de-chuva do William... e a minha mãe vai ter de saber – disse ele baixinho, tentando pacientemente consertar o chapéu-de-chuva. Estas palavras rasgaram-na como uma lâmina. Eram a confirmação da imagem que tinha dele! Olhou-o. Havia nele, porém, uma certa reserva, e ela não se atreveu a confortá-lo, nem mesmo a falar-lhe com meiguice.
– Vamos – disse ele –, não consigo arranjá-lo.
E seguiram em silêncio estrada fora.
Iam eles nessa mesma tarde a passar em Nether Green, por entre o arvoredo, quando ele lhe confidenciou, num tom algo irritado, como se lutando para se autoconvencer.
– Sabes – disse com esforço –, se uma pessoa ama, a outra também ama.
– Ah! – exclamou ela. – A minha mãe disse-me o mesmo quando eu era pequena: «O amor gera o amor.»
– Sim... algo parecido com isso... penso que deve ser isso.
– Espero que sim... porque, se não fosse assim, o amor seria algo de terrível – acrescentou ela.
– Mas é isso que acontece... pelo menos com a maioria das pessoas – respondeu ele.
E Miriam pensando que ele estivesse mais animado, sentiu-se fortalecida. Tinha considerado aquele encontro fortuito na vereda como uma revelação. E este diálogo ficou gravado na sua mente como palavra de lei.
Agora, estava com ele e do lado dele. Quando, pela mesma altura, Paul ofendeu a família dela com um insulto arrogante, ela apoiou-o e achou que ele tinha razão.
Sonhava agora com ele de uma forma viva e inesquecível. Mais tarde, os sonhos voltaram, tendo evoluído para estados psicológicos mais subtis.
Na segunda-feira de Páscoa, o mesmo grupo fez uma excursão até ao solar de Wingfield. Foi um momento de grande excitação para Miriam ao apanhar o comboio em Lethey Bridge, por entre o alvoroço da multidão num dia feriado. Saíram do comboio em Alfreton. Paul estava interessado na rua e nos mineiros a passearem os seus cães. Aquela era uma nova raça de mineiros. Miriam não se sentiu viver senão quando chegaram à igreja. Todos se mostravam algo acanhados para entrarem na igreja com os sacos da merenda, pois tinham receio de serem expulsos. Leonard, um rapaz magro e brincalhão, foi o primeiro a entrar, e Paul, que teria preferido morrer a ser mandado embora, foi o último. A igreja estava enfeitada para a Páscoa: centenas de narcisos brancos pareciam desabrochar da pia baptismal, e a luminosidade era difusa e colorida, filtrada pelos vitrais e animada por um aroma subtil a lírios e narcisos. A alma de Miriam inflamou-se nesta atmosfera. Paul, sensível à envolvência do local, receava não saber comportar-se à altura. Miriam voltou-se para ele. Ele correspondeu. Estavam juntos. Paul não quis passar para lá da divisória da comunhão, e ela apreciou o seu gesto. A sua alma elevou-se em orações ao lado dele. Paul sentia um estranho fascínio por lugares religiosos e obscuros. Todo o seu misticismo latente palpitava de vida. Ela sentia-se atraída por ele. Ele estava nela, como uma oração.
No adro da igreja, os narcisos e os junquilhos já tinham desabrochado e brilhavam ao sol como se flutuassem. As ovelhas, no parque, faziam vibrar o ar com os seus múltiplos e ténues balidos. Leonard e Dick entraram numa taberna para tomar uma bebida, para grande tristeza de Paul e Annie.
– Para que entraram na taberna? – perguntou Paul aborrecido.
– Bem – disse Dick, sorrindo –, só lá fomos beber uma limonada.
– Podiam muito bem ter ido à venda – disse Annie.
– À venda! – exclamou Leonard. – Estão a imaginar-nos... nós... ingleses de gema, a beber limonada na venda?
– Não – respondeu Paul. – Mas imagino-te com a tua enorme caneca de cerveja... inglesa de gema.
– E que mal te faz a minha caneca? – disse Leonard, limpando a boca, por sinal enorme.
Miriam só raramente falava com os outros rapazes. Tinham sido malcriados com ela uma vez e, desde essa altura, mantinha-se geralmente calada.
Passava do meio-dia quando subiram a ladeira íngreme que conduzia ao solar. Tudo em redor brilhava com suavidade, à luz de um sol quente, intenso e estimulante. As celidónias e as violetas estavam em flor. A natureza transbordava de felicidade. Tudo era perfeito: o esplendor da hera, os tons suaves e cinzentos, atmosféricos, dos muros do castelo, a harmonia que rodeava as ruínas.
O solar era de pedra dura cinzento-pálido, e as paredes exteriores brancas e repousantes. Os jovens estavam extasiados. Sentiam-se excitados, quase receosos de que o prazer da exploração destas ruínas lhes fosse negado. No primeiro pátio, situado entre muros altos e derrubados, havia algumas carroças com os varais abandonados pelo chão, e os aros das rodas cintilavam em tons vermelho-dourado de ferrugem. A serenidade era total.
Todos se mostravam desejosos de pagarem os seis dinheiros da entrada, posto o que transpuseram a medo pelo arco harmonioso e bem lançado que dava acesso ao pátio interior. Mostravam-se tímidos. No local onde antes se erguera o muro, florescia agora um velho espinheiro. Todas as espécies de espaços abertos e salas em ruínas se abriam à sua volta, na penumbra.
– Digam lá se isto não é uma maravilha? – exclamou Leonard.
– É mesmo – acrescentou Paul.
E passaram de imediato à exploração.
– Eh, malta – chamou Leonard. – Venham ver o forno que eu descobri!
E, sem perder tempo, Leonard entrou pelo buraco. Dick e Paul entraram atrás dele e sentaram-se os três no chão a gritar, como se estivessem nas entranhas da terra.
– Aqui dava bem para assar um boi, ou até dois – disse Nick.
– E um veado ou dois – acrescentou Paul.
– E um burro ou dois – rematou Leonard, pondo-se a zurrar muito alto, enquanto os outros dois lhe batiam.
Paul voltou a sair para o ar livre e a exploração continuou. Finalmente, encontraram Geoffrey e as raparigas. Geoffrey estava a comer.
– Parece que tá na hora de dar ao dente – disse Leonard.
– Eu já m’adiantei – respondeu Geoffrey, que não fizera outra coisa desde que o grupo partira.
– Onde é que nos podemos sentar? – perguntou Miriam.
– Vamos para a sala dos banquetes – alvitrou Paul.
– Como é que sabes que aquela é a sala dos banquetes? – perguntou Leonard.
– Vi numa pintura.
– Pois então, toca a sentar – disse Leonard.
No enorme salão em ruínas, com as paredes frias erguidas para o céu azul, lá se sentaram todos a comer ao sol, observando os pássaros que chilreavam pousados no florão da ampla janela.
– Então, D. Cogumelo – disse Leonard, virando-se para Paul –, sois servido desta empada de veado?
– Mil agradecimentos, D. Trinca-Espinhas – respondeu Paul. – Comerei antes esta coxinha de pão com queijo.
– Por obséquio – disse Geoffrey –, podeis apertar-vos mais, pra eu me poder sentar?
– Perdoai, Insigne Cavaleiro – respondeu Leonard. – Mas será tão grande assim vossa gordura?
– Paul – disse Annie –, tens aqui o teu ovo cozido.
– Ilustres cortesãos, deleitamo-nos hoje com um festim de ovos de aves fabulosas, postos pela nossa única fénix, e ostentando todos eles o nosso brasão, tal como neles foi gravado pelas nossas aves mais colaborantes – disse Paul.
– Ou seja... um montinho de porcaria – disse Leonard.
– E direi mais... Um brasão que é o nosso orgulho desde há muitas gerações, ámen! – disse Annie.
– Oh, sublime insígnia! – rematou Paul, fazendo Miriam desatar a rir.
Depois do almoço partiram mais uma vez à exploração das ruínas. Desta feita, as raparigas acompanharam os rapazes, que assumiram o papel de guias e professores. Uma torre alta e deveras periclitante surgiu diante dos seus olhos ao virarem uma esquina, e os rapazes logo informaram que Mary, rainha da Escócia, tinha sido ali encarcerada.
– Imaginem a rainha a subir por aqui acima... – disse Miriam em voz baixa, enquanto subia as escadas tortuosas.
– Isso, se ela se conseguisse levantar – respondeu Paul. – Sofria muito do reumatismo. Aposto que a tratavam o pior possível.
– E não achas que merecia? – perguntou Miriam.
– Acho que não. Ela era apenas uma pessoa jovial.
Continuaram a subir a escada de caracol. Uma rajada agreste entrou pelas seteiras e rodopiou pelo vão das escadas, levantando a saia de Miriam em balão, para seu grande embaraço, até que Paul agarrou na barra do vestido e o puxou para baixo. Fê-lo com destreza e simplicidade, como se lhe apanhasse uma luva do chão. Ela recordaria para sempre este momento.
A hera pendia frondosa, vetusta e bela, em torno do torreão em ruínas. Havia também algumas cravinas esparsas, com os seus botões tristes e pálidos. Miriam quis debruçar-se para apanhar um raminho de hera, mas Paul não deixou, ficando ela atrás dele, a receber um a um cada raminho que ele lhe entregava, num gesto do mais genuíno cavalheirismo. A torre parecia ondular ao vento. Do alto avistavam-se milhas e milhas de terreno arborizado e terreno de pastagens.
A cripta subjacente ao solar era muito bela e em perfeito estado de conservação. Paul não perdeu a oportunidade de a desenhar. Miriam ficou junto dele, a pensar em Mary, rainha da Escócia, fitando os montes de onde não vinha qualquer ajuda, com os seus olhos exaustos e desesperados, que não compreendiam a miséria; imaginou-a também sentada naquela cripta, escutando a história de um Deus tão frio quanto o lugar onde se encontrava.
Puseram-se de novo a caminho, exultantes, lançando um último olhar àquele solar a que se sentiam presos e que se erguia tão nítido e imponente no alto da colina.
– Imagina que aquela quinta era tua – disse Paul a Miriam.
– Sim!!
– Não era maravilhoso eu ir lá visitar-te?
Encontravam-se agora num descampado com muros de pedra, de que ele tanto gostava, e que, embora só a algumas milhas de casa, parecia tão estranho a Miriam. O grupo seguia agora disperso. Ao atravessarem um extenso prado, muito íngreme, com o sol por trás, descendo por um caminho salpicado de incontáveis pontinhos cintilantes, Paul entrelaçou os dedos no saco de rede de Miriam, que logo sentiu Annie atrás de si, atenta e ciumenta. Mas o prado estava banhado numa luz gloriosa e o caminho luzia como uma jóia, e era tão raro ele dar-lhe algum sinal... Conservou por isso os dedos muito quietos entre as cordas do saco, aflorando os dedos dele. E o mundo dourou-se inteiro, como se numa visão.
Finalmente, chegaram à vilazinha isolada e pardacenta de Crich, situada a grande altura. Atrás da vila ficava o famoso Crich Stand, que Paul avistava do jardim de sua casa. O grupo estugou o passo. Grandes extensões de terrenos estendiam-se em baixo a toda a volta. Os rapazes estavam ansiosos por chegarem ao topo da colina, que era encimada por um cabeço redondo, de que metade já se tinha desmoronado, e no topo do qual se erguia um monumento antigo, grotesco e atarracado, usado noutros tempos para enviar sinais para as planícies do Nottinghamshire e do Leicestershire.
O vento soprava forte, lá no alto, naquele local tão exposto, e a única forma de se estar protegido era ser pregado pelo vento à parede da torre. Aos seus pés abria-se o precipício, de onde se extraía a pedra calcária. Em baixo, reinava uma confusão de colinas e pequenos povoados: Matlock, Ambergate, Stoney Middleton. Os rapazes estavam ansiosos por descortinarem a Igreja de Bestwood, que ficava muito distante, no meio da floresta, um pouco para a esquerda. Mas ficaram tristes ao verem que a igreja parecia erguer-se numa planície – as colinas do Derbyshire apagavam-se na monotonia das terras baixas que se estendiam para sul.
Miriam estava um pouco assustada com o vento, mas os rapazes estavam a gostar. Continuaram a caminhada, calcorreando milhas e milhas, até Whatstandwell. Todos estavam esfomeados, pois já tinham devorado a comida toda que levavam e já lhes restava pouco dinheiro para regressarem a casa. No entanto, ainda conseguiram arranjar uma broa e um pão de passas, que cortaram em fatias finas com os canivetes, sentando-se a comer num muro, perto da ponte onde o rio Derwent corria límpido, ao som do chiar dos freios do comboio em Matlock, perto da estalagem.
Paul estava pálido de cansaço. Tinha sido o chefe do grupo durante todo o dia, e agora estava morto de cansaço. Miriam, apercebendo-se disso, manteve-se junto dele, e Paul entregou-se à sua guarda.
Tiveram de esperar uma hora na estação de Ambergate. Os comboios passavam lotados com excursionistas que regressavam a Manchester, Birmingham e Londres.
– Também podíamos ir para lá... as pessoas facilmente pensariam que íamos para muito longe – disse Paul.
Chegaram a casa bastante tarde. No caminho de regresso a casa, com Geoffrey, Miriam viu a lua nascer redonda, rubra e velada, e sentiu-se realizada interiormente.
Miriam tinha uma irmã mais velha, Agatha, que era professora. A hostilidade entre as duas irmãs era notória. Miriam considerava Agatha uma pessoa demasiado mundana e o seu sonho era ser também professora primária.
Um sábado à tarde, Agatha e Miriam estavam a vestir-se no primeiro andar. O quarto delas ficava por cima do estábulo. Era um quarto de tectos baixos, não muito grande e de paredes nuas. Miriam tinha pregado na parede uma reprodução da Santa Catarina, de Veronese. Fascinava-a aquela mulher, sentada na janela a sonhar. As suas janelas eram demasiado pequenas para lá se poder sentar. Todavia, a da frente estava coberta de madressilva e hera americana, e de lá avistavam-se as copas do bosque de carvalhos, por detrás do quintal, enquanto a minúscula janela traseira, pouco maior do que um lenço, não passava de uma fresta voltada para oriente, para a aurora que se acendia atrás das colinas arredondadas que ela tanto amava.
As duas irmãs não falavam muito uma com a outra. Agatha, bonita, baixa e determinada, tinha-se revoltado contra a atmosfera do lar e contra a doutrina do «dar a outra face». Enfrentava agora o mundo exterior, lutando para se tornar independente. Insistia nos valores da cultura, nas aparências, nas boas maneiras, na posição social, tudo coisas que Miriam de bom grado teria ignorado.
