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FILHOS E AMANTES
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Biblio VT

 

 

 

 

Paul, sempre atrás dele, contornou o balcão quadrangular. A sala onde estava ficava no segundo andar. Tinha um grande buraco no meio do chão, rodeado por um muro de balcões, e era por essa abertura que subiam e desciam os elevadores e passava a luz para o andar de baixo. No tecto, na mesma direcção, havia também um buraco oblongo, e, olhando para cima, podiam ver-se algumas máquinas para lá da cercadura de protecção do andar superior; e, logo por cima, uma clarabóia por onde entrava a luz para os três andares, tornando-se cada vez mais fraca à medida que se descia mais fundo, o que deixava o rés-do-chão às escuras e o primeiro andar na penumbra. A fábrica estava instalada no último andar, o armazém no segundo e a arrecadação no rés-do-chão. O lugar era velho e insalubre.

Paul foi levado para um canto muito escuro.

– Aqui é a secção Espiral – disse o empregado. – Tu fazes a Espiral com o Pappleworth. É ele o teu chefe, mas ainda não veio. Só chega lá para as oito e meia. Por isso, se quiseres, podes ir buscar as cartas a Mr. Melling, ali adiante.

E o jovem apontou para o tal velho do gabinete do fundo.

– Está bem – disse Paul.

– Está aqui uma escápula para pendurares o boné... e aqui tens os livros de registo da correspondência. Mr. Pappleworth já não deve demorar.

E o jovem, muito magro, afastou-se altaneiro, com grandes passadas desenvoltas, que ressoavam secas no soalho.

Passados um ou dois minutos, Paul parou à porta do gabinete envidraçado. O velho funcionário, com o seu bonezinho, olhou-o por cima dos óculos.

– Ora muito bom dia – disse, afável e enfático. – Queres as cartas para levares para a Espiral, não é, Thomas?

Paul não gostou que ele lhe chamasse Thomas, mas pegou nas cartas e voltou para o seu recanto escuro, onde o balcão dobrava em ângulo, onde acabava a prateleira das embalagens, e onde, mesmo ao canto, se abriam três portas. Paul sentou-se num banco alto e começou a ler as cartas, pelo menos, aquelas cuja letra era mais legível. Diziam o seguinte:

«Queira enviar-me por favor, com a máxima urgência, um par de meias de seda Espiral para senhora, sem pé, idênticas às que me enviou o ano passado... altura... da anca ao tornozelo... etc.»

Ou então: «O Major Chamberlain deseja renovar o anterior pedido de uma ligadura suspensória em seda, não elástica.»

Muitas destas cartas, algumas delas em francês ou norueguês, eram um quebra-cabeças para o rapaz, que aguardava ansioso, sentado no banco, a chegada do «chefe». Às oito e meia, sofreu um ataque de timidez quando as raparigas do andar de cima passaram por ele a correr.

Mr. Pappleworth apareceu por volta das vinte para as nove, a mastigar uma pastilha elástica de mentol, quando já todos estavam a trabalhar. Era um homem magro e pálido, de nariz vermelho e gestos rápidos e peremptórios, trajando com austera elegância. Devia andar pelos trinta e seis anos e havia nele algo de canino, garboso, brincalhão e astuto, afectuoso talvez, mas simultaneamente algo de ligeiramente desprezível.

– És o meu novo ajudante? – perguntou. Paul pôs-se de pé e disse que sim.

– Foste buscar as cartas?

Mr. Pappleworth continuou a mastigar a pastilha.

– Sim.

– Copiaste-as?

– Não.

– Então anda cá, vamos pôr-te operacional. Já trocaste de casaco?

– Não.

– O melhor é trazeres um casaco velho e guardá-lo aí.

As últimas palavras foram pronunciadas com a pastilha apertada de lado, entre os queixais. Desapareceu na penumbra, por detrás da enorme prateleira das embalagens, e reapareceu já sem casaco, com uma elegante camisa às riscas com os punhos dobrados, deixando a descoberto uns braços magros e peludos. Depois, enfiou o outro casaco. Paul reparou na magreza deste homem e em como as calças faziam pregas no traseiro. Pegou num banco, puxou-o para junto do rapaz e sentou-se.

– Senta-te – disse o homem. Paul sentou-se. Mr. Pappleworth estava muito próximo dele. Pegou nas cartas, tirou um livro comprido, de registos, da prateleira em frente, abriu-o, pegou numa caneta e disse:

– Agora, presta atenção... Vais copiar estas cartas para aqui.

Fungou duas vezes, deu uma mastigadela na pastilha, olhou demoradamente para uma carta, quedou-se pensativo e deu entrada da carta rapidamente, numa caligrafia bonita e floreada. Depois, olhou de relance para Paul.

– Estás a ver?

– Estou.

– Achas que consegues fazer o mesmo... e bem feito?

– Acho que sim.

– Então, está bem... vamos lá a ver.

Saltou para o chão. Paul pegou numa caneta. Mr. Pappleworth desapareceu. Paul gostava bastante de copiar cartas, mas escrevia devagar, laboriosamente, e muito mal. Ia ele na sua quarta carta, todo feliz e atarefado, quando Mr. Pappleworth voltou.

– Ora vejamos... que tal vai isso... já ’cabaste?

Debruçou-se sobre o ombro do rapaz, sem parar de mastigar e a cheirar a mentol.

– Diabos me levem, rapaz... Mas que belo escritor que tu me saíste! – exclamou ele, trocista. – Não te rales, quantas já fizeste? Só três! Eu tinh’até tido tempo de sobra pràs comer. Continua, miúdo, e numera-as... assim, tás a ver? Continua!

Paul não largava as cartas, enquanto Mr. Pappleworth tratava de outros assuntos. Nisto, soou um apito agudo mesmo junto ao ouvido dele, e o rapaz assustou-se. Mr. Pappleworth aproximou-se, tirou um tampão de dentro de um tubo e disse, numa voz inesperadamente agreste e autoritária:

– Sim!

Paul ouviu uma voz sumida, provavelmente de mulher, a sair pelo tubo. Ficou embasbacado, pois nunca tinha visto um tubo falante.

– Bem – disse Mr. Pappleworth, num tom agastado, falando para o tubo – nesse caso, o melhor é fazer algum do trabalho em atraso.

De novo a voz aguda da mulher se fez ouvir, com um timbre bonito, mas zangado.

– Não tenho tempo para estar aqui a ouvi-la tagarelar – disse Mr. Pappleworth, e em seguida tapou o tubo.

– Vá, miúdo, despacha-te – disse ele, suplicante, virando-se para Paul. – Era a Polly aos gritos, quer as encomendas. Não consegues andar um bocadinho mais depressa? Vá... sai daí.

Pegou no livro, para imenso desgosto de Paul, e começou ele mesmo a escrever. Fazia-o depressa e bem. Uma vez terminadas as cópias, pegou numas tiras compridas de papel amarelo, com cerca de sete centímetros de largura, e preencheu as encomendas para enviar às operárias.

– É melhor prestares atenção – disse ele a Paul, sem se interromper. Paul olhou para aqueles estranhos desenhos de pernas, coxas e tornozelos, cheios de traços e números, e algumas instruções, com que o chefe preenchia as tiras amarelas. Quando acabou, Mr. Pappleworth saltou do banco.

– Vem comigo – disse ele, e, de papéis amarelos a esvoaçar na mão, desapareceu por uma porta e desceu uma escada em direcção à cave, onde ardia uma lamparina de gás. Atravessaram a arrecadação húmida e fria, depois uma sala comprida e lúgubre com uma mesa enorme assente sobre cavaletes e entraram numa sala mais pequena e acolhedora, de tectos não muito altos, que tinha sido construída como anexo do edifício principal. Nesta sala estava uma mulher de pequena estatura, com uma blusa de sarja vermelha e cabelo preto apanhado ao alto num carrapito, em atitude expectante, de galarote.

– Cá tão elas – disse Pappleworth.

– Eu penso que será «Cá estão elas»! – exclamou Polly. – As raparigas estiveram aqui à espera quase meia hora. Pense só no tempo que se perdeu!

– Pense mas é em fazer o seu trabalho e falar menos – disse Mr. Pappleworth. – Podia ter despachado outras coisas.

– Sabe muito bem que despachámos tudo no sábado – gritou Polly, avançando para ele faiscante.

– Blá-blá-blá! – arremedou-a o homem. – Aqui tem o seu novo ajudante. Não dê cabo deste como deu do outro.

– Como nós demos do outro! – repetiu Polly. – Pois é, nós damos cabo de muita coisa, olá se damos. Também lhe digo que qualquer rapaz tinha de ficar estragado depois de estar ao pé de si.

– Vá, vá... agora é hora de trabalhar, não de conversar – disse Mr. Pappleworth num tom seco e severo.

– Também há pouco era – disse Polly, afastando-se de cabeça bem erguida. Tinha um corpo pequeno e escorreito, de quarenta anos.

Na dita sala havia duas máquinas redondas, espiraladas, em cima do poial da janela. Na sala ao lado, que comunicava com a primeira e era mais comprida, havia outras seis máquinas. Algumas raparigas dignamente vestidas e de aventais brancos conversavam umas com as outras, formando um pequeno grupo.

Não têm mais nada para fazer? – disse Mr. Pappleworth.

– Só esperar por si – disse uma delas, bem bonita, rindo com gosto.

– Bom, toca a trabalhar, toca a trabalhar – disse ele. – Anda, miúdo. Da próxima vez, já sabes o caminho.

Paul correu escada acima atrás do chefe. Mandaram-no conferir algumas facturas e fazer outras. Ele arrimou-se à secretária, esforçando-se por cumprir a tarefa na sua caligrafia execrável. Nisto, Mr. Jordan aproximou-se, vindo do gabinete envidraçado, e, para grande atrapalhação de Paul, veio pôr-se mesmo por detrás dele. Subitamente, um dedo gordo e vermelho espetou-se sobre o documento que ele estava a preencher.

– Mr. J. A. Bates, Esquire! – bradou uma voz irada, junto ao seu ouvido.

Paul olhou para o «Mr. J. A. Bates Esquire» escrito na sua letra tortuosa, e perguntou-se o que estaria mal agora.

– Não te ensinaram a fazer como deve ser, enquanto andavas na escola? Se se põe «Mr.», não se põe «Esquire»... um homem não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.

O rapaz, lamentando a sua prodigalidade no modo como esbanjava títulos, hesitou e, com dedos trémulos, apagou a palavra «Mr.». Mas logo Mr. Jordan lhe arrancou a factura das mãos.

– Faz outra! Ou vais mandar isto a um cavalheiro? – E rasgou a factura azul, irritadíssimo.

Paul recomeçou, com as orelhas a arder de vergonha, sob o olhar atento de Mr. Jordan.

– Não sei o que é que eles vos ensinam na escola. Devias escrever muito melhor do que isso. Hoje em dia, os miúdos não aprendem nada a não ser recitar poesia e tocar violino... Já viu a letra dele? – perguntou Mr. Jordan a Mr. Pappleworth.

– Já... é de primeira... não é? – respondeu Mr. Pappleworth com indiferença. – Mas ele vai aprender.

Mr. Jordan resmungou qualquer coisa desagradável. Paul percebeu que o patrão ladrava mais do que mordia. Na verdade, o pequeno fabricante era suficientemente cavalheiresco, apesar do seu mau inglês, para deixar os empregados à vontade e não se prender com ninharias. Mas tinha consciência de não ter aspecto de ser o dono e senhor de tudo aquilo, e via-se por isso forçado a desempenhar o seu papel de vilão, para repor as coisas nos seus devidos lugares.

– Ora vamos lá a ver, como é que te chamas? – perguntou Mr. Pappleworth ao rapaz.

– Paul Morel.

É curioso o que as crianças sofrem para pronunciarem os seus nomes.

– Com que então, Paul Morel! Muito bem, vá, Paul Morel, toca a acabar essa coisa, e depois...

Mr. Pappleworth sentou-se num banco e começou a escrever. Uma rapariga entrou por uma porta mesmo atrás dele, depositou em cima do balcão uns artigos de malha elástica acabados de passar a ferro e voltou a sair. Mr. Pappleworth pegou na joelheira azul claro, examinou-a, confrontou-a rapidamente com a nota de encomenda amarela e pô-la de parte. Ao lado estava uma «perna» rosada, cor de carne. Conferiu os vários artigos, preencheu algumas notas de encomenda e disse a Paul que o acompanhasse. Desta vez, saíram pela porta por onde a rapariga tinha entrado. Paul viu-se no cimo de um pequeno lanço de escadas, e em baixo viu uma sala com janelas em duas das paredes e, no extremo oposto, meia dúzia de raparigas sentadas, curvadas sobre si mesmas, a costurarem à luz das janelas e a cantarem em coro, «Duas Meninas Vestidas de Azul». Ao ouvirem a porta abrir-se, todas se voltaram e viram Mr. Pappleworth e Paul a olharem para elas do outro lado da sala. Pararam de cantar imediatamente.

– Não podem fazer menos barulho? – disse Mr. Pappleworth. – As pessoas hão-de pensar que temos a casa cheia de gatas.

Uma mulher corcunda, sentada num banco alto, voltou para Mr. Pappleworth a cara comprida e circunspecta, e disse com voz de contralto:

– Só se esses forem gatos.

Mr. Pappleworth em vão tentou causar efeito para impressionar Paul. Desceu as escadas até à sala de acabamentos e dirigiu-se à corcunda, uma tal Fanny. O seu corpo era tão pequeno, empoleirado no alto do banco, que a cabeça, com grandes bandós de cabelo castanho-claro, parecia excessivamente grande, tal como o rosto, pálido e grave. Trazia um vestido de caxemira verde-escuro, e, quando pousou o trabalho nervosamente, viu-se que os seus pulsos, cingidos por punhos estreitos, eram finos e achatados. Ele mostrou-lhe uma joelheira que tinha um defeito qualquer.

– Ora – disse ela – não precisava de vir atirar as culpas para cima de mim... a culpa não é minha – disse, subindo-lhe um rubor às faces.

– Eu não disse que a culpa era sua... e agora faça o que lhe mandei! – ripostou Mr. Pappleworth, secamente.

– Não diz que a culpa é minha, mas quer fazer parecer que é – gritou a corcunda, quase a chorar. Depois, arrancou a joelheira das mãos do «chefe», dizendo: – Está bem, eu faço isso, mas não precisa de vir com duas pedras na mão.

– Aqui está o seu novo ajudante – disse Mr. Pappleworth.

Fanny voltou-se e sorriu gentilmente para Paul.

– Oh! – disse ela.

– Pois é... agora vejam lá se o estragam com mimos.

– Se alguém o estragar, não somos nós – disse ela, indignada.

– Vamos embora, Paul – disse Mr. Pappleworth.

– Au revoi, Paul – disse uma das raparigas.

Foi uma risota. Paul saiu, corado até à alma, sem dizer palavra.

O dia nunca mais acabava. Durante toda a manhã, foram os operários a vir falar com Mr. Pappleworth, e Paul a escrever ou a aprender a preparar as embalagens para a tiragem do meio-dia. À uma da tarde, ou melhor, quando faltava um quarto para a uma, Mr. Pappleworth desapareceu, para apanhar o comboio: vivia nos arredores. À uma, Paul, sentindo-se perdido, levou o cesto do farnel para a arrecadação da cave, onde estava a tal mesa comprida sobre cavaletes, e comeu à pressa, completamente sozinho naquele espaço de penumbra e desolação. Depois, foi passear para a rua. A claridade e a liberdade que sentia nas ruas tornavam-no feliz e afoito. Mas, às duas horas, voltou para o seu canto na sala grande. Não tardou que passassem as raparigas, metendo-se com ele. Eram as de mais baixa condição, as que trabalhavam no andar de cima em tarefas mais pesadas, como o fabrico de fundas e os acabamentos dos membros artificiais. Paul ficou a aguardar a chegada de Mr. Pappleworth, sem saber o que fazer, sentando-se a rabiscar nas notas de encomenda amarelas. Mr. Pappleworth chegou às vinte para as três, sentou-se e pôs-se a tagarelar com Paul, tratando o rapaz como seu igual, até na idade.

De tarde nunca havia muito que fazer, a não ser que fosse perto do fim-de-semana e as contas tivessem de ser fechadas. Às cinco horas, todos os homens foram até à «masmorra» da mesa de cavaletes, onde tomaram chá e pão com manteiga em cima das tábuas nuas e imundas, conversando com a mesma avidez e grosseria com que tomavam a refeição. No entanto, lá em cima, o ambiente era sempre alegre e desanuviado. Certamente a cave e os cavaletes deixavam-nos transtornados.

Depois do chá, quando todos os bicos de gás estavam acesos, o trabalho fluía com mais rapidez. Era preciso despachar as encomendas para o correio da tarde. As meias chegavam lá acima ainda quentes, acabadinhas de passar, directamente das oficinas. Paul já tinha passado todas as facturas. Faltava-lhe fazer agora as embalagens e endereçá-las, e depois pesar as suas encomendas na balança. Por todo o lado se ouviam vozes a gritar pesagens, o tilintar de metais, o estalar nervoso dos cordéis, a corrida ao gabinete de Mr. Melling, para os selos. Finalmente, chegou o carteiro, sorridente e bem-disposto, como seu enorme saco. Depois a agitação abrandou, Paul pegou no cesto do farnel e correu para a estação, para apanhar o comboio das oito e vinte. O dia de trabalho era exactamente de doze horas.

A mãe esperava por ele, ansiosa. Paul tinha de ir para casa a pé desde Keston, pelo que não chegou a casa antes das nove e vinte; e tinha saído de casa antes das sete da manhã. Mrs. Morel preocupava-se com a saúde do filho, mas também ela já tivera de enfrentar tantas dificuldades, que esperava que os filhos tivessem agora a mesma genica. Teriam de suportar o que fosse preciso. Assim, Paul manteve-se na Jordan, embora durante a sua permanência nesse emprego a sua saúde sofresse com a falta de luz e de ar fresco, e as longas horas de trabalho.

Quando chegou, vinha pálido e cansado. A mãe olhou para ele, mas viu-o tão satisfeito que a sua preocupação desapareceu.

– Então, como é que foi? – perguntou ela.

– Foi tão engraçado, mãe – respondeu ele. – O trabalho não é nada pesado e eles foram muito bons para mim.

– E saíste-te bem?

– Claro... só dizem que a minha letra é péssima. Mas Mr. Pappleworth... o meu chefe... disse a Mr. Jordan que eu ia aprender. Estou na Espiral, mãe. Tem de ir lá ver. É tão bom...

Paul contou tudo à mãe, tudo o que tinha visto, pensado, todos os pormenores da experiência que vivera. A única coisa que escondeu dela foi o ter escrito «Mr. J. A. Bates Esquire». Isso, ele não queria que ela soubesse; sentia muita vergonha. Também não lhe relatou nada de mais desagradável que lhe tivessem dito, só as coisas boas, tentando fazê-la crer que estava feliz e era estimado, e que a vida lhe corria de feição... o que geralmente acontecia. Contou-lhe tudo, excepto as pequenas vergonhas ou ignomínias; jamais suportaria vê-la envergonhada ou vexada por sua causa.

Paul depressa aprendeu a gostar da Jordan. Mr. Pappleworth, que tinha um certo ar de frequentador de bares, tratava-o sempre com naturalidade, como se fossem amigos de longa data. Às vezes, o chefe da Espiral irritava-se, e então mastigava pastilhas elásticas sem parar. Mesmo assim, nunca era ofensivo, mas sim uma daquelas pessoas que se magoam mais a si próprias do que aos outros com a sua irritabilidade.

– Ainda não fizeste isso? – gritava ele. – Já vi que és um mês só com domingos.

E logo se punha de novo alegre e brincalhão, o que deixava Paul muito confuso.

– Amanhã trago a minha cadelinha Yorkshire terrier – disse ele a Paul, rejubilando.

– O que é isso de Yorkshire terrier?

– O quê? Pois tu não sabes o que é uma Yorkshire terrier?... Não saber o que é um Yorkshire! – Mr. Pappleworth estava pasmado.

– É um cãozinho de pêlo sedoso... em tons de ferrugem e prata oxidada?

– É isso mesmo, meu rapaz. A minha é uma pérola. Já teve cachorrinhos que me renderam cinco libras, e ela própria vale mais de sete libras: e não chega a pesar uma libra e meia...

No dia seguinte, a cadela veio com ele. Era dez réis de cão tremeliquento. Paul não lhe ligou nenhuma; a cadela mais parecia um trapo molhado sem esperança de secar. Nisto, um dos homens chamou-a e começou a dizer piadas grosseiras. Mas Mr. Pappleworth meneou a cabeça na direcção do rapaz e a conversa prosseguiu a meia-voz.

Mr. Jordan fez apenas mais uma excursão à Espiral, para inspeccionar o trabalho de Paul e o único reparo que lhe fez, ao ver o rapaz pousar a caneta no balcão, foi:

– Tens de pôr a caneta na orelha, se queres ser um caixeiro a sério. Vá, caneta na orelha!

Num outro dia, disse ao rapaz:

– Não endireitas mais esses ombros porquê? Ora vem cá. E levou-o ao gabinete envidraçado, onde lhe colocou uns suspensórios especiais para manterem os ombros direitos.

Mas Paul preferia a companhia das raparigas. Os homens pareciam-lhe grosseiros e pouco espertos. Simpatizava com todos eles, mas achava-os desinteressantes. Ao encontrar Paul a comer na cave, Polly, a supervisora baixinha e sirigaita do rés-do-chão, perguntou-lhe se ele não queria que ela lhe cozinhasse alguma coisa no seu fogareiro e, no dia seguinte, a mãe mandou-lhe uma refeição que podia ser aquecida. Ele levou-a à salinha limpa e aconchegada onde Polly trabalhava, e depressa adquiriu o hábito de almoçar com ela. Quando chegava ao trabalho, às oito da manhã, levava-lhe o cesto, e quando descia à uma hora, já o almoço estava pronto.

Paul era pálido, não muito alto, cabelo espesso e castanho, feições irregulares e uma boca rasgada, de lábios cheios. Ela parecia um passarinho, e ele até a tratava muitas vezes por pisco. Embora fosse geralmente muito calado, com ela passava horas sentado a conversar, a contar-lhe peripécias familiares. Todas as raparigas adoravam ouvi-lo; formavam muitas vezes um círculo à sua volta, enquanto ele discursava e ria, sentado num banco. Algumas consideravam-no um fulaninho curioso, tão sério e, no entanto, tão inteligente e bem-disposto, e sempre tão delicado no modo como as tratava. Todas gostavam dele e ele adorava-as. Com Polly era diferente; a essa, ele sentia que pertencia. Mas era Connie, com a sua farta cabeleira ruiva, a sua tez de flor de macieira, a voz sussurrada, e sempre tão distinta no seu vestido preto já gasto, que apelava ao seu lado romântico.

– Quando te sentas a enrolar a meada – disse ele – parece que estás a fiar na roca... é um quadro tão bonito. Faz-me lembrar a Elaine, dos Idílios do Rei. Se eu soubesse, desenhava-te. – Ela olhou para ele de relance, timidamente ruborizada. Mais tarde, havia um esboço de que ele muito gostava: Connie sentada num banquinho, em frente à roca, a longa crina ruiva flamejante sobre o vestido preto ruçado, e os lábios rubros selados e muito sérios, a passar o fio escarlate do novelo para a bobina.

Com Louie, bonita e atiradiça, que parecia estar sempre a provocá-lo com o menear das ancas, punha-se geralmente a brincar.

– O que estás a fazer?

– Porque queres saber? – respondeu ela, levantando a cabeça, atrevida.

– Porque acho que tu não te conheces.

– Porquê?

– Porque não tens ar de te conheceres.

– Então tenho cara de quê?

– Tens cara de quem está sempre a pensar nalguma coisa. Em que é que estavas a pensar?

Ela olhou-o pelo canto do olho e disse, com uma gargalhada:

– Isso era o que tu querias saber, não era?

– Sai daí – disse ele. – Vamos lá dar uma volta à tua meia.

E, depois, pegando na manivela da máquina, começou a rodá-la.

Mas ela empurrou-o.

– Isso vai ficar tudo mal – exclamou.

E ficaram os dois a olhar um para o outro, a rir às gargalhadas.

Emma era bastante feia, e não era nem nova nem condescendente. Sentia-se, porém, feliz por se mostrar condescendente com Paul. E ele não se importava.

– Como é que se metem as agulhas? – perguntou ele um dia.

– Sai daqui, não me maces.

– Mas eu devia saber como é que se metem as agulhas.

Ela continuou a coser à máquina, sem pestanejar.

– Há tantas coisas que devias saber – respondeu ela.

– Então ensina-me a colocar as agulhas na máquina.

– Ai, este rapaz sempre é muito maçador! ... Pronto, é assim que se faz...

Ele observou-a atentamente. Nisto, soou um apito, e a seguir Polly entrou e perguntou em voz bem audível:

– Paul, Mr. Pappleworth quer saber por quanto tempo vais ficar cá em baixo a brincar com as raparigas.

Paul correu pela escada acima, a gritar «Adeusinho!», e Emma endireitou-se na cadeira e explicou:

– Não fui eu que quis que ele estivesse a brincar com a máquina.

– Qu’é qu’andavas a fazer? – perguntou Mr. Pappleworth, quando o rapaz apareceu.

– Estava só a falar com a Emma, e a aprender a colocar as agulhas na máquina.

– O melhor é pegares no teu trabalho e mudares-te lá pra baixo.

– Mas aqui não havia nada de especial para fazer, pois não?

– Mal tu saíste daqui, o patrão veio à tua procura. Um dia sai-te caro! E então estes registos?

Paul meteu mãos à obra cheio de vontade.

Regra geral, quando as raparigas voltavam, às duas horas, ele ia ao andar de cima ter com Fanny, a corcunda, que trabalhava nos acabamentos.

Mr. Pappleworth só chegava às vinte para as três, e vinha encontrar muitas vezes o rapaz sentado ao lado de Fanny a conversar, a desenhar ou a cantar com as raparigas.

– Vem cá, Paul, meu querido – gritava a Fanny. – Até pensámos que hoje não vinhas cá acima. Pensávamos que ias ficar lá em baixo por não gostares da nossa companhia.

– Fui à cidade.

– Para quê, meu lindo?

– Para ver se encontrava uma cestinha de mirtilos para a minha mãe.

– E encontraste?

E, uma vez iniciada a conversa, nunca mais terminavam. Paul gostava muito de Fanny e a corcunda gostava muito dele. Ela tinha vinte e nove anos e sofrera muito. Ele gostava de ficar sentado ao lado dela, à janela, a olhar para a rua e a desenhar a bizarra floresta de chaminés e telhados antigos e bicudos que a vista alcançava. Depois dizia:

– Canta qualquer coisa, Fanny.

– Sabes que mais? Tu não queres que eu cante – dizia ela, manejando a agulha com destreza, com as mãos magras e nervosas. – Tu queres é fazer pouco de mim.

– Não quero nada! Mas é que eu disse à minha mãe que cantavas muito bem...

– Não sei o que é que a tua mãe ia pensar de mim, se me visse, Paul. Ia pensar que eu era um macaco encarrapitado num pau.

– Ela sabe como tu és, porque eu já lhe contei. E gosta de ti. Canta lá «Naquela Taberna...». Este desenho vai ficar uma maravilha.

E, passado um minuto de hesitação, Fanny começou a cantar. Tinha uma bela voz de contralto, e todas as raparigas cantaram em coro e muito afinadas. Paul não se sentia nada embaraçado por estar ali sentado no meio das mulheres.

Quando terminou, Fanny disse:

– Sei que estão a fazer troça de mim.

– Não sejas assim, Fanny! – exclamou uma das colegas.

Uma outra vez, falou-se no cabelo ruivo de Connie.

– Cá pra mim, acho o da Fanny mais bonito – disse Emma.

– Não precisas de fazer pouco de mim – disse Fanny, agastada.

– Mas ela tem o cabelo mesmo bonito, Paul.

– É uma cor especial – disse ele. – Aquela cor fria, como a terra, e mesmo assim brilhante... como um pântano.

– Santo Deus! – exclamou uma das raparigas, a rir.

– Estás a ver como só me criticam? – disse Fanny.

– E havias de o ver solto, Paul – gritou Emma, falando a sério. – É simplesmente uma beleza. Solta o cabelo pra ele ver, Fanny, pode ser que ele o queira pintar.

Fanny recusou-se, e, no entanto, era o que mais queria fazer.

– Então solto-lho eu – disse o rapaz.

– Bem, já que insistes – disse Fanny.

Paul tirou os ganchos do carrapito com todo o cuidado, e a longa cabeleira, num tom castanho-escuro uniforme, caiu sobre a corcunda.

– Que maravilha! – exclamou ele.

As raparigas observavam-no. Reinava o silêncio. O jovem soltou-lhe mais o cabelo.

– É esplêndido – disse, sentindo-lhe o perfume. – Aposto que vale muitas libras.

– Deixo-to quando morrer – disse Fanny, em tom de brincadeira.

– Pareces-te com qualquer de nós, sentada a secar o cabelo – disse uma das raparigas à colega corcunda e pernalta.

A pobre da Fanny era morbidamente susceptível, em tudo adivinhando insultos, ao passo que Polly era directa e factual. As duas secções estavam permanentemente em guerra, e Paul vinha constantemente encontrar Fanny lavada em lágrimas. Fanny contava-lhe todas as suas mágoas, e ele, depois, ia defendê-la junto de Polly.

A filha de Mr. Jordan era pintora. Um dos seus modelos era Connie, que lhe falou de Paul. Primeiro, Miss Jordan pediu para ver alguns dos seus desenhos, e, a seguir, veio ela própria falar com ele. Era uma mulher fria e impessoal, mas mostrou algum interesse pelo rapaz.

E assim foi correndo o tempo, em harmonia. A fábrica tinha um ambiente agradável. Ninguém era empurrado ou pressionado. Paul até gostava quando o trabalho acelerava perto da hora do correio e todos se entreajudavam. Gostava de ver os colegas em acção. O homem era o trabalho e o trabalho era o homem, unidos num só. Com as raparigas era diferente. A verdadeira mulher parecia nunca estar ali presente no trabalho – era como se estivesse de fora, à espera.

Da janela do comboio, quando à noite regressava a casa, observava as luzes da cidade povoando as colinas e fundindo-se nos vales com um clarão ardente. E Paul sentia-se rico de experiência e felicidade. Mais adiante, havia uma mancha de luz em Bulwell, como miríades de pétalas caídas das estrelas sobre a terra; e, mais além, o jorro incandescente das fornalhas, projectando nas nuvens o seu sopro abrasador.

Chegado a Keston, ainda tinha de andar mais de duas milhas até casa, subindo duas colinas mais longas e descendo outras duas mais curtas. Sentindo-se muitas vezes cansado, ia contando os candeeiros à medida que subia, para ver quantos ainda faltavam. E, do alto da colina, nas noites de breu, via as aldeias espalhadas a toda a volta, a cinco ou seis milhas de distância, enxameando a noite de vida e luz, quase como um céu aberto a seus pés. Marlpool e Heanor semeavam de cintilações a escuridão mais longínqua. Uma vez por outra, o negro vale que se interpunha lá em baixo, era riscado, violado por um interminável comboio que rolava célere para sul, em direcção a Londres, ou rumo ao norte, para a Escócia. Os comboios troavam como projécteis na escuridão, fumegantes e acesos, fazendo retinir o vale à sua passagem. Mas logo desapareciam, e as luzes das cidades e das aldeias cintilavam outra vez, mergulhadas no silêncio.

Chegava, por fim, à esquina da casa, virada para o outro lado da noite. O freixo parecia agora um amigo. A mãe vibrava de alegria vendo-o chegar. Ele depositava os oito xelins orgulhosamente sobre a mesa.

– Fazem-lhe jeito, mãe? – perguntava, ansioso.

– Não vai sobejar quase nada depois de descontar o bilhete, as refeições e tudo o mais.

Em seguida, punha-a ao corrente dos acontecimentos do dia. A história da sua vida, como nas Mil e Uma Noites, mas muito mais monótona, era contada à mãe noite após noite. E ela escutava e era quase como se a vida fosse dela.


VI

UMA MORTE NA FAMÍLIA

ARTHUR MOREL ia crescendo. Era um rapaz vivo, descuidado e impulsivo, muito parecido com o pai. Tinha horror aos estudos, resmungava sempre que tinha de trabalhar e escapava-se o mais depressa que podia, para voltar para a brincadeira.

Fisicamente, continuava a ser o menino bonito da família, bem constituído, gracioso, cheio de vida. O cabelo castanho-escuro, a frescura da tez e os olhos raros, de um azul profundo e sombreados de longas pestanas, a par dos seus modos generosos e temperamento fogoso, faziam dele o preferido. Mas, à medida que crescia, o temperamento ia-se tornando instável. Tinha acessos de fúria por tudo e por nada, e mostrava-se insuportavelmente violento e irritável.

A mãe, de quem tanto gostava, já começava a perder a paciência. Arthur só pensava em si próprio. Detestava tudo o que se interpusesse entre si e o seu prazer, mesmo quando esse «tudo» era a mãe. Mas, quando se metia em apuros, era com ela que tinha intermináveis desabafos.

– Meu Deus, rapaz – disse ela, quando ele se veio queixar de um professor que, segundo ele, o tomara de ponta – se não te agrada a situação, tens de a fazer mudar, e se não podes mudar nada, tens de te adaptar.

Quanto ao pai, que ele amara desmedidamente e que o idolatrava, acabou por detestá-lo. Com a idade, Morel transformou-se lentamente numa ruína viva. O seu corpo, em tempos belo nas formas e na agilidade, mirrou com os anos, não parecendo ter amadurecido, mas, pelo contrário, ter-se tornado insignificante e desprezível, emanando baixeza e mesquinhez. E sempre que este homem de meia-idade e olhar perverso o injuriava ou o tratava com prepotência, Arthur ficava furioso. Ainda por cima, os modos de Morel eram cada vez mais grosseiros, e os seus hábitos quase repugnantes. Na fase de crescimento dos filhos e durante o período crítico da adolescência, o pai surgia-lhes aos olhos da alma como um ser feio e irritante. Em casa, os seus modos eram idênticos aos que usava com os outros mineiros no fundo da mina.

– Monstro nojento! – gritava Arthur, saltando da cadeira e saindo de casa, quando o pai o enojava.

E Morel fazia ainda pior, por saber que as crianças o detestavam. Parecia sentir prazer em afrontá-las, a ponto de quase as enlouquecer, quando, aos catorze ou quinze anos, atravessavam a fase de extrema sensibilidade e irritabilidade. Assim, Arthur, que cresceu quando o pai já se encontrava em declínio e a caminho da velhice, odiava-o acima de tudo.

Por vezes, o pai parecia pressentir todo esse ódio e desprezo que os filhos tinham por ele.

– Não há homem que se sacrifique mais pela família – bordava então. – Faz por eles tudo o que pode, e tratam-no como um cão. Mas eu tenho força para aguentar, estão a ouvir!

Não fora o tom ameaçador e o facto de não fazer por eles tanto quanto pensava, e teriam até sentido pena. Nesta altura, a guerra instalava-se quase sempre entre pai e filhos, com o primeiro persistindo nos seus modos grosseiros só para afirmar a sua autoridade. Os filhos detestavam-no.

Por fim, Arthur já andava tão exaltado e irritado que, quando ganhou uma bolsa para ir para a escola secundária de Nottingham, a mãe achou por bem deixá-lo ficar a viver na cidade com uma das suas irmãs, vindo apenas a casa aos fins-de-semana.

Annie ainda era professora estagiária na escola primária, onde ganhava quatro xelins por semana. Mas em breve seriam quinze, uma vez que passara o exame final, o que traria à família tranquilidade financeira.

Mrs. Morel era muito agarrada a Paul. Ele era calado e não excessivamente inteligente, mas continuava fiel à pintura e à mãe. Tudo o que fazia era para ela. E ela esperava pela sua chegada à noitinha, para desabafar com ele todos os seus pensamentos, tudo o que lhe acontecera durante o dia. E ele ouvia-a, sentado e atento. Era o partilhar de duas vidas.

William estava noivo da tal morena, e tinha-lhe comprado um anel de noivado que custara oito guinéus. Os irmãos ficaram sem fôlego perante soma tão fabulosa.

– Oito guinéus! – disse Morel. – Bem parvo é!... Ficava-lhe melhor se me tivesse dado antes algum a mim.

– Dar-te algum, a ti! – exclamou Mrs. Morel. – Porque havia ele de te dar algum?

Mrs. Morel lembrou-se de que o marido não lhe tinha comprado anel de noivado e, a seu ver, antes ser como o William, que não era mesquinho, embora pudesse ser parvo. Mas agora o jovem só falava nos bailes a que tinha ido com a noiva e nos vestidos deslumbrantes que ela usava; ou então contava à mãe, rejubilante, como tinham os dois ido ao teatro em grande estilo.

William queria trazer a namorada para os pais conhecerem, e Mrs. Morel disse-lhe que a trouxesse no Natal. Desta vez, William chegou acompanhado de uma senhora, mas sem presentes. Mrs. Morel tinha preparado a ceia. Ao ouvir passos, levantou-se e foi à porta. William entrou.

– Olá, mãe! – deu-lhe um beijo apressado, chegou-se para o lado e apresentou-lhe uma rapariga alta e bonita, vestida com um saia-e-casaco preto e branco aos quadradinhos e uma estola de peles.

– Cá está a Ciganita!

Miss Western estendeu a mão e rasgou um sorriso de muitos dentes.

– Oh, como está, Mrs. Morel! – exclamou.

– Devem estar com fome – disse Mrs. Morel.

– Não, não estamos. Jantámos no comboio... Tens as minhas luvas, Fofinho?

William Morel, alto e ossudo, olhou para ela acto contínuo.

– Como é que havia de tê-las? – disse ele.

– Então perdia-as. Não te zangues comigo...

Viu-se que ele tinha ficado aborrecido, mas não disse nada. Ela relanceou o olhar pela cozinha. Achou-a pequena e bizarra, com o ramo de azevinho pendurado na parede e as sempre-vivas por detrás das fotografias, as cadeiras de madeira e a mesinha de jogo. Nessa altura, entrou Morel.

– Olá, pai!

– Olá, meu filho... Mas que surpresa!

Apertaram as mãos, e William apresentou-lhe a senhora. Ela reeditou o sorriso, mostrando os dentes.

– Como está, Mr. Morel. – Morel inclinou-se respeitosamente.

– Tou bem, obrigado, e espero que também esteja... Seja muito bem-vinda.

– Ah, obrigada – respondeu ela, bastante divertida.

– Há-de querer ir para cima – disse Mrs. Morel.

– Se não se importa... mas só se não a incomodar.

– Não incomoda nada... A Annie vai consigo... Walter, leva este baú para cima.

– E não leves uma hora a aperaltar-te – disse William para a noiva.

Annie pegou num candelabro de latão e, muda de vergonha, subiu à frente da jovem até ao quarto principal, que Mr. e Mrs. Morel lhe tinham cedido. Era também pequeno e frio, iluminado apenas pelas velas. As mulheres dos mineiros só acendiam as lareiras nos quartos em caso de doença muito grave.

– Quer que desaperte as correias do baú?

– Ah, muito obrigada!

Annie estava a fazer o papel de criada. Em seguida voltou para baixo para ir buscar água quente.

– Ela deve estar muito cansada, mãe – disse William. – É uma viagem muito violenta, e na correria em que andámos...

– Queres que lhe leve alguma coisa? – perguntou Mrs. Morel.

– Não, não... Ela está bem.

Mas havia um certo gelo no ar. Passada mais de meia hora, Miss Western desceu, envergando um vestido em tons de púrpura, demasiado fino para a cozinha do mineiro.

– Tinha-te dito que não precisavas de trocar de roupa – disse William.

– Deixa lá, Fofinho!... – E, mantendo o sorriso adocicado, voltou-se para Mrs. Morel: – Não acha que ele está sempre a resmungar, Mrs. Morel?

– Ah, está? – disse Mrs. Morel. – Isso é muito feio.

– E é mesmo!

– Deve estar com frio – disse a mãe. – Não quer vir para a la-reira? – Morel saiu imediatamente da cadeira de braços.

– Venha pr’àqui – exclamou ele. – Venha pr’àqui.

– Não, pai... Não saia da sua cadeira... senta-te no sofá, Ciganita – disse William.

– Não senhor! – insistiu Morel. – Esta cadeira é mais quente. Venha sentar-se aqui, Miss Wesson.

– Muitíssimo obrigada – disse a rapariga, sentando-se na cadeira de braços do mineiro, ou seja, o lugar de honra. Teve uma tremura ao sentir o calor da cozinha invadi-la.

– Vai buscar-me um lenço, Fofinho! – disse ela, fazendo beicinho e dirigindo-se-lhe no tom íntimo de quando estavam sozinhos, o que fez os restantes membros da família sentirem-se como intrusos. Era evidente que a jovem não os considerava como pessoas: para ela não passavam de criaturas. William estremeceu.

Se aquela casa fosse em Streatham, Miss Western seria a senhora, condescendendo a conviver com a camada inferior. Para ela, estas pessoas eram no mínimo grotescas – numa palavra, da classe trabalhadora. Como poderia ela adaptar-se?

– Eu vou – disse Annie.

Miss Western ignorou-a, como teria feito com uma criada, e só quando ela voltou para baixo com o lenço disse então, com afabilidade:

– Oh, muito obrigada.

Depois, desatou a falar: do jantar no comboio, que não tinha prestado para nada, de Londres, dos bailes. Via-se que estava muito nervosa e era o medo que a fazia falar. Morel, sentado a fumar um tabaco muito forte, observava-a enquanto lançava baforadas de fumo para o ar e ouvia com atenção a sua petulante algaraviada londrina. Mrs. Morel, ostentando a sua melhor blusa de seda preta, ia-lhe respondendo com calma e poucas palavras. Os outros filhos estavam sentados, em admirativo silêncio. Miss Western era a princesa. Tinham ido buscar tudo o que havia de melhor para a servir: as melhores chávenas, as melhores colheres, a melhor toalha, o melhor bule. As crianças achavam que ela devia estar a apreciar muito o acolhimento. Mas ela sentia-se mal, por não entender as pessoas, por não saber como tratá-las. William ia dizendo piadas, sentindo-se ligeiramente comprometido.

Por volta das dez horas, disse-lhe:

– Não estás cansada, Ciganita?

– Muito, Fofinho – respondeu ela, com voz melada e inclinando a cabeça ligeiramente para o lado.

– Acendo a vela, mãe? – disse ele.

– À vontade – respondeu a mãe.

Miss Western levantou-se e estendeu a mão a Mrs. Morel.

– Boa noite, Mrs. Morel – disse ela.

Paul, sentado em frente da caldeira, deixou jorrar a água da torneira para dentro de uma garrafa de cerveja em grés. Annie abafou a garrafa numa velha camisola da mina, e deu à mãe um beijo de boas-noites. Com a casa cheia, ia ter de dormir com a senhora.

– Espera um bocadinho – disse Mrs. Morel à filha. Annie sentou-se com a botija ao colo. Miss Western despediu-se de todos com um aperto de mão, para grande atrapalhação dos presentes, e saiu, precedida por William. Passados cinco minutos, ele voltou para baixo. Sentia o coração oprimido, sem saber porquê. Falou muito pouco até todos se terem ido deitar, excepto ele e a mãe. Depois, foi pôr-se de pé frente à lareira, de pernas afastadas como costumava fazer noutros tempos, e disse, titubeante:

– Então, mãe?

– Então o quê, meu filho?

A mãe sentou-se na cadeira de baloiço. Sentia-se de certo modo ferida e humilhada por causa dele.

– Gosta dela?

– Gosto – tardou a resposta.

– Ela ainda está pouco à vontade, mãe... não está acostumada a tudo isto. É muito diferente da casa da tia dela, sabe.

– Claro que é, meu filho... Deve ser difícil para ela.

– Pois é. – E, de repente, a expressão carregou-se-lhe. – Se ao menos ela não pusesse aqueles benditos ares!

– É só a primeira reacção, meu filho. Aquilo passa-lhe.

– Tem razão, mãe – respondeu ele, gratificado. Mas o olhar continuava triste. – Sabe, ela não é como a mãe... não é compenetrada... e não se cansa muito a pensar.

– Ela é muito nova, meu filho.

– É isso!... E não teve sorte nenhuma. A mãe morreu quando ela era criança, e desde então vive com uma tia que ela já não consegue aturar. E o pai era um patife... Faltou-lhe o amor.

– Sério?!... Bem, nesse caso tens de a compensar de tudo isso.

– E perdoar-lhe muitas coisas.

– Que coisas é que tens de lhe perdoar, meu filho?

– Sei lá... quando ela se mostra superficial, por exemplo... É preciso lembrarmo-nos de que ela nunca teve ninguém que fizesse desabrochar o seu lado mais profundo... E ela gosta tremendamente de mim.

– Isso qualquer pessoa pode ver.

– Mas, sabe uma coisa, mãe... ela... ela é diferente de nós. As pessoas como ela, aquelas com quem se dá... não parecem ter os mesmos princípios que nós.

– Não deves fazer juízos precipitados – disse Mrs. Morel. Mas ele parecia contrafeito.

De manhã, contudo, levantou-se e pôs-se a cantar pela casa toda.

– Olá! – chamou ele, saudando-a do fundo das escadas, onde estava sentado. – Já te estás a levantar?

– Já – respondeu ela lá de cima, com voz sumida.

– Feliz Natal! – gritou ele.

No quarto, ouviu-se o riso dela, bonito e musical. Mas ela só desceu meia hora depois.

– Ela estava mesmo a levantar-se, quando disse? – perguntou William a Annie.

– Estava, sim – respondeu Annie.

William aguardou uns instantes e voltou para as escadas.

– Feliz Ano Novo! – gritou ele.

– Obrigada, Fofinho do meu coração! – disse uma voz risonha, de muito longe.

– Despacha-te! – implorou ele.

Tinha passado quase uma hora, e ele à espera dela. Morel, que se levantava sempre antes das seis, olhou para o relógio.

– Bem, já vi qu’é das que s’atrasam! – exclamou.

Já todos tinham tomado o pequeno-almoço, excepto William, que se foi postar ao fundo das escadas.

– Será que vou ter de mandar aí para cima um ovo de Páscoa? – gritou ele, já zangado. Ela limitou-se a rir. A família esperava algo de mágico depois de tão longa preparação. Finalmente, ela apareceu, com uma saia e uma blusa que lhe ficavam muito bem.

– Levaste mesmo todo este tempo para te vestires? – perguntou ele.

– Oh, Fofinho!... Isso não é pergunta que se faça, pois não, Mrs. Morel?

A princípio, ela representou o papel da grande dama. Quando entrou na capela ao lado de William, ele de fraque e chapéu de seda, e ela de estola de peles e saia-casaco dos melhores costureiros de Londres, Paul, Arthur e Annie esperavam que todos se curvassem até ao chão, em êxtase. E Morel, observando o parzinho galante do fundo da rua, com o seu fato domingueiro, sentia-se o pai do príncipe e da princesa.

Porém, a dama não era assim tão grande. Trabalhava desde há um ano como uma espécie de secretária, ou escriturária, num escritório de Londres.

Mas enquanto esteve com os Morels parecia uma rainha: sentava-se à mesa e deixava que Annie e Paul a servissem, como se fossem seus criados. Tratava Mrs. Morel com alguma petulância e Morel com paternalismo. Mas, passados um ou dois dias, a sua atitude começou a mudar.

William pedia sempre a Paul ou Annie que os acompanhassem nos passeios que davam. Era muito mais divertido. E Paul sentia real admiração pela Cigana, uma admiração genuína. Na verdade, a mãe não podia perdoar ao filho a adoração que mostrava pela jovem.

No segundo dia, quando Lily disse:

– Annie, sabes por acaso onde terei deixado o meu regalo? William respondeu:

– Sabes muito bem que está no teu quarto. Para que perguntas à Annie?

E Lily lá foi ao quarto, amuada, de lábios crispados. O rapaz já não suportava vê-la fazer da irmã uma criada.

Na terceira noite, William e Lily foram sentar-se na sala, às escuras, frente à lareira. Quando era um quarto para as onze, ouviram Mrs. Morel a abafar o borralho. William veio para a cozinha, seguido da namorada.

– Já é assim tão tarde, mãe? – disse ele. A mãe tinha passado a noite sozinha.

– Não quer dizer que seja tarde, meu filho... mas é tarde para eu continuar a pé.

– Então, porque não se vai deitar? – perguntou ele.

– E deixar os dois aqui sozinhos?... Não, meu filho, isso eu não faço.

– A mãe não tem confiança em nós?

– Tenha ou não tenha, é a mesma coisa... Podem ficar aqui até às onze horas, se quiserem, e eu leio mais um bocadinho.

– Vai deitar-te, Ciganita – disse William. – Não podemos fazer esperar a minha mãe.

– A Annie deixou a vela acesa, Lily – disse Mrs. Morel. – Acho que a luz será suficiente.

– Claro, obrigada. Boa noite, Mrs. Morel.

William acompanhou a namorada até ao fundo das escadas, deu-lhe um beijo e ela foi para o quarto. Ele voltou para a cozinha.

– Não tem confiança em nós, mãe? – insistiu ele, todo ofendido.

– Meu filho, já te disse que eu não vou deixar dois pombinhos como vocês sozinhos cá em baixo, com toda a gente a dormir.

E o filho não teve outro remédio senão contentar-se com a resposta. Deu um beijo à mãe e foi deitar-se.

Na Páscoa, chegou sozinho. Depois, falou longamente com a mãe sobre a namorada.

– Sabe, mãe... quando estou longe dela, nem penso nela... se não voltasse a vê-la, era a mesma coisa. Mas, quando estou com ela, à noite, gosto muito dela.

– É um amor muito estranho para acabar em casamento – disse Mrs. Morel. – Se é só isso que ela representa para ti!

– É engraçado! – exclamou William, entre o preocupado e o perplexo. – E, no entanto... Há demasiadas coisas entre nós, para eu desistir dela agora.

– Tu lá sabes – disse Mrs. Morel. – Mas, se é como dizes, eu não lhe chamaria amor... pelo menos, não parece.

– Não sei, mãe. Ela é órfã, e...

Acabaram por não chegar a uma conclusão. Ele parecia confuso e aborrecido. Ela era muito reservada. Ele gastava todas as suas energias e dinheiro com esta rapariga. Quando veio a casa, mal tinha dinheiro para levar a mãe a Nottingham.

O salário de Paul, para grande alegria sua, tinha sido aumentado no Natal para dez xelins. O rapaz continuava muito satisfeito najordan, mas a sua saúde começou a ressentir-se do pesado horário de trabalho e das condições de isolamento. A mãe, para quem ele era cada vez mais importante, pensou em como poderia ajudá-lo.

A tarde de folga dele era à segunda-feira. Numa segunda-feira, em Maio, quando estavam os dois sozinhos a tomar o pequeno-almoço, ela disse:

– Acho que vamos ter um lindo dia.

Ele olhou-a surpreendido. Alguma coisa ela tinha para lhe dizer.

– Sabias que Mr. Leivers foi morar para uma quinta nova? Pois bem, ele convidou-me a semana passada para ir fazer uma visita a Mrs. Leivers, e eu prometi-lhe que te levava lá hoje, se estivesse bom tempo. Então, vamos?

– Oh, mãezinha, mas isso é óptimo! – exclamou Paul. – Vamos esta tarde, não é?

– Se não estiveres muito cansado... olha que é uma grande caminhada.

– A que distância fica?

– Quatro milhas.

– Ora... não sou eu que me canso por fazer quatro milhas... é a mãe. Acha que consegue?

– Claro que consigo.

– Que bom!... Que bom! – exclamou ele. – Vou voltar a correr para casa. E a quinta é bonita?

– Ele diz que sim... Tu logo dirás.

– Eu não conheço Mrs. Leivers, mãe. Conhece-a?

– Então não conheces... uma mulherzinha macambúzia, com uns grandes olhos castanhos, que se costumava sentar à nossa frente na capela.

– Não me lembro.

– Julgava que pelo menos te lembrasses do chapéu, mesmo que não te lembrasses de mais nada... usa sempre o mesmo chapéu desde há seis anos, desde que a conheço: um quico preto com um farrapo de renda prantado no cucuruto, às três pancadas. Quando a via com o chapéu no alto da cabeça, domingo atrás de domingo, sempre com o mesmo chapéu, só me apetecia ir lá tirar-lho. E o marido é tão elegante e bem-parecido.

– Se calhar, era pobre – alvitrou Paul.

– E que fosse! Sei que não estava pior do que eu. Só que tinha a mania de não comprar nada novo, dava-lhe para ali.

– E ao menos é simpática?

– É. Eu sempre gostei dela... mas ela não consegue andar à altura do homem que tem... Só o orgulho consegue uma coisa dessas, nada mais.

– Porquê?

– Ora bem, ela é uma mulher pequenina, delicada, fina, com uns grandes olhos castanhos... cheios de sentimento. E eu sei que tem passado muito com sete filhos e o pouco que o Alfred Leivers lhe dá. Acho que ele não gosta muito de trabalhos pesados... e daí, talvez... Mas assim, como a vida lhe correu mal e chegou ao estado a que chegou, é orgulhosa de mais para competir com as outras mulheres e agarra-se a um trapo antigo... mas é uma mulher bonita.

– E orgulhosa, mãe?

– Não... Com as outras pessoas, não. Mas consigo mesma não podia ser mais. A pobreza e a vida triste que leva corroem-lhe a alma e ela agarra-se àquela chapeleta preta, para troçar da sua própria pobreza... ou do marido... Só Deus sabe... Mas tu vais gostar dela. Eu gosto dela.

– Bem – disse Paul –, se vamos visitá-la à quinta, não vai estar de chapéu.

– Esperemos que não – disse Mrs. Morel. – É um escândalo e uma vergonha sobrecarregar um corpo frágil como o dela daquela maneira, mas também não precisava de andar naquela figura, por despeito. Faço ideia de como ele se deve sentir!...

Paul saiu à pressa para a estação, rejubilante. Em Derby Road, havia uma cerejeira a cintilar. O velho muro de tijolo junto ao pátio do Statutes brilhava em tons de escarlate, incandescentes, e a Primavera era uma labareda verde. A estrada íngreme estendia-se esplêndida, coberta da fria poeira matinal em alternâncias de sol e sombra, absolutamente estática. As árvores, orgulhosas, deixavam pender abaulados os ombros verdes e possantes. Durante toda a manhã, de dentro do armazém, o rapaz foi brindado com um quadro de Primavera.

Quando voltou para casa, a mãe estava excitadíssima.

– Sempre vamos? – perguntou ele.

– É só o tempo de me arranjar – respondeu ela.

– Conseguiu acabar o trabalho?

– Consegui.

Paul sentou-se à mesa, à espera do almoço. Ela trouxe-lhe a frigideira.

– Para que se foi meter a fazer sonhos de ruibarbo se tinha tão pouco tempo?

– Porque me apeteceu – disse a mãe. – E estou pronta quando tu estiveres.

Tinha feito os sonhos porque, durante a semana, o filho só vinha almoçar a casa neste dia, e gostava muito de sonhos.

– Não senhora... saia daqui. Quem faz isso sou eu.

Paul levantou-se e tentou tirar-lhe a frigideira da mão.

– Nem pensar nisso! – disse ela, agitando o garfo. – Temos muito tempo.

Ele voltou para a mesa, cabisbaixo, e ela continuou com os cozinhados.

– São mesmo coisas de mulher – disse ele. – Às voltas com a frigideira, quando devia estar a vestir-se para sair.

– São é mesmo coisas de rapazes, julgam que já sabem tudo – disse ela, colocando a sobremesa diante dele.

– E esteve a apanhar esse calor todo na cara – disse o filho. – Já sabe que quando lá chegar, vai ter a cara vermelha como o sol nascente.

– Se tiver, não sou eu que te vou pedir para olhares para mim.

– E, mesmo que pedisse, eu não olhava – respondeu ele.

– Ingrato!

– Afogueada!

Ela fungou e empertigou-se daquela maneira a que ele chamava «esticar-se à tartaruga».

– Já se lavou? – perguntou ele.

– Já.

– Pois olhe, não parece, tem o nariz enfarruscado, como de costume.

Ela foi ver-se ao espelho.

– Que maçada! – exclamou.

Ele levantou-se.

– Vá-se vestir, que eu lavo a loiça – disse Paul.

Ela obedeceu. Ele lavou as panelas, endireitou as costas e pegou nas botas dela. Estavam muito limpas. Mrs. Morel era daquelas pessoas naturalmente dotadas que são capazes de andar na lama sem sujarem os sapatos. Mas Paul quis limpar-lhas, mesmo assim. Eram botas de criança, das de oito xelins o par. No entanto, para ele, eram as botas mais chiques do mundo, e limpava-as com tanta reverência como se fossem flores.

Subitamente, ela apareceu à porta, muito tímida. Trazia uma blusa nova. Paul deu um salto em frente.

– Ena pá! – exclamou ele. – Que espalhafato!

Ela inspirou ligeiramente, altiva, de cabeça bem erguida.

– Não é espalhafato nenhum! – retorquiu ela. – É até bem recatada.

Mrs. Morel deu um passo em frente e o filho mirou-a de todos os lados.

– Então – perguntou ela, envergonhada, mas mostrando-se segura e arrogante. – Gostas?

– É um espanto! Vou gostar de levar uma mulher tão bonita a passear!

Contornou-a e mirou-a pelas costas.

– Muito bem! – disse ele. – Se fosse na rua atrás de si, havia de dizer: – Mas que bem vestida que aquela senhorinha vai.

Ela fungou de satisfação, como era seu hábito, mas a fazer-se desentendida.

– Sabes – disse ela –, só me custou três xelins. Por este preço não a podia comprar feita, pois não?

– Acho que não – respondeu o filho.

– E o tecido é de muito boa qualidade.

– Tremendamente bonita! – disse ele.

A blusa era branca, com raminhos púrpura e pretos.

– Demasiado jovem para a minha idade, não achas?

– Essa agora, demasiado jovem para si? – exclamou Paul, agastado. – Já agora, porque não compra uma peruca branca para pôr no alto da cabeça?

– Daqui a pouco já não é preciso – respondeu ela. – Estou aqui, estou com a cabeça toda branca.

– Pois faça favor de não estar – disse ele. – Para que quero eu uma mãe de cabelo branco?

– Pois olha que vais ter de te contentar, meu menino – disse ela, com uma entoação bastante estranha.

Saíram de casa em grande estilo, ela com a sombrinha que William lhe tinha dado, para se proteger do sol. Paul era consideravelmente mais alto do que ela, embora não fosse muito grande. O rapaz ia todo cheio de si.

Na terra lavrada, as espigas tenras brilhavam como seda. A mina de Minton desfraldava os seus penachos de vapor branco, acompanhados de roncos e roucas tossidelas.


– Olha para aquilo! – disse Mrs. Morel. Mãe e filho pararam na estrada, a ver. Ao longo da crista do grande monte da mina, desenhava-se em contraluz um pequeno grupo a avançar mansamente – um cavalo, uma carrocinha e um homem. Trepavam a encosta em direcção ao céu: ao chegarem ao cimo, o homem voltou a carroça e, com injustificado estrépito, a escória rolou pela vertente abrupta do aterro.

– Sente-se um bocadinho, mãe – disse Paul, e ela sentou-se na rocha, enquanto ele desenhava a cena rapidamente. Mrs. Morel manteve-se em silêncio enquanto o filho trabalhava, entretida a admirar a tarde e o casario vermelho a cintilar entre o verde da paisagem.

– O mundo é um lugar maravilhoso – disse ela. – E maravilhosamente belo.

– E a mina também – disse ele. – Veja como cresce, como se estivesse viva... é como uma criatura gigantesca que nós não conhecemos.

– É – disse ela. – Talvez!

– E os vagões parados, à espera, como animais em correnteza à espera da ração – disse ele.

– E eu bem contente fico de os ver aí à espera – disse a mãe. – Quer dizer que a semana vai ser boa.

– Eu gosto de sentir a mão do homem nas coisas; é sinal de vida. Nos vagões sente-se o dedo do homem, porque são mãos de homens que os conduzem.

– Pois é – disse Mrs. Morel.

Continuaram a caminhada à sombra das árvores, pela estrada principal. Ele ia explicando tudo e ela mostrava-se interessada. Passaram pelo extremo do lago Nethermere, que embalava no colo docemente, como pétalas, os reflexos do sol. Depois viraram para uma estrada particular e, com emoção crescente, aproximaram-se de uma grande quinta. Um cão desatou a ladrar furiosamente. Apareceu uma mulher, a ver quem era.

– É este o caminho para Willey Farm? – perguntou Mrs. Morel.

Paul deixou-se ficar atrás da mãe, apavorado com a ideia de serem escorraçados. Mas a mulher era prestável e indicou-lhes o caminho. Mãe e filho meteram pelo meio do trigo e da aveia, atravessaram uma pequena ponte e chegaram a um prado em pousio. Os abibes, com os seus peitos brancos reluzentes, gritavam e volteavam em redor. O lago estava estático e azul. No céu, planava uma garça. Em frente, o bosque subia denso pela encosta, verde e estático.

– É uma estrada florestal, mãe – disse Paul. – Tal e qual como no Canadá.

– Lindo, não é? – disse Mrs. Morel, olhando em volta.

– Está a ver aquela garça... está a ver... as pernas dela?

Era ele que dizia à mãe para onde devia, ou não, olhar. Mas ela gostava assim.

– E agora – disse ela – para que lado é?... Ela disse-me para atravessar o bosque. – O bosque, cerrado e sombrio, estendia-se para a esquerda.

– Sinto que aqui há um caminho – disse Paul. – A mãe tem pés de citadina; seja lá como for, mas tem.

Encontraram uma cancela e entraram numa larga vereda arborizada, com um maciço de cedros e pinheiros de um dos lados e uns quantos carvalhos decrépitos do outro a descerem pela encosta. E, entre os carvalhos, as campainhas-do-monte espraiavam-se em mancha azul sob as aveleiras ainda verdes e um manto esmorecido de folhas amareladas de carvalho. Paul apanhou flores para dar à mãe.

– Está aqui um pouco de feno acabado de chegar – disse ele, e desta vez trouxe-lhe miosótis. E de novo o coração lhe doía de tanto amor, vendo a mão dela, calejada do trabalho, pegar no raminho que ele lhe dera. Ela estava completamente feliz.

No fim da vereda era preciso saltar uma cerca. Paul passou num instante.

– Venha – disse ele –, eu ajudo-a.

– Não... sai daí. Prefiro passar à minha maneira. Ele ficou do outro lado, com as mãos no ar, pronto para a ajudar. Ela trepou com todas as cautelas.

– Mas que maneira de trepar! – exclamou Paul, trocista, quando a mãe já estava a salvo no chão.

– Malditas cercas! – bradou ela.

– Só se uma mulher for muito desajeitada – replicou ele – é que não consegue passá-las.

Em frente, ao longo da orla do bosque, estendia-se um aglomerado de casas de lavoura, baixas e vermelhas. Estugaram o passo. Pegado ao bosque havia um pomar de macieiras cujas flores caíam sobre uma mó. Em baixo era a lagoa, sob os ramos pendentes dos carvalhos. Havia vacas a usufruir da sombra. A quinta e as casas, formando três lados de um quadrilátero, abraçavam o sol viradas para o bosque. Tudo estava em silêncio.

Mãe e filho entraram no pequeno jardim cercado de grades onde pairava um perfume a cravos vermelhos. Junto à porta entreaberta viam-se alguns pães enfarinhados, deixados a arrefecer. Uma galinha aproximou-se para os debicar. De repente, assomou-se à porta uma rapariga com um avental muito sujo. Devia andar pelos catorze anos, tinha as faces morenas e rosadas, um tufo de pequenos caracóis negros muito apertados a cairem livremente, e os olhos castanhos. Parecia tímida e curiosa, com alguma desconfiança dos estranhos. A rapariga voltou a desaparecer. Logo a seguir, surgiu uma outra figura, uma mulher pequenina e frágil, rosada e com grandes olhos castanhos.

– Oh! – exclamou ela, rasgando um sorriso cintilante. – Sempre veio. Gosto muito de a ver por cá. – A voz da mulher era afável e muito triste.

As duas mulheres apertaram a mão.