Quando Paul chegou, ambas preferiram ficar invisíveis lá em cima, para poderem descer as escadas a correr, abrirem a portinhola do fundo das escadas e verem-no entrar, ansioso por encontrá-las. Miriam tentava desesperadamente enfiar pela cabeça o rosário que ele lhe tinha oferecido, e que ficara preso no fino emaranhado dos seus cabelos. Finalmente, conseguiu colocá-lo, e as contas de madeira, castanho-avermelhado, assentavam lindamente no seu pescoço fresco e mate. Era uma rapariga bem lançada e muito bonita. Contudo, só conseguia ver uma parcela do seu corpo de cada vez no pequeno espelho pregado na parede caiada de branco. Agatha tinha comprado um espelho só para ela, com o tamanho certo, que encostava à parede sempre que precisava. Miriam estava perto da janela. De repente, escutou o estalido bem conhecido do cadeado e viu Paul a abrir a cancela com um pontapé, entrando no pátio com a bicicleta. Ele olhou para cima e ela escondeu-se. Paul avançava com indiferença, e a bicicleta acompanhava-o como se fosse um objecto animado.
– O Paul já chegou! – exclamou Miriam.
– Não estás contente? – disse Agatha, evidenciando sarcasmo.
Miriam estava ainda surpresa e perplexa.
– Então, estás ou não estás? – insistiu a outra.
– Estou, mas não quero que ele perceba e pense que eu estava à espera.
Miriam estava perplexa. Ouviu-o meter a bicicleta no estábulo e falar com Jimmy, um cavalo decrépito que tinha trabalhado nas minas.
– Atão, Jimmy, meu amigo, como vai isso? Velho e cansado, hem? Pois é, é uma pena, amigo!
Escutou o som da corda a roçar na argola, quando o cavalo levantou a cabeça às carícias do rapaz. Como ela gostava de o ouvir quando ele pensava que o cavalo estava ali para o escutar. Porém, havia uma serpente no seu Éden. Ela procurava fervorosamente descobrir dentro si se amava Paul Morel. Sentia que poderia haver algo de errado nesse impulso. Enredada em sentimentos confusos, receava desejá-lo e condenava-se por isso. E logo a penetrou uma dor intensa, de vergonha, e todo o seu ser se contraiu num espasmo de tortura. Desejaria ela Paul Morel, e saberia ele que ela o desejava? Que subtil infâmia a ameaçava! E sentiu a alma enleada em nós de vergonha.
Agatha vestiu-se primeiro e desceu rapidamente para o rés-do--chão. Miriam ouviu-a cumprimentar o rapaz num tom jovial; conhecia bem o brilho dos olhos da irmã quando saudava alguém naquele tom. Ela própria se teria sentido corajosa por tê-lo cumprimentado daquela forma. Contudo, sentia dentro da alma a auto-flagelação de o desejar, aliada a um sentimento de tortura. Em perplexa amargura, ajoelhou-se e rezou:
– Senhor, não permitas que eu ame o Paul Morel. Afasta de mim esse sentimento, se achares que eu não devo amá-lo.
Algo de estranho a fez interromper a oração. Levantou a cabeça e reflectiu. Como é que amá-lo poderia ser errado? O amor era uma dádiva de Deus e, no entanto, causava-lhe vergonha. Era por ele, por Paul Morel, que a sentia. Mas esse não era assunto que lhe dissesse respeito, era só entre ela e Deus. Tinha de fazer o sacrifício, um sacrifício por Deus e não por Paul Morel ou por si mesma. Passados alguns minutos, escondeu a cara na almofada e disse:
– Meu Deus, se é Tua vontade que eu o ame, então submeto-me, como Cristo se submeteu e morreu pelas almas dos pecadores. Faz com que eu o ame fervorosamente, pois ele é Teu filho.
Permaneceu de joelhos por mais alguns instantes, serena, mas profundamente emocionada, com o cabelo negro espalhado sobre os quadrados da colcha de retalhos, vermelhos uns, outros com raminhos de alfazema. Rezar era algo de quase essencial para ela. Depois, caía naquele arrebatamento de auto-sacrifício, identificando-se com um Deus que fora sacrificado, acto que representa para tantas almas humanas a sua bênção mais sublime.
Quando Miriam desceu, Paul estava recostado no cadeirão, em acesa discussão com Agatha, que ridicularizava uma pequena pintura que ele tinha trazido para lhe mostrar. Miriam olhou-os e fugiu à sua frivolidade, indo para a sala de estar para ficar sozinha.
A hora do chá chegou sem que ela tivesse tido possibilidade de falar com Paul; mostrava-se tão distante que ele pensava tê-la ofendido.
Miriam quebrou a rotina de ir todas as terças-feiras à tardinha à biblioteca de Bestwood. Depois de se ter encontrado regularmente com Paul durante toda a Primavera, um número de incidentes insignificantes e pequenos reparos vindos da família levaram-na a aperceber-se das suas atitudes, e decidiu pôr fim às saídas. Assim, numa bela tarde, informou Paul de que não poderia voltar a ir ter a casa dele às terças-feiras à tarde.
– Porquê? – perguntou ele, com brusquidão.
– Por nada. Porque acho melhor assim.
– Muito bem.
– Mas... – gaguejou ela – ... se quiseres estar comigo, podemos ir juntos.
– E encontramo-nos onde?
– Algures... onde tu quiseres.
– Não te quero encontrar em lado nenhum. Não compreendo porque é que não podes continuar a vir buscar-me. Mas se não vieres, não quero encontrar-me contigo.
Assim, as terças-feiras à tarde, esses dias que tinham sido tão especiais para ela e para ele, terminaram. E Paul passou a ocupar esse tempo a trabalhar. Mrs. Morel viu com bons olhos esta decisão.
Paul não aceitava que fossem namorados. A intimidade entre eles tinha sido mantida ao nível do abstracto, era um assunto da alma; visto não passar de um conceito e de uma luta exaustiva ao nível da consciência, ele via nela apenas uma amizade platónica e negava peremptoriamente a existência de algo mais. Miriam permanecia em silêncio, ou então concordava sem discutir. E ele sentia-se um idiota, pois não entendia o que se passava no seu íntimo. Através de um acordo tácito, ignoravam os reparos e as insinuações das pessoas conhecidas.
– Não somos namorados, mas apenas amigos – disse-lhe ele. – Nós sabemos que é assim. Deixa-os falar. Não importa o que dizem.
Por vezes, quando caminhavam juntos, ela metia o braço timidamente no dele. Mas ele retraía-se sempre, e ela sabia-o, o que dava lugar a um conflito violento. Com Miriam, Paul sentia-se sempre no mais alto nível de abstracção, e a sua chama de amor natural transformava-se em energia mental. E ela aceitava-o assim. Se ele estivesse bem-disposto e, como ela dizia, brincalhão, ela aguardava que ele voltasse ao normal, que ele se transformasse, e o visse a lutar de novo consigo mesmo, empolgado, apaixonado, tentando compreender a situação. Nesta paixão pela compreensão, as suas almas tocavam-se e ele era totalmente dela. Todavia, tinha de se abstrair primeiro.
Assim, ela dar-lhe o braço era para ele quase uma tortura. A sua consciência parecia desintegrar-se. A parte do corpo onde ela lhe tocava ardia com a fricção. Era uma batalha mortal para ambos e por isso ele a tratava com crueldade.
Uma tardinha, nos meados do Verão, Miriam foi chamá-lo a casa, chegando transpirada devido à subida. Paul estava sozinho na cozinha e ouviam-se os passos da mãe no primeiro andar.
– Vem, vou mostrar-te as ervilhas-de-cheiro – disse ele.
Foram até ao jardim. O céu, por detrás da cidade e da igreja, era vermelho-alaranjado, e o jardim inundava-se de uma luminosidade estranha e quente que dava sentido a cada folha. Paul avançou pelo estreito carreiro ladeado de ervilhas-de-cheiro, colhendo flores creme e azul-pálido por aqui e por ali. Miriam seguia-o, aspirando as fragrâncias. As flores atraíam-na com tal intensidade que ela sentia necessidade de as tornar uma parte de si mesma. Quando se baixava e cheirava uma flor, era como se ambas se amassem uma à outra. Paul detestava vê-la fazer isso. Ela expunha-se demasiado naquela sua atitude, até mesmo intimamente.
Assim que o ramo ficou de bom tamanho, regressaram a casa. Ele escutou por momentos os passos calmos da mãe no andar de cima e, depois, disse:
– Vem cá, deixa-me enfeitar-te com elas.
E espetou duas ou três de cada vez à volta do decote do vestido, recuando em seguida para admirar o efeito.
– Sabes – disse ele, tirando o alfinete da boca – a mulher devia colocar sempre as flores em frente ao espelho.
Miriam sorriu. Para ela, as flores deviam ser colocadas no vestido sem qualquer preocupação. Se Paul se queria dar ao trabalho de lhe espetar as flores no vestido com rigor, isso era lá com ele.
Paul ficou muito ofendido com a gargalhada que ela deu.
– Algumas mulheres fazem-no.... as que são como devem ser – disse ele.
Miriam sorriu novamente, mas desta vez melancólica, por ele a ter misturado com as mulheres em geral. Teria ignorado a afronta, se tivesse partido de outro homem qualquer. Mas, vinda dele, magoava-a.
Estava ele a terminar o arranjo de flores quando ouviu os passos da mãe nas escadas. Espetou o último alfinete à pressa e afastou-se.
– Não deixes que a minha mãe perceba – disse ele.
Miriam pegou nos livros e ficou à entrada da porta, olhando desapontada para o belíssimo pôr do Sol. Não tornaria a vir a casa de Paul, disse ela.
– Boa tarde, Mrs. Morel – cumprimentou-a Miriam, respeitosamente. As suas palavras soaram como se ela não tivesse o direito de estar ali.
– Ah, és tu, Miriam! – respondeu Mrs. Morel friamente.
Paul insistia em que todos aceitassem a sua amizade com a rapariga, e Mrs. Morel era demasiado esperta para demonstrar abertamente qualquer relutância.
Só quando ele fez vinte anos é que a sua família teve possibilidades económicas para ir de férias. Desde que casara, Mrs. Morel nunca tinha ido de férias, excepto para visitar a irmã. Finalmente, Paul tinha conseguido juntar dinheiro suficiente para levar a família de férias. O grupo era o seguinte: alguns amigos de Annie, um amigo de Paul, um rapaz do escritório onde Paul tinha estado anteriormente e Miriam.
A reserva dos quartos provocou grande alarido. Paul e a mãe debateram várias vezes o assunto. Queriam uma casinha rústica mobilada para duas semanas. Ela achava que uma semana seria suficiente, mas ele insistia em duas. Paul saiu logo de manhã, antes de o correio chegar. Assim, quando voltou, as primeiras palavras da mãe foram:
– Paul, sabes uma coisa... aquela espertalhona de Skegness quer só quatro guinéus por semana por aquele seu barraco miserável.
– Então, vai ter muito de esperar – disse Paul.
– Também acho – respondeu a sua mãe, indignada. Nessa mesma noite, Paul escreveu outra carta. Receberam finalmente resposta de Mablethorpe – uma casinha que preenchia os seus desejos, por trinta xelins por semana. Houve uma explosão de alegria. Paul estava radiante pela mãe. Agora sim, ela ia ter umas verdadeiras férias. À noite, ficavam sentados a imaginar como seriam. Entretanto, chegaram Annie, Leonard, Alice e Kitty. Havia grande alegria e expectativa. Paul contou a Miriam. Ela pareceu feliz, mas comedida. Porém, o lar dos Morels vibrava de excitação.
CONTINUA
A cozinha era muito pequena e esquinada. A quinta tinha sido inicialmente o casebre de um jornaleiro, e a mobília estava velha e gasta. Mas Paul gostava da casa; gostava da serapilheira que substituía o tapete da chaminé e daquele vão patusco por baixo das escadas, e do postigo que se abria ao fundo e através do qual, se se curvasse, podia ver as ameixoeiras do jardim das traseiras e os graciosos cabeços arredondados que se recortavam à distância.
– Não te queres deitar? – disse Mrs. Leivers.
– Oh, não... não estou cansado – respondeu Paul. – É maravilhoso andar lá por fora, não é? Vi um abrunheiro em flor e muitas celidónias. Estou tão feliz por estar sol.
– Queres comer ou beber alguma coisa?
– Não, obrigada.
– Como está a tua mãe?
– Penso que se sente cansada... tem andado muito ocupada. Talvez vá em breve para Skegness comigo. Assim, terá oportunidade de descansar. Quem me dera que isso aconteça.
– Sim – respondeu Mrs. Leivers. – É um milagre que ela não esteja doente.
Miriam andava de um lado para o outro a preparar o jantar. Paul observava tudo o que se passava. As suas faces estavam pálidas e magras, mas os olhos continuavam, como sempre, rápidos e vivos. Ia observando os movimentos estranhos, quase rapsódicos, da rapariga, levando um tacho de guisado para o forno ou vigiando a panela. A atmosfera de sua casa era diferente, lá tudo parecia vulgar. Quando lá fora Mr. Leivers gritou com o cavalo, que se preparava para comer as roseiras no jardim, a rapariga assustou-se e olhou em volta com os seus olhos muito negros, como se algo tivesse vindo perturbar o seu mundo. Sentia-se o silêncio dentro e fora de casa. Miriam parecia estar a viver um conto de fadas, onde era uma donzela cativa e o seu espírito vagueava por uma terra distante e mágica. E a sua túnica azul, velha e desbotada, e as botas já muito gastas, pareciam os andrajos românticos da mendiga do Rei Cophetua.
Subitamente, sentiu os olhos dele, azuis e penetrantes, devorá-la. No mesmo instante as suas botas gastas e o seu velho vestido puído magoaram-na. Lamentava profundamente que ele estivesse a ver tudo. Pois se ele até sabia que a meia dela não estava completamente esticada. Dirigiu-se para a copa com as faces ruborizadas. Mais tarde, as mãos tremiam-lhe levemente durante as tarefas domésticas, quase deixando cair tudo aquilo em que pegava. Quando o seu sonho interior era abalado, o seu corpo estremecia com a trepidação. Lamentava profundamente que ele visse tanta coisa.
Mrs. Leivers sentou-se e conversou durante algum tempo com o rapaz, embora tivesse o trabalho à espera. Era todavia demasiado educada para o deixar sozinho. A certa altura, pediu licença e levantou-se. Daí a pouco olhou para a panela:
– Miriam, querida! – chamou. – As batatas estão sem água!
Miriam respondeu como se algum bicho lhe tivesse mordido.
– E depois, mãe? – exclamou ela.
– Não seria grave se eu não tas tivesse confiado – disse a mãe. – E espreitou para dentro da panela.
A rapariga pôs-se hirta como se tivesse levado um soco. Os seus olhos negros dilataram-se e ficou estática, no mesmo lugar.
– Tenho a certeza de que ainda há cinco minutos as vi – respondeu, crispada, sentindo-se culpada.
– Eu entendo – disse a mãe. – São coisas que acontecem.
– Não estão muito queimadas – disse Paul. – Não tem importância, pois não?
Mrs. Leivers olhou para o jovem com os seus olhos castanhos, magoados.
– Não teria importância, se não fosse pelos rapazes – disse ela. – Só Miriam sabe o barulho que eles fazem quando as batatas se pegam.
«Nesse caso», pensou Paul com os seus botões, «não deviam deixá-los fazer tanto barulho.»
Daí a nada, entrou Edgar. Vinha de perneiras e trazia as botas cobertas de terra. Era bastante baixo e muito formal para lavrador. Olhou de relance para Paul, cumprimentou-o de longe e perguntou:
– O comer está pronto?
– Está quase, Edgar – respondeu a mãe desculpando-se.
– Pois eu já estou pronto – disse o jovem, pegando no jornal e começando a ler. Entretanto, chegaram os restantes membros da família. O almoço foi para a mesa. A refeição decorreu com grande informalidade. A excessiva delicadeza e tom apologético da mãe realçavam mais o comportamento indelicado dos filhos. Edgar provou as batatas, mexeu a boca rapidamente como um coelho, olhou indignado para a mãe e disse:
– Estas batatas estão esturradas, mãe!
– Pois estão, Edgar... distraí-me por um minuto. Mas talvez possas comer pão, se não as conseguires comer.
Edgar olhou com raiva para Miriam.
– O que estava a Miriam a fazer, para não poder tomar conta delas? – disse ele.
Miriam levantou os olhos. A boca entreabriu-se-lhe, os seus olhos brilharam intensos, pestanejantes, mas permaneceu calada. Engoliu a raiva e a vergonha, e baixou a cabeça.
– Tenho a certeza de que não foi por mal – disse a mãe.
– Nem umas batatas sabe cozer – disse Edgar. – Pra que serv’ela aqui em casa?
– Pra ir prà despensa comer tudo o que sobra – disse Maurice.
– Eles não se esquecem daquela tarte de batata que a nossa Miriam comeu – disse o pai, a sorrir. Miriam sentia-se completamente humilhada. A mãe ficou calada, a sofrer como uma mártir, sentindo-se a mais nesta refeição atribulada.
Paul estava perplexo com tudo o que via. Não conseguia perceber a razão de tão violenta reacção só porque umas batatas se tinham queimado. A mãe dava a tudo, mesmo à mais insignificante tarefa doméstica, a importância de um dever religioso. Os filhos ressentiam-se com isso e, vendo cerceadas as suas liberdades, respondiam-lhe com brutalidade e também com irónica arrogância.
Paul estava a passar da infância à idade adulta. Esta atmosfera, onde tudo adquiria um valor religioso, tinha a seus olhos um fascínio subtil. Pairava no ar algo de indefinível. A sua própria mãe era lógica. Mas aqui havia algo de diferente, algo que ele amava, algo que por vezes detestava.
Miriam discutiu com os irmãos aguerridamente. Mais tarde, depois do almoço, quando todos já se tinham ido embora, a mãe disse:
– Desapontaste-me muito à hora do almoço, Miriam.
A rapariga baixou a cabeça.
– Eles são uns brutos! – exclamou subitamente, com os olhos flamejantes.
– Mas tu tinhas prometido que não respondias, não tinhas? – disse a mãe. – E eu acreditei em ti! Não suporto ver-te discutir.
– Mas eles são tão irritantes! – exclamou Miriam. – E... e malcriados.
– Sim, minha querida. Mas quantas vezes já te disse para não responderes ao Edgar? Será que não podes deixá-lo dizer o que lhe apetece?
– Mas porque há-de ele dizer o que lhe apetece?
– Miriam, será que não és suficientemente forte para o suportares, mesmo que o faças só por mim? Serás tão fraca que tenhas de discutir sempre com eles?
Mrs. Leivers pregava inflexivelmente a doutrina do «dar a outra face», mas não conseguia ensiná-la aos filhos. Era contudo bem-sucedida com as filhas, e Miriam era a sua filha dilecta. Os rapazes ficavam furiosos quando elas lhe davam a outra face, e Miriam era muitas vezes suficientemente orgulhosa para o fazer. Eles então cuspiam-lhe e detestavam-na. E ela refugiava-se na sua orgulhosa humildade, fechando-se em si mesma. Havia sempre este sentimento de conflito e de discórdia no seio da família Leivers. Embora os rapazes rejeitassem amargamente o eterno apelo aos seus sentimentos mais profundos de resignação e emproada humildade, acabavam por ceder. Não conseguiam imaginar apenas um sentimento humano comesinho ou uma simples amizade com um estranho: estavam sempre ansiosos por algo de mais profundo. O comum mortal era para eles superficial, trivial e insignificante. E, assim, por falta de hábito, eram dolorosamente rudes nos mais simples contactos sociais e, embora sofressem com isso, continuavam a arvorar uma insolente superioridade. Todavia, bem no fundo, ansiavam pela intimidade que não podiam lograr, pois eram demasiado reservados e qualquer tentativa de aproximação era imediatamente bloqueada pelo rude desprezo que nutriam pelos outros. Buscavam uma intimidade genuína, mas não se conseguiam aproximar normalmente das outras pessoas, pois recusavam-se a dar o primeiro passo e desprezavam a trivialidade que envolve a generalidade das relações humanas.
Paul deixou-se arrastar pelo sortilégio de Mrs. Leivers. Tudo adquiria um significado religioso e profundo quando ele estava com ela. A alma ferida dele, altamente evoluída, procurava-a em busca de alimento. Juntos pareciam filtrar de cada experiência a sua verdade vital.
Miriam era bem a filha de sua mãe. De tarde, ainda o sol brilhava, mãe e filha foram com ele passear pelos campos. Iam em busca de ninhos e encontraram um de carriça na cerca do pomar.
– Quero que vejas uma coisa – disse Mrs. Leivers.
Ele baixou-se e meteu o dedo cautelosamente por entre os espinhos, penetrando no orifício redondo da entrada do ninho.
– É quase como se metêssemos o dedo dentro do corpo de um pássaro – disse ele. – É tão quente. Dizem que o pássaro faz o ninho redondo como uma chávena, calcando-o com o peito. Sempre gostava de saber como é que ele fez o tecto redondo. – Para as duas mulheres, o ninho era o começo da vida. Depois desse dia, Miriam vinha visitá-lo todos os dias. Sentia-o tão próximo de si. Descendo novamente rente à cerca com a rapariga, Paul reparou nas celidónias, sobressaindo como salpicos de ouro na beira do valado.
– Gosto delas quando as pétalas se abrem completamente à luz do sol – disse ele. – Parecem comprimir-se contra o sol. – E foi quanto bastou para as celidónias passarem a exercer sobre ela um certo fascínio. Antropomórfica como era, incentivava-o a apreciar as coisas desta forma, e elas depois ganhavam vida para ela. Parecia necessitar que as coisas brilhassem na imaginação ou na alma dele primeiro, antes de sentir que as possuía. Sempre se vira privada de uma vida normal pelo seu próprio fervor religioso, que fazia o mundo parecer-lhe um jardim de convento ou um paraíso, onde o pecado e o conhecimento ou não existiam ou eram, pelo contrário, algo de cruel e feio.
Foi assim, nesta atmosfera de subtil intimidade, neste encontro de sentimentos comuns pelas coisas da natureza, que o amor nasceu.
Mas só passado muito tempo, Paul se deu verdadeiramente conta da existência de Miriam. Após a doença teve de permanecer em casa durante dez meses. Foi passar algum tempo a Skegness com a mãe e sentia-se verdadeiramente feliz. Mas até da praia ele escrevia longas cartas a Mrs. Leivers falando-lhe da praia e do mar. E trouxe consigo os seus queridos esboços da costa plana de Lincoln, ansioso por lhos mostrar. Iam com certeza interessar mais aos Leivers do que tinham interessado à sua própria mãe. Não era a sua arte que preocupava Mrs. Morel, mas sim ele próprio e o seu futuro. Porém, Mrs. Leivers e os filhos eram quase seus discípulos. Davam-lhe inspiração e faziam-no brilhar no seu trabalho, ao passo que a mãe o influenciava de forma a torná-lo determinado, paciente, obstinado, incansável.
Em breve se tornou amigo dos rapazes, cuja rudeza era apenas superficial. Todos patenteavam, quando podiam confiar neles próprios, uma bondade e amabilidade muito estranhas.
– Vens comigo para a leira? – perguntou Edgar, um tanto hesitante. Paul foi com ele alegremente e passou a tarde a cavar e a desbastar os nabos com o amigo. Paul costumava deitar-se com os três irmãos no monte de feno do celeiro a contar-lhes histórias sobre Nottingham e a Thomas Jordan. Eles, por sua vez, ensinaram-no a ordenhar e deixavam-no encarregar-se de pequenas tarefas tanto quanto quisesse, tais como segar feno ou despolpar nabos. Nos meados do Verão, Paul ajudou-os a segar o feno e tornou-se seu grande amigo. Aquela família vivia na verdade bem longe do mundo. Assemelhavam-se de certa forma a «les derniers fils d’une race épuisée»1. Embora os rapazes fossem robustos e saudáveis, eram esquivos e extremamente sensíveis, o que os tornava tão solitários. Mas, uma vez ganha a sua confiança, mostravam-se amigos fiéis e dedicados.
Miriam só mais tarde aconteceu. Mas ele entrara na vida dela antes de ela aparecer na sua. Numa tarde sombria, quando os homens estavam no campo e os mais novos na escola, apenas tendo ficado em casa Miriam e a mãe, ela perguntou-lhe, após breves momentos de hesitação:
– Já viste o baloiço?
– Não – respondeu ele. – Onde está?
– No estábulo – disse ela.
Ela hesitava sempre em dizer-lhe ou mostrar-lhe alguma coisa. Os homens têm uma noção de valor tão diferente da das mulheres que todos os seus objectos mais queridos e valiosos eram frequentemente motivo de escárnio e insulto por parte dos irmãos.
– Então vamos! – respondeu ele, levantando-se de imediato.
Havia dois estábulos, um de cada lado do celeiro. No estábulo mais baixo e escuro havia lugar para quatro vacas. As galinhas esvoaçavam sobre a manjedoura, cacarejando, enquanto o rapaz e a rapariga se aproximavam da corda grande e grossa, que pendia suspensa de uma viga na escuridão e estava presa à parede, a uma cavilha.
– Parece uma corda! – exclamou ele, satisfeito, e sentou-se ansioso por experimentar. Porém, levantou-se logo.
– Vá! Experimenta tu primeiro! – disse, voltando-se para a rapariga.
– Estás a ver – respondeu ela, entrando no celeiro –, é preciso pôr uns sacos no assento. – E assim tornou o assento mais confortável, o que muito o alegrou. Paul segurou-se à corda.
– Vem! – disse ele.
– Não, não quero ser a primeira – respondeu ela.
E manteve-se afastada, no seu jeito indiferente e calmo.
– Porquê?
– Vai tu agora! – insistiu ela.
Era talvez a primeira vez na vida que ela sentia prazer em fazer o que um homem lhe dizia, em poder mimá-lo. Paul olhou para ela.
– Está bem – disse ele, sentando-se no baloiço. – Cuidado!
Deu um salto para cima do baloiço e logo voou pelo ar, quase saindo pela porta, que tinha a parte superior aberta, podendo ver lá fora a chuva a cair miúda, o pátio sujo, o gado desolado junto à carroça preta do estábulo e, ao fundo, a cortina verde e cinza da floresta. Ela mantinha-se cá por baixo, com a sua boina vermelha à escocesa, a observá-lo. Ele olhou para ela, e ela viu os seus olhos azuis a brilharem.
– É um baloiço formidável – disse ele.
– Pois é.
Todo ele se lançava pelo ar, como um pássaro em voo picado, só pelo prazer do movimento. E então olhou para baixo, para ela, e a boina vermelha sobre os caracóis negros, o rosto bonito e afável, tão sereno como se estivesse a meditar, subiram até ele. Estava escuro e frio dentro do estábulo. Subitamente uma andorinha desceu das alturas do forro do telhado e saiu como uma seta pela porta.
– Não sabia que estávamos a ser observados por um passarinho – disse ele.
Ele baloiçava-se desabridamente. Ela sentia-o descer e subir no ar, como se impelido por uma força desconhecida.
– Agora vou morrer – disse ele, numa voz sonhadora e despojada, como se ele próprio fosse o movimento moribundo do baloiço. Ela olhava-o, fascinada. Bruscamente, ele travou e saltou.
– Já andei muito tempo – disse ele. – Isto é um baloiço formidável, é realmente um baloiço formidável.
Miriam estava divertidíssima, pois ele tinha levado o baloiço a sério e sentira-se bem a andar nele.
– Não, continua – disse ela.
– Porquê?... Não queres andar? – perguntou ele espantado.
– Não me apetece muito. Mas vou andar só um bocadinho.
Ela sentou-se no baloiço, enquanto ele segurava os sacos.
– É formidável, vais ver – disse ele, empurrando-a. – Mantém os calcanhares bem levantados, senão batem na manjedoura.
Miriam sentia a precisão com que ele a agarrava no momento exacto e a força certeira com que a empurrava, e sentia medo. Uma onda quente de medo percorreu-a até ao ventre. Ela estava nas mãos dele. O impulso firme e inevitável surgia de novo no momento certo. Ela agarrava-se à corda, quase a desmaiar.
– Oh – disse ela a rir, cheia de medo. – Mais alto não!
– Mas tu não vais nada alto – protestou ele.
– Mas mais alto não!
Paul apercebeu-se do medo na voz dela, e parou. O coração dela derreteu-se numa dor cálida, quando chegou o momento de novo impulso, mas ele deixou-a sozinha, e ela pôde respirar outra vez.
– Não queres mesmo ir mais alto? – perguntou ele. – Queres que te mantenha nessa altura?
– Não, eu ando sozinha – respondeu ela.
Então ele afastou-se e ficou a vê-la.
– Mal te mexes – comentou ele.
Ela esboçou um sorriso, envergonhada, e de repente desceu.
– Dizem que quem sabe andar de baloiço não enjoa no mar – disse ele, enquanto subia para o baloiço outra vez. – Não creio que alguma vez venha a enjoar.
Começou a andar novamente. Para ela havia algo nele que a fascinava. Naquele momento ele era apenas uma peça de um objecto em movimento e tudo nele se movia. Nem ela nem os irmãos conseguiam libertar-se assim. Sentia o entusiasmo desabrochar dentro de si. Era como se ele fosse uma chama, e tivesse ateado o entusiasmo dentro dela enquanto se baloiçava no ar.
E, gradualmente, a intimidade de Paul com a família Leivers privilegiava três pessoas: a mãe, Edgar e Miriam. Na mãe encontrava uma simpatia e um encanto que pareciam abrir-lhe o coração. Edgar era o seu melhor amigo. Quanto a Miriam, digamos que a ia aturando, pois parecia-lhe ser muito submissa.
Mas a rapariga, a pouco e pouco, foi-o atraindo. Quando ele trazia o caderno dos esboços, era sempre ela quem observava mais longamente o último desenho. E então, olhava para ele e perguntava, com os olhos negros a luzir, como águas agitadas por uma corrente dourada no meio da escuridão:
– Porque será que gosto tanto deste?
E algo no peito dele se retraía perante estas observações tão deslumbradas, tão íntimas e tão próximas.
– Sim, porque será? – perguntava ele.
– Não sei – parece tão real.