– Tem a certeza de que não viemos incomodar? – disse Mrs. Morel. – Sei bem como é a vida do campo.

– De maneira nenhuma. Até é uma bênção ver caras novas. Estamos aqui tão isolados.

– Pois devem estar... – disse Mrs. Morel.

Levaram-nos até à sala, uma divisão comprida e de tectos baixos, com um grande ramo de rosas amarelas a enfeitar a lareira. As mulheres sentaram-se a conversar, enquanto Paul foi dar uma volta pela quinta. Estava no jardim a cheirar os cravos e a olhar para as plantas, quando a rapariga saiu a correr e se foi pôr junto do monte de carvão encostado à cerca.

– Creio que estas vão ser rosinhas de toucar, quando abrirem – disse ele, apontando para as roseiras ao longo da cerca. Ela olhou para ele com os grandes olhos castanhos, muito espantados, muito abertos.

– Não sei – respondeu, hesitante. – São brancas e têm o olho cor-de-rosa.

– Então são «rubores de donzela».

Miriam corou – uma cor cálida, bonita.

– Não sei – disse ela.

– Não tens grande coisa no jardim – disse ele.

– É o primeiro ano que aqui passamos – respondeu ela, com modos distantes e superiores, afastando-se e entrando em casa. Paul não ligou e continuou a exploração. A mãe veio ter com ele e deram a volta aos edifícios. Paul estava deliciado.

– Suponho que ainda tenha de ir tratar das galinhas, das vitelas e dos porcos? – disse Mrs. Morel a Mrs. Leivers.

– Não – retorquiu a mulherzinha. – Não consigo arranjar tempo para tratar do gado, e, além disso, não estou habituada. O trabalho de casa já me chega.

– Sim, suponho que sim – disse Mrs. Morel.

Daí a pouco, a rapariga veio cá fora.

– O chá está pronto, mãe – disse, com uma voz suave, musical.

– Ah, obrigada, Miriam, já vamos – respondeu a mãe, toda ela amabilidade. – Podemos ir tomar o nosso chá agora, Mrs. Morel?

– Claro – disse Mrs. Morel. – Logo que estiver pronto.

Paul, a mãe e Mrs. Leivers tomaram chá juntos. Depois foram passear pelo bosque, inundado de campainhas-do-monte, enquanto os carreiros estavam reservados aos miosótis. Mãe e filho caminhavam os dois em êxtase.

Quando voltaram, Mr. Leivers e Edgar, o filho mais velho, estavam na cozinha. Edgar devia ter dezoito anos. Depois, chegaram da escola Geoffrey e Maurice, dois rapagões de doze e treze anos. Mr. Leivers era um homem bem-parecido, na força da vida, de bigode castanho-dourado e olhos azuis sempre assestados, a perscrutar o tempo.

– Foram dar uma volta? – perguntou ele a Paul, com entusiasmo.

– Não deu para ver tudo – respondeu o rapaz, saindo em seguida com Geoffrey e Maurice.

– Onde é que tu trabalhas? – perguntou Geoffrey. Eram os três muito tímidos.

– Na Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan, em Nottingham.

– E que fazes?

– Sou empregado de escritório.

– E fazes o quê?

– Copio cartas, faço encomendas e passo facturas.

– Que tipo de cartas copias?

– Oh... todo o tipo... a maior parte são a encomendar meias elásticas.

– Meias elásticas!... Qu’é isso?

Seguiram-se muitas explicações.

– E algumas das cartas vêm de França e de outros lugares – disse Paul.

– E tu tens d’as copiar?

– Claro.

– Em francês?

– Não... traduzo-as.

– Essa agora... então sabes francês?

– Sei alguma coisa... e alemão também.

– E quem t’ensinou?

– O meu padrinho... e também álgebra e geometria.

– Eu cá não faço tenções d’encher a cabeça com essas coisas – disse Geoffrey.

Os dois rapazes mostravam-se terrivelmente superiores, mas Paul nem dava por isso. Foram à procura de ovos, vasculhando em todos os lugares. Quando estavam a dar de comer às galinhas, Miriam saiu de casa. Os rapazes não lhe ligaram. Na capoeira es-tava uma galinha com os seus pintainhos amarelos. Maurice pegou numa mão-cheia de milho e deixou a galinha vir comer-lhe à mão.

– Tens coragem de fazer o mesmo? – perguntou ele a Paul.

– Vamos lá ver... – respondeu Paul.

Ele tinha a mão pequenina, quente e habilidosa. Miriam ficou a observá-lo. Paul aproximou a mão da galinha. A ave olhou para o milho com o seu olhar duro e brilhante e, de repente, deu-lhe uma bicada na mão. Paul assustou-se, mas depois riu-se. «Pic-pic-pic», fazia-lhe a galinha na palma da mão. Paul riu-se outra vez e os rapazes riram com ele.

– Ela ferra-nos e pica-nos, mas nunca faz doer – disse Paul, quando o milho se acabou.

– Agora, Miriam, é a tua vez – disse Maurice.

– Não – gritou ela, encolhendo-se.

– Olha, parece um bebé. És mesmo um bebé! – disseram os irmãos.

– Não dói nada – disse Paul. – São só uns beliscõezinhos muito agradáveis.

– Não – gritou ela mais uma vez, abanando os caracóis negros e encolhendo-se.

– Ela não s’atreve – disse Geoffrey. – Ela nunca s’atreve a fazer nada a não ser recitar poesia.

– Não s’atreve a saltar uma cancela... não s’atreve a brincar connosco... não s’atreve a fazer frente quando outra rapariga lhe bate... não é capaz de fazer nada a não ser andar por aí convencida qu’é alguém... «A Dama do Lago»... é isso mesmo! – gritou Maurice.

Miriam estava coradíssima de vergonha e infelicidade.

– Sou capaz de fazer mais coisas que vocês – gritou ela. – Vocês não passam duns cobardes e duns brigões.

– Olha, olha, «cobardes e brigões!» – repetiram eles, arremedando-a.

«Um palhaço assim nunca me enfurece.

Todo o brutamontes silêncio merece»

recitou ele, virado para ela, a rir às gargalhadas.

Ela voltou para casa. Paul foi com os dois rapazes até ao pomar, onde tinham montado à pressa duas barras paralelas. Aí chegados, entregaram-se às respectivas demonstrações de força. Paul era mais ágil do que possante, mas foi quanto bastou. Apontou para umas flores de macieira que estavam mesmo à ponta de um ramo balouçante.

– Eu cá, se fosse a ti, não apanhava as flores – disse Edgar, o mais velho dos irmãos. – Senão, prò ano não temos maçãs.

– Eu não ia apanhá-las – respondeu Paul, indo-se embora.

Os rapazes mostravam-se hostis com ele. Interessavam-lhes mais as suas próprias brincadeiras. Paul voltou para casa, para junto da mãe. Quando ia a contornar a casa pelas traseiras, viu Miriam ajoelhada diante da capoeira da galinha, com a mão cheia de milho, a morder o lábio, numa atitude de intensa concentração. A galinha fitava-a com maldade. Cautelosamente, ela estendeu a mão. A galinha atirou-se. Ela retirou rapidamente a mão, com um grito, misto de medo e frustração.

– Ela não te magoa – disse Paul.

Miriam pôs-se de pé, muito corada.

– Só queria experimentar – disse, muito baixinho.

– Vês... não dói nada – disse ele. E, colocando apenas dois grãos de milho na palma da mão, deixou a galinha bicá-lo à vontade. – Só dá vontade de rir – continuou Paul.

Ela estendeu a mão e retirou-a, tentou novamente e fugiu para trás, com um grito. Ele fez uma careta.

– Olha, eu até a deixava comer milho da minha cara – disse Paul. – Mas ela dá muitos encontrões. Ela faz isto com toda a perfeição! Se não fizesse, já imaginaste a quantidade de terra que ela ia comer todos os dias?

Esperou, muito sério, a observá-la. Finalmente, Miriam deixou a galinha bicar-lhe a mão. Deu um gritinho, de medo e dor, porque estava assustada, um gritinho patético. Mas tinha conseguido, e voltou a repetir a proeza.

– Estás a ver – disse o rapaz. – Não faz doer, pois não?

Ela fitou-o com os olhos escuros muito abertos.

– Não – disse ela, a rir e a tremer.

Depois levantou-se e foi para casa. Parecia de alguma forma ofendida com o rapaz.

«Ele deve achar que eu não passo duma rapariga como as outras», pensava ela, cheia de vontade de lhe provar que era uma grande personagem, como a «Dama do Lago».

Paul veio encontrar a mãe pronta para partir. Mrs. Morel sorriu para o filho, e ele pegou no grande ramo de flores. Mr. e Mrs. Leivers acompanharam-nos até ao fundo da quinta. As colinas douravam-se do entardecer, e nas profundezas dos bosques sobressaía o púrpura carregado das campainhas-do-monte. Por todo o lado estava o silêncio, apenas quebrado pelo restolhar das folhas e os pássaros.

– É de facto um lugar belíssimo – disse Mrs. Morel.

– É, sim – concordou Mr. Leivers. – É um lugar bem aprazível, o pior são os coelhos. Dão cabo das pastagens. Não sei se alguma vez iremos ter lucro.

Bateu as palmas e os campos cobriram-se de movimento, junto ao bosque: por toda a parte saltavam coelhos acastanhados.

– Até custa a acreditar! – exclamou Mrs. Morel.

Ela e Paul continuaram sozinhos daí para a frente.

– Foi um dia maravilhoso, não foi, mãe? – disse Paul, falando baixinho. A lua despontava, tímida. O coração doía-lhe de tanta felicidade. A mãe não se calava, pois também ela tinha vontade de gritar de felicidade.

– Então eu não ia ajudar um homem daqueles? Não ia tratar das galinhas e dos bezerros? Havia de aprender a ordenhar, e havia de conversar com ele, e fazer planos com ele. Palavra, se eu fosse mulher dele, aquela quinta ia de vento em popa, isso é que ia... Mas não, ela não tem forças... simplesmente não tem forças. Nunca devia ver-se sobrecarregada desta maneira, percebes. Tenho pena dela, e dele também. Palavra, se ele fosse meu, nunca diria que era um mau marido... Não que ela diga, lá isso não... E ela é até muito simpática.

William veio a casa outra vez, com a namorada, pelo Pentecostes. Tinham-lhe dado uma semana de férias. O tempo estava muito bonito. Geralmente, William, Lily e Paul iam juntos dar um passeio pela manhã. William não conversava muito com a namorada, excepto para lhe contar histórias da infância; mas Paul falava sem parar com qualquer deles. A certa altura, deitaram-se os três num prado, perto da igreja de Minton. De um dos lados, junto do parque do castelo, estendia-se ondulante uma cortina de choupos – uma beleza. As sebes cobriam-se de bagas pendentes de azevinho. Os campos salpicavam-se de margaridas e flores-de-cuco, como sorrisos. William, agora com vinte e três anos, era já um homem feito, muito alto, mas tão magro que era quase só pele e osso. Deitou-se ao sol, de costas, a sonhar, enquanto Lily brincava com o seu cabelo. Paul foi apanhar margaridas. Ela tinha tirado o chapéu. O seu cabelo era negro como a crina de um cavalo. Paul aproximou-se e entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo de azeviche, lembrando enormes lantejoulas brancas e amarelas, com um toque rosado de flores-do-cuco.

– Agora pareces uma bruxinha – disse o rapaz. – Não parece, William?

Lily deu uma gargalhada. William abriu os olhos e contemplou-a. O seu olhar era um misto confuso de tristeza e desmedida admiração.

– Ele transformou-me mesmo numa visão do Além? – perguntou ela, olhando para baixo, para o seu amado, a rir.

– Então não transformou! – disse William, a sorrir. E continuou deitado a olhar para ela. Os seus olhos nunca procuravam os dela. Não queria encontrar os olhos dela. Queria estar só a olhar para ela, não que os seus olhares se encontrassem. E esta vontade de a evitar, aflorava-lhe aos olhos como a tristeza. Ele desviou-os outra vez. Ela deixou a mão esguia, onde brilhavam diamantes, brincar no cabelo dele um pouco mais. Depois disse:

– O Paul sabe como fazer as coisas.

– Óptimo – disse William. – Desde que isso te faça feliz. Ele preenche-te as manhãs e eu as noites.

Ela voltou-se para Paul, e riu-se.

– Quero pôr-te mais três flores sobre a orelha – disse ele, de pé ao lado dela. – Depois, fica pronto.

Ela deixou, e ele entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo.

– Não sentes o perfume do sol nos teus cabelos? – perguntou Paul. – Estás a ver, era assim que devias ir aos bailes.

– Obrigada – disse ela, sempre a rir.

Levantaram-se.

– Não ponhas ainda o chapéu – disse Paul.

– Achas que sim? – perguntou ela a William. – Posso ir nesta figura?

William olhou para ela outra vez. A beleza dela quase o magoava. Olhou-lhe para a cabeça coberta de flores e torceu o nariz.

– Estás muito bonita assim, se é isso que queres saber.

E ela continuou o passeio sem chapéu. William logo se recompôs do mau humor e mostrou-se muito terno com ela. Ao chegarem a uma ponte, até gravou um coração com as iniciais dos dois.

 


Ela observou-o atentamente, vendo como a sua mão forte e nervosa, salpicada de pêlos cintilantes e de sardas, gravava no tronco o coração, o que parecia deixá-la fascinada.

Durante toda a estadia, enquanto William e Lily estiveram presentes, pairava dentro de casa um sentimento de tristeza e calor humano, e também de certa ternura. Mas muitas vezes ele irritava-se. Ela tinha trazido para uma semana cinco vestidos e seis blusas.

– Ouve, não te importas de me lavares estas duas blusas... e estas coisinhas? – disse ela a Annie.

E Annie ficou em casa a lavar roupa, enquanto, na manhã seguinte, William e Lily foram passear. Mrs. Morel ficou furiosa. Às vezes, ao aperceber-se da atitude da namorada para com a irmã, o jovem odiava-a pelo seu comportamento.

No domingo de manhã, Lily apareceu muito bonita, com um vestido leve, sedoso e esvoaçante, tão azul como as penas de um gaio, e um chapéu de palha coberto de rosas, onde dominava o carmim. As pessoas não se cansavam de a admirar. Mas, à noite, quando iam a sair, ela perguntou de novo:

– Fofinho, tens as minhas luvas?

– Quais delas? – perguntou William.

– As novas, as de camurça preta.

– Não.

Seguiu-se uma busca. Tinha-as perdido.

– Está a ver, mãe – disse William. – Já é o quarto par que ela perde desde o Natal... e cada par são cinco xelins.

– Tu só me deste dois pares – repontou ela.

E à noite, depois da ceia, ficou sentada no sofá e ele foi postar-se frente à lareira, farto dela. À tarde, tinha-a deixado sozinha para ir visitar um amigo de infância, e ela ficara a ver um livro. Depois da ceia, William quis ir escrever uma carta.

– Aqui tem o seu livro, Lily – disse Mrs. Morel. – Importa-se de ficar a ler mais um bocadinho?

– Não, obrigada, não quero o livro – disse a rapariga. – Prefiro ficar só aqui sentada.

– Mas isso é muito aborrecido...

William escrevia nervosamente, a grande velocidade. Quando estava a fechar o sobrescrito, disse:

– Ler um livro!... Essa é boa, ela nunca leu um livro na vida dela.

– Não digas isso! – disse Mrs. Morel, irritada com o exagero.

– É verdade, mãe... não leu mesmo – exclamou ele, pondo-se de pé num salto e retomando o seu lugar anterior, frente à lareira. – Nunca na vida leu um livro.

– Atão essa é como eu – interveio Morel. – Essa tamém num vê nada nos livros qu’a faça ficar sentada, aborrecida, de nariz infiado nas folhas. Pra quê? Eu tamém num vejo!

– Mas tu não devias dizer essas coisas – disse Mrs. Morel ao filho.

– Mas é verdade, mãe... ela não sabe ler... que livro é que lhe deu?

– Bem, dei-lhe um livrinho da Annie Swan. Ninguém quer ler coisas pesadas num domingo à tarde.

– Pois eu aposto que ela nem dez linhas leu.

– Aí é que tu te enganas – disse a mãe.

Lily assistia à discussão sentada no sofá, com um ar muito infeliz.

– Leste alguma coisa do livro? – perguntou-lhe ele.

– Li, sim – respondeu ela.

– Quantas páginas?

– Sei lá quantas páginas...

– Diz-me uma coisa que tenhas lido.

Ela não foi capaz.

– Cala-te, William – disse a mãe. – Que ideia a tua!

– Mas ela não consegue ler, mãe! – gritou ele, secamente. – Não consegue reter nada do que lê. Não sabe ler e não sabe falar. Não há assunto nenhum sobre o qual se possa conversar com ela. Só pensa em vestidos e em como todos a admiram.

– Não lhe ligue, Lily – disse Mrs. Morel.

– Só os parvos é que se sentam de nariz infiado nos livros, é o qu’eu digo – acrescentou Morel.

E a pobre rapariga continuava a ser agredida. Ele parecia odiá-la. Mais tarde, Mrs. Morel foi buscar-lhe um livro muito simples, e era patético vê-la arrastar-se penosamente pelas primeiras páginas na tarde chuvosa. Não conseguiu passar da segunda página. Ele lia muito, e possuía uma inteligência rápida, activa. Ela não entendia nada a não ser fazer amor e tagarelar. Ele estava habituado a ter todos os seus pensamentos peneirados pela mente da mãe. Por isso, quando procurava companhia e, em resposta, lhe era pedido que fosse apenas um amante, todo ele ternuras e gorgeios, odiava a namorada.

– Sabe, mãe – disse ele, quando à noite ficaram os dois sozinhos – ela não dá valor ao dinheiro, é um catavento. Quando recebe o ordenado, é capaz de gastar uma fortuna numa porcaria qualquer como, por exemplo, marrons glacés. E, depois, sou eu que tenho de lhe comprar o passe e todos os outros extras... até a roupa interior. E quer ela casar-se... Por mim, podíamos até casar já para o ano. Mas por este andar...?

– Ia ser um lindo casamento – respondeu a mãe. – Eu, se fosse a ti, pensava duas vezes, meu filho.

– Bom... Agora já fui longe de mais para romper com tudo – disse ele. – Por isso, o melhor é casar o mais depressa possível.

– Muito bem, meu filho. Se é isso que queres, assim será, e não se fala mais no assunto... Mas olha que eu não durmo quando penso nisso.

– Ela é boa rapariga, mãe. Cá nos havemos de arranjar.

– E ela deixa que sejas tu a comprar-lhe a roupa interior? – perguntou a mãe.

– Bem... – começou ele, apologético. – Ela nunca me pediu. Mas uma manhã... estava muito frio... encontrei-a na estação toda a tremer, nem conseguia estar parada. E então perguntei-lhe se estava bem agasalhada, e ela respondeu, «Acho que sim». E então eu disse «Trazes alguma camisola quente... de lã... por baixo?» E ela disse que não, que era de algodão. Perguntei-lhe por que carga de água não tinha vestido uma coisa mais quente com um frio daqueles, e ela disse que não tinha nada mais quente. E ainda por cima, com a bronquite que ela tem! Tive de pegar nela e ir comprar-lhe uma roupa mais quente... Sabe, mãe, o dinheiro era o menos, se nós o tivéssemos... Ela devia guardar o suficiente para o passe. Mas não... vem pedir-mo, e eu tenho de inventar o dinheiro...

– Belas perspectivas – disse Mrs. Morel, amargurada.

Ele estava pálido e no seu rosto já vincado, outrora tão sorridente e descuidado, estampavam-se o conflito e o desespero.

– Mas eu não posso acabar com tudo, não agora, as coisas já foram longe de mais – disse ele. – Além disso, para certas coisas, não posso passar sem ela...

– Meu filho, lembra-te de que se trata da tua vida – disse Mrs. Morel. – Nada pode ser pior do que um casamento que já está à partida irremediavelmente marcado pelo fracasso. O meu foi suficientemente mau, Deus sabe que sim, e devia ter-te ensinado alguma coisa... Mas ainda podia ter sido muito pior.

William estava encostado à ombreira da chaminé, de mãos no bolsos. Era um homem alto e esquelético, com ar de quem seria capaz de ir até ao fim do mundo, se lhe apetecesse. Mas a mãe lia--lhe o desespero no rosto.

– Agora não posso deixá-la.

– Está bem – disse a mãe. – Mas lembra-te de que há coisas piores do que romper um noivado.

Quedaram-se em silêncio, ele de olhar parado, fitando o espaço. Só a mãe lhe podia valer e, no entanto, não a deixava decidir por ele. Continuava preso ao que tinha feito.

– E, naturalmente – acrescentou Mrs. Morel, há muito mais nobreza em romper um noivado para evitar um mal maior do que em continuar só para cumprir uma promessa.

Ele mantinha-se estático, de olhar pregado no vazio.

– Eu não posso deixá-la agora – insistiu ele.

O relógio ia avançando. Mãe e filho continuaram em silêncio, em conflito. Mas ele nada mais disse. Por fim, ela disse:

– Bem, vai dormir, meu filho... amanhã sentes-te melhor... e talvez vejas as coisas com outros olhos.

O filho deu-lhe um beijo e foi deitar-se. Ela foi abafar o borralho, sentindo o coração pesado como nunca sentira antes. Antes, com o marido, parecia sentir ruir tudo dentro dela, mas nada lhe destruía a vontade de viver. Mas agora, era a própria alma que estava ferida. A própria esperança fora atingida.

William manifestou em muitas outras ocasiões o mesmo ódio pela noiva. Na última noite que passaram em casa dos pais, fartou-se de resmungar com ela.

– Bem – disse ele – já que não me acredita, que acha que ela não é nada assim, acredita pelo menos que ela foi crismada três vezes?

– Que disparate! – disse Mrs. Morel, perdida de riso.

– Disparate ou não, o certo é que foi mesmo! É isso que o Crisma significa para ela... teatro... um espectáculo onde pode brilhar.

– Não fui nada, Mrs. Morel – gritou a rapariga. – Não fui nada. Não é verdade.

– O quê! – gritou ele, avançando para ela. – Uma vez em Bromley, outra em Beckenham, e outra mais não sei onde.

– Em mais lado nenhum! – disse ela, a chorar. – Em mais lado nenhum.

– Foi, sim! E mesmo que não fosse, para que foste crismada duas vezes?

– Da primeira vez, só tinha catorze anos, Mrs. Morel – explicou ela, desculpando-se, de lágrimas nos olhos.

– Claro – disse Mrs. Morel. – Eu entendo perfeitamente, minha filha. Não lhe ligue. Devias ter vergonha, William, a dizeres estas coisas.

– Mas é verdade. Ela é religiosa... até tem livros de orações em veludo azul... mas liga tanto à religião, ou a outra coisa qualquer, como à perna daquela mesa. Ser crismada três vezes, só pelo espectáculo, só para se mostrar! E ela é assim em tudo o mais, em tudo!

A rapariga chorava, sentada no sofá. Não era um espírito forte.

– Até no amor! – gritou ele. – É o mesmo que pedir a uma mosca que nos ame. Só quer vir para cima de nós...

– Acabou-se! – disse Mrs. Morel, peremptória. – Se queres continuar a dizer esses disparates, tens de ir para outro lugar. Tenho vergonha de ti, William. Não sabes portar-te como um homem? Só a pôr defeitos na rapariga... e depois a fingires que estás noivo...! – Mrs. Morel sucumbiu à raiva e à indignação.

William mantinha-se em silêncio. Mais tarde, arrependido, foi dar um beijo à namorada e consolá-la. No entanto, tudo o que dissera era verdade, e odiava-a.

Quando partiram, Mrs. Morel acompanhou-os a Nottingham. A caminhada até à estação de Keston era longa.

– Sabe, mãe – disse ele –, a Ciganita é muito superficial... nada penetra nela a fundo...

– William, preferia que não dissesses essas coisas – pediu Mrs. Morel, sentindo-se constrangida com a presença da rapariga.

– Mas é que não penetra mesmo, mãe... Ela está muito apaixonada por mim, agora... Mas, se eu morresse, esquecia-me em três meses.

Mrs. Morel tinha medo. O seu coração batia furiosamente perante a amargura serena das últimas palavras do filho.

– Como sabes? – retorquiu. – Tu não podes saber... e, por isso, não tens o direito de dizeres uma coisa dessas.

– Ele está sempre com estas coisas! – exclamou a rapariga.

– Três meses depois de me enterrarem, já tu tinhas arranjado outro e nunca mais te lembravas de mim – disse ele. – É esse o amor que me tens!

Mrs. Morel meteu-os no comboio, em Nottingham, e voltou para casa.

– Sabes uma coisa? – disse ela pateticamente para Paul. – Não se entendem e nunca se hão-de entender. Como vai ser, se chegarem a casar, é de mais para a minha imaginação. Se ao menos ele a deixasse, já não precisava de a atormentar desta maneira. Mas vão ficar presos um ao outro até se matarem. Quando ele disse aquilo, a caminho de Keston, foi como se eu já não pudesse dar nem mais um passo. Pobrezinha, tenho pena dela. Mas não é mulher para ele, lá isso não é. É muito cruel dizê-lo, mas como ela é muito frágil, mais valia que morresse em vez de casar com ele.

Mrs. Morel não tirou o filho do pensamento durante todo o Verão. Ele parecia estar a dar cabo da vida. Mas o casamento parecia estar ainda demorado.

– Valha-nos pelo menos uma coisa – disse ela a Paul. – Ele nunca vai juntar dinheiro suficiente para se casar, disso tenho eu a certeza. É assim que ela o vai salvar.

E a ideia animava-a. As coisas ainda tinham remédio, e acreditava firmemente que William nunca chegaria a casar com a sua Cigana. Aguardava e mantinha Paul junto de si.

Durante todo o Verão, as cartas de William soavam febris. Parecia pouco natural e empolgado. Por vezes exageradamente alegre, mas geralmente sóbrio e amargo.

– Pois é – dizia a mãe. – Anda a dar cabo dele por causa daquela criatura que não merece o amor que ele lhe tem, que não passa duma boneca de trapos.

Ele só pensava em vir a casa. As férias de Verão já lá iam, e o Natal ainda estava muito longe. Escreveu muito entusiasmado a dizer que podia vir a casa no princípio de Outubro, passar um sábado e um domingo, para a Feira do Ganso.

– Tu não andas bem, meu filho – disse-lhe a mãe quando o viu. Tê-lo assim, só para ela, dava-lhe até vontade de chorar.

– Não, não tenho passado nada bem – disse ele. – Apanhei uma constipação que se arrastou durante todo o mês. Mas já estou melhor, acho eu.

Estava um dia soalheiro de Outubro. William parecia louco de alegria, como um garoto que se escapasse às aulas. Mas logo ficou calado e reservado. Estava mais esquelético que nunca e com os olhos encovados.

– Andas a trabalhar de mais – disse a mãe.

Fazia horas extraordinárias, para juntar dinheiro para se casar, segundo disse. Só conversou com a mãe uma vez, no sábado à noite. Depois, pôs-se muito triste, com saudades da namorada.

– Sabe uma coisa, mãe, apesar disto tudo, se eu morresse, ela ia chorar por mim durante dois meses, e depois tratava de me esquecer. A mãe havia de ver, ela nunca viria aqui visitar a minha sepultura nem uma só vez.

– Ora, William – disse a mãe –, tu não vais morrer, para quê falar nisso agora?

– Mas se acontecesse... – insistiu ele.

– Ela não tem culpa... ela é assim... e se tu a escolheste, não te podes queixar... – disse a mãe.

No domingo de manhã, quando estava a pôr o colarinho, William disse, levantando o queixo:

– Veja a borbulhagem que o colarinho me fez por baixo do queixo!

Mesmo na ligação do queixo com a garganta havia uma zona muito vermelha, toda irritada.

– Não te devia fazer isso – disse a mãe. – Toma, põe um pouco deste unguento. Devias mudar de colarinhos.

William partiu no domingo à noite, aparentemente melhor e mais forte, depois destes dois dias passados em casa.

Na terça-feira de manhã, chegou um telegrama de Londres dizendo que ele estava doente. Mrs. Morel, que estava a esfregar o chão, levantou-se, leu o telegrama, chamou uma vizinha, foi a casa da senhoria, pediu-lhe dinheiro emprestado, vestiu-se e partiu. Correu até à estação de Keston e apanhou o expresso para Londres em Nottingham, onde teve de esperar quase uma hora. Figurinha frágil, com o seu chapelinho preto, não parava de perguntar, ansiosa, aos carregadores se sabiam o caminho para Elmers End. A viagem demorou três horas. Foi sempre sentada no seu canto, embalada numa espécie de torpor, sem se mexer. Na estação de King’s Cross também ninguém sabia indicar-lhe o caminho para Elmers End. Com o saco de rede na mão, com a camisa de noite, um pente e uma escova, ia de pessoa em pessoa, fazendo sempre a mesma pergunta. Por fim, mandaram-na apanhar o metropolitano até Cannon Street.

Eram seis horas quando chegou ao apartamento de William. As persianas não estavam corridas.

– Como está ele? – perguntou.

– Na mesma – disse a dona da casa.

Mrs. Morel subiu a escada atrás da senhoria. William estava deitado na cama, com os olhos injectados de sangue, muito pálido. A roupa estava espalhada pelo chão, o lume estava apagado e tinha um copo de leite na mesa de cabeceira. Ninguém viera vê-lo.

– Então, meu filho, que foi isto? – disse a mãe, mostrando coragem.

Ele não respondeu. Olhava para ela, mas não a via.

Depois, começou a dizer numa voz monocórdica, como se ditasse uma carta: «Devido a uma brecha no casco do navio, o açúcar tornou-se num bloco, cristalizou. Foi preciso parti-lo com um machado...»

Estava completamente inconsciente. Um dos seus trabalhos tinha sido ir examinar esse tal carregamento de açúcar no porto de Londres.

– Há quanto tempo está ele assim? – perguntou a mãe à senhoria.

– Chegou a casa às seis horas da manhã na segunda-feira e aparentemente dormiu o dia todo. À noite, ouvimo-lo a falar, e esta manhã chamou por si. Por isso, mandei o telegrama e chamámos o médico.

– Não se importa de acender o lume?

Mrs. Morel tentava acalmar o filho, mantê-lo quieto.

O médico chegou. Era uma pneumonia e, segundo disse, uma forma rara de erisipela, que tinha começado debaixo do queixo, provocada pelo roçar do colarinho, e se estava a espalhar a toda a cara; e esperava bem que não lhe atingisse o cérebro.

Mrs. Morel ficou a cuidar dele. Rezava por William, rezava para que ele a reconhecesse. Mas a cara do jovem cada vez perdia mais as cores. De noite, teve de lutar com o filho. Ele delirou e tornou a delirar, sem nunca recobrar a consciência. E morreu às duas da manhã, num paroxismo atroz.

Durante uma hora, Mrs. Morel permaneceu estática, sentada no quarto do filho. Depois, acordou toda a casa.

Às seis da manhã, vestiu-o com a ajuda da mulher da limpeza e em seguida saiu e foi à procura do registo civil e do médico daquele lúgubre subúrbio londrino.

Às nove horas, novo telegrama para Scargill Street: «William morreu esta noite. Dizer pai venha e traga dinheiro.»

Annie, Paul e Arthur estavam em casa. Mr. Morel tinha ido trabalhar. As três crianças não disseram uma palavra. Annie começou a choramingar, com medo. Paul foi chamar o pai.

O dia estava lindo. Na mina de Bretty, o vapor branco fundia-se lentamente com a luz do sol no céu azul, muito ameno, as roldanas da torre brilhavam no alto do aterro, e a peneira não se calava, sempre a deitar o carvão para os vagões.

– Tenho de falar com o meu pai... ele tem de ir já para Londres – disse o rapaz ao primeiro homem que encontrou no aterro.

– Queres falar com Walter Morel?... Vai ‘í dentro e diz ò Joe Ward.

Paul entrou no escritório de cima.

– Quero o meu pai... ele tem de ir pra Londres.

– O teu pai... está na mina? Quem é ele?

– Mr. Morel.

– Quem, o Walter? Aconteceu alguma coisa?

– Ele tem de ir já pra Londres.

O homem foi para o telefone e ligou para o escritório de baixo.

– Chamem o Walter Morel... 42 Hard. Aconteceu alguma coisa... o filho dele tá ‘qui.

Depois, voltou-se para Paul, e disse:

– Daqui a cinco minutos ele já aí está.

Paul foi até ao topo da mina. Viu a caixa subir, com o carregamento de carvão. A grande gaiola de ferro descansou sobre os apoios, a carga foi retirada, um contentor vazio deslizou sobre os apoios, algures tilintou uma campainha, a gaiola elevou-se e caiu como uma pedra.

Paul não acreditava que William estivesse morto... era impossível, com tanta azáfama por todo o lado. O mineiro de serviço empurrou o pequeno contentor para cima da placa giratória, e um outro homem levou-a pelo aterro fora, pelos trilhos sinuosos. «O William está morto e a minha mãe em Londres; que estará ela a fazer?», perguntava-se ele, como se se tratasse de uma charada.

Viu os contentores subirem uns atrás dos outros, e nem sinais do pai. Por fim, o vulto de um homem desenhou-se ao lado de um vagão! A gaiola descansou sobre os apoios e Morel desceu. Coxeava ligeiramente, devido a um acidente.

– És tu, Paul!... Ele tá pior?

– Tem de ir já pra Londres.

Desceram os dois o aterro, lado a lado, sob os olhares curiosos dos mineiros. Quando deixaram a mina e seguiam já ao longo da via férrea, com os campos soalheiros de Outono de um dos lados e um muro de vagões do outro, Morel perguntou, com o medo na voz:

– Ele não se curou, filho?

– Não.

– E quando foi?

Havia terror na voz do mineiro.

– Esta noite... Chegou um telegrama da mãe.

Morel deu mais alguns passos e depois encostou-se a um vagão e fincou as mãos nos joelhos. Mas não chorou. Paul olhou em volta, à espera. Um vagão balouçou lentamente em cima da balança. Paul via tudo, menos o pai, encostado ao vagão, como se estivesse cansado.

Morel só tinha ido uma vez a Londres. Pôs-se a caminho, assustado e lívido, para ir ajudar a mulher. Isto passou-se numa terça-feira. Os filhos ficaram sozinhos em casa. Paul foi trabalhar, Arthur para a escola e Annie chamou uma amiga para lhe fazer companhia.

No sábado à noite, quando Paul dobrava a esquina, de regresso de Keston, viu a mãe e o pai, que vinham da estação de Lethley Bridge. Caminhavam no escuro, em silêncio, cansados, separados. O rapaz ficou à espera.

– Mãe! – disse ele, da escuridão.

A figura franzina de Mrs. Morel pareceu não dar por ele. Paul insistiu.

– Paul! – disse ela, indiferente. Deixou-o dar-lhe um beijo, mas parecia não o ver.

Em casa foi a mesma coisa, franzina, pálida e muda. Não via nada, não dizia nada, excepto:

– O caixão chega hoje à noite, Walter. É melhor pedires ajuda. – E, depois, voltando-se para os filhos: – Vamos trazê-lo para casa.

Em seguida mergulhava num mutismo duradouro, de olhar perdido no espaço e mãos cruzadas sobre o regaço. Paul, ao vê-la assim, quase não podia respirar. Reinava em toda a casa um silêncio de morte.

– Fui trabalhar, mãe – disse Paul, tristemente.

– Ah, foste – respondeu ela, indiferente.

Passada meia hora, Morel, preocupado e confuso, entrou em casa.

– Onde havemos d’o pôr, quand’ele chegar? – perguntou à mulher.

– Na sala da frente.

– Então é melhor eu tirar de lá a mesa.

– Está bem.

– E botá-lo em cima das cadeiras?

– Tu lá sabes... sim... acho que sim.

Morel e Paul pegaram numa vela e foram para a sala. Lá não havia gás. O pai desaparafusou o tampo oval da grande mesa de mogno e libertou o centro da sala. Depois dispôs seis cadeiras em frente umas das outras, de forma a poderem suportar o caixão.

– Nunca vi ninguém mais comprido! – disse o mineiro, olhando em volta, ansioso, enquanto trabalhava.

Paul foi à janela e olhou para a rua. O freixo erguia-se monstruoso e negro, contra a imensa escuridão. Estava uma noite sem luar. Depois, voltou para junto da mãe.

Às dez horas, Morel anunciou:

– Chegou!

Todos estremeceram. Ouviu-se destrancar e abrir a porta da frente, que dava passagem directa da noite escura para dentro da sala.

– Tragam outra vela – gritou Morel.

Annie e Arthur foram buscá-la. Paul acompanhou a mãe. Estava ao lado dela, encostado à porta interior, passando-lhe o braço pela cintura. No meio da sala vazia havia seis cadeiras à espera, viradas umas para as outras. Junto à janela, Arthur segurava uma vela, encostado às cortinas de renda, e junto à porta aberta, virada para a noite, estava Annie, inclinada para a frente, com a palmatória de latão a cintilar.

Ouviu-se o barulho de um rodado. Lá fora, na escuridão da rua, Paul viu cavalos e um veículo negro, um lampião e alguns rostos empalidecidos. Depois, alguns homens – mineiros – todos em mangas de camisa, que pareciam debater-se na penumbra densa. Por fim, apareceram dois homens, vergados sob a pesada carga. Era Morel e o vizinho.

– Firme! – disse Morel, sem fôlego.

Ele e o companheiro subiram o degrau alto do jardim e surgiram à luz da vela, segurando uma das extremidades cintilantes do caixão. Mais braços, de outros homens, agitavam-se por detrás deles. Morel e Burns, à frente, vacilaram. A carga negra, pesadíssima, balançou.

– Firme, firme! – gritou Morel, num grito de dor.

Os seis carregadores já estavam todos no jardim, trazendo o caixão pelo ar. Havia ainda mais três degraus até à porta. A lanterna amarelada da carruagem brilhava sozinha, na estrada de breu.

– Agora! – disse Morel.

O caixão balançou, os homens começaram a subir os degraus com a sua carga. A chama da vela de Annie tremulou e ela começou a chorar ao ver surgir os primeiros homens. Os braços e as cabeças curvadas dos seis homens lutavam para vencerem a subida até à sala com o caixão, transportando o peso do sofrimento sobre a sua carne viva.

– Oh, meu filho... meu filho! – disse Mrs. Morel, baixinho, como se entoasse. E, de novo, de cada vez que o caixão balançava ao passo desigual dos carregadores:

– Oh, meu filho... meu filho... meu filho!

– Mãe! – disse Paul, a chorar, com o braço em volta da cintura dela. – Mãe!

Ela não ouviu.

– Oh, meu filho... meu filho! – repetia.

Paul via gotas de suor pingarem da testa do pai. Os seis homens estavam na sala, seis homens em mangas de camisa, de braços exaustos que se debatiam com a sua carga, enchendo a sala e indo de encontro aos móveis. O caixão desceu e foi suavemente pousado sobre as cadeiras. O suor pingava da testa de Morel sobre o rebordo.

– Palavra d’honra, manda cá um peso! – disse um dos homens, e os cinco mineiros soltaram um suspiro, curvaram-se perante o caixão e, trémulos da luta, desceram novamente os degraus, fechando a porta atrás de si.

A família ficou sozinha na sala com a enorme caixa envernizada. William, esticado, tinha seis pés e quatro polegadas de comprimento. O imponente caixão, de um castanho brilhante, jazia qual monumento. Paul pensou que nunca mais iam conseguir tirá-lo dali. A mãe acariciava a madeira envernizada.

Foi a enterrar na segunda-feira, no pequeno cemitério da encosta, alcandorado sobre os campos, dominando a igreja e o casario. Estava um dia de sol e os crisântemos brancos encaracolavam as pétalas ao calor.

Depois de tudo isto, nada conseguia persuadir Mrs. Morel a falar e a recuperar a sua antiga força de viver. Continuava fechada sobre si mesma. Quando voltava para casa, no comboio, tinha pensado para consigo: «Se ao menos tivesse sido eu.»

Quando Paul chegou a casa à noite, encontrou a mãe sentada com as mãos no regaço, sobre o tosco avental, já com a lida da casa despachada. Era sempre costume trocar de vestido e pôr um avental preto. Mas desta vez foi Annie quem lhe pôs a ceia, e a mãe continuou sentada em frente dela, de olhar vazio e lábios cerrados. Paul deu voltas à cabeça para arranjar novidades para lhe contar.

– Mãe, Miss Jordan apareceu lá hoje e disse que o meu esboço de uma mina a laborar estava muito bom...

Mas Mrs. Morel nem prestou atenção. Noite após noite, Paul esforçava-se por lhe contar coisas, mesmo que ela o não escutasse. Quase o enlouquecia vê-la neste estado. Até que:

– Que tem, mãe? – perguntou ele. Ela não ouviu.

– Que tem? – insistiu. – Mãe, o que é que tem?

– Sabes bem o que é que eu tenho – disse ela, irritada, virando-lhe as costas. O rapaz – tinha agora dezasseis anos – foi para a cama tristíssimo. Passou Outubro, Novembro e Dezembro sentindo-se rejeitado, um desgraçado. A mãe bem tentava, mas não conseguia reagir. Tudo o que fazia era pensar no filho morto, que tão cruelmente tinham deixado morrer.

Por fim, no dia 23 de Dezembro, Paul voltou para casa como um sonâmbulo, com os cinco xelins da gratificação de Natal no bolso. A mãe olhou para ele e o seu coração parou.

– O que se passa? – perguntou ela.

– Sinto-me mal, mãe! – respondeu ele. – Mr. Jordan deu-me cinco xelins de gratificação. – E estendeu-os à mãe, com a mão trémula. Ela pô-los em cima da mesa.

– A mãe não parece satisfeita – disse ele, como se ralhasse.

Mas Paul tremia violentamente.

– Onde é que te dói? – disse ela, desabotoando-lhe o sobretudo.

Era a velha pergunta.

– Sinto-me mal, mãe.

Ela despiu-o e meteu-o na cama. Era uma pneumonia, e grave, disse o médico.

– Ele podia não a ter apanhado, se eu o tivesse obrigado a ficar em casa e não o deixasse ir para Nottingham? – foi uma das primeiras coisas que perguntou.

– Podia não ser tão grave – disse o médico.

Mrs. Morel encontrou na resposta a sua própria condenação.

– Devia ter-me preocupado com os vivos, e não com os mortos – disse para consigo.

Paul esteve muito mal. A mãe passava as noites ao seu lado, pois não tinham dinheiro para uma enfermeira. O seu estado piorou e a fase crítica aproximava-se. Uma noite recobrou a consciência, num daqueles paroxismos fantasmagóricos e doentios de dissolução, em que todas as células do corpo parecem estilhaçar-se à pressão extrema da irritabilidade, e a consciência, como em estados de loucura, tem um derradeiro arrobo de vitalidade.

– Vou morrer, mãe! – gritou ele, soerguendo-se da almofada, lutando para respirar.

Ela ajudou-o, chorando baixinho:

– Oh, meu filho, meu filho!

Isto trouxe-o de volta. Apercebeu-se da presença da mãe. A sua força de vontade empertigou-se e prendeu-o à vida. Pousou a cabeça do peito dela e repousou no seu amor.

– De certa forma – disse a tia – foi até bom o Paul ter tido aquela doença no Natal. Foi isso que salvou a mãe.

Paul esteve de cama sete semanas. Levantou-se, finalmente, pálido e muito fraco. O pai tinha-lhe comprado um vaso de tulipas vermelhas e douradas. Era vê-las, a brilhar como fogo na janela, ao sol de Março, enquanto ele ficava sentado no sofá a conversar com a mãe. Tagarelavam os dois em perfeita intimidade. Mrs. Morel vivia agora para Paul.

William tinha sido profético. Mrs. Morel recebeu uma lembrança e uma carta de Lily pelo Natal. Da irmã de Mrs. Morel, uma carta pelo Ano Novo.

«Fui ontem a um baile. Encontrei lá pessoas adoráveis e diverti-me imenso», dizia a carta. «Não perdi uma dança... nem uma.»

Mrs. Morel nunca mais teve notícias dela.

Morel e a mulher viveram em harmonia durante algum tempo depois da morte do filho. Ele costumava quedar-se, como num êxtase, de olhos esbugalhados e olhar perdido. Depois, levantava-se de repente e ia para o Three Spots, voltando já no seu estado normal. Mas nunca mais foi passear para os lados de Shepstone, para não passar pelo escritório onde o filho trabalhara, e evitava passar pelo cemitério.


SEGUNDA PARTE


VII

AMOR DE ADOLESCENTES

NO OUTONO, Paul estivera várias vezes em Willey Farm e tinha-se tornado amigo dos dois rapazes mais novos. De início, Edgar, o mais velho, não se mostrava muito receptivo, e Miriam furtava-se também a qualquer aproximação. Tinha medo de ser desprezada pelos próprios irmãos. Rapariga de alma romântica, em toda a parte via heroínas de Walter Scott, cortejadas por cavaleiros de armadura ou chapéus emplumados. Ela própria era, na sua imaginação, uma princesa transformada em guardadora de porcos. E receava que aquele rapaz, parecido embora com um herói de Walter Scott, que pintava, falava francês, sabia álgebra e viajava todos os dias de comboio para Nottingham, visse nela simplesmente a guardadora de porcos e fosse incapaz de vislumbrar a princesa que nela se ocultava. Por isso, fugia dele.

A sua melhor amiga era a mãe. Ambas de olhos castanhos e dadas ao misticismo, eram daquelas mulheres que guardam a religião ciosamente no coração e para quem a religião é como o ar que respiram, como um véu de bruma que lhes filtra a vida. Assim, para Miriam, Cristo e Deus formavam uma só imagem sublime que ela amava com fervor, apaixonadamente, sempre que um imenso pôr do Sol incendiava o céu poente; sempre que os heróis e as heroínas – os Brian de Bois Gilberts, os Rob Roys e os Guy Mannerings; as Edites, as Lucys e as Rowenas – faziam restolhar as folhas matinais encharcadas de sol, ou se vinham sentar com ela nas alturas do seu quarto, sonhadores e solitários, quando a neve caía. Isto sim, era para ela viver. Quanto ao resto, cuidava da lida da casa, trabalho que não lhe seria pesado, se o chão de tijoleira bem polida não ficasse logo todo patinhado das pesadas botas dos irmãos; queria à viva força que o irmão mais novo, de quatro anos, a deixasse envolvê-lo e cobri-lo com o seu amor; ia à igreja, reverente, em pose contrita, e sofria angustiada perante a vulgaridade das outras meninas de coro e a banalidade da voz do cura; envolvia-se em lutas com os irmãos, que considerava uns brutamontes; e não tinha o pai em grande estima por não albergar no coração quaisquer ideais místicos, e ter como únicas ambições uma vida sem preocupações e a comida na mesa a tempo e horas.

Miriam detestava a sua condição de guardadora de porcos. Queria ser respeitada. Queria instruir-se, pensando que, se fosse capaz de ler, como Paul dizia que era, a Colomba ou a Voyage Autour de ma Chambre, o mundo a veria com outros olhos e teria por ela um profundo respeito. Como jamais poderia ser princesa por fortuna ou condição, ansiava possuir conhecimentos de que pudesse orgulhar-se; era diferente das outras pessoas e não queria ser confundida com a arraia-miúda. Ser instruída era a única marca de distinção a que pensava poder aspirar.

A sua beleza, misto de timidez, rebeldia e sensibilidade, não tinha para ela qualquer valor. Nem mesmo a sua alma, tão dada a arrebatamentos, lhe era suficiente. Precisava de algo mais que reforçasse o seu orgulho, pois sentia-se diferente das outras pessoas. Olhava Paul com vaga melancolia. De uma maneira geral, desprezava o sexo masculino. Neste caso, porém, ele era um exemplar diferente, ágil, leve, gracioso, que tanto podia mostrar-se gentil como insuportável, que era inteligente e culto, que já tinha passado por uma morte na família. O pouco que o rapaz sabia guindava-o aos píncaros a seus olhos. Contudo, esforçava-se por desprezá-lo por ele não conseguir ver nela a princesa, mas tão-só a guardadora de porcos.

Paul mal reparava nela.

Um dia, porém, adoeceu gravemente e ela sentiu que com isso ele iria enfraquecer. Se assim fosse, seria ela a mais forte e então poderia amá-lo. Se pudesse ser sua amante na fraqueza, cuidar dele, tê-lo na sua dependência, se ao menos pudesse tê-lo nos seus braços, com que força o amaria!

Assim que os céus desanuviaram e as ameixoeiras floriram, Paul partiu para Willey Farm na carroça do leiteiro. Mr. Leivers gritou pelo rapaz em tom amigável e conduziu o cavalo lentamente pela encosta acima, ao fresco da manhã, dando estalinhos com a língua para o incitar. No céu passavam nuvens brancas que se iam juntar para lá das colinas, agora visíveis à luz primaveril. As águas do Nethermere jaziam em baixo, muito azuis, em contraste com os prados ressequidos e os espinheiros.

Era uma viagem de quatro milhas e meia. Nas cercas, minúsculos botões em tons vivos e brilhantes desabrochavam em rosetas e os tordos pairavam e os melros piavam e gralhavam. Era um mundo novo, fascinante.

Miriam, espreitando da janela da cozinha, viu o cavalo transpor o grande portão branco do pátio, recortando-se contra o bosque de carvalhos desfolhados, em fundo. Nisto, um rapaz envergando um casacão muito grosso saltou para o chão e estendeu as mãos para segurar o chicote e a manta que o lavrador sadio e bem-humorado lhe entregava.

Miriam assomou-se à porta. Tinha quase dezasseis anos, era linda, de faces rosadas, ar grave e uns olhos subitamente dilatados, como em êxtase.

– Vejo – disse Paul virando-se envergonhado – que os teus narcisos estão quase a desabrochar. Não será cedo de mais? Não achas que está ainda muito frio?

– Frio? – repetiu Miriam, na sua voz terna e musical.

– O verde dos botões... – e Paul interrompeu-se, timidamente.

– Deixa-me levar-te a manta – disse Miriam, com exagerada amabilidade.

– Eu posso bem levá-la – respondeu ele, mostrando-se ofendido. Contudo, entregou-lha.

Entretanto, apareceu Mrs. Leivers.

– Deves estar cansado e cheio de frio – disse ela. – Dá-me o casaco. Que pesado.... não vais longe com ele.

Ajudou-o a despir o casacão, amabilidade a que o rapaz não estava habituado, e quase sucumbiu a tanto peso.

– Ena, mulher – disse o lavrador a rir, quando passou pela cozinha com as grandes bilhas de leite a baloiçar. – Tás aí que nem t’aguentas. – Ela ajeitou as almofadas no sofá para o rapaz se encostar.


CONTINUA

Paul, sempre atrás dele, contornou o balcão quadrangular. A sala onde estava ficava no segundo andar. Tinha um grande buraco no meio do chão, rodeado por um muro de balcões, e era por essa abertura que subiam e desciam os elevadores e passava a luz para o andar de baixo. No tecto, na mesma direcção, havia também um buraco oblongo, e, olhando para cima, podiam ver-se algumas máquinas para lá da cercadura de protecção do andar superior; e, logo por cima, uma clarabóia por onde entrava a luz para os três andares, tornando-se cada vez mais fraca à medida que se descia mais fundo, o que deixava o rés-do-chão às escuras e o primeiro andar na penumbra. A fábrica estava instalada no último andar, o armazém no segundo e a arrecadação no rés-do-chão. O lugar era velho e insalubre.

Paul foi levado para um canto muito escuro.

– Aqui é a secção Espiral – disse o empregado. – Tu fazes a Espiral com o Pappleworth. É ele o teu chefe, mas ainda não veio. Só chega lá para as oito e meia. Por isso, se quiseres, podes ir buscar as cartas a Mr. Melling, ali adiante.

E o jovem apontou para o tal velho do gabinete do fundo.

– Está bem – disse Paul.

– Está aqui uma escápula para pendurares o boné... e aqui tens os livros de registo da correspondência. Mr. Pappleworth já não deve demorar.

E o jovem, muito magro, afastou-se altaneiro, com grandes passadas desenvoltas, que ressoavam secas no soalho.

Passados um ou dois minutos, Paul parou à porta do gabinete envidraçado. O velho funcionário, com o seu bonezinho, olhou-o por cima dos óculos.

– Ora muito bom dia – disse, afável e enfático. – Queres as cartas para levares para a Espiral, não é, Thomas?

Paul não gostou que ele lhe chamasse Thomas, mas pegou nas cartas e voltou para o seu recanto escuro, onde o balcão dobrava em ângulo, onde acabava a prateleira das embalagens, e onde, mesmo ao canto, se abriam três portas. Paul sentou-se num banco alto e começou a ler as cartas, pelo menos, aquelas cuja letra era mais legível. Diziam o seguinte:

«Queira enviar-me por favor, com a máxima urgência, um par de meias de seda Espiral para senhora, sem pé, idênticas às que me enviou o ano passado... altura... da anca ao tornozelo... etc.»

Ou então: «O Major Chamberlain deseja renovar o anterior pedido de uma ligadura suspensória em seda, não elástica.»

Muitas destas cartas, algumas delas em francês ou norueguês, eram um quebra-cabeças para o rapaz, que aguardava ansioso, sentado no banco, a chegada do «chefe». Às oito e meia, sofreu um ataque de timidez quando as raparigas do andar de cima passaram por ele a correr.

Mr. Pappleworth apareceu por volta das vinte para as nove, a mastigar uma pastilha elástica de mentol, quando já todos estavam a trabalhar. Era um homem magro e pálido, de nariz vermelho e gestos rápidos e peremptórios, trajando com austera elegância. Devia andar pelos trinta e seis anos e havia nele algo de canino, garboso, brincalhão e astuto, afectuoso talvez, mas simultaneamente algo de ligeiramente desprezível.

– És o meu novo ajudante? – perguntou. Paul pôs-se de pé e disse que sim.

– Foste buscar as cartas?

Mr. Pappleworth continuou a mastigar a pastilha.

– Sim.

– Copiaste-as?

– Não.

– Então anda cá, vamos pôr-te operacional. Já trocaste de casaco?

– Não.

– O melhor é trazeres um casaco velho e guardá-lo aí.

As últimas palavras foram pronunciadas com a pastilha apertada de lado, entre os queixais. Desapareceu na penumbra, por detrás da enorme prateleira das embalagens, e reapareceu já sem casaco, com uma elegante camisa às riscas com os punhos dobrados, deixando a descoberto uns braços magros e peludos. Depois, enfiou o outro casaco. Paul reparou na magreza deste homem e em como as calças faziam pregas no traseiro. Pegou num banco, puxou-o para junto do rapaz e sentou-se.

– Senta-te – disse o homem. Paul sentou-se. Mr. Pappleworth estava muito próximo dele. Pegou nas cartas, tirou um livro comprido, de registos, da prateleira em frente, abriu-o, pegou numa caneta e disse:

– Agora, presta atenção... Vais copiar estas cartas para aqui.

Fungou duas vezes, deu uma mastigadela na pastilha, olhou demoradamente para uma carta, quedou-se pensativo e deu entrada da carta rapidamente, numa caligrafia bonita e floreada. Depois, olhou de relance para Paul.

– Estás a ver?

– Estou.

– Achas que consegues fazer o mesmo... e bem feito?

– Acho que sim.

– Então, está bem... vamos lá a ver.

Saltou para o chão. Paul pegou numa caneta. Mr. Pappleworth desapareceu. Paul gostava bastante de copiar cartas, mas escrevia devagar, laboriosamente, e muito mal. Ia ele na sua quarta carta, todo feliz e atarefado, quando Mr. Pappleworth voltou.

– Ora vejamos... que tal vai isso... já ’cabaste?

Debruçou-se sobre o ombro do rapaz, sem parar de mastigar e a cheirar a mentol.

– Diabos me levem, rapaz... Mas que belo escritor que tu me saíste! – exclamou ele, trocista. – Não te rales, quantas já fizeste? Só três! Eu tinh’até tido tempo de sobra pràs comer. Continua, miúdo, e numera-as... assim, tás a ver? Continua!

Paul não largava as cartas, enquanto Mr. Pappleworth tratava de outros assuntos. Nisto, soou um apito agudo mesmo junto ao ouvido dele, e o rapaz assustou-se. Mr. Pappleworth aproximou-se, tirou um tampão de dentro de um tubo e disse, numa voz inesperadamente agreste e autoritária:

– Sim!

Paul ouviu uma voz sumida, provavelmente de mulher, a sair pelo tubo. Ficou embasbacado, pois nunca tinha visto um tubo falante.

– Bem – disse Mr. Pappleworth, num tom agastado, falando para o tubo – nesse caso, o melhor é fazer algum do trabalho em atraso.

De novo a voz aguda da mulher se fez ouvir, com um timbre bonito, mas zangado.

– Não tenho tempo para estar aqui a ouvi-la tagarelar – disse Mr. Pappleworth, e em seguida tapou o tubo.

– Vá, miúdo, despacha-te – disse ele, suplicante, virando-se para Paul. – Era a Polly aos gritos, quer as encomendas. Não consegues andar um bocadinho mais depressa? Vá... sai daí.

Pegou no livro, para imenso desgosto de Paul, e começou ele mesmo a escrever. Fazia-o depressa e bem. Uma vez terminadas as cópias, pegou numas tiras compridas de papel amarelo, com cerca de sete centímetros de largura, e preencheu as encomendas para enviar às operárias.

– É melhor prestares atenção – disse ele a Paul, sem se interromper. Paul olhou para aqueles estranhos desenhos de pernas, coxas e tornozelos, cheios de traços e números, e algumas instruções, com que o chefe preenchia as tiras amarelas. Quando acabou, Mr. Pappleworth saltou do banco.

– Vem comigo – disse ele, e, de papéis amarelos a esvoaçar na mão, desapareceu por uma porta e desceu uma escada em direcção à cave, onde ardia uma lamparina de gás. Atravessaram a arrecadação húmida e fria, depois uma sala comprida e lúgubre com uma mesa enorme assente sobre cavaletes e entraram numa sala mais pequena e acolhedora, de tectos não muito altos, que tinha sido construída como anexo do edifício principal. Nesta sala estava uma mulher de pequena estatura, com uma blusa de sarja vermelha e cabelo preto apanhado ao alto num carrapito, em atitude expectante, de galarote.

– Cá tão elas – disse Pappleworth.

– Eu penso que será «Cá estão elas»! – exclamou Polly. – As raparigas estiveram aqui à espera quase meia hora. Pense só no tempo que se perdeu!

– Pense mas é em fazer o seu trabalho e falar menos – disse Mr. Pappleworth. – Podia ter despachado outras coisas.

– Sabe muito bem que despachámos tudo no sábado – gritou Polly, avançando para ele faiscante.

– Blá-blá-blá! – arremedou-a o homem. – Aqui tem o seu novo ajudante. Não dê cabo deste como deu do outro.

– Como nós demos do outro! – repetiu Polly. – Pois é, nós damos cabo de muita coisa, olá se damos. Também lhe digo que qualquer rapaz tinha de ficar estragado depois de estar ao pé de si.

– Vá, vá... agora é hora de trabalhar, não de conversar – disse Mr. Pappleworth num tom seco e severo.

– Também há pouco era – disse Polly, afastando-se de cabeça bem erguida. Tinha um corpo pequeno e escorreito, de quarenta anos.

Na dita sala havia duas máquinas redondas, espiraladas, em cima do poial da janela. Na sala ao lado, que comunicava com a primeira e era mais comprida, havia outras seis máquinas. Algumas raparigas dignamente vestidas e de aventais brancos conversavam umas com as outras, formando um pequeno grupo.

Não têm mais nada para fazer? – disse Mr. Pappleworth.

– Só esperar por si – disse uma delas, bem bonita, rindo com gosto.

– Bom, toca a trabalhar, toca a trabalhar – disse ele. – Anda, miúdo. Da próxima vez, já sabes o caminho.

Paul correu escada acima atrás do chefe. Mandaram-no conferir algumas facturas e fazer outras. Ele arrimou-se à secretária, esforçando-se por cumprir a tarefa na sua caligrafia execrável. Nisto, Mr. Jordan aproximou-se, vindo do gabinete envidraçado, e, para grande atrapalhação de Paul, veio pôr-se mesmo por detrás dele. Subitamente, um dedo gordo e vermelho espetou-se sobre o documento que ele estava a preencher.

– Mr. J. A. Bates, Esquire! – bradou uma voz irada, junto ao seu ouvido.

Paul olhou para o «Mr. J. A. Bates Esquire» escrito na sua letra tortuosa, e perguntou-se o que estaria mal agora.

– Não te ensinaram a fazer como deve ser, enquanto andavas na escola? Se se põe «Mr.», não se põe «Esquire»... um homem não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.

O rapaz, lamentando a sua prodigalidade no modo como esbanjava títulos, hesitou e, com dedos trémulos, apagou a palavra «Mr.». Mas logo Mr. Jordan lhe arrancou a factura das mãos.

– Faz outra! Ou vais mandar isto a um cavalheiro? – E rasgou a factura azul, irritadíssimo.

Paul recomeçou, com as orelhas a arder de vergonha, sob o olhar atento de Mr. Jordan.

– Não sei o que é que eles vos ensinam na escola. Devias escrever muito melhor do que isso. Hoje em dia, os miúdos não aprendem nada a não ser recitar poesia e tocar violino... Já viu a letra dele? – perguntou Mr. Jordan a Mr. Pappleworth.

– Já... é de primeira... não é? – respondeu Mr. Pappleworth com indiferença. – Mas ele vai aprender.

Mr. Jordan resmungou qualquer coisa desagradável. Paul percebeu que o patrão ladrava mais do que mordia. Na verdade, o pequeno fabricante era suficientemente cavalheiresco, apesar do seu mau inglês, para deixar os empregados à vontade e não se prender com ninharias. Mas tinha consciência de não ter aspecto de ser o dono e senhor de tudo aquilo, e via-se por isso forçado a desempenhar o seu papel de vilão, para repor as coisas nos seus devidos lugares.

– Ora vamos lá a ver, como é que te chamas? – perguntou Mr. Pappleworth ao rapaz.

– Paul Morel.

É curioso o que as crianças sofrem para pronunciarem os seus nomes.

– Com que então, Paul Morel! Muito bem, vá, Paul Morel, toca a acabar essa coisa, e depois...

Mr. Pappleworth sentou-se num banco e começou a escrever. Uma rapariga entrou por uma porta mesmo atrás dele, depositou em cima do balcão uns artigos de malha elástica acabados de passar a ferro e voltou a sair. Mr. Pappleworth pegou na joelheira azul claro, examinou-a, confrontou-a rapidamente com a nota de encomenda amarela e pô-la de parte. Ao lado estava uma «perna» rosada, cor de carne. Conferiu os vários artigos, preencheu algumas notas de encomenda e disse a Paul que o acompanhasse. Desta vez, saíram pela porta por onde a rapariga tinha entrado. Paul viu-se no cimo de um pequeno lanço de escadas, e em baixo viu uma sala com janelas em duas das paredes e, no extremo oposto, meia dúzia de raparigas sentadas, curvadas sobre si mesmas, a costurarem à luz das janelas e a cantarem em coro, «Duas Meninas Vestidas de Azul». Ao ouvirem a porta abrir-se, todas se voltaram e viram Mr. Pappleworth e Paul a olharem para elas do outro lado da sala. Pararam de cantar imediatamente.

– Não podem fazer menos barulho? – disse Mr. Pappleworth. – As pessoas hão-de pensar que temos a casa cheia de gatas.

Uma mulher corcunda, sentada num banco alto, voltou para Mr. Pappleworth a cara comprida e circunspecta, e disse com voz de contralto:

– Só se esses forem gatos.

Mr. Pappleworth em vão tentou causar efeito para impressionar Paul. Desceu as escadas até à sala de acabamentos e dirigiu-se à corcunda, uma tal Fanny. O seu corpo era tão pequeno, empoleirado no alto do banco, que a cabeça, com grandes bandós de cabelo castanho-claro, parecia excessivamente grande, tal como o rosto, pálido e grave. Trazia um vestido de caxemira verde-escuro, e, quando pousou o trabalho nervosamente, viu-se que os seus pulsos, cingidos por punhos estreitos, eram finos e achatados. Ele mostrou-lhe uma joelheira que tinha um defeito qualquer.