– É porque... é porque quase não tem sombras... é mais como uma cintilação... como se eu tivesse pintado a cintilação do protoplasma das folhas, e de tudo, e não a rigidez das formas. Isso para mim é coisa morta. Só a cintilação contém vida. A forma é uma crosta morta. A cintilação está, realmente, no interior.
E ela, mordendo o dedinho minúsculo, ponderava sobre tais afirmações. Davam-lhe uma nova sensação de vida e davam vida a coisas que até aí não significavam nada para ela. Conseguia encontrar algum significado nos discursos dele, sempre tão abstractos e intrincados. Era através deles que ela chegava claramente aos objectos amados.
Certo dia, ela tinha estado sentada junto dele, ao pôr do Sol, enquanto ele pintava alguns pinheiros batidos pelo clarão rubro que avançava do poente. Ele mantivera-se calado.
– Já está! – disse ele, de repente. – Mesmo o que eu queria. Agora, olha para eles e diz-me se são troncos de pinheiro ou carvões incandescentes, estacas de fogo a arder na escuridão. A sacra ardente de Deus, aquela que não se apaga.
Miriam olhou e sentiu medo. Mas distinguia perfeitamente os troncos de pinheiro e achava-os magníficos. Ele arrumou a caixa das tintas e levantou-se. De repente, olhou para ela.
– Porque estás sempre tão triste? – perguntou.
– Triste! – exclamou ela, olhando para ele com os seus olhos castanhos, admirados, maravilhosos.
– Sim – disse ele. – Tu andas sempre, sempre triste.
– Não... Nem um pouco! – exclamou ela.
– Até a tua alegria parece uma chama ateada pela tristeza – insistiu ele. – Nunca estás alegre, nem sequer normal.
– Pois não – disse ela, pensativa. – Dá que pensar... Porque será...?
– Porque tu não és.... porque tu és diferente por dentro... como um pinheiro... e depois incendeias-te... mas não és uma árvore qualquer, com folhas irrequietas e alegres...
Paul emaranhou-se no seu próprio discurso; mas ela bebia as suas palavras e ele teve uma sensação estranha e estimulante, como se os seus sentimentos fossem novos. Ela chegava-lhe tão perto da alma. Estranho estímulo este.
Mas às vezes odiava-a. O irmão mais novo de Miriam só tinha cinco anos. Era um menino débil, de enormes olhos castanhos e um rostinho frágil e esquisito; parecia um anjo do Coro dos Anjos, de Reynolds, com um toque de duende.
Miriam ajoelhava-se frequentemente junto da criança e apertava-o contra o peito.
– Meu Hubert! – cantarolava ela com uma voz possante, a transbordar de amor. – Meu Hubert!
E, envolvendo-o nos seus braços, embalava-o mansamente de um lado para o outro com amor, de face levantada ao céu, olhos semicerrados e voz embebida de ternura.
– Pára! – disse a criança, constrangida. – Pára, Miriam!
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela do fundo da garganta, como se estivesse em transe, balançando também, como se prestes a desfalecer num êxtase de amor.
– Pára! – repetiu a criança, franzindo a testa desanuviada.
– Tu gostas de mim, não gostas? – murmurou ela.
– Porque fazes tanto espalhafato? – gritou Paul, profundamente afectado pela emoção exagerada de Miriam. – Porque não ages normalmente com ele?
Ela largou a criança e não respondeu. A sua intensidade, que não deixaria transparecer qualquer emoção numa situação normal, deixava o jovem quase num frenesim. Este contacto desprotegido e tímido com a alma dela chocava-o. A sua mãe era reservada, e ele estava habituado a ela. E, nessas alturas, sentia-se agradecido de alma e coração por ter a mãe que tinha, tão sensata e tão sã.
Toda a vida do corpo de Miriam se reflectia nos seus olhos, normalmente escuros como as igrejas, mas que podiam inflamar-se como uma conflagração. A sua expressão meditativa raramente se alterava. Talvez ela tivesse sido uma das mulheres que acompanharam Maria quando Jesus morreu. O seu corpo não era vivo, flexível. Andava de forma oscilante, pesada até, de cabeça inclinada para a frente, meditativa. Não sendo propriamente desajeitada, nenhum dos seus movimentos parecia o movimento correcto. Muitas vezes, quando limpava os pratos, ficava confusa e desgostosa, por ter partido em duas metades uma chávena ou um copo. Era como se, por medo e falta de confiança, se tivesse aplicado demasiado. Não sabia o que eram relaxamento ou abandono. Agarrava-se a tudo com rigidez e intensidade, e o seu esforço, de excessivo, fechava-a sobre si mesmo.
Raramente alterava a forma de andar, tensa, balançada, projectada para a frente. De vez em quando, ia com Paul dar uma corrida pelos campos e então os seus olhos brilhavam inteiros, num êxtase que o assustava. Mas tinha medo de fazer exercício físico. Se tivesse de saltar uma cerca, apertava as mãos de forma angustiante e perdia a presença de espírito. E ele não conseguia persuadi-la a saltar, mesmo um obstáculo baixo. Os olhos dela dilatavam-se, ficavam expostos, palpitantes.
– Não – gritava ela, sorrindo apavorada. – Não!
– Tens de tentar – gritou ele uma vez e, empurrando-a para a frente, fê-la cair da cerca. Mas o grito selvagem que ela deu, como se estivesse prestes a perder a consciência, feriu-lhe as entranhas. Mas ela caiu de pé e em segurança, e posteriormente passou a ter mais coragem.
Paul e Miriam iam muitas vezes passear juntos pelos campos até ao lago Nethermere. Ele era naturalmente ágil e muito activo. Andava sempre a saltar de um lado para outro. Ela, no entanto, mantinha sempre o mesmo curso, quase sem alterações. E ele, a pouco e pouco, vinha para junto dela, moderava o passo e caminhava com ela, de cabeça baixa, mas só até chegarem à água. A margem do lago estava pejada das penas brancas dos cisnes. Sentavam-se entre os seixos. Subitamente, ele descobria um seixo bonito e bem liso, levantava-se, e atirava-o à água para provocar ondinhas.
– Consegues fazê-los saltar? – perguntou Paul.
– Não muito bem! – respondeu ela, abanando a cabeça. E continuou sentada a observá-lo.
– Ora vê! – gritou ele. – Quatro saltinhos.
– Sim senhor – disse ela, elogiando-o. – Formidável. – Contudo, ele depressa se fartou e veio sentar-se novamente junto dela.
– Porque não queres também fazer ondinhas? – perguntou ele.
– Porque não sei – respondeu ela.
– Tu nunca queres fazer nada! – disse ele.
– Bem vês, tenho a lida da casa para fazer.
Paul não deu seguimento à discussão, preferindo encetar um diálogo sobre livros.
Miriam estava muito triste com o seu destino.
– Não gostas de estar em casa? – perguntou-lhe Paul surpreendido.
– E quem é que gosta? – respondeu ela, num tom cavo e profundo. – O que é estar em casa? Passar os dias a limpar o que os rapazes sujam em menos de cinco minutos. Não quero estar em casa!
– Então o que é que queres?
– Quero fazer alguma coisa. Quero ter uma oportunidade, como toda a gente. Porque é que eu, só por ser rapariga, tenho de ficar em casa e não me é permitido ser alguém? Que oportunidades é que eu tenho?
– Oportunidades para quê?
– Para saber de tudo, para aprender... para fazer qualquer coisa. Não é justo que isto aconteça apenas por eu ser mulher.
Ela falava com muita amargura. Paul pôs-se a pensar. Em casa, Annie parecia até quase contente por ser rapariga. Não tinha tantas responsabilidades e tudo era mais fácil para ela. Nunca quisera ser qualquer outra coisa além de rapariga. Mas Miriam desejava quase furiosamente ser homem. E, contudo, ao mesmo tempo detestava os homens.
– Mas ser homem ou mulher é a mesma coisa – disse Paul, franzindo a testa.
– Ai é?... Os homens têm tudo.
– Eu acho que as mulheres deviam estar contentes por serem mulheres, como os homens estão por serem homens – respondeu ele.
– Não! – Ela abanou a cabeça. – Nem pensar! Os homens têm tudo.
– Mas o que é que queres, afinal? – perguntou ele.
– Quero aprender. Porque é que eu hei-de ficar sem saber nada?
– Mas afinal o que queres tu aprender? Matemática e francês...?
– E porque é que eu não hei-de aprender matemática... Sim – gritou ela, abrindo os olhos em ar de desafio.
– Tu podes aprender tudo aquilo que eu sei – disse ele. – Eu ensino-te, se quiseres.
Os olhos dela arregalaram-se. Como professor, ele não lhe inspirava confiança.
– Gostavas? – perguntou Paul.
Ela estava de cabeça baixa a chuchar no dedo, sorumbática.
– Gostava... – disse ela, hesitante.
Ele conversava frequentemente com a mãe sobre todas estas coisas.
– Gostava de ser homem, mãe? – perguntou ele.
– Por vezes... mas é uma parvoíce... penso que não... não quero e nunca quis ser outra pessoa diferente da que sou.
– E porque é que gostava de ser homem, mesmo só às vezes?
– Bem, meu filho – respondeu a mãe a sorrir – penso que conseguiria fazer mais do que alguns homens, o que não é para admirar.
– Eu cá não quero ser mulher – disse ele, pensativo. – E acho que não conseguia ser uma mulher melhor do que as que já são mesmo mulheres.
– Não – disse a mãe a sorrir. – Também acho que não... Mas, por vezes, nós sentimos que poderíamos fazer mais do que os homens...
– Talvez a mãe pudesse... – disse ele.
– Bem... – respondeu ela com a sua curiosa fungadela habitual. – Sabes, meu filho – continuou ela – a natureza é para ser respeitada. E quando uma mulher deseja ardentemente ser homem, podes apostar a vida em como ela não é lá grande coisa como mulher.
– Detesto uma mulher que deseje ser homem – disse ele.
– Apenas demonstra que o seu orgulho de mulher está demasiado enfraquecido – respondeu a mãe. Paul falava sempre com a mãe, pois ela era a sua pedra de toque.
– Vou ensinar álgebra à Miriam – disse ele.
– Bem... – disse Mrs. Morel – espero que lhe seja proveitoso.
Aproximava-se o crepúsculo quando Paul se dirigiu para a quinta, na segunda-feira à tardinha. Miriam acabara de varrer a cozinha e estava ajoelhada junto à lareira quando ele entrou. Todos tinham saído, excepto ela. Olhou-o ruborizada, com os olhos negros a brilhar e os cabelos magníficos caídos à volta do rosto.
– Olá – disse ela, num tom suave e musical. – Já sabia que eras tu!
– Como é que adivinhaste?
– Reconheci os teus passos. Ninguém anda tão depressa e firmemente como tu.
Ele sentou-se e suspirou.
– Estás pronta para aprender álgebra? – perguntou ele, tirando um livrinho do bolso.
– Mas... – Ele sentiu-a recuar.
– Mas tu disseste que querias – insistiu ele.
– Mas hoje à noite... – começou ela, titubeante.
– Mas eu vim de propósito. E, se queres aprender, alguma vez tens de começar.
Ela apanhou as cinzas com a pá do lixo e olhou para ele, esboçando um sorriso trémulo.
– Sim, mas... esta noite... Sabes, ainda não pensei nisso.
– Por amor de Deus... Vai despejar as cinzas e vem ter comigo.
Paul saiu e sentou-se no banco de pedra do pátio das traseiras, perto das grandes bilhas de leite. Os homens estavam no estábulo. Ele conseguia ouvir o som cadenciado do leite, jorrando para os baldes. Ela voltou logo, com um punhado de maçãs grandes e esverdeadas.
– Estas são das que tu gostas – disse ela.
Ele deu uma trincadela na maçã.
– Senta-te – disse ele com a boca cheia.
Ela, míope, começou a espreitar por cima do ombro dele. Isso irritou-o tanto que lhe entregou logo o livro.
– Vê à vontade – disse ele. – Aqui há apenas letras para cada número. Escreves um a, em vez de um «2» ou um «6».
Começaram a trabalhar, ele a explicar e ela debruçada sobre o livro. Ele era rápido e impetuoso. Ela nunca respondia. Por vezes, quando ele lhe perguntava:
– Estás a perceber? – ela olhava-o com uns olhos sorridentes e amedrontados.
– Então, não estás a perceber nada! – gritava ele.
Tinha ido demasiado depressa. Mas ela não tinha dito nada. Ele fez-lhe mais perguntas e depois irritou-se. Ficava com o sangue a ferver de a ver ali à sua mercê, de boca aberta, olhos esbugalhados, com um sorriso medroso, apologético, envergonhado. Edgar chegou entretanto com dois baldes de leite.
– Olá! – disse ele. – O que estão vocês a fazer?
– Álgebra – respondeu Paul.
– Álgebra! – repetiu Edgar, intrigado. E seguiu em frente, dando uma gargalhada. Paul trincou a maçã já quase esquecida e, olhando para as pobres couves da horta, todas rendilhadas pelas galinhas, teve vontade de as arrancar. Depois, olhou para Miriam, que fitava o livro aparentemente absorta; porém tremia, receando não compreender. Estava corada e bonita. Todavia, a sua alma parecia suplicar ao livro de álgebra que a ajudasse. Ela fechou-se, retraiu-se, percebendo que ele estava aborrecido. Mas, no mesmo instante, ele tornou-se gentil ao vê-la magoada por não conseguir perceber o que lia.
– Diz lá, o que é que achas difícil? – perguntou ele, ternamente.
Este novo tom de voz fê-la levantar de imediato os olhos negros que pareciam querer vencer a todo o custo. O olhar dela doeu-lhe e uma onda de ternura percorreu-o.
– Sabes, para mim é fácil – disse ele. – Já estou habituado e esqueço-me de que não sabes. Vês...
E, então, todo ele gentileza e paciência, recomeçou. Edgar chegara entretanto e pusera-se atrás dele.
A cabeça escura de Miriam encontrava-se abaixo do nível dos olhos de Paul. Era uma cabeça pequenina com caracóis negros que pareciam flutuar como seda. Ela parecia esforçar-se tanto! A voz dele era uma contínua ternura.
– Vejo, pois! – exclamou Edgar, de repente, por detrás deles. – Mas... isto...
E o seu gordo indicador aproximou-se do livro. Miriam estremeceu. Paul virou-se para o amigo. Edgar era bem-parecido e os seus olhos, castanhos, perfeitos e saudáveis, pareciam interessados. Explicar-lhe algo era para Paul como respirar ar fresco.
Paul dava lições a Miriam com regularidade. As aulas tinham lugar na sala de estar. Foi aí que o jovem se estreou brilhantemente. Ela aprendia tudo e sabia sempre quais os exercícios que ele lhe mandara fazer na semana anterior. Frequentemente sabia até melhor do que ele. Mas as coisas para ela tinham de ser lentas. E quando se retraía e se mostrava completamente submissa durante a lição, isso enervava-o. Ele enfurecia-se, envergonhava-se, continuava a lição e enfurecia-se novamente, gritando com ela. Ela escutava-o em silêncio. Por vezes, muito raramente, defendia-se. Os seus olhos negros e transparentes fulminavam-no.