– Ora – disse ela – não precisava de vir atirar as culpas para cima de mim... a culpa não é minha – disse, subindo-lhe um rubor às faces.

– Eu não disse que a culpa era sua... e agora faça o que lhe mandei! – ripostou Mr. Pappleworth, secamente.

– Não diz que a culpa é minha, mas quer fazer parecer que é – gritou a corcunda, quase a chorar. Depois, arrancou a joelheira das mãos do «chefe», dizendo: – Está bem, eu faço isso, mas não precisa de vir com duas pedras na mão.

– Aqui está o seu novo ajudante – disse Mr. Pappleworth.

Fanny voltou-se e sorriu gentilmente para Paul.

– Oh! – disse ela.

– Pois é... agora vejam lá se o estragam com mimos.

– Se alguém o estragar, não somos nós – disse ela, indignada.

– Vamos embora, Paul – disse Mr. Pappleworth.

– Au revoi, Paul – disse uma das raparigas.

Foi uma risota. Paul saiu, corado até à alma, sem dizer palavra.

O dia nunca mais acabava. Durante toda a manhã, foram os operários a vir falar com Mr. Pappleworth, e Paul a escrever ou a aprender a preparar as embalagens para a tiragem do meio-dia. À uma da tarde, ou melhor, quando faltava um quarto para a uma, Mr. Pappleworth desapareceu, para apanhar o comboio: vivia nos arredores. À uma, Paul, sentindo-se perdido, levou o cesto do farnel para a arrecadação da cave, onde estava a tal mesa comprida sobre cavaletes, e comeu à pressa, completamente sozinho naquele espaço de penumbra e desolação. Depois, foi passear para a rua. A claridade e a liberdade que sentia nas ruas tornavam-no feliz e afoito. Mas, às duas horas, voltou para o seu canto na sala grande. Não tardou que passassem as raparigas, metendo-se com ele. Eram as de mais baixa condição, as que trabalhavam no andar de cima em tarefas mais pesadas, como o fabrico de fundas e os acabamentos dos membros artificiais. Paul ficou a aguardar a chegada de Mr. Pappleworth, sem saber o que fazer, sentando-se a rabiscar nas notas de encomenda amarelas. Mr. Pappleworth chegou às vinte para as três, sentou-se e pôs-se a tagarelar com Paul, tratando o rapaz como seu igual, até na idade.

De tarde nunca havia muito que fazer, a não ser que fosse perto do fim-de-semana e as contas tivessem de ser fechadas. Às cinco horas, todos os homens foram até à «masmorra» da mesa de cavaletes, onde tomaram chá e pão com manteiga em cima das tábuas nuas e imundas, conversando com a mesma avidez e grosseria com que tomavam a refeição. No entanto, lá em cima, o ambiente era sempre alegre e desanuviado. Certamente a cave e os cavaletes deixavam-nos transtornados.

Depois do chá, quando todos os bicos de gás estavam acesos, o trabalho fluía com mais rapidez. Era preciso despachar as encomendas para o correio da tarde. As meias chegavam lá acima ainda quentes, acabadinhas de passar, directamente das oficinas. Paul já tinha passado todas as facturas. Faltava-lhe fazer agora as embalagens e endereçá-las, e depois pesar as suas encomendas na balança. Por todo o lado se ouviam vozes a gritar pesagens, o tilintar de metais, o estalar nervoso dos cordéis, a corrida ao gabinete de Mr. Melling, para os selos. Finalmente, chegou o carteiro, sorridente e bem-disposto, como seu enorme saco. Depois a agitação abrandou, Paul pegou no cesto do farnel e correu para a estação, para apanhar o comboio das oito e vinte. O dia de trabalho era exactamente de doze horas.

A mãe esperava por ele, ansiosa. Paul tinha de ir para casa a pé desde Keston, pelo que não chegou a casa antes das nove e vinte; e tinha saído de casa antes das sete da manhã. Mrs. Morel preocupava-se com a saúde do filho, mas também ela já tivera de enfrentar tantas dificuldades, que esperava que os filhos tivessem agora a mesma genica. Teriam de suportar o que fosse preciso. Assim, Paul manteve-se na Jordan, embora durante a sua permanência nesse emprego a sua saúde sofresse com a falta de luz e de ar fresco, e as longas horas de trabalho.

Quando chegou, vinha pálido e cansado. A mãe olhou para ele, mas viu-o tão satisfeito que a sua preocupação desapareceu.

– Então, como é que foi? – perguntou ela.

– Foi tão engraçado, mãe – respondeu ele. – O trabalho não é nada pesado e eles foram muito bons para mim.

– E saíste-te bem?

– Claro... só dizem que a minha letra é péssima. Mas Mr. Pappleworth... o meu chefe... disse a Mr. Jordan que eu ia aprender. Estou na Espiral, mãe. Tem de ir lá ver. É tão bom...

Paul contou tudo à mãe, tudo o que tinha visto, pensado, todos os pormenores da experiência que vivera. A única coisa que escondeu dela foi o ter escrito «Mr. J. A. Bates Esquire». Isso, ele não queria que ela soubesse; sentia muita vergonha. Também não lhe relatou nada de mais desagradável que lhe tivessem dito, só as coisas boas, tentando fazê-la crer que estava feliz e era estimado, e que a vida lhe corria de feição... o que geralmente acontecia. Contou-lhe tudo, excepto as pequenas vergonhas ou ignomínias; jamais suportaria vê-la envergonhada ou vexada por sua causa.

Paul depressa aprendeu a gostar da Jordan. Mr. Pappleworth, que tinha um certo ar de frequentador de bares, tratava-o sempre com naturalidade, como se fossem amigos de longa data. Às vezes, o chefe da Espiral irritava-se, e então mastigava pastilhas elásticas sem parar. Mesmo assim, nunca era ofensivo, mas sim uma daquelas pessoas que se magoam mais a si próprias do que aos outros com a sua irritabilidade.

– Ainda não fizeste isso? – gritava ele. – Já vi que és um mês só com domingos.

E logo se punha de novo alegre e brincalhão, o que deixava Paul muito confuso.

– Amanhã trago a minha cadelinha Yorkshire terrier – disse ele a Paul, rejubilando.

– O que é isso de Yorkshire terrier?

– O quê? Pois tu não sabes o que é uma Yorkshire terrier?... Não saber o que é um Yorkshire! – Mr. Pappleworth estava pasmado.

– É um cãozinho de pêlo sedoso... em tons de ferrugem e prata oxidada?

– É isso mesmo, meu rapaz. A minha é uma pérola. Já teve cachorrinhos que me renderam cinco libras, e ela própria vale mais de sete libras: e não chega a pesar uma libra e meia...

No dia seguinte, a cadela veio com ele. Era dez réis de cão tremeliquento. Paul não lhe ligou nenhuma; a cadela mais parecia um trapo molhado sem esperança de secar. Nisto, um dos homens chamou-a e começou a dizer piadas grosseiras. Mas Mr. Pappleworth meneou a cabeça na direcção do rapaz e a conversa prosseguiu a meia-voz.

Mr. Jordan fez apenas mais uma excursão à Espiral, para inspeccionar o trabalho de Paul e o único reparo que lhe fez, ao ver o rapaz pousar a caneta no balcão, foi:

– Tens de pôr a caneta na orelha, se queres ser um caixeiro a sério. Vá, caneta na orelha!

Num outro dia, disse ao rapaz:

– Não endireitas mais esses ombros porquê? Ora vem cá. E levou-o ao gabinete envidraçado, onde lhe colocou uns suspensórios especiais para manterem os ombros direitos.

Mas Paul preferia a companhia das raparigas. Os homens pareciam-lhe grosseiros e pouco espertos. Simpatizava com todos eles, mas achava-os desinteressantes. Ao encontrar Paul a comer na cave, Polly, a supervisora baixinha e sirigaita do rés-do-chão, perguntou-lhe se ele não queria que ela lhe cozinhasse alguma coisa no seu fogareiro e, no dia seguinte, a mãe mandou-lhe uma refeição que podia ser aquecida. Ele levou-a à salinha limpa e aconchegada onde Polly trabalhava, e depressa adquiriu o hábito de almoçar com ela. Quando chegava ao trabalho, às oito da manhã, levava-lhe o cesto, e quando descia à uma hora, já o almoço estava pronto.

Paul era pálido, não muito alto, cabelo espesso e castanho, feições irregulares e uma boca rasgada, de lábios cheios. Ela parecia um passarinho, e ele até a tratava muitas vezes por pisco. Embora fosse geralmente muito calado, com ela passava horas sentado a conversar, a contar-lhe peripécias familiares. Todas as raparigas adoravam ouvi-lo; formavam muitas vezes um círculo à sua volta, enquanto ele discursava e ria, sentado num banco. Algumas consideravam-no um fulaninho curioso, tão sério e, no entanto, tão inteligente e bem-disposto, e sempre tão delicado no modo como as tratava. Todas gostavam dele e ele adorava-as. Com Polly era diferente; a essa, ele sentia que pertencia. Mas era Connie, com a sua farta cabeleira ruiva, a sua tez de flor de macieira, a voz sussurrada, e sempre tão distinta no seu vestido preto já gasto, que apelava ao seu lado romântico.

– Quando te sentas a enrolar a meada – disse ele – parece que estás a fiar na roca... é um quadro tão bonito. Faz-me lembrar a Elaine, dos Idílios do Rei. Se eu soubesse, desenhava-te. – Ela olhou para ele de relance, timidamente ruborizada. Mais tarde, havia um esboço de que ele muito gostava: Connie sentada num banquinho, em frente à roca, a longa crina ruiva flamejante sobre o vestido preto ruçado, e os lábios rubros selados e muito sérios, a passar o fio escarlate do novelo para a bobina.

Com Louie, bonita e atiradiça, que parecia estar sempre a provocá-lo com o menear das ancas, punha-se geralmente a brincar.

– O que estás a fazer?

– Porque queres saber? – respondeu ela, levantando a cabeça, atrevida.

– Porque acho que tu não te conheces.

– Porquê?

– Porque não tens ar de te conheceres.

– Então tenho cara de quê?

– Tens cara de quem está sempre a pensar nalguma coisa. Em que é que estavas a pensar?

Ela olhou-o pelo canto do olho e disse, com uma gargalhada:

– Isso era o que tu querias saber, não era?

– Sai daí – disse ele. – Vamos lá dar uma volta à tua meia.

E, depois, pegando na manivela da máquina, começou a rodá-la.

Mas ela empurrou-o.

– Isso vai ficar tudo mal – exclamou.

E ficaram os dois a olhar um para o outro, a rir às gargalhadas.

Emma era bastante feia, e não era nem nova nem condescendente. Sentia-se, porém, feliz por se mostrar condescendente com Paul. E ele não se importava.

– Como é que se metem as agulhas? – perguntou ele um dia.

– Sai daqui, não me maces.

– Mas eu devia saber como é que se metem as agulhas.

Ela continuou a coser à máquina, sem pestanejar.

– Há tantas coisas que devias saber – respondeu ela.

– Então ensina-me a colocar as agulhas na máquina.

– Ai, este rapaz sempre é muito maçador! ... Pronto, é assim que se faz...

Ele observou-a atentamente. Nisto, soou um apito, e a seguir Polly entrou e perguntou em voz bem audível:

– Paul, Mr. Pappleworth quer saber por quanto tempo vais ficar cá em baixo a brincar com as raparigas.

Paul correu pela escada acima, a gritar «Adeusinho!», e Emma endireitou-se na cadeira e explicou:

– Não fui eu que quis que ele estivesse a brincar com a máquina.

– Qu’é qu’andavas a fazer? – perguntou Mr. Pappleworth, quando o rapaz apareceu.

– Estava só a falar com a Emma, e a aprender a colocar as agulhas na máquina.

– O melhor é pegares no teu trabalho e mudares-te lá pra baixo.

– Mas aqui não havia nada de especial para fazer, pois não?

– Mal tu saíste daqui, o patrão veio à tua procura. Um dia sai-te caro! E então estes registos?

Paul meteu mãos à obra cheio de vontade.

Regra geral, quando as raparigas voltavam, às duas horas, ele ia ao andar de cima ter com Fanny, a corcunda, que trabalhava nos acabamentos.

Mr. Pappleworth só chegava às vinte para as três, e vinha encontrar muitas vezes o rapaz sentado ao lado de Fanny a conversar, a desenhar ou a cantar com as raparigas.

– Vem cá, Paul, meu querido – gritava a Fanny. – Até pensámos que hoje não vinhas cá acima. Pensávamos que ias ficar lá em baixo por não gostares da nossa companhia.

– Fui à cidade.

– Para quê, meu lindo?

– Para ver se encontrava uma cestinha de mirtilos para a minha mãe.

– E encontraste?

E, uma vez iniciada a conversa, nunca mais terminavam. Paul gostava muito de Fanny e a corcunda gostava muito dele. Ela tinha vinte e nove anos e sofrera muito. Ele gostava de ficar sentado ao lado dela, à janela, a olhar para a rua e a desenhar a bizarra floresta de chaminés e telhados antigos e bicudos que a vista alcançava. Depois dizia:

– Canta qualquer coisa, Fanny.

– Sabes que mais? Tu não queres que eu cante – dizia ela, manejando a agulha com destreza, com as mãos magras e nervosas. – Tu queres é fazer pouco de mim.

– Não quero nada! Mas é que eu disse à minha mãe que cantavas muito bem...

– Não sei o que é que a tua mãe ia pensar de mim, se me visse, Paul. Ia pensar que eu era um macaco encarrapitado num pau.

– Ela sabe como tu és, porque eu já lhe contei. E gosta de ti. Canta lá «Naquela Taberna...». Este desenho vai ficar uma maravilha.

E, passado um minuto de hesitação, Fanny começou a cantar. Tinha uma bela voz de contralto, e todas as raparigas cantaram em coro e muito afinadas. Paul não se sentia nada embaraçado por estar ali sentado no meio das mulheres.

Quando terminou, Fanny disse:

– Sei que estão a fazer troça de mim.

– Não sejas assim, Fanny! – exclamou uma das colegas.

Uma outra vez, falou-se no cabelo ruivo de Connie.

– Cá pra mim, acho o da Fanny mais bonito – disse Emma.

– Não precisas de fazer pouco de mim – disse Fanny, agastada.

– Mas ela tem o cabelo mesmo bonito, Paul.

– É uma cor especial – disse ele. – Aquela cor fria, como a terra, e mesmo assim brilhante... como um pântano.

– Santo Deus! – exclamou uma das raparigas, a rir.

– Estás a ver como só me criticam? – disse Fanny.

– E havias de o ver solto, Paul – gritou Emma, falando a sério. – É simplesmente uma beleza. Solta o cabelo pra ele ver, Fanny, pode ser que ele o queira pintar.

Fanny recusou-se, e, no entanto, era o que mais queria fazer.

– Então solto-lho eu – disse o rapaz.

– Bem, já que insistes – disse Fanny.

Paul tirou os ganchos do carrapito com todo o cuidado, e a longa cabeleira, num tom castanho-escuro uniforme, caiu sobre a corcunda.

– Que maravilha! – exclamou ele.

As raparigas observavam-no. Reinava o silêncio. O jovem soltou-lhe mais o cabelo.

– É esplêndido – disse, sentindo-lhe o perfume. – Aposto que vale muitas libras.

– Deixo-to quando morrer – disse Fanny, em tom de brincadeira.

– Pareces-te com qualquer de nós, sentada a secar o cabelo – disse uma das raparigas à colega corcunda e pernalta.

A pobre da Fanny era morbidamente susceptível, em tudo adivinhando insultos, ao passo que Polly era directa e factual. As duas secções estavam permanentemente em guerra, e Paul vinha constantemente encontrar Fanny lavada em lágrimas. Fanny contava-lhe todas as suas mágoas, e ele, depois, ia defendê-la junto de Polly.

A filha de Mr. Jordan era pintora. Um dos seus modelos era Connie, que lhe falou de Paul. Primeiro, Miss Jordan pediu para ver alguns dos seus desenhos, e, a seguir, veio ela própria falar com ele. Era uma mulher fria e impessoal, mas mostrou algum interesse pelo rapaz.

E assim foi correndo o tempo, em harmonia. A fábrica tinha um ambiente agradável. Ninguém era empurrado ou pressionado. Paul até gostava quando o trabalho acelerava perto da hora do correio e todos se entreajudavam. Gostava de ver os colegas em acção. O homem era o trabalho e o trabalho era o homem, unidos num só. Com as raparigas era diferente. A verdadeira mulher parecia nunca estar ali presente no trabalho – era como se estivesse de fora, à espera.

Da janela do comboio, quando à noite regressava a casa, observava as luzes da cidade povoando as colinas e fundindo-se nos vales com um clarão ardente. E Paul sentia-se rico de experiência e felicidade. Mais adiante, havia uma mancha de luz em Bulwell, como miríades de pétalas caídas das estrelas sobre a terra; e, mais além, o jorro incandescente das fornalhas, projectando nas nuvens o seu sopro abrasador.

Chegado a Keston, ainda tinha de andar mais de duas milhas até casa, subindo duas colinas mais longas e descendo outras duas mais curtas. Sentindo-se muitas vezes cansado, ia contando os candeeiros à medida que subia, para ver quantos ainda faltavam. E, do alto da colina, nas noites de breu, via as aldeias espalhadas a toda a volta, a cinco ou seis milhas de distância, enxameando a noite de vida e luz, quase como um céu aberto a seus pés. Marlpool e Heanor semeavam de cintilações a escuridão mais longínqua. Uma vez por outra, o negro vale que se interpunha lá em baixo, era riscado, violado por um interminável comboio que rolava célere para sul, em direcção a Londres, ou rumo ao norte, para a Escócia. Os comboios troavam como projécteis na escuridão, fumegantes e acesos, fazendo retinir o vale à sua passagem. Mas logo desapareciam, e as luzes das cidades e das aldeias cintilavam outra vez, mergulhadas no silêncio.

Chegava, por fim, à esquina da casa, virada para o outro lado da noite. O freixo parecia agora um amigo. A mãe vibrava de alegria vendo-o chegar. Ele depositava os oito xelins orgulhosamente sobre a mesa.

– Fazem-lhe jeito, mãe? – perguntava, ansioso.

– Não vai sobejar quase nada depois de descontar o bilhete, as refeições e tudo o mais.

Em seguida, punha-a ao corrente dos acontecimentos do dia. A história da sua vida, como nas Mil e Uma Noites, mas muito mais monótona, era contada à mãe noite após noite. E ela escutava e era quase como se a vida fosse dela.


VI

UMA MORTE NA FAMÍLIA

ARTHUR MOREL ia crescendo. Era um rapaz vivo, descuidado e impulsivo, muito parecido com o pai. Tinha horror aos estudos, resmungava sempre que tinha de trabalhar e escapava-se o mais depressa que podia, para voltar para a brincadeira.

Fisicamente, continuava a ser o menino bonito da família, bem constituído, gracioso, cheio de vida. O cabelo castanho-escuro, a frescura da tez e os olhos raros, de um azul profundo e sombreados de longas pestanas, a par dos seus modos generosos e temperamento fogoso, faziam dele o preferido. Mas, à medida que crescia, o temperamento ia-se tornando instável. Tinha acessos de fúria por tudo e por nada, e mostrava-se insuportavelmente violento e irritável.

A mãe, de quem tanto gostava, já começava a perder a paciência. Arthur só pensava em si próprio. Detestava tudo o que se interpusesse entre si e o seu prazer, mesmo quando esse «tudo» era a mãe. Mas, quando se metia em apuros, era com ela que tinha intermináveis desabafos.

– Meu Deus, rapaz – disse ela, quando ele se veio queixar de um professor que, segundo ele, o tomara de ponta – se não te agrada a situação, tens de a fazer mudar, e se não podes mudar nada, tens de te adaptar.

Quanto ao pai, que ele amara desmedidamente e que o idolatrava, acabou por detestá-lo. Com a idade, Morel transformou-se lentamente numa ruína viva. O seu corpo, em tempos belo nas formas e na agilidade, mirrou com os anos, não parecendo ter amadurecido, mas, pelo contrário, ter-se tornado insignificante e desprezível, emanando baixeza e mesquinhez. E sempre que este homem de meia-idade e olhar perverso o injuriava ou o tratava com prepotência, Arthur ficava furioso. Ainda por cima, os modos de Morel eram cada vez mais grosseiros, e os seus hábitos quase repugnantes. Na fase de crescimento dos filhos e durante o período crítico da adolescência, o pai surgia-lhes aos olhos da alma como um ser feio e irritante. Em casa, os seus modos eram idênticos aos que usava com os outros mineiros no fundo da mina.

– Monstro nojento! – gritava Arthur, saltando da cadeira e saindo de casa, quando o pai o enojava.

E Morel fazia ainda pior, por saber que as crianças o detestavam. Parecia sentir prazer em afrontá-las, a ponto de quase as enlouquecer, quando, aos catorze ou quinze anos, atravessavam a fase de extrema sensibilidade e irritabilidade. Assim, Arthur, que cresceu quando o pai já se encontrava em declínio e a caminho da velhice, odiava-o acima de tudo.

Por vezes, o pai parecia pressentir todo esse ódio e desprezo que os filhos tinham por ele.

– Não há homem que se sacrifique mais pela família – bordava então. – Faz por eles tudo o que pode, e tratam-no como um cão. Mas eu tenho força para aguentar, estão a ouvir!

Não fora o tom ameaçador e o facto de não fazer por eles tanto quanto pensava, e teriam até sentido pena. Nesta altura, a guerra instalava-se quase sempre entre pai e filhos, com o primeiro persistindo nos seus modos grosseiros só para afirmar a sua autoridade. Os filhos detestavam-no.

Por fim, Arthur já andava tão exaltado e irritado que, quando ganhou uma bolsa para ir para a escola secundária de Nottingham, a mãe achou por bem deixá-lo ficar a viver na cidade com uma das suas irmãs, vindo apenas a casa aos fins-de-semana.

Annie ainda era professora estagiária na escola primária, onde ganhava quatro xelins por semana. Mas em breve seriam quinze, uma vez que passara o exame final, o que traria à família tranquilidade financeira.

Mrs. Morel era muito agarrada a Paul. Ele era calado e não excessivamente inteligente, mas continuava fiel à pintura e à mãe. Tudo o que fazia era para ela. E ela esperava pela sua chegada à noitinha, para desabafar com ele todos os seus pensamentos, tudo o que lhe acontecera durante o dia. E ele ouvia-a, sentado e atento. Era o partilhar de duas vidas.

William estava noivo da tal morena, e tinha-lhe comprado um anel de noivado que custara oito guinéus. Os irmãos ficaram sem fôlego perante soma tão fabulosa.

– Oito guinéus! – disse Morel. – Bem parvo é!... Ficava-lhe melhor se me tivesse dado antes algum a mim.

– Dar-te algum, a ti! – exclamou Mrs. Morel. – Porque havia ele de te dar algum?

Mrs. Morel lembrou-se de que o marido não lhe tinha comprado anel de noivado e, a seu ver, antes ser como o William, que não era mesquinho, embora pudesse ser parvo. Mas agora o jovem só falava nos bailes a que tinha ido com a noiva e nos vestidos deslumbrantes que ela usava; ou então contava à mãe, rejubilante, como tinham os dois ido ao teatro em grande estilo.

William queria trazer a namorada para os pais conhecerem, e Mrs. Morel disse-lhe que a trouxesse no Natal. Desta vez, William chegou acompanhado de uma senhora, mas sem presentes. Mrs. Morel tinha preparado a ceia. Ao ouvir passos, levantou-se e foi à porta. William entrou.

– Olá, mãe! – deu-lhe um beijo apressado, chegou-se para o lado e apresentou-lhe uma rapariga alta e bonita, vestida com um saia-e-casaco preto e branco aos quadradinhos e uma estola de peles.

– Cá está a Ciganita!

Miss Western estendeu a mão e rasgou um sorriso de muitos dentes.

– Oh, como está, Mrs. Morel! – exclamou.

– Devem estar com fome – disse Mrs. Morel.

– Não, não estamos. Jantámos no comboio... Tens as minhas luvas, Fofinho?

William Morel, alto e ossudo, olhou para ela acto contínuo.

– Como é que havia de tê-las? – disse ele.

– Então perdia-as. Não te zangues comigo...

Viu-se que ele tinha ficado aborrecido, mas não disse nada. Ela relanceou o olhar pela cozinha. Achou-a pequena e bizarra, com o ramo de azevinho pendurado na parede e as sempre-vivas por detrás das fotografias, as cadeiras de madeira e a mesinha de jogo. Nessa altura, entrou Morel.

– Olá, pai!

– Olá, meu filho... Mas que surpresa!

Apertaram as mãos, e William apresentou-lhe a senhora. Ela reeditou o sorriso, mostrando os dentes.

– Como está, Mr. Morel. – Morel inclinou-se respeitosamente.

– Tou bem, obrigado, e espero que também esteja... Seja muito bem-vinda.

– Ah, obrigada – respondeu ela, bastante divertida.

– Há-de querer ir para cima – disse Mrs. Morel.

– Se não se importa... mas só se não a incomodar.

– Não incomoda nada... A Annie vai consigo... Walter, leva este baú para cima.

– E não leves uma hora a aperaltar-te – disse William para a noiva.

Annie pegou num candelabro de latão e, muda de vergonha, subiu à frente da jovem até ao quarto principal, que Mr. e Mrs. Morel lhe tinham cedido. Era também pequeno e frio, iluminado apenas pelas velas. As mulheres dos mineiros só acendiam as lareiras nos quartos em caso de doença muito grave.

– Quer que desaperte as correias do baú?

– Ah, muito obrigada!

Annie estava a fazer o papel de criada. Em seguida voltou para baixo para ir buscar água quente.

– Ela deve estar muito cansada, mãe – disse William. – É uma viagem muito violenta, e na correria em que andámos...

– Queres que lhe leve alguma coisa? – perguntou Mrs. Morel.

– Não, não... Ela está bem.

Mas havia um certo gelo no ar. Passada mais de meia hora, Miss Western desceu, envergando um vestido em tons de púrpura, demasiado fino para a cozinha do mineiro.

– Tinha-te dito que não precisavas de trocar de roupa – disse William.

– Deixa lá, Fofinho!... – E, mantendo o sorriso adocicado, voltou-se para Mrs. Morel: – Não acha que ele está sempre a resmungar, Mrs. Morel?

– Ah, está? – disse Mrs. Morel. – Isso é muito feio.

– E é mesmo!

– Deve estar com frio – disse a mãe. – Não quer vir para a la-reira? – Morel saiu imediatamente da cadeira de braços.

– Venha pr’àqui – exclamou ele. – Venha pr’àqui.

– Não, pai... Não saia da sua cadeira... senta-te no sofá, Ciganita – disse William.

– Não senhor! – insistiu Morel. – Esta cadeira é mais quente. Venha sentar-se aqui, Miss Wesson.

– Muitíssimo obrigada – disse a rapariga, sentando-se na cadeira de braços do mineiro, ou seja, o lugar de honra. Teve uma tremura ao sentir o calor da cozinha invadi-la.

– Vai buscar-me um lenço, Fofinho! – disse ela, fazendo beicinho e dirigindo-se-lhe no tom íntimo de quando estavam sozinhos, o que fez os restantes membros da família sentirem-se como intrusos. Era evidente que a jovem não os considerava como pessoas: para ela não passavam de criaturas. William estremeceu.

Se aquela casa fosse em Streatham, Miss Western seria a senhora, condescendendo a conviver com a camada inferior. Para ela, estas pessoas eram no mínimo grotescas – numa palavra, da classe trabalhadora. Como poderia ela adaptar-se?

– Eu vou – disse Annie.

Miss Western ignorou-a, como teria feito com uma criada, e só quando ela voltou para baixo com o lenço disse então, com afabilidade:

– Oh, muito obrigada.

Depois, desatou a falar: do jantar no comboio, que não tinha prestado para nada, de Londres, dos bailes. Via-se que estava muito nervosa e era o medo que a fazia falar. Morel, sentado a fumar um tabaco muito forte, observava-a enquanto lançava baforadas de fumo para o ar e ouvia com atenção a sua petulante algaraviada londrina. Mrs. Morel, ostentando a sua melhor blusa de seda preta, ia-lhe respondendo com calma e poucas palavras. Os outros filhos estavam sentados, em admirativo silêncio. Miss Western era a princesa. Tinham ido buscar tudo o que havia de melhor para a servir: as melhores chávenas, as melhores colheres, a melhor toalha, o melhor bule. As crianças achavam que ela devia estar a apreciar muito o acolhimento. Mas ela sentia-se mal, por não entender as pessoas, por não saber como tratá-las. William ia dizendo piadas, sentindo-se ligeiramente comprometido.

Por volta das dez horas, disse-lhe:

– Não estás cansada, Ciganita?

– Muito, Fofinho – respondeu ela, com voz melada e inclinando a cabeça ligeiramente para o lado.

– Acendo a vela, mãe? – disse ele.

– À vontade – respondeu a mãe.

Miss Western levantou-se e estendeu a mão a Mrs. Morel.

– Boa noite, Mrs. Morel – disse ela.

Paul, sentado em frente da caldeira, deixou jorrar a água da torneira para dentro de uma garrafa de cerveja em grés. Annie abafou a garrafa numa velha camisola da mina, e deu à mãe um beijo de boas-noites. Com a casa cheia, ia ter de dormir com a senhora.

– Espera um bocadinho – disse Mrs. Morel à filha. Annie sentou-se com a botija ao colo. Miss Western despediu-se de todos com um aperto de mão, para grande atrapalhação dos presentes, e saiu, precedida por William. Passados cinco minutos, ele voltou para baixo. Sentia o coração oprimido, sem saber porquê. Falou muito pouco até todos se terem ido deitar, excepto ele e a mãe. Depois, foi pôr-se de pé frente à lareira, de pernas afastadas como costumava fazer noutros tempos, e disse, titubeante:

– Então, mãe?

– Então o quê, meu filho?

A mãe sentou-se na cadeira de baloiço. Sentia-se de certo modo ferida e humilhada por causa dele.

– Gosta dela?

– Gosto – tardou a resposta.

– Ela ainda está pouco à vontade, mãe... não está acostumada a tudo isto. É muito diferente da casa da tia dela, sabe.

– Claro que é, meu filho... Deve ser difícil para ela.

– Pois é. – E, de repente, a expressão carregou-se-lhe. – Se ao menos ela não pusesse aqueles benditos ares!

– É só a primeira reacção, meu filho. Aquilo passa-lhe.

– Tem razão, mãe – respondeu ele, gratificado. Mas o olhar continuava triste. – Sabe, ela não é como a mãe... não é compenetrada... e não se cansa muito a pensar.

– Ela é muito nova, meu filho.

– É isso!... E não teve sorte nenhuma. A mãe morreu quando ela era criança, e desde então vive com uma tia que ela já não consegue aturar. E o pai era um patife... Faltou-lhe o amor.

– Sério?!... Bem, nesse caso tens de a compensar de tudo isso.

– E perdoar-lhe muitas coisas.

– Que coisas é que tens de lhe perdoar, meu filho?

– Sei lá... quando ela se mostra superficial, por exemplo... É preciso lembrarmo-nos de que ela nunca teve ninguém que fizesse desabrochar o seu lado mais profundo... E ela gosta tremendamente de mim.

– Isso qualquer pessoa pode ver.

– Mas, sabe uma coisa, mãe... ela... ela é diferente de nós. As pessoas como ela, aquelas com quem se dá... não parecem ter os mesmos princípios que nós.

– Não deves fazer juízos precipitados – disse Mrs. Morel. Mas ele parecia contrafeito.

De manhã, contudo, levantou-se e pôs-se a cantar pela casa toda.

– Olá! – chamou ele, saudando-a do fundo das escadas, onde estava sentado. – Já te estás a levantar?

– Já – respondeu ela lá de cima, com voz sumida.

– Feliz Natal! – gritou ele.

No quarto, ouviu-se o riso dela, bonito e musical. Mas ela só desceu meia hora depois.

– Ela estava mesmo a levantar-se, quando disse? – perguntou William a Annie.

– Estava, sim – respondeu Annie.

William aguardou uns instantes e voltou para as escadas.

– Feliz Ano Novo! – gritou ele.

– Obrigada, Fofinho do meu coração! – disse uma voz risonha, de muito longe.

– Despacha-te! – implorou ele.

Tinha passado quase uma hora, e ele à espera dela. Morel, que se levantava sempre antes das seis, olhou para o relógio.

– Bem, já vi qu’é das que s’atrasam! – exclamou.

Já todos tinham tomado o pequeno-almoço, excepto William, que se foi postar ao fundo das escadas.

– Será que vou ter de mandar aí para cima um ovo de Páscoa? – gritou ele, já zangado. Ela limitou-se a rir. A família esperava algo de mágico depois de tão longa preparação. Finalmente, ela apareceu, com uma saia e uma blusa que lhe ficavam muito bem.

– Levaste mesmo todo este tempo para te vestires? – perguntou ele.

– Oh, Fofinho!... Isso não é pergunta que se faça, pois não, Mrs. Morel?

A princípio, ela representou o papel da grande dama. Quando entrou na capela ao lado de William, ele de fraque e chapéu de seda, e ela de estola de peles e saia-casaco dos melhores costureiros de Londres, Paul, Arthur e Annie esperavam que todos se curvassem até ao chão, em êxtase. E Morel, observando o parzinho galante do fundo da rua, com o seu fato domingueiro, sentia-se o pai do príncipe e da princesa.

Porém, a dama não era assim tão grande. Trabalhava desde há um ano como uma espécie de secretária, ou escriturária, num escritório de Londres.

Mas enquanto esteve com os Morels parecia uma rainha: sentava-se à mesa e deixava que Annie e Paul a servissem, como se fossem seus criados. Tratava Mrs. Morel com alguma petulância e Morel com paternalismo. Mas, passados um ou dois dias, a sua atitude começou a mudar.

William pedia sempre a Paul ou Annie que os acompanhassem nos passeios que davam. Era muito mais divertido. E Paul sentia real admiração pela Cigana, uma admiração genuína. Na verdade, a mãe não podia perdoar ao filho a adoração que mostrava pela jovem.

No segundo dia, quando Lily disse:

– Annie, sabes por acaso onde terei deixado o meu regalo? William respondeu:

– Sabes muito bem que está no teu quarto. Para que perguntas à Annie?

E Lily lá foi ao quarto, amuada, de lábios crispados. O rapaz já não suportava vê-la fazer da irmã uma criada.

Na terceira noite, William e Lily foram sentar-se na sala, às escuras, frente à lareira. Quando era um quarto para as onze, ouviram Mrs. Morel a abafar o borralho. William veio para a cozinha, seguido da namorada.

– Já é assim tão tarde, mãe? – disse ele. A mãe tinha passado a noite sozinha.

– Não quer dizer que seja tarde, meu filho... mas é tarde para eu continuar a pé.

– Então, porque não se vai deitar? – perguntou ele.

– E deixar os dois aqui sozinhos?... Não, meu filho, isso eu não faço.

– A mãe não tem confiança em nós?

– Tenha ou não tenha, é a mesma coisa... Podem ficar aqui até às onze horas, se quiserem, e eu leio mais um bocadinho.

– Vai deitar-te, Ciganita – disse William. – Não podemos fazer esperar a minha mãe.

– A Annie deixou a vela acesa, Lily – disse Mrs. Morel. – Acho que a luz será suficiente.

– Claro, obrigada. Boa noite, Mrs. Morel.

William acompanhou a namorada até ao fundo das escadas, deu-lhe um beijo e ela foi para o quarto. Ele voltou para a cozinha.

– Não tem confiança em nós, mãe? – insistiu ele, todo ofendido.

– Meu filho, já te disse que eu não vou deixar dois pombinhos como vocês sozinhos cá em baixo, com toda a gente a dormir.

E o filho não teve outro remédio senão contentar-se com a resposta. Deu um beijo à mãe e foi deitar-se.

Na Páscoa, chegou sozinho. Depois, falou longamente com a mãe sobre a namorada.

– Sabe, mãe... quando estou longe dela, nem penso nela... se não voltasse a vê-la, era a mesma coisa. Mas, quando estou com ela, à noite, gosto muito dela.

– É um amor muito estranho para acabar em casamento – disse Mrs. Morel. – Se é só isso que ela representa para ti!

– É engraçado! – exclamou William, entre o preocupado e o perplexo. – E, no entanto... Há demasiadas coisas entre nós, para eu desistir dela agora.

– Tu lá sabes – disse Mrs. Morel. – Mas, se é como dizes, eu não lhe chamaria amor... pelo menos, não parece.

– Não sei, mãe. Ela é órfã, e...

Acabaram por não chegar a uma conclusão. Ele parecia confuso e aborrecido. Ela era muito reservada. Ele gastava todas as suas energias e dinheiro com esta rapariga. Quando veio a casa, mal tinha dinheiro para levar a mãe a Nottingham.

O salário de Paul, para grande alegria sua, tinha sido aumentado no Natal para dez xelins. O rapaz continuava muito satisfeito najordan, mas a sua saúde começou a ressentir-se do pesado horário de trabalho e das condições de isolamento. A mãe, para quem ele era cada vez mais importante, pensou em como poderia ajudá-lo.

A tarde de folga dele era à segunda-feira. Numa segunda-feira, em Maio, quando estavam os dois sozinhos a tomar o pequeno-almoço, ela disse:

– Acho que vamos ter um lindo dia.

Ele olhou-a surpreendido. Alguma coisa ela tinha para lhe dizer.

– Sabias que Mr. Leivers foi morar para uma quinta nova? Pois bem, ele convidou-me a semana passada para ir fazer uma visita a Mrs. Leivers, e eu prometi-lhe que te levava lá hoje, se estivesse bom tempo. Então, vamos?

– Oh, mãezinha, mas isso é óptimo! – exclamou Paul. – Vamos esta tarde, não é?

– Se não estiveres muito cansado... olha que é uma grande caminhada.

– A que distância fica?

– Quatro milhas.

– Ora... não sou eu que me canso por fazer quatro milhas... é a mãe. Acha que consegue?

– Claro que consigo.

– Que bom!... Que bom! – exclamou ele. – Vou voltar a correr para casa. E a quinta é bonita?

– Ele diz que sim... Tu logo dirás.

– Eu não conheço Mrs. Leivers, mãe. Conhece-a?

– Então não conheces... uma mulherzinha macambúzia, com uns grandes olhos castanhos, que se costumava sentar à nossa frente na capela.

– Não me lembro.

– Julgava que pelo menos te lembrasses do chapéu, mesmo que não te lembrasses de mais nada... usa sempre o mesmo chapéu desde há seis anos, desde que a conheço: um quico preto com um farrapo de renda prantado no cucuruto, às três pancadas. Quando a via com o chapéu no alto da cabeça, domingo atrás de domingo, sempre com o mesmo chapéu, só me apetecia ir lá tirar-lho. E o marido é tão elegante e bem-parecido.

– Se calhar, era pobre – alvitrou Paul.

– E que fosse! Sei que não estava pior do que eu. Só que tinha a mania de não comprar nada novo, dava-lhe para ali.

– E ao menos é simpática?

– É. Eu sempre gostei dela... mas ela não consegue andar à altura do homem que tem... Só o orgulho consegue uma coisa dessas, nada mais.

– Porquê?

– Ora bem, ela é uma mulher pequenina, delicada, fina, com uns grandes olhos castanhos... cheios de sentimento. E eu sei que tem passado muito com sete filhos e o pouco que o Alfred Leivers lhe dá. Acho que ele não gosta muito de trabalhos pesados... e daí, talvez... Mas assim, como a vida lhe correu mal e chegou ao estado a que chegou, é orgulhosa de mais para competir com as outras mulheres e agarra-se a um trapo antigo... mas é uma mulher bonita.

– E orgulhosa, mãe?

– Não... Com as outras pessoas, não. Mas consigo mesma não podia ser mais. A pobreza e a vida triste que leva corroem-lhe a alma e ela agarra-se àquela chapeleta preta, para troçar da sua própria pobreza... ou do marido... Só Deus sabe... Mas tu vais gostar dela. Eu gosto dela.

– Bem – disse Paul –, se vamos visitá-la à quinta, não vai estar de chapéu.

– Esperemos que não – disse Mrs. Morel. – É um escândalo e uma vergonha sobrecarregar um corpo frágil como o dela daquela maneira, mas também não precisava de andar naquela figura, por despeito. Faço ideia de como ele se deve sentir!...

Paul saiu à pressa para a estação, rejubilante. Em Derby Road, havia uma cerejeira a cintilar. O velho muro de tijolo junto ao pátio do Statutes brilhava em tons de escarlate, incandescentes, e a Primavera era uma labareda verde. A estrada íngreme estendia-se esplêndida, coberta da fria poeira matinal em alternâncias de sol e sombra, absolutamente estática. As árvores, orgulhosas, deixavam pender abaulados os ombros verdes e possantes. Durante toda a manhã, de dentro do armazém, o rapaz foi brindado com um quadro de Primavera.

Quando voltou para casa, a mãe estava excitadíssima.

– Sempre vamos? – perguntou ele.

– É só o tempo de me arranjar – respondeu ela.

– Conseguiu acabar o trabalho?

– Consegui.

Paul sentou-se à mesa, à espera do almoço. Ela trouxe-lhe a frigideira.

– Para que se foi meter a fazer sonhos de ruibarbo se tinha tão pouco tempo?

– Porque me apeteceu – disse a mãe. – E estou pronta quando tu estiveres.

Tinha feito os sonhos porque, durante a semana, o filho só vinha almoçar a casa neste dia, e gostava muito de sonhos.

– Não senhora... saia daqui. Quem faz isso sou eu.

Paul levantou-se e tentou tirar-lhe a frigideira da mão.

– Nem pensar nisso! – disse ela, agitando o garfo. – Temos muito tempo.

Ele voltou para a mesa, cabisbaixo, e ela continuou com os cozinhados.

– São mesmo coisas de mulher – disse ele. – Às voltas com a frigideira, quando devia estar a vestir-se para sair.

– São é mesmo coisas de rapazes, julgam que já sabem tudo – disse ela, colocando a sobremesa diante dele.

– E esteve a apanhar esse calor todo na cara – disse o filho. – Já sabe que quando lá chegar, vai ter a cara vermelha como o sol nascente.

– Se tiver, não sou eu que te vou pedir para olhares para mim.

– E, mesmo que pedisse, eu não olhava – respondeu ele.

– Ingrato!

– Afogueada!

Ela fungou e empertigou-se daquela maneira a que ele chamava «esticar-se à tartaruga».

– Já se lavou? – perguntou ele.

– Já.

– Pois olhe, não parece, tem o nariz enfarruscado, como de costume.

Ela foi ver-se ao espelho.

– Que maçada! – exclamou.

Ele levantou-se.

– Vá-se vestir, que eu lavo a loiça – disse Paul.

Ela obedeceu. Ele lavou as panelas, endireitou as costas e pegou nas botas dela. Estavam muito limpas. Mrs. Morel era daquelas pessoas naturalmente dotadas que são capazes de andar na lama sem sujarem os sapatos. Mas Paul quis limpar-lhas, mesmo assim. Eram botas de criança, das de oito xelins o par. No entanto, para ele, eram as botas mais chiques do mundo, e limpava-as com tanta reverência como se fossem flores.

Subitamente, ela apareceu à porta, muito tímida. Trazia uma blusa nova. Paul deu um salto em frente.

– Ena pá! – exclamou ele. – Que espalhafato!

Ela inspirou ligeiramente, altiva, de cabeça bem erguida.

– Não é espalhafato nenhum! – retorquiu ela. – É até bem recatada.

Mrs. Morel deu um passo em frente e o filho mirou-a de todos os lados.

– Então – perguntou ela, envergonhada, mas mostrando-se segura e arrogante. – Gostas?

– É um espanto! Vou gostar de levar uma mulher tão bonita a passear!

Contornou-a e mirou-a pelas costas.

– Muito bem! – disse ele. – Se fosse na rua atrás de si, havia de dizer: – Mas que bem vestida que aquela senhorinha vai.

Ela fungou de satisfação, como era seu hábito, mas a fazer-se desentendida.

– Sabes – disse ela –, só me custou três xelins. Por este preço não a podia comprar feita, pois não?

– Acho que não – respondeu o filho.

– E o tecido é de muito boa qualidade.

– Tremendamente bonita! – disse ele.

A blusa era branca, com raminhos púrpura e pretos.

– Demasiado jovem para a minha idade, não achas?

– Essa agora, demasiado jovem para si? – exclamou Paul, agastado. – Já agora, porque não compra uma peruca branca para pôr no alto da cabeça?

– Daqui a pouco já não é preciso – respondeu ela. – Estou aqui, estou com a cabeça toda branca.

– Pois faça favor de não estar – disse ele. – Para que quero eu uma mãe de cabelo branco?

– Pois olha que vais ter de te contentar, meu menino – disse ela, com uma entoação bastante estranha.

Saíram de casa em grande estilo, ela com a sombrinha que William lhe tinha dado, para se proteger do sol. Paul era consideravelmente mais alto do que ela, embora não fosse muito grande. O rapaz ia todo cheio de si.

Na terra lavrada, as espigas tenras brilhavam como seda. A mina de Minton desfraldava os seus penachos de vapor branco, acompanhados de roncos e roucas tossidelas.


– Olha para aquilo! – disse Mrs. Morel. Mãe e filho pararam na estrada, a ver. Ao longo da crista do grande monte da mina, desenhava-se em contraluz um pequeno grupo a avançar mansamente – um cavalo, uma carrocinha e um homem. Trepavam a encosta em direcção ao céu: ao chegarem ao cimo, o homem voltou a carroça e, com injustificado estrépito, a escória rolou pela vertente abrupta do aterro.

– Sente-se um bocadinho, mãe – disse Paul, e ela sentou-se na rocha, enquanto ele desenhava a cena rapidamente. Mrs. Morel manteve-se em silêncio enquanto o filho trabalhava, entretida a admirar a tarde e o casario vermelho a cintilar entre o verde da paisagem.

– O mundo é um lugar maravilhoso – disse ela. – E maravilhosamente belo.

– E a mina também – disse ele. – Veja como cresce, como se estivesse viva... é como uma criatura gigantesca que nós não conhecemos.

– É – disse ela. – Talvez!

– E os vagões parados, à espera, como animais em correnteza à espera da ração – disse ele.

– E eu bem contente fico de os ver aí à espera – disse a mãe. – Quer dizer que a semana vai ser boa.

– Eu gosto de sentir a mão do homem nas coisas; é sinal de vida. Nos vagões sente-se o dedo do homem, porque são mãos de homens que os conduzem.

– Pois é – disse Mrs. Morel.

Continuaram a caminhada à sombra das árvores, pela estrada principal. Ele ia explicando tudo e ela mostrava-se interessada. Passaram pelo extremo do lago Nethermere, que embalava no colo docemente, como pétalas, os reflexos do sol. Depois viraram para uma estrada particular e, com emoção crescente, aproximaram-se de uma grande quinta. Um cão desatou a ladrar furiosamente. Apareceu uma mulher, a ver quem era.

– É este o caminho para Willey Farm? – perguntou Mrs. Morel.

Paul deixou-se ficar atrás da mãe, apavorado com a ideia de serem escorraçados. Mas a mulher era prestável e indicou-lhes o caminho. Mãe e filho meteram pelo meio do trigo e da aveia, atravessaram uma pequena ponte e chegaram a um prado em pousio. Os abibes, com os seus peitos brancos reluzentes, gritavam e volteavam em redor. O lago estava estático e azul. No céu, planava uma garça. Em frente, o bosque subia denso pela encosta, verde e estático.

– É uma estrada florestal, mãe – disse Paul. – Tal e qual como no Canadá.

– Lindo, não é? – disse Mrs. Morel, olhando em volta.

– Está a ver aquela garça... está a ver... as pernas dela?

Era ele que dizia à mãe para onde devia, ou não, olhar. Mas ela gostava assim.

– E agora – disse ela – para que lado é?... Ela disse-me para atravessar o bosque. – O bosque, cerrado e sombrio, estendia-se para a esquerda.

– Sinto que aqui há um caminho – disse Paul. – A mãe tem pés de citadina; seja lá como for, mas tem.

Encontraram uma cancela e entraram numa larga vereda arborizada, com um maciço de cedros e pinheiros de um dos lados e uns quantos carvalhos decrépitos do outro a descerem pela encosta. E, entre os carvalhos, as campainhas-do-monte espraiavam-se em mancha azul sob as aveleiras ainda verdes e um manto esmorecido de folhas amareladas de carvalho. Paul apanhou flores para dar à mãe.

– Está aqui um pouco de feno acabado de chegar – disse ele, e desta vez trouxe-lhe miosótis. E de novo o coração lhe doía de tanto amor, vendo a mão dela, calejada do trabalho, pegar no raminho que ele lhe dera. Ela estava completamente feliz.

No fim da vereda era preciso saltar uma cerca. Paul passou num instante.

– Venha – disse ele –, eu ajudo-a.

– Não... sai daí. Prefiro passar à minha maneira. Ele ficou do outro lado, com as mãos no ar, pronto para a ajudar. Ela trepou com todas as cautelas.

– Mas que maneira de trepar! – exclamou Paul, trocista, quando a mãe já estava a salvo no chão.

– Malditas cercas! – bradou ela.

– Só se uma mulher for muito desajeitada – replicou ele – é que não consegue passá-las.

Em frente, ao longo da orla do bosque, estendia-se um aglomerado de casas de lavoura, baixas e vermelhas. Estugaram o passo. Pegado ao bosque havia um pomar de macieiras cujas flores caíam sobre uma mó. Em baixo era a lagoa, sob os ramos pendentes dos carvalhos. Havia vacas a usufruir da sombra. A quinta e as casas, formando três lados de um quadrilátero, abraçavam o sol viradas para o bosque. Tudo estava em silêncio.

Mãe e filho entraram no pequeno jardim cercado de grades onde pairava um perfume a cravos vermelhos. Junto à porta entreaberta viam-se alguns pães enfarinhados, deixados a arrefecer. Uma galinha aproximou-se para os debicar. De repente, assomou-se à porta uma rapariga com um avental muito sujo. Devia andar pelos catorze anos, tinha as faces morenas e rosadas, um tufo de pequenos caracóis negros muito apertados a cairem livremente, e os olhos castanhos. Parecia tímida e curiosa, com alguma desconfiança dos estranhos. A rapariga voltou a desaparecer. Logo a seguir, surgiu uma outra figura, uma mulher pequenina e frágil, rosada e com grandes olhos castanhos.

– Oh! – exclamou ela, rasgando um sorriso cintilante. – Sempre veio. Gosto muito de a ver por cá. – A voz da mulher era afável e muito triste.

As duas mulheres apertaram a mão.

– Tem a certeza de que não viemos incomodar? – disse Mrs. Morel. – Sei bem como é a vida do campo.

– De maneira nenhuma. Até é uma bênção ver caras novas. Estamos aqui tão isolados.

– Pois devem estar... – disse Mrs. Morel.

Levaram-nos até à sala, uma divisão comprida e de tectos baixos, com um grande ramo de rosas amarelas a enfeitar a lareira. As mulheres sentaram-se a conversar, enquanto Paul foi dar uma volta pela quinta. Estava no jardim a cheirar os cravos e a olhar para as plantas, quando a rapariga saiu a correr e se foi pôr junto do monte de carvão encostado à cerca.

– Creio que estas vão ser rosinhas de toucar, quando abrirem – disse ele, apontando para as roseiras ao longo da cerca. Ela olhou para ele com os grandes olhos castanhos, muito espantados, muito abertos.

– Não sei – respondeu, hesitante. – São brancas e têm o olho cor-de-rosa.

– Então são «rubores de donzela».

Miriam corou – uma cor cálida, bonita.

– Não sei – disse ela.

– Não tens grande coisa no jardim – disse ele.

– É o primeiro ano que aqui passamos – respondeu ela, com modos distantes e superiores, afastando-se e entrando em casa. Paul não ligou e continuou a exploração. A mãe veio ter com ele e deram a volta aos edifícios. Paul estava deliciado.

– Suponho que ainda tenha de ir tratar das galinhas, das vitelas e dos porcos? – disse Mrs. Morel a Mrs. Leivers.

– Não – retorquiu a mulherzinha. – Não consigo arranjar tempo para tratar do gado, e, além disso, não estou habituada. O trabalho de casa já me chega.

– Sim, suponho que sim – disse Mrs. Morel.

Daí a pouco, a rapariga veio cá fora.

– O chá está pronto, mãe – disse, com uma voz suave, musical.

– Ah, obrigada, Miriam, já vamos – respondeu a mãe, toda ela amabilidade. – Podemos ir tomar o nosso chá agora, Mrs. Morel?

– Claro – disse Mrs. Morel. – Logo que estiver pronto.

Paul, a mãe e Mrs. Leivers tomaram chá juntos. Depois foram passear pelo bosque, inundado de campainhas-do-monte, enquanto os carreiros estavam reservados aos miosótis. Mãe e filho caminhavam os dois em êxtase.

Quando voltaram, Mr. Leivers e Edgar, o filho mais velho, estavam na cozinha. Edgar devia ter dezoito anos. Depois, chegaram da escola Geoffrey e Maurice, dois rapagões de doze e treze anos. Mr. Leivers era um homem bem-parecido, na força da vida, de bigode castanho-dourado e olhos azuis sempre assestados, a perscrutar o tempo.

– Foram dar uma volta? – perguntou ele a Paul, com entusiasmo.

– Não deu para ver tudo – respondeu o rapaz, saindo em seguida com Geoffrey e Maurice.

– Onde é que tu trabalhas? – perguntou Geoffrey. Eram os três muito tímidos.

– Na Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan, em Nottingham.

– E que fazes?

– Sou empregado de escritório.

– E fazes o quê?

– Copio cartas, faço encomendas e passo facturas.

– Que tipo de cartas copias?

– Oh... todo o tipo... a maior parte são a encomendar meias elásticas.

– Meias elásticas!... Qu’é isso?

Seguiram-se muitas explicações.

– E algumas das cartas vêm de França e de outros lugares – disse Paul.

– E tu tens d’as copiar?

– Claro.

– Em francês?

– Não... traduzo-as.

– Essa agora... então sabes francês?

– Sei alguma coisa... e alemão também.

– E quem t’ensinou?

– O meu padrinho... e também álgebra e geometria.

– Eu cá não faço tenções d’encher a cabeça com essas coisas – disse Geoffrey.

Os dois rapazes mostravam-se terrivelmente superiores, mas Paul nem dava por isso. Foram à procura de ovos, vasculhando em todos os lugares. Quando estavam a dar de comer às galinhas, Miriam saiu de casa. Os rapazes não lhe ligaram. Na capoeira es-tava uma galinha com os seus pintainhos amarelos. Maurice pegou numa mão-cheia de milho e deixou a galinha vir comer-lhe à mão.

– Tens coragem de fazer o mesmo? – perguntou ele a Paul.

– Vamos lá ver... – respondeu Paul.

Ele tinha a mão pequenina, quente e habilidosa. Miriam ficou a observá-lo. Paul aproximou a mão da galinha. A ave olhou para o milho com o seu olhar duro e brilhante e, de repente, deu-lhe uma bicada na mão. Paul assustou-se, mas depois riu-se. «Pic-pic-pic», fazia-lhe a galinha na palma da mão. Paul riu-se outra vez e os rapazes riram com ele.

– Ela ferra-nos e pica-nos, mas nunca faz doer – disse Paul, quando o milho se acabou.

– Agora, Miriam, é a tua vez – disse Maurice.

– Não – gritou ela, encolhendo-se.

– Olha, parece um bebé. És mesmo um bebé! – disseram os irmãos.

– Não dói nada – disse Paul. – São só uns beliscõezinhos muito agradáveis.

– Não – gritou ela mais uma vez, abanando os caracóis negros e encolhendo-se.

– Ela não s’atreve – disse Geoffrey. – Ela nunca s’atreve a fazer nada a não ser recitar poesia.

– Não s’atreve a saltar uma cancela... não s’atreve a brincar connosco... não s’atreve a fazer frente quando outra rapariga lhe bate... não é capaz de fazer nada a não ser andar por aí convencida qu’é alguém... «A Dama do Lago»... é isso mesmo! – gritou Maurice.

Miriam estava coradíssima de vergonha e infelicidade.

– Sou capaz de fazer mais coisas que vocês – gritou ela. – Vocês não passam duns cobardes e duns brigões.

– Olha, olha, «cobardes e brigões!» – repetiram eles, arremedando-a.

«Um palhaço assim nunca me enfurece.

Todo o brutamontes silêncio merece»

recitou ele, virado para ela, a rir às gargalhadas.

Ela voltou para casa. Paul foi com os dois rapazes até ao pomar, onde tinham montado à pressa duas barras paralelas. Aí chegados, entregaram-se às respectivas demonstrações de força. Paul era mais ágil do que possante, mas foi quanto bastou. Apontou para umas flores de macieira que estavam mesmo à ponta de um ramo balouçante.

– Eu cá, se fosse a ti, não apanhava as flores – disse Edgar, o mais velho dos irmãos. – Senão, prò ano não temos maçãs.

– Eu não ia apanhá-las – respondeu Paul, indo-se embora.

Os rapazes mostravam-se hostis com ele. Interessavam-lhes mais as suas próprias brincadeiras. Paul voltou para casa, para junto da mãe. Quando ia a contornar a casa pelas traseiras, viu Miriam ajoelhada diante da capoeira da galinha, com a mão cheia de milho, a morder o lábio, numa atitude de intensa concentração. A galinha fitava-a com maldade. Cautelosamente, ela estendeu a mão. A galinha atirou-se. Ela retirou rapidamente a mão, com um grito, misto de medo e frustração.

– Ela não te magoa – disse Paul.

Miriam pôs-se de pé, muito corada.

– Só queria experimentar – disse, muito baixinho.

– Vês... não dói nada – disse ele. E, colocando apenas dois grãos de milho na palma da mão, deixou a galinha bicá-lo à vontade. – Só dá vontade de rir – continuou Paul.

Ela estendeu a mão e retirou-a, tentou novamente e fugiu para trás, com um grito. Ele fez uma careta.

– Olha, eu até a deixava comer milho da minha cara – disse Paul. – Mas ela dá muitos encontrões. Ela faz isto com toda a perfeição! Se não fizesse, já imaginaste a quantidade de terra que ela ia comer todos os dias?

Esperou, muito sério, a observá-la. Finalmente, Miriam deixou a galinha bicar-lhe a mão. Deu um gritinho, de medo e dor, porque estava assustada, um gritinho patético. Mas tinha conseguido, e voltou a repetir a proeza.

– Estás a ver – disse o rapaz. – Não faz doer, pois não?

Ela fitou-o com os olhos escuros muito abertos.

– Não – disse ela, a rir e a tremer.

Depois levantou-se e foi para casa. Parecia de alguma forma ofendida com o rapaz.

«Ele deve achar que eu não passo duma rapariga como as outras», pensava ela, cheia de vontade de lhe provar que era uma grande personagem, como a «Dama do Lago».

Paul veio encontrar a mãe pronta para partir. Mrs. Morel sorriu para o filho, e ele pegou no grande ramo de flores. Mr. e Mrs. Leivers acompanharam-nos até ao fundo da quinta. As colinas douravam-se do entardecer, e nas profundezas dos bosques sobressaía o púrpura carregado das campainhas-do-monte. Por todo o lado estava o silêncio, apenas quebrado pelo restolhar das folhas e os pássaros.

– É de facto um lugar belíssimo – disse Mrs. Morel.

– É, sim – concordou Mr. Leivers. – É um lugar bem aprazível, o pior são os coelhos. Dão cabo das pastagens. Não sei se alguma vez iremos ter lucro.

Bateu as palmas e os campos cobriram-se de movimento, junto ao bosque: por toda a parte saltavam coelhos acastanhados.

– Até custa a acreditar! – exclamou Mrs. Morel.

Ela e Paul continuaram sozinhos daí para a frente.

– Foi um dia maravilhoso, não foi, mãe? – disse Paul, falando baixinho. A lua despontava, tímida. O coração doía-lhe de tanta felicidade. A mãe não se calava, pois também ela tinha vontade de gritar de felicidade.

– Então eu não ia ajudar um homem daqueles? Não ia tratar das galinhas e dos bezerros? Havia de aprender a ordenhar, e havia de conversar com ele, e fazer planos com ele. Palavra, se eu fosse mulher dele, aquela quinta ia de vento em popa, isso é que ia... Mas não, ela não tem forças... simplesmente não tem forças. Nunca devia ver-se sobrecarregada desta maneira, percebes. Tenho pena dela, e dele também. Palavra, se ele fosse meu, nunca diria que era um mau marido... Não que ela diga, lá isso não... E ela é até muito simpática.

William veio a casa outra vez, com a namorada, pelo Pentecostes. Tinham-lhe dado uma semana de férias. O tempo estava muito bonito. Geralmente, William, Lily e Paul iam juntos dar um passeio pela manhã. William não conversava muito com a namorada, excepto para lhe contar histórias da infância; mas Paul falava sem parar com qualquer deles. A certa altura, deitaram-se os três num prado, perto da igreja de Minton. De um dos lados, junto do parque do castelo, estendia-se ondulante uma cortina de choupos – uma beleza. As sebes cobriam-se de bagas pendentes de azevinho. Os campos salpicavam-se de margaridas e flores-de-cuco, como sorrisos. William, agora com vinte e três anos, era já um homem feito, muito alto, mas tão magro que era quase só pele e osso. Deitou-se ao sol, de costas, a sonhar, enquanto Lily brincava com o seu cabelo. Paul foi apanhar margaridas. Ela tinha tirado o chapéu. O seu cabelo era negro como a crina de um cavalo. Paul aproximou-se e entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo de azeviche, lembrando enormes lantejoulas brancas e amarelas, com um toque rosado de flores-do-cuco.

– Agora pareces uma bruxinha – disse o rapaz. – Não parece, William?

Lily deu uma gargalhada. William abriu os olhos e contemplou-a. O seu olhar era um misto confuso de tristeza e desmedida admiração.

– Ele transformou-me mesmo numa visão do Além? – perguntou ela, olhando para baixo, para o seu amado, a rir.

– Então não transformou! – disse William, a sorrir. E continuou deitado a olhar para ela. Os seus olhos nunca procuravam os dela. Não queria encontrar os olhos dela. Queria estar só a olhar para ela, não que os seus olhares se encontrassem. E esta vontade de a evitar, aflorava-lhe aos olhos como a tristeza. Ele desviou-os outra vez. Ela deixou a mão esguia, onde brilhavam diamantes, brincar no cabelo dele um pouco mais. Depois disse:

– O Paul sabe como fazer as coisas.

– Óptimo – disse William. – Desde que isso te faça feliz. Ele preenche-te as manhãs e eu as noites.

Ela voltou-se para Paul, e riu-se.

– Quero pôr-te mais três flores sobre a orelha – disse ele, de pé ao lado dela. – Depois, fica pronto.

Ela deixou, e ele entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo.

– Não sentes o perfume do sol nos teus cabelos? – perguntou Paul. – Estás a ver, era assim que devias ir aos bailes.

– Obrigada – disse ela, sempre a rir.

Levantaram-se.

– Não ponhas ainda o chapéu – disse Paul.

– Achas que sim? – perguntou ela a William. – Posso ir nesta figura?

William olhou para ela outra vez. A beleza dela quase o magoava. Olhou-lhe para a cabeça coberta de flores e torceu o nariz.

– Estás muito bonita assim, se é isso que queres saber.

E ela continuou o passeio sem chapéu. William logo se recompôs do mau humor e mostrou-se muito terno com ela. Ao chegarem a uma ponte, até gravou um coração com as iniciais dos dois.

 


Ela observou-o atentamente, vendo como a sua mão forte e nervosa, salpicada de pêlos cintilantes e de sardas, gravava no tronco o coração, o que parecia deixá-la fascinada.

Durante toda a estadia, enquanto William e Lily estiveram presentes, pairava dentro de casa um sentimento de tristeza e calor humano, e também de certa ternura. Mas muitas vezes ele irritava-se. Ela tinha trazido para uma semana cinco vestidos e seis blusas.

– Ouve, não te importas de me lavares estas duas blusas... e estas coisinhas? – disse ela a Annie.

E Annie ficou em casa a lavar roupa, enquanto, na manhã seguinte, William e Lily foram passear. Mrs. Morel ficou furiosa. Às vezes, ao aperceber-se da atitude da namorada para com a irmã, o jovem odiava-a pelo seu comportamento.

No domingo de manhã, Lily apareceu muito bonita, com um vestido leve, sedoso e esvoaçante, tão azul como as penas de um gaio, e um chapéu de palha coberto de rosas, onde dominava o carmim. As pessoas não se cansavam de a admirar. Mas, à noite, quando iam a sair, ela perguntou de novo:

– Fofinho, tens as minhas luvas?

– Quais delas? – perguntou William.

– As novas, as de camurça preta.

– Não.

Seguiu-se uma busca. Tinha-as perdido.

– Está a ver, mãe – disse William. – Já é o quarto par que ela perde desde o Natal... e cada par são cinco xelins.

– Tu só me deste dois pares – repontou ela.

E à noite, depois da ceia, ficou sentada no sofá e ele foi postar-se frente à lareira, farto dela. À tarde, tinha-a deixado sozinha para ir visitar um amigo de infância, e ela ficara a ver um livro. Depois da ceia, William quis ir escrever uma carta.

– Aqui tem o seu livro, Lily – disse Mrs. Morel. – Importa-se de ficar a ler mais um bocadinho?

– Não, obrigada, não quero o livro – disse a rapariga. – Prefiro ficar só aqui sentada.

– Mas isso é muito aborrecido...

William escrevia nervosamente, a grande velocidade. Quando estava a fechar o sobrescrito, disse:

– Ler um livro!... Essa é boa, ela nunca leu um livro na vida dela.

– Não digas isso! – disse Mrs. Morel, irritada com o exagero.

– É verdade, mãe... não leu mesmo – exclamou ele, pondo-se de pé num salto e retomando o seu lugar anterior, frente à lareira. – Nunca na vida leu um livro.

– Atão essa é como eu – interveio Morel. – Essa tamém num vê nada nos livros qu’a faça ficar sentada, aborrecida, de nariz infiado nas folhas. Pra quê? Eu tamém num vejo!

– Mas tu não devias dizer essas coisas – disse Mrs. Morel ao filho.

– Mas é verdade, mãe... ela não sabe ler... que livro é que lhe deu?

– Bem, dei-lhe um livrinho da Annie Swan. Ninguém quer ler coisas pesadas num domingo à tarde.

– Pois eu aposto que ela nem dez linhas leu.

– Aí é que tu te enganas – disse a mãe.

Lily assistia à discussão sentada no sofá, com um ar muito infeliz.

– Leste alguma coisa do livro? – perguntou-lhe ele.

– Li, sim – respondeu ela.

– Quantas páginas?

– Sei lá quantas páginas...

– Diz-me uma coisa que tenhas lido.

Ela não foi capaz.

– Cala-te, William – disse a mãe. – Que ideia a tua!

– Mas ela não consegue ler, mãe! – gritou ele, secamente. – Não consegue reter nada do que lê. Não sabe ler e não sabe falar. Não há assunto nenhum sobre o qual se possa conversar com ela. Só pensa em vestidos e em como todos a admiram.

– Não lhe ligue, Lily – disse Mrs. Morel.

– Só os parvos é que se sentam de nariz infiado nos livros, é o qu’eu digo – acrescentou Morel.

E a pobre rapariga continuava a ser agredida. Ele parecia odiá-la. Mais tarde, Mrs. Morel foi buscar-lhe um livro muito simples, e era patético vê-la arrastar-se penosamente pelas primeiras páginas na tarde chuvosa. Não conseguiu passar da segunda página. Ele lia muito, e possuía uma inteligência rápida, activa. Ela não entendia nada a não ser fazer amor e tagarelar. Ele estava habituado a ter todos os seus pensamentos peneirados pela mente da mãe. Por isso, quando procurava companhia e, em resposta, lhe era pedido que fosse apenas um amante, todo ele ternuras e gorgeios, odiava a namorada.

– Sabe, mãe – disse ele, quando à noite ficaram os dois sozinhos – ela não dá valor ao dinheiro, é um catavento. Quando recebe o ordenado, é capaz de gastar uma fortuna numa porcaria qualquer como, por exemplo, marrons glacés. E, depois, sou eu que tenho de lhe comprar o passe e todos os outros extras... até a roupa interior. E quer ela casar-se... Por mim, podíamos até casar já para o ano. Mas por este andar...?

– Ia ser um lindo casamento – respondeu a mãe. – Eu, se fosse a ti, pensava duas vezes, meu filho.

– Bom... Agora já fui longe de mais para romper com tudo – disse ele. – Por isso, o melhor é casar o mais depressa possível.

– Muito bem, meu filho. Se é isso que queres, assim será, e não se fala mais no assunto... Mas olha que eu não durmo quando penso nisso.

– Ela é boa rapariga, mãe. Cá nos havemos de arranjar.

– E ela deixa que sejas tu a comprar-lhe a roupa interior? – perguntou a mãe.

– Bem... – começou ele, apologético. – Ela nunca me pediu. Mas uma manhã... estava muito frio... encontrei-a na estação toda a tremer, nem conseguia estar parada. E então perguntei-lhe se estava bem agasalhada, e ela respondeu, «Acho que sim». E então eu disse «Trazes alguma camisola quente... de lã... por baixo?» E ela disse que não, que era de algodão. Perguntei-lhe por que carga de água não tinha vestido uma coisa mais quente com um frio daqueles, e ela disse que não tinha nada mais quente. E ainda por cima, com a bronquite que ela tem! Tive de pegar nela e ir comprar-lhe uma roupa mais quente... Sabe, mãe, o dinheiro era o menos, se nós o tivéssemos... Ela devia guardar o suficiente para o passe. Mas não... vem pedir-mo, e eu tenho de inventar o dinheiro...

– Belas perspectivas – disse Mrs. Morel, amargurada.

Ele estava pálido e no seu rosto já vincado, outrora tão sorridente e descuidado, estampavam-se o conflito e o desespero.

– Mas eu não posso acabar com tudo, não agora, as coisas já foram longe de mais – disse ele. – Além disso, para certas coisas, não posso passar sem ela...

– Meu filho, lembra-te de que se trata da tua vida – disse Mrs. Morel. – Nada pode ser pior do que um casamento que já está à partida irremediavelmente marcado pelo fracasso. O meu foi suficientemente mau, Deus sabe que sim, e devia ter-te ensinado alguma coisa... Mas ainda podia ter sido muito pior.

William estava encostado à ombreira da chaminé, de mãos no bolsos. Era um homem alto e esquelético, com ar de quem seria capaz de ir até ao fim do mundo, se lhe apetecesse. Mas a mãe lia--lhe o desespero no rosto.

– Agora não posso deixá-la.

– Está bem – disse a mãe. – Mas lembra-te de que há coisas piores do que romper um noivado.

Quedaram-se em silêncio, ele de olhar parado, fitando o espaço. Só a mãe lhe podia valer e, no entanto, não a deixava decidir por ele. Continuava preso ao que tinha feito.

– E, naturalmente – acrescentou Mrs. Morel, há muito mais nobreza em romper um noivado para evitar um mal maior do que em continuar só para cumprir uma promessa.

Ele mantinha-se estático, de olhar pregado no vazio.

– Eu não posso deixá-la agora – insistiu ele.

O relógio ia avançando. Mãe e filho continuaram em silêncio, em conflito. Mas ele nada mais disse. Por fim, ela disse:

– Bem, vai dormir, meu filho... amanhã sentes-te melhor... e talvez vejas as coisas com outros olhos.

O filho deu-lhe um beijo e foi deitar-se. Ela foi abafar o borralho, sentindo o coração pesado como nunca sentira antes. Antes, com o marido, parecia sentir ruir tudo dentro dela, mas nada lhe destruía a vontade de viver. Mas agora, era a própria alma que estava ferida. A própria esperança fora atingida.

William manifestou em muitas outras ocasiões o mesmo ódio pela noiva. Na última noite que passaram em casa dos pais, fartou-se de resmungar com ela.

– Bem – disse ele – já que não me acredita, que acha que ela não é nada assim, acredita pelo menos que ela foi crismada três vezes?

– Que disparate! – disse Mrs. Morel, perdida de riso.

– Disparate ou não, o certo é que foi mesmo! É isso que o Crisma significa para ela... teatro... um espectáculo onde pode brilhar.

– Não fui nada, Mrs. Morel – gritou a rapariga. – Não fui nada. Não é verdade.

– O quê! – gritou ele, avançando para ela. – Uma vez em Bromley, outra em Beckenham, e outra mais não sei onde.

– Em mais lado nenhum! – disse ela, a chorar. – Em mais lado nenhum.

– Foi, sim! E mesmo que não fosse, para que foste crismada duas vezes?

– Da primeira vez, só tinha catorze anos, Mrs. Morel – explicou ela, desculpando-se, de lágrimas nos olhos.

– Claro – disse Mrs. Morel. – Eu entendo perfeitamente, minha filha. Não lhe ligue. Devias ter vergonha, William, a dizeres estas coisas.

– Mas é verdade. Ela é religiosa... até tem livros de orações em veludo azul... mas liga tanto à religião, ou a outra coisa qualquer, como à perna daquela mesa. Ser crismada três vezes, só pelo espectáculo, só para se mostrar! E ela é assim em tudo o mais, em tudo!

A rapariga chorava, sentada no sofá. Não era um espírito forte.

– Até no amor! – gritou ele. – É o mesmo que pedir a uma mosca que nos ame. Só quer vir para cima de nós...

– Acabou-se! – disse Mrs. Morel, peremptória. – Se queres continuar a dizer esses disparates, tens de ir para outro lugar. Tenho vergonha de ti, William. Não sabes portar-te como um homem? Só a pôr defeitos na rapariga... e depois a fingires que estás noivo...! – Mrs. Morel sucumbiu à raiva e à indignação.

William mantinha-se em silêncio. Mais tarde, arrependido, foi dar um beijo à namorada e consolá-la. No entanto, tudo o que dissera era verdade, e odiava-a.

Quando partiram, Mrs. Morel acompanhou-os a Nottingham. A caminhada até à estação de Keston era longa.

– Sabe, mãe – disse ele –, a Ciganita é muito superficial... nada penetra nela a fundo...

– William, preferia que não dissesses essas coisas – pediu Mrs. Morel, sentindo-se constrangida com a presença da rapariga.

– Mas é que não penetra mesmo, mãe... Ela está muito apaixonada por mim, agora... Mas, se eu morresse, esquecia-me em três meses.

Mrs. Morel tinha medo. O seu coração batia furiosamente perante a amargura serena das últimas palavras do filho.

– Como sabes? – retorquiu. – Tu não podes saber... e, por isso, não tens o direito de dizeres uma coisa dessas.

– Ele está sempre com estas coisas! – exclamou a rapariga.

– Três meses depois de me enterrarem, já tu tinhas arranjado outro e nunca mais te lembravas de mim – disse ele. – É esse o amor que me tens!

Mrs. Morel meteu-os no comboio, em Nottingham, e voltou para casa.

– Sabes uma coisa? – disse ela pateticamente para Paul. – Não se entendem e nunca se hão-de entender. Como vai ser, se chegarem a casar, é de mais para a minha imaginação. Se ao menos ele a deixasse, já não precisava de a atormentar desta maneira. Mas vão ficar presos um ao outro até se matarem. Quando ele disse aquilo, a caminho de Keston, foi como se eu já não pudesse dar nem mais um passo. Pobrezinha, tenho pena dela. Mas não é mulher para ele, lá isso não é. É muito cruel dizê-lo, mas como ela é muito frágil, mais valia que morresse em vez de casar com ele.

Mrs. Morel não tirou o filho do pensamento durante todo o Verão. Ele parecia estar a dar cabo da vida. Mas o casamento parecia estar ainda demorado.

– Valha-nos pelo menos uma coisa – disse ela a Paul. – Ele nunca vai juntar dinheiro suficiente para se casar, disso tenho eu a certeza. É assim que ela o vai salvar.

E a ideia animava-a. As coisas ainda tinham remédio, e acreditava firmemente que William nunca chegaria a casar com a sua Cigana. Aguardava e mantinha Paul junto de si.

Durante todo o Verão, as cartas de William soavam febris. Parecia pouco natural e empolgado. Por vezes exageradamente alegre, mas geralmente sóbrio e amargo.

– Pois é – dizia a mãe. – Anda a dar cabo dele por causa daquela criatura que não merece o amor que ele lhe tem, que não passa duma boneca de trapos.

Ele só pensava em vir a casa. As férias de Verão já lá iam, e o Natal ainda estava muito longe. Escreveu muito entusiasmado a dizer que podia vir a casa no princípio de Outubro, passar um sábado e um domingo, para a Feira do Ganso.

– Tu não andas bem, meu filho – disse-lhe a mãe quando o viu. Tê-lo assim, só para ela, dava-lhe até vontade de chorar.

– Não, não tenho passado nada bem – disse ele. – Apanhei uma constipação que se arrastou durante todo o mês. Mas já estou melhor, acho eu.

Estava um dia soalheiro de Outubro. William parecia louco de alegria, como um garoto que se escapasse às aulas. Mas logo ficou calado e reservado. Estava mais esquelético que nunca e com os olhos encovados.

– Andas a trabalhar de mais – disse a mãe.

Fazia horas extraordinárias, para juntar dinheiro para se casar, segundo disse. Só conversou com a mãe uma vez, no sábado à noite. Depois, pôs-se muito triste, com saudades da namorada.

– Sabe uma coisa, mãe, apesar disto tudo, se eu morresse, ela ia chorar por mim durante dois meses, e depois tratava de me esquecer. A mãe havia de ver, ela nunca viria aqui visitar a minha sepultura nem uma só vez.

– Ora, William – disse a mãe –, tu não vais morrer, para quê falar nisso agora?

– Mas se acontecesse... – insistiu ele.

– Ela não tem culpa... ela é assim... e se tu a escolheste, não te podes queixar... – disse a mãe.

No domingo de manhã, quando estava a pôr o colarinho, William disse, levantando o queixo:

– Veja a borbulhagem que o colarinho me fez por baixo do queixo!

Mesmo na ligação do queixo com a garganta havia uma zona muito vermelha, toda irritada.

– Não te devia fazer isso – disse a mãe. – Toma, põe um pouco deste unguento. Devias mudar de colarinhos.

William partiu no domingo à noite, aparentemente melhor e mais forte, depois destes dois dias passados em casa.

Na terça-feira de manhã, chegou um telegrama de Londres dizendo que ele estava doente. Mrs. Morel, que estava a esfregar o chão, levantou-se, leu o telegrama, chamou uma vizinha, foi a casa da senhoria, pediu-lhe dinheiro emprestado, vestiu-se e partiu. Correu até à estação de Keston e apanhou o expresso para Londres em Nottingham, onde teve de esperar quase uma hora. Figurinha frágil, com o seu chapelinho preto, não parava de perguntar, ansiosa, aos carregadores se sabiam o caminho para Elmers End. A viagem demorou três horas. Foi sempre sentada no seu canto, embalada numa espécie de torpor, sem se mexer. Na estação de King’s Cross também ninguém sabia indicar-lhe o caminho para Elmers End. Com o saco de rede na mão, com a camisa de noite, um pente e uma escova, ia de pessoa em pessoa, fazendo sempre a mesma pergunta. Por fim, mandaram-na apanhar o metropolitano até Cannon Street.

Eram seis horas quando chegou ao apartamento de William. As persianas não estavam corridas.

– Como está ele? – perguntou.

– Na mesma – disse a dona da casa.

Mrs. Morel subiu a escada atrás da senhoria. William estava deitado na cama, com os olhos injectados de sangue, muito pálido. A roupa estava espalhada pelo chão, o lume estava apagado e tinha um copo de leite na mesa de cabeceira. Ninguém viera vê-lo.

– Então, meu filho, que foi isto? – disse a mãe, mostrando coragem.

Ele não respondeu. Olhava para ela, mas não a via.

Depois, começou a dizer numa voz monocórdica, como se ditasse uma carta: «Devido a uma brecha no casco do navio, o açúcar tornou-se num bloco, cristalizou. Foi preciso parti-lo com um machado...»

Estava completamente inconsciente. Um dos seus trabalhos tinha sido ir examinar esse tal carregamento de açúcar no porto de Londres.

– Há quanto tempo está ele assim? – perguntou a mãe à senhoria.

– Chegou a casa às seis horas da manhã na segunda-feira e aparentemente dormiu o dia todo. À noite, ouvimo-lo a falar, e esta manhã chamou por si. Por isso, mandei o telegrama e chamámos o médico.

– Não se importa de acender o lume?

Mrs. Morel tentava acalmar o filho, mantê-lo quieto.

O médico chegou. Era uma pneumonia e, segundo disse, uma forma rara de erisipela, que tinha começado debaixo do queixo, provocada pelo roçar do colarinho, e se estava a espalhar a toda a cara; e esperava bem que não lhe atingisse o cérebro.

Mrs. Morel ficou a cuidar dele. Rezava por William, rezava para que ele a reconhecesse. Mas a cara do jovem cada vez perdia mais as cores. De noite, teve de lutar com o filho. Ele delirou e tornou a delirar, sem nunca recobrar a consciência. E morreu às duas da manhã, num paroxismo atroz.

Durante uma hora, Mrs. Morel permaneceu estática, sentada no quarto do filho. Depois, acordou toda a casa.

Às seis da manhã, vestiu-o com a ajuda da mulher da limpeza e em seguida saiu e foi à procura do registo civil e do médico daquele lúgubre subúrbio londrino.

Às nove horas, novo telegrama para Scargill Street: «William morreu esta noite. Dizer pai venha e traga dinheiro.»

Annie, Paul e Arthur estavam em casa. Mr. Morel tinha ido trabalhar. As três crianças não disseram uma palavra. Annie começou a choramingar, com medo. Paul foi chamar o pai.

O dia estava lindo. Na mina de Bretty, o vapor branco fundia-se lentamente com a luz do sol no céu azul, muito ameno, as roldanas da torre brilhavam no alto do aterro, e a peneira não se calava, sempre a deitar o carvão para os vagões.

– Tenho de falar com o meu pai... ele tem de ir já para Londres – disse o rapaz ao primeiro homem que encontrou no aterro.

– Queres falar com Walter Morel?... Vai ‘í dentro e diz ò Joe Ward.

Paul entrou no escritório de cima.

– Quero o meu pai... ele tem de ir pra Londres.

– O teu pai... está na mina? Quem é ele?

– Mr. Morel.

– Quem, o Walter? Aconteceu alguma coisa?

– Ele tem de ir já pra Londres.

O homem foi para o telefone e ligou para o escritório de baixo.

– Chamem o Walter Morel... 42 Hard. Aconteceu alguma coisa... o filho dele tá ‘qui.

Depois, voltou-se para Paul, e disse:

– Daqui a cinco minutos ele já aí está.

Paul foi até ao topo da mina. Viu a caixa subir, com o carregamento de carvão. A grande gaiola de ferro descansou sobre os apoios, a carga foi retirada, um contentor vazio deslizou sobre os apoios, algures tilintou uma campainha, a gaiola elevou-se e caiu como uma pedra.

Paul não acreditava que William estivesse morto... era impossível, com tanta azáfama por todo o lado. O mineiro de serviço empurrou o pequeno contentor para cima da placa giratória, e um outro homem levou-a pelo aterro fora, pelos trilhos sinuosos. «O William está morto e a minha mãe em Londres; que estará ela a fazer?», perguntava-se ele, como se se tratasse de uma charada.

Viu os contentores subirem uns atrás dos outros, e nem sinais do pai. Por fim, o vulto de um homem desenhou-se ao lado de um vagão! A gaiola descansou sobre os apoios e Morel desceu. Coxeava ligeiramente, devido a um acidente.

– És tu, Paul!... Ele tá pior?

– Tem de ir já pra Londres.

Desceram os dois o aterro, lado a lado, sob os olhares curiosos dos mineiros. Quando deixaram a mina e seguiam já ao longo da via férrea, com os campos soalheiros de Outono de um dos lados e um muro de vagões do outro, Morel perguntou, com o medo na voz:

– Ele não se curou, filho?

– Não.

– E quando foi?

Havia terror na voz do mineiro.

– Esta noite... Chegou um telegrama da mãe.

Morel deu mais alguns passos e depois encostou-se a um vagão e fincou as mãos nos joelhos. Mas não chorou. Paul olhou em volta, à espera. Um vagão balouçou lentamente em cima da balança. Paul via tudo, menos o pai, encostado ao vagão, como se estivesse cansado.

Morel só tinha ido uma vez a Londres. Pôs-se a caminho, assustado e lívido, para ir ajudar a mulher. Isto passou-se numa terça-feira. Os filhos ficaram sozinhos em casa. Paul foi trabalhar, Arthur para a escola e Annie chamou uma amiga para lhe fazer companhia.

No sábado à noite, quando Paul dobrava a esquina, de regresso de Keston, viu a mãe e o pai, que vinham da estação de Lethley Bridge. Caminhavam no escuro, em silêncio, cansados, separados. O rapaz ficou à espera.

– Mãe! – disse ele, da escuridão.

A figura franzina de Mrs. Morel pareceu não dar por ele. Paul insistiu.

– Paul! – disse ela, indiferente. Deixou-o dar-lhe um beijo, mas parecia não o ver.

Em casa foi a mesma coisa, franzina, pálida e muda. Não via nada, não dizia nada, excepto:

– O caixão chega hoje à noite, Walter. É melhor pedires ajuda. – E, depois, voltando-se para os filhos: – Vamos trazê-lo para casa.

Em seguida mergulhava num mutismo duradouro, de olhar perdido no espaço e mãos cruzadas sobre o regaço. Paul, ao vê-la assim, quase não podia respirar. Reinava em toda a casa um silêncio de morte.

– Fui trabalhar, mãe – disse Paul, tristemente.

– Ah, foste – respondeu ela, indiferente.

Passada meia hora, Morel, preocupado e confuso, entrou em casa.

– Onde havemos d’o pôr, quand’ele chegar? – perguntou à mulher.

– Na sala da frente.

– Então é melhor eu tirar de lá a mesa.

– Está bem.

– E botá-lo em cima das cadeiras?

– Tu lá sabes... sim... acho que sim.

Morel e Paul pegaram numa vela e foram para a sala. Lá não havia gás. O pai desaparafusou o tampo oval da grande mesa de mogno e libertou o centro da sala. Depois dispôs seis cadeiras em frente umas das outras, de forma a poderem suportar o caixão.

– Nunca vi ninguém mais comprido! – disse o mineiro, olhando em volta, ansioso, enquanto trabalhava.

Paul foi à janela e olhou para a rua. O freixo erguia-se monstruoso e negro, contra a imensa escuridão. Estava uma noite sem luar. Depois, voltou para junto da mãe.

Às dez horas, Morel anunciou:

– Chegou!

Todos estremeceram. Ouviu-se destrancar e abrir a porta da frente, que dava passagem directa da noite escura para dentro da sala.

– Tragam outra vela – gritou Morel.

Annie e Arthur foram buscá-la. Paul acompanhou a mãe. Estava ao lado dela, encostado à porta interior, passando-lhe o braço pela cintura. No meio da sala vazia havia seis cadeiras à espera, viradas umas para as outras. Junto à janela, Arthur segurava uma vela, encostado às cortinas de renda, e junto à porta aberta, virada para a noite, estava Annie, inclinada para a frente, com a palmatória de latão a cintilar.

Ouviu-se o barulho de um rodado. Lá fora, na escuridão da rua, Paul viu cavalos e um veículo negro, um lampião e alguns rostos empalidecidos. Depois, alguns homens – mineiros – todos em mangas de camisa, que pareciam debater-se na penumbra densa. Por fim, apareceram dois homens, vergados sob a pesada carga. Era Morel e o vizinho.

– Firme! – disse Morel, sem fôlego.

Ele e o companheiro subiram o degrau alto do jardim e surgiram à luz da vela, segurando uma das extremidades cintilantes do caixão. Mais braços, de outros homens, agitavam-se por detrás deles. Morel e Burns, à frente, vacilaram. A carga negra, pesadíssima, balançou.

– Firme, firme! – gritou Morel, num grito de dor.

Os seis carregadores já estavam todos no jardim, trazendo o caixão pelo ar. Havia ainda mais três degraus até à porta. A lanterna amarelada da carruagem brilhava sozinha, na estrada de breu.

– Agora! – disse Morel.

O caixão balançou, os homens começaram a subir os degraus com a sua carga. A chama da vela de Annie tremulou e ela começou a chorar ao ver surgir os primeiros homens. Os braços e as cabeças curvadas dos seis homens lutavam para vencerem a subida até à sala com o caixão, transportando o peso do sofrimento sobre a sua carne viva.

– Oh, meu filho... meu filho! – disse Mrs. Morel, baixinho, como se entoasse. E, de novo, de cada vez que o caixão balançava ao passo desigual dos carregadores:

– Oh, meu filho... meu filho... meu filho!

– Mãe! – disse Paul, a chorar, com o braço em volta da cintura dela. – Mãe!

Ela não ouviu.

– Oh, meu filho... meu filho! – repetia.

Paul via gotas de suor pingarem da testa do pai. Os seis homens estavam na sala, seis homens em mangas de camisa, de braços exaustos que se debatiam com a sua carga, enchendo a sala e indo de encontro aos móveis. O caixão desceu e foi suavemente pousado sobre as cadeiras. O suor pingava da testa de Morel sobre o rebordo.

– Palavra d’honra, manda cá um peso! – disse um dos homens, e os cinco mineiros soltaram um suspiro, curvaram-se perante o caixão e, trémulos da luta, desceram novamente os degraus, fechando a porta atrás de si.

A família ficou sozinha na sala com a enorme caixa envernizada. William, esticado, tinha seis pés e quatro polegadas de comprimento. O imponente caixão, de um castanho brilhante, jazia qual monumento. Paul pensou que nunca mais iam conseguir tirá-lo dali. A mãe acariciava a madeira envernizada.

Foi a enterrar na segunda-feira, no pequeno cemitério da encosta, alcandorado sobre os campos, dominando a igreja e o casario. Estava um dia de sol e os crisântemos brancos encaracolavam as pétalas ao calor.

Depois de tudo isto, nada conseguia persuadir Mrs. Morel a falar e a recuperar a sua antiga força de viver. Continuava fechada sobre si mesma. Quando voltava para casa, no comboio, tinha pensado para consigo: «Se ao menos tivesse sido eu.»

Quando Paul chegou a casa à noite, encontrou a mãe sentada com as mãos no regaço, sobre o tosco avental, já com a lida da casa despachada. Era sempre costume trocar de vestido e pôr um avental preto. Mas desta vez foi Annie quem lhe pôs a ceia, e a mãe continuou sentada em frente dela, de olhar vazio e lábios cerrados. Paul deu voltas à cabeça para arranjar novidades para lhe contar.

– Mãe, Miss Jordan apareceu lá hoje e disse que o meu esboço de uma mina a laborar estava muito bom...

Mas Mrs. Morel nem prestou atenção. Noite após noite, Paul esforçava-se por lhe contar coisas, mesmo que ela o não escutasse. Quase o enlouquecia vê-la neste estado. Até que:

– Que tem, mãe? – perguntou ele. Ela não ouviu.

– Que tem? – insistiu. – Mãe, o que é que tem?

– Sabes bem o que é que eu tenho – disse ela, irritada, virando-lhe as costas. O rapaz – tinha agora dezasseis anos – foi para a cama tristíssimo. Passou Outubro, Novembro e Dezembro sentindo-se rejeitado, um desgraçado. A mãe bem tentava, mas não conseguia reagir. Tudo o que fazia era pensar no filho morto, que tão cruelmente tinham deixado morrer.

Por fim, no dia 23 de Dezembro, Paul voltou para casa como um sonâmbulo, com os cinco xelins da gratificação de Natal no bolso. A mãe olhou para ele e o seu coração parou.

– O que se passa? – perguntou ela.

– Sinto-me mal, mãe! – respondeu ele. – Mr. Jordan deu-me cinco xelins de gratificação. – E estendeu-os à mãe, com a mão trémula. Ela pô-los em cima da mesa.

– A mãe não parece satisfeita – disse ele, como se ralhasse.

Mas Paul tremia violentamente.

– Onde é que te dói? – disse ela, desabotoando-lhe o sobretudo.

Era a velha pergunta.

– Sinto-me mal, mãe.

Ela despiu-o e meteu-o na cama. Era uma pneumonia, e grave, disse o médico.

– Ele podia não a ter apanhado, se eu o tivesse obrigado a ficar em casa e não o deixasse ir para Nottingham? – foi uma das primeiras coisas que perguntou.

– Podia não ser tão grave – disse o médico.

Mrs. Morel encontrou na resposta a sua própria condenação.

– Devia ter-me preocupado com os vivos, e não com os mortos – disse para consigo.

Paul esteve muito mal. A mãe passava as noites ao seu lado, pois não tinham dinheiro para uma enfermeira. O seu estado piorou e a fase crítica aproximava-se. Uma noite recobrou a consciência, num daqueles paroxismos fantasmagóricos e doentios de dissolução, em que todas as células do corpo parecem estilhaçar-se à pressão extrema da irritabilidade, e a consciência, como em estados de loucura, tem um derradeiro arrobo de vitalidade.

– Vou morrer, mãe! – gritou ele, soerguendo-se da almofada, lutando para respirar.

Ela ajudou-o, chorando baixinho:

– Oh, meu filho, meu filho!

Isto trouxe-o de volta. Apercebeu-se da presença da mãe. A sua força de vontade empertigou-se e prendeu-o à vida. Pousou a cabeça do peito dela e repousou no seu amor.

– De certa forma – disse a tia – foi até bom o Paul ter tido aquela doença no Natal. Foi isso que salvou a mãe.

Paul esteve de cama sete semanas. Levantou-se, finalmente, pálido e muito fraco. O pai tinha-lhe comprado um vaso de tulipas vermelhas e douradas. Era vê-las, a brilhar como fogo na janela, ao sol de Março, enquanto ele ficava sentado no sofá a conversar com a mãe. Tagarelavam os dois em perfeita intimidade. Mrs. Morel vivia agora para Paul.

William tinha sido profético. Mrs. Morel recebeu uma lembrança e uma carta de Lily pelo Natal. Da irmã de Mrs. Morel, uma carta pelo Ano Novo.

«Fui ontem a um baile. Encontrei lá pessoas adoráveis e diverti-me imenso», dizia a carta. «Não perdi uma dança... nem uma.»

Mrs. Morel nunca mais teve notícias dela.

Morel e a mulher viveram em harmonia durante algum tempo depois da morte do filho. Ele costumava quedar-se, como num êxtase, de olhos esbugalhados e olhar perdido. Depois, levantava-se de repente e ia para o Three Spots, voltando já no seu estado normal. Mas nunca mais foi passear para os lados de Shepstone, para não passar pelo escritório onde o filho trabalhara, e evitava passar pelo cemitério.


SEGUNDA PARTE


VII

AMOR DE ADOLESCENTES

NO OUTONO, Paul estivera várias vezes em Willey Farm e tinha-se tornado amigo dos dois rapazes mais novos. De início, Edgar, o mais velho, não se mostrava muito receptivo, e Miriam furtava-se também a qualquer aproximação. Tinha medo de ser desprezada pelos próprios irmãos. Rapariga de alma romântica, em toda a parte via heroínas de Walter Scott, cortejadas por cavaleiros de armadura ou chapéus emplumados. Ela própria era, na sua imaginação, uma princesa transformada em guardadora de porcos. E receava que aquele rapaz, parecido embora com um herói de Walter Scott, que pintava, falava francês, sabia álgebra e viajava todos os dias de comboio para Nottingham, visse nela simplesmente a guardadora de porcos e fosse incapaz de vislumbrar a princesa que nela se ocultava. Por isso, fugia dele.

A sua melhor amiga era a mãe. Ambas de olhos castanhos e dadas ao misticismo, eram daquelas mulheres que guardam a religião ciosamente no coração e para quem a religião é como o ar que respiram, como um véu de bruma que lhes filtra a vida. Assim, para Miriam, Cristo e Deus formavam uma só imagem sublime que ela amava com fervor, apaixonadamente, sempre que um imenso pôr do Sol incendiava o céu poente; sempre que os heróis e as heroínas – os Brian de Bois Gilberts, os Rob Roys e os Guy Mannerings; as Edites, as Lucys e as Rowenas – faziam restolhar as folhas matinais encharcadas de sol, ou se vinham sentar com ela nas alturas do seu quarto, sonhadores e solitários, quando a neve caía. Isto sim, era para ela viver. Quanto ao resto, cuidava da lida da casa, trabalho que não lhe seria pesado, se o chão de tijoleira bem polida não ficasse logo todo patinhado das pesadas botas dos irmãos; queria à viva força que o irmão mais novo, de quatro anos, a deixasse envolvê-lo e cobri-lo com o seu amor; ia à igreja, reverente, em pose contrita, e sofria angustiada perante a vulgaridade das outras meninas de coro e a banalidade da voz do cura; envolvia-se em lutas com os irmãos, que considerava uns brutamontes; e não tinha o pai em grande estima por não albergar no coração quaisquer ideais místicos, e ter como únicas ambições uma vida sem preocupações e a comida na mesa a tempo e horas.

Miriam detestava a sua condição de guardadora de porcos. Queria ser respeitada. Queria instruir-se, pensando que, se fosse capaz de ler, como Paul dizia que era, a Colomba ou a Voyage Autour de ma Chambre, o mundo a veria com outros olhos e teria por ela um profundo respeito. Como jamais poderia ser princesa por fortuna ou condição, ansiava possuir conhecimentos de que pudesse orgulhar-se; era diferente das outras pessoas e não queria ser confundida com a arraia-miúda. Ser instruída era a única marca de distinção a que pensava poder aspirar.

A sua beleza, misto de timidez, rebeldia e sensibilidade, não tinha para ela qualquer valor. Nem mesmo a sua alma, tão dada a arrebatamentos, lhe era suficiente. Precisava de algo mais que reforçasse o seu orgulho, pois sentia-se diferente das outras pessoas. Olhava Paul com vaga melancolia. De uma maneira geral, desprezava o sexo masculino. Neste caso, porém, ele era um exemplar diferente, ágil, leve, gracioso, que tanto podia mostrar-se gentil como insuportável, que era inteligente e culto, que já tinha passado por uma morte na família. O pouco que o rapaz sabia guindava-o aos píncaros a seus olhos. Contudo, esforçava-se por desprezá-lo por ele não conseguir ver nela a princesa, mas tão-só a guardadora de porcos.

Paul mal reparava nela.

Um dia, porém, adoeceu gravemente e ela sentiu que com isso ele iria enfraquecer. Se assim fosse, seria ela a mais forte e então poderia amá-lo. Se pudesse ser sua amante na fraqueza, cuidar dele, tê-lo na sua dependência, se ao menos pudesse tê-lo nos seus braços, com que força o amaria!

Assim que os céus desanuviaram e as ameixoeiras floriram, Paul partiu para Willey Farm na carroça do leiteiro. Mr. Leivers gritou pelo rapaz em tom amigável e conduziu o cavalo lentamente pela encosta acima, ao fresco da manhã, dando estalinhos com a língua para o incitar. No céu passavam nuvens brancas que se iam juntar para lá das colinas, agora visíveis à luz primaveril. As águas do Nethermere jaziam em baixo, muito azuis, em contraste com os prados ressequidos e os espinheiros.

Era uma viagem de quatro milhas e meia. Nas cercas, minúsculos botões em tons vivos e brilhantes desabrochavam em rosetas e os tordos pairavam e os melros piavam e gralhavam. Era um mundo novo, fascinante.

Miriam, espreitando da janela da cozinha, viu o cavalo transpor o grande portão branco do pátio, recortando-se contra o bosque de carvalhos desfolhados, em fundo. Nisto, um rapaz envergando um casacão muito grosso saltou para o chão e estendeu as mãos para segurar o chicote e a manta que o lavrador sadio e bem-humorado lhe entregava.

Miriam assomou-se à porta. Tinha quase dezasseis anos, era linda, de faces rosadas, ar grave e uns olhos subitamente dilatados, como em êxtase.

– Vejo – disse Paul virando-se envergonhado – que os teus narcisos estão quase a desabrochar. Não será cedo de mais? Não achas que está ainda muito frio?

– Frio? – repetiu Miriam, na sua voz terna e musical.

– O verde dos botões... – e Paul interrompeu-se, timidamente.

– Deixa-me levar-te a manta – disse Miriam, com exagerada amabilidade.

– Eu posso bem levá-la – respondeu ele, mostrando-se ofendido. Contudo, entregou-lha.

Entretanto, apareceu Mrs. Leivers.

– Deves estar cansado e cheio de frio – disse ela. – Dá-me o casaco. Que pesado.... não vais longe com ele.

Ajudou-o a despir o casacão, amabilidade a que o rapaz não estava habituado, e quase sucumbiu a tanto peso.

– Ena, mulher – disse o lavrador a rir, quando passou pela cozinha com as grandes bilhas de leite a baloiçar. – Tás aí que nem t’aguentas. – Ela ajeitou as almofadas no sofá para o rapaz se encostar.


CONTINUA

Paul, sempre atrás dele, contornou o balcão quadrangular. A sala onde estava ficava no segundo andar. Tinha um grande buraco no meio do chão, rodeado por um muro de balcões, e era por essa abertura que subiam e desciam os elevadores e passava a luz para o andar de baixo. No tecto, na mesma direcção, havia também um buraco oblongo, e, olhando para cima, podiam ver-se algumas máquinas para lá da cercadura de protecção do andar superior; e, logo por cima, uma clarabóia por onde entrava a luz para os três andares, tornando-se cada vez mais fraca à medida que se descia mais fundo, o que deixava o rés-do-chão às escuras e o primeiro andar na penumbra. A fábrica estava instalada no último andar, o armazém no segundo e a arrecadação no rés-do-chão. O lugar era velho e insalubre.

Paul foi levado para um canto muito escuro.

– Aqui é a secção Espiral – disse o empregado. – Tu fazes a Espiral com o Pappleworth. É ele o teu chefe, mas ainda não veio. Só chega lá para as oito e meia. Por isso, se quiseres, podes ir buscar as cartas a Mr. Melling, ali adiante.

E o jovem apontou para o tal velho do gabinete do fundo.

– Está bem – disse Paul.

– Está aqui uma escápula para pendurares o boné... e aqui tens os livros de registo da correspondência. Mr. Pappleworth já não deve demorar.

E o jovem, muito magro, afastou-se altaneiro, com grandes passadas desenvoltas, que ressoavam secas no soalho.

Passados um ou dois minutos, Paul parou à porta do gabinete envidraçado. O velho funcionário, com o seu bonezinho, olhou-o por cima dos óculos.

– Ora muito bom dia – disse, afável e enfático. – Queres as cartas para levares para a Espiral, não é, Thomas?

Paul não gostou que ele lhe chamasse Thomas, mas pegou nas cartas e voltou para o seu recanto escuro, onde o balcão dobrava em ângulo, onde acabava a prateleira das embalagens, e onde, mesmo ao canto, se abriam três portas. Paul sentou-se num banco alto e começou a ler as cartas, pelo menos, aquelas cuja letra era mais legível. Diziam o seguinte:

«Queira enviar-me por favor, com a máxima urgência, um par de meias de seda Espiral para senhora, sem pé, idênticas às que me enviou o ano passado... altura... da anca ao tornozelo... etc.»

Ou então: «O Major Chamberlain deseja renovar o anterior pedido de uma ligadura suspensória em seda, não elástica.»

Muitas destas cartas, algumas delas em francês ou norueguês, eram um quebra-cabeças para o rapaz, que aguardava ansioso, sentado no banco, a chegada do «chefe». Às oito e meia, sofreu um ataque de timidez quando as raparigas do andar de cima passaram por ele a correr.

Mr. Pappleworth apareceu por volta das vinte para as nove, a mastigar uma pastilha elástica de mentol, quando já todos estavam a trabalhar. Era um homem magro e pálido, de nariz vermelho e gestos rápidos e peremptórios, trajando com austera elegância. Devia andar pelos trinta e seis anos e havia nele algo de canino, garboso, brincalhão e astuto, afectuoso talvez, mas simultaneamente algo de ligeiramente desprezível.

– És o meu novo ajudante? – perguntou. Paul pôs-se de pé e disse que sim.

– Foste buscar as cartas?

Mr. Pappleworth continuou a mastigar a pastilha.

– Sim.

– Copiaste-as?

– Não.

– Então anda cá, vamos pôr-te operacional. Já trocaste de casaco?

– Não.

– O melhor é trazeres um casaco velho e guardá-lo aí.

As últimas palavras foram pronunciadas com a pastilha apertada de lado, entre os queixais. Desapareceu na penumbra, por detrás da enorme prateleira das embalagens, e reapareceu já sem casaco, com uma elegante camisa às riscas com os punhos dobrados, deixando a descoberto uns braços magros e peludos. Depois, enfiou o outro casaco. Paul reparou na magreza deste homem e em como as calças faziam pregas no traseiro. Pegou num banco, puxou-o para junto do rapaz e sentou-se.

– Senta-te – disse o homem. Paul sentou-se. Mr. Pappleworth estava muito próximo dele. Pegou nas cartas, tirou um livro comprido, de registos, da prateleira em frente, abriu-o, pegou numa caneta e disse:

– Agora, presta atenção... Vais copiar estas cartas para aqui.

Fungou duas vezes, deu uma mastigadela na pastilha, olhou demoradamente para uma carta, quedou-se pensativo e deu entrada da carta rapidamente, numa caligrafia bonita e floreada. Depois, olhou de relance para Paul.

– Estás a ver?

– Estou.

– Achas que consegues fazer o mesmo... e bem feito?

– Acho que sim.

– Então, está bem... vamos lá a ver.

Saltou para o chão. Paul pegou numa caneta. Mr. Pappleworth desapareceu. Paul gostava bastante de copiar cartas, mas escrevia devagar, laboriosamente, e muito mal. Ia ele na sua quarta carta, todo feliz e atarefado, quando Mr. Pappleworth voltou.

– Ora vejamos... que tal vai isso... já ’cabaste?

Debruçou-se sobre o ombro do rapaz, sem parar de mastigar e a cheirar a mentol.

– Diabos me levem, rapaz... Mas que belo escritor que tu me saíste! – exclamou ele, trocista. – Não te rales, quantas já fizeste? Só três! Eu tinh’até tido tempo de sobra pràs comer. Continua, miúdo, e numera-as... assim, tás a ver? Continua!

Paul não largava as cartas, enquanto Mr. Pappleworth tratava de outros assuntos. Nisto, soou um apito agudo mesmo junto ao ouvido dele, e o rapaz assustou-se. Mr. Pappleworth aproximou-se, tirou um tampão de dentro de um tubo e disse, numa voz inesperadamente agreste e autoritária:

– Sim!

Paul ouviu uma voz sumida, provavelmente de mulher, a sair pelo tubo. Ficou embasbacado, pois nunca tinha visto um tubo falante.

– Bem – disse Mr. Pappleworth, num tom agastado, falando para o tubo – nesse caso, o melhor é fazer algum do trabalho em atraso.

De novo a voz aguda da mulher se fez ouvir, com um timbre bonito, mas zangado.

– Não tenho tempo para estar aqui a ouvi-la tagarelar – disse Mr. Pappleworth, e em seguida tapou o tubo.

– Vá, miúdo, despacha-te – disse ele, suplicante, virando-se para Paul. – Era a Polly aos gritos, quer as encomendas. Não consegues andar um bocadinho mais depressa? Vá... sai daí.

Pegou no livro, para imenso desgosto de Paul, e começou ele mesmo a escrever. Fazia-o depressa e bem. Uma vez terminadas as cópias, pegou numas tiras compridas de papel amarelo, com cerca de sete centímetros de largura, e preencheu as encomendas para enviar às operárias.

– É melhor prestares atenção – disse ele a Paul, sem se interromper. Paul olhou para aqueles estranhos desenhos de pernas, coxas e tornozelos, cheios de traços e números, e algumas instruções, com que o chefe preenchia as tiras amarelas. Quando acabou, Mr. Pappleworth saltou do banco.

– Vem comigo – disse ele, e, de papéis amarelos a esvoaçar na mão, desapareceu por uma porta e desceu uma escada em direcção à cave, onde ardia uma lamparina de gás. Atravessaram a arrecadação húmida e fria, depois uma sala comprida e lúgubre com uma mesa enorme assente sobre cavaletes e entraram numa sala mais pequena e acolhedora, de tectos não muito altos, que tinha sido construída como anexo do edifício principal. Nesta sala estava uma mulher de pequena estatura, com uma blusa de sarja vermelha e cabelo preto apanhado ao alto num carrapito, em atitude expectante, de galarote.

– Cá tão elas – disse Pappleworth.

– Eu penso que será «Cá estão elas»! – exclamou Polly. – As raparigas estiveram aqui à espera quase meia hora. Pense só no tempo que se perdeu!

– Pense mas é em fazer o seu trabalho e falar menos – disse Mr. Pappleworth. – Podia ter despachado outras coisas.

– Sabe muito bem que despachámos tudo no sábado – gritou Polly, avançando para ele faiscante.

– Blá-blá-blá! – arremedou-a o homem. – Aqui tem o seu novo ajudante. Não dê cabo deste como deu do outro.

– Como nós demos do outro! – repetiu Polly. – Pois é, nós damos cabo de muita coisa, olá se damos. Também lhe digo que qualquer rapaz tinha de ficar estragado depois de estar ao pé de si.

– Vá, vá... agora é hora de trabalhar, não de conversar – disse Mr. Pappleworth num tom seco e severo.

– Também há pouco era – disse Polly, afastando-se de cabeça bem erguida. Tinha um corpo pequeno e escorreito, de quarenta anos.

Na dita sala havia duas máquinas redondas, espiraladas, em cima do poial da janela. Na sala ao lado, que comunicava com a primeira e era mais comprida, havia outras seis máquinas. Algumas raparigas dignamente vestidas e de aventais brancos conversavam umas com as outras, formando um pequeno grupo.

Não têm mais nada para fazer? – disse Mr. Pappleworth.

– Só esperar por si – disse uma delas, bem bonita, rindo com gosto.

– Bom, toca a trabalhar, toca a trabalhar – disse ele. – Anda, miúdo. Da próxima vez, já sabes o caminho.

Paul correu escada acima atrás do chefe. Mandaram-no conferir algumas facturas e fazer outras. Ele arrimou-se à secretária, esforçando-se por cumprir a tarefa na sua caligrafia execrável. Nisto, Mr. Jordan aproximou-se, vindo do gabinete envidraçado, e, para grande atrapalhação de Paul, veio pôr-se mesmo por detrás dele. Subitamente, um dedo gordo e vermelho espetou-se sobre o documento que ele estava a preencher.

– Mr. J. A. Bates, Esquire! – bradou uma voz irada, junto ao seu ouvido.

Paul olhou para o «Mr. J. A. Bates Esquire» escrito na sua letra tortuosa, e perguntou-se o que estaria mal agora.

– Não te ensinaram a fazer como deve ser, enquanto andavas na escola? Se se põe «Mr.», não se põe «Esquire»... um homem não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.

O rapaz, lamentando a sua prodigalidade no modo como esbanjava títulos, hesitou e, com dedos trémulos, apagou a palavra «Mr.». Mas logo Mr. Jordan lhe arrancou a factura das mãos.

– Faz outra! Ou vais mandar isto a um cavalheiro? – E rasgou a factura azul, irritadíssimo.

Paul recomeçou, com as orelhas a arder de vergonha, sob o olhar atento de Mr. Jordan.

– Não sei o que é que eles vos ensinam na escola. Devias escrever muito melhor do que isso. Hoje em dia, os miúdos não aprendem nada a não ser recitar poesia e tocar violino... Já viu a letra dele? – perguntou Mr. Jordan a Mr. Pappleworth.

– Já... é de primeira... não é? – respondeu Mr. Pappleworth com indiferença. – Mas ele vai aprender.

Mr. Jordan resmungou qualquer coisa desagradável. Paul percebeu que o patrão ladrava mais do que mordia. Na verdade, o pequeno fabricante era suficientemente cavalheiresco, apesar do seu mau inglês, para deixar os empregados à vontade e não se prender com ninharias. Mas tinha consciência de não ter aspecto de ser o dono e senhor de tudo aquilo, e via-se por isso forçado a desempenhar o seu papel de vilão, para repor as coisas nos seus devidos lugares.

– Ora vamos lá a ver, como é que te chamas? – perguntou Mr. Pappleworth ao rapaz.

– Paul Morel.

É curioso o que as crianças sofrem para pronunciarem os seus nomes.

– Com que então, Paul Morel! Muito bem, vá, Paul Morel, toca a acabar essa coisa, e depois...

Mr. Pappleworth sentou-se num banco e começou a escrever. Uma rapariga entrou por uma porta mesmo atrás dele, depositou em cima do balcão uns artigos de malha elástica acabados de passar a ferro e voltou a sair. Mr. Pappleworth pegou na joelheira azul claro, examinou-a, confrontou-a rapidamente com a nota de encomenda amarela e pô-la de parte. Ao lado estava uma «perna» rosada, cor de carne. Conferiu os vários artigos, preencheu algumas notas de encomenda e disse a Paul que o acompanhasse. Desta vez, saíram pela porta por onde a rapariga tinha entrado. Paul viu-se no cimo de um pequeno lanço de escadas, e em baixo viu uma sala com janelas em duas das paredes e, no extremo oposto, meia dúzia de raparigas sentadas, curvadas sobre si mesmas, a costurarem à luz das janelas e a cantarem em coro, «Duas Meninas Vestidas de Azul». Ao ouvirem a porta abrir-se, todas se voltaram e viram Mr. Pappleworth e Paul a olharem para elas do outro lado da sala. Pararam de cantar imediatamente.

– Não podem fazer menos barulho? – disse Mr. Pappleworth. – As pessoas hão-de pensar que temos a casa cheia de gatas.

Uma mulher corcunda, sentada num banco alto, voltou para Mr. Pappleworth a cara comprida e circunspecta, e disse com voz de contralto:

– Só se esses forem gatos.

Mr. Pappleworth em vão tentou causar efeito para impressionar Paul. Desceu as escadas até à sala de acabamentos e dirigiu-se à corcunda, uma tal Fanny. O seu corpo era tão pequeno, empoleirado no alto do banco, que a cabeça, com grandes bandós de cabelo castanho-claro, parecia excessivamente grande, tal como o rosto, pálido e grave. Trazia um vestido de caxemira verde-escuro, e, quando pousou o trabalho nervosamente, viu-se que os seus pulsos, cingidos por punhos estreitos, eram finos e achatados. Ele mostrou-lhe uma joelheira que tinha um defeito qualquer.

– Ora – disse ela – não precisava de vir atirar as culpas para cima de mim... a culpa não é minha – disse, subindo-lhe um rubor às faces.

– Eu não disse que a culpa era sua... e agora faça o que lhe mandei! – ripostou Mr. Pappleworth, secamente.

– Não diz que a culpa é minha, mas quer fazer parecer que é – gritou a corcunda, quase a chorar. Depois, arrancou a joelheira das mãos do «chefe», dizendo: – Está bem, eu faço isso, mas não precisa de vir com duas pedras na mão.

– Aqui está o seu novo ajudante – disse Mr. Pappleworth.

Fanny voltou-se e sorriu gentilmente para Paul.

– Oh! – disse ela.

– Pois é... agora vejam lá se o estragam com mimos.

– Se alguém o estragar, não somos nós – disse ela, indignada.

– Vamos embora, Paul – disse Mr. Pappleworth.

– Au revoi, Paul – disse uma das raparigas.

Foi uma risota. Paul saiu, corado até à alma, sem dizer palavra.

O dia nunca mais acabava. Durante toda a manhã, foram os operários a vir falar com Mr. Pappleworth, e Paul a escrever ou a aprender a preparar as embalagens para a tiragem do meio-dia. À uma da tarde, ou melhor, quando faltava um quarto para a uma, Mr. Pappleworth desapareceu, para apanhar o comboio: vivia nos arredores. À uma, Paul, sentindo-se perdido, levou o cesto do farnel para a arrecadação da cave, onde estava a tal mesa comprida sobre cavaletes, e comeu à pressa, completamente sozinho naquele espaço de penumbra e desolação. Depois, foi passear para a rua. A claridade e a liberdade que sentia nas ruas tornavam-no feliz e afoito. Mas, às duas horas, voltou para o seu canto na sala grande. Não tardou que passassem as raparigas, metendo-se com ele. Eram as de mais baixa condição, as que trabalhavam no andar de cima em tarefas mais pesadas, como o fabrico de fundas e os acabamentos dos membros artificiais. Paul ficou a aguardar a chegada de Mr. Pappleworth, sem saber o que fazer, sentando-se a rabiscar nas notas de encomenda amarelas. Mr. Pappleworth chegou às vinte para as três, sentou-se e pôs-se a tagarelar com Paul, tratando o rapaz como seu igual, até na idade.

De tarde nunca havia muito que fazer, a não ser que fosse perto do fim-de-semana e as contas tivessem de ser fechadas. Às cinco horas, todos os homens foram até à «masmorra» da mesa de cavaletes, onde tomaram chá e pão com manteiga em cima das tábuas nuas e imundas, conversando com a mesma avidez e grosseria com que tomavam a refeição. No entanto, lá em cima, o ambiente era sempre alegre e desanuviado. Certamente a cave e os cavaletes deixavam-nos transtornados.

Depois do chá, quando todos os bicos de gás estavam acesos, o trabalho fluía com mais rapidez. Era preciso despachar as encomendas para o correio da tarde. As meias chegavam lá acima ainda quentes, acabadinhas de passar, directamente das oficinas. Paul já tinha passado todas as facturas. Faltava-lhe fazer agora as embalagens e endereçá-las, e depois pesar as suas encomendas na balança. Por todo o lado se ouviam vozes a gritar pesagens, o tilintar de metais, o estalar nervoso dos cordéis, a corrida ao gabinete de Mr. Melling, para os selos. Finalmente, chegou o carteiro, sorridente e bem-disposto, como seu enorme saco. Depois a agitação abrandou, Paul pegou no cesto do farnel e correu para a estação, para apanhar o comboio das oito e vinte. O dia de trabalho era exactamente de doze horas.

A mãe esperava por ele, ansiosa. Paul tinha de ir para casa a pé desde Keston, pelo que não chegou a casa antes das nove e vinte; e tinha saído de casa antes das sete da manhã. Mrs. Morel preocupava-se com a saúde do filho, mas também ela já tivera de enfrentar tantas dificuldades, que esperava que os filhos tivessem agora a mesma genica. Teriam de suportar o que fosse preciso. Assim, Paul manteve-se na Jordan, embora durante a sua permanência nesse emprego a sua saúde sofresse com a falta de luz e de ar fresco, e as longas horas de trabalho.

Quando chegou, vinha pálido e cansado. A mãe olhou para ele, mas viu-o tão satisfeito que a sua preocupação desapareceu.

– Então, como é que foi? – perguntou ela.

– Foi tão engraçado, mãe – respondeu ele. – O trabalho não é nada pesado e eles foram muito bons para mim.

– E saíste-te bem?

– Claro... só dizem que a minha letra é péssima. Mas Mr. Pappleworth... o meu chefe... disse a Mr. Jordan que eu ia aprender. Estou na Espiral, mãe. Tem de ir lá ver. É tão bom...

Paul contou tudo à mãe, tudo o que tinha visto, pensado, todos os pormenores da experiência que vivera. A única coisa que escondeu dela foi o ter escrito «Mr. J. A. Bates Esquire». Isso, ele não queria que ela soubesse; sentia muita vergonha. Também não lhe relatou nada de mais desagradável que lhe tivessem dito, só as coisas boas, tentando fazê-la crer que estava feliz e era estimado, e que a vida lhe corria de feição... o que geralmente acontecia. Contou-lhe tudo, excepto as pequenas vergonhas ou ignomínias; jamais suportaria vê-la envergonhada ou vexada por sua causa.

Paul depressa aprendeu a gostar da Jordan. Mr. Pappleworth, que tinha um certo ar de frequentador de bares, tratava-o sempre com naturalidade, como se fossem amigos de longa data. Às vezes, o chefe da Espiral irritava-se, e então mastigava pastilhas elásticas sem parar. Mesmo assim, nunca era ofensivo, mas sim uma daquelas pessoas que se magoam mais a si próprias do que aos outros com a sua irritabilidade.

– Ainda não fizeste isso? – gritava ele. – Já vi que és um mês só com domingos.

E logo se punha de novo alegre e brincalhão, o que deixava Paul muito confuso.

– Amanhã trago a minha cadelinha Yorkshire terrier – disse ele a Paul, rejubilando.

– O que é isso de Yorkshire terrier?

– O quê? Pois tu não sabes o que é uma Yorkshire terrier?... Não saber o que é um Yorkshire! – Mr. Pappleworth estava pasmado.

– É um cãozinho de pêlo sedoso... em tons de ferrugem e prata oxidada?

– É isso mesmo, meu rapaz. A minha é uma pérola. Já teve cachorrinhos que me renderam cinco libras, e ela própria vale mais de sete libras: e não chega a pesar uma libra e meia...

No dia seguinte, a cadela veio com ele. Era dez réis de cão tremeliquento. Paul não lhe ligou nenhuma; a cadela mais parecia um trapo molhado sem esperança de secar. Nisto, um dos homens chamou-a e começou a dizer piadas grosseiras. Mas Mr. Pappleworth meneou a cabeça na direcção do rapaz e a conversa prosseguiu a meia-voz.

Mr. Jordan fez apenas mais uma excursão à Espiral, para inspeccionar o trabalho de Paul e o único reparo que lhe fez, ao ver o rapaz pousar a caneta no balcão, foi:

– Tens de pôr a caneta na orelha, se queres ser um caixeiro a sério. Vá, caneta na orelha!

Num outro dia, disse ao rapaz:

– Não endireitas mais esses ombros porquê? Ora vem cá. E levou-o ao gabinete envidraçado, onde lhe colocou uns suspensórios especiais para manterem os ombros direitos.

Mas Paul preferia a companhia das raparigas. Os homens pareciam-lhe grosseiros e pouco espertos. Simpatizava com todos eles, mas achava-os desinteressantes. Ao encontrar Paul a comer na cave, Polly, a supervisora baixinha e sirigaita do rés-do-chão, perguntou-lhe se ele não queria que ela lhe cozinhasse alguma coisa no seu fogareiro e, no dia seguinte, a mãe mandou-lhe uma refeição que podia ser aquecida. Ele levou-a à salinha limpa e aconchegada onde Polly trabalhava, e depressa adquiriu o hábito de almoçar com ela. Quando chegava ao trabalho, às oito da manhã, levava-lhe o cesto, e quando descia à uma hora, já o almoço estava pronto.

Paul era pálido, não muito alto, cabelo espesso e castanho, feições irregulares e uma boca rasgada, de lábios cheios. Ela parecia um passarinho, e ele até a tratava muitas vezes por pisco. Embora fosse geralmente muito calado, com ela passava horas sentado a conversar, a contar-lhe peripécias familiares. Todas as raparigas adoravam ouvi-lo; formavam muitas vezes um círculo à sua volta, enquanto ele discursava e ria, sentado num banco. Algumas consideravam-no um fulaninho curioso, tão sério e, no entanto, tão inteligente e bem-disposto, e sempre tão delicado no modo como as tratava. Todas gostavam dele e ele adorava-as. Com Polly era diferente; a essa, ele sentia que pertencia. Mas era Connie, com a sua farta cabeleira ruiva, a sua tez de flor de macieira, a voz sussurrada, e sempre tão distinta no seu vestido preto já gasto, que apelava ao seu lado romântico.

– Quando te sentas a enrolar a meada – disse ele – parece que estás a fiar na roca... é um quadro tão bonito. Faz-me lembrar a Elaine, dos Idílios do Rei. Se eu soubesse, desenhava-te. – Ela olhou para ele de relance, timidamente ruborizada. Mais tarde, havia um esboço de que ele muito gostava: Connie sentada num banquinho, em frente à roca, a longa crina ruiva flamejante sobre o vestido preto ruçado, e os lábios rubros selados e muito sérios, a passar o fio escarlate do novelo para a bobina.

Com Louie, bonita e atiradiça, que parecia estar sempre a provocá-lo com o menear das ancas, punha-se geralmente a brincar.

– O que estás a fazer?

– Porque queres saber? – respondeu ela, levantando a cabeça, atrevida.

– Porque acho que tu não te conheces.

– Porquê?

– Porque não tens ar de te conheceres.

– Então tenho cara de quê?

– Tens cara de quem está sempre a pensar nalguma coisa. Em que é que estavas a pensar?

Ela olhou-o pelo canto do olho e disse, com uma gargalhada:

– Isso era o que tu querias saber, não era?

– Sai daí – disse ele. – Vamos lá dar uma volta à tua meia.

E, depois, pegando na manivela da máquina, começou a rodá-la.

Mas ela empurrou-o.

– Isso vai ficar tudo mal – exclamou.

E ficaram os dois a olhar um para o outro, a rir às gargalhadas.

Emma era bastante feia, e não era nem nova nem condescendente. Sentia-se, porém, feliz por se mostrar condescendente com Paul. E ele não se importava.

– Como é que se metem as agulhas? – perguntou ele um dia.

– Sai daqui, não me maces.

– Mas eu devia saber como é que se metem as agulhas.

Ela continuou a coser à máquina, sem pestanejar.

– Há tantas coisas que devias saber – respondeu ela.

– Então ensina-me a colocar as agulhas na máquina.

– Ai, este rapaz sempre é muito maçador! ... Pronto, é assim que se faz...

Ele observou-a atentamente. Nisto, soou um apito, e a seguir Polly entrou e perguntou em voz bem audível:

– Paul, Mr. Pappleworth quer saber por quanto tempo vais ficar cá em baixo a brincar com as raparigas.

Paul correu pela escada acima, a gritar «Adeusinho!», e Emma endireitou-se na cadeira e explicou:

– Não fui eu que quis que ele estivesse a brincar com a máquina.

– Qu’é qu’andavas a fazer? – perguntou Mr. Pappleworth, quando o rapaz apareceu.

– Estava só a falar com a Emma, e a aprender a colocar as agulhas na máquina.

– O melhor é pegares no teu trabalho e mudares-te lá pra baixo.

– Mas aqui não havia nada de especial para fazer, pois não?

– Mal tu saíste daqui, o patrão veio à tua procura. Um dia sai-te caro! E então estes registos?

Paul meteu mãos à obra cheio de vontade.

Regra geral, quando as raparigas voltavam, às duas horas, ele ia ao andar de cima ter com Fanny, a corcunda, que trabalhava nos acabamentos.

Mr. Pappleworth só chegava às vinte para as três, e vinha encontrar muitas vezes o rapaz sentado ao lado de Fanny a conversar, a desenhar ou a cantar com as raparigas.

– Vem cá, Paul, meu querido – gritava a Fanny. – Até pensámos que hoje não vinhas cá acima. Pensávamos que ias ficar lá em baixo por não gostares da nossa companhia.

– Fui à cidade.

– Para quê, meu lindo?

– Para ver se encontrava uma cestinha de mirtilos para a minha mãe.

– E encontraste?

E, uma vez iniciada a conversa, nunca mais terminavam. Paul gostava muito de Fanny e a corcunda gostava muito dele. Ela tinha vinte e nove anos e sofrera muito. Ele gostava de ficar sentado ao lado dela, à janela, a olhar para a rua e a desenhar a bizarra floresta de chaminés e telhados antigos e bicudos que a vista alcançava. Depois dizia:

– Canta qualquer coisa, Fanny.

– Sabes que mais? Tu não queres que eu cante – dizia ela, manejando a agulha com destreza, com as mãos magras e nervosas. – Tu queres é fazer pouco de mim.

– Não quero nada! Mas é que eu disse à minha mãe que cantavas muito bem...

– Não sei o que é que a tua mãe ia pensar de mim, se me visse, Paul. Ia pensar que eu era um macaco encarrapitado num pau.

– Ela sabe como tu és, porque eu já lhe contei. E gosta de ti. Canta lá «Naquela Taberna...». Este desenho vai ficar uma maravilha.

E, passado um minuto de hesitação, Fanny começou a cantar. Tinha uma bela voz de contralto, e todas as raparigas cantaram em coro e muito afinadas. Paul não se sentia nada embaraçado por estar ali sentado no meio das mulheres.