– Não me dás tempo para aprender – dizia ela.
– Pronto – respondia ele, atirando o livro para cima da mesa e acendendo um cigarro. Mais tarde, ia ter com ela arrependido. E assim decorriam as lições, com ele sempre ou muito enervado ou muito gentil.
– Porque é que a tua alma estremece durante a lição? – gritava ele. – Com essa tua bendita alma, nunca mais aprendes álgebra. Será que não consegues olhar para isto com a razão, de uma forma clara e simples?
Muitas vezes, quando ia para a cozinha, Mrs. Leivers olhava para ele aborrecida e repreendia-o:
– Paul não sejas tão severo com a Miriam. Ela pode não ser muito rápida, mas tenho a certeza de que se esforça.
– Não me consigo conter – dizia ele, desculpando-se. – Enervo--me facilmente.
– Miriam, não estás aborrecida comigo, pois não? – perguntava-lhe ele mais tarde.
– Não – assegurava-lhe ela, no seu tom profundo e melodioso. – Não, eu não me importo.
– Não me perdoes tão facilmente, pois eu sei que sou culpado.
Mas, apesar de tudo, o seu sangue começava a ferver novamente. Era estranho que mais ninguém o enervasse daquela forma. Mas ela enfurecia-o. Uma vez atirou-lhe um lápis à cara. Fez-se silêncio. Ela virou a face ligeiramente para o lado.
– Eu não... – começou ele, mas não continuou, pois sentia-se desfalecer. Ela nunca o censurava nem se zangava com ele, e ele sentia-se muitas vezes terrivelmente envergonhado. Contudo, a sua raiva rebentava novamente como uma bolha enfunada. Quando ele via à sua frente aquela cara ansiosa, silenciosa, como se fosse cega, sentia renascer dentro de si a vontade irreprimível de lhe atirar outra vez com o lápis. No entanto, quando via a mão dela tremer e a boca entreabrir-se em sofrimento, o seu coração ardia de compaixão por ela. E, assim, procurava-a, pela força e a intensidade que ela despertava nele.
Muitas vezes evitava-a e ia passear com Edgar. Miriam e o irmão eram naturalmente antagónicos. Edgar era um racionalista curioso e nutria um interesse científico pela vida. Para Miriam, era um grande desespero sentir-se abandonada por Paul em benefício de Edgar, que parecia muito mais inculto. Todavia, Paul sentia-se muito feliz com o irmão mais velho. Os dois homens passavam tardes juntos no campo, carpinteirando no celeiro quando chovia. Conversavam ou então Paul ensinava a Edgar as canções que ele próprio tinha aprendido com Annie ao piano. Frequentemente, todos os homens, incluindo Mr. Leivers, tinham acerbas discussões sobre a nacionalização da terra e problemas semelhantes. Paul já tinha ouvido as opiniões da mãe, e visto serem essas também as suas, discutia-as em seu lugar. Miriam assistia e participava, mas aguardava até que terminassem, e intervinha apenas quando a conversa voltava a ser mais íntima.
«Acima de tudo», pensava ela, «se as terras fossem nacionalizadas, Edgar, Paul e eu continuaríamos a ser os mesmos.»
E então esperava que Paul voltasse para junto dela.
Ele andava a estudar pintura. À noite adorava ficar a trabalhar em casa sozinho com a mãe. Ela cosia ou punha-se a ler. Por vezes, ele interrompia o seu trabalho e descansava os olhos por um momento no rosto da mãe, que brilhava de ternura, para depois retomar feliz a sua tarefa.
– Mãe, os meus melhores trabalhos são feitos quando está aqui sentada na cadeira de balouço – dizia ele.
– Tenho a certeza de que sim – exclamava ela, torcendo o nariz, num cepticismo simulado. Mas sabia que assim era e o seu coração pulsava de alegria. Mrs. Morel sentava-se em silêncio durante horas, costurando ou lendo um livro, atenta ao trabalho do filho. E ele, comandando o lápis com toda a intensidade da sua alma, sentia o calor dela dentro dele, incentivando-o. Eram os dois muito felizes assim e sem consciência de o serem. Estes momentos, tão significativos e tão reais, passavam-lhes quase despercebidos.
Ele apenas tomava consciência quando era estimulado. Quando terminava um esboço, desejava sempre mostrá-lo a Miriam. E então, sentia-se estimulado para conhecer o trabalho que tinha produzido inconscientemente. Em contacto com Miriam adquiria discernimento e a sua visão tornava-se mais profunda. Da mãe retirava o calor da vida e o incentivo para produzir; Miriam dava a esse calor a intensidade de uma luz muito branca.
Quando Paul voltou à fábrica, as condições de trabalho tinham melhorado. Tinha a quarta-feira à tarde livre para ir à escola de belas-artes – providência tomada por Miss Jordan – e regressava à tardinha. Além disso, às quintas e sextas-feiras à tarde, a fábrica fechava às seis em vez de ser às oito.
Em Bestwood havia uma pequena e respeitável biblioteca, cuja assinatura custava apenas quatro xelins e seis dinheiros por ano. Mrs. Morel e Mrs. Leivers tinham-se feito sócias quando os filhos começaram a crescer. A biblioteca ocupava duas salas do Clube dos Mecânicos, e estava aberta às terças-feiras à noite, das 19 às 21 horas. Paul ia sempre buscar os livros para a mãe, que lia muito, e Miriam arrastava-se sob o peso de cinco ou seis volumes para a família. Tornou-se habitual os dois encontrarem-se na biblioteca.
Paul conhecia bem as duas pequenas salas com as paredes forradas de livros. Eram acolhedoras e havia uma grande lareira ao canto. Mr. Sleath, o bibliotecário, tinha fartas suíças brancas em torno de uma cara acriançada. Era alto e curioso, mas muito afável; conhecia toda a gente e sabia da vida de todos. Mr. Smedley era roliço, careca e instruído.
Paul aguardou, enquanto Mr. Sleath acabava de pôr em dia os mexericos com o último leitor. Nessa altura, Paul deixou cair os livros em cima do balcão. Mr. Sleath olhou para ele com os seus olhos azul-vivo, mas mortiços.
– Vinte e dois, cinquenta e sete – disse Paul.
O bibliotecário, funcionário superior da companhia mineira e um cavalheiro comparado com o jovem, repetiu os números alegremente, virando as folhas do livro de registos.
– Ah!... Ah! – exclamou ele, olhando para a página. Depois olhou de uma forma carinhosa e acolhedora para o jovem, esfregou as mãos e disse:
– Ah!... Bem, Paul!... Ah! Como está a tua mãe?
– Muito bem, obrigado! – respondeu Paul.
– Óptimo! Não a vi na capela no domingo à noite!
– Pois não! Teve uma inflamação nos olhos.
– Meu Deus... Meu Deus... Lamento muito!
– Mas penso que disseste – interveio Mr. Smedley – que ela estava muito bem. – Paul não respondeu nem olhou para o homenzinho por detrás do balcão. Mr. Sleath ia assinalando os livros no seu livro de registo. Mr. Smedley pôs mais carvão na lareira. Algumas pessoas conversavam animadamente junto das estantes. Os tacões dos sapatos chiavam na tijoleira.
– Mas achas que ela já se sentirá bem para sair este fim-de-semana? – perguntou Mr. Sleath, quando acabou de registar todos os livros.
– Acho que sim – disse Paul.
– Óptimo... Óptimo. De facto, estranhei a ausência dela.
Para Paul já era um dado adquirido que as pessoas lhe perguntassem pela mãe e nunca mencionassem o pai.
Dirigiu-se para as estantes. Os leitores continuavam a entrar, deixando os chapéus-de-chuva no corredor e trocando agradáveis saudações. O jovem conhecia toda a gente e todas as suas histórias. Mas não lhe interessavam. Miriam talvez não viesse por causa da chuva. Olhou para o livro que tinha nas mãos, esqueceu-o por momentos, pensando nela, e voltou ao livro novamente. O tempo passava como num sono. Ouvia o ruído das pessoas a saírem, mas ninguém a entrar. E se ela não viesse? Só de pensar nisso a noite afigurava-se-lhe lúgubre e infrutífera. Mas ela viria. A atmosfera era quente e acolhedora e a noite não teria continuidade enquanto ela não chegasse.
– Uma noite dos diabos, Alfred, uma noite dos diabos – disse Mr. Sleath, procurando alguém com quem falar. A biblioteca estava vazia.
– Parece que sim – respondeu Mr. Smedley.
Então, Mr. Sleath reparou em Paul.
– Olá, Paul – exclamou. – Ainda não encontraste o que queres, hem?
– Não me parece que o Paul esteja à espera de nenhum livro – disse Mr. Smedley.
– Oh...Oh... – exclamou Mr. Sleath.
– Penso que é uma jovem que está por detrás disto tudo – disse Mr. Smedley. – Mas está uma noite péssima para se vir de Willey Woods.
Ouviram-se passos no corredor. Paul ficou à escuta. Não era ela. Entrou um rapaz. Quando Paul viu o rapaz no limiar da porta, onde ela deveria estar, ficou furioso com ele. Contudo ela viria. Era sempre tão cumpridora. Um dos seus maiores encantos, quanto a ele, era a sua rejeição das convenções. Se quisesse vir, viria mesmo que chovesse torrencialmente. E o tempo não estava assim tão mau. Paul pôs-se a escutar, para ver se chovia muito. E então ouviu o rapaz dizer que estava a chover a cântaros. Mas o rapaz não contava. Ela viria, sim, mesmo que chovesse a cântaros. E Paul agarrou-se a essa esperança. Podia senti-la, através da noite, desejando vir. E ela nunca o desapontava. Para ela a vida interior valia tudo, e a exterior nada.
Ouviu os passos dela no corredor e a sua ansiedade diminuiu. Ficou a vê-la chegar. Ela parou um momento à entrada da porta. A boina vermelha cintilava com as gotas de chuva, o cabelo revolto dançava em caracóis húmidos, as faces esplandeciam. Ela procurou-o ansiosamente com o olhar, e então os seus olhos míopes encontraram-no, e uma chama ateou-se dentro dela, queimando-o também a ele. Dirigiu-se ao balcão, satisfeita. Ele virou-lhe as costas.
Então, ela aproximou-se dele, hesitante.
– Estou atrasada? – perguntou ela.
– Como sempre – respondeu ele. – Estás muito molhada?
– Não... nadinha.
– Vieste pela linha férrea? – disse ele.
– Vim. Estavas com muito medo de que eu não aparecesse?
– Só um bocadinho.
Paul sorriu.
– Vem, vou mostrar-te os livros que escolhi para ti – disse ele. Ela foi. Os livros não tinham qualquer significado para ela. Mas ele insistia na sua aprovação. Olhou para os livros por cima do braço dele, sem conseguir ver nada. Mas ele estava contente.
– Concordas? – perguntou ele.
– Claro – respondeu ela.
Depois de registarem os livros, saíram os dois rapidamente da biblioteca. A escuridão enchia-os de alegria. Sentiam-se exacerbadamente felizes. Paul trazia uma enorme capa preta impermeável, por baixo da qual resguardou os livros. Caminharam lado a lado pela rua Mansfield, envolvidos pela escuridão e pela chuva, sob as árvores gotejantes.
A conversa surgiu rápida e vigorosa, passando imediatamente à discussão sobre um dos livro. Ele falava apaixonadamente, ela ouvia-o e a sua alma expandia-se. Do livro, passaram inevitavelmente a uma discussão sobre crenças íntimas, muito subjectiva.
– Parece que é como se não tivesse importância, um a mais ou um a menos, dentro do todo... – disse ele.
– Não – respondeu ela gravemente, em dúvida.
– Eu costumava pensar assim quando um pardal caía.... e o mesmo em relação aos cabelos da cabeça...
– Sim – disse ela. – E agora?
– Agora penso que a raça dos pardais é importante, e não apenas um pardal: todo o meu cabelo, e não apenas um fio de cabelo.
– Sim – disse ela, pouco convencida.
– E as pessoas são importantes. Mas uma só não é assim tão importante. Vê, por exemplo, o William.
– Sim – disse ela, pensativa.
– Chamo a isso apenas uma perda – disse ele – Uma perda, nada mais.
– Sim – disse ela, com a voz sumida.
Ela acreditava que quanto mais pessoas houvesse, menos importância tinham. Mas ouvi-lo falar assim era para ela como um sopro de vida: como o primeiro sopro de um recém-nascido.
– Contudo – disse ele – creio que há um caminho certo a seguir... se o seguirmos está tudo bem... ou se andarmos perto. Mas se não o seguirmos, morreremos. Tenho a certeza de que o nosso William fez a escolha errada.
– E se seguirmos o curso das nossas vidas não morremos? – perguntou ela.
– Não, não morremos. É o nosso íntimo que nos aconselha a seguir um determinado caminho e não outro.
– Mas nós sabemos quando é que estamos a seguir o caminho certo? – perguntou ela.
– Claro! Eu pelo menos sei. Eu sei que estou a seguir o meu caminho.
– Sabes mesmo? – perguntou ela.
– Sim... tenho a certeza.
Ele tinha parado por baixo de um lampião para pensar. O seu impermeável luzia com a chuva. Ela olhou para a cara dele. Os seus olhos, tão certeiros e tão fixos, fitaram os dela. Ele era realmente determinado. Ela seguiu para casa com o coração em brasa.
Mas ele, quando deu meia volta para retroceder, logo a esqueceu, ao pensar que a mãe ficaria aborrecida ao saber que ele tinha ido até tão longe debaixo de chuva. Estugou o passo, sentindo-se porém exultante com o contacto com Miriam. A noite tinha-lhe trazido alguma satisfação.
– Queres tu dizer que levaste a Miriam Leivers a casa numa noite como esta? – perguntou a sua mãe, fitando-o subitamente, um minuto depois de ele ter entrado.
– Demorei-me muito tempo na biblioteca – argumentou Paul.
– Mas ela apareceu, não apareceu? – exclamou Mrs. Morel, calma e severa. Paul estremeceu.
– Ela fica sem nada para ler durante toda a semana, se não vier à biblioteca – disse ele.
– Não sei o que é que a mãe dela anda a fazer para a deixar arrostar com cerca de 10 milhas debaixo desta chuva torrencial.
– Não está chover muito – disse ele. – Nem por isso.
– Basta olhar para o teu impermeável e para as tuas botas – disse a mãe.
– Olhe o que eu lhe trouxe – disse ele, mas ela estava demasiado zangada para condescender.
Certa tarde de Verão, Miriam e Paul resolveram atravessar os campos, por Herod Farm, no regresso da biblioteca. Assim, eram só três milhas até Willey Farm. A erva segada brilhava com reflexos dourados e os botões de azedas ardiam em tons de carmim. A pouco e pouco, enquanto atravessavam o planalto, os tons dourados do ocaso deslizaram para vermelho, o vermelho para o carmim e, por fim, o azul glacial apagou o clarão.