Quando terminou, Fanny disse:

– Sei que estão a fazer troça de mim.

– Não sejas assim, Fanny! – exclamou uma das colegas.

Uma outra vez, falou-se no cabelo ruivo de Connie.

– Cá pra mim, acho o da Fanny mais bonito – disse Emma.

– Não precisas de fazer pouco de mim – disse Fanny, agastada.

– Mas ela tem o cabelo mesmo bonito, Paul.

– É uma cor especial – disse ele. – Aquela cor fria, como a terra, e mesmo assim brilhante... como um pântano.

– Santo Deus! – exclamou uma das raparigas, a rir.

– Estás a ver como só me criticam? – disse Fanny.

– E havias de o ver solto, Paul – gritou Emma, falando a sério. – É simplesmente uma beleza. Solta o cabelo pra ele ver, Fanny, pode ser que ele o queira pintar.

Fanny recusou-se, e, no entanto, era o que mais queria fazer.

– Então solto-lho eu – disse o rapaz.

– Bem, já que insistes – disse Fanny.

Paul tirou os ganchos do carrapito com todo o cuidado, e a longa cabeleira, num tom castanho-escuro uniforme, caiu sobre a corcunda.

– Que maravilha! – exclamou ele.

As raparigas observavam-no. Reinava o silêncio. O jovem soltou-lhe mais o cabelo.

– É esplêndido – disse, sentindo-lhe o perfume. – Aposto que vale muitas libras.

– Deixo-to quando morrer – disse Fanny, em tom de brincadeira.

– Pareces-te com qualquer de nós, sentada a secar o cabelo – disse uma das raparigas à colega corcunda e pernalta.

A pobre da Fanny era morbidamente susceptível, em tudo adivinhando insultos, ao passo que Polly era directa e factual. As duas secções estavam permanentemente em guerra, e Paul vinha constantemente encontrar Fanny lavada em lágrimas. Fanny contava-lhe todas as suas mágoas, e ele, depois, ia defendê-la junto de Polly.

A filha de Mr. Jordan era pintora. Um dos seus modelos era Connie, que lhe falou de Paul. Primeiro, Miss Jordan pediu para ver alguns dos seus desenhos, e, a seguir, veio ela própria falar com ele. Era uma mulher fria e impessoal, mas mostrou algum interesse pelo rapaz.

E assim foi correndo o tempo, em harmonia. A fábrica tinha um ambiente agradável. Ninguém era empurrado ou pressionado. Paul até gostava quando o trabalho acelerava perto da hora do correio e todos se entreajudavam. Gostava de ver os colegas em acção. O homem era o trabalho e o trabalho era o homem, unidos num só. Com as raparigas era diferente. A verdadeira mulher parecia nunca estar ali presente no trabalho – era como se estivesse de fora, à espera.

Da janela do comboio, quando à noite regressava a casa, observava as luzes da cidade povoando as colinas e fundindo-se nos vales com um clarão ardente. E Paul sentia-se rico de experiência e felicidade. Mais adiante, havia uma mancha de luz em Bulwell, como miríades de pétalas caídas das estrelas sobre a terra; e, mais além, o jorro incandescente das fornalhas, projectando nas nuvens o seu sopro abrasador.

Chegado a Keston, ainda tinha de andar mais de duas milhas até casa, subindo duas colinas mais longas e descendo outras duas mais curtas. Sentindo-se muitas vezes cansado, ia contando os candeeiros à medida que subia, para ver quantos ainda faltavam. E, do alto da colina, nas noites de breu, via as aldeias espalhadas a toda a volta, a cinco ou seis milhas de distância, enxameando a noite de vida e luz, quase como um céu aberto a seus pés. Marlpool e Heanor semeavam de cintilações a escuridão mais longínqua. Uma vez por outra, o negro vale que se interpunha lá em baixo, era riscado, violado por um interminável comboio que rolava célere para sul, em direcção a Londres, ou rumo ao norte, para a Escócia. Os comboios troavam como projécteis na escuridão, fumegantes e acesos, fazendo retinir o vale à sua passagem. Mas logo desapareciam, e as luzes das cidades e das aldeias cintilavam outra vez, mergulhadas no silêncio.

Chegava, por fim, à esquina da casa, virada para o outro lado da noite. O freixo parecia agora um amigo. A mãe vibrava de alegria vendo-o chegar. Ele depositava os oito xelins orgulhosamente sobre a mesa.

– Fazem-lhe jeito, mãe? – perguntava, ansioso.

– Não vai sobejar quase nada depois de descontar o bilhete, as refeições e tudo o mais.

Em seguida, punha-a ao corrente dos acontecimentos do dia. A história da sua vida, como nas Mil e Uma Noites, mas muito mais monótona, era contada à mãe noite após noite. E ela escutava e era quase como se a vida fosse dela.


VI

UMA MORTE NA FAMÍLIA

ARTHUR MOREL ia crescendo. Era um rapaz vivo, descuidado e impulsivo, muito parecido com o pai. Tinha horror aos estudos, resmungava sempre que tinha de trabalhar e escapava-se o mais depressa que podia, para voltar para a brincadeira.

Fisicamente, continuava a ser o menino bonito da família, bem constituído, gracioso, cheio de vida. O cabelo castanho-escuro, a frescura da tez e os olhos raros, de um azul profundo e sombreados de longas pestanas, a par dos seus modos generosos e temperamento fogoso, faziam dele o preferido. Mas, à medida que crescia, o temperamento ia-se tornando instável. Tinha acessos de fúria por tudo e por nada, e mostrava-se insuportavelmente violento e irritável.

A mãe, de quem tanto gostava, já começava a perder a paciência. Arthur só pensava em si próprio. Detestava tudo o que se interpusesse entre si e o seu prazer, mesmo quando esse «tudo» era a mãe. Mas, quando se metia em apuros, era com ela que tinha intermináveis desabafos.

– Meu Deus, rapaz – disse ela, quando ele se veio queixar de um professor que, segundo ele, o tomara de ponta – se não te agrada a situação, tens de a fazer mudar, e se não podes mudar nada, tens de te adaptar.

Quanto ao pai, que ele amara desmedidamente e que o idolatrava, acabou por detestá-lo. Com a idade, Morel transformou-se lentamente numa ruína viva. O seu corpo, em tempos belo nas formas e na agilidade, mirrou com os anos, não parecendo ter amadurecido, mas, pelo contrário, ter-se tornado insignificante e desprezível, emanando baixeza e mesquinhez. E sempre que este homem de meia-idade e olhar perverso o injuriava ou o tratava com prepotência, Arthur ficava furioso. Ainda por cima, os modos de Morel eram cada vez mais grosseiros, e os seus hábitos quase repugnantes. Na fase de crescimento dos filhos e durante o período crítico da adolescência, o pai surgia-lhes aos olhos da alma como um ser feio e irritante. Em casa, os seus modos eram idênticos aos que usava com os outros mineiros no fundo da mina.

– Monstro nojento! – gritava Arthur, saltando da cadeira e saindo de casa, quando o pai o enojava.

E Morel fazia ainda pior, por saber que as crianças o detestavam. Parecia sentir prazer em afrontá-las, a ponto de quase as enlouquecer, quando, aos catorze ou quinze anos, atravessavam a fase de extrema sensibilidade e irritabilidade. Assim, Arthur, que cresceu quando o pai já se encontrava em declínio e a caminho da velhice, odiava-o acima de tudo.

Por vezes, o pai parecia pressentir todo esse ódio e desprezo que os filhos tinham por ele.

– Não há homem que se sacrifique mais pela família – bordava então. – Faz por eles tudo o que pode, e tratam-no como um cão. Mas eu tenho força para aguentar, estão a ouvir!

Não fora o tom ameaçador e o facto de não fazer por eles tanto quanto pensava, e teriam até sentido pena. Nesta altura, a guerra instalava-se quase sempre entre pai e filhos, com o primeiro persistindo nos seus modos grosseiros só para afirmar a sua autoridade. Os filhos detestavam-no.

Por fim, Arthur já andava tão exaltado e irritado que, quando ganhou uma bolsa para ir para a escola secundária de Nottingham, a mãe achou por bem deixá-lo ficar a viver na cidade com uma das suas irmãs, vindo apenas a casa aos fins-de-semana.

Annie ainda era professora estagiária na escola primária, onde ganhava quatro xelins por semana. Mas em breve seriam quinze, uma vez que passara o exame final, o que traria à família tranquilidade financeira.

Mrs. Morel era muito agarrada a Paul. Ele era calado e não excessivamente inteligente, mas continuava fiel à pintura e à mãe. Tudo o que fazia era para ela. E ela esperava pela sua chegada à noitinha, para desabafar com ele todos os seus pensamentos, tudo o que lhe acontecera durante o dia. E ele ouvia-a, sentado e atento. Era o partilhar de duas vidas.

William estava noivo da tal morena, e tinha-lhe comprado um anel de noivado que custara oito guinéus. Os irmãos ficaram sem fôlego perante soma tão fabulosa.

– Oito guinéus! – disse Morel. – Bem parvo é!... Ficava-lhe melhor se me tivesse dado antes algum a mim.

– Dar-te algum, a ti! – exclamou Mrs. Morel. – Porque havia ele de te dar algum?

Mrs. Morel lembrou-se de que o marido não lhe tinha comprado anel de noivado e, a seu ver, antes ser como o William, que não era mesquinho, embora pudesse ser parvo. Mas agora o jovem só falava nos bailes a que tinha ido com a noiva e nos vestidos deslumbrantes que ela usava; ou então contava à mãe, rejubilante, como tinham os dois ido ao teatro em grande estilo.

William queria trazer a namorada para os pais conhecerem, e Mrs. Morel disse-lhe que a trouxesse no Natal. Desta vez, William chegou acompanhado de uma senhora, mas sem presentes. Mrs. Morel tinha preparado a ceia. Ao ouvir passos, levantou-se e foi à porta. William entrou.

– Olá, mãe! – deu-lhe um beijo apressado, chegou-se para o lado e apresentou-lhe uma rapariga alta e bonita, vestida com um saia-e-casaco preto e branco aos quadradinhos e uma estola de peles.

– Cá está a Ciganita!

Miss Western estendeu a mão e rasgou um sorriso de muitos dentes.

– Oh, como está, Mrs. Morel! – exclamou.

– Devem estar com fome – disse Mrs. Morel.

– Não, não estamos. Jantámos no comboio... Tens as minhas luvas, Fofinho?

William Morel, alto e ossudo, olhou para ela acto contínuo.

– Como é que havia de tê-las? – disse ele.

– Então perdia-as. Não te zangues comigo...

Viu-se que ele tinha ficado aborrecido, mas não disse nada. Ela relanceou o olhar pela cozinha. Achou-a pequena e bizarra, com o ramo de azevinho pendurado na parede e as sempre-vivas por detrás das fotografias, as cadeiras de madeira e a mesinha de jogo. Nessa altura, entrou Morel.

– Olá, pai!

– Olá, meu filho... Mas que surpresa!

Apertaram as mãos, e William apresentou-lhe a senhora. Ela reeditou o sorriso, mostrando os dentes.

– Como está, Mr. Morel. – Morel inclinou-se respeitosamente.

– Tou bem, obrigado, e espero que também esteja... Seja muito bem-vinda.

– Ah, obrigada – respondeu ela, bastante divertida.

– Há-de querer ir para cima – disse Mrs. Morel.

– Se não se importa... mas só se não a incomodar.

– Não incomoda nada... A Annie vai consigo... Walter, leva este baú para cima.

– E não leves uma hora a aperaltar-te – disse William para a noiva.

Annie pegou num candelabro de latão e, muda de vergonha, subiu à frente da jovem até ao quarto principal, que Mr. e Mrs. Morel lhe tinham cedido. Era também pequeno e frio, iluminado apenas pelas velas. As mulheres dos mineiros só acendiam as lareiras nos quartos em caso de doença muito grave.

– Quer que desaperte as correias do baú?

– Ah, muito obrigada!

Annie estava a fazer o papel de criada. Em seguida voltou para baixo para ir buscar água quente.

– Ela deve estar muito cansada, mãe – disse William. – É uma viagem muito violenta, e na correria em que andámos...

– Queres que lhe leve alguma coisa? – perguntou Mrs. Morel.

– Não, não... Ela está bem.

Mas havia um certo gelo no ar. Passada mais de meia hora, Miss Western desceu, envergando um vestido em tons de púrpura, demasiado fino para a cozinha do mineiro.

– Tinha-te dito que não precisavas de trocar de roupa – disse William.

– Deixa lá, Fofinho!... – E, mantendo o sorriso adocicado, voltou-se para Mrs. Morel: – Não acha que ele está sempre a resmungar, Mrs. Morel?

– Ah, está? – disse Mrs. Morel. – Isso é muito feio.

– E é mesmo!

– Deve estar com frio – disse a mãe. – Não quer vir para a la-reira? – Morel saiu imediatamente da cadeira de braços.

– Venha pr’àqui – exclamou ele. – Venha pr’àqui.

– Não, pai... Não saia da sua cadeira... senta-te no sofá, Ciganita – disse William.

– Não senhor! – insistiu Morel. – Esta cadeira é mais quente. Venha sentar-se aqui, Miss Wesson.

– Muitíssimo obrigada – disse a rapariga, sentando-se na cadeira de braços do mineiro, ou seja, o lugar de honra. Teve uma tremura ao sentir o calor da cozinha invadi-la.

– Vai buscar-me um lenço, Fofinho! – disse ela, fazendo beicinho e dirigindo-se-lhe no tom íntimo de quando estavam sozinhos, o que fez os restantes membros da família sentirem-se como intrusos. Era evidente que a jovem não os considerava como pessoas: para ela não passavam de criaturas. William estremeceu.

Se aquela casa fosse em Streatham, Miss Western seria a senhora, condescendendo a conviver com a camada inferior. Para ela, estas pessoas eram no mínimo grotescas – numa palavra, da classe trabalhadora. Como poderia ela adaptar-se?

– Eu vou – disse Annie.

Miss Western ignorou-a, como teria feito com uma criada, e só quando ela voltou para baixo com o lenço disse então, com afabilidade:

– Oh, muito obrigada.

Depois, desatou a falar: do jantar no comboio, que não tinha prestado para nada, de Londres, dos bailes. Via-se que estava muito nervosa e era o medo que a fazia falar. Morel, sentado a fumar um tabaco muito forte, observava-a enquanto lançava baforadas de fumo para o ar e ouvia com atenção a sua petulante algaraviada londrina. Mrs. Morel, ostentando a sua melhor blusa de seda preta, ia-lhe respondendo com calma e poucas palavras. Os outros filhos estavam sentados, em admirativo silêncio. Miss Western era a princesa. Tinham ido buscar tudo o que havia de melhor para a servir: as melhores chávenas, as melhores colheres, a melhor toalha, o melhor bule. As crianças achavam que ela devia estar a apreciar muito o acolhimento. Mas ela sentia-se mal, por não entender as pessoas, por não saber como tratá-las. William ia dizendo piadas, sentindo-se ligeiramente comprometido.

Por volta das dez horas, disse-lhe:

– Não estás cansada, Ciganita?

– Muito, Fofinho – respondeu ela, com voz melada e inclinando a cabeça ligeiramente para o lado.

– Acendo a vela, mãe? – disse ele.

– À vontade – respondeu a mãe.

Miss Western levantou-se e estendeu a mão a Mrs. Morel.

– Boa noite, Mrs. Morel – disse ela.

Paul, sentado em frente da caldeira, deixou jorrar a água da torneira para dentro de uma garrafa de cerveja em grés. Annie abafou a garrafa numa velha camisola da mina, e deu à mãe um beijo de boas-noites. Com a casa cheia, ia ter de dormir com a senhora.

– Espera um bocadinho – disse Mrs. Morel à filha. Annie sentou-se com a botija ao colo. Miss Western despediu-se de todos com um aperto de mão, para grande atrapalhação dos presentes, e saiu, precedida por William. Passados cinco minutos, ele voltou para baixo. Sentia o coração oprimido, sem saber porquê. Falou muito pouco até todos se terem ido deitar, excepto ele e a mãe. Depois, foi pôr-se de pé frente à lareira, de pernas afastadas como costumava fazer noutros tempos, e disse, titubeante:

– Então, mãe?

– Então o quê, meu filho?

A mãe sentou-se na cadeira de baloiço. Sentia-se de certo modo ferida e humilhada por causa dele.

– Gosta dela?

– Gosto – tardou a resposta.

– Ela ainda está pouco à vontade, mãe... não está acostumada a tudo isto. É muito diferente da casa da tia dela, sabe.

– Claro que é, meu filho... Deve ser difícil para ela.

– Pois é. – E, de repente, a expressão carregou-se-lhe. – Se ao menos ela não pusesse aqueles benditos ares!

– É só a primeira reacção, meu filho. Aquilo passa-lhe.

– Tem razão, mãe – respondeu ele, gratificado. Mas o olhar continuava triste. – Sabe, ela não é como a mãe... não é compenetrada... e não se cansa muito a pensar.

– Ela é muito nova, meu filho.

– É isso!... E não teve sorte nenhuma. A mãe morreu quando ela era criança, e desde então vive com uma tia que ela já não consegue aturar. E o pai era um patife... Faltou-lhe o amor.

– Sério?!... Bem, nesse caso tens de a compensar de tudo isso.

– E perdoar-lhe muitas coisas.

– Que coisas é que tens de lhe perdoar, meu filho?

– Sei lá... quando ela se mostra superficial, por exemplo... É preciso lembrarmo-nos de que ela nunca teve ninguém que fizesse desabrochar o seu lado mais profundo... E ela gosta tremendamente de mim.

– Isso qualquer pessoa pode ver.

– Mas, sabe uma coisa, mãe... ela... ela é diferente de nós. As pessoas como ela, aquelas com quem se dá... não parecem ter os mesmos princípios que nós.

– Não deves fazer juízos precipitados – disse Mrs. Morel. Mas ele parecia contrafeito.

De manhã, contudo, levantou-se e pôs-se a cantar pela casa toda.

– Olá! – chamou ele, saudando-a do fundo das escadas, onde estava sentado. – Já te estás a levantar?

– Já – respondeu ela lá de cima, com voz sumida.

– Feliz Natal! – gritou ele.

No quarto, ouviu-se o riso dela, bonito e musical. Mas ela só desceu meia hora depois.

– Ela estava mesmo a levantar-se, quando disse? – perguntou William a Annie.

– Estava, sim – respondeu Annie.

William aguardou uns instantes e voltou para as escadas.

– Feliz Ano Novo! – gritou ele.

– Obrigada, Fofinho do meu coração! – disse uma voz risonha, de muito longe.

– Despacha-te! – implorou ele.

Tinha passado quase uma hora, e ele à espera dela. Morel, que se levantava sempre antes das seis, olhou para o relógio.

– Bem, já vi qu’é das que s’atrasam! – exclamou.

Já todos tinham tomado o pequeno-almoço, excepto William, que se foi postar ao fundo das escadas.

– Será que vou ter de mandar aí para cima um ovo de Páscoa? – gritou ele, já zangado. Ela limitou-se a rir. A família esperava algo de mágico depois de tão longa preparação. Finalmente, ela apareceu, com uma saia e uma blusa que lhe ficavam muito bem.

– Levaste mesmo todo este tempo para te vestires? – perguntou ele.

– Oh, Fofinho!... Isso não é pergunta que se faça, pois não, Mrs. Morel?

A princípio, ela representou o papel da grande dama. Quando entrou na capela ao lado de William, ele de fraque e chapéu de seda, e ela de estola de peles e saia-casaco dos melhores costureiros de Londres, Paul, Arthur e Annie esperavam que todos se curvassem até ao chão, em êxtase. E Morel, observando o parzinho galante do fundo da rua, com o seu fato domingueiro, sentia-se o pai do príncipe e da princesa.

Porém, a dama não era assim tão grande. Trabalhava desde há um ano como uma espécie de secretária, ou escriturária, num escritório de Londres.

Mas enquanto esteve com os Morels parecia uma rainha: sentava-se à mesa e deixava que Annie e Paul a servissem, como se fossem seus criados. Tratava Mrs. Morel com alguma petulância e Morel com paternalismo. Mas, passados um ou dois dias, a sua atitude começou a mudar.

William pedia sempre a Paul ou Annie que os acompanhassem nos passeios que davam. Era muito mais divertido. E Paul sentia real admiração pela Cigana, uma admiração genuína. Na verdade, a mãe não podia perdoar ao filho a adoração que mostrava pela jovem.

No segundo dia, quando Lily disse:

– Annie, sabes por acaso onde terei deixado o meu regalo? William respondeu:

– Sabes muito bem que está no teu quarto. Para que perguntas à Annie?

E Lily lá foi ao quarto, amuada, de lábios crispados. O rapaz já não suportava vê-la fazer da irmã uma criada.

Na terceira noite, William e Lily foram sentar-se na sala, às escuras, frente à lareira. Quando era um quarto para as onze, ouviram Mrs. Morel a abafar o borralho. William veio para a cozinha, seguido da namorada.

– Já é assim tão tarde, mãe? – disse ele. A mãe tinha passado a noite sozinha.

– Não quer dizer que seja tarde, meu filho... mas é tarde para eu continuar a pé.

– Então, porque não se vai deitar? – perguntou ele.

– E deixar os dois aqui sozinhos?... Não, meu filho, isso eu não faço.

– A mãe não tem confiança em nós?

– Tenha ou não tenha, é a mesma coisa... Podem ficar aqui até às onze horas, se quiserem, e eu leio mais um bocadinho.

– Vai deitar-te, Ciganita – disse William. – Não podemos fazer esperar a minha mãe.

– A Annie deixou a vela acesa, Lily – disse Mrs. Morel. – Acho que a luz será suficiente.

– Claro, obrigada. Boa noite, Mrs. Morel.

William acompanhou a namorada até ao fundo das escadas, deu-lhe um beijo e ela foi para o quarto. Ele voltou para a cozinha.

– Não tem confiança em nós, mãe? – insistiu ele, todo ofendido.

– Meu filho, já te disse que eu não vou deixar dois pombinhos como vocês sozinhos cá em baixo, com toda a gente a dormir.

E o filho não teve outro remédio senão contentar-se com a resposta. Deu um beijo à mãe e foi deitar-se.

Na Páscoa, chegou sozinho. Depois, falou longamente com a mãe sobre a namorada.

– Sabe, mãe... quando estou longe dela, nem penso nela... se não voltasse a vê-la, era a mesma coisa. Mas, quando estou com ela, à noite, gosto muito dela.

– É um amor muito estranho para acabar em casamento – disse Mrs. Morel. – Se é só isso que ela representa para ti!

– É engraçado! – exclamou William, entre o preocupado e o perplexo. – E, no entanto... Há demasiadas coisas entre nós, para eu desistir dela agora.

– Tu lá sabes – disse Mrs. Morel. – Mas, se é como dizes, eu não lhe chamaria amor... pelo menos, não parece.

– Não sei, mãe. Ela é órfã, e...

Acabaram por não chegar a uma conclusão. Ele parecia confuso e aborrecido. Ela era muito reservada. Ele gastava todas as suas energias e dinheiro com esta rapariga. Quando veio a casa, mal tinha dinheiro para levar a mãe a Nottingham.

O salário de Paul, para grande alegria sua, tinha sido aumentado no Natal para dez xelins. O rapaz continuava muito satisfeito najordan, mas a sua saúde começou a ressentir-se do pesado horário de trabalho e das condições de isolamento. A mãe, para quem ele era cada vez mais importante, pensou em como poderia ajudá-lo.

A tarde de folga dele era à segunda-feira. Numa segunda-feira, em Maio, quando estavam os dois sozinhos a tomar o pequeno-almoço, ela disse:

– Acho que vamos ter um lindo dia.

Ele olhou-a surpreendido. Alguma coisa ela tinha para lhe dizer.

– Sabias que Mr. Leivers foi morar para uma quinta nova? Pois bem, ele convidou-me a semana passada para ir fazer uma visita a Mrs. Leivers, e eu prometi-lhe que te levava lá hoje, se estivesse bom tempo. Então, vamos?

– Oh, mãezinha, mas isso é óptimo! – exclamou Paul. – Vamos esta tarde, não é?

– Se não estiveres muito cansado... olha que é uma grande caminhada.

– A que distância fica?

– Quatro milhas.

– Ora... não sou eu que me canso por fazer quatro milhas... é a mãe. Acha que consegue?

– Claro que consigo.

– Que bom!... Que bom! – exclamou ele. – Vou voltar a correr para casa. E a quinta é bonita?

– Ele diz que sim... Tu logo dirás.

– Eu não conheço Mrs. Leivers, mãe. Conhece-a?

– Então não conheces... uma mulherzinha macambúzia, com uns grandes olhos castanhos, que se costumava sentar à nossa frente na capela.

– Não me lembro.

– Julgava que pelo menos te lembrasses do chapéu, mesmo que não te lembrasses de mais nada... usa sempre o mesmo chapéu desde há seis anos, desde que a conheço: um quico preto com um farrapo de renda prantado no cucuruto, às três pancadas. Quando a via com o chapéu no alto da cabeça, domingo atrás de domingo, sempre com o mesmo chapéu, só me apetecia ir lá tirar-lho. E o marido é tão elegante e bem-parecido.

– Se calhar, era pobre – alvitrou Paul.

– E que fosse! Sei que não estava pior do que eu. Só que tinha a mania de não comprar nada novo, dava-lhe para ali.

– E ao menos é simpática?

– É. Eu sempre gostei dela... mas ela não consegue andar à altura do homem que tem... Só o orgulho consegue uma coisa dessas, nada mais.

– Porquê?

– Ora bem, ela é uma mulher pequenina, delicada, fina, com uns grandes olhos castanhos... cheios de sentimento. E eu sei que tem passado muito com sete filhos e o pouco que o Alfred Leivers lhe dá. Acho que ele não gosta muito de trabalhos pesados... e daí, talvez... Mas assim, como a vida lhe correu mal e chegou ao estado a que chegou, é orgulhosa de mais para competir com as outras mulheres e agarra-se a um trapo antigo... mas é uma mulher bonita.

– E orgulhosa, mãe?

– Não... Com as outras pessoas, não. Mas consigo mesma não podia ser mais. A pobreza e a vida triste que leva corroem-lhe a alma e ela agarra-se àquela chapeleta preta, para troçar da sua própria pobreza... ou do marido... Só Deus sabe... Mas tu vais gostar dela. Eu gosto dela.

– Bem – disse Paul –, se vamos visitá-la à quinta, não vai estar de chapéu.

– Esperemos que não – disse Mrs. Morel. – É um escândalo e uma vergonha sobrecarregar um corpo frágil como o dela daquela maneira, mas também não precisava de andar naquela figura, por despeito. Faço ideia de como ele se deve sentir!...

Paul saiu à pressa para a estação, rejubilante. Em Derby Road, havia uma cerejeira a cintilar. O velho muro de tijolo junto ao pátio do Statutes brilhava em tons de escarlate, incandescentes, e a Primavera era uma labareda verde. A estrada íngreme estendia-se esplêndida, coberta da fria poeira matinal em alternâncias de sol e sombra, absolutamente estática. As árvores, orgulhosas, deixavam pender abaulados os ombros verdes e possantes. Durante toda a manhã, de dentro do armazém, o rapaz foi brindado com um quadro de Primavera.

Quando voltou para casa, a mãe estava excitadíssima.

– Sempre vamos? – perguntou ele.

– É só o tempo de me arranjar – respondeu ela.

– Conseguiu acabar o trabalho?

– Consegui.

Paul sentou-se à mesa, à espera do almoço. Ela trouxe-lhe a frigideira.

– Para que se foi meter a fazer sonhos de ruibarbo se tinha tão pouco tempo?

– Porque me apeteceu – disse a mãe. – E estou pronta quando tu estiveres.

Tinha feito os sonhos porque, durante a semana, o filho só vinha almoçar a casa neste dia, e gostava muito de sonhos.

– Não senhora... saia daqui. Quem faz isso sou eu.

Paul levantou-se e tentou tirar-lhe a frigideira da mão.

– Nem pensar nisso! – disse ela, agitando o garfo. – Temos muito tempo.

Ele voltou para a mesa, cabisbaixo, e ela continuou com os cozinhados.

– São mesmo coisas de mulher – disse ele. – Às voltas com a frigideira, quando devia estar a vestir-se para sair.

– São é mesmo coisas de rapazes, julgam que já sabem tudo – disse ela, colocando a sobremesa diante dele.

– E esteve a apanhar esse calor todo na cara – disse o filho. – Já sabe que quando lá chegar, vai ter a cara vermelha como o sol nascente.

– Se tiver, não sou eu que te vou pedir para olhares para mim.

– E, mesmo que pedisse, eu não olhava – respondeu ele.

– Ingrato!

– Afogueada!

Ela fungou e empertigou-se daquela maneira a que ele chamava «esticar-se à tartaruga».

– Já se lavou? – perguntou ele.

– Já.

– Pois olhe, não parece, tem o nariz enfarruscado, como de costume.

Ela foi ver-se ao espelho.

– Que maçada! – exclamou.

Ele levantou-se.

– Vá-se vestir, que eu lavo a loiça – disse Paul.

Ela obedeceu. Ele lavou as panelas, endireitou as costas e pegou nas botas dela. Estavam muito limpas. Mrs. Morel era daquelas pessoas naturalmente dotadas que são capazes de andar na lama sem sujarem os sapatos. Mas Paul quis limpar-lhas, mesmo assim. Eram botas de criança, das de oito xelins o par. No entanto, para ele, eram as botas mais chiques do mundo, e limpava-as com tanta reverência como se fossem flores.

Subitamente, ela apareceu à porta, muito tímida. Trazia uma blusa nova. Paul deu um salto em frente.

– Ena pá! – exclamou ele. – Que espalhafato!

Ela inspirou ligeiramente, altiva, de cabeça bem erguida.

– Não é espalhafato nenhum! – retorquiu ela. – É até bem recatada.

Mrs. Morel deu um passo em frente e o filho mirou-a de todos os lados.

– Então – perguntou ela, envergonhada, mas mostrando-se segura e arrogante. – Gostas?

– É um espanto! Vou gostar de levar uma mulher tão bonita a passear!

Contornou-a e mirou-a pelas costas.

– Muito bem! – disse ele. – Se fosse na rua atrás de si, havia de dizer: – Mas que bem vestida que aquela senhorinha vai.

Ela fungou de satisfação, como era seu hábito, mas a fazer-se desentendida.

– Sabes – disse ela –, só me custou três xelins. Por este preço não a podia comprar feita, pois não?

– Acho que não – respondeu o filho.

– E o tecido é de muito boa qualidade.

– Tremendamente bonita! – disse ele.

A blusa era branca, com raminhos púrpura e pretos.

– Demasiado jovem para a minha idade, não achas?

– Essa agora, demasiado jovem para si? – exclamou Paul, agastado. – Já agora, porque não compra uma peruca branca para pôr no alto da cabeça?

– Daqui a pouco já não é preciso – respondeu ela. – Estou aqui, estou com a cabeça toda branca.

– Pois faça favor de não estar – disse ele. – Para que quero eu uma mãe de cabelo branco?

– Pois olha que vais ter de te contentar, meu menino – disse ela, com uma entoação bastante estranha.

Saíram de casa em grande estilo, ela com a sombrinha que William lhe tinha dado, para se proteger do sol. Paul era consideravelmente mais alto do que ela, embora não fosse muito grande. O rapaz ia todo cheio de si.

Na terra lavrada, as espigas tenras brilhavam como seda. A mina de Minton desfraldava os seus penachos de vapor branco, acompanhados de roncos e roucas tossidelas.


– Olha para aquilo! – disse Mrs. Morel. Mãe e filho pararam na estrada, a ver. Ao longo da crista do grande monte da mina, desenhava-se em contraluz um pequeno grupo a avançar mansamente – um cavalo, uma carrocinha e um homem. Trepavam a encosta em direcção ao céu: ao chegarem ao cimo, o homem voltou a carroça e, com injustificado estrépito, a escória rolou pela vertente abrupta do aterro.

– Sente-se um bocadinho, mãe – disse Paul, e ela sentou-se na rocha, enquanto ele desenhava a cena rapidamente. Mrs. Morel manteve-se em silêncio enquanto o filho trabalhava, entretida a admirar a tarde e o casario vermelho a cintilar entre o verde da paisagem.

– O mundo é um lugar maravilhoso – disse ela. – E maravilhosamente belo.

– E a mina também – disse ele. – Veja como cresce, como se estivesse viva... é como uma criatura gigantesca que nós não conhecemos.

– É – disse ela. – Talvez!

– E os vagões parados, à espera, como animais em correnteza à espera da ração – disse ele.

– E eu bem contente fico de os ver aí à espera – disse a mãe. – Quer dizer que a semana vai ser boa.

– Eu gosto de sentir a mão do homem nas coisas; é sinal de vida. Nos vagões sente-se o dedo do homem, porque são mãos de homens que os conduzem.

– Pois é – disse Mrs. Morel.

Continuaram a caminhada à sombra das árvores, pela estrada principal. Ele ia explicando tudo e ela mostrava-se interessada. Passaram pelo extremo do lago Nethermere, que embalava no colo docemente, como pétalas, os reflexos do sol. Depois viraram para uma estrada particular e, com emoção crescente, aproximaram-se de uma grande quinta. Um cão desatou a ladrar furiosamente. Apareceu uma mulher, a ver quem era.

– É este o caminho para Willey Farm? – perguntou Mrs. Morel.

Paul deixou-se ficar atrás da mãe, apavorado com a ideia de serem escorraçados. Mas a mulher era prestável e indicou-lhes o caminho. Mãe e filho meteram pelo meio do trigo e da aveia, atravessaram uma pequena ponte e chegaram a um prado em pousio. Os abibes, com os seus peitos brancos reluzentes, gritavam e volteavam em redor. O lago estava estático e azul. No céu, planava uma garça. Em frente, o bosque subia denso pela encosta, verde e estático.

– É uma estrada florestal, mãe – disse Paul. – Tal e qual como no Canadá.

– Lindo, não é? – disse Mrs. Morel, olhando em volta.

– Está a ver aquela garça... está a ver... as pernas dela?

Era ele que dizia à mãe para onde devia, ou não, olhar. Mas ela gostava assim.

– E agora – disse ela – para que lado é?... Ela disse-me para atravessar o bosque. – O bosque, cerrado e sombrio, estendia-se para a esquerda.

– Sinto que aqui há um caminho – disse Paul. – A mãe tem pés de citadina; seja lá como for, mas tem.

Encontraram uma cancela e entraram numa larga vereda arborizada, com um maciço de cedros e pinheiros de um dos lados e uns quantos carvalhos decrépitos do outro a descerem pela encosta. E, entre os carvalhos, as campainhas-do-monte espraiavam-se em mancha azul sob as aveleiras ainda verdes e um manto esmorecido de folhas amareladas de carvalho. Paul apanhou flores para dar à mãe.

– Está aqui um pouco de feno acabado de chegar – disse ele, e desta vez trouxe-lhe miosótis. E de novo o coração lhe doía de tanto amor, vendo a mão dela, calejada do trabalho, pegar no raminho que ele lhe dera. Ela estava completamente feliz.

No fim da vereda era preciso saltar uma cerca. Paul passou num instante.

– Venha – disse ele –, eu ajudo-a.

– Não... sai daí. Prefiro passar à minha maneira. Ele ficou do outro lado, com as mãos no ar, pronto para a ajudar. Ela trepou com todas as cautelas.

– Mas que maneira de trepar! – exclamou Paul, trocista, quando a mãe já estava a salvo no chão.

– Malditas cercas! – bradou ela.

– Só se uma mulher for muito desajeitada – replicou ele – é que não consegue passá-las.

Em frente, ao longo da orla do bosque, estendia-se um aglomerado de casas de lavoura, baixas e vermelhas. Estugaram o passo. Pegado ao bosque havia um pomar de macieiras cujas flores caíam sobre uma mó. Em baixo era a lagoa, sob os ramos pendentes dos carvalhos. Havia vacas a usufruir da sombra. A quinta e as casas, formando três lados de um quadrilátero, abraçavam o sol viradas para o bosque. Tudo estava em silêncio.

Mãe e filho entraram no pequeno jardim cercado de grades onde pairava um perfume a cravos vermelhos. Junto à porta entreaberta viam-se alguns pães enfarinhados, deixados a arrefecer. Uma galinha aproximou-se para os debicar. De repente, assomou-se à porta uma rapariga com um avental muito sujo. Devia andar pelos catorze anos, tinha as faces morenas e rosadas, um tufo de pequenos caracóis negros muito apertados a cairem livremente, e os olhos castanhos. Parecia tímida e curiosa, com alguma desconfiança dos estranhos. A rapariga voltou a desaparecer. Logo a seguir, surgiu uma outra figura, uma mulher pequenina e frágil, rosada e com grandes olhos castanhos.

– Oh! – exclamou ela, rasgando um sorriso cintilante. – Sempre veio. Gosto muito de a ver por cá. – A voz da mulher era afável e muito triste.

As duas mulheres apertaram a mão.

– Tem a certeza de que não viemos incomodar? – disse Mrs. Morel. – Sei bem como é a vida do campo.

– De maneira nenhuma. Até é uma bênção ver caras novas. Estamos aqui tão isolados.

– Pois devem estar... – disse Mrs. Morel.

Levaram-nos até à sala, uma divisão comprida e de tectos baixos, com um grande ramo de rosas amarelas a enfeitar a lareira. As mulheres sentaram-se a conversar, enquanto Paul foi dar uma volta pela quinta. Estava no jardim a cheirar os cravos e a olhar para as plantas, quando a rapariga saiu a correr e se foi pôr junto do monte de carvão encostado à cerca.

– Creio que estas vão ser rosinhas de toucar, quando abrirem – disse ele, apontando para as roseiras ao longo da cerca. Ela olhou para ele com os grandes olhos castanhos, muito espantados, muito abertos.

– Não sei – respondeu, hesitante. – São brancas e têm o olho cor-de-rosa.

– Então são «rubores de donzela».

Miriam corou – uma cor cálida, bonita.

– Não sei – disse ela.

– Não tens grande coisa no jardim – disse ele.

– É o primeiro ano que aqui passamos – respondeu ela, com modos distantes e superiores, afastando-se e entrando em casa. Paul não ligou e continuou a exploração. A mãe veio ter com ele e deram a volta aos edifícios. Paul estava deliciado.

– Suponho que ainda tenha de ir tratar das galinhas, das vitelas e dos porcos? – disse Mrs. Morel a Mrs. Leivers.

– Não – retorquiu a mulherzinha. – Não consigo arranjar tempo para tratar do gado, e, além disso, não estou habituada. O trabalho de casa já me chega.

– Sim, suponho que sim – disse Mrs. Morel.

Daí a pouco, a rapariga veio cá fora.

– O chá está pronto, mãe – disse, com uma voz suave, musical.

– Ah, obrigada, Miriam, já vamos – respondeu a mãe, toda ela amabilidade. – Podemos ir tomar o nosso chá agora, Mrs. Morel?

– Claro – disse Mrs. Morel. – Logo que estiver pronto.

Paul, a mãe e Mrs. Leivers tomaram chá juntos. Depois foram passear pelo bosque, inundado de campainhas-do-monte, enquanto os carreiros estavam reservados aos miosótis. Mãe e filho caminhavam os dois em êxtase.

Quando voltaram, Mr. Leivers e Edgar, o filho mais velho, estavam na cozinha. Edgar devia ter dezoito anos. Depois, chegaram da escola Geoffrey e Maurice, dois rapagões de doze e treze anos. Mr. Leivers era um homem bem-parecido, na força da vida, de bigode castanho-dourado e olhos azuis sempre assestados, a perscrutar o tempo.

– Foram dar uma volta? – perguntou ele a Paul, com entusiasmo.

– Não deu para ver tudo – respondeu o rapaz, saindo em seguida com Geoffrey e Maurice.

– Onde é que tu trabalhas? – perguntou Geoffrey. Eram os três muito tímidos.

– Na Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan, em Nottingham.

– E que fazes?

– Sou empregado de escritório.

– E fazes o quê?

– Copio cartas, faço encomendas e passo facturas.

– Que tipo de cartas copias?

– Oh... todo o tipo... a maior parte são a encomendar meias elásticas.

– Meias elásticas!... Qu’é isso?

Seguiram-se muitas explicações.

– E algumas das cartas vêm de França e de outros lugares – disse Paul.

– E tu tens d’as copiar?

– Claro.

– Em francês?

– Não... traduzo-as.

– Essa agora... então sabes francês?

– Sei alguma coisa... e alemão também.

– E quem t’ensinou?

– O meu padrinho... e também álgebra e geometria.

– Eu cá não faço tenções d’encher a cabeça com essas coisas – disse Geoffrey.

Os dois rapazes mostravam-se terrivelmente superiores, mas Paul nem dava por isso. Foram à procura de ovos, vasculhando em todos os lugares. Quando estavam a dar de comer às galinhas, Miriam saiu de casa. Os rapazes não lhe ligaram. Na capoeira es-tava uma galinha com os seus pintainhos amarelos. Maurice pegou numa mão-cheia de milho e deixou a galinha vir comer-lhe à mão.

– Tens coragem de fazer o mesmo? – perguntou ele a Paul.

– Vamos lá ver... – respondeu Paul.

Ele tinha a mão pequenina, quente e habilidosa. Miriam ficou a observá-lo. Paul aproximou a mão da galinha. A ave olhou para o milho com o seu olhar duro e brilhante e, de repente, deu-lhe uma bicada na mão. Paul assustou-se, mas depois riu-se. «Pic-pic-pic», fazia-lhe a galinha na palma da mão. Paul riu-se outra vez e os rapazes riram com ele.

– Ela ferra-nos e pica-nos, mas nunca faz doer – disse Paul, quando o milho se acabou.

– Agora, Miriam, é a tua vez – disse Maurice.

– Não – gritou ela, encolhendo-se.

– Olha, parece um bebé. És mesmo um bebé! – disseram os irmãos.

– Não dói nada – disse Paul. – São só uns beliscõezinhos muito agradáveis.

– Não – gritou ela mais uma vez, abanando os caracóis negros e encolhendo-se.

– Ela não s’atreve – disse Geoffrey. – Ela nunca s’atreve a fazer nada a não ser recitar poesia.

– Não s’atreve a saltar uma cancela... não s’atreve a brincar connosco... não s’atreve a fazer frente quando outra rapariga lhe bate... não é capaz de fazer nada a não ser andar por aí convencida qu’é alguém... «A Dama do Lago»... é isso mesmo! – gritou Maurice.

Miriam estava coradíssima de vergonha e infelicidade.

– Sou capaz de fazer mais coisas que vocês – gritou ela. – Vocês não passam duns cobardes e duns brigões.

– Olha, olha, «cobardes e brigões!» – repetiram eles, arremedando-a.

«Um palhaço assim nunca me enfurece.

Todo o brutamontes silêncio merece»

recitou ele, virado para ela, a rir às gargalhadas.

Ela voltou para casa. Paul foi com os dois rapazes até ao pomar, onde tinham montado à pressa duas barras paralelas. Aí chegados, entregaram-se às respectivas demonstrações de força. Paul era mais ágil do que possante, mas foi quanto bastou. Apontou para umas flores de macieira que estavam mesmo à ponta de um ramo balouçante.

– Eu cá, se fosse a ti, não apanhava as flores – disse Edgar, o mais velho dos irmãos. – Senão, prò ano não temos maçãs.

– Eu não ia apanhá-las – respondeu Paul, indo-se embora.

Os rapazes mostravam-se hostis com ele. Interessavam-lhes mais as suas próprias brincadeiras. Paul voltou para casa, para junto da mãe. Quando ia a contornar a casa pelas traseiras, viu Miriam ajoelhada diante da capoeira da galinha, com a mão cheia de milho, a morder o lábio, numa atitude de intensa concentração. A galinha fitava-a com maldade. Cautelosamente, ela estendeu a mão. A galinha atirou-se. Ela retirou rapidamente a mão, com um grito, misto de medo e frustração.

– Ela não te magoa – disse Paul.

Miriam pôs-se de pé, muito corada.

– Só queria experimentar – disse, muito baixinho.

– Vês... não dói nada – disse ele. E, colocando apenas dois grãos de milho na palma da mão, deixou a galinha bicá-lo à vontade. – Só dá vontade de rir – continuou Paul.

Ela estendeu a mão e retirou-a, tentou novamente e fugiu para trás, com um grito. Ele fez uma careta.

– Olha, eu até a deixava comer milho da minha cara – disse Paul. – Mas ela dá muitos encontrões. Ela faz isto com toda a perfeição! Se não fizesse, já imaginaste a quantidade de terra que ela ia comer todos os dias?

Esperou, muito sério, a observá-la. Finalmente, Miriam deixou a galinha bicar-lhe a mão. Deu um gritinho, de medo e dor, porque estava assustada, um gritinho patético. Mas tinha conseguido, e voltou a repetir a proeza.

– Estás a ver – disse o rapaz. – Não faz doer, pois não?

Ela fitou-o com os olhos escuros muito abertos.

– Não – disse ela, a rir e a tremer.

Depois levantou-se e foi para casa. Parecia de alguma forma ofendida com o rapaz.

«Ele deve achar que eu não passo duma rapariga como as outras», pensava ela, cheia de vontade de lhe provar que era uma grande personagem, como a «Dama do Lago».

Paul veio encontrar a mãe pronta para partir. Mrs. Morel sorriu para o filho, e ele pegou no grande ramo de flores. Mr. e Mrs. Leivers acompanharam-nos até ao fundo da quinta. As colinas douravam-se do entardecer, e nas profundezas dos bosques sobressaía o púrpura carregado das campainhas-do-monte. Por todo o lado estava o silêncio, apenas quebrado pelo restolhar das folhas e os pássaros.

– É de facto um lugar belíssimo – disse Mrs. Morel.

– É, sim – concordou Mr. Leivers. – É um lugar bem aprazível, o pior são os coelhos. Dão cabo das pastagens. Não sei se alguma vez iremos ter lucro.

Bateu as palmas e os campos cobriram-se de movimento, junto ao bosque: por toda a parte saltavam coelhos acastanhados.

– Até custa a acreditar! – exclamou Mrs. Morel.

Ela e Paul continuaram sozinhos daí para a frente.

– Foi um dia maravilhoso, não foi, mãe? – disse Paul, falando baixinho. A lua despontava, tímida. O coração doía-lhe de tanta felicidade. A mãe não se calava, pois também ela tinha vontade de gritar de felicidade.

– Então eu não ia ajudar um homem daqueles? Não ia tratar das galinhas e dos bezerros? Havia de aprender a ordenhar, e havia de conversar com ele, e fazer planos com ele. Palavra, se eu fosse mulher dele, aquela quinta ia de vento em popa, isso é que ia... Mas não, ela não tem forças... simplesmente não tem forças. Nunca devia ver-se sobrecarregada desta maneira, percebes. Tenho pena dela, e dele também. Palavra, se ele fosse meu, nunca diria que era um mau marido... Não que ela diga, lá isso não... E ela é até muito simpática.

William veio a casa outra vez, com a namorada, pelo Pentecostes. Tinham-lhe dado uma semana de férias. O tempo estava muito bonito. Geralmente, William, Lily e Paul iam juntos dar um passeio pela manhã. William não conversava muito com a namorada, excepto para lhe contar histórias da infância; mas Paul falava sem parar com qualquer deles. A certa altura, deitaram-se os três num prado, perto da igreja de Minton. De um dos lados, junto do parque do castelo, estendia-se ondulante uma cortina de choupos – uma beleza. As sebes cobriam-se de bagas pendentes de azevinho. Os campos salpicavam-se de margaridas e flores-de-cuco, como sorrisos. William, agora com vinte e três anos, era já um homem feito, muito alto, mas tão magro que era quase só pele e osso. Deitou-se ao sol, de costas, a sonhar, enquanto Lily brincava com o seu cabelo. Paul foi apanhar margaridas. Ela tinha tirado o chapéu. O seu cabelo era negro como a crina de um cavalo. Paul aproximou-se e entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo de azeviche, lembrando enormes lantejoulas brancas e amarelas, com um toque rosado de flores-do-cuco.

– Agora pareces uma bruxinha – disse o rapaz. – Não parece, William?

Lily deu uma gargalhada. William abriu os olhos e contemplou-a. O seu olhar era um misto confuso de tristeza e desmedida admiração.

– Ele transformou-me mesmo numa visão do Além? – perguntou ela, olhando para baixo, para o seu amado, a rir.

– Então não transformou! – disse William, a sorrir. E continuou deitado a olhar para ela. Os seus olhos nunca procuravam os dela. Não queria encontrar os olhos dela. Queria estar só a olhar para ela, não que os seus olhares se encontrassem. E esta vontade de a evitar, aflorava-lhe aos olhos como a tristeza. Ele desviou-os outra vez. Ela deixou a mão esguia, onde brilhavam diamantes, brincar no cabelo dele um pouco mais. Depois disse:

– O Paul sabe como fazer as coisas.

– Óptimo – disse William. – Desde que isso te faça feliz. Ele preenche-te as manhãs e eu as noites.

Ela voltou-se para Paul, e riu-se.

– Quero pôr-te mais três flores sobre a orelha – disse ele, de pé ao lado dela. – Depois, fica pronto.

Ela deixou, e ele entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo.

– Não sentes o perfume do sol nos teus cabelos? – perguntou Paul. – Estás a ver, era assim que devias ir aos bailes.

– Obrigada – disse ela, sempre a rir.

Levantaram-se.

– Não ponhas ainda o chapéu – disse Paul.

– Achas que sim? – perguntou ela a William. – Posso ir nesta figura?

William olhou para ela outra vez. A beleza dela quase o magoava. Olhou-lhe para a cabeça coberta de flores e torceu o nariz.

– Estás muito bonita assim, se é isso que queres saber.

E ela continuou o passeio sem chapéu. William logo se recompôs do mau humor e mostrou-se muito terno com ela. Ao chegarem a uma ponte, até gravou um coração com as iniciais dos dois.

 


Ela observou-o atentamente, vendo como a sua mão forte e nervosa, salpicada de pêlos cintilantes e de sardas, gravava no tronco o coração, o que parecia deixá-la fascinada.

Durante toda a estadia, enquanto William e Lily estiveram presentes, pairava dentro de casa um sentimento de tristeza e calor humano, e também de certa ternura. Mas muitas vezes ele irritava-se. Ela tinha trazido para uma semana cinco vestidos e seis blusas.

– Ouve, não te importas de me lavares estas duas blusas... e estas coisinhas? – disse ela a Annie.

E Annie ficou em casa a lavar roupa, enquanto, na manhã seguinte, William e Lily foram passear. Mrs. Morel ficou furiosa. Às vezes, ao aperceber-se da atitude da namorada para com a irmã, o jovem odiava-a pelo seu comportamento.

No domingo de manhã, Lily apareceu muito bonita, com um vestido leve, sedoso e esvoaçante, tão azul como as penas de um gaio, e um chapéu de palha coberto de rosas, onde dominava o carmim. As pessoas não se cansavam de a admirar. Mas, à noite, quando iam a sair, ela perguntou de novo:

– Fofinho, tens as minhas luvas?

– Quais delas? – perguntou William.

– As novas, as de camurça preta.

– Não.

Seguiu-se uma busca. Tinha-as perdido.

– Está a ver, mãe – disse William. – Já é o quarto par que ela perde desde o Natal... e cada par são cinco xelins.

– Tu só me deste dois pares – repontou ela.

E à noite, depois da ceia, ficou sentada no sofá e ele foi postar-se frente à lareira, farto dela. À tarde, tinha-a deixado sozinha para ir visitar um amigo de infância, e ela ficara a ver um livro. Depois da ceia, William quis ir escrever uma carta.

– Aqui tem o seu livro, Lily – disse Mrs. Morel. – Importa-se de ficar a ler mais um bocadinho?

– Não, obrigada, não quero o livro – disse a rapariga. – Prefiro ficar só aqui sentada.

– Mas isso é muito aborrecido...

William escrevia nervosamente, a grande velocidade. Quando estava a fechar o sobrescrito, disse:

– Ler um livro!... Essa é boa, ela nunca leu um livro na vida dela.

– Não digas isso! – disse Mrs. Morel, irritada com o exagero.

– É verdade, mãe... não leu mesmo – exclamou ele, pondo-se de pé num salto e retomando o seu lugar anterior, frente à lareira. – Nunca na vida leu um livro.

– Atão essa é como eu – interveio Morel. – Essa tamém num vê nada nos livros qu’a faça ficar sentada, aborrecida, de nariz infiado nas folhas. Pra quê? Eu tamém num vejo!

– Mas tu não devias dizer essas coisas – disse Mrs. Morel ao filho.

– Mas é verdade, mãe... ela não sabe ler... que livro é que lhe deu?

– Bem, dei-lhe um livrinho da Annie Swan. Ninguém quer ler coisas pesadas num domingo à tarde.

– Pois eu aposto que ela nem dez linhas leu.

– Aí é que tu te enganas – disse a mãe.

Lily assistia à discussão sentada no sofá, com um ar muito infeliz.

– Leste alguma coisa do livro? – perguntou-lhe ele.

– Li, sim – respondeu ela.

– Quantas páginas?

– Sei lá quantas páginas...

– Diz-me uma coisa que tenhas lido.

Ela não foi capaz.

– Cala-te, William – disse a mãe. – Que ideia a tua!

– Mas ela não consegue ler, mãe! – gritou ele, secamente. – Não consegue reter nada do que lê. Não sabe ler e não sabe falar. Não há assunto nenhum sobre o qual se possa conversar com ela. Só pensa em vestidos e em como todos a admiram.

– Não lhe ligue, Lily – disse Mrs. Morel.

– Só os parvos é que se sentam de nariz infiado nos livros, é o qu’eu digo – acrescentou Morel.

E a pobre rapariga continuava a ser agredida. Ele parecia odiá-la. Mais tarde, Mrs. Morel foi buscar-lhe um livro muito simples, e era patético vê-la arrastar-se penosamente pelas primeiras páginas na tarde chuvosa. Não conseguiu passar da segunda página. Ele lia muito, e possuía uma inteligência rápida, activa. Ela não entendia nada a não ser fazer amor e tagarelar. Ele estava habituado a ter todos os seus pensamentos peneirados pela mente da mãe. Por isso, quando procurava companhia e, em resposta, lhe era pedido que fosse apenas um amante, todo ele ternuras e gorgeios, odiava a namorada.

– Sabe, mãe – disse ele, quando à noite ficaram os dois sozinhos – ela não dá valor ao dinheiro, é um catavento. Quando recebe o ordenado, é capaz de gastar uma fortuna numa porcaria qualquer como, por exemplo, marrons glacés. E, depois, sou eu que tenho de lhe comprar o passe e todos os outros extras... até a roupa interior. E quer ela casar-se... Por mim, podíamos até casar já para o ano. Mas por este andar...?

– Ia ser um lindo casamento – respondeu a mãe. – Eu, se fosse a ti, pensava duas vezes, meu filho.

– Bom... Agora já fui longe de mais para romper com tudo – disse ele. – Por isso, o melhor é casar o mais depressa possível.

– Muito bem, meu filho. Se é isso que queres, assim será, e não se fala mais no assunto... Mas olha que eu não durmo quando penso nisso.

– Ela é boa rapariga, mãe. Cá nos havemos de arranjar.

– E ela deixa que sejas tu a comprar-lhe a roupa interior? – perguntou a mãe.

– Bem... – começou ele, apologético. – Ela nunca me pediu. Mas uma manhã... estava muito frio... encontrei-a na estação toda a tremer, nem conseguia estar parada. E então perguntei-lhe se estava bem agasalhada, e ela respondeu, «Acho que sim». E então eu disse «Trazes alguma camisola quente... de lã... por baixo?» E ela disse que não, que era de algodão. Perguntei-lhe por que carga de água não tinha vestido uma coisa mais quente com um frio daqueles, e ela disse que não tinha nada mais quente. E ainda por cima, com a bronquite que ela tem! Tive de pegar nela e ir comprar-lhe uma roupa mais quente... Sabe, mãe, o dinheiro era o menos, se nós o tivéssemos... Ela devia guardar o suficiente para o passe. Mas não... vem pedir-mo, e eu tenho de inventar o dinheiro...

– Belas perspectivas – disse Mrs. Morel, amargurada.

Ele estava pálido e no seu rosto já vincado, outrora tão sorridente e descuidado, estampavam-se o conflito e o desespero.

– Mas eu não posso acabar com tudo, não agora, as coisas já foram longe de mais – disse ele. – Além disso, para certas coisas, não posso passar sem ela...

– Meu filho, lembra-te de que se trata da tua vida – disse Mrs. Morel. – Nada pode ser pior do que um casamento que já está à partida irremediavelmente marcado pelo fracasso. O meu foi suficientemente mau, Deus sabe que sim, e devia ter-te ensinado alguma coisa... Mas ainda podia ter sido muito pior.

William estava encostado à ombreira da chaminé, de mãos no bolsos. Era um homem alto e esquelético, com ar de quem seria capaz de ir até ao fim do mundo, se lhe apetecesse. Mas a mãe lia--lhe o desespero no rosto.

– Agora não posso deixá-la.

– Está bem – disse a mãe. – Mas lembra-te de que há coisas piores do que romper um noivado.

Quedaram-se em silêncio, ele de olhar parado, fitando o espaço. Só a mãe lhe podia valer e, no entanto, não a deixava decidir por ele. Continuava preso ao que tinha feito.

– E, naturalmente – acrescentou Mrs. Morel, há muito mais nobreza em romper um noivado para evitar um mal maior do que em continuar só para cumprir uma promessa.

Ele mantinha-se estático, de olhar pregado no vazio.

– Eu não posso deixá-la agora – insistiu ele.

O relógio ia avançando. Mãe e filho continuaram em silêncio, em conflito. Mas ele nada mais disse. Por fim, ela disse:

– Bem, vai dormir, meu filho... amanhã sentes-te melhor... e talvez vejas as coisas com outros olhos.

O filho deu-lhe um beijo e foi deitar-se. Ela foi abafar o borralho, sentindo o coração pesado como nunca sentira antes. Antes, com o marido, parecia sentir ruir tudo dentro dela, mas nada lhe destruía a vontade de viver. Mas agora, era a própria alma que estava ferida. A própria esperança fora atingida.

William manifestou em muitas outras ocasiões o mesmo ódio pela noiva. Na última noite que passaram em casa dos pais, fartou-se de resmungar com ela.

– Bem – disse ele – já que não me acredita, que acha que ela não é nada assim, acredita pelo menos que ela foi crismada três vezes?

– Que disparate! – disse Mrs. Morel, perdida de riso.

– Disparate ou não, o certo é que foi mesmo! É isso que o Crisma significa para ela... teatro... um espectáculo onde pode brilhar.

– Não fui nada, Mrs. Morel – gritou a rapariga. – Não fui nada. Não é verdade.

– O quê! – gritou ele, avançando para ela. – Uma vez em Bromley, outra em Beckenham, e outra mais não sei onde.

– Em mais lado nenhum! – disse ela, a chorar. – Em mais lado nenhum.

– Foi, sim! E mesmo que não fosse, para que foste crismada duas vezes?

– Da primeira vez, só tinha catorze anos, Mrs. Morel – explicou ela, desculpando-se, de lágrimas nos olhos.

– Claro – disse Mrs. Morel. – Eu entendo perfeitamente, minha filha. Não lhe ligue. Devias ter vergonha, William, a dizeres estas coisas.

– Mas é verdade. Ela é religiosa... até tem livros de orações em veludo azul... mas liga tanto à religião, ou a outra coisa qualquer, como à perna daquela mesa. Ser crismada três vezes, só pelo espectáculo, só para se mostrar! E ela é assim em tudo o mais, em tudo!

A rapariga chorava, sentada no sofá. Não era um espírito forte.

– Até no amor! – gritou ele. – É o mesmo que pedir a uma mosca que nos ame. Só quer vir para cima de nós...

– Acabou-se! – disse Mrs. Morel, peremptória. – Se queres continuar a dizer esses disparates, tens de ir para outro lugar. Tenho vergonha de ti, William. Não sabes portar-te como um homem? Só a pôr defeitos na rapariga... e depois a fingires que estás noivo...! – Mrs. Morel sucumbiu à raiva e à indignação.

William mantinha-se em silêncio. Mais tarde, arrependido, foi dar um beijo à namorada e consolá-la. No entanto, tudo o que dissera era verdade, e odiava-a.

Quando partiram, Mrs. Morel acompanhou-os a Nottingham. A caminhada até à estação de Keston era longa.

– Sabe, mãe – disse ele –, a Ciganita é muito superficial... nada penetra nela a fundo...

– William, preferia que não dissesses essas coisas – pediu Mrs. Morel, sentindo-se constrangida com a presença da rapariga.

– Mas é que não penetra mesmo, mãe... Ela está muito apaixonada por mim, agora... Mas, se eu morresse, esquecia-me em três meses.

Mrs. Morel tinha medo. O seu coração batia furiosamente perante a amargura serena das últimas palavras do filho.

– Como sabes? – retorquiu. – Tu não podes saber... e, por isso, não tens o direito de dizeres uma coisa dessas.

– Ele está sempre com estas coisas! – exclamou a rapariga.

– Três meses depois de me enterrarem, já tu tinhas arranjado outro e nunca mais te lembravas de mim – disse ele. – É esse o amor que me tens!

Mrs. Morel meteu-os no comboio, em Nottingham, e voltou para casa.

– Sabes uma coisa? – disse ela pateticamente para Paul. – Não se entendem e nunca se hão-de entender. Como vai ser, se chegarem a casar, é de mais para a minha imaginação. Se ao menos ele a deixasse, já não precisava de a atormentar desta maneira. Mas vão ficar presos um ao outro até se matarem. Quando ele disse aquilo, a caminho de Keston, foi como se eu já não pudesse dar nem mais um passo. Pobrezinha, tenho pena dela. Mas não é mulher para ele, lá isso não é. É muito cruel dizê-lo, mas como ela é muito frágil, mais valia que morresse em vez de casar com ele.

Mrs. Morel não tirou o filho do pensamento durante todo o Verão. Ele parecia estar a dar cabo da vida. Mas o casamento parecia estar ainda demorado.

– Valha-nos pelo menos uma coisa – disse ela a Paul. – Ele nunca vai juntar dinheiro suficiente para se casar, disso tenho eu a certeza. É assim que ela o vai salvar.

E a ideia animava-a. As coisas ainda tinham remédio, e acreditava firmemente que William nunca chegaria a casar com a sua Cigana. Aguardava e mantinha Paul junto de si.

Durante todo o Verão, as cartas de William soavam febris. Parecia pouco natural e empolgado. Por vezes exageradamente alegre, mas geralmente sóbrio e amargo.

– Pois é – dizia a mãe. – Anda a dar cabo dele por causa daquela criatura que não merece o amor que ele lhe tem, que não passa duma boneca de trapos.

Ele só pensava em vir a casa. As férias de Verão já lá iam, e o Natal ainda estava muito longe. Escreveu muito entusiasmado a dizer que podia vir a casa no princípio de Outubro, passar um sábado e um domingo, para a Feira do Ganso.

– Tu não andas bem, meu filho – disse-lhe a mãe quando o viu. Tê-lo assim, só para ela, dava-lhe até vontade de chorar.

– Não, não tenho passado nada bem – disse ele. – Apanhei uma constipação que se arrastou durante todo o mês. Mas já estou melhor, acho eu.

Estava um dia soalheiro de Outubro. William parecia louco de alegria, como um garoto que se escapasse às aulas. Mas logo ficou calado e reservado. Estava mais esquelético que nunca e com os olhos encovados.

– Andas a trabalhar de mais – disse a mãe.

Fazia horas extraordinárias, para juntar dinheiro para se casar, segundo disse. Só conversou com a mãe uma vez, no sábado à noite. Depois, pôs-se muito triste, com saudades da namorada.

– Sabe uma coisa, mãe, apesar disto tudo, se eu morresse, ela ia chorar por mim durante dois meses, e depois tratava de me esquecer. A mãe havia de ver, ela nunca viria aqui visitar a minha sepultura nem uma só vez.

– Ora, William – disse a mãe –, tu não vais morrer, para quê falar nisso agora?

– Mas se acontecesse... – insistiu ele.

– Ela não tem culpa... ela é assim... e se tu a escolheste, não te podes queixar... – disse a mãe.

No domingo de manhã, quando estava a pôr o colarinho, William disse, levantando o queixo:

– Veja a borbulhagem que o colarinho me fez por baixo do queixo!

Mesmo na ligação do queixo com a garganta havia uma zona muito vermelha, toda irritada.

– Não te devia fazer isso – disse a mãe. – Toma, põe um pouco deste unguento. Devias mudar de colarinhos.

William partiu no domingo à noite, aparentemente melhor e mais forte, depois destes dois dias passados em casa.

Na terça-feira de manhã, chegou um telegrama de Londres dizendo que ele estava doente. Mrs. Morel, que estava a esfregar o chão, levantou-se, leu o telegrama, chamou uma vizinha, foi a casa da senhoria, pediu-lhe dinheiro emprestado, vestiu-se e partiu. Correu até à estação de Keston e apanhou o expresso para Londres em Nottingham, onde teve de esperar quase uma hora. Figurinha frágil, com o seu chapelinho preto, não parava de perguntar, ansiosa, aos carregadores se sabiam o caminho para Elmers End. A viagem demorou três horas. Foi sempre sentada no seu canto, embalada numa espécie de torpor, sem se mexer. Na estação de King’s Cross também ninguém sabia indicar-lhe o caminho para Elmers End. Com o saco de rede na mão, com a camisa de noite, um pente e uma escova, ia de pessoa em pessoa, fazendo sempre a mesma pergunta. Por fim, mandaram-na apanhar o metropolitano até Cannon Street.

Eram seis horas quando chegou ao apartamento de William. As persianas não estavam corridas.

– Como está ele? – perguntou.

– Na mesma – disse a dona da casa.

Mrs. Morel subiu a escada atrás da senhoria. William estava deitado na cama, com os olhos injectados de sangue, muito pálido. A roupa estava espalhada pelo chão, o lume estava apagado e tinha um copo de leite na mesa de cabeceira. Ninguém viera vê-lo.

– Então, meu filho, que foi isto? – disse a mãe, mostrando coragem.

Ele não respondeu. Olhava para ela, mas não a via.

Depois, começou a dizer numa voz monocórdica, como se ditasse uma carta: «Devido a uma brecha no casco do navio, o açúcar tornou-se num bloco, cristalizou. Foi preciso parti-lo com um machado...»

Estava completamente inconsciente. Um dos seus trabalhos tinha sido ir examinar esse tal carregamento de açúcar no porto de Londres.

– Há quanto tempo está ele assim? – perguntou a mãe à senhoria.

– Chegou a casa às seis horas da manhã na segunda-feira e aparentemente dormiu o dia todo. À noite, ouvimo-lo a falar, e esta manhã chamou por si. Por isso, mandei o telegrama e chamámos o médico.

– Não se importa de acender o lume?

Mrs. Morel tentava acalmar o filho, mantê-lo quieto.

O médico chegou. Era uma pneumonia e, segundo disse, uma forma rara de erisipela, que tinha começado debaixo do queixo, provocada pelo roçar do colarinho, e se estava a espalhar a toda a cara; e esperava bem que não lhe atingisse o cérebro.

Mrs. Morel ficou a cuidar dele. Rezava por William, rezava para que ele a reconhecesse. Mas a cara do jovem cada vez perdia mais as cores. De noite, teve de lutar com o filho. Ele delirou e tornou a delirar, sem nunca recobrar a consciência. E morreu às duas da manhã, num paroxismo atroz.

Durante uma hora, Mrs. Morel permaneceu estática, sentada no quarto do filho. Depois, acordou toda a casa.

Às seis da manhã, vestiu-o com a ajuda da mulher da limpeza e em seguida saiu e foi à procura do registo civil e do médico daquele lúgubre subúrbio londrino.

Às nove horas, novo telegrama para Scargill Street: «William morreu esta noite. Dizer pai venha e traga dinheiro.»

Annie, Paul e Arthur estavam em casa. Mr. Morel tinha ido trabalhar. As três crianças não disseram uma palavra. Annie começou a choramingar, com medo. Paul foi chamar o pai.

O dia estava lindo. Na mina de Bretty, o vapor branco fundia-se lentamente com a luz do sol no céu azul, muito ameno, as roldanas da torre brilhavam no alto do aterro, e a peneira não se calava, sempre a deitar o carvão para os vagões.

– Tenho de falar com o meu pai... ele tem de ir já para Londres – disse o rapaz ao primeiro homem que encontrou no aterro.

– Queres falar com Walter Morel?... Vai ‘í dentro e diz ò Joe Ward.

Paul entrou no escritório de cima.

– Quero o meu pai... ele tem de ir pra Londres.

– O teu pai... está na mina? Quem é ele?

– Mr. Morel.

– Quem, o Walter? Aconteceu alguma coisa?

– Ele tem de ir já pra Londres.

O homem foi para o telefone e ligou para o escritório de baixo.

– Chamem o Walter Morel... 42 Hard. Aconteceu alguma coisa... o filho dele tá ‘qui.

Depois, voltou-se para Paul, e disse:

– Daqui a cinco minutos ele já aí está.

Paul foi até ao topo da mina. Viu a caixa subir, com o carregamento de carvão. A grande gaiola de ferro descansou sobre os apoios, a carga foi retirada, um contentor vazio deslizou sobre os apoios, algures tilintou uma campainha, a gaiola elevou-se e caiu como uma pedra.

Paul não acreditava que William estivesse morto... era impossível, com tanta azáfama por todo o lado. O mineiro de serviço empurrou o pequeno contentor para cima da placa giratória, e um outro homem levou-a pelo aterro fora, pelos trilhos sinuosos. «O William está morto e a minha mãe em Londres; que estará ela a fazer?», perguntava-se ele, como se se tratasse de uma charada.

Viu os contentores subirem uns atrás dos outros, e nem sinais do pai. Por fim, o vulto de um homem desenhou-se ao lado de um vagão! A gaiola descansou sobre os apoios e Morel desceu. Coxeava ligeiramente, devido a um acidente.

– És tu, Paul!... Ele tá pior?

– Tem de ir já pra Londres.

Desceram os dois o aterro, lado a lado, sob os olhares curiosos dos mineiros. Quando deixaram a mina e seguiam já ao longo da via férrea, com os campos soalheiros de Outono de um dos lados e um muro de vagões do outro, Morel perguntou, com o medo na voz:

– Ele não se curou, filho?

– Não.

– E quando foi?

Havia terror na voz do mineiro.

– Esta noite... Chegou um telegrama da mãe.

Morel deu mais alguns passos e depois encostou-se a um vagão e fincou as mãos nos joelhos. Mas não chorou. Paul olhou em volta, à espera. Um vagão balouçou lentamente em cima da balança. Paul via tudo, menos o pai, encostado ao vagão, como se estivesse cansado.

Morel só tinha ido uma vez a Londres. Pôs-se a caminho, assustado e lívido, para ir ajudar a mulher. Isto passou-se numa terça-feira. Os filhos ficaram sozinhos em casa. Paul foi trabalhar, Arthur para a escola e Annie chamou uma amiga para lhe fazer companhia.

No sábado à noite, quando Paul dobrava a esquina, de regresso de Keston, viu a mãe e o pai, que vinham da estação de Lethley Bridge. Caminhavam no escuro, em silêncio, cansados, separados. O rapaz ficou à espera.

– Mãe! – disse ele, da escuridão.

A figura franzina de Mrs. Morel pareceu não dar por ele. Paul insistiu.

– Paul! – disse ela, indiferente. Deixou-o dar-lhe um beijo, mas parecia não o ver.

Em casa foi a mesma coisa, franzina, pálida e muda. Não via nada, não dizia nada, excepto:

– O caixão chega hoje à noite, Walter. É melhor pedires ajuda. – E, depois, voltando-se para os filhos: – Vamos trazê-lo para casa.

Em seguida mergulhava num mutismo duradouro, de olhar perdido no espaço e mãos cruzadas sobre o regaço. Paul, ao vê-la assim, quase não podia respirar. Reinava em toda a casa um silêncio de morte.

– Fui trabalhar, mãe – disse Paul, tristemente.

– Ah, foste – respondeu ela, indiferente.

Passada meia hora, Morel, preocupado e confuso, entrou em casa.

– Onde havemos d’o pôr, quand’ele chegar? – perguntou à mulher.

– Na sala da frente.

– Então é melhor eu tirar de lá a mesa.

– Está bem.

– E botá-lo em cima das cadeiras?

– Tu lá sabes... sim... acho que sim.

Morel e Paul pegaram numa vela e foram para a sala. Lá não havia gás. O pai desaparafusou o tampo oval da grande mesa de mogno e libertou o centro da sala. Depois dispôs seis cadeiras em frente umas das outras, de forma a poderem suportar o caixão.

– Nunca vi ninguém mais comprido! – disse o mineiro, olhando em volta, ansioso, enquanto trabalhava.

Paul foi à janela e olhou para a rua. O freixo erguia-se monstruoso e negro, contra a imensa escuridão. Estava uma noite sem luar. Depois, voltou para junto da mãe.

Às dez horas, Morel anunciou:

– Chegou!

Todos estremeceram. Ouviu-se destrancar e abrir a porta da frente, que dava passagem directa da noite escura para dentro da sala.

– Tragam outra vela – gritou Morel.

Annie e Arthur foram buscá-la. Paul acompanhou a mãe. Estava ao lado dela, encostado à porta interior, passando-lhe o braço pela cintura. No meio da sala vazia havia seis cadeiras à espera, viradas umas para as outras. Junto à janela, Arthur segurava uma vela, encostado às cortinas de renda, e junto à porta aberta, virada para a noite, estava Annie, inclinada para a frente, com a palmatória de latão a cintilar.

Ouviu-se o barulho de um rodado. Lá fora, na escuridão da rua, Paul viu cavalos e um veículo negro, um lampião e alguns rostos empalidecidos. Depois, alguns homens – mineiros – todos em mangas de camisa, que pareciam debater-se na penumbra densa. Por fim, apareceram dois homens, vergados sob a pesada carga. Era Morel e o vizinho.

– Firme! – disse Morel, sem fôlego.

Ele e o companheiro subiram o degrau alto do jardim e surgiram à luz da vela, segurando uma das extremidades cintilantes do caixão. Mais braços, de outros homens, agitavam-se por detrás deles. Morel e Burns, à frente, vacilaram. A carga negra, pesadíssima, balançou.

– Firme, firme! – gritou Morel, num grito de dor.

Os seis carregadores já estavam todos no jardim, trazendo o caixão pelo ar. Havia ainda mais três degraus até à porta. A lanterna amarelada da carruagem brilhava sozinha, na estrada de breu.

– Agora! – disse Morel.

O caixão balançou, os homens começaram a subir os degraus com a sua carga. A chama da vela de Annie tremulou e ela começou a chorar ao ver surgir os primeiros homens. Os braços e as cabeças curvadas dos seis homens lutavam para vencerem a subida até à sala com o caixão, transportando o peso do sofrimento sobre a sua carne viva.

– Oh, meu filho... meu filho! – disse Mrs. Morel, baixinho, como se entoasse. E, de novo, de cada vez que o caixão balançava ao passo desigual dos carregadores:

– Oh, meu filho... meu filho... meu filho!

– Mãe! – disse Paul, a chorar, com o braço em volta da cintura dela. – Mãe!

Ela não ouviu.

– Oh, meu filho... meu filho! – repetia.

Paul via gotas de suor pingarem da testa do pai. Os seis homens estavam na sala, seis homens em mangas de camisa, de braços exaustos que se debatiam com a sua carga, enchendo a sala e indo de encontro aos móveis. O caixão desceu e foi suavemente pousado sobre as cadeiras. O suor pingava da testa de Morel sobre o rebordo.

– Palavra d’honra, manda cá um peso! – disse um dos homens, e os cinco mineiros soltaram um suspiro, curvaram-se perante o caixão e, trémulos da luta, desceram novamente os degraus, fechando a porta atrás de si.

A família ficou sozinha na sala com a enorme caixa envernizada. William, esticado, tinha seis pés e quatro polegadas de comprimento. O imponente caixão, de um castanho brilhante, jazia qual monumento. Paul pensou que nunca mais iam conseguir tirá-lo dali. A mãe acariciava a madeira envernizada.

Foi a enterrar na segunda-feira, no pequeno cemitério da encosta, alcandorado sobre os campos, dominando a igreja e o casario. Estava um dia de sol e os crisântemos brancos encaracolavam as pétalas ao calor.

Depois de tudo isto, nada conseguia persuadir Mrs. Morel a falar e a recuperar a sua antiga força de viver. Continuava fechada sobre si mesma. Quando voltava para casa, no comboio, tinha pensado para consigo: «Se ao menos tivesse sido eu.»

Quando Paul chegou a casa à noite, encontrou a mãe sentada com as mãos no regaço, sobre o tosco avental, já com a lida da casa despachada. Era sempre costume trocar de vestido e pôr um avental preto. Mas desta vez foi Annie quem lhe pôs a ceia, e a mãe continuou sentada em frente dela, de olhar vazio e lábios cerrados. Paul deu voltas à cabeça para arranjar novidades para lhe contar.

– Mãe, Miss Jordan apareceu lá hoje e disse que o meu esboço de uma mina a laborar estava muito bom...

Mas Mrs. Morel nem prestou atenção. Noite após noite, Paul esforçava-se por lhe contar coisas, mesmo que ela o não escutasse. Quase o enlouquecia vê-la neste estado. Até que:

– Que tem, mãe? – perguntou ele. Ela não ouviu.

– Que tem? – insistiu. – Mãe, o que é que tem?

– Sabes bem o que é que eu tenho – disse ela, irritada, virando-lhe as costas. O rapaz – tinha agora dezasseis anos – foi para a cama tristíssimo. Passou Outubro, Novembro e Dezembro sentindo-se rejeitado, um desgraçado. A mãe bem tentava, mas não conseguia reagir. Tudo o que fazia era pensar no filho morto, que tão cruelmente tinham deixado morrer.

Por fim, no dia 23 de Dezembro, Paul voltou para casa como um sonâmbulo, com os cinco xelins da gratificação de Natal no bolso. A mãe olhou para ele e o seu coração parou.

– O que se passa? – perguntou ela.

– Sinto-me mal, mãe! – respondeu ele. – Mr. Jordan deu-me cinco xelins de gratificação. – E estendeu-os à mãe, com a mão trémula. Ela pô-los em cima da mesa.

– A mãe não parece satisfeita – disse ele, como se ralhasse.

Mas Paul tremia violentamente.

– Onde é que te dói? – disse ela, desabotoando-lhe o sobretudo.

Era a velha pergunta.

– Sinto-me mal, mãe.

Ela despiu-o e meteu-o na cama. Era uma pneumonia, e grave, disse o médico.

– Ele podia não a ter apanhado, se eu o tivesse obrigado a ficar em casa e não o deixasse ir para Nottingham? – foi uma das primeiras coisas que perguntou.

– Podia não ser tão grave – disse o médico.

Mrs. Morel encontrou na resposta a sua própria condenação.

– Devia ter-me preocupado com os vivos, e não com os mortos – disse para consigo.

Paul esteve muito mal. A mãe passava as noites ao seu lado, pois não tinham dinheiro para uma enfermeira. O seu estado piorou e a fase crítica aproximava-se. Uma noite recobrou a consciência, num daqueles paroxismos fantasmagóricos e doentios de dissolução, em que todas as células do corpo parecem estilhaçar-se à pressão extrema da irritabilidade, e a consciência, como em estados de loucura, tem um derradeiro arrobo de vitalidade.

– Vou morrer, mãe! – gritou ele, soerguendo-se da almofada, lutando para respirar.

Ela ajudou-o, chorando baixinho:

– Oh, meu filho, meu filho!

Isto trouxe-o de volta. Apercebeu-se da presença da mãe. A sua força de vontade empertigou-se e prendeu-o à vida. Pousou a cabeça do peito dela e repousou no seu amor.

– De certa forma – disse a tia – foi até bom o Paul ter tido aquela doença no Natal. Foi isso que salvou a mãe.

Paul esteve de cama sete semanas. Levantou-se, finalmente, pálido e muito fraco. O pai tinha-lhe comprado um vaso de tulipas vermelhas e douradas. Era vê-las, a brilhar como fogo na janela, ao sol de Março, enquanto ele ficava sentado no sofá a conversar com a mãe. Tagarelavam os dois em perfeita intimidade. Mrs. Morel vivia agora para Paul.

William tinha sido profético. Mrs. Morel recebeu uma lembrança e uma carta de Lily pelo Natal. Da irmã de Mrs. Morel, uma carta pelo Ano Novo.

«Fui ontem a um baile. Encontrei lá pessoas adoráveis e diverti-me imenso», dizia a carta. «Não perdi uma dança... nem uma.»

Mrs. Morel nunca mais teve notícias dela.

Morel e a mulher viveram em harmonia durante algum tempo depois da morte do filho. Ele costumava quedar-se, como num êxtase, de olhos esbugalhados e olhar perdido. Depois, levantava-se de repente e ia para o Three Spots, voltando já no seu estado normal. Mas nunca mais foi passear para os lados de Shepstone, para não passar pelo escritório onde o filho trabalhara, e evitava passar pelo cemitério.


SEGUNDA PARTE


VII

AMOR DE ADOLESCENTES

NO OUTONO, Paul estivera várias vezes em Willey Farm e tinha-se tornado amigo dos dois rapazes mais novos. De início, Edgar, o mais velho, não se mostrava muito receptivo, e Miriam furtava-se também a qualquer aproximação. Tinha medo de ser desprezada pelos próprios irmãos. Rapariga de alma romântica, em toda a parte via heroínas de Walter Scott, cortejadas por cavaleiros de armadura ou chapéus emplumados. Ela própria era, na sua imaginação, uma princesa transformada em guardadora de porcos. E receava que aquele rapaz, parecido embora com um herói de Walter Scott, que pintava, falava francês, sabia álgebra e viajava todos os dias de comboio para Nottingham, visse nela simplesmente a guardadora de porcos e fosse incapaz de vislumbrar a princesa que nela se ocultava. Por isso, fugia dele.

A sua melhor amiga era a mãe. Ambas de olhos castanhos e dadas ao misticismo, eram daquelas mulheres que guardam a religião ciosamente no coração e para quem a religião é como o ar que respiram, como um véu de bruma que lhes filtra a vida. Assim, para Miriam, Cristo e Deus formavam uma só imagem sublime que ela amava com fervor, apaixonadamente, sempre que um imenso pôr do Sol incendiava o céu poente; sempre que os heróis e as heroínas – os Brian de Bois Gilberts, os Rob Roys e os Guy Mannerings; as Edites, as Lucys e as Rowenas – faziam restolhar as folhas matinais encharcadas de sol, ou se vinham sentar com ela nas alturas do seu quarto, sonhadores e solitários, quando a neve caía. Isto sim, era para ela viver. Quanto ao resto, cuidava da lida da casa, trabalho que não lhe seria pesado, se o chão de tijoleira bem polida não ficasse logo todo patinhado das pesadas botas dos irmãos; queria à viva força que o irmão mais novo, de quatro anos, a deixasse envolvê-lo e cobri-lo com o seu amor; ia à igreja, reverente, em pose contrita, e sofria angustiada perante a vulgaridade das outras meninas de coro e a banalidade da voz do cura; envolvia-se em lutas com os irmãos, que considerava uns brutamontes; e não tinha o pai em grande estima por não albergar no coração quaisquer ideais místicos, e ter como únicas ambições uma vida sem preocupações e a comida na mesa a tempo e horas.

Miriam detestava a sua condição de guardadora de porcos. Queria ser respeitada. Queria instruir-se, pensando que, se fosse capaz de ler, como Paul dizia que era, a Colomba ou a Voyage Autour de ma Chambre, o mundo a veria com outros olhos e teria por ela um profundo respeito. Como jamais poderia ser princesa por fortuna ou condição, ansiava possuir conhecimentos de que pudesse orgulhar-se; era diferente das outras pessoas e não queria ser confundida com a arraia-miúda. Ser instruída era a única marca de distinção a que pensava poder aspirar.

A sua beleza, misto de timidez, rebeldia e sensibilidade, não tinha para ela qualquer valor. Nem mesmo a sua alma, tão dada a arrebatamentos, lhe era suficiente. Precisava de algo mais que reforçasse o seu orgulho, pois sentia-se diferente das outras pessoas. Olhava Paul com vaga melancolia. De uma maneira geral, desprezava o sexo masculino. Neste caso, porém, ele era um exemplar diferente, ágil, leve, gracioso, que tanto podia mostrar-se gentil como insuportável, que era inteligente e culto, que já tinha passado por uma morte na família. O pouco que o rapaz sabia guindava-o aos píncaros a seus olhos. Contudo, esforçava-se por desprezá-lo por ele não conseguir ver nela a princesa, mas tão-só a guardadora de porcos.

Paul mal reparava nela.

Um dia, porém, adoeceu gravemente e ela sentiu que com isso ele iria enfraquecer. Se assim fosse, seria ela a mais forte e então poderia amá-lo. Se pudesse ser sua amante na fraqueza, cuidar dele, tê-lo na sua dependência, se ao menos pudesse tê-lo nos seus braços, com que força o amaria!

Assim que os céus desanuviaram e as ameixoeiras floriram, Paul partiu para Willey Farm na carroça do leiteiro. Mr. Leivers gritou pelo rapaz em tom amigável e conduziu o cavalo lentamente pela encosta acima, ao fresco da manhã, dando estalinhos com a língua para o incitar. No céu passavam nuvens brancas que se iam juntar para lá das colinas, agora visíveis à luz primaveril. As águas do Nethermere jaziam em baixo, muito azuis, em contraste com os prados ressequidos e os espinheiros.

Era uma viagem de quatro milhas e meia. Nas cercas, minúsculos botões em tons vivos e brilhantes desabrochavam em rosetas e os tordos pairavam e os melros piavam e gralhavam. Era um mundo novo, fascinante.

Miriam, espreitando da janela da cozinha, viu o cavalo transpor o grande portão branco do pátio, recortando-se contra o bosque de carvalhos desfolhados, em fundo. Nisto, um rapaz envergando um casacão muito grosso saltou para o chão e estendeu as mãos para segurar o chicote e a manta que o lavrador sadio e bem-humorado lhe entregava.

Miriam assomou-se à porta. Tinha quase dezasseis anos, era linda, de faces rosadas, ar grave e uns olhos subitamente dilatados, como em êxtase.

– Vejo – disse Paul virando-se envergonhado – que os teus narcisos estão quase a desabrochar. Não será cedo de mais? Não achas que está ainda muito frio?

– Frio? – repetiu Miriam, na sua voz terna e musical.

– O verde dos botões... – e Paul interrompeu-se, timidamente.

– Deixa-me levar-te a manta – disse Miriam, com exagerada amabilidade.

– Eu posso bem levá-la – respondeu ele, mostrando-se ofendido. Contudo, entregou-lha.

Entretanto, apareceu Mrs. Leivers.

– Deves estar cansado e cheio de frio – disse ela. – Dá-me o casaco. Que pesado.... não vais longe com ele.

Ajudou-o a despir o casacão, amabilidade a que o rapaz não estava habituado, e quase sucumbiu a tanto peso.

– Ena, mulher – disse o lavrador a rir, quando passou pela cozinha com as grandes bilhas de leite a baloiçar. – Tás aí que nem t’aguentas. – Ela ajeitou as almofadas no sofá para o rapaz se encostar.


CONTINUA

Paul, sempre atrás dele, contornou o balcão quadrangular. A sala onde estava ficava no segundo andar. Tinha um grande buraco no meio do chão, rodeado por um muro de balcões, e era por essa abertura que subiam e desciam os elevadores e passava a luz para o andar de baixo. No tecto, na mesma direcção, havia também um buraco oblongo, e, olhando para cima, podiam ver-se algumas máquinas para lá da cercadura de protecção do andar superior; e, logo por cima, uma clarabóia por onde entrava a luz para os três andares, tornando-se cada vez mais fraca à medida que se descia mais fundo, o que deixava o rés-do-chão às escuras e o primeiro andar na penumbra. A fábrica estava instalada no último andar, o armazém no segundo e a arrecadação no rés-do-chão. O lugar era velho e insalubre.

Paul foi levado para um canto muito escuro.

– Aqui é a secção Espiral – disse o empregado. – Tu fazes a Espiral com o Pappleworth. É ele o teu chefe, mas ainda não veio. Só chega lá para as oito e meia. Por isso, se quiseres, podes ir buscar as cartas a Mr. Melling, ali adiante.

E o jovem apontou para o tal velho do gabinete do fundo.

– Está bem – disse Paul.

– Está aqui uma escápula para pendurares o boné... e aqui tens os livros de registo da correspondência. Mr. Pappleworth já não deve demorar.

E o jovem, muito magro, afastou-se altaneiro, com grandes passadas desenvoltas, que ressoavam secas no soalho.

Passados um ou dois minutos, Paul parou à porta do gabinete envidraçado. O velho funcionário, com o seu bonezinho, olhou-o por cima dos óculos.

– Ora muito bom dia – disse, afável e enfático. – Queres as cartas para levares para a Espiral, não é, Thomas?

Paul não gostou que ele lhe chamasse Thomas, mas pegou nas cartas e voltou para o seu recanto escuro, onde o balcão dobrava em ângulo, onde acabava a prateleira das embalagens, e onde, mesmo ao canto, se abriam três portas. Paul sentou-se num banco alto e começou a ler as cartas, pelo menos, aquelas cuja letra era mais legível. Diziam o seguinte:

«Queira enviar-me por favor, com a máxima urgência, um par de meias de seda Espiral para senhora, sem pé, idênticas às que me enviou o ano passado... altura... da anca ao tornozelo... etc.»

Ou então: «O Major Chamberlain deseja renovar o anterior pedido de uma ligadura suspensória em seda, não elástica.»

Muitas destas cartas, algumas delas em francês ou norueguês, eram um quebra-cabeças para o rapaz, que aguardava ansioso, sentado no banco, a chegada do «chefe». Às oito e meia, sofreu um ataque de timidez quando as raparigas do andar de cima passaram por ele a correr.

Mr. Pappleworth apareceu por volta das vinte para as nove, a mastigar uma pastilha elástica de mentol, quando já todos estavam a trabalhar. Era um homem magro e pálido, de nariz vermelho e gestos rápidos e peremptórios, trajando com austera elegância. Devia andar pelos trinta e seis anos e havia nele algo de canino, garboso, brincalhão e astuto, afectuoso talvez, mas simultaneamente algo de ligeiramente desprezível.

– És o meu novo ajudante? – perguntou. Paul pôs-se de pé e disse que sim.

– Foste buscar as cartas?

Mr. Pappleworth continuou a mastigar a pastilha.

– Sim.

– Copiaste-as?

– Não.

– Então anda cá, vamos pôr-te operacional. Já trocaste de casaco?

– Não.

– O melhor é trazeres um casaco velho e guardá-lo aí.

As últimas palavras foram pronunciadas com a pastilha apertada de lado, entre os queixais. Desapareceu na penumbra, por detrás da enorme prateleira das embalagens, e reapareceu já sem casaco, com uma elegante camisa às riscas com os punhos dobrados, deixando a descoberto uns braços magros e peludos. Depois, enfiou o outro casaco. Paul reparou na magreza deste homem e em como as calças faziam pregas no traseiro. Pegou num banco, puxou-o para junto do rapaz e sentou-se.

– Senta-te – disse o homem. Paul sentou-se. Mr. Pappleworth estava muito próximo dele. Pegou nas cartas, tirou um livro comprido, de registos, da prateleira em frente, abriu-o, pegou numa caneta e disse:

– Agora, presta atenção... Vais copiar estas cartas para aqui.

Fungou duas vezes, deu uma mastigadela na pastilha, olhou demoradamente para uma carta, quedou-se pensativo e deu entrada da carta rapidamente, numa caligrafia bonita e floreada. Depois, olhou de relance para Paul.

– Estás a ver?

– Estou.

– Achas que consegues fazer o mesmo... e bem feito?

– Acho que sim.

– Então, está bem... vamos lá a ver.

Saltou para o chão. Paul pegou numa caneta. Mr. Pappleworth desapareceu. Paul gostava bastante de copiar cartas, mas escrevia devagar, laboriosamente, e muito mal. Ia ele na sua quarta carta, todo feliz e atarefado, quando Mr. Pappleworth voltou.

– Ora vejamos... que tal vai isso... já ’cabaste?

Debruçou-se sobre o ombro do rapaz, sem parar de mastigar e a cheirar a mentol.

– Diabos me levem, rapaz... Mas que belo escritor que tu me saíste! – exclamou ele, trocista. – Não te rales, quantas já fizeste? Só três! Eu tinh’até tido tempo de sobra pràs comer. Continua, miúdo, e numera-as... assim, tás a ver? Continua!

Paul não largava as cartas, enquanto Mr. Pappleworth tratava de outros assuntos. Nisto, soou um apito agudo mesmo junto ao ouvido dele, e o rapaz assustou-se. Mr. Pappleworth aproximou-se, tirou um tampão de dentro de um tubo e disse, numa voz inesperadamente agreste e autoritária:

– Sim!

Paul ouviu uma voz sumida, provavelmente de mulher, a sair pelo tubo. Ficou embasbacado, pois nunca tinha visto um tubo falante.

– Bem – disse Mr. Pappleworth, num tom agastado, falando para o tubo – nesse caso, o melhor é fazer algum do trabalho em atraso.

De novo a voz aguda da mulher se fez ouvir, com um timbre bonito, mas zangado.

– Não tenho tempo para estar aqui a ouvi-la tagarelar – disse Mr. Pappleworth, e em seguida tapou o tubo.

– Vá, miúdo, despacha-te – disse ele, suplicante, virando-se para Paul. – Era a Polly aos gritos, quer as encomendas. Não consegues andar um bocadinho mais depressa? Vá... sai daí.

Pegou no livro, para imenso desgosto de Paul, e começou ele mesmo a escrever. Fazia-o depressa e bem. Uma vez terminadas as cópias, pegou numas tiras compridas de papel amarelo, com cerca de sete centímetros de largura, e preencheu as encomendas para enviar às operárias.

– É melhor prestares atenção – disse ele a Paul, sem se interromper. Paul olhou para aqueles estranhos desenhos de pernas, coxas e tornozelos, cheios de traços e números, e algumas instruções, com que o chefe preenchia as tiras amarelas. Quando acabou, Mr. Pappleworth saltou do banco.

– Vem comigo – disse ele, e, de papéis amarelos a esvoaçar na mão, desapareceu por uma porta e desceu uma escada em direcção à cave, onde ardia uma lamparina de gás. Atravessaram a arrecadação húmida e fria, depois uma sala comprida e lúgubre com uma mesa enorme assente sobre cavaletes e entraram numa sala mais pequena e acolhedora, de tectos não muito altos, que tinha sido construída como anexo do edifício principal. Nesta sala estava uma mulher de pequena estatura, com uma blusa de sarja vermelha e cabelo preto apanhado ao alto num carrapito, em atitude expectante, de galarote.

– Cá tão elas – disse Pappleworth.

– Eu penso que será «Cá estão elas»! – exclamou Polly. – As raparigas estiveram aqui à espera quase meia hora. Pense só no tempo que se perdeu!

– Pense mas é em fazer o seu trabalho e falar menos – disse Mr. Pappleworth. – Podia ter despachado outras coisas.

– Sabe muito bem que despachámos tudo no sábado – gritou Polly, avançando para ele faiscante.

– Blá-blá-blá! – arremedou-a o homem. – Aqui tem o seu novo ajudante. Não dê cabo deste como deu do outro.

– Como nós demos do outro! – repetiu Polly. – Pois é, nós damos cabo de muita coisa, olá se damos. Também lhe digo que qualquer rapaz tinha de ficar estragado depois de estar ao pé de si.

– Vá, vá... agora é hora de trabalhar, não de conversar – disse Mr. Pappleworth num tom seco e severo.

– Também há pouco era – disse Polly, afastando-se de cabeça bem erguida. Tinha um corpo pequeno e escorreito, de quarenta anos.

Na dita sala havia duas máquinas redondas, espiraladas, em cima do poial da janela. Na sala ao lado, que comunicava com a primeira e era mais comprida, havia outras seis máquinas. Algumas raparigas dignamente vestidas e de aventais brancos conversavam umas com as outras, formando um pequeno grupo.

Não têm mais nada para fazer? – disse Mr. Pappleworth.

– Só esperar por si – disse uma delas, bem bonita, rindo com gosto.

– Bom, toca a trabalhar, toca a trabalhar – disse ele. – Anda, miúdo. Da próxima vez, já sabes o caminho.

Paul correu escada acima atrás do chefe. Mandaram-no conferir algumas facturas e fazer outras. Ele arrimou-se à secretária, esforçando-se por cumprir a tarefa na sua caligrafia execrável. Nisto, Mr. Jordan aproximou-se, vindo do gabinete envidraçado, e, para grande atrapalhação de Paul, veio pôr-se mesmo por detrás dele. Subitamente, um dedo gordo e vermelho espetou-se sobre o documento que ele estava a preencher.

– Mr. J. A. Bates, Esquire! – bradou uma voz irada, junto ao seu ouvido.

Paul olhou para o «Mr. J. A. Bates Esquire» escrito na sua letra tortuosa, e perguntou-se o que estaria mal agora.

– Não te ensinaram a fazer como deve ser, enquanto andavas na escola? Se se põe «Mr.», não se põe «Esquire»... um homem não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.

O rapaz, lamentando a sua prodigalidade no modo como esbanjava títulos, hesitou e, com dedos trémulos, apagou a palavra «Mr.». Mas logo Mr. Jordan lhe arrancou a factura das mãos.

– Faz outra! Ou vais mandar isto a um cavalheiro? – E rasgou a factura azul, irritadíssimo.

Paul recomeçou, com as orelhas a arder de vergonha, sob o olhar atento de Mr. Jordan.

– Não sei o que é que eles vos ensinam na escola. Devias escrever muito melhor do que isso. Hoje em dia, os miúdos não aprendem nada a não ser recitar poesia e tocar violino... Já viu a letra dele? – perguntou Mr. Jordan a Mr. Pappleworth.

– Já... é de primeira... não é? – respondeu Mr. Pappleworth com indiferença. – Mas ele vai aprender.

Mr. Jordan resmungou qualquer coisa desagradável. Paul percebeu que o patrão ladrava mais do que mordia. Na verdade, o pequeno fabricante era suficientemente cavalheiresco, apesar do seu mau inglês, para deixar os empregados à vontade e não se prender com ninharias. Mas tinha consciência de não ter aspecto de ser o dono e senhor de tudo aquilo, e via-se por isso forçado a desempenhar o seu papel de vilão, para repor as coisas nos seus devidos lugares.

– Ora vamos lá a ver, como é que te chamas? – perguntou Mr. Pappleworth ao rapaz.

– Paul Morel.

É curioso o que as crianças sofrem para pronunciarem os seus nomes.

– Com que então, Paul Morel! Muito bem, vá, Paul Morel, toca a acabar essa coisa, e depois...

Mr. Pappleworth sentou-se num banco e começou a escrever. Uma rapariga entrou por uma porta mesmo atrás dele, depositou em cima do balcão uns artigos de malha elástica acabados de passar a ferro e voltou a sair. Mr. Pappleworth pegou na joelheira azul claro, examinou-a, confrontou-a rapidamente com a nota de encomenda amarela e pô-la de parte. Ao lado estava uma «perna» rosada, cor de carne. Conferiu os vários artigos, preencheu algumas notas de encomenda e disse a Paul que o acompanhasse. Desta vez, saíram pela porta por onde a rapariga tinha entrado. Paul viu-se no cimo de um pequeno lanço de escadas, e em baixo viu uma sala com janelas em duas das paredes e, no extremo oposto, meia dúzia de raparigas sentadas, curvadas sobre si mesmas, a costurarem à luz das janelas e a cantarem em coro, «Duas Meninas Vestidas de Azul». Ao ouvirem a porta abrir-se, todas se voltaram e viram Mr. Pappleworth e Paul a olharem para elas do outro lado da sala. Pararam de cantar imediatamente.

– Não podem fazer menos barulho? – disse Mr. Pappleworth. – As pessoas hão-de pensar que temos a casa cheia de gatas.

Uma mulher corcunda, sentada num banco alto, voltou para Mr. Pappleworth a cara comprida e circunspecta, e disse com voz de contralto:

– Só se esses forem gatos.

Mr. Pappleworth em vão tentou causar efeito para impressionar Paul. Desceu as escadas até à sala de acabamentos e dirigiu-se à corcunda, uma tal Fanny. O seu corpo era tão pequeno, empoleirado no alto do banco, que a cabeça, com grandes bandós de cabelo castanho-claro, parecia excessivamente grande, tal como o rosto, pálido e grave. Trazia um vestido de caxemira verde-escuro, e, quando pousou o trabalho nervosamente, viu-se que os seus pulsos, cingidos por punhos estreitos, eram finos e achatados. Ele mostrou-lhe uma joelheira que tinha um defeito qualquer.

– Ora – disse ela – não precisava de vir atirar as culpas para cima de mim... a culpa não é minha – disse, subindo-lhe um rubor às faces.

– Eu não disse que a culpa era sua... e agora faça o que lhe mandei! – ripostou Mr. Pappleworth, secamente.

– Não diz que a culpa é minha, mas quer fazer parecer que é – gritou a corcunda, quase a chorar. Depois, arrancou a joelheira das mãos do «chefe», dizendo: – Está bem, eu faço isso, mas não precisa de vir com duas pedras na mão.

– Aqui está o seu novo ajudante – disse Mr. Pappleworth.

Fanny voltou-se e sorriu gentilmente para Paul.

– Oh! – disse ela.

– Pois é... agora vejam lá se o estragam com mimos.

– Se alguém o estragar, não somos nós – disse ela, indignada.

– Vamos embora, Paul – disse Mr. Pappleworth.

– Au revoi, Paul – disse uma das raparigas.

Foi uma risota. Paul saiu, corado até à alma, sem dizer palavra.

O dia nunca mais acabava. Durante toda a manhã, foram os operários a vir falar com Mr. Pappleworth, e Paul a escrever ou a aprender a preparar as embalagens para a tiragem do meio-dia. À uma da tarde, ou melhor, quando faltava um quarto para a uma, Mr. Pappleworth desapareceu, para apanhar o comboio: vivia nos arredores. À uma, Paul, sentindo-se perdido, levou o cesto do farnel para a arrecadação da cave, onde estava a tal mesa comprida sobre cavaletes, e comeu à pressa, completamente sozinho naquele espaço de penumbra e desolação. Depois, foi passear para a rua. A claridade e a liberdade que sentia nas ruas tornavam-no feliz e afoito. Mas, às duas horas, voltou para o seu canto na sala grande. Não tardou que passassem as raparigas, metendo-se com ele. Eram as de mais baixa condição, as que trabalhavam no andar de cima em tarefas mais pesadas, como o fabrico de fundas e os acabamentos dos membros artificiais. Paul ficou a aguardar a chegada de Mr. Pappleworth, sem saber o que fazer, sentando-se a rabiscar nas notas de encomenda amarelas. Mr. Pappleworth chegou às vinte para as três, sentou-se e pôs-se a tagarelar com Paul, tratando o rapaz como seu igual, até na idade.

De tarde nunca havia muito que fazer, a não ser que fosse perto do fim-de-semana e as contas tivessem de ser fechadas. Às cinco horas, todos os homens foram até à «masmorra» da mesa de cavaletes, onde tomaram chá e pão com manteiga em cima das tábuas nuas e imundas, conversando com a mesma avidez e grosseria com que tomavam a refeição. No entanto, lá em cima, o ambiente era sempre alegre e desanuviado. Certamente a cave e os cavaletes deixavam-nos transtornados.

Depois do chá, quando todos os bicos de gás estavam acesos, o trabalho fluía com mais rapidez. Era preciso despachar as encomendas para o correio da tarde. As meias chegavam lá acima ainda quentes, acabadinhas de passar, directamente das oficinas. Paul já tinha passado todas as facturas. Faltava-lhe fazer agora as embalagens e endereçá-las, e depois pesar as suas encomendas na balança. Por todo o lado se ouviam vozes a gritar pesagens, o tilintar de metais, o estalar nervoso dos cordéis, a corrida ao gabinete de Mr. Melling, para os selos. Finalmente, chegou o carteiro, sorridente e bem-disposto, como seu enorme saco. Depois a agitação abrandou, Paul pegou no cesto do farnel e correu para a estação, para apanhar o comboio das oito e vinte. O dia de trabalho era exactamente de doze horas.

A mãe esperava por ele, ansiosa. Paul tinha de ir para casa a pé desde Keston, pelo que não chegou a casa antes das nove e vinte; e tinha saído de casa antes das sete da manhã. Mrs. Morel preocupava-se com a saúde do filho, mas também ela já tivera de enfrentar tantas dificuldades, que esperava que os filhos tivessem agora a mesma genica. Teriam de suportar o que fosse preciso. Assim, Paul manteve-se na Jordan, embora durante a sua permanência nesse emprego a sua saúde sofresse com a falta de luz e de ar fresco, e as longas horas de trabalho.

Quando chegou, vinha pálido e cansado. A mãe olhou para ele, mas viu-o tão satisfeito que a sua preocupação desapareceu.

– Então, como é que foi? – perguntou ela.

– Foi tão engraçado, mãe – respondeu ele. – O trabalho não é nada pesado e eles foram muito bons para mim.

– E saíste-te bem?

– Claro... só dizem que a minha letra é péssima. Mas Mr. Pappleworth... o meu chefe... disse a Mr. Jordan que eu ia aprender. Estou na Espiral, mãe. Tem de ir lá ver. É tão bom...

Paul contou tudo à mãe, tudo o que tinha visto, pensado, todos os pormenores da experiência que vivera. A única coisa que escondeu dela foi o ter escrito «Mr. J. A. Bates Esquire». Isso, ele não queria que ela soubesse; sentia muita vergonha. Também não lhe relatou nada de mais desagradável que lhe tivessem dito, só as coisas boas, tentando fazê-la crer que estava feliz e era estimado, e que a vida lhe corria de feição... o que geralmente acontecia. Contou-lhe tudo, excepto as pequenas vergonhas ou ignomínias; jamais suportaria vê-la envergonhada ou vexada por sua causa.

Paul depressa aprendeu a gostar da Jordan. Mr. Pappleworth, que tinha um certo ar de frequentador de bares, tratava-o sempre com naturalidade, como se fossem amigos de longa data. Às vezes, o chefe da Espiral irritava-se, e então mastigava pastilhas elásticas sem parar. Mesmo assim, nunca era ofensivo, mas sim uma daquelas pessoas que se magoam mais a si próprias do que aos outros com a sua irritabilidade.

– Ainda não fizeste isso? – gritava ele. – Já vi que és um mês só com domingos.

E logo se punha de novo alegre e brincalhão, o que deixava Paul muito confuso.

– Amanhã trago a minha cadelinha Yorkshire terrier – disse ele a Paul, rejubilando.

– O que é isso de Yorkshire terrier?

– O quê? Pois tu não sabes o que é uma Yorkshire terrier?... Não saber o que é um Yorkshire! – Mr. Pappleworth estava pasmado.

– É um cãozinho de pêlo sedoso... em tons de ferrugem e prata oxidada?

– É isso mesmo, meu rapaz. A minha é uma pérola. Já teve cachorrinhos que me renderam cinco libras, e ela própria vale mais de sete libras: e não chega a pesar uma libra e meia...

No dia seguinte, a cadela veio com ele. Era dez réis de cão tremeliquento. Paul não lhe ligou nenhuma; a cadela mais parecia um trapo molhado sem esperança de secar. Nisto, um dos homens chamou-a e começou a dizer piadas grosseiras. Mas Mr. Pappleworth meneou a cabeça na direcção do rapaz e a conversa prosseguiu a meia-voz.

Mr. Jordan fez apenas mais uma excursão à Espiral, para inspeccionar o trabalho de Paul e o único reparo que lhe fez, ao ver o rapaz pousar a caneta no balcão, foi:

– Tens de pôr a caneta na orelha, se queres ser um caixeiro a sério. Vá, caneta na orelha!

Num outro dia, disse ao rapaz:

– Não endireitas mais esses ombros porquê? Ora vem cá. E levou-o ao gabinete envidraçado, onde lhe colocou uns suspensórios especiais para manterem os ombros direitos.

Mas Paul preferia a companhia das raparigas. Os homens pareciam-lhe grosseiros e pouco espertos. Simpatizava com todos eles, mas achava-os desinteressantes. Ao encontrar Paul a comer na cave, Polly, a supervisora baixinha e sirigaita do rés-do-chão, perguntou-lhe se ele não queria que ela lhe cozinhasse alguma coisa no seu fogareiro e, no dia seguinte, a mãe mandou-lhe uma refeição que podia ser aquecida. Ele levou-a à salinha limpa e aconchegada onde Polly trabalhava, e depressa adquiriu o hábito de almoçar com ela. Quando chegava ao trabalho, às oito da manhã, levava-lhe o cesto, e quando descia à uma hora, já o almoço estava pronto.

Paul era pálido, não muito alto, cabelo espesso e castanho, feições irregulares e uma boca rasgada, de lábios cheios. Ela parecia um passarinho, e ele até a tratava muitas vezes por pisco. Embora fosse geralmente muito calado, com ela passava horas sentado a conversar, a contar-lhe peripécias familiares. Todas as raparigas adoravam ouvi-lo; formavam muitas vezes um círculo à sua volta, enquanto ele discursava e ria, sentado num banco. Algumas consideravam-no um fulaninho curioso, tão sério e, no entanto, tão inteligente e bem-disposto, e sempre tão delicado no modo como as tratava. Todas gostavam dele e ele adorava-as. Com Polly era diferente; a essa, ele sentia que pertencia. Mas era Connie, com a sua farta cabeleira ruiva, a sua tez de flor de macieira, a voz sussurrada, e sempre tão distinta no seu vestido preto já gasto, que apelava ao seu lado romântico.

– Quando te sentas a enrolar a meada – disse ele – parece que estás a fiar na roca... é um quadro tão bonito. Faz-me lembrar a Elaine, dos Idílios do Rei. Se eu soubesse, desenhava-te. – Ela olhou para ele de relance, timidamente ruborizada. Mais tarde, havia um esboço de que ele muito gostava: Connie sentada num banquinho, em frente à roca, a longa crina ruiva flamejante sobre o vestido preto ruçado, e os lábios rubros selados e muito sérios, a passar o fio escarlate do novelo para a bobina.

Com Louie, bonita e atiradiça, que parecia estar sempre a provocá-lo com o menear das ancas, punha-se geralmente a brincar.

– O que estás a fazer?

– Porque queres saber? – respondeu ela, levantando a cabeça, atrevida.

– Porque acho que tu não te conheces.

– Porquê?

– Porque não tens ar de te conheceres.

– Então tenho cara de quê?

– Tens cara de quem está sempre a pensar nalguma coisa. Em que é que estavas a pensar?

Ela olhou-o pelo canto do olho e disse, com uma gargalhada:

– Isso era o que tu querias saber, não era?

– Sai daí – disse ele. – Vamos lá dar uma volta à tua meia.

E, depois, pegando na manivela da máquina, começou a rodá-la.

Mas ela empurrou-o.

– Isso vai ficar tudo mal – exclamou.

E ficaram os dois a olhar um para o outro, a rir às gargalhadas.

Emma era bastante feia, e não era nem nova nem condescendente. Sentia-se, porém, feliz por se mostrar condescendente com Paul. E ele não se importava.

– Como é que se metem as agulhas? – perguntou ele um dia.

– Sai daqui, não me maces.

– Mas eu devia saber como é que se metem as agulhas.

Ela continuou a coser à máquina, sem pestanejar.

– Há tantas coisas que devias saber – respondeu ela.

– Então ensina-me a colocar as agulhas na máquina.

– Ai, este rapaz sempre é muito maçador! ... Pronto, é assim que se faz...

Ele observou-a atentamente. Nisto, soou um apito, e a seguir Polly entrou e perguntou em voz bem audível:

– Paul, Mr. Pappleworth quer saber por quanto tempo vais ficar cá em baixo a brincar com as raparigas.

Paul correu pela escada acima, a gritar «Adeusinho!», e Emma endireitou-se na cadeira e explicou:

– Não fui eu que quis que ele estivesse a brincar com a máquina.

– Qu’é qu’andavas a fazer? – perguntou Mr. Pappleworth, quando o rapaz apareceu.

– Estava só a falar com a Emma, e a aprender a colocar as agulhas na máquina.

– O melhor é pegares no teu trabalho e mudares-te lá pra baixo.

– Mas aqui não havia nada de especial para fazer, pois não?

– Mal tu saíste daqui, o patrão veio à tua procura. Um dia sai-te caro! E então estes registos?

Paul meteu mãos à obra cheio de vontade.

Regra geral, quando as raparigas voltavam, às duas horas, ele ia ao andar de cima ter com Fanny, a corcunda, que trabalhava nos acabamentos.

Mr. Pappleworth só chegava às vinte para as três, e vinha encontrar muitas vezes o rapaz sentado ao lado de Fanny a conversar, a desenhar ou a cantar com as raparigas.

– Vem cá, Paul, meu querido – gritava a Fanny. – Até pensámos que hoje não vinhas cá acima. Pensávamos que ias ficar lá em baixo por não gostares da nossa companhia.

– Fui à cidade.

– Para quê, meu lindo?

– Para ver se encontrava uma cestinha de mirtilos para a minha mãe.

– E encontraste?

E, uma vez iniciada a conversa, nunca mais terminavam. Paul gostava muito de Fanny e a corcunda gostava muito dele. Ela tinha vinte e nove anos e sofrera muito. Ele gostava de ficar sentado ao lado dela, à janela, a olhar para a rua e a desenhar a bizarra floresta de chaminés e telhados antigos e bicudos que a vista alcançava. Depois dizia:

– Canta qualquer coisa, Fanny.

– Sabes que mais? Tu não queres que eu cante – dizia ela, manejando a agulha com destreza, com as mãos magras e nervosas. – Tu queres é fazer pouco de mim.

– Não quero nada! Mas é que eu disse à minha mãe que cantavas muito bem...

– Não sei o que é que a tua mãe ia pensar de mim, se me visse, Paul. Ia pensar que eu era um macaco encarrapitado num pau.

– Ela sabe como tu és, porque eu já lhe contei. E gosta de ti. Canta lá «Naquela Taberna...». Este desenho vai ficar uma maravilha.

E, passado um minuto de hesitação, Fanny começou a cantar. Tinha uma bela voz de contralto, e todas as raparigas cantaram em coro e muito afinadas. Paul não se sentia nada embaraçado por estar ali sentado no meio das mulheres.

Quando terminou, Fanny disse:

– Sei que estão a fazer troça de mim.

– Não sejas assim, Fanny! – exclamou uma das colegas.

Uma outra vez, falou-se no cabelo ruivo de Connie.

– Cá pra mim, acho o da Fanny mais bonito – disse Emma.

– Não precisas de fazer pouco de mim – disse Fanny, agastada.

– Mas ela tem o cabelo mesmo bonito, Paul.

– É uma cor especial – disse ele. – Aquela cor fria, como a terra, e mesmo assim brilhante... como um pântano.

– Santo Deus! – exclamou uma das raparigas, a rir.

– Estás a ver como só me criticam? – disse Fanny.

– E havias de o ver solto, Paul – gritou Emma, falando a sério. – É simplesmente uma beleza. Solta o cabelo pra ele ver, Fanny, pode ser que ele o queira pintar.

Fanny recusou-se, e, no entanto, era o que mais queria fazer.

– Então solto-lho eu – disse o rapaz.

– Bem, já que insistes – disse Fanny.

Paul tirou os ganchos do carrapito com todo o cuidado, e a longa cabeleira, num tom castanho-escuro uniforme, caiu sobre a corcunda.

– Que maravilha! – exclamou ele.

As raparigas observavam-no. Reinava o silêncio. O jovem soltou-lhe mais o cabelo.

– É esplêndido – disse, sentindo-lhe o perfume. – Aposto que vale muitas libras.

– Deixo-to quando morrer – disse Fanny, em tom de brincadeira.

– Pareces-te com qualquer de nós, sentada a secar o cabelo – disse uma das raparigas à colega corcunda e pernalta.

A pobre da Fanny era morbidamente susceptível, em tudo adivinhando insultos, ao passo que Polly era directa e factual. As duas secções estavam permanentemente em guerra, e Paul vinha constantemente encontrar Fanny lavada em lágrimas. Fanny contava-lhe todas as suas mágoas, e ele, depois, ia defendê-la junto de Polly.

A filha de Mr. Jordan era pintora. Um dos seus modelos era Connie, que lhe falou de Paul. Primeiro, Miss Jordan pediu para ver alguns dos seus desenhos, e, a seguir, veio ela própria falar com ele. Era uma mulher fria e impessoal, mas mostrou algum interesse pelo rapaz.

E assim foi correndo o tempo, em harmonia. A fábrica tinha um ambiente agradável. Ninguém era empurrado ou pressionado. Paul até gostava quando o trabalho acelerava perto da hora do correio e todos se entreajudavam. Gostava de ver os colegas em acção. O homem era o trabalho e o trabalho era o homem, unidos num só. Com as raparigas era diferente. A verdadeira mulher parecia nunca estar ali presente no trabalho – era como se estivesse de fora, à espera.

Da janela do comboio, quando à noite regressava a casa, observava as luzes da cidade povoando as colinas e fundindo-se nos vales com um clarão ardente. E Paul sentia-se rico de experiência e felicidade. Mais adiante, havia uma mancha de luz em Bulwell, como miríades de pétalas caídas das estrelas sobre a terra; e, mais além, o jorro incandescente das fornalhas, projectando nas nuvens o seu sopro abrasador.

Chegado a Keston, ainda tinha de andar mais de duas milhas até casa, subindo duas colinas mais longas e descendo outras duas mais curtas. Sentindo-se muitas vezes cansado, ia contando os candeeiros à medida que subia, para ver quantos ainda faltavam. E, do alto da colina, nas noites de breu, via as aldeias espalhadas a toda a volta, a cinco ou seis milhas de distância, enxameando a noite de vida e luz, quase como um céu aberto a seus pés. Marlpool e Heanor semeavam de cintilações a escuridão mais longínqua. Uma vez por outra, o negro vale que se interpunha lá em baixo, era riscado, violado por um interminável comboio que rolava célere para sul, em direcção a Londres, ou rumo ao norte, para a Escócia. Os comboios troavam como projécteis na escuridão, fumegantes e acesos, fazendo retinir o vale à sua passagem. Mas logo desapareciam, e as luzes das cidades e das aldeias cintilavam outra vez, mergulhadas no silêncio.

Chegava, por fim, à esquina da casa, virada para o outro lado da noite. O freixo parecia agora um amigo. A mãe vibrava de alegria vendo-o chegar. Ele depositava os oito xelins orgulhosamente sobre a mesa.

– Fazem-lhe jeito, mãe? – perguntava, ansioso.

– Não vai sobejar quase nada depois de descontar o bilhete, as refeições e tudo o mais.

Em seguida, punha-a ao corrente dos acontecimentos do dia. A história da sua vida, como nas Mil e Uma Noites, mas muito mais monótona, era contada à mãe noite após noite. E ela escutava e era quase como se a vida fosse dela.


VI

UMA MORTE NA FAMÍLIA

ARTHUR MOREL ia crescendo. Era um rapaz vivo, descuidado e impulsivo, muito parecido com o pai. Tinha horror aos estudos, resmungava sempre que tinha de trabalhar e escapava-se o mais depressa que podia, para voltar para a brincadeira.

Fisicamente, continuava a ser o menino bonito da família, bem constituído, gracioso, cheio de vida. O cabelo castanho-escuro, a frescura da tez e os olhos raros, de um azul profundo e sombreados de longas pestanas, a par dos seus modos generosos e temperamento fogoso, faziam dele o preferido. Mas, à medida que crescia, o temperamento ia-se tornando instável. Tinha acessos de fúria por tudo e por nada, e mostrava-se insuportavelmente violento e irritável.

A mãe, de quem tanto gostava, já começava a perder a paciência. Arthur só pensava em si próprio. Detestava tudo o que se interpusesse entre si e o seu prazer, mesmo quando esse «tudo» era a mãe. Mas, quando se metia em apuros, era com ela que tinha intermináveis desabafos.

– Meu Deus, rapaz – disse ela, quando ele se veio queixar de um professor que, segundo ele, o tomara de ponta – se não te agrada a situação, tens de a fazer mudar, e se não podes mudar nada, tens de te adaptar.

Quanto ao pai, que ele amara desmedidamente e que o idolatrava, acabou por detestá-lo. Com a idade, Morel transformou-se lentamente numa ruína viva. O seu corpo, em tempos belo nas formas e na agilidade, mirrou com os anos, não parecendo ter amadurecido, mas, pelo contrário, ter-se tornado insignificante e desprezível, emanando baixeza e mesquinhez. E sempre que este homem de meia-idade e olhar perverso o injuriava ou o tratava com prepotência, Arthur ficava furioso. Ainda por cima, os modos de Morel eram cada vez mais grosseiros, e os seus hábitos quase repugnantes. Na fase de crescimento dos filhos e durante o período crítico da adolescência, o pai surgia-lhes aos olhos da alma como um ser feio e irritante. Em casa, os seus modos eram idênticos aos que usava com os outros mineiros no fundo da mina.

– Monstro nojento! – gritava Arthur, saltando da cadeira e saindo de casa, quando o pai o enojava.

E Morel fazia ainda pior, por saber que as crianças o detestavam. Parecia sentir prazer em afrontá-las, a ponto de quase as enlouquecer, quando, aos catorze ou quinze anos, atravessavam a fase de extrema sensibilidade e irritabilidade. Assim, Arthur, que cresceu quando o pai já se encontrava em declínio e a caminho da velhice, odiava-o acima de tudo.

Por vezes, o pai parecia pressentir todo esse ódio e desprezo que os filhos tinham por ele.

– Não há homem que se sacrifique mais pela família – bordava então. – Faz por eles tudo o que pode, e tratam-no como um cão. Mas eu tenho força para aguentar, estão a ouvir!

Não fora o tom ameaçador e o facto de não fazer por eles tanto quanto pensava, e teriam até sentido pena. Nesta altura, a guerra instalava-se quase sempre entre pai e filhos, com o primeiro persistindo nos seus modos grosseiros só para afirmar a sua autoridade. Os filhos detestavam-no.

Por fim, Arthur já andava tão exaltado e irritado que, quando ganhou uma bolsa para ir para a escola secundária de Nottingham, a mãe achou por bem deixá-lo ficar a viver na cidade com uma das suas irmãs, vindo apenas a casa aos fins-de-semana.

Annie ainda era professora estagiária na escola primária, onde ganhava quatro xelins por semana. Mas em breve seriam quinze, uma vez que passara o exame final, o que traria à família tranquilidade financeira.

Mrs. Morel era muito agarrada a Paul. Ele era calado e não excessivamente inteligente, mas continuava fiel à pintura e à mãe. Tudo o que fazia era para ela. E ela esperava pela sua chegada à noitinha, para desabafar com ele todos os seus pensamentos, tudo o que lhe acontecera durante o dia. E ele ouvia-a, sentado e atento. Era o partilhar de duas vidas.

William estava noivo da tal morena, e tinha-lhe comprado um anel de noivado que custara oito guinéus. Os irmãos ficaram sem fôlego perante soma tão fabulosa.

– Oito guinéus! – disse Morel. – Bem parvo é!... Ficava-lhe melhor se me tivesse dado antes algum a mim.

– Dar-te algum, a ti! – exclamou Mrs. Morel. – Porque havia ele de te dar algum?

Mrs. Morel lembrou-se de que o marido não lhe tinha comprado anel de noivado e, a seu ver, antes ser como o William, que não era mesquinho, embora pudesse ser parvo. Mas agora o jovem só falava nos bailes a que tinha ido com a noiva e nos vestidos deslumbrantes que ela usava; ou então contava à mãe, rejubilante, como tinham os dois ido ao teatro em grande estilo.

William queria trazer a namorada para os pais conhecerem, e Mrs. Morel disse-lhe que a trouxesse no Natal. Desta vez, William chegou acompanhado de uma senhora, mas sem presentes. Mrs. Morel tinha preparado a ceia. Ao ouvir passos, levantou-se e foi à porta. William entrou.

– Olá, mãe! – deu-lhe um beijo apressado, chegou-se para o lado e apresentou-lhe uma rapariga alta e bonita, vestida com um saia-e-casaco preto e branco aos quadradinhos e uma estola de peles.

– Cá está a Ciganita!

Miss Western estendeu a mão e rasgou um sorriso de muitos dentes.

– Oh, como está, Mrs. Morel! – exclamou.

– Devem estar com fome – disse Mrs. Morel.

– Não, não estamos. Jantámos no comboio... Tens as minhas luvas, Fofinho?

William Morel, alto e ossudo, olhou para ela acto contínuo.

– Como é que havia de tê-las? – disse ele.

– Então perdia-as. Não te zangues comigo...

Viu-se que ele tinha ficado aborrecido, mas não disse nada. Ela relanceou o olhar pela cozinha. Achou-a pequena e bizarra, com o ramo de azevinho pendurado na parede e as sempre-vivas por detrás das fotografias, as cadeiras de madeira e a mesinha de jogo. Nessa altura, entrou Morel.

– Olá, pai!

– Olá, meu filho... Mas que surpresa!

Apertaram as mãos, e William apresentou-lhe a senhora. Ela reeditou o sorriso, mostrando os dentes.

– Como está, Mr. Morel. – Morel inclinou-se respeitosamente.

– Tou bem, obrigado, e espero que também esteja... Seja muito bem-vinda.

– Ah, obrigada – respondeu ela, bastante divertida.

– Há-de querer ir para cima – disse Mrs. Morel.

– Se não se importa... mas só se não a incomodar.

– Não incomoda nada... A Annie vai consigo... Walter, leva este baú para cima.

– E não leves uma hora a aperaltar-te – disse William para a noiva.

Annie pegou num candelabro de latão e, muda de vergonha, subiu à frente da jovem até ao quarto principal, que Mr. e Mrs. Morel lhe tinham cedido. Era também pequeno e frio, iluminado apenas pelas velas. As mulheres dos mineiros só acendiam as lareiras nos quartos em caso de doença muito grave.

– Quer que desaperte as correias do baú?

– Ah, muito obrigada!

Annie estava a fazer o papel de criada. Em seguida voltou para baixo para ir buscar água quente.

– Ela deve estar muito cansada, mãe – disse William. – É uma viagem muito violenta, e na correria em que andámos...

– Queres que lhe leve alguma coisa? – perguntou Mrs. Morel.

– Não, não... Ela está bem.

Mas havia um certo gelo no ar. Passada mais de meia hora, Miss Western desceu, envergando um vestido em tons de púrpura, demasiado fino para a cozinha do mineiro.

– Tinha-te dito que não precisavas de trocar de roupa – disse William.

– Deixa lá, Fofinho!... – E, mantendo o sorriso adocicado, voltou-se para Mrs. Morel: – Não acha que ele está sempre a resmungar, Mrs. Morel?

– Ah, está? – disse Mrs. Morel. – Isso é muito feio.

– E é mesmo!

– Deve estar com frio – disse a mãe. – Não quer vir para a la-reira? – Morel saiu imediatamente da cadeira de braços.

– Venha pr’àqui – exclamou ele. – Venha pr’àqui.

– Não, pai... Não saia da sua cadeira... senta-te no sofá, Ciganita – disse William.

– Não senhor! – insistiu Morel. – Esta cadeira é mais quente. Venha sentar-se aqui, Miss Wesson.

– Muitíssimo obrigada – disse a rapariga, sentando-se na cadeira de braços do mineiro, ou seja, o lugar de honra. Teve uma tremura ao sentir o calor da cozinha invadi-la.

– Vai buscar-me um lenço, Fofinho! – disse ela, fazendo beicinho e dirigindo-se-lhe no tom íntimo de quando estavam sozinhos, o que fez os restantes membros da família sentirem-se como intrusos. Era evidente que a jovem não os considerava como pessoas: para ela não passavam de criaturas. William estremeceu.

Se aquela casa fosse em Streatham, Miss Western seria a senhora, condescendendo a conviver com a camada inferior. Para ela, estas pessoas eram no mínimo grotescas – numa palavra, da classe trabalhadora. Como poderia ela adaptar-se?