Foram dar à estrada principal de Alfreton, que singrava branca entre os campos anoitecidos. Aí, Paul hesitou. Eram cerca de duas milhas até sua casa, e uma milha até à casa de Miriam. Olharam para a estrada, que corria sombria sob a luminosidade ténue de noroeste. No cimo do monte, Selby, com as suas casas despojadas e as suas torres mineiras, recortava-se no céu, pequenina, em negras silhuetas.
Ele consultou o relógio.
– Já são nove horas! – disse.
Ambos estavam relutantes em partir, abraçados aos seus livros.
– O bosque é tão bonito a esta hora... – disse ela. – Queria tanto que o visses.
Ele atravessou a estrada atrás dela, lentamente, aproximando-se da cancela branca.
– Eles fazem cá um banzé, se eu chego tarde – disse ele.
– Mas não estás a fazer nada de mal – contrapôs ela, impaciente. E ele seguiu-a através das pastagens retouçadas, à luz do lusco-fusco. Havia uma frescura no bosque, um aroma a folhas e a madressilva, e o crepúsculo. Caminharam em silêncio. A noite desceu, maravilhosa, entre a imensidão de troncos negros. Ele olhou em volta, expectante.
Ela queria mostrar-lhe uma roseira-brava que tinha descoberto, pois achara-a lindíssima. Porém, sentia que só depois de ele a ter visto ela seria capaz de a assimilar. Só ele poderia fazer com que a roseira fosse dela para sempre, imortal. Por isso não estava satisfeita.
O orvalho já era visível pelos caminhos. Do velho bosque de carvalhos elevava-se uma névoa e ele hesitou, questionando-se se a mancha branca seria a linha de bruma ou apenas candelárias-dos-jardins, formando uma pálida nuvem.
Assim que chegaram aos pinheiros, Miriam começou a ficar muito tensa e ansiosa. O seu arbusto podia ter desaparecido. Poderia não o encontrar. E queria tanto descobri-lo. Desejava, quase com paixão, ter Paul perto de si quando descobrisse as flores. A comunhão seria mútua, algo que a iria emocionar, algo de divino. Ele caminhava a seu lado em silêncio. Estavam muito próximos um do outro. Ela estremeceu e ele escutou-a, levemente ansioso.
Assim que chegaram ao limite da floresta, o céu era de madrepérola e a terra escurecia. Algures nos recantos mais afastados do pinheiral a madressilva exalava o seu aroma.
– Onde? – perguntou ele.
– Lá em baixo, no trilho do meio – murmurou ela, tremendo.
Mal acabaram de contornar a curva do atalho, ela parou. Olhou por momentos assustada para o espaço que se abria entre os pinheiros, não conseguindo discernir o que quer que fosse, pois a luz empalidecida tinha apagado a cor das coisas. Mas, finalmente, descobriu o seu arbusto.
– Oh! – exclamou ela, precipitando-se para ele.
Tudo estava sereno. O arbusto era alto e esparso, espraiando as suas silvas sobre um espinheiro próximo, e deixando pender os ramos longos sobre a relva, salpicando a escuridão de grandes estrelas brancas, imaculadas. As rosas brilhavam como botões de marfim, estrelas abertas na escuridão da folhagem, dos troncos e da relva. Paul e Miriam em silêncio, lado a lado, observavam. Uma a uma, convictas, as rosas inundaram-nos de brilho, parecendo atear fogueiras nas suas almas. O crepúsculo envolveu-os como fumo, não conseguindo, todavia, extinguir o fulgor das rosas.
Paul olhou Miriam nos olhos. Estava pálida e deleitada; a boca entreaberta e os olhos negros fitavam-no, muito abertos. O olhar dele parecia descer ao fundo dela. A alma de Miriam estremeceu, pois ansiava a comunhão. Ele, porém, virou-se para o lado, como se sofresse, e olhou para o arbusto.
– Parecem voar como borboletas, agitando-se – disse Paul.
Miriam olhou para as suas rosas. Eram brancas, algumas encurvadas e divinas, outras expandiam-se como em êxtase. A árvore era negra como a sombra. Ela estendeu a mão impulsivamente para as flores e, aproximando-se, tocou-as em adoração.
– Vamos embora – disse ele.
Pairava um perfume fresco de rosas cor-de-marfim, um perfume branco, virginal. Algo o fez sentir-se ansioso e prisioneiro. Caminharam ambos em silêncio.
– Até domingo – disse ele baixinho, e deixou-a; ela regressou a casa lentamente, com a alma enriquecida pela noite divinal. Ele cambaleou pelo atalho. Assim que saiu da floresta e entrou no prado, onde podia respirar, desatou a correr o mais depressa que podia. Era como se um delírio delicioso lhe percorresse as veias.
Sempre que saía com Miriam e se atrasava, sabia que a mãe se afligia e ficava preocupada, apesar de ele não perceber porquê. Assim que chegou a casa, atirando com o boné, a mãe olhou para o relógio. Tinha estado sentada a pensar, pois uma inflamação ocular impedia-a de ler. Imaginara Paul a ser arrastado pela rapariga. Ela não gostava da rapariga. «É uma daquelas que suga a alma de um homem, até ele ficar vazio», dizia de si para si, «e ele é daqueles simplórios que se deixa dominar. Ela nunca o deixará ser um homem, nunca!» Assim, enquanto ele estava com Miriam, ela revoltava-se cada vez mais.
Olhou para o relógio e disse friamente, visivelmente cansada:
– Foste muito longe esta noite.
A alma dele, ainda quente e fragilizada do contacto com a rapariga, contraiu-se.
– Levaste-a certamente a casa – prosseguiu a sua mãe.
Ele não ia responder. Mrs. Morel, examinando o filho de relance, constatou que trazia o cabelo transpirado da correria e ele, em resposta, franziu a testa pronunciadamente como era seu costume, ressentido.
– Ela deve ser maravilhosamente fascinante, pois não te consegues afastar dela, e até és capaz de correr oito milhas a esta hora da noite.
Paul sofria, balançando entre o encantamento dos momentos passados com Miriam e a constatação da aflição de sua mãe. Tinha pensado não dizer nada, recusar-se a responder. Porém, o seu coração não era tão gélido que o levasse a ignorar a mãe.
– Eu gosto de conversar com ela – respondeu irritado.
– E não há mais ninguém com quem possas conversar?
– A mãe não ia dizer nada, se eu tivesse saído com o Edgar.
– Sabes bem que dizia. Sempre que sais com alguém de lá, acho que é muito longe para andares por aí à noite, depois de vires de Nottingham... Além disso... – de repente, a sua voz adquiriu um tom de revoltado desdém – é repugnante ver duas crianças a namoriscar.
– Não é namoro – gritou ele.
– Não sei que outra coisa se lhe poderá chamar.
– Mas não é! Pensa que nos pomos a fazer coisas? Nós apenas conversamos.
– Só Deus sabe até quando e até onde isso irá parar – replicou ela, sarcástica.
Furioso, Paul deu um esticão nos atacadores das botas.
– Porque está tão zangada? – perguntou ele. – Apenas porque não gosta dela?
– Não é que não goste. Mas não suporto e nunca suportei ver crianças a namorar.
– Mas a mãe não se importa que a nossa Annie saia com o Jim Inger.
– Esses são mais conscientes do que vocês.
– Porquê?
– A nossa Annie não é dessas.
Paul não entendeu o alcance do reparo. Mas a mãe parecia cansada. Nunca mais fora a mesma depois da morte de William. E doíam-lhe os olhos.
– Bem – disse ele –, o campo é tão bonito.... Mr. Sleath perguntou por si e disse que tinha tido saudades suas. ... Já se sente melhor, mãe?
– Já devia era estar na cama há muito tempo.
– Mas a mãe também nunca se ia deitar antes de um quarto para as dez.
– Isso é que ia!
– Ah, velhota... agora diz qualquer coisa só por estar zangada comigo, não é?
Depois, Paul beijou aquela testa que conhecia tão bem: as marcas profundas entre as sobrancelhas, a massa de cabelo, agora grisalho e a inclinação das têmporas. A sua mão demorou-se no ombro dela após tê-la beijado e, em seguida, Paul encaminhou-se lentamente para a cama. Tinha esquecido Miriam; apenas se lembrava do cabelo da mãe, puxado para trás, deixando a descoberto uma testa alta, afectuosa. E, fosse pelo que fosse, via que ela estava magoada.
Quando voltou a encontrar-se com Miriam, disse-lhe:
– Não me deixes chegar atrasado hoje... o mais tardar até às dez horas. A minha mãe fica muito aborrecida.
Miriam inclinou a cabeça e reflectiu.
– Fica aborrecida porquê? – perguntou.
– Acha que não devo ficar fora até tão tarde, quando tenho de me levantar cedo no dia seguinte.
– Muito bem! – disse Miriam, com voz calma, mas não isenta de um leve tom de sarcasmo. Isso ofendeu-o, e ele voltou a chegar tarde a casa.
Que o amor começava a desabrochar entre Paul e Miriam era algo que nenhum deles estava preparado para aceitar. Ele achava-se sensato de mais para tais sentimentalismos, e ela demasiado importante. Ainda não tinham atingido a maturidade e a sua pujança psíquica estava muito atrás da física. Miriam era excessivamente sensível, como a mãe sempre tinha sido. A mais leve grosseria angustiava-a. Os irmãos, embora muito rudes, evitavam a vulgaridade nos diálogos. Era fora de casa que os homens discutiam todos os assuntos relativos à quinta. Contudo, e devido talvez aos constantes nascimentos e cruzamentos, actos naturais em qualquer quinta, Miriam revelava uma extrema hipersensibilidade a tais situações, e o sangue revolvia-se-lhe de repugnância à mais vaga sugestão a tais contactos. Paul seguia-lhe as pisadas, e a relação entre eles mantinha-se castamente imaculada. Não se podia sequer mencionar que a égua estava prenha.
Aos dezanove anos, Paul ganhava apenas vinte xelins por semana, mas era feliz. A sua pintura evoluía a contento, e a vida corria-lhe bem. Na Sexta-Feira Santa, organizou um passeio a Hemlock Stone. O grupo era formado por três rapazes da sua idade, Annie, Arthur, Miriam e Geoffrey. Arthur, agora aprendiz de electricista em Nottingham, tinha vindo a casa passar a Páscoa. Como era habitual, Morel levantara-se cedo e estava no pátio a assobiar e a serrar umas tábuas. Às sete da manhã, a família ouviu-o comprar arrufadas quentes à porta, e conversar animadamente com a garota que as vendia, tratando-a até por «minha querida». Apareceram depois mais alguns rapazitos também a vender arrufadas, mas ele mandou-os embora, dizendo-lhes que tinham sido «batidos» pela «cachopinha». Quando Mrs. Morel se levantou, toda a família dispersou. Era uma sorte para todos eles quando a mãe ficava até mais tarde na cama num dia de semana. Paul e Arthur podiam ficar a ler à vontade antes do pequeno-almoço e depois tomar a refeição sem terem de se lavar primeiro e sentar-se à mesa em mangas de camisa. Este era outro dos luxos dos feriados. A sala estava aquecida e toda a casa se libertava de preocupações e ansiedades.
Enquanto os rapazes liam, Mrs. Morel foi para o jardim. Viviam agora numa nova casa, uma casa velha, também em Scargill Street, perto da que tinham ocupado anteriormente e de onde tinham saído logo após a morte de William. Um grito de excitação chegou directamente do jardim:
– Paul... Paul... Vem cá ver uma coisa!
Era a voz da mãe. Paul atirou o livro para o lado e saiu. O jardim era muito comprido e terminava num campo cultivado. Estava um dia cinzento e frio, batido por um vento agreste vindo das bandas do Derbyshire. Dois campos mais adiante começava Bestwood, um emaranhado de telhados e casas de tijolo vermelho, de onde sobressaía a torre da igreja e o pináculo da capela paroquial. Para trás, sucediam-se florestas e colinas até aos picos cinzentos e esbatidos da serra de Pennine.
Paul pôs-se à procura da mãe. A cabeça dela despontou entre as groselheiras ainda tenras.
– Vem cá! – disse ela.
– Para quê? – perguntou ele.
– Vem cá para veres uma coisa!
Ela tinha estado a examinar os pequenos botões das groselheiras. Paul foi ao seu encontro.
– E pensar que, aqui onde estão, podia nunca ter dado com eles! – disse Mrs. Morel.
O filho colocou-se ao seu lado. Por debaixo da cerca, num pequeno canteiro, havia um emaranhado de folhas finas, como se nascidas de bolbos ainda imaturos, com três campainhas em flor. Mrs. Morel apontou para as três florinhas muito azuis.
– Olha para elas! – exclamou. – Estava eu muito entretida a examinar as groselheiras, quando pensei cá com os meus botões, «Está ali qualquer coisa muito azul .... será o resto de algum saco de açúcar?» E olha só! Qual saco de açúcar! Três glórias-da-neve, e tão bonitas! Mas de onde é que teriam vindo?
– Não sei – disse Paul.
– São mesmo uma maravilha! E eu que pensava que conhecia todas as ervas e folhas neste jardim. E não é que estas se deram bem...? Repara que é a groselheira que as protege. Não são debicadas nem pisadas!
Paul baixou-se e levantou as corolas das pequenas flores azuis em forma de campainha.
– Têm uma cor magnífica!
– Têm, não têm? – exclamou a mãe. – Suponho que vêm da Suíça, onde dizem que há coisas maravilhosas. Imagina-as só em contraste com a neve! Mas como é que elas terão vindo aqui parar? O vento não as podia ter trazido, pois não?
Paul lembrou-se então de ter plantado ali uma porção de bolbos para amadurecerem.
– E não me disseste nada – disse a mãe.
– Pois não, estava a pensar deixá-las aqui só até terem medrado.
– Estás a ver?! E eu podia não as ter visto. Nunca em toda a minha vida tive uma glória-da-neve no jardim.
Mrs. Morel estava muito excitada e orgulhosa. O jardim era para ela uma fonte de infinito prazer. Paul dava graças por a mãe viver numa casa com um grande jardim que se estendia até ao campo. Todas as manhãs, após o pequeno-almoço, ela saía e deambulava feliz pelo jardim. E, na verdade, conhecia todas as ervas e folhas no seu jardim.
Todos compareceram para o tal passeio. Prepararam um farnel e o grupo partiu feliz e animado: debruçaram-se do alto do muro da azenha; atiraram papéis para dentro de água numa das extremidades do túnel e ficaram a vê-los sair pela outra; pararam no meio da passagem aérea para peões da estação de Boathouse, fascinados com o brilho gélido dos carris.
– Vocês deviam era ver o «foguete» que passa aqui às seis e meia – disse Leonard, cujo pai era guarda de uma passagem de nível. – Nem sequer o ouvem zunir, rapazes! – E o pequeno grupo seguiu com o olhar nos carris que conduziam a Londres e os que conduziam à Escócia, deixando-se inebriar por estes dois lugares mágicos.
Em Ilkeston, os mineiros aguardavam em grupos a abertura das tabernas. Era uma cidadezinha de ócio e divertimento. Em Stanton Gate, a oficina de fundição ardia incandescente. Eles iam conversando animadamente sobre tudo o que viam. Em Trowell, atravessaram a fronteira do Derbyshire para o Nottinghamshire, e chegaram a Hemlock Stone à hora de almoço. O campo povoava-se de pessoas vindas de Nottingham e Ilkeston.