– Eu vou – disse Annie.

Miss Western ignorou-a, como teria feito com uma criada, e só quando ela voltou para baixo com o lenço disse então, com afabilidade:

– Oh, muito obrigada.

Depois, desatou a falar: do jantar no comboio, que não tinha prestado para nada, de Londres, dos bailes. Via-se que estava muito nervosa e era o medo que a fazia falar. Morel, sentado a fumar um tabaco muito forte, observava-a enquanto lançava baforadas de fumo para o ar e ouvia com atenção a sua petulante algaraviada londrina. Mrs. Morel, ostentando a sua melhor blusa de seda preta, ia-lhe respondendo com calma e poucas palavras. Os outros filhos estavam sentados, em admirativo silêncio. Miss Western era a princesa. Tinham ido buscar tudo o que havia de melhor para a servir: as melhores chávenas, as melhores colheres, a melhor toalha, o melhor bule. As crianças achavam que ela devia estar a apreciar muito o acolhimento. Mas ela sentia-se mal, por não entender as pessoas, por não saber como tratá-las. William ia dizendo piadas, sentindo-se ligeiramente comprometido.

Por volta das dez horas, disse-lhe:

– Não estás cansada, Ciganita?

– Muito, Fofinho – respondeu ela, com voz melada e inclinando a cabeça ligeiramente para o lado.

– Acendo a vela, mãe? – disse ele.

– À vontade – respondeu a mãe.

Miss Western levantou-se e estendeu a mão a Mrs. Morel.

– Boa noite, Mrs. Morel – disse ela.

Paul, sentado em frente da caldeira, deixou jorrar a água da torneira para dentro de uma garrafa de cerveja em grés. Annie abafou a garrafa numa velha camisola da mina, e deu à mãe um beijo de boas-noites. Com a casa cheia, ia ter de dormir com a senhora.

– Espera um bocadinho – disse Mrs. Morel à filha. Annie sentou-se com a botija ao colo. Miss Western despediu-se de todos com um aperto de mão, para grande atrapalhação dos presentes, e saiu, precedida por William. Passados cinco minutos, ele voltou para baixo. Sentia o coração oprimido, sem saber porquê. Falou muito pouco até todos se terem ido deitar, excepto ele e a mãe. Depois, foi pôr-se de pé frente à lareira, de pernas afastadas como costumava fazer noutros tempos, e disse, titubeante:

– Então, mãe?

– Então o quê, meu filho?

A mãe sentou-se na cadeira de baloiço. Sentia-se de certo modo ferida e humilhada por causa dele.

– Gosta dela?

– Gosto – tardou a resposta.

– Ela ainda está pouco à vontade, mãe... não está acostumada a tudo isto. É muito diferente da casa da tia dela, sabe.

– Claro que é, meu filho... Deve ser difícil para ela.

– Pois é. – E, de repente, a expressão carregou-se-lhe. – Se ao menos ela não pusesse aqueles benditos ares!

– É só a primeira reacção, meu filho. Aquilo passa-lhe.

– Tem razão, mãe – respondeu ele, gratificado. Mas o olhar continuava triste. – Sabe, ela não é como a mãe... não é compenetrada... e não se cansa muito a pensar.

– Ela é muito nova, meu filho.

– É isso!... E não teve sorte nenhuma. A mãe morreu quando ela era criança, e desde então vive com uma tia que ela já não consegue aturar. E o pai era um patife... Faltou-lhe o amor.

– Sério?!... Bem, nesse caso tens de a compensar de tudo isso.

– E perdoar-lhe muitas coisas.

– Que coisas é que tens de lhe perdoar, meu filho?

– Sei lá... quando ela se mostra superficial, por exemplo... É preciso lembrarmo-nos de que ela nunca teve ninguém que fizesse desabrochar o seu lado mais profundo... E ela gosta tremendamente de mim.

– Isso qualquer pessoa pode ver.

– Mas, sabe uma coisa, mãe... ela... ela é diferente de nós. As pessoas como ela, aquelas com quem se dá... não parecem ter os mesmos princípios que nós.

– Não deves fazer juízos precipitados – disse Mrs. Morel. Mas ele parecia contrafeito.

De manhã, contudo, levantou-se e pôs-se a cantar pela casa toda.

– Olá! – chamou ele, saudando-a do fundo das escadas, onde estava sentado. – Já te estás a levantar?

– Já – respondeu ela lá de cima, com voz sumida.

– Feliz Natal! – gritou ele.

No quarto, ouviu-se o riso dela, bonito e musical. Mas ela só desceu meia hora depois.

– Ela estava mesmo a levantar-se, quando disse? – perguntou William a Annie.

– Estava, sim – respondeu Annie.

William aguardou uns instantes e voltou para as escadas.

– Feliz Ano Novo! – gritou ele.

– Obrigada, Fofinho do meu coração! – disse uma voz risonha, de muito longe.

– Despacha-te! – implorou ele.

Tinha passado quase uma hora, e ele à espera dela. Morel, que se levantava sempre antes das seis, olhou para o relógio.

– Bem, já vi qu’é das que s’atrasam! – exclamou.

Já todos tinham tomado o pequeno-almoço, excepto William, que se foi postar ao fundo das escadas.

– Será que vou ter de mandar aí para cima um ovo de Páscoa? – gritou ele, já zangado. Ela limitou-se a rir. A família esperava algo de mágico depois de tão longa preparação. Finalmente, ela apareceu, com uma saia e uma blusa que lhe ficavam muito bem.

– Levaste mesmo todo este tempo para te vestires? – perguntou ele.

– Oh, Fofinho!... Isso não é pergunta que se faça, pois não, Mrs. Morel?

A princípio, ela representou o papel da grande dama. Quando entrou na capela ao lado de William, ele de fraque e chapéu de seda, e ela de estola de peles e saia-casaco dos melhores costureiros de Londres, Paul, Arthur e Annie esperavam que todos se curvassem até ao chão, em êxtase. E Morel, observando o parzinho galante do fundo da rua, com o seu fato domingueiro, sentia-se o pai do príncipe e da princesa.

Porém, a dama não era assim tão grande. Trabalhava desde há um ano como uma espécie de secretária, ou escriturária, num escritório de Londres.

Mas enquanto esteve com os Morels parecia uma rainha: sentava-se à mesa e deixava que Annie e Paul a servissem, como se fossem seus criados. Tratava Mrs. Morel com alguma petulância e Morel com paternalismo. Mas, passados um ou dois dias, a sua atitude começou a mudar.

William pedia sempre a Paul ou Annie que os acompanhassem nos passeios que davam. Era muito mais divertido. E Paul sentia real admiração pela Cigana, uma admiração genuína. Na verdade, a mãe não podia perdoar ao filho a adoração que mostrava pela jovem.

No segundo dia, quando Lily disse:

– Annie, sabes por acaso onde terei deixado o meu regalo? William respondeu:

– Sabes muito bem que está no teu quarto. Para que perguntas à Annie?

E Lily lá foi ao quarto, amuada, de lábios crispados. O rapaz já não suportava vê-la fazer da irmã uma criada.

Na terceira noite, William e Lily foram sentar-se na sala, às escuras, frente à lareira. Quando era um quarto para as onze, ouviram Mrs. Morel a abafar o borralho. William veio para a cozinha, seguido da namorada.

– Já é assim tão tarde, mãe? – disse ele. A mãe tinha passado a noite sozinha.

– Não quer dizer que seja tarde, meu filho... mas é tarde para eu continuar a pé.

– Então, porque não se vai deitar? – perguntou ele.

– E deixar os dois aqui sozinhos?... Não, meu filho, isso eu não faço.

– A mãe não tem confiança em nós?

– Tenha ou não tenha, é a mesma coisa... Podem ficar aqui até às onze horas, se quiserem, e eu leio mais um bocadinho.

– Vai deitar-te, Ciganita – disse William. – Não podemos fazer esperar a minha mãe.

– A Annie deixou a vela acesa, Lily – disse Mrs. Morel. – Acho que a luz será suficiente.

– Claro, obrigada. Boa noite, Mrs. Morel.

William acompanhou a namorada até ao fundo das escadas, deu-lhe um beijo e ela foi para o quarto. Ele voltou para a cozinha.

– Não tem confiança em nós, mãe? – insistiu ele, todo ofendido.

– Meu filho, já te disse que eu não vou deixar dois pombinhos como vocês sozinhos cá em baixo, com toda a gente a dormir.

E o filho não teve outro remédio senão contentar-se com a resposta. Deu um beijo à mãe e foi deitar-se.

Na Páscoa, chegou sozinho. Depois, falou longamente com a mãe sobre a namorada.

– Sabe, mãe... quando estou longe dela, nem penso nela... se não voltasse a vê-la, era a mesma coisa. Mas, quando estou com ela, à noite, gosto muito dela.

– É um amor muito estranho para acabar em casamento – disse Mrs. Morel. – Se é só isso que ela representa para ti!

– É engraçado! – exclamou William, entre o preocupado e o perplexo. – E, no entanto... Há demasiadas coisas entre nós, para eu desistir dela agora.

– Tu lá sabes – disse Mrs. Morel. – Mas, se é como dizes, eu não lhe chamaria amor... pelo menos, não parece.

– Não sei, mãe. Ela é órfã, e...

Acabaram por não chegar a uma conclusão. Ele parecia confuso e aborrecido. Ela era muito reservada. Ele gastava todas as suas energias e dinheiro com esta rapariga. Quando veio a casa, mal tinha dinheiro para levar a mãe a Nottingham.

O salário de Paul, para grande alegria sua, tinha sido aumentado no Natal para dez xelins. O rapaz continuava muito satisfeito najordan, mas a sua saúde começou a ressentir-se do pesado horário de trabalho e das condições de isolamento. A mãe, para quem ele era cada vez mais importante, pensou em como poderia ajudá-lo.

A tarde de folga dele era à segunda-feira. Numa segunda-feira, em Maio, quando estavam os dois sozinhos a tomar o pequeno-almoço, ela disse:

– Acho que vamos ter um lindo dia.

Ele olhou-a surpreendido. Alguma coisa ela tinha para lhe dizer.

– Sabias que Mr. Leivers foi morar para uma quinta nova? Pois bem, ele convidou-me a semana passada para ir fazer uma visita a Mrs. Leivers, e eu prometi-lhe que te levava lá hoje, se estivesse bom tempo. Então, vamos?

– Oh, mãezinha, mas isso é óptimo! – exclamou Paul. – Vamos esta tarde, não é?

– Se não estiveres muito cansado... olha que é uma grande caminhada.

– A que distância fica?

– Quatro milhas.

– Ora... não sou eu que me canso por fazer quatro milhas... é a mãe. Acha que consegue?

– Claro que consigo.

– Que bom!... Que bom! – exclamou ele. – Vou voltar a correr para casa. E a quinta é bonita?

– Ele diz que sim... Tu logo dirás.

– Eu não conheço Mrs. Leivers, mãe. Conhece-a?

– Então não conheces... uma mulherzinha macambúzia, com uns grandes olhos castanhos, que se costumava sentar à nossa frente na capela.

– Não me lembro.

– Julgava que pelo menos te lembrasses do chapéu, mesmo que não te lembrasses de mais nada... usa sempre o mesmo chapéu desde há seis anos, desde que a conheço: um quico preto com um farrapo de renda prantado no cucuruto, às três pancadas. Quando a via com o chapéu no alto da cabeça, domingo atrás de domingo, sempre com o mesmo chapéu, só me apetecia ir lá tirar-lho. E o marido é tão elegante e bem-parecido.

– Se calhar, era pobre – alvitrou Paul.

– E que fosse! Sei que não estava pior do que eu. Só que tinha a mania de não comprar nada novo, dava-lhe para ali.

– E ao menos é simpática?

– É. Eu sempre gostei dela... mas ela não consegue andar à altura do homem que tem... Só o orgulho consegue uma coisa dessas, nada mais.

– Porquê?

– Ora bem, ela é uma mulher pequenina, delicada, fina, com uns grandes olhos castanhos... cheios de sentimento. E eu sei que tem passado muito com sete filhos e o pouco que o Alfred Leivers lhe dá. Acho que ele não gosta muito de trabalhos pesados... e daí, talvez... Mas assim, como a vida lhe correu mal e chegou ao estado a que chegou, é orgulhosa de mais para competir com as outras mulheres e agarra-se a um trapo antigo... mas é uma mulher bonita.

– E orgulhosa, mãe?

– Não... Com as outras pessoas, não. Mas consigo mesma não podia ser mais. A pobreza e a vida triste que leva corroem-lhe a alma e ela agarra-se àquela chapeleta preta, para troçar da sua própria pobreza... ou do marido... Só Deus sabe... Mas tu vais gostar dela. Eu gosto dela.

– Bem – disse Paul –, se vamos visitá-la à quinta, não vai estar de chapéu.

– Esperemos que não – disse Mrs. Morel. – É um escândalo e uma vergonha sobrecarregar um corpo frágil como o dela daquela maneira, mas também não precisava de andar naquela figura, por despeito. Faço ideia de como ele se deve sentir!...

Paul saiu à pressa para a estação, rejubilante. Em Derby Road, havia uma cerejeira a cintilar. O velho muro de tijolo junto ao pátio do Statutes brilhava em tons de escarlate, incandescentes, e a Primavera era uma labareda verde. A estrada íngreme estendia-se esplêndida, coberta da fria poeira matinal em alternâncias de sol e sombra, absolutamente estática. As árvores, orgulhosas, deixavam pender abaulados os ombros verdes e possantes. Durante toda a manhã, de dentro do armazém, o rapaz foi brindado com um quadro de Primavera.

Quando voltou para casa, a mãe estava excitadíssima.

– Sempre vamos? – perguntou ele.

– É só o tempo de me arranjar – respondeu ela.

– Conseguiu acabar o trabalho?

– Consegui.

Paul sentou-se à mesa, à espera do almoço. Ela trouxe-lhe a frigideira.

– Para que se foi meter a fazer sonhos de ruibarbo se tinha tão pouco tempo?

– Porque me apeteceu – disse a mãe. – E estou pronta quando tu estiveres.

Tinha feito os sonhos porque, durante a semana, o filho só vinha almoçar a casa neste dia, e gostava muito de sonhos.

– Não senhora... saia daqui. Quem faz isso sou eu.

Paul levantou-se e tentou tirar-lhe a frigideira da mão.

– Nem pensar nisso! – disse ela, agitando o garfo. – Temos muito tempo.

Ele voltou para a mesa, cabisbaixo, e ela continuou com os cozinhados.

– São mesmo coisas de mulher – disse ele. – Às voltas com a frigideira, quando devia estar a vestir-se para sair.

– São é mesmo coisas de rapazes, julgam que já sabem tudo – disse ela, colocando a sobremesa diante dele.

– E esteve a apanhar esse calor todo na cara – disse o filho. – Já sabe que quando lá chegar, vai ter a cara vermelha como o sol nascente.

– Se tiver, não sou eu que te vou pedir para olhares para mim.

– E, mesmo que pedisse, eu não olhava – respondeu ele.

– Ingrato!

– Afogueada!

Ela fungou e empertigou-se daquela maneira a que ele chamava «esticar-se à tartaruga».

– Já se lavou? – perguntou ele.

– Já.

– Pois olhe, não parece, tem o nariz enfarruscado, como de costume.

Ela foi ver-se ao espelho.

– Que maçada! – exclamou.

Ele levantou-se.

– Vá-se vestir, que eu lavo a loiça – disse Paul.

Ela obedeceu. Ele lavou as panelas, endireitou as costas e pegou nas botas dela. Estavam muito limpas. Mrs. Morel era daquelas pessoas naturalmente dotadas que são capazes de andar na lama sem sujarem os sapatos. Mas Paul quis limpar-lhas, mesmo assim. Eram botas de criança, das de oito xelins o par. No entanto, para ele, eram as botas mais chiques do mundo, e limpava-as com tanta reverência como se fossem flores.

Subitamente, ela apareceu à porta, muito tímida. Trazia uma blusa nova. Paul deu um salto em frente.

– Ena pá! – exclamou ele. – Que espalhafato!

Ela inspirou ligeiramente, altiva, de cabeça bem erguida.

– Não é espalhafato nenhum! – retorquiu ela. – É até bem recatada.

Mrs. Morel deu um passo em frente e o filho mirou-a de todos os lados.

– Então – perguntou ela, envergonhada, mas mostrando-se segura e arrogante. – Gostas?

– É um espanto! Vou gostar de levar uma mulher tão bonita a passear!

Contornou-a e mirou-a pelas costas.

– Muito bem! – disse ele. – Se fosse na rua atrás de si, havia de dizer: – Mas que bem vestida que aquela senhorinha vai.

Ela fungou de satisfação, como era seu hábito, mas a fazer-se desentendida.

– Sabes – disse ela –, só me custou três xelins. Por este preço não a podia comprar feita, pois não?

– Acho que não – respondeu o filho.

– E o tecido é de muito boa qualidade.

– Tremendamente bonita! – disse ele.

A blusa era branca, com raminhos púrpura e pretos.

– Demasiado jovem para a minha idade, não achas?

– Essa agora, demasiado jovem para si? – exclamou Paul, agastado. – Já agora, porque não compra uma peruca branca para pôr no alto da cabeça?

– Daqui a pouco já não é preciso – respondeu ela. – Estou aqui, estou com a cabeça toda branca.

– Pois faça favor de não estar – disse ele. – Para que quero eu uma mãe de cabelo branco?

– Pois olha que vais ter de te contentar, meu menino – disse ela, com uma entoação bastante estranha.

Saíram de casa em grande estilo, ela com a sombrinha que William lhe tinha dado, para se proteger do sol. Paul era consideravelmente mais alto do que ela, embora não fosse muito grande. O rapaz ia todo cheio de si.

Na terra lavrada, as espigas tenras brilhavam como seda. A mina de Minton desfraldava os seus penachos de vapor branco, acompanhados de roncos e roucas tossidelas.


– Olha para aquilo! – disse Mrs. Morel. Mãe e filho pararam na estrada, a ver. Ao longo da crista do grande monte da mina, desenhava-se em contraluz um pequeno grupo a avançar mansamente – um cavalo, uma carrocinha e um homem. Trepavam a encosta em direcção ao céu: ao chegarem ao cimo, o homem voltou a carroça e, com injustificado estrépito, a escória rolou pela vertente abrupta do aterro.

– Sente-se um bocadinho, mãe – disse Paul, e ela sentou-se na rocha, enquanto ele desenhava a cena rapidamente. Mrs. Morel manteve-se em silêncio enquanto o filho trabalhava, entretida a admirar a tarde e o casario vermelho a cintilar entre o verde da paisagem.

– O mundo é um lugar maravilhoso – disse ela. – E maravilhosamente belo.

– E a mina também – disse ele. – Veja como cresce, como se estivesse viva... é como uma criatura gigantesca que nós não conhecemos.

– É – disse ela. – Talvez!

– E os vagões parados, à espera, como animais em correnteza à espera da ração – disse ele.

– E eu bem contente fico de os ver aí à espera – disse a mãe. – Quer dizer que a semana vai ser boa.

– Eu gosto de sentir a mão do homem nas coisas; é sinal de vida. Nos vagões sente-se o dedo do homem, porque são mãos de homens que os conduzem.

– Pois é – disse Mrs. Morel.

Continuaram a caminhada à sombra das árvores, pela estrada principal. Ele ia explicando tudo e ela mostrava-se interessada. Passaram pelo extremo do lago Nethermere, que embalava no colo docemente, como pétalas, os reflexos do sol. Depois viraram para uma estrada particular e, com emoção crescente, aproximaram-se de uma grande quinta. Um cão desatou a ladrar furiosamente. Apareceu uma mulher, a ver quem era.

– É este o caminho para Willey Farm? – perguntou Mrs. Morel.

Paul deixou-se ficar atrás da mãe, apavorado com a ideia de serem escorraçados. Mas a mulher era prestável e indicou-lhes o caminho. Mãe e filho meteram pelo meio do trigo e da aveia, atravessaram uma pequena ponte e chegaram a um prado em pousio. Os abibes, com os seus peitos brancos reluzentes, gritavam e volteavam em redor. O lago estava estático e azul. No céu, planava uma garça. Em frente, o bosque subia denso pela encosta, verde e estático.

– É uma estrada florestal, mãe – disse Paul. – Tal e qual como no Canadá.

– Lindo, não é? – disse Mrs. Morel, olhando em volta.

– Está a ver aquela garça... está a ver... as pernas dela?

Era ele que dizia à mãe para onde devia, ou não, olhar. Mas ela gostava assim.

– E agora – disse ela – para que lado é?... Ela disse-me para atravessar o bosque. – O bosque, cerrado e sombrio, estendia-se para a esquerda.

– Sinto que aqui há um caminho – disse Paul. – A mãe tem pés de citadina; seja lá como for, mas tem.

Encontraram uma cancela e entraram numa larga vereda arborizada, com um maciço de cedros e pinheiros de um dos lados e uns quantos carvalhos decrépitos do outro a descerem pela encosta. E, entre os carvalhos, as campainhas-do-monte espraiavam-se em mancha azul sob as aveleiras ainda verdes e um manto esmorecido de folhas amareladas de carvalho. Paul apanhou flores para dar à mãe.

– Está aqui um pouco de feno acabado de chegar – disse ele, e desta vez trouxe-lhe miosótis. E de novo o coração lhe doía de tanto amor, vendo a mão dela, calejada do trabalho, pegar no raminho que ele lhe dera. Ela estava completamente feliz.

No fim da vereda era preciso saltar uma cerca. Paul passou num instante.

– Venha – disse ele –, eu ajudo-a.

– Não... sai daí. Prefiro passar à minha maneira. Ele ficou do outro lado, com as mãos no ar, pronto para a ajudar. Ela trepou com todas as cautelas.

– Mas que maneira de trepar! – exclamou Paul, trocista, quando a mãe já estava a salvo no chão.

– Malditas cercas! – bradou ela.

– Só se uma mulher for muito desajeitada – replicou ele – é que não consegue passá-las.

Em frente, ao longo da orla do bosque, estendia-se um aglomerado de casas de lavoura, baixas e vermelhas. Estugaram o passo. Pegado ao bosque havia um pomar de macieiras cujas flores caíam sobre uma mó. Em baixo era a lagoa, sob os ramos pendentes dos carvalhos. Havia vacas a usufruir da sombra. A quinta e as casas, formando três lados de um quadrilátero, abraçavam o sol viradas para o bosque. Tudo estava em silêncio.

Mãe e filho entraram no pequeno jardim cercado de grades onde pairava um perfume a cravos vermelhos. Junto à porta entreaberta viam-se alguns pães enfarinhados, deixados a arrefecer. Uma galinha aproximou-se para os debicar. De repente, assomou-se à porta uma rapariga com um avental muito sujo. Devia andar pelos catorze anos, tinha as faces morenas e rosadas, um tufo de pequenos caracóis negros muito apertados a cairem livremente, e os olhos castanhos. Parecia tímida e curiosa, com alguma desconfiança dos estranhos. A rapariga voltou a desaparecer. Logo a seguir, surgiu uma outra figura, uma mulher pequenina e frágil, rosada e com grandes olhos castanhos.

– Oh! – exclamou ela, rasgando um sorriso cintilante. – Sempre veio. Gosto muito de a ver por cá. – A voz da mulher era afável e muito triste.

As duas mulheres apertaram a mão.

– Tem a certeza de que não viemos incomodar? – disse Mrs. Morel. – Sei bem como é a vida do campo.

– De maneira nenhuma. Até é uma bênção ver caras novas. Estamos aqui tão isolados.

– Pois devem estar... – disse Mrs. Morel.

Levaram-nos até à sala, uma divisão comprida e de tectos baixos, com um grande ramo de rosas amarelas a enfeitar a lareira. As mulheres sentaram-se a conversar, enquanto Paul foi dar uma volta pela quinta. Estava no jardim a cheirar os cravos e a olhar para as plantas, quando a rapariga saiu a correr e se foi pôr junto do monte de carvão encostado à cerca.

– Creio que estas vão ser rosinhas de toucar, quando abrirem – disse ele, apontando para as roseiras ao longo da cerca. Ela olhou para ele com os grandes olhos castanhos, muito espantados, muito abertos.

– Não sei – respondeu, hesitante. – São brancas e têm o olho cor-de-rosa.

– Então são «rubores de donzela».

Miriam corou – uma cor cálida, bonita.

– Não sei – disse ela.

– Não tens grande coisa no jardim – disse ele.

– É o primeiro ano que aqui passamos – respondeu ela, com modos distantes e superiores, afastando-se e entrando em casa. Paul não ligou e continuou a exploração. A mãe veio ter com ele e deram a volta aos edifícios. Paul estava deliciado.

– Suponho que ainda tenha de ir tratar das galinhas, das vitelas e dos porcos? – disse Mrs. Morel a Mrs. Leivers.

– Não – retorquiu a mulherzinha. – Não consigo arranjar tempo para tratar do gado, e, além disso, não estou habituada. O trabalho de casa já me chega.

– Sim, suponho que sim – disse Mrs. Morel.

Daí a pouco, a rapariga veio cá fora.

– O chá está pronto, mãe – disse, com uma voz suave, musical.

– Ah, obrigada, Miriam, já vamos – respondeu a mãe, toda ela amabilidade. – Podemos ir tomar o nosso chá agora, Mrs. Morel?

– Claro – disse Mrs. Morel. – Logo que estiver pronto.

Paul, a mãe e Mrs. Leivers tomaram chá juntos. Depois foram passear pelo bosque, inundado de campainhas-do-monte, enquanto os carreiros estavam reservados aos miosótis. Mãe e filho caminhavam os dois em êxtase.

Quando voltaram, Mr. Leivers e Edgar, o filho mais velho, estavam na cozinha. Edgar devia ter dezoito anos. Depois, chegaram da escola Geoffrey e Maurice, dois rapagões de doze e treze anos. Mr. Leivers era um homem bem-parecido, na força da vida, de bigode castanho-dourado e olhos azuis sempre assestados, a perscrutar o tempo.

– Foram dar uma volta? – perguntou ele a Paul, com entusiasmo.

– Não deu para ver tudo – respondeu o rapaz, saindo em seguida com Geoffrey e Maurice.

– Onde é que tu trabalhas? – perguntou Geoffrey. Eram os três muito tímidos.

– Na Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan, em Nottingham.

– E que fazes?

– Sou empregado de escritório.

– E fazes o quê?

– Copio cartas, faço encomendas e passo facturas.

– Que tipo de cartas copias?

– Oh... todo o tipo... a maior parte são a encomendar meias elásticas.

– Meias elásticas!... Qu’é isso?

Seguiram-se muitas explicações.

– E algumas das cartas vêm de França e de outros lugares – disse Paul.

– E tu tens d’as copiar?

– Claro.

– Em francês?

– Não... traduzo-as.

– Essa agora... então sabes francês?

– Sei alguma coisa... e alemão também.

– E quem t’ensinou?

– O meu padrinho... e também álgebra e geometria.

– Eu cá não faço tenções d’encher a cabeça com essas coisas – disse Geoffrey.

Os dois rapazes mostravam-se terrivelmente superiores, mas Paul nem dava por isso. Foram à procura de ovos, vasculhando em todos os lugares. Quando estavam a dar de comer às galinhas, Miriam saiu de casa. Os rapazes não lhe ligaram. Na capoeira es-tava uma galinha com os seus pintainhos amarelos. Maurice pegou numa mão-cheia de milho e deixou a galinha vir comer-lhe à mão.

– Tens coragem de fazer o mesmo? – perguntou ele a Paul.

– Vamos lá ver... – respondeu Paul.

Ele tinha a mão pequenina, quente e habilidosa. Miriam ficou a observá-lo. Paul aproximou a mão da galinha. A ave olhou para o milho com o seu olhar duro e brilhante e, de repente, deu-lhe uma bicada na mão. Paul assustou-se, mas depois riu-se. «Pic-pic-pic», fazia-lhe a galinha na palma da mão. Paul riu-se outra vez e os rapazes riram com ele.

– Ela ferra-nos e pica-nos, mas nunca faz doer – disse Paul, quando o milho se acabou.

– Agora, Miriam, é a tua vez – disse Maurice.

– Não – gritou ela, encolhendo-se.

– Olha, parece um bebé. És mesmo um bebé! – disseram os irmãos.

– Não dói nada – disse Paul. – São só uns beliscõezinhos muito agradáveis.

– Não – gritou ela mais uma vez, abanando os caracóis negros e encolhendo-se.

– Ela não s’atreve – disse Geoffrey. – Ela nunca s’atreve a fazer nada a não ser recitar poesia.

– Não s’atreve a saltar uma cancela... não s’atreve a brincar connosco... não s’atreve a fazer frente quando outra rapariga lhe bate... não é capaz de fazer nada a não ser andar por aí convencida qu’é alguém... «A Dama do Lago»... é isso mesmo! – gritou Maurice.

Miriam estava coradíssima de vergonha e infelicidade.

– Sou capaz de fazer mais coisas que vocês – gritou ela. – Vocês não passam duns cobardes e duns brigões.

– Olha, olha, «cobardes e brigões!» – repetiram eles, arremedando-a.

«Um palhaço assim nunca me enfurece.

Todo o brutamontes silêncio merece»

recitou ele, virado para ela, a rir às gargalhadas.

Ela voltou para casa. Paul foi com os dois rapazes até ao pomar, onde tinham montado à pressa duas barras paralelas. Aí chegados, entregaram-se às respectivas demonstrações de força. Paul era mais ágil do que possante, mas foi quanto bastou. Apontou para umas flores de macieira que estavam mesmo à ponta de um ramo balouçante.

– Eu cá, se fosse a ti, não apanhava as flores – disse Edgar, o mais velho dos irmãos. – Senão, prò ano não temos maçãs.

– Eu não ia apanhá-las – respondeu Paul, indo-se embora.

Os rapazes mostravam-se hostis com ele. Interessavam-lhes mais as suas próprias brincadeiras. Paul voltou para casa, para junto da mãe. Quando ia a contornar a casa pelas traseiras, viu Miriam ajoelhada diante da capoeira da galinha, com a mão cheia de milho, a morder o lábio, numa atitude de intensa concentração. A galinha fitava-a com maldade. Cautelosamente, ela estendeu a mão. A galinha atirou-se. Ela retirou rapidamente a mão, com um grito, misto de medo e frustração.

– Ela não te magoa – disse Paul.

Miriam pôs-se de pé, muito corada.

– Só queria experimentar – disse, muito baixinho.

– Vês... não dói nada – disse ele. E, colocando apenas dois grãos de milho na palma da mão, deixou a galinha bicá-lo à vontade. – Só dá vontade de rir – continuou Paul.

Ela estendeu a mão e retirou-a, tentou novamente e fugiu para trás, com um grito. Ele fez uma careta.

– Olha, eu até a deixava comer milho da minha cara – disse Paul. – Mas ela dá muitos encontrões. Ela faz isto com toda a perfeição! Se não fizesse, já imaginaste a quantidade de terra que ela ia comer todos os dias?

Esperou, muito sério, a observá-la. Finalmente, Miriam deixou a galinha bicar-lhe a mão. Deu um gritinho, de medo e dor, porque estava assustada, um gritinho patético. Mas tinha conseguido, e voltou a repetir a proeza.

– Estás a ver – disse o rapaz. – Não faz doer, pois não?

Ela fitou-o com os olhos escuros muito abertos.

– Não – disse ela, a rir e a tremer.

Depois levantou-se e foi para casa. Parecia de alguma forma ofendida com o rapaz.

«Ele deve achar que eu não passo duma rapariga como as outras», pensava ela, cheia de vontade de lhe provar que era uma grande personagem, como a «Dama do Lago».

Paul veio encontrar a mãe pronta para partir. Mrs. Morel sorriu para o filho, e ele pegou no grande ramo de flores. Mr. e Mrs. Leivers acompanharam-nos até ao fundo da quinta. As colinas douravam-se do entardecer, e nas profundezas dos bosques sobressaía o púrpura carregado das campainhas-do-monte. Por todo o lado estava o silêncio, apenas quebrado pelo restolhar das folhas e os pássaros.

– É de facto um lugar belíssimo – disse Mrs. Morel.

– É, sim – concordou Mr. Leivers. – É um lugar bem aprazível, o pior são os coelhos. Dão cabo das pastagens. Não sei se alguma vez iremos ter lucro.

Bateu as palmas e os campos cobriram-se de movimento, junto ao bosque: por toda a parte saltavam coelhos acastanhados.

– Até custa a acreditar! – exclamou Mrs. Morel.

Ela e Paul continuaram sozinhos daí para a frente.

– Foi um dia maravilhoso, não foi, mãe? – disse Paul, falando baixinho. A lua despontava, tímida. O coração doía-lhe de tanta felicidade. A mãe não se calava, pois também ela tinha vontade de gritar de felicidade.

– Então eu não ia ajudar um homem daqueles? Não ia tratar das galinhas e dos bezerros? Havia de aprender a ordenhar, e havia de conversar com ele, e fazer planos com ele. Palavra, se eu fosse mulher dele, aquela quinta ia de vento em popa, isso é que ia... Mas não, ela não tem forças... simplesmente não tem forças. Nunca devia ver-se sobrecarregada desta maneira, percebes. Tenho pena dela, e dele também. Palavra, se ele fosse meu, nunca diria que era um mau marido... Não que ela diga, lá isso não... E ela é até muito simpática.

William veio a casa outra vez, com a namorada, pelo Pentecostes. Tinham-lhe dado uma semana de férias. O tempo estava muito bonito. Geralmente, William, Lily e Paul iam juntos dar um passeio pela manhã. William não conversava muito com a namorada, excepto para lhe contar histórias da infância; mas Paul falava sem parar com qualquer deles. A certa altura, deitaram-se os três num prado, perto da igreja de Minton. De um dos lados, junto do parque do castelo, estendia-se ondulante uma cortina de choupos – uma beleza. As sebes cobriam-se de bagas pendentes de azevinho. Os campos salpicavam-se de margaridas e flores-de-cuco, como sorrisos. William, agora com vinte e três anos, era já um homem feito, muito alto, mas tão magro que era quase só pele e osso. Deitou-se ao sol, de costas, a sonhar, enquanto Lily brincava com o seu cabelo. Paul foi apanhar margaridas. Ela tinha tirado o chapéu. O seu cabelo era negro como a crina de um cavalo. Paul aproximou-se e entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo de azeviche, lembrando enormes lantejoulas brancas e amarelas, com um toque rosado de flores-do-cuco.

– Agora pareces uma bruxinha – disse o rapaz. – Não parece, William?

Lily deu uma gargalhada. William abriu os olhos e contemplou-a. O seu olhar era um misto confuso de tristeza e desmedida admiração.

– Ele transformou-me mesmo numa visão do Além? – perguntou ela, olhando para baixo, para o seu amado, a rir.

– Então não transformou! – disse William, a sorrir. E continuou deitado a olhar para ela. Os seus olhos nunca procuravam os dela. Não queria encontrar os olhos dela. Queria estar só a olhar para ela, não que os seus olhares se encontrassem. E esta vontade de a evitar, aflorava-lhe aos olhos como a tristeza. Ele desviou-os outra vez. Ela deixou a mão esguia, onde brilhavam diamantes, brincar no cabelo dele um pouco mais. Depois disse:

– O Paul sabe como fazer as coisas.

– Óptimo – disse William. – Desde que isso te faça feliz. Ele preenche-te as manhãs e eu as noites.

Ela voltou-se para Paul, e riu-se.

– Quero pôr-te mais três flores sobre a orelha – disse ele, de pé ao lado dela. – Depois, fica pronto.

Ela deixou, e ele entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo.

– Não sentes o perfume do sol nos teus cabelos? – perguntou Paul. – Estás a ver, era assim que devias ir aos bailes.

– Obrigada – disse ela, sempre a rir.

Levantaram-se.

– Não ponhas ainda o chapéu – disse Paul.

– Achas que sim? – perguntou ela a William. – Posso ir nesta figura?

William olhou para ela outra vez. A beleza dela quase o magoava. Olhou-lhe para a cabeça coberta de flores e torceu o nariz.

– Estás muito bonita assim, se é isso que queres saber.

E ela continuou o passeio sem chapéu. William logo se recompôs do mau humor e mostrou-se muito terno com ela. Ao chegarem a uma ponte, até gravou um coração com as iniciais dos dois.

 


Ela observou-o atentamente, vendo como a sua mão forte e nervosa, salpicada de pêlos cintilantes e de sardas, gravava no tronco o coração, o que parecia deixá-la fascinada.

Durante toda a estadia, enquanto William e Lily estiveram presentes, pairava dentro de casa um sentimento de tristeza e calor humano, e também de certa ternura. Mas muitas vezes ele irritava-se. Ela tinha trazido para uma semana cinco vestidos e seis blusas.

– Ouve, não te importas de me lavares estas duas blusas... e estas coisinhas? – disse ela a Annie.

E Annie ficou em casa a lavar roupa, enquanto, na manhã seguinte, William e Lily foram passear. Mrs. Morel ficou furiosa. Às vezes, ao aperceber-se da atitude da namorada para com a irmã, o jovem odiava-a pelo seu comportamento.

No domingo de manhã, Lily apareceu muito bonita, com um vestido leve, sedoso e esvoaçante, tão azul como as penas de um gaio, e um chapéu de palha coberto de rosas, onde dominava o carmim. As pessoas não se cansavam de a admirar. Mas, à noite, quando iam a sair, ela perguntou de novo:

– Fofinho, tens as minhas luvas?

– Quais delas? – perguntou William.

– As novas, as de camurça preta.

– Não.

Seguiu-se uma busca. Tinha-as perdido.

– Está a ver, mãe – disse William. – Já é o quarto par que ela perde desde o Natal... e cada par são cinco xelins.

– Tu só me deste dois pares – repontou ela.

E à noite, depois da ceia, ficou sentada no sofá e ele foi postar-se frente à lareira, farto dela. À tarde, tinha-a deixado sozinha para ir visitar um amigo de infância, e ela ficara a ver um livro. Depois da ceia, William quis ir escrever uma carta.

– Aqui tem o seu livro, Lily – disse Mrs. Morel. – Importa-se de ficar a ler mais um bocadinho?

– Não, obrigada, não quero o livro – disse a rapariga. – Prefiro ficar só aqui sentada.

– Mas isso é muito aborrecido...

William escrevia nervosamente, a grande velocidade. Quando estava a fechar o sobrescrito, disse:

– Ler um livro!... Essa é boa, ela nunca leu um livro na vida dela.

– Não digas isso! – disse Mrs. Morel, irritada com o exagero.

– É verdade, mãe... não leu mesmo – exclamou ele, pondo-se de pé num salto e retomando o seu lugar anterior, frente à lareira. – Nunca na vida leu um livro.

– Atão essa é como eu – interveio Morel. – Essa tamém num vê nada nos livros qu’a faça ficar sentada, aborrecida, de nariz infiado nas folhas. Pra quê? Eu tamém num vejo!

– Mas tu não devias dizer essas coisas – disse Mrs. Morel ao filho.

– Mas é verdade, mãe... ela não sabe ler... que livro é que lhe deu?

– Bem, dei-lhe um livrinho da Annie Swan. Ninguém quer ler coisas pesadas num domingo à tarde.

– Pois eu aposto que ela nem dez linhas leu.

– Aí é que tu te enganas – disse a mãe.

Lily assistia à discussão sentada no sofá, com um ar muito infeliz.

– Leste alguma coisa do livro? – perguntou-lhe ele.

– Li, sim – respondeu ela.

– Quantas páginas?

– Sei lá quantas páginas...

– Diz-me uma coisa que tenhas lido.

Ela não foi capaz.

– Cala-te, William – disse a mãe. – Que ideia a tua!

– Mas ela não consegue ler, mãe! – gritou ele, secamente. – Não consegue reter nada do que lê. Não sabe ler e não sabe falar. Não há assunto nenhum sobre o qual se possa conversar com ela. Só pensa em vestidos e em como todos a admiram.

– Não lhe ligue, Lily – disse Mrs. Morel.

– Só os parvos é que se sentam de nariz infiado nos livros, é o qu’eu digo – acrescentou Morel.

E a pobre rapariga continuava a ser agredida. Ele parecia odiá-la. Mais tarde, Mrs. Morel foi buscar-lhe um livro muito simples, e era patético vê-la arrastar-se penosamente pelas primeiras páginas na tarde chuvosa. Não conseguiu passar da segunda página. Ele lia muito, e possuía uma inteligência rápida, activa. Ela não entendia nada a não ser fazer amor e tagarelar. Ele estava habituado a ter todos os seus pensamentos peneirados pela mente da mãe. Por isso, quando procurava companhia e, em resposta, lhe era pedido que fosse apenas um amante, todo ele ternuras e gorgeios, odiava a namorada.

– Sabe, mãe – disse ele, quando à noite ficaram os dois sozinhos – ela não dá valor ao dinheiro, é um catavento. Quando recebe o ordenado, é capaz de gastar uma fortuna numa porcaria qualquer como, por exemplo, marrons glacés. E, depois, sou eu que tenho de lhe comprar o passe e todos os outros extras... até a roupa interior. E quer ela casar-se... Por mim, podíamos até casar já para o ano. Mas por este andar...?

– Ia ser um lindo casamento – respondeu a mãe. – Eu, se fosse a ti, pensava duas vezes, meu filho.

– Bom... Agora já fui longe de mais para romper com tudo – disse ele. – Por isso, o melhor é casar o mais depressa possível.

– Muito bem, meu filho. Se é isso que queres, assim será, e não se fala mais no assunto... Mas olha que eu não durmo quando penso nisso.

– Ela é boa rapariga, mãe. Cá nos havemos de arranjar.

– E ela deixa que sejas tu a comprar-lhe a roupa interior? – perguntou a mãe.

– Bem... – começou ele, apologético. – Ela nunca me pediu. Mas uma manhã... estava muito frio... encontrei-a na estação toda a tremer, nem conseguia estar parada. E então perguntei-lhe se estava bem agasalhada, e ela respondeu, «Acho que sim». E então eu disse «Trazes alguma camisola quente... de lã... por baixo?» E ela disse que não, que era de algodão. Perguntei-lhe por que carga de água não tinha vestido uma coisa mais quente com um frio daqueles, e ela disse que não tinha nada mais quente. E ainda por cima, com a bronquite que ela tem! Tive de pegar nela e ir comprar-lhe uma roupa mais quente... Sabe, mãe, o dinheiro era o menos, se nós o tivéssemos... Ela devia guardar o suficiente para o passe. Mas não... vem pedir-mo, e eu tenho de inventar o dinheiro...

– Belas perspectivas – disse Mrs. Morel, amargurada.

Ele estava pálido e no seu rosto já vincado, outrora tão sorridente e descuidado, estampavam-se o conflito e o desespero.

– Mas eu não posso acabar com tudo, não agora, as coisas já foram longe de mais – disse ele. – Além disso, para certas coisas, não posso passar sem ela...

– Meu filho, lembra-te de que se trata da tua vida – disse Mrs. Morel. – Nada pode ser pior do que um casamento que já está à partida irremediavelmente marcado pelo fracasso. O meu foi suficientemente mau, Deus sabe que sim, e devia ter-te ensinado alguma coisa... Mas ainda podia ter sido muito pior.

William estava encostado à ombreira da chaminé, de mãos no bolsos. Era um homem alto e esquelético, com ar de quem seria capaz de ir até ao fim do mundo, se lhe apetecesse. Mas a mãe lia--lhe o desespero no rosto.

– Agora não posso deixá-la.

– Está bem – disse a mãe. – Mas lembra-te de que há coisas piores do que romper um noivado.

Quedaram-se em silêncio, ele de olhar parado, fitando o espaço. Só a mãe lhe podia valer e, no entanto, não a deixava decidir por ele. Continuava preso ao que tinha feito.

– E, naturalmente – acrescentou Mrs. Morel, há muito mais nobreza em romper um noivado para evitar um mal maior do que em continuar só para cumprir uma promessa.

Ele mantinha-se estático, de olhar pregado no vazio.

– Eu não posso deixá-la agora – insistiu ele.

O relógio ia avançando. Mãe e filho continuaram em silêncio, em conflito. Mas ele nada mais disse. Por fim, ela disse:

– Bem, vai dormir, meu filho... amanhã sentes-te melhor... e talvez vejas as coisas com outros olhos.

O filho deu-lhe um beijo e foi deitar-se. Ela foi abafar o borralho, sentindo o coração pesado como nunca sentira antes. Antes, com o marido, parecia sentir ruir tudo dentro dela, mas nada lhe destruía a vontade de viver. Mas agora, era a própria alma que estava ferida. A própria esperança fora atingida.

William manifestou em muitas outras ocasiões o mesmo ódio pela noiva. Na última noite que passaram em casa dos pais, fartou-se de resmungar com ela.

– Bem – disse ele – já que não me acredita, que acha que ela não é nada assim, acredita pelo menos que ela foi crismada três vezes?

– Que disparate! – disse Mrs. Morel, perdida de riso.

– Disparate ou não, o certo é que foi mesmo! É isso que o Crisma significa para ela... teatro... um espectáculo onde pode brilhar.

– Não fui nada, Mrs. Morel – gritou a rapariga. – Não fui nada. Não é verdade.

– O quê! – gritou ele, avançando para ela. – Uma vez em Bromley, outra em Beckenham, e outra mais não sei onde.

– Em mais lado nenhum! – disse ela, a chorar. – Em mais lado nenhum.

– Foi, sim! E mesmo que não fosse, para que foste crismada duas vezes?

– Da primeira vez, só tinha catorze anos, Mrs. Morel – explicou ela, desculpando-se, de lágrimas nos olhos.

– Claro – disse Mrs. Morel. – Eu entendo perfeitamente, minha filha. Não lhe ligue. Devias ter vergonha, William, a dizeres estas coisas.

– Mas é verdade. Ela é religiosa... até tem livros de orações em veludo azul... mas liga tanto à religião, ou a outra coisa qualquer, como à perna daquela mesa. Ser crismada três vezes, só pelo espectáculo, só para se mostrar! E ela é assim em tudo o mais, em tudo!

A rapariga chorava, sentada no sofá. Não era um espírito forte.

– Até no amor! – gritou ele. – É o mesmo que pedir a uma mosca que nos ame. Só quer vir para cima de nós...

– Acabou-se! – disse Mrs. Morel, peremptória. – Se queres continuar a dizer esses disparates, tens de ir para outro lugar. Tenho vergonha de ti, William. Não sabes portar-te como um homem? Só a pôr defeitos na rapariga... e depois a fingires que estás noivo...! – Mrs. Morel sucumbiu à raiva e à indignação.

William mantinha-se em silêncio. Mais tarde, arrependido, foi dar um beijo à namorada e consolá-la. No entanto, tudo o que dissera era verdade, e odiava-a.

Quando partiram, Mrs. Morel acompanhou-os a Nottingham. A caminhada até à estação de Keston era longa.

– Sabe, mãe – disse ele –, a Ciganita é muito superficial... nada penetra nela a fundo...

– William, preferia que não dissesses essas coisas – pediu Mrs. Morel, sentindo-se constrangida com a presença da rapariga.

– Mas é que não penetra mesmo, mãe... Ela está muito apaixonada por mim, agora... Mas, se eu morresse, esquecia-me em três meses.

Mrs. Morel tinha medo. O seu coração batia furiosamente perante a amargura serena das últimas palavras do filho.

– Como sabes? – retorquiu. – Tu não podes saber... e, por isso, não tens o direito de dizeres uma coisa dessas.

– Ele está sempre com estas coisas! – exclamou a rapariga.

– Três meses depois de me enterrarem, já tu tinhas arranjado outro e nunca mais te lembravas de mim – disse ele. – É esse o amor que me tens!

Mrs. Morel meteu-os no comboio, em Nottingham, e voltou para casa.

– Sabes uma coisa? – disse ela pateticamente para Paul. – Não se entendem e nunca se hão-de entender. Como vai ser, se chegarem a casar, é de mais para a minha imaginação. Se ao menos ele a deixasse, já não precisava de a atormentar desta maneira. Mas vão ficar presos um ao outro até se matarem. Quando ele disse aquilo, a caminho de Keston, foi como se eu já não pudesse dar nem mais um passo. Pobrezinha, tenho pena dela. Mas não é mulher para ele, lá isso não é. É muito cruel dizê-lo, mas como ela é muito frágil, mais valia que morresse em vez de casar com ele.

Mrs. Morel não tirou o filho do pensamento durante todo o Verão. Ele parecia estar a dar cabo da vida. Mas o casamento parecia estar ainda demorado.

– Valha-nos pelo menos uma coisa – disse ela a Paul. – Ele nunca vai juntar dinheiro suficiente para se casar, disso tenho eu a certeza. É assim que ela o vai salvar.

E a ideia animava-a. As coisas ainda tinham remédio, e acreditava firmemente que William nunca chegaria a casar com a sua Cigana. Aguardava e mantinha Paul junto de si.

Durante todo o Verão, as cartas de William soavam febris. Parecia pouco natural e empolgado. Por vezes exageradamente alegre, mas geralmente sóbrio e amargo.

– Pois é – dizia a mãe. – Anda a dar cabo dele por causa daquela criatura que não merece o amor que ele lhe tem, que não passa duma boneca de trapos.

Ele só pensava em vir a casa. As férias de Verão já lá iam, e o Natal ainda estava muito longe. Escreveu muito entusiasmado a dizer que podia vir a casa no princípio de Outubro, passar um sábado e um domingo, para a Feira do Ganso.

– Tu não andas bem, meu filho – disse-lhe a mãe quando o viu. Tê-lo assim, só para ela, dava-lhe até vontade de chorar.

– Não, não tenho passado nada bem – disse ele. – Apanhei uma constipação que se arrastou durante todo o mês. Mas já estou melhor, acho eu.

Estava um dia soalheiro de Outubro. William parecia louco de alegria, como um garoto que se escapasse às aulas. Mas logo ficou calado e reservado. Estava mais esquelético que nunca e com os olhos encovados.

– Andas a trabalhar de mais – disse a mãe.

Fazia horas extraordinárias, para juntar dinheiro para se casar, segundo disse. Só conversou com a mãe uma vez, no sábado à noite. Depois, pôs-se muito triste, com saudades da namorada.

– Sabe uma coisa, mãe, apesar disto tudo, se eu morresse, ela ia chorar por mim durante dois meses, e depois tratava de me esquecer. A mãe havia de ver, ela nunca viria aqui visitar a minha sepultura nem uma só vez.

– Ora, William – disse a mãe –, tu não vais morrer, para quê falar nisso agora?

– Mas se acontecesse... – insistiu ele.

– Ela não tem culpa... ela é assim... e se tu a escolheste, não te podes queixar... – disse a mãe.

No domingo de manhã, quando estava a pôr o colarinho, William disse, levantando o queixo:

– Veja a borbulhagem que o colarinho me fez por baixo do queixo!

Mesmo na ligação do queixo com a garganta havia uma zona muito vermelha, toda irritada.

– Não te devia fazer isso – disse a mãe. – Toma, põe um pouco deste unguento. Devias mudar de colarinhos.

William partiu no domingo à noite, aparentemente melhor e mais forte, depois destes dois dias passados em casa.

Na terça-feira de manhã, chegou um telegrama de Londres dizendo que ele estava doente. Mrs. Morel, que estava a esfregar o chão, levantou-se, leu o telegrama, chamou uma vizinha, foi a casa da senhoria, pediu-lhe dinheiro emprestado, vestiu-se e partiu. Correu até à estação de Keston e apanhou o expresso para Londres em Nottingham, onde teve de esperar quase uma hora. Figurinha frágil, com o seu chapelinho preto, não parava de perguntar, ansiosa, aos carregadores se sabiam o caminho para Elmers End. A viagem demorou três horas. Foi sempre sentada no seu canto, embalada numa espécie de torpor, sem se mexer. Na estação de King’s Cross também ninguém sabia indicar-lhe o caminho para Elmers End. Com o saco de rede na mão, com a camisa de noite, um pente e uma escova, ia de pessoa em pessoa, fazendo sempre a mesma pergunta. Por fim, mandaram-na apanhar o metropolitano até Cannon Street.

Eram seis horas quando chegou ao apartamento de William. As persianas não estavam corridas.

– Como está ele? – perguntou.

– Na mesma – disse a dona da casa.

Mrs. Morel subiu a escada atrás da senhoria. William estava deitado na cama, com os olhos injectados de sangue, muito pálido. A roupa estava espalhada pelo chão, o lume estava apagado e tinha um copo de leite na mesa de cabeceira. Ninguém viera vê-lo.

– Então, meu filho, que foi isto? – disse a mãe, mostrando coragem.

Ele não respondeu. Olhava para ela, mas não a via.

Depois, começou a dizer numa voz monocórdica, como se ditasse uma carta: «Devido a uma brecha no casco do navio, o açúcar tornou-se num bloco, cristalizou. Foi preciso parti-lo com um machado...»

Estava completamente inconsciente. Um dos seus trabalhos tinha sido ir examinar esse tal carregamento de açúcar no porto de Londres.

– Há quanto tempo está ele assim? – perguntou a mãe à senhoria.

– Chegou a casa às seis horas da manhã na segunda-feira e aparentemente dormiu o dia todo. À noite, ouvimo-lo a falar, e esta manhã chamou por si. Por isso, mandei o telegrama e chamámos o médico.

– Não se importa de acender o lume?

Mrs. Morel tentava acalmar o filho, mantê-lo quieto.

O médico chegou. Era uma pneumonia e, segundo disse, uma forma rara de erisipela, que tinha começado debaixo do queixo, provocada pelo roçar do colarinho, e se estava a espalhar a toda a cara; e esperava bem que não lhe atingisse o cérebro.

Mrs. Morel ficou a cuidar dele. Rezava por William, rezava para que ele a reconhecesse. Mas a cara do jovem cada vez perdia mais as cores. De noite, teve de lutar com o filho. Ele delirou e tornou a delirar, sem nunca recobrar a consciência. E morreu às duas da manhã, num paroxismo atroz.

Durante uma hora, Mrs. Morel permaneceu estática, sentada no quarto do filho. Depois, acordou toda a casa.

Às seis da manhã, vestiu-o com a ajuda da mulher da limpeza e em seguida saiu e foi à procura do registo civil e do médico daquele lúgubre subúrbio londrino.

Às nove horas, novo telegrama para Scargill Street: «William morreu esta noite. Dizer pai venha e traga dinheiro.»

Annie, Paul e Arthur estavam em casa. Mr. Morel tinha ido trabalhar. As três crianças não disseram uma palavra. Annie começou a choramingar, com medo. Paul foi chamar o pai.

O dia estava lindo. Na mina de Bretty, o vapor branco fundia-se lentamente com a luz do sol no céu azul, muito ameno, as roldanas da torre brilhavam no alto do aterro, e a peneira não se calava, sempre a deitar o carvão para os vagões.

– Tenho de falar com o meu pai... ele tem de ir já para Londres – disse o rapaz ao primeiro homem que encontrou no aterro.

– Queres falar com Walter Morel?... Vai ‘í dentro e diz ò Joe Ward.

Paul entrou no escritório de cima.

– Quero o meu pai... ele tem de ir pra Londres.

– O teu pai... está na mina? Quem é ele?

– Mr. Morel.

– Quem, o Walter? Aconteceu alguma coisa?

– Ele tem de ir já pra Londres.

O homem foi para o telefone e ligou para o escritório de baixo.

– Chamem o Walter Morel... 42 Hard. Aconteceu alguma coisa... o filho dele tá ‘qui.

Depois, voltou-se para Paul, e disse:

– Daqui a cinco minutos ele já aí está.

Paul foi até ao topo da mina. Viu a caixa subir, com o carregamento de carvão. A grande gaiola de ferro descansou sobre os apoios, a carga foi retirada, um contentor vazio deslizou sobre os apoios, algures tilintou uma campainha, a gaiola elevou-se e caiu como uma pedra.

Paul não acreditava que William estivesse morto... era impossível, com tanta azáfama por todo o lado. O mineiro de serviço empurrou o pequeno contentor para cima da placa giratória, e um outro homem levou-a pelo aterro fora, pelos trilhos sinuosos. «O William está morto e a minha mãe em Londres; que estará ela a fazer?», perguntava-se ele, como se se tratasse de uma charada.

Viu os contentores subirem uns atrás dos outros, e nem sinais do pai. Por fim, o vulto de um homem desenhou-se ao lado de um vagão! A gaiola descansou sobre os apoios e Morel desceu. Coxeava ligeiramente, devido a um acidente.

– És tu, Paul!... Ele tá pior?

– Tem de ir já pra Londres.

Desceram os dois o aterro, lado a lado, sob os olhares curiosos dos mineiros. Quando deixaram a mina e seguiam já ao longo da via férrea, com os campos soalheiros de Outono de um dos lados e um muro de vagões do outro, Morel perguntou, com o medo na voz:

– Ele não se curou, filho?

– Não.

– E quando foi?

Havia terror na voz do mineiro.

– Esta noite... Chegou um telegrama da mãe.

Morel deu mais alguns passos e depois encostou-se a um vagão e fincou as mãos nos joelhos. Mas não chorou. Paul olhou em volta, à espera. Um vagão balouçou lentamente em cima da balança. Paul via tudo, menos o pai, encostado ao vagão, como se estivesse cansado.

Morel só tinha ido uma vez a Londres. Pôs-se a caminho, assustado e lívido, para ir ajudar a mulher. Isto passou-se numa terça-feira. Os filhos ficaram sozinhos em casa. Paul foi trabalhar, Arthur para a escola e Annie chamou uma amiga para lhe fazer companhia.

No sábado à noite, quando Paul dobrava a esquina, de regresso de Keston, viu a mãe e o pai, que vinham da estação de Lethley Bridge. Caminhavam no escuro, em silêncio, cansados, separados. O rapaz ficou à espera.

– Mãe! – disse ele, da escuridão.

A figura franzina de Mrs. Morel pareceu não dar por ele. Paul insistiu.

– Paul! – disse ela, indiferente. Deixou-o dar-lhe um beijo, mas parecia não o ver.

Em casa foi a mesma coisa, franzina, pálida e muda. Não via nada, não dizia nada, excepto:

– O caixão chega hoje à noite, Walter. É melhor pedires ajuda. – E, depois, voltando-se para os filhos: – Vamos trazê-lo para casa.

Em seguida mergulhava num mutismo duradouro, de olhar perdido no espaço e mãos cruzadas sobre o regaço. Paul, ao vê-la assim, quase não podia respirar. Reinava em toda a casa um silêncio de morte.

– Fui trabalhar, mãe – disse Paul, tristemente.

– Ah, foste – respondeu ela, indiferente.

Passada meia hora, Morel, preocupado e confuso, entrou em casa.

– Onde havemos d’o pôr, quand’ele chegar? – perguntou à mulher.

– Na sala da frente.

– Então é melhor eu tirar de lá a mesa.

– Está bem.

– E botá-lo em cima das cadeiras?

– Tu lá sabes... sim... acho que sim.

Morel e Paul pegaram numa vela e foram para a sala. Lá não havia gás. O pai desaparafusou o tampo oval da grande mesa de mogno e libertou o centro da sala. Depois dispôs seis cadeiras em frente umas das outras, de forma a poderem suportar o caixão.

– Nunca vi ninguém mais comprido! – disse o mineiro, olhando em volta, ansioso, enquanto trabalhava.

Paul foi à janela e olhou para a rua. O freixo erguia-se monstruoso e negro, contra a imensa escuridão. Estava uma noite sem luar. Depois, voltou para junto da mãe.

Às dez horas, Morel anunciou:

– Chegou!

Todos estremeceram. Ouviu-se destrancar e abrir a porta da frente, que dava passagem directa da noite escura para dentro da sala.

– Tragam outra vela – gritou Morel.

Annie e Arthur foram buscá-la. Paul acompanhou a mãe. Estava ao lado dela, encostado à porta interior, passando-lhe o braço pela cintura. No meio da sala vazia havia seis cadeiras à espera, viradas umas para as outras. Junto à janela, Arthur segurava uma vela, encostado às cortinas de renda, e junto à porta aberta, virada para a noite, estava Annie, inclinada para a frente, com a palmatória de latão a cintilar.

Ouviu-se o barulho de um rodado. Lá fora, na escuridão da rua, Paul viu cavalos e um veículo negro, um lampião e alguns rostos empalidecidos. Depois, alguns homens – mineiros – todos em mangas de camisa, que pareciam debater-se na penumbra densa. Por fim, apareceram dois homens, vergados sob a pesada carga. Era Morel e o vizinho.

– Firme! – disse Morel, sem fôlego.

Ele e o companheiro subiram o degrau alto do jardim e surgiram à luz da vela, segurando uma das extremidades cintilantes do caixão. Mais braços, de outros homens, agitavam-se por detrás deles. Morel e Burns, à frente, vacilaram. A carga negra, pesadíssima, balançou.

– Firme, firme! – gritou Morel, num grito de dor.

Os seis carregadores já estavam todos no jardim, trazendo o caixão pelo ar. Havia ainda mais três degraus até à porta. A lanterna amarelada da carruagem brilhava sozinha, na estrada de breu.

– Agora! – disse Morel.

O caixão balançou, os homens começaram a subir os degraus com a sua carga. A chama da vela de Annie tremulou e ela começou a chorar ao ver surgir os primeiros homens. Os braços e as cabeças curvadas dos seis homens lutavam para vencerem a subida até à sala com o caixão, transportando o peso do sofrimento sobre a sua carne viva.

– Oh, meu filho... meu filho! – disse Mrs. Morel, baixinho, como se entoasse. E, de novo, de cada vez que o caixão balançava ao passo desigual dos carregadores:

– Oh, meu filho... meu filho... meu filho!

– Mãe! – disse Paul, a chorar, com o braço em volta da cintura dela. – Mãe!

Ela não ouviu.

– Oh, meu filho... meu filho! – repetia.

Paul via gotas de suor pingarem da testa do pai. Os seis homens estavam na sala, seis homens em mangas de camisa, de braços exaustos que se debatiam com a sua carga, enchendo a sala e indo de encontro aos móveis. O caixão desceu e foi suavemente pousado sobre as cadeiras. O suor pingava da testa de Morel sobre o rebordo.

– Palavra d’honra, manda cá um peso! – disse um dos homens, e os cinco mineiros soltaram um suspiro, curvaram-se perante o caixão e, trémulos da luta, desceram novamente os degraus, fechando a porta atrás de si.

A família ficou sozinha na sala com a enorme caixa envernizada. William, esticado, tinha seis pés e quatro polegadas de comprimento. O imponente caixão, de um castanho brilhante, jazia qual monumento. Paul pensou que nunca mais iam conseguir tirá-lo dali. A mãe acariciava a madeira envernizada.

Foi a enterrar na segunda-feira, no pequeno cemitério da encosta, alcandorado sobre os campos, dominando a igreja e o casario. Estava um dia de sol e os crisântemos brancos encaracolavam as pétalas ao calor.

Depois de tudo isto, nada conseguia persuadir Mrs. Morel a falar e a recuperar a sua antiga força de viver. Continuava fechada sobre si mesma. Quando voltava para casa, no comboio, tinha pensado para consigo: «Se ao menos tivesse sido eu.»

Quando Paul chegou a casa à noite, encontrou a mãe sentada com as mãos no regaço, sobre o tosco avental, já com a lida da casa despachada. Era sempre costume trocar de vestido e pôr um avental preto. Mas desta vez foi Annie quem lhe pôs a ceia, e a mãe continuou sentada em frente dela, de olhar vazio e lábios cerrados. Paul deu voltas à cabeça para arranjar novidades para lhe contar.

– Mãe, Miss Jordan apareceu lá hoje e disse que o meu esboço de uma mina a laborar estava muito bom...

Mas Mrs. Morel nem prestou atenção. Noite após noite, Paul esforçava-se por lhe contar coisas, mesmo que ela o não escutasse. Quase o enlouquecia vê-la neste estado. Até que:

– Que tem, mãe? – perguntou ele. Ela não ouviu.

– Que tem? – insistiu. – Mãe, o que é que tem?

– Sabes bem o que é que eu tenho – disse ela, irritada, virando-lhe as costas. O rapaz – tinha agora dezasseis anos – foi para a cama tristíssimo. Passou Outubro, Novembro e Dezembro sentindo-se rejeitado, um desgraçado. A mãe bem tentava, mas não conseguia reagir. Tudo o que fazia era pensar no filho morto, que tão cruelmente tinham deixado morrer.