Estavam à espera de encontrar um monumento digno e respeitável, mas descobriram apenas uma pedra, pequena e rugosa, semelhante a um cepo torcido, ou a um cogumelo putrefacto, despontando pateticamente no meio do descampado. Leonard e Dick gravaram logo as suas iniciais – L.W. e R.P. – na velha pedra de arenito vermelho, mas Paul não o fez, pois tinha lido no jornal críticas mordazes aos gravadores de iniciais, que não encontravam melhor caminho para a imortalidade. E, como não podia deixar de ser, todos treparam à pedra para contemplarem o panorama.
Em baixo, nos campos, rapazes e raparigas, todos eles operários e operárias, comiam ou brincavam. Mais além avistava-se o jardim de um velho solar, cercado de teixos, moitas frondosas e cercaduras de flores amarelas de açafrão.
– Olha que jardim tão tranquilo – disse Paul para Miriam.
Ela contemplou os teixos negros e os crocos amarelos e olhou para ele agradecida. Quando estavam acompanhados por outras pessoas, ele parecia não lhe pertencer; era diferente, não era aquele Paul que compreendia o mais leve estremecimento da sua alma misteriosa, mas uma outra pessoa, que falava uma linguagem diferente da sua. Ah, como isso a magoava e lhe enfraquecia a nitidez da percepção! Só se sentia reviver quando ele vinha ao seu encontro sem esse outro Eu de casta inferior. Mas agora ele tinha-lhe pedido para olhar o jardim, tentando desta forma chegar até ela. Sem paciência para aturar o grupo, Miriam entregou-se à contemplação daquele jardim tão calmo, rodeado de tufos de açafrão amarelo. Uma sensação de quietude, quase de êxtase, envolveu-a. Era como se estivesse sozinha com ele no jardim.
Mas ele abandonou-a novamente e foi juntar-se ao grupo. Em breve iniciaram o regresso a casa. Miriam deixou-se ficar para trás, sozinha. Não se enquadrava. Raramente se relacionava com alguém: na verdade, a sua grande amiga, companheira e amante era a natureza. Viu o sol declinar languidamente. Nas sebes frias e sombrias luziam algumas folhas vermelhas. Sem pressa, detinha-se para as colher com ternura, apaixonadamente. Os seus dedos acariciavam as folhas com amor e o coração incendiava-se-lhe de paixão.
De súbito, apercebeu-se de que estava sozinha numa estrada desconhecida e apressou-se. Depois de uma curva, encontrou Paul debruçado sobre qualquer coisa que ela não conseguia ver, mas que ele observava atentamente, aplicando-se com paciência, intento, e até algum desespero. Miriam hesitou em aproximar-se.
Ele continuava concentrado em plena estrada. Na tarde cinzenta, tão desprovida de cor, um fio dourado de sol, ao longe, parecia fazê-lo sobressair em sombrio baixo-relevo. Ela contemplou-o, delgado e firme, e era como se ele lhe tivesse sido oferecido pelo sol. Uma dor profunda penetrou-a e soube então que tinha de o amar. Tinha-o finalmente descoberto, descoberto nele uma rara potencialidade, descoberto a sua solidão. Tremeu emocionada, como se estivesse perante uma «Anunciação», e aproximou-se devagar.
Ele, finalmente, levantou os olhos.
– Oh! – exclamou, agradecido. – Esperaste por mim!
Ela descobriu uma sombra profunda nos seus olhos.
– O que aconteceu? – perguntou.
– A mola partiu-se.
E ele mostrou-lhe o seu chapéu-de-chuva danificado. Subitamente, um pouco envergonhada, ela apercebeu-se de que não fora ele quem estragara o chapéu-de-chuva, mas que o responsável era Geoffrey.
– Afinal era um chapéu-de-chuva velho, não era? – disse ela. Miriam não entendia a razão de tão exagerado zelo, pois ele não era geralmente de se prender com ninharias.
– Mas este era o chapéu-de-chuva do William... e a minha mãe vai ter de saber – disse ele baixinho, tentando pacientemente consertar o chapéu-de-chuva. Estas palavras rasgaram-na como uma lâmina. Eram a confirmação da imagem que tinha dele! Olhou-o. Havia nele, porém, uma certa reserva, e ela não se atreveu a confortá-lo, nem mesmo a falar-lhe com meiguice.
– Vamos – disse ele –, não consigo arranjá-lo.
E seguiram em silêncio estrada fora.
Iam eles nessa mesma tarde a passar em Nether Green, por entre o arvoredo, quando ele lhe confidenciou, num tom algo irritado, como se lutando para se autoconvencer.
– Sabes – disse com esforço –, se uma pessoa ama, a outra também ama.
– Ah! – exclamou ela. – A minha mãe disse-me o mesmo quando eu era pequena: «O amor gera o amor.»
– Sim... algo parecido com isso... penso que deve ser isso.
– Espero que sim... porque, se não fosse assim, o amor seria algo de terrível – acrescentou ela.
– Mas é isso que acontece... pelo menos com a maioria das pessoas – respondeu ele.
E Miriam pensando que ele estivesse mais animado, sentiu-se fortalecida. Tinha considerado aquele encontro fortuito na vereda como uma revelação. E este diálogo ficou gravado na sua mente como palavra de lei.
Agora, estava com ele e do lado dele. Quando, pela mesma altura, Paul ofendeu a família dela com um insulto arrogante, ela apoiou-o e achou que ele tinha razão.
Sonhava agora com ele de uma forma viva e inesquecível. Mais tarde, os sonhos voltaram, tendo evoluído para estados psicológicos mais subtis.
Na segunda-feira de Páscoa, o mesmo grupo fez uma excursão até ao solar de Wingfield. Foi um momento de grande excitação para Miriam ao apanhar o comboio em Lethey Bridge, por entre o alvoroço da multidão num dia feriado. Saíram do comboio em Alfreton. Paul estava interessado na rua e nos mineiros a passearem os seus cães. Aquela era uma nova raça de mineiros. Miriam não se sentiu viver senão quando chegaram à igreja. Todos se mostravam algo acanhados para entrarem na igreja com os sacos da merenda, pois tinham receio de serem expulsos. Leonard, um rapaz magro e brincalhão, foi o primeiro a entrar, e Paul, que teria preferido morrer a ser mandado embora, foi o último. A igreja estava enfeitada para a Páscoa: centenas de narcisos brancos pareciam desabrochar da pia baptismal, e a luminosidade era difusa e colorida, filtrada pelos vitrais e animada por um aroma subtil a lírios e narcisos. A alma de Miriam inflamou-se nesta atmosfera. Paul, sensível à envolvência do local, receava não saber comportar-se à altura. Miriam voltou-se para ele. Ele correspondeu. Estavam juntos. Paul não quis passar para lá da divisória da comunhão, e ela apreciou o seu gesto. A sua alma elevou-se em orações ao lado dele. Paul sentia um estranho fascínio por lugares religiosos e obscuros. Todo o seu misticismo latente palpitava de vida. Ela sentia-se atraída por ele. Ele estava nela, como uma oração.
No adro da igreja, os narcisos e os junquilhos já tinham desabrochado e brilhavam ao sol como se flutuassem. As ovelhas, no parque, faziam vibrar o ar com os seus múltiplos e ténues balidos. Leonard e Dick entraram numa taberna para tomar uma bebida, para grande tristeza de Paul e Annie.
– Para que entraram na taberna? – perguntou Paul aborrecido.
– Bem – disse Dick, sorrindo –, só lá fomos beber uma limonada.
– Podiam muito bem ter ido à venda – disse Annie.
– À venda! – exclamou Leonard. – Estão a imaginar-nos... nós... ingleses de gema, a beber limonada na venda?
– Não – respondeu Paul. – Mas imagino-te com a tua enorme caneca de cerveja... inglesa de gema.
– E que mal te faz a minha caneca? – disse Leonard, limpando a boca, por sinal enorme.
Miriam só raramente falava com os outros rapazes. Tinham sido malcriados com ela uma vez e, desde essa altura, mantinha-se geralmente calada.
Passava do meio-dia quando subiram a ladeira íngreme que conduzia ao solar. Tudo em redor brilhava com suavidade, à luz de um sol quente, intenso e estimulante. As celidónias e as violetas estavam em flor. A natureza transbordava de felicidade. Tudo era perfeito: o esplendor da hera, os tons suaves e cinzentos, atmosféricos, dos muros do castelo, a harmonia que rodeava as ruínas.
O solar era de pedra dura cinzento-pálido, e as paredes exteriores brancas e repousantes. Os jovens estavam extasiados. Sentiam-se excitados, quase receosos de que o prazer da exploração destas ruínas lhes fosse negado. No primeiro pátio, situado entre muros altos e derrubados, havia algumas carroças com os varais abandonados pelo chão, e os aros das rodas cintilavam em tons vermelho-dourado de ferrugem. A serenidade era total.
Todos se mostravam desejosos de pagarem os seis dinheiros da entrada, posto o que transpuseram a medo pelo arco harmonioso e bem lançado que dava acesso ao pátio interior. Mostravam-se tímidos. No local onde antes se erguera o muro, florescia agora um velho espinheiro. Todas as espécies de espaços abertos e salas em ruínas se abriam à sua volta, na penumbra.
– Digam lá se isto não é uma maravilha? – exclamou Leonard.
– É mesmo – acrescentou Paul.
E passaram de imediato à exploração.
– Eh, malta – chamou Leonard. – Venham ver o forno que eu descobri!
E, sem perder tempo, Leonard entrou pelo buraco. Dick e Paul entraram atrás dele e sentaram-se os três no chão a gritar, como se estivessem nas entranhas da terra.
– Aqui dava bem para assar um boi, ou até dois – disse Nick.
– E um veado ou dois – acrescentou Paul.
– E um burro ou dois – rematou Leonard, pondo-se a zurrar muito alto, enquanto os outros dois lhe batiam.
Paul voltou a sair para o ar livre e a exploração continuou. Finalmente, encontraram Geoffrey e as raparigas. Geoffrey estava a comer.
– Parece que tá na hora de dar ao dente – disse Leonard.
– Eu já m’adiantei – respondeu Geoffrey, que não fizera outra coisa desde que o grupo partira.
– Onde é que nos podemos sentar? – perguntou Miriam.
– Vamos para a sala dos banquetes – alvitrou Paul.
– Como é que sabes que aquela é a sala dos banquetes? – perguntou Leonard.
– Vi numa pintura.
– Pois então, toca a sentar – disse Leonard.
No enorme salão em ruínas, com as paredes frias erguidas para o céu azul, lá se sentaram todos a comer ao sol, observando os pássaros que chilreavam pousados no florão da ampla janela.
– Então, D. Cogumelo – disse Leonard, virando-se para Paul –, sois servido desta empada de veado?
– Mil agradecimentos, D. Trinca-Espinhas – respondeu Paul. – Comerei antes esta coxinha de pão com queijo.
– Por obséquio – disse Geoffrey –, podeis apertar-vos mais, pra eu me poder sentar?
– Perdoai, Insigne Cavaleiro – respondeu Leonard. – Mas será tão grande assim vossa gordura?
– Paul – disse Annie –, tens aqui o teu ovo cozido.
– Ilustres cortesãos, deleitamo-nos hoje com um festim de ovos de aves fabulosas, postos pela nossa única fénix, e ostentando todos eles o nosso brasão, tal como neles foi gravado pelas nossas aves mais colaborantes – disse Paul.
– Ou seja... um montinho de porcaria – disse Leonard.
– E direi mais... Um brasão que é o nosso orgulho desde há muitas gerações, ámen! – disse Annie.
– Oh, sublime insígnia! – rematou Paul, fazendo Miriam desatar a rir.
Depois do almoço partiram mais uma vez à exploração das ruínas. Desta feita, as raparigas acompanharam os rapazes, que assumiram o papel de guias e professores. Uma torre alta e deveras periclitante surgiu diante dos seus olhos ao virarem uma esquina, e os rapazes logo informaram que Mary, rainha da Escócia, tinha sido ali encarcerada.
– Imaginem a rainha a subir por aqui acima... – disse Miriam em voz baixa, enquanto subia as escadas tortuosas.
– Isso, se ela se conseguisse levantar – respondeu Paul. – Sofria muito do reumatismo. Aposto que a tratavam o pior possível.
– E não achas que merecia? – perguntou Miriam.
– Acho que não. Ela era apenas uma pessoa jovial.
Continuaram a subir a escada de caracol. Uma rajada agreste entrou pelas seteiras e rodopiou pelo vão das escadas, levantando a saia de Miriam em balão, para seu grande embaraço, até que Paul agarrou na barra do vestido e o puxou para baixo. Fê-lo com destreza e simplicidade, como se lhe apanhasse uma luva do chão. Ela recordaria para sempre este momento.
A hera pendia frondosa, vetusta e bela, em torno do torreão em ruínas. Havia também algumas cravinas esparsas, com os seus botões tristes e pálidos. Miriam quis debruçar-se para apanhar um raminho de hera, mas Paul não deixou, ficando ela atrás dele, a receber um a um cada raminho que ele lhe entregava, num gesto do mais genuíno cavalheirismo. A torre parecia ondular ao vento. Do alto avistavam-se milhas e milhas de terreno arborizado e terreno de pastagens.
A cripta subjacente ao solar era muito bela e em perfeito estado de conservação. Paul não perdeu a oportunidade de a desenhar. Miriam ficou junto dele, a pensar em Mary, rainha da Escócia, fitando os montes de onde não vinha qualquer ajuda, com os seus olhos exaustos e desesperados, que não compreendiam a miséria; imaginou-a também sentada naquela cripta, escutando a história de um Deus tão frio quanto o lugar onde se encontrava.
Puseram-se de novo a caminho, exultantes, lançando um último olhar àquele solar a que se sentiam presos e que se erguia tão nítido e imponente no alto da colina.
– Imagina que aquela quinta era tua – disse Paul a Miriam.
– Sim!!
– Não era maravilhoso eu ir lá visitar-te?
Encontravam-se agora num descampado com muros de pedra, de que ele tanto gostava, e que, embora só a algumas milhas de casa, parecia tão estranho a Miriam. O grupo seguia agora disperso. Ao atravessarem um extenso prado, muito íngreme, com o sol por trás, descendo por um caminho salpicado de incontáveis pontinhos cintilantes, Paul entrelaçou os dedos no saco de rede de Miriam, que logo sentiu Annie atrás de si, atenta e ciumenta. Mas o prado estava banhado numa luz gloriosa e o caminho luzia como uma jóia, e era tão raro ele dar-lhe algum sinal... Conservou por isso os dedos muito quietos entre as cordas do saco, aflorando os dedos dele. E o mundo dourou-se inteiro, como se numa visão.
Finalmente, chegaram à vilazinha isolada e pardacenta de Crich, situada a grande altura. Atrás da vila ficava o famoso Crich Stand, que Paul avistava do jardim de sua casa. O grupo estugou o passo. Grandes extensões de terrenos estendiam-se em baixo a toda a volta. Os rapazes estavam ansiosos por chegarem ao topo da colina, que era encimada por um cabeço redondo, de que metade já se tinha desmoronado, e no topo do qual se erguia um monumento antigo, grotesco e atarracado, usado noutros tempos para enviar sinais para as planícies do Nottinghamshire e do Leicestershire.
O vento soprava forte, lá no alto, naquele local tão exposto, e a única forma de se estar protegido era ser pregado pelo vento à parede da torre. Aos seus pés abria-se o precipício, de onde se extraía a pedra calcária. Em baixo, reinava uma confusão de colinas e pequenos povoados: Matlock, Ambergate, Stoney Middleton. Os rapazes estavam ansiosos por descortinarem a Igreja de Bestwood, que ficava muito distante, no meio da floresta, um pouco para a esquerda. Mas ficaram tristes ao verem que a igreja parecia erguer-se numa planície – as colinas do Derbyshire apagavam-se na monotonia das terras baixas que se estendiam para sul.
Miriam estava um pouco assustada com o vento, mas os rapazes estavam a gostar. Continuaram a caminhada, calcorreando milhas e milhas, até Whatstandwell. Todos estavam esfomeados, pois já tinham devorado a comida toda que levavam e já lhes restava pouco dinheiro para regressarem a casa. No entanto, ainda conseguiram arranjar uma broa e um pão de passas, que cortaram em fatias finas com os canivetes, sentando-se a comer num muro, perto da ponte onde o rio Derwent corria límpido, ao som do chiar dos freios do comboio em Matlock, perto da estalagem.
Paul estava pálido de cansaço. Tinha sido o chefe do grupo durante todo o dia, e agora estava morto de cansaço. Miriam, apercebendo-se disso, manteve-se junto dele, e Paul entregou-se à sua guarda.
Tiveram de esperar uma hora na estação de Ambergate. Os comboios passavam lotados com excursionistas que regressavam a Manchester, Birmingham e Londres.
– Também podíamos ir para lá... as pessoas facilmente pensariam que íamos para muito longe – disse Paul.
Chegaram a casa bastante tarde. No caminho de regresso a casa, com Geoffrey, Miriam viu a lua nascer redonda, rubra e velada, e sentiu-se realizada interiormente.
Miriam tinha uma irmã mais velha, Agatha, que era professora. A hostilidade entre as duas irmãs era notória. Miriam considerava Agatha uma pessoa demasiado mundana e o seu sonho era ser também professora primária.
Um sábado à tarde, Agatha e Miriam estavam a vestir-se no primeiro andar. O quarto delas ficava por cima do estábulo. Era um quarto de tectos baixos, não muito grande e de paredes nuas. Miriam tinha pregado na parede uma reprodução da Santa Catarina, de Veronese. Fascinava-a aquela mulher, sentada na janela a sonhar. As suas janelas eram demasiado pequenas para lá se poder sentar. Todavia, a da frente estava coberta de madressilva e hera americana, e de lá avistavam-se as copas do bosque de carvalhos, por detrás do quintal, enquanto a minúscula janela traseira, pouco maior do que um lenço, não passava de uma fresta voltada para oriente, para a aurora que se acendia atrás das colinas arredondadas que ela tanto amava.
As duas irmãs não falavam muito uma com a outra. Agatha, bonita, baixa e determinada, tinha-se revoltado contra a atmosfera do lar e contra a doutrina do «dar a outra face». Enfrentava agora o mundo exterior, lutando para se tornar independente. Insistia nos valores da cultura, nas aparências, nas boas maneiras, na posição social, tudo coisas que Miriam de bom grado teria ignorado.
Quando Paul chegou, ambas preferiram ficar invisíveis lá em cima, para poderem descer as escadas a correr, abrirem a portinhola do fundo das escadas e verem-no entrar, ansioso por encontrá-las. Miriam tentava desesperadamente enfiar pela cabeça o rosário que ele lhe tinha oferecido, e que ficara preso no fino emaranhado dos seus cabelos. Finalmente, conseguiu colocá-lo, e as contas de madeira, castanho-avermelhado, assentavam lindamente no seu pescoço fresco e mate. Era uma rapariga bem lançada e muito bonita. Contudo, só conseguia ver uma parcela do seu corpo de cada vez no pequeno espelho pregado na parede caiada de branco. Agatha tinha comprado um espelho só para ela, com o tamanho certo, que encostava à parede sempre que precisava. Miriam estava perto da janela. De repente, escutou o estalido bem conhecido do cadeado e viu Paul a abrir a cancela com um pontapé, entrando no pátio com a bicicleta. Ele olhou para cima e ela escondeu-se. Paul avançava com indiferença, e a bicicleta acompanhava-o como se fosse um objecto animado.
– O Paul já chegou! – exclamou Miriam.
– Não estás contente? – disse Agatha, evidenciando sarcasmo.
Miriam estava ainda surpresa e perplexa.
– Então, estás ou não estás? – insistiu a outra.
– Estou, mas não quero que ele perceba e pense que eu estava à espera.
Miriam estava perplexa. Ouviu-o meter a bicicleta no estábulo e falar com Jimmy, um cavalo decrépito que tinha trabalhado nas minas.
– Atão, Jimmy, meu amigo, como vai isso? Velho e cansado, hem? Pois é, é uma pena, amigo!
Escutou o som da corda a roçar na argola, quando o cavalo levantou a cabeça às carícias do rapaz. Como ela gostava de o ouvir quando ele pensava que o cavalo estava ali para o escutar. Porém, havia uma serpente no seu Éden. Ela procurava fervorosamente descobrir dentro si se amava Paul Morel. Sentia que poderia haver algo de errado nesse impulso. Enredada em sentimentos confusos, receava desejá-lo e condenava-se por isso. E logo a penetrou uma dor intensa, de vergonha, e todo o seu ser se contraiu num espasmo de tortura. Desejaria ela Paul Morel, e saberia ele que ela o desejava? Que subtil infâmia a ameaçava! E sentiu a alma enleada em nós de vergonha.
Agatha vestiu-se primeiro e desceu rapidamente para o rés-do--chão. Miriam ouviu-a cumprimentar o rapaz num tom jovial; conhecia bem o brilho dos olhos da irmã quando saudava alguém naquele tom. Ela própria se teria sentido corajosa por tê-lo cumprimentado daquela forma. Contudo, sentia dentro da alma a auto-flagelação de o desejar, aliada a um sentimento de tortura. Em perplexa amargura, ajoelhou-se e rezou:
– Senhor, não permitas que eu ame o Paul Morel. Afasta de mim esse sentimento, se achares que eu não devo amá-lo.
Algo de estranho a fez interromper a oração. Levantou a cabeça e reflectiu. Como é que amá-lo poderia ser errado? O amor era uma dádiva de Deus e, no entanto, causava-lhe vergonha. Era por ele, por Paul Morel, que a sentia. Mas esse não era assunto que lhe dissesse respeito, era só entre ela e Deus. Tinha de fazer o sacrifício, um sacrifício por Deus e não por Paul Morel ou por si mesma. Passados alguns minutos, escondeu a cara na almofada e disse:
– Meu Deus, se é Tua vontade que eu o ame, então submeto-me, como Cristo se submeteu e morreu pelas almas dos pecadores. Faz com que eu o ame fervorosamente, pois ele é Teu filho.
Permaneceu de joelhos por mais alguns instantes, serena, mas profundamente emocionada, com o cabelo negro espalhado sobre os quadrados da colcha de retalhos, vermelhos uns, outros com raminhos de alfazema. Rezar era algo de quase essencial para ela. Depois, caía naquele arrebatamento de auto-sacrifício, identificando-se com um Deus que fora sacrificado, acto que representa para tantas almas humanas a sua bênção mais sublime.
Quando Miriam desceu, Paul estava recostado no cadeirão, em acesa discussão com Agatha, que ridicularizava uma pequena pintura que ele tinha trazido para lhe mostrar. Miriam olhou-os e fugiu à sua frivolidade, indo para a sala de estar para ficar sozinha.
A hora do chá chegou sem que ela tivesse tido possibilidade de falar com Paul; mostrava-se tão distante que ele pensava tê-la ofendido.
Miriam quebrou a rotina de ir todas as terças-feiras à tardinha à biblioteca de Bestwood. Depois de se ter encontrado regularmente com Paul durante toda a Primavera, um número de incidentes insignificantes e pequenos reparos vindos da família levaram-na a aperceber-se das suas atitudes, e decidiu pôr fim às saídas. Assim, numa bela tarde, informou Paul de que não poderia voltar a ir ter a casa dele às terças-feiras à tarde.
– Porquê? – perguntou ele, com brusquidão.
– Por nada. Porque acho melhor assim.
– Muito bem.
– Mas... – gaguejou ela – ... se quiseres estar comigo, podemos ir juntos.
– E encontramo-nos onde?
– Algures... onde tu quiseres.
– Não te quero encontrar em lado nenhum. Não compreendo porque é que não podes continuar a vir buscar-me. Mas se não vieres, não quero encontrar-me contigo.
Assim, as terças-feiras à tarde, esses dias que tinham sido tão especiais para ela e para ele, terminaram. E Paul passou a ocupar esse tempo a trabalhar. Mrs. Morel viu com bons olhos esta decisão.
Paul não aceitava que fossem namorados. A intimidade entre eles tinha sido mantida ao nível do abstracto, era um assunto da alma; visto não passar de um conceito e de uma luta exaustiva ao nível da consciência, ele via nela apenas uma amizade platónica e negava peremptoriamente a existência de algo mais. Miriam permanecia em silêncio, ou então concordava sem discutir. E ele sentia-se um idiota, pois não entendia o que se passava no seu íntimo. Através de um acordo tácito, ignoravam os reparos e as insinuações das pessoas conhecidas.
– Não somos namorados, mas apenas amigos – disse-lhe ele. – Nós sabemos que é assim. Deixa-os falar. Não importa o que dizem.
Por vezes, quando caminhavam juntos, ela metia o braço timidamente no dele. Mas ele retraía-se sempre, e ela sabia-o, o que dava lugar a um conflito violento. Com Miriam, Paul sentia-se sempre no mais alto nível de abstracção, e a sua chama de amor natural transformava-se em energia mental. E ela aceitava-o assim. Se ele estivesse bem-disposto e, como ela dizia, brincalhão, ela aguardava que ele voltasse ao normal, que ele se transformasse, e o visse a lutar de novo consigo mesmo, empolgado, apaixonado, tentando compreender a situação. Nesta paixão pela compreensão, as suas almas tocavam-se e ele era totalmente dela. Todavia, tinha de se abstrair primeiro.
Assim, ela dar-lhe o braço era para ele quase uma tortura. A sua consciência parecia desintegrar-se. A parte do corpo onde ela lhe tocava ardia com a fricção. Era uma batalha mortal para ambos e por isso ele a tratava com crueldade.
Uma tardinha, nos meados do Verão, Miriam foi chamá-lo a casa, chegando transpirada devido à subida. Paul estava sozinho na cozinha e ouviam-se os passos da mãe no primeiro andar.
– Vem, vou mostrar-te as ervilhas-de-cheiro – disse ele.
Foram até ao jardim. O céu, por detrás da cidade e da igreja, era vermelho-alaranjado, e o jardim inundava-se de uma luminosidade estranha e quente que dava sentido a cada folha. Paul avançou pelo estreito carreiro ladeado de ervilhas-de-cheiro, colhendo flores creme e azul-pálido por aqui e por ali. Miriam seguia-o, aspirando as fragrâncias. As flores atraíam-na com tal intensidade que ela sentia necessidade de as tornar uma parte de si mesma. Quando se baixava e cheirava uma flor, era como se ambas se amassem uma à outra. Paul detestava vê-la fazer isso. Ela expunha-se demasiado naquela sua atitude, até mesmo intimamente.
Assim que o ramo ficou de bom tamanho, regressaram a casa. Ele escutou por momentos os passos calmos da mãe no andar de cima e, depois, disse:
– Vem cá, deixa-me enfeitar-te com elas.
E espetou duas ou três de cada vez à volta do decote do vestido, recuando em seguida para admirar o efeito.
– Sabes – disse ele, tirando o alfinete da boca – a mulher devia colocar sempre as flores em frente ao espelho.
Miriam sorriu. Para ela, as flores deviam ser colocadas no vestido sem qualquer preocupação. Se Paul se queria dar ao trabalho de lhe espetar as flores no vestido com rigor, isso era lá com ele.
Paul ficou muito ofendido com a gargalhada que ela deu.
– Algumas mulheres fazem-no.... as que são como devem ser – disse ele.
Miriam sorriu novamente, mas desta vez melancólica, por ele a ter misturado com as mulheres em geral. Teria ignorado a afronta, se tivesse partido de outro homem qualquer. Mas, vinda dele, magoava-a.
Estava ele a terminar o arranjo de flores quando ouviu os passos da mãe nas escadas. Espetou o último alfinete à pressa e afastou-se.
– Não deixes que a minha mãe perceba – disse ele.
Miriam pegou nos livros e ficou à entrada da porta, olhando desapontada para o belíssimo pôr do Sol. Não tornaria a vir a casa de Paul, disse ela.
– Boa tarde, Mrs. Morel – cumprimentou-a Miriam, respeitosamente. As suas palavras soaram como se ela não tivesse o direito de estar ali.
– Ah, és tu, Miriam! – respondeu Mrs. Morel friamente.
Paul insistia em que todos aceitassem a sua amizade com a rapariga, e Mrs. Morel era demasiado esperta para demonstrar abertamente qualquer relutância.
Só quando ele fez vinte anos é que a sua família teve possibilidades económicas para ir de férias. Desde que casara, Mrs. Morel nunca tinha ido de férias, excepto para visitar a irmã. Finalmente, Paul tinha conseguido juntar dinheiro suficiente para levar a família de férias. O grupo era o seguinte: alguns amigos de Annie, um amigo de Paul, um rapaz do escritório onde Paul tinha estado anteriormente e Miriam.
A reserva dos quartos provocou grande alarido. Paul e a mãe debateram várias vezes o assunto. Queriam uma casinha rústica mobilada para duas semanas. Ela achava que uma semana seria suficiente, mas ele insistia em duas. Paul saiu logo de manhã, antes de o correio chegar. Assim, quando voltou, as primeiras palavras da mãe foram:
– Paul, sabes uma coisa... aquela espertalhona de Skegness quer só quatro guinéus por semana por aquele seu barraco miserável.
– Então, vai ter muito de esperar – disse Paul.
– Também acho – respondeu a sua mãe, indignada. Nessa mesma noite, Paul escreveu outra carta. Receberam finalmente resposta de Mablethorpe – uma casinha que preenchia os seus desejos, por trinta xelins por semana. Houve uma explosão de alegria. Paul estava radiante pela mãe. Agora sim, ela ia ter umas verdadeiras férias. À noite, ficavam sentados a imaginar como seriam. Entretanto, chegaram Annie, Leonard, Alice e Kitty. Havia grande alegria e expectativa. Paul contou a Miriam. Ela pareceu feliz, mas comedida. Porém, o lar dos Morels vibrava de excitação.
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