Por fim, no dia 23 de Dezembro, Paul voltou para casa como um sonâmbulo, com os cinco xelins da gratificação de Natal no bolso. A mãe olhou para ele e o seu coração parou.

– O que se passa? – perguntou ela.

– Sinto-me mal, mãe! – respondeu ele. – Mr. Jordan deu-me cinco xelins de gratificação. – E estendeu-os à mãe, com a mão trémula. Ela pô-los em cima da mesa.

– A mãe não parece satisfeita – disse ele, como se ralhasse.

Mas Paul tremia violentamente.

– Onde é que te dói? – disse ela, desabotoando-lhe o sobretudo.

Era a velha pergunta.

– Sinto-me mal, mãe.

Ela despiu-o e meteu-o na cama. Era uma pneumonia, e grave, disse o médico.

– Ele podia não a ter apanhado, se eu o tivesse obrigado a ficar em casa e não o deixasse ir para Nottingham? – foi uma das primeiras coisas que perguntou.

– Podia não ser tão grave – disse o médico.

Mrs. Morel encontrou na resposta a sua própria condenação.

– Devia ter-me preocupado com os vivos, e não com os mortos – disse para consigo.

Paul esteve muito mal. A mãe passava as noites ao seu lado, pois não tinham dinheiro para uma enfermeira. O seu estado piorou e a fase crítica aproximava-se. Uma noite recobrou a consciência, num daqueles paroxismos fantasmagóricos e doentios de dissolução, em que todas as células do corpo parecem estilhaçar-se à pressão extrema da irritabilidade, e a consciência, como em estados de loucura, tem um derradeiro arrobo de vitalidade.

– Vou morrer, mãe! – gritou ele, soerguendo-se da almofada, lutando para respirar.

Ela ajudou-o, chorando baixinho:

– Oh, meu filho, meu filho!

Isto trouxe-o de volta. Apercebeu-se da presença da mãe. A sua força de vontade empertigou-se e prendeu-o à vida. Pousou a cabeça do peito dela e repousou no seu amor.

– De certa forma – disse a tia – foi até bom o Paul ter tido aquela doença no Natal. Foi isso que salvou a mãe.

Paul esteve de cama sete semanas. Levantou-se, finalmente, pálido e muito fraco. O pai tinha-lhe comprado um vaso de tulipas vermelhas e douradas. Era vê-las, a brilhar como fogo na janela, ao sol de Março, enquanto ele ficava sentado no sofá a conversar com a mãe. Tagarelavam os dois em perfeita intimidade. Mrs. Morel vivia agora para Paul.

William tinha sido profético. Mrs. Morel recebeu uma lembrança e uma carta de Lily pelo Natal. Da irmã de Mrs. Morel, uma carta pelo Ano Novo.

«Fui ontem a um baile. Encontrei lá pessoas adoráveis e diverti-me imenso», dizia a carta. «Não perdi uma dança... nem uma.»

Mrs. Morel nunca mais teve notícias dela.

Morel e a mulher viveram em harmonia durante algum tempo depois da morte do filho. Ele costumava quedar-se, como num êxtase, de olhos esbugalhados e olhar perdido. Depois, levantava-se de repente e ia para o Three Spots, voltando já no seu estado normal. Mas nunca mais foi passear para os lados de Shepstone, para não passar pelo escritório onde o filho trabalhara, e evitava passar pelo cemitério.


SEGUNDA PARTE


VII

AMOR DE ADOLESCENTES

NO OUTONO, Paul estivera várias vezes em Willey Farm e tinha-se tornado amigo dos dois rapazes mais novos. De início, Edgar, o mais velho, não se mostrava muito receptivo, e Miriam furtava-se também a qualquer aproximação. Tinha medo de ser desprezada pelos próprios irmãos. Rapariga de alma romântica, em toda a parte via heroínas de Walter Scott, cortejadas por cavaleiros de armadura ou chapéus emplumados. Ela própria era, na sua imaginação, uma princesa transformada em guardadora de porcos. E receava que aquele rapaz, parecido embora com um herói de Walter Scott, que pintava, falava francês, sabia álgebra e viajava todos os dias de comboio para Nottingham, visse nela simplesmente a guardadora de porcos e fosse incapaz de vislumbrar a princesa que nela se ocultava. Por isso, fugia dele.

A sua melhor amiga era a mãe. Ambas de olhos castanhos e dadas ao misticismo, eram daquelas mulheres que guardam a religião ciosamente no coração e para quem a religião é como o ar que respiram, como um véu de bruma que lhes filtra a vida. Assim, para Miriam, Cristo e Deus formavam uma só imagem sublime que ela amava com fervor, apaixonadamente, sempre que um imenso pôr do Sol incendiava o céu poente; sempre que os heróis e as heroínas – os Brian de Bois Gilberts, os Rob Roys e os Guy Mannerings; as Edites, as Lucys e as Rowenas – faziam restolhar as folhas matinais encharcadas de sol, ou se vinham sentar com ela nas alturas do seu quarto, sonhadores e solitários, quando a neve caía. Isto sim, era para ela viver. Quanto ao resto, cuidava da lida da casa, trabalho que não lhe seria pesado, se o chão de tijoleira bem polida não ficasse logo todo patinhado das pesadas botas dos irmãos; queria à viva força que o irmão mais novo, de quatro anos, a deixasse envolvê-lo e cobri-lo com o seu amor; ia à igreja, reverente, em pose contrita, e sofria angustiada perante a vulgaridade das outras meninas de coro e a banalidade da voz do cura; envolvia-se em lutas com os irmãos, que considerava uns brutamontes; e não tinha o pai em grande estima por não albergar no coração quaisquer ideais místicos, e ter como únicas ambições uma vida sem preocupações e a comida na mesa a tempo e horas.

Miriam detestava a sua condição de guardadora de porcos. Queria ser respeitada. Queria instruir-se, pensando que, se fosse capaz de ler, como Paul dizia que era, a Colomba ou a Voyage Autour de ma Chambre, o mundo a veria com outros olhos e teria por ela um profundo respeito. Como jamais poderia ser princesa por fortuna ou condição, ansiava possuir conhecimentos de que pudesse orgulhar-se; era diferente das outras pessoas e não queria ser confundida com a arraia-miúda. Ser instruída era a única marca de distinção a que pensava poder aspirar.

A sua beleza, misto de timidez, rebeldia e sensibilidade, não tinha para ela qualquer valor. Nem mesmo a sua alma, tão dada a arrebatamentos, lhe era suficiente. Precisava de algo mais que reforçasse o seu orgulho, pois sentia-se diferente das outras pessoas. Olhava Paul com vaga melancolia. De uma maneira geral, desprezava o sexo masculino. Neste caso, porém, ele era um exemplar diferente, ágil, leve, gracioso, que tanto podia mostrar-se gentil como insuportável, que era inteligente e culto, que já tinha passado por uma morte na família. O pouco que o rapaz sabia guindava-o aos píncaros a seus olhos. Contudo, esforçava-se por desprezá-lo por ele não conseguir ver nela a princesa, mas tão-só a guardadora de porcos.

Paul mal reparava nela.

Um dia, porém, adoeceu gravemente e ela sentiu que com isso ele iria enfraquecer. Se assim fosse, seria ela a mais forte e então poderia amá-lo. Se pudesse ser sua amante na fraqueza, cuidar dele, tê-lo na sua dependência, se ao menos pudesse tê-lo nos seus braços, com que força o amaria!

Assim que os céus desanuviaram e as ameixoeiras floriram, Paul partiu para Willey Farm na carroça do leiteiro. Mr. Leivers gritou pelo rapaz em tom amigável e conduziu o cavalo lentamente pela encosta acima, ao fresco da manhã, dando estalinhos com a língua para o incitar. No céu passavam nuvens brancas que se iam juntar para lá das colinas, agora visíveis à luz primaveril. As águas do Nethermere jaziam em baixo, muito azuis, em contraste com os prados ressequidos e os espinheiros.

Era uma viagem de quatro milhas e meia. Nas cercas, minúsculos botões em tons vivos e brilhantes desabrochavam em rosetas e os tordos pairavam e os melros piavam e gralhavam. Era um mundo novo, fascinante.

Miriam, espreitando da janela da cozinha, viu o cavalo transpor o grande portão branco do pátio, recortando-se contra o bosque de carvalhos desfolhados, em fundo. Nisto, um rapaz envergando um casacão muito grosso saltou para o chão e estendeu as mãos para segurar o chicote e a manta que o lavrador sadio e bem-humorado lhe entregava.

Miriam assomou-se à porta. Tinha quase dezasseis anos, era linda, de faces rosadas, ar grave e uns olhos subitamente dilatados, como em êxtase.

– Vejo – disse Paul virando-se envergonhado – que os teus narcisos estão quase a desabrochar. Não será cedo de mais? Não achas que está ainda muito frio?

– Frio? – repetiu Miriam, na sua voz terna e musical.

– O verde dos botões... – e Paul interrompeu-se, timidamente.

– Deixa-me levar-te a manta – disse Miriam, com exagerada amabilidade.

– Eu posso bem levá-la – respondeu ele, mostrando-se ofendido. Contudo, entregou-lha.

Entretanto, apareceu Mrs. Leivers.

– Deves estar cansado e cheio de frio – disse ela. – Dá-me o casaco. Que pesado.... não vais longe com ele.

Ajudou-o a despir o casacão, amabilidade a que o rapaz não estava habituado, e quase sucumbiu a tanto peso.

– Ena, mulher – disse o lavrador a rir, quando passou pela cozinha com as grandes bilhas de leite a baloiçar. – Tás aí que nem t’aguentas. – Ela ajeitou as almofadas no sofá para o rapaz se encostar.


CONTINUA

Paul, sempre atrás dele, contornou o balcão quadrangular. A sala onde estava ficava no segundo andar. Tinha um grande buraco no meio do chão, rodeado por um muro de balcões, e era por essa abertura que subiam e desciam os elevadores e passava a luz para o andar de baixo. No tecto, na mesma direcção, havia também um buraco oblongo, e, olhando para cima, podiam ver-se algumas máquinas para lá da cercadura de protecção do andar superior; e, logo por cima, uma clarabóia por onde entrava a luz para os três andares, tornando-se cada vez mais fraca à medida que se descia mais fundo, o que deixava o rés-do-chão às escuras e o primeiro andar na penumbra. A fábrica estava instalada no último andar, o armazém no segundo e a arrecadação no rés-do-chão. O lugar era velho e insalubre.

Paul foi levado para um canto muito escuro.

– Aqui é a secção Espiral – disse o empregado. – Tu fazes a Espiral com o Pappleworth. É ele o teu chefe, mas ainda não veio. Só chega lá para as oito e meia. Por isso, se quiseres, podes ir buscar as cartas a Mr. Melling, ali adiante.

E o jovem apontou para o tal velho do gabinete do fundo.

– Está bem – disse Paul.

– Está aqui uma escápula para pendurares o boné... e aqui tens os livros de registo da correspondência. Mr. Pappleworth já não deve demorar.

E o jovem, muito magro, afastou-se altaneiro, com grandes passadas desenvoltas, que ressoavam secas no soalho.

Passados um ou dois minutos, Paul parou à porta do gabinete envidraçado. O velho funcionário, com o seu bonezinho, olhou-o por cima dos óculos.

– Ora muito bom dia – disse, afável e enfático. – Queres as cartas para levares para a Espiral, não é, Thomas?

Paul não gostou que ele lhe chamasse Thomas, mas pegou nas cartas e voltou para o seu recanto escuro, onde o balcão dobrava em ângulo, onde acabava a prateleira das embalagens, e onde, mesmo ao canto, se abriam três portas. Paul sentou-se num banco alto e começou a ler as cartas, pelo menos, aquelas cuja letra era mais legível. Diziam o seguinte:

«Queira enviar-me por favor, com a máxima urgência, um par de meias de seda Espiral para senhora, sem pé, idênticas às que me enviou o ano passado... altura... da anca ao tornozelo... etc.»

Ou então: «O Major Chamberlain deseja renovar o anterior pedido de uma ligadura suspensória em seda, não elástica.»

Muitas destas cartas, algumas delas em francês ou norueguês, eram um quebra-cabeças para o rapaz, que aguardava ansioso, sentado no banco, a chegada do «chefe». Às oito e meia, sofreu um ataque de timidez quando as raparigas do andar de cima passaram por ele a correr.

Mr. Pappleworth apareceu por volta das vinte para as nove, a mastigar uma pastilha elástica de mentol, quando já todos estavam a trabalhar. Era um homem magro e pálido, de nariz vermelho e gestos rápidos e peremptórios, trajando com austera elegância. Devia andar pelos trinta e seis anos e havia nele algo de canino, garboso, brincalhão e astuto, afectuoso talvez, mas simultaneamente algo de ligeiramente desprezível.

– És o meu novo ajudante? – perguntou. Paul pôs-se de pé e disse que sim.

– Foste buscar as cartas?

Mr. Pappleworth continuou a mastigar a pastilha.

– Sim.

– Copiaste-as?

– Não.

– Então anda cá, vamos pôr-te operacional. Já trocaste de casaco?

– Não.

– O melhor é trazeres um casaco velho e guardá-lo aí.

As últimas palavras foram pronunciadas com a pastilha apertada de lado, entre os queixais. Desapareceu na penumbra, por detrás da enorme prateleira das embalagens, e reapareceu já sem casaco, com uma elegante camisa às riscas com os punhos dobrados, deixando a descoberto uns braços magros e peludos. Depois, enfiou o outro casaco. Paul reparou na magreza deste homem e em como as calças faziam pregas no traseiro. Pegou num banco, puxou-o para junto do rapaz e sentou-se.

– Senta-te – disse o homem. Paul sentou-se. Mr. Pappleworth estava muito próximo dele. Pegou nas cartas, tirou um livro comprido, de registos, da prateleira em frente, abriu-o, pegou numa caneta e disse:

– Agora, presta atenção... Vais copiar estas cartas para aqui.

Fungou duas vezes, deu uma mastigadela na pastilha, olhou demoradamente para uma carta, quedou-se pensativo e deu entrada da carta rapidamente, numa caligrafia bonita e floreada. Depois, olhou de relance para Paul.

– Estás a ver?

– Estou.

– Achas que consegues fazer o mesmo... e bem feito?

– Acho que sim.

– Então, está bem... vamos lá a ver.

Saltou para o chão. Paul pegou numa caneta. Mr. Pappleworth desapareceu. Paul gostava bastante de copiar cartas, mas escrevia devagar, laboriosamente, e muito mal. Ia ele na sua quarta carta, todo feliz e atarefado, quando Mr. Pappleworth voltou.

– Ora vejamos... que tal vai isso... já ’cabaste?

Debruçou-se sobre o ombro do rapaz, sem parar de mastigar e a cheirar a mentol.

– Diabos me levem, rapaz... Mas que belo escritor que tu me saíste! – exclamou ele, trocista. – Não te rales, quantas já fizeste? Só três! Eu tinh’até tido tempo de sobra pràs comer. Continua, miúdo, e numera-as... assim, tás a ver? Continua!

Paul não largava as cartas, enquanto Mr. Pappleworth tratava de outros assuntos. Nisto, soou um apito agudo mesmo junto ao ouvido dele, e o rapaz assustou-se. Mr. Pappleworth aproximou-se, tirou um tampão de dentro de um tubo e disse, numa voz inesperadamente agreste e autoritária:

– Sim!

Paul ouviu uma voz sumida, provavelmente de mulher, a sair pelo tubo. Ficou embasbacado, pois nunca tinha visto um tubo falante.

– Bem – disse Mr. Pappleworth, num tom agastado, falando para o tubo – nesse caso, o melhor é fazer algum do trabalho em atraso.

De novo a voz aguda da mulher se fez ouvir, com um timbre bonito, mas zangado.

– Não tenho tempo para estar aqui a ouvi-la tagarelar – disse Mr. Pappleworth, e em seguida tapou o tubo.

– Vá, miúdo, despacha-te – disse ele, suplicante, virando-se para Paul. – Era a Polly aos gritos, quer as encomendas. Não consegues andar um bocadinho mais depressa? Vá... sai daí.

Pegou no livro, para imenso desgosto de Paul, e começou ele mesmo a escrever. Fazia-o depressa e bem. Uma vez terminadas as cópias, pegou numas tiras compridas de papel amarelo, com cerca de sete centímetros de largura, e preencheu as encomendas para enviar às operárias.

– É melhor prestares atenção – disse ele a Paul, sem se interromper. Paul olhou para aqueles estranhos desenhos de pernas, coxas e tornozelos, cheios de traços e números, e algumas instruções, com que o chefe preenchia as tiras amarelas. Quando acabou, Mr. Pappleworth saltou do banco.

– Vem comigo – disse ele, e, de papéis amarelos a esvoaçar na mão, desapareceu por uma porta e desceu uma escada em direcção à cave, onde ardia uma lamparina de gás. Atravessaram a arrecadação húmida e fria, depois uma sala comprida e lúgubre com uma mesa enorme assente sobre cavaletes e entraram numa sala mais pequena e acolhedora, de tectos não muito altos, que tinha sido construída como anexo do edifício principal. Nesta sala estava uma mulher de pequena estatura, com uma blusa de sarja vermelha e cabelo preto apanhado ao alto num carrapito, em atitude expectante, de galarote.

– Cá tão elas – disse Pappleworth.

– Eu penso que será «Cá estão elas»! – exclamou Polly. – As raparigas estiveram aqui à espera quase meia hora. Pense só no tempo que se perdeu!

– Pense mas é em fazer o seu trabalho e falar menos – disse Mr. Pappleworth. – Podia ter despachado outras coisas.

– Sabe muito bem que despachámos tudo no sábado – gritou Polly, avançando para ele faiscante.

– Blá-blá-blá! – arremedou-a o homem. – Aqui tem o seu novo ajudante. Não dê cabo deste como deu do outro.

– Como nós demos do outro! – repetiu Polly. – Pois é, nós damos cabo de muita coisa, olá se damos. Também lhe digo que qualquer rapaz tinha de ficar estragado depois de estar ao pé de si.

– Vá, vá... agora é hora de trabalhar, não de conversar – disse Mr. Pappleworth num tom seco e severo.

– Também há pouco era – disse Polly, afastando-se de cabeça bem erguida. Tinha um corpo pequeno e escorreito, de quarenta anos.

Na dita sala havia duas máquinas redondas, espiraladas, em cima do poial da janela. Na sala ao lado, que comunicava com a primeira e era mais comprida, havia outras seis máquinas. Algumas raparigas dignamente vestidas e de aventais brancos conversavam umas com as outras, formando um pequeno grupo.

Não têm mais nada para fazer? – disse Mr. Pappleworth.

– Só esperar por si – disse uma delas, bem bonita, rindo com gosto.

– Bom, toca a trabalhar, toca a trabalhar – disse ele. – Anda, miúdo. Da próxima vez, já sabes o caminho.

Paul correu escada acima atrás do chefe. Mandaram-no conferir algumas facturas e fazer outras. Ele arrimou-se à secretária, esforçando-se por cumprir a tarefa na sua caligrafia execrável. Nisto, Mr. Jordan aproximou-se, vindo do gabinete envidraçado, e, para grande atrapalhação de Paul, veio pôr-se mesmo por detrás dele. Subitamente, um dedo gordo e vermelho espetou-se sobre o documento que ele estava a preencher.

– Mr. J. A. Bates, Esquire! – bradou uma voz irada, junto ao seu ouvido.

Paul olhou para o «Mr. J. A. Bates Esquire» escrito na sua letra tortuosa, e perguntou-se o que estaria mal agora.

– Não te ensinaram a fazer como deve ser, enquanto andavas na escola? Se se põe «Mr.», não se põe «Esquire»... um homem não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.

O rapaz, lamentando a sua prodigalidade no modo como esbanjava títulos, hesitou e, com dedos trémulos, apagou a palavra «Mr.». Mas logo Mr. Jordan lhe arrancou a factura das mãos.

– Faz outra! Ou vais mandar isto a um cavalheiro? – E rasgou a factura azul, irritadíssimo.

Paul recomeçou, com as orelhas a arder de vergonha, sob o olhar atento de Mr. Jordan.

– Não sei o que é que eles vos ensinam na escola. Devias escrever muito melhor do que isso. Hoje em dia, os miúdos não aprendem nada a não ser recitar poesia e tocar violino... Já viu a letra dele? – perguntou Mr. Jordan a Mr. Pappleworth.

– Já... é de primeira... não é? – respondeu Mr. Pappleworth com indiferença. – Mas ele vai aprender.

Mr. Jordan resmungou qualquer coisa desagradável. Paul percebeu que o patrão ladrava mais do que mordia. Na verdade, o pequeno fabricante era suficientemente cavalheiresco, apesar do seu mau inglês, para deixar os empregados à vontade e não se prender com ninharias. Mas tinha consciência de não ter aspecto de ser o dono e senhor de tudo aquilo, e via-se por isso forçado a desempenhar o seu papel de vilão, para repor as coisas nos seus devidos lugares.

– Ora vamos lá a ver, como é que te chamas? – perguntou Mr. Pappleworth ao rapaz.

– Paul Morel.

É curioso o que as crianças sofrem para pronunciarem os seus nomes.

– Com que então, Paul Morel! Muito bem, vá, Paul Morel, toca a acabar essa coisa, e depois...

Mr. Pappleworth sentou-se num banco e começou a escrever. Uma rapariga entrou por uma porta mesmo atrás dele, depositou em cima do balcão uns artigos de malha elástica acabados de passar a ferro e voltou a sair. Mr. Pappleworth pegou na joelheira azul claro, examinou-a, confrontou-a rapidamente com a nota de encomenda amarela e pô-la de parte. Ao lado estava uma «perna» rosada, cor de carne. Conferiu os vários artigos, preencheu algumas notas de encomenda e disse a Paul que o acompanhasse. Desta vez, saíram pela porta por onde a rapariga tinha entrado. Paul viu-se no cimo de um pequeno lanço de escadas, e em baixo viu uma sala com janelas em duas das paredes e, no extremo oposto, meia dúzia de raparigas sentadas, curvadas sobre si mesmas, a costurarem à luz das janelas e a cantarem em coro, «Duas Meninas Vestidas de Azul». Ao ouvirem a porta abrir-se, todas se voltaram e viram Mr. Pappleworth e Paul a olharem para elas do outro lado da sala. Pararam de cantar imediatamente.

– Não podem fazer menos barulho? – disse Mr. Pappleworth. – As pessoas hão-de pensar que temos a casa cheia de gatas.

Uma mulher corcunda, sentada num banco alto, voltou para Mr. Pappleworth a cara comprida e circunspecta, e disse com voz de contralto:

– Só se esses forem gatos.

Mr. Pappleworth em vão tentou causar efeito para impressionar Paul. Desceu as escadas até à sala de acabamentos e dirigiu-se à corcunda, uma tal Fanny. O seu corpo era tão pequeno, empoleirado no alto do banco, que a cabeça, com grandes bandós de cabelo castanho-claro, parecia excessivamente grande, tal como o rosto, pálido e grave. Trazia um vestido de caxemira verde-escuro, e, quando pousou o trabalho nervosamente, viu-se que os seus pulsos, cingidos por punhos estreitos, eram finos e achatados. Ele mostrou-lhe uma joelheira que tinha um defeito qualquer.

– Ora – disse ela – não precisava de vir atirar as culpas para cima de mim... a culpa não é minha – disse, subindo-lhe um rubor às faces.

– Eu não disse que a culpa era sua... e agora faça o que lhe mandei! – ripostou Mr. Pappleworth, secamente.

– Não diz que a culpa é minha, mas quer fazer parecer que é – gritou a corcunda, quase a chorar. Depois, arrancou a joelheira das mãos do «chefe», dizendo: – Está bem, eu faço isso, mas não precisa de vir com duas pedras na mão.

– Aqui está o seu novo ajudante – disse Mr. Pappleworth.

Fanny voltou-se e sorriu gentilmente para Paul.

– Oh! – disse ela.

– Pois é... agora vejam lá se o estragam com mimos.

– Se alguém o estragar, não somos nós – disse ela, indignada.

– Vamos embora, Paul – disse Mr. Pappleworth.

– Au revoi, Paul – disse uma das raparigas.

Foi uma risota. Paul saiu, corado até à alma, sem dizer palavra.

O dia nunca mais acabava. Durante toda a manhã, foram os operários a vir falar com Mr. Pappleworth, e Paul a escrever ou a aprender a preparar as embalagens para a tiragem do meio-dia. À uma da tarde, ou melhor, quando faltava um quarto para a uma, Mr. Pappleworth desapareceu, para apanhar o comboio: vivia nos arredores. À uma, Paul, sentindo-se perdido, levou o cesto do farnel para a arrecadação da cave, onde estava a tal mesa comprida sobre cavaletes, e comeu à pressa, completamente sozinho naquele espaço de penumbra e desolação. Depois, foi passear para a rua. A claridade e a liberdade que sentia nas ruas tornavam-no feliz e afoito. Mas, às duas horas, voltou para o seu canto na sala grande. Não tardou que passassem as raparigas, metendo-se com ele. Eram as de mais baixa condição, as que trabalhavam no andar de cima em tarefas mais pesadas, como o fabrico de fundas e os acabamentos dos membros artificiais. Paul ficou a aguardar a chegada de Mr. Pappleworth, sem saber o que fazer, sentando-se a rabiscar nas notas de encomenda amarelas. Mr. Pappleworth chegou às vinte para as três, sentou-se e pôs-se a tagarelar com Paul, tratando o rapaz como seu igual, até na idade.

De tarde nunca havia muito que fazer, a não ser que fosse perto do fim-de-semana e as contas tivessem de ser fechadas. Às cinco horas, todos os homens foram até à «masmorra» da mesa de cavaletes, onde tomaram chá e pão com manteiga em cima das tábuas nuas e imundas, conversando com a mesma avidez e grosseria com que tomavam a refeição. No entanto, lá em cima, o ambiente era sempre alegre e desanuviado. Certamente a cave e os cavaletes deixavam-nos transtornados.

Depois do chá, quando todos os bicos de gás estavam acesos, o trabalho fluía com mais rapidez. Era preciso despachar as encomendas para o correio da tarde. As meias chegavam lá acima ainda quentes, acabadinhas de passar, directamente das oficinas. Paul já tinha passado todas as facturas. Faltava-lhe fazer agora as embalagens e endereçá-las, e depois pesar as suas encomendas na balança. Por todo o lado se ouviam vozes a gritar pesagens, o tilintar de metais, o estalar nervoso dos cordéis, a corrida ao gabinete de Mr. Melling, para os selos. Finalmente, chegou o carteiro, sorridente e bem-disposto, como seu enorme saco. Depois a agitação abrandou, Paul pegou no cesto do farnel e correu para a estação, para apanhar o comboio das oito e vinte. O dia de trabalho era exactamente de doze horas.

A mãe esperava por ele, ansiosa. Paul tinha de ir para casa a pé desde Keston, pelo que não chegou a casa antes das nove e vinte; e tinha saído de casa antes das sete da manhã. Mrs. Morel preocupava-se com a saúde do filho, mas também ela já tivera de enfrentar tantas dificuldades, que esperava que os filhos tivessem agora a mesma genica. Teriam de suportar o que fosse preciso. Assim, Paul manteve-se na Jordan, embora durante a sua permanência nesse emprego a sua saúde sofresse com a falta de luz e de ar fresco, e as longas horas de trabalho.

Quando chegou, vinha pálido e cansado. A mãe olhou para ele, mas viu-o tão satisfeito que a sua preocupação desapareceu.

– Então, como é que foi? – perguntou ela.

– Foi tão engraçado, mãe – respondeu ele. – O trabalho não é nada pesado e eles foram muito bons para mim.

– E saíste-te bem?

– Claro... só dizem que a minha letra é péssima. Mas Mr. Pappleworth... o meu chefe... disse a Mr. Jordan que eu ia aprender. Estou na Espiral, mãe. Tem de ir lá ver. É tão bom...

Paul contou tudo à mãe, tudo o que tinha visto, pensado, todos os pormenores da experiência que vivera. A única coisa que escondeu dela foi o ter escrito «Mr. J. A. Bates Esquire». Isso, ele não queria que ela soubesse; sentia muita vergonha. Também não lhe relatou nada de mais desagradável que lhe tivessem dito, só as coisas boas, tentando fazê-la crer que estava feliz e era estimado, e que a vida lhe corria de feição... o que geralmente acontecia. Contou-lhe tudo, excepto as pequenas vergonhas ou ignomínias; jamais suportaria vê-la envergonhada ou vexada por sua causa.

Paul depressa aprendeu a gostar da Jordan. Mr. Pappleworth, que tinha um certo ar de frequentador de bares, tratava-o sempre com naturalidade, como se fossem amigos de longa data. Às vezes, o chefe da Espiral irritava-se, e então mastigava pastilhas elásticas sem parar. Mesmo assim, nunca era ofensivo, mas sim uma daquelas pessoas que se magoam mais a si próprias do que aos outros com a sua irritabilidade.

– Ainda não fizeste isso? – gritava ele. – Já vi que és um mês só com domingos.

E logo se punha de novo alegre e brincalhão, o que deixava Paul muito confuso.

– Amanhã trago a minha cadelinha Yorkshire terrier – disse ele a Paul, rejubilando.

– O que é isso de Yorkshire terrier?

– O quê? Pois tu não sabes o que é uma Yorkshire terrier?... Não saber o que é um Yorkshire! – Mr. Pappleworth estava pasmado.

– É um cãozinho de pêlo sedoso... em tons de ferrugem e prata oxidada?

– É isso mesmo, meu rapaz. A minha é uma pérola. Já teve cachorrinhos que me renderam cinco libras, e ela própria vale mais de sete libras: e não chega a pesar uma libra e meia...

No dia seguinte, a cadela veio com ele. Era dez réis de cão tremeliquento. Paul não lhe ligou nenhuma; a cadela mais parecia um trapo molhado sem esperança de secar. Nisto, um dos homens chamou-a e começou a dizer piadas grosseiras. Mas Mr. Pappleworth meneou a cabeça na direcção do rapaz e a conversa prosseguiu a meia-voz.

Mr. Jordan fez apenas mais uma excursão à Espiral, para inspeccionar o trabalho de Paul e o único reparo que lhe fez, ao ver o rapaz pousar a caneta no balcão, foi:

– Tens de pôr a caneta na orelha, se queres ser um caixeiro a sério. Vá, caneta na orelha!

Num outro dia, disse ao rapaz:

– Não endireitas mais esses ombros porquê? Ora vem cá. E levou-o ao gabinete envidraçado, onde lhe colocou uns suspensórios especiais para manterem os ombros direitos.

Mas Paul preferia a companhia das raparigas. Os homens pareciam-lhe grosseiros e pouco espertos. Simpatizava com todos eles, mas achava-os desinteressantes. Ao encontrar Paul a comer na cave, Polly, a supervisora baixinha e sirigaita do rés-do-chão, perguntou-lhe se ele não queria que ela lhe cozinhasse alguma coisa no seu fogareiro e, no dia seguinte, a mãe mandou-lhe uma refeição que podia ser aquecida. Ele levou-a à salinha limpa e aconchegada onde Polly trabalhava, e depressa adquiriu o hábito de almoçar com ela. Quando chegava ao trabalho, às oito da manhã, levava-lhe o cesto, e quando descia à uma hora, já o almoço estava pronto.

Paul era pálido, não muito alto, cabelo espesso e castanho, feições irregulares e uma boca rasgada, de lábios cheios. Ela parecia um passarinho, e ele até a tratava muitas vezes por pisco. Embora fosse geralmente muito calado, com ela passava horas sentado a conversar, a contar-lhe peripécias familiares. Todas as raparigas adoravam ouvi-lo; formavam muitas vezes um círculo à sua volta, enquanto ele discursava e ria, sentado num banco. Algumas consideravam-no um fulaninho curioso, tão sério e, no entanto, tão inteligente e bem-disposto, e sempre tão delicado no modo como as tratava. Todas gostavam dele e ele adorava-as. Com Polly era diferente; a essa, ele sentia que pertencia. Mas era Connie, com a sua farta cabeleira ruiva, a sua tez de flor de macieira, a voz sussurrada, e sempre tão distinta no seu vestido preto já gasto, que apelava ao seu lado romântico.

– Quando te sentas a enrolar a meada – disse ele – parece que estás a fiar na roca... é um quadro tão bonito. Faz-me lembrar a Elaine, dos Idílios do Rei. Se eu soubesse, desenhava-te. – Ela olhou para ele de relance, timidamente ruborizada. Mais tarde, havia um esboço de que ele muito gostava: Connie sentada num banquinho, em frente à roca, a longa crina ruiva flamejante sobre o vestido preto ruçado, e os lábios rubros selados e muito sérios, a passar o fio escarlate do novelo para a bobina.

Com Louie, bonita e atiradiça, que parecia estar sempre a provocá-lo com o menear das ancas, punha-se geralmente a brincar.

– O que estás a fazer?

– Porque queres saber? – respondeu ela, levantando a cabeça, atrevida.

– Porque acho que tu não te conheces.

– Porquê?

– Porque não tens ar de te conheceres.

– Então tenho cara de quê?

– Tens cara de quem está sempre a pensar nalguma coisa. Em que é que estavas a pensar?

Ela olhou-o pelo canto do olho e disse, com uma gargalhada:

– Isso era o que tu querias saber, não era?

– Sai daí – disse ele. – Vamos lá dar uma volta à tua meia.

E, depois, pegando na manivela da máquina, começou a rodá-la.

Mas ela empurrou-o.

– Isso vai ficar tudo mal – exclamou.

E ficaram os dois a olhar um para o outro, a rir às gargalhadas.

Emma era bastante feia, e não era nem nova nem condescendente. Sentia-se, porém, feliz por se mostrar condescendente com Paul. E ele não se importava.

– Como é que se metem as agulhas? – perguntou ele um dia.

– Sai daqui, não me maces.

– Mas eu devia saber como é que se metem as agulhas.

Ela continuou a coser à máquina, sem pestanejar.

– Há tantas coisas que devias saber – respondeu ela.

– Então ensina-me a colocar as agulhas na máquina.

– Ai, este rapaz sempre é muito maçador! ... Pronto, é assim que se faz...

Ele observou-a atentamente. Nisto, soou um apito, e a seguir Polly entrou e perguntou em voz bem audível:

– Paul, Mr. Pappleworth quer saber por quanto tempo vais ficar cá em baixo a brincar com as raparigas.

Paul correu pela escada acima, a gritar «Adeusinho!», e Emma endireitou-se na cadeira e explicou:

– Não fui eu que quis que ele estivesse a brincar com a máquina.

– Qu’é qu’andavas a fazer? – perguntou Mr. Pappleworth, quando o rapaz apareceu.

– Estava só a falar com a Emma, e a aprender a colocar as agulhas na máquina.

– O melhor é pegares no teu trabalho e mudares-te lá pra baixo.

– Mas aqui não havia nada de especial para fazer, pois não?

– Mal tu saíste daqui, o patrão veio à tua procura. Um dia sai-te caro! E então estes registos?

Paul meteu mãos à obra cheio de vontade.

Regra geral, quando as raparigas voltavam, às duas horas, ele ia ao andar de cima ter com Fanny, a corcunda, que trabalhava nos acabamentos.

Mr. Pappleworth só chegava às vinte para as três, e vinha encontrar muitas vezes o rapaz sentado ao lado de Fanny a conversar, a desenhar ou a cantar com as raparigas.

– Vem cá, Paul, meu querido – gritava a Fanny. – Até pensámos que hoje não vinhas cá acima. Pensávamos que ias ficar lá em baixo por não gostares da nossa companhia.

– Fui à cidade.

– Para quê, meu lindo?

– Para ver se encontrava uma cestinha de mirtilos para a minha mãe.

– E encontraste?

E, uma vez iniciada a conversa, nunca mais terminavam. Paul gostava muito de Fanny e a corcunda gostava muito dele. Ela tinha vinte e nove anos e sofrera muito. Ele gostava de ficar sentado ao lado dela, à janela, a olhar para a rua e a desenhar a bizarra floresta de chaminés e telhados antigos e bicudos que a vista alcançava. Depois dizia:

– Canta qualquer coisa, Fanny.

– Sabes que mais? Tu não queres que eu cante – dizia ela, manejando a agulha com destreza, com as mãos magras e nervosas. – Tu queres é fazer pouco de mim.

– Não quero nada! Mas é que eu disse à minha mãe que cantavas muito bem...

– Não sei o que é que a tua mãe ia pensar de mim, se me visse, Paul. Ia pensar que eu era um macaco encarrapitado num pau.

– Ela sabe como tu és, porque eu já lhe contei. E gosta de ti. Canta lá «Naquela Taberna...». Este desenho vai ficar uma maravilha.

E, passado um minuto de hesitação, Fanny começou a cantar. Tinha uma bela voz de contralto, e todas as raparigas cantaram em coro e muito afinadas. Paul não se sentia nada embaraçado por estar ali sentado no meio das mulheres.

Quando terminou, Fanny disse:

– Sei que estão a fazer troça de mim.

– Não sejas assim, Fanny! – exclamou uma das colegas.

Uma outra vez, falou-se no cabelo ruivo de Connie.

– Cá pra mim, acho o da Fanny mais bonito – disse Emma.

– Não precisas de fazer pouco de mim – disse Fanny, agastada.

– Mas ela tem o cabelo mesmo bonito, Paul.

– É uma cor especial – disse ele. – Aquela cor fria, como a terra, e mesmo assim brilhante... como um pântano.

– Santo Deus! – exclamou uma das raparigas, a rir.

– Estás a ver como só me criticam? – disse Fanny.

– E havias de o ver solto, Paul – gritou Emma, falando a sério. – É simplesmente uma beleza. Solta o cabelo pra ele ver, Fanny, pode ser que ele o queira pintar.

Fanny recusou-se, e, no entanto, era o que mais queria fazer.

– Então solto-lho eu – disse o rapaz.

– Bem, já que insistes – disse Fanny.

Paul tirou os ganchos do carrapito com todo o cuidado, e a longa cabeleira, num tom castanho-escuro uniforme, caiu sobre a corcunda.

– Que maravilha! – exclamou ele.

As raparigas observavam-no. Reinava o silêncio. O jovem soltou-lhe mais o cabelo.

– É esplêndido – disse, sentindo-lhe o perfume. – Aposto que vale muitas libras.

– Deixo-to quando morrer – disse Fanny, em tom de brincadeira.

– Pareces-te com qualquer de nós, sentada a secar o cabelo – disse uma das raparigas à colega corcunda e pernalta.

A pobre da Fanny era morbidamente susceptível, em tudo adivinhando insultos, ao passo que Polly era directa e factual. As duas secções estavam permanentemente em guerra, e Paul vinha constantemente encontrar Fanny lavada em lágrimas. Fanny contava-lhe todas as suas mágoas, e ele, depois, ia defendê-la junto de Polly.

A filha de Mr. Jordan era pintora. Um dos seus modelos era Connie, que lhe falou de Paul. Primeiro, Miss Jordan pediu para ver alguns dos seus desenhos, e, a seguir, veio ela própria falar com ele. Era uma mulher fria e impessoal, mas mostrou algum interesse pelo rapaz.

E assim foi correndo o tempo, em harmonia. A fábrica tinha um ambiente agradável. Ninguém era empurrado ou pressionado. Paul até gostava quando o trabalho acelerava perto da hora do correio e todos se entreajudavam. Gostava de ver os colegas em acção. O homem era o trabalho e o trabalho era o homem, unidos num só. Com as raparigas era diferente. A verdadeira mulher parecia nunca estar ali presente no trabalho – era como se estivesse de fora, à espera.

Da janela do comboio, quando à noite regressava a casa, observava as luzes da cidade povoando as colinas e fundindo-se nos vales com um clarão ardente. E Paul sentia-se rico de experiência e felicidade. Mais adiante, havia uma mancha de luz em Bulwell, como miríades de pétalas caídas das estrelas sobre a terra; e, mais além, o jorro incandescente das fornalhas, projectando nas nuvens o seu sopro abrasador.

Chegado a Keston, ainda tinha de andar mais de duas milhas até casa, subindo duas colinas mais longas e descendo outras duas mais curtas. Sentindo-se muitas vezes cansado, ia contando os candeeiros à medida que subia, para ver quantos ainda faltavam. E, do alto da colina, nas noites de breu, via as aldeias espalhadas a toda a volta, a cinco ou seis milhas de distância, enxameando a noite de vida e luz, quase como um céu aberto a seus pés. Marlpool e Heanor semeavam de cintilações a escuridão mais longínqua. Uma vez por outra, o negro vale que se interpunha lá em baixo, era riscado, violado por um interminável comboio que rolava célere para sul, em direcção a Londres, ou rumo ao norte, para a Escócia. Os comboios troavam como projécteis na escuridão, fumegantes e acesos, fazendo retinir o vale à sua passagem. Mas logo desapareciam, e as luzes das cidades e das aldeias cintilavam outra vez, mergulhadas no silêncio.

Chegava, por fim, à esquina da casa, virada para o outro lado da noite. O freixo parecia agora um amigo. A mãe vibrava de alegria vendo-o chegar. Ele depositava os oito xelins orgulhosamente sobre a mesa.

– Fazem-lhe jeito, mãe? – perguntava, ansioso.

– Não vai sobejar quase nada depois de descontar o bilhete, as refeições e tudo o mais.

Em seguida, punha-a ao corrente dos acontecimentos do dia. A história da sua vida, como nas Mil e Uma Noites, mas muito mais monótona, era contada à mãe noite após noite. E ela escutava e era quase como se a vida fosse dela.


VI

UMA MORTE NA FAMÍLIA

ARTHUR MOREL ia crescendo. Era um rapaz vivo, descuidado e impulsivo, muito parecido com o pai. Tinha horror aos estudos, resmungava sempre que tinha de trabalhar e escapava-se o mais depressa que podia, para voltar para a brincadeira.

Fisicamente, continuava a ser o menino bonito da família, bem constituído, gracioso, cheio de vida. O cabelo castanho-escuro, a frescura da tez e os olhos raros, de um azul profundo e sombreados de longas pestanas, a par dos seus modos generosos e temperamento fogoso, faziam dele o preferido. Mas, à medida que crescia, o temperamento ia-se tornando instável. Tinha acessos de fúria por tudo e por nada, e mostrava-se insuportavelmente violento e irritável.

A mãe, de quem tanto gostava, já começava a perder a paciência. Arthur só pensava em si próprio. Detestava tudo o que se interpusesse entre si e o seu prazer, mesmo quando esse «tudo» era a mãe. Mas, quando se metia em apuros, era com ela que tinha intermináveis desabafos.

– Meu Deus, rapaz – disse ela, quando ele se veio queixar de um professor que, segundo ele, o tomara de ponta – se não te agrada a situação, tens de a fazer mudar, e se não podes mudar nada, tens de te adaptar.

Quanto ao pai, que ele amara desmedidamente e que o idolatrava, acabou por detestá-lo. Com a idade, Morel transformou-se lentamente numa ruína viva. O seu corpo, em tempos belo nas formas e na agilidade, mirrou com os anos, não parecendo ter amadurecido, mas, pelo contrário, ter-se tornado insignificante e desprezível, emanando baixeza e mesquinhez. E sempre que este homem de meia-idade e olhar perverso o injuriava ou o tratava com prepotência, Arthur ficava furioso. Ainda por cima, os modos de Morel eram cada vez mais grosseiros, e os seus hábitos quase repugnantes. Na fase de crescimento dos filhos e durante o período crítico da adolescência, o pai surgia-lhes aos olhos da alma como um ser feio e irritante. Em casa, os seus modos eram idênticos aos que usava com os outros mineiros no fundo da mina.

– Monstro nojento! – gritava Arthur, saltando da cadeira e saindo de casa, quando o pai o enojava.

E Morel fazia ainda pior, por saber que as crianças o detestavam. Parecia sentir prazer em afrontá-las, a ponto de quase as enlouquecer, quando, aos catorze ou quinze anos, atravessavam a fase de extrema sensibilidade e irritabilidade. Assim, Arthur, que cresceu quando o pai já se encontrava em declínio e a caminho da velhice, odiava-o acima de tudo.

Por vezes, o pai parecia pressentir todo esse ódio e desprezo que os filhos tinham por ele.

– Não há homem que se sacrifique mais pela família – bordava então. – Faz por eles tudo o que pode, e tratam-no como um cão. Mas eu tenho força para aguentar, estão a ouvir!

Não fora o tom ameaçador e o facto de não fazer por eles tanto quanto pensava, e teriam até sentido pena. Nesta altura, a guerra instalava-se quase sempre entre pai e filhos, com o primeiro persistindo nos seus modos grosseiros só para afirmar a sua autoridade. Os filhos detestavam-no.

Por fim, Arthur já andava tão exaltado e irritado que, quando ganhou uma bolsa para ir para a escola secundária de Nottingham, a mãe achou por bem deixá-lo ficar a viver na cidade com uma das suas irmãs, vindo apenas a casa aos fins-de-semana.

Annie ainda era professora estagiária na escola primária, onde ganhava quatro xelins por semana. Mas em breve seriam quinze, uma vez que passara o exame final, o que traria à família tranquilidade financeira.

Mrs. Morel era muito agarrada a Paul. Ele era calado e não excessivamente inteligente, mas continuava fiel à pintura e à mãe. Tudo o que fazia era para ela. E ela esperava pela sua chegada à noitinha, para desabafar com ele todos os seus pensamentos, tudo o que lhe acontecera durante o dia. E ele ouvia-a, sentado e atento. Era o partilhar de duas vidas.

William estava noivo da tal morena, e tinha-lhe comprado um anel de noivado que custara oito guinéus. Os irmãos ficaram sem fôlego perante soma tão fabulosa.

– Oito guinéus! – disse Morel. – Bem parvo é!... Ficava-lhe melhor se me tivesse dado antes algum a mim.

– Dar-te algum, a ti! – exclamou Mrs. Morel. – Porque havia ele de te dar algum?

Mrs. Morel lembrou-se de que o marido não lhe tinha comprado anel de noivado e, a seu ver, antes ser como o William, que não era mesquinho, embora pudesse ser parvo. Mas agora o jovem só falava nos bailes a que tinha ido com a noiva e nos vestidos deslumbrantes que ela usava; ou então contava à mãe, rejubilante, como tinham os dois ido ao teatro em grande estilo.

William queria trazer a namorada para os pais conhecerem, e Mrs. Morel disse-lhe que a trouxesse no Natal. Desta vez, William chegou acompanhado de uma senhora, mas sem presentes. Mrs. Morel tinha preparado a ceia. Ao ouvir passos, levantou-se e foi à porta. William entrou.

– Olá, mãe! – deu-lhe um beijo apressado, chegou-se para o lado e apresentou-lhe uma rapariga alta e bonita, vestida com um saia-e-casaco preto e branco aos quadradinhos e uma estola de peles.

– Cá está a Ciganita!

Miss Western estendeu a mão e rasgou um sorriso de muitos dentes.

– Oh, como está, Mrs. Morel! – exclamou.

– Devem estar com fome – disse Mrs. Morel.

– Não, não estamos. Jantámos no comboio... Tens as minhas luvas, Fofinho?

William Morel, alto e ossudo, olhou para ela acto contínuo.

– Como é que havia de tê-las? – disse ele.

– Então perdia-as. Não te zangues comigo...

Viu-se que ele tinha ficado aborrecido, mas não disse nada. Ela relanceou o olhar pela cozinha. Achou-a pequena e bizarra, com o ramo de azevinho pendurado na parede e as sempre-vivas por detrás das fotografias, as cadeiras de madeira e a mesinha de jogo. Nessa altura, entrou Morel.

– Olá, pai!

– Olá, meu filho... Mas que surpresa!

Apertaram as mãos, e William apresentou-lhe a senhora. Ela reeditou o sorriso, mostrando os dentes.

– Como está, Mr. Morel. – Morel inclinou-se respeitosamente.

– Tou bem, obrigado, e espero que também esteja... Seja muito bem-vinda.

– Ah, obrigada – respondeu ela, bastante divertida.

– Há-de querer ir para cima – disse Mrs. Morel.

– Se não se importa... mas só se não a incomodar.

– Não incomoda nada... A Annie vai consigo... Walter, leva este baú para cima.

– E não leves uma hora a aperaltar-te – disse William para a noiva.

Annie pegou num candelabro de latão e, muda de vergonha, subiu à frente da jovem até ao quarto principal, que Mr. e Mrs. Morel lhe tinham cedido. Era também pequeno e frio, iluminado apenas pelas velas. As mulheres dos mineiros só acendiam as lareiras nos quartos em caso de doença muito grave.

– Quer que desaperte as correias do baú?

– Ah, muito obrigada!

Annie estava a fazer o papel de criada. Em seguida voltou para baixo para ir buscar água quente.

– Ela deve estar muito cansada, mãe – disse William. – É uma viagem muito violenta, e na correria em que andámos...

– Queres que lhe leve alguma coisa? – perguntou Mrs. Morel.

– Não, não... Ela está bem.

Mas havia um certo gelo no ar. Passada mais de meia hora, Miss Western desceu, envergando um vestido em tons de púrpura, demasiado fino para a cozinha do mineiro.

– Tinha-te dito que não precisavas de trocar de roupa – disse William.

– Deixa lá, Fofinho!... – E, mantendo o sorriso adocicado, voltou-se para Mrs. Morel: – Não acha que ele está sempre a resmungar, Mrs. Morel?

– Ah, está? – disse Mrs. Morel. – Isso é muito feio.

– E é mesmo!

– Deve estar com frio – disse a mãe. – Não quer vir para a la-reira? – Morel saiu imediatamente da cadeira de braços.

– Venha pr’àqui – exclamou ele. – Venha pr’àqui.

– Não, pai... Não saia da sua cadeira... senta-te no sofá, Ciganita – disse William.

– Não senhor! – insistiu Morel. – Esta cadeira é mais quente. Venha sentar-se aqui, Miss Wesson.

– Muitíssimo obrigada – disse a rapariga, sentando-se na cadeira de braços do mineiro, ou seja, o lugar de honra. Teve uma tremura ao sentir o calor da cozinha invadi-la.

– Vai buscar-me um lenço, Fofinho! – disse ela, fazendo beicinho e dirigindo-se-lhe no tom íntimo de quando estavam sozinhos, o que fez os restantes membros da família sentirem-se como intrusos. Era evidente que a jovem não os considerava como pessoas: para ela não passavam de criaturas. William estremeceu.

Se aquela casa fosse em Streatham, Miss Western seria a senhora, condescendendo a conviver com a camada inferior. Para ela, estas pessoas eram no mínimo grotescas – numa palavra, da classe trabalhadora. Como poderia ela adaptar-se?

– Eu vou – disse Annie.

Miss Western ignorou-a, como teria feito com uma criada, e só quando ela voltou para baixo com o lenço disse então, com afabilidade:

– Oh, muito obrigada.

Depois, desatou a falar: do jantar no comboio, que não tinha prestado para nada, de Londres, dos bailes. Via-se que estava muito nervosa e era o medo que a fazia falar. Morel, sentado a fumar um tabaco muito forte, observava-a enquanto lançava baforadas de fumo para o ar e ouvia com atenção a sua petulante algaraviada londrina. Mrs. Morel, ostentando a sua melhor blusa de seda preta, ia-lhe respondendo com calma e poucas palavras. Os outros filhos estavam sentados, em admirativo silêncio. Miss Western era a princesa. Tinham ido buscar tudo o que havia de melhor para a servir: as melhores chávenas, as melhores colheres, a melhor toalha, o melhor bule. As crianças achavam que ela devia estar a apreciar muito o acolhimento. Mas ela sentia-se mal, por não entender as pessoas, por não saber como tratá-las. William ia dizendo piadas, sentindo-se ligeiramente comprometido.

Por volta das dez horas, disse-lhe:

– Não estás cansada, Ciganita?

– Muito, Fofinho – respondeu ela, com voz melada e inclinando a cabeça ligeiramente para o lado.

– Acendo a vela, mãe? – disse ele.

– À vontade – respondeu a mãe.

Miss Western levantou-se e estendeu a mão a Mrs. Morel.

– Boa noite, Mrs. Morel – disse ela.

Paul, sentado em frente da caldeira, deixou jorrar a água da torneira para dentro de uma garrafa de cerveja em grés. Annie abafou a garrafa numa velha camisola da mina, e deu à mãe um beijo de boas-noites. Com a casa cheia, ia ter de dormir com a senhora.

– Espera um bocadinho – disse Mrs. Morel à filha. Annie sentou-se com a botija ao colo. Miss Western despediu-se de todos com um aperto de mão, para grande atrapalhação dos presentes, e saiu, precedida por William. Passados cinco minutos, ele voltou para baixo. Sentia o coração oprimido, sem saber porquê. Falou muito pouco até todos se terem ido deitar, excepto ele e a mãe. Depois, foi pôr-se de pé frente à lareira, de pernas afastadas como costumava fazer noutros tempos, e disse, titubeante:

– Então, mãe?

– Então o quê, meu filho?

A mãe sentou-se na cadeira de baloiço. Sentia-se de certo modo ferida e humilhada por causa dele.

– Gosta dela?

– Gosto – tardou a resposta.

– Ela ainda está pouco à vontade, mãe... não está acostumada a tudo isto. É muito diferente da casa da tia dela, sabe.

– Claro que é, meu filho... Deve ser difícil para ela.

– Pois é. – E, de repente, a expressão carregou-se-lhe. – Se ao menos ela não pusesse aqueles benditos ares!

– É só a primeira reacção, meu filho. Aquilo passa-lhe.

– Tem razão, mãe – respondeu ele, gratificado. Mas o olhar continuava triste. – Sabe, ela não é como a mãe... não é compenetrada... e não se cansa muito a pensar.

– Ela é muito nova, meu filho.

– É isso!... E não teve sorte nenhuma. A mãe morreu quando ela era criança, e desde então vive com uma tia que ela já não consegue aturar. E o pai era um patife... Faltou-lhe o amor.

– Sério?!... Bem, nesse caso tens de a compensar de tudo isso.

– E perdoar-lhe muitas coisas.

– Que coisas é que tens de lhe perdoar, meu filho?

– Sei lá... quando ela se mostra superficial, por exemplo... É preciso lembrarmo-nos de que ela nunca teve ninguém que fizesse desabrochar o seu lado mais profundo... E ela gosta tremendamente de mim.

– Isso qualquer pessoa pode ver.

– Mas, sabe uma coisa, mãe... ela... ela é diferente de nós. As pessoas como ela, aquelas com quem se dá... não parecem ter os mesmos princípios que nós.

– Não deves fazer juízos precipitados – disse Mrs. Morel. Mas ele parecia contrafeito.

De manhã, contudo, levantou-se e pôs-se a cantar pela casa toda.

– Olá! – chamou ele, saudando-a do fundo das escadas, onde estava sentado. – Já te estás a levantar?

– Já – respondeu ela lá de cima, com voz sumida.

– Feliz Natal! – gritou ele.

No quarto, ouviu-se o riso dela, bonito e musical. Mas ela só desceu meia hora depois.

– Ela estava mesmo a levantar-se, quando disse? – perguntou William a Annie.

– Estava, sim – respondeu Annie.

William aguardou uns instantes e voltou para as escadas.

– Feliz Ano Novo! – gritou ele.

– Obrigada, Fofinho do meu coração! – disse uma voz risonha, de muito longe.

– Despacha-te! – implorou ele.

Tinha passado quase uma hora, e ele à espera dela. Morel, que se levantava sempre antes das seis, olhou para o relógio.

– Bem, já vi qu’é das que s’atrasam! – exclamou.

Já todos tinham tomado o pequeno-almoço, excepto William, que se foi postar ao fundo das escadas.

– Será que vou ter de mandar aí para cima um ovo de Páscoa? – gritou ele, já zangado. Ela limitou-se a rir. A família esperava algo de mágico depois de tão longa preparação. Finalmente, ela apareceu, com uma saia e uma blusa que lhe ficavam muito bem.

– Levaste mesmo todo este tempo para te vestires? – perguntou ele.

– Oh, Fofinho!... Isso não é pergunta que se faça, pois não, Mrs. Morel?

A princípio, ela representou o papel da grande dama. Quando entrou na capela ao lado de William, ele de fraque e chapéu de seda, e ela de estola de peles e saia-casaco dos melhores costureiros de Londres, Paul, Arthur e Annie esperavam que todos se curvassem até ao chão, em êxtase. E Morel, observando o parzinho galante do fundo da rua, com o seu fato domingueiro, sentia-se o pai do príncipe e da princesa.

Porém, a dama não era assim tão grande. Trabalhava desde há um ano como uma espécie de secretária, ou escriturária, num escritório de Londres.

Mas enquanto esteve com os Morels parecia uma rainha: sentava-se à mesa e deixava que Annie e Paul a servissem, como se fossem seus criados. Tratava Mrs. Morel com alguma petulância e Morel com paternalismo. Mas, passados um ou dois dias, a sua atitude começou a mudar.

William pedia sempre a Paul ou Annie que os acompanhassem nos passeios que davam. Era muito mais divertido. E Paul sentia real admiração pela Cigana, uma admiração genuína. Na verdade, a mãe não podia perdoar ao filho a adoração que mostrava pela jovem.

No segundo dia, quando Lily disse:

– Annie, sabes por acaso onde terei deixado o meu regalo? William respondeu:

– Sabes muito bem que está no teu quarto. Para que perguntas à Annie?

E Lily lá foi ao quarto, amuada, de lábios crispados. O rapaz já não suportava vê-la fazer da irmã uma criada.

Na terceira noite, William e Lily foram sentar-se na sala, às escuras, frente à lareira. Quando era um quarto para as onze, ouviram Mrs. Morel a abafar o borralho. William veio para a cozinha, seguido da namorada.

– Já é assim tão tarde, mãe? – disse ele. A mãe tinha passado a noite sozinha.

– Não quer dizer que seja tarde, meu filho... mas é tarde para eu continuar a pé.

– Então, porque não se vai deitar? – perguntou ele.

– E deixar os dois aqui sozinhos?... Não, meu filho, isso eu não faço.

– A mãe não tem confiança em nós?

– Tenha ou não tenha, é a mesma coisa... Podem ficar aqui até às onze horas, se quiserem, e eu leio mais um bocadinho.

– Vai deitar-te, Ciganita – disse William. – Não podemos fazer esperar a minha mãe.

– A Annie deixou a vela acesa, Lily – disse Mrs. Morel. – Acho que a luz será suficiente.

– Claro, obrigada. Boa noite, Mrs. Morel.

William acompanhou a namorada até ao fundo das escadas, deu-lhe um beijo e ela foi para o quarto. Ele voltou para a cozinha.

– Não tem confiança em nós, mãe? – insistiu ele, todo ofendido.

– Meu filho, já te disse que eu não vou deixar dois pombinhos como vocês sozinhos cá em baixo, com toda a gente a dormir.

E o filho não teve outro remédio senão contentar-se com a resposta. Deu um beijo à mãe e foi deitar-se.

Na Páscoa, chegou sozinho. Depois, falou longamente com a mãe sobre a namorada.

– Sabe, mãe... quando estou longe dela, nem penso nela... se não voltasse a vê-la, era a mesma coisa. Mas, quando estou com ela, à noite, gosto muito dela.

– É um amor muito estranho para acabar em casamento – disse Mrs. Morel. – Se é só isso que ela representa para ti!

– É engraçado! – exclamou William, entre o preocupado e o perplexo. – E, no entanto... Há demasiadas coisas entre nós, para eu desistir dela agora.

– Tu lá sabes – disse Mrs. Morel. – Mas, se é como dizes, eu não lhe chamaria amor... pelo menos, não parece.

– Não sei, mãe. Ela é órfã, e...

Acabaram por não chegar a uma conclusão. Ele parecia confuso e aborrecido. Ela era muito reservada. Ele gastava todas as suas energias e dinheiro com esta rapariga. Quando veio a casa, mal tinha dinheiro para levar a mãe a Nottingham.

O salário de Paul, para grande alegria sua, tinha sido aumentado no Natal para dez xelins. O rapaz continuava muito satisfeito najordan, mas a sua saúde começou a ressentir-se do pesado horário de trabalho e das condições de isolamento. A mãe, para quem ele era cada vez mais importante, pensou em como poderia ajudá-lo.

A tarde de folga dele era à segunda-feira. Numa segunda-feira, em Maio, quando estavam os dois sozinhos a tomar o pequeno-almoço, ela disse:

– Acho que vamos ter um lindo dia.

Ele olhou-a surpreendido. Alguma coisa ela tinha para lhe dizer.

– Sabias que Mr. Leivers foi morar para uma quinta nova? Pois bem, ele convidou-me a semana passada para ir fazer uma visita a Mrs. Leivers, e eu prometi-lhe que te levava lá hoje, se estivesse bom tempo. Então, vamos?

– Oh, mãezinha, mas isso é óptimo! – exclamou Paul. – Vamos esta tarde, não é?

– Se não estiveres muito cansado... olha que é uma grande caminhada.

– A que distância fica?

– Quatro milhas.

– Ora... não sou eu que me canso por fazer quatro milhas... é a mãe. Acha que consegue?

– Claro que consigo.

– Que bom!... Que bom! – exclamou ele. – Vou voltar a correr para casa. E a quinta é bonita?

– Ele diz que sim... Tu logo dirás.

– Eu não conheço Mrs. Leivers, mãe. Conhece-a?

– Então não conheces... uma mulherzinha macambúzia, com uns grandes olhos castanhos, que se costumava sentar à nossa frente na capela.

– Não me lembro.

– Julgava que pelo menos te lembrasses do chapéu, mesmo que não te lembrasses de mais nada... usa sempre o mesmo chapéu desde há seis anos, desde que a conheço: um quico preto com um farrapo de renda prantado no cucuruto, às três pancadas. Quando a via com o chapéu no alto da cabeça, domingo atrás de domingo, sempre com o mesmo chapéu, só me apetecia ir lá tirar-lho. E o marido é tão elegante e bem-parecido.

– Se calhar, era pobre – alvitrou Paul.

– E que fosse! Sei que não estava pior do que eu. Só que tinha a mania de não comprar nada novo, dava-lhe para ali.

– E ao menos é simpática?

– É. Eu sempre gostei dela... mas ela não consegue andar à altura do homem que tem... Só o orgulho consegue uma coisa dessas, nada mais.

– Porquê?

– Ora bem, ela é uma mulher pequenina, delicada, fina, com uns grandes olhos castanhos... cheios de sentimento. E eu sei que tem passado muito com sete filhos e o pouco que o Alfred Leivers lhe dá. Acho que ele não gosta muito de trabalhos pesados... e daí, talvez... Mas assim, como a vida lhe correu mal e chegou ao estado a que chegou, é orgulhosa de mais para competir com as outras mulheres e agarra-se a um trapo antigo... mas é uma mulher bonita.

– E orgulhosa, mãe?

– Não... Com as outras pessoas, não. Mas consigo mesma não podia ser mais. A pobreza e a vida triste que leva corroem-lhe a alma e ela agarra-se àquela chapeleta preta, para troçar da sua própria pobreza... ou do marido... Só Deus sabe... Mas tu vais gostar dela. Eu gosto dela.

– Bem – disse Paul –, se vamos visitá-la à quinta, não vai estar de chapéu.

– Esperemos que não – disse Mrs. Morel. – É um escândalo e uma vergonha sobrecarregar um corpo frágil como o dela daquela maneira, mas também não precisava de andar naquela figura, por despeito. Faço ideia de como ele se deve sentir!...

Paul saiu à pressa para a estação, rejubilante. Em Derby Road, havia uma cerejeira a cintilar. O velho muro de tijolo junto ao pátio do Statutes brilhava em tons de escarlate, incandescentes, e a Primavera era uma labareda verde. A estrada íngreme estendia-se esplêndida, coberta da fria poeira matinal em alternâncias de sol e sombra, absolutamente estática. As árvores, orgulhosas, deixavam pender abaulados os ombros verdes e possantes. Durante toda a manhã, de dentro do armazém, o rapaz foi brindado com um quadro de Primavera.

Quando voltou para casa, a mãe estava excitadíssima.

– Sempre vamos? – perguntou ele.

– É só o tempo de me arranjar – respondeu ela.

– Conseguiu acabar o trabalho?

– Consegui.

Paul sentou-se à mesa, à espera do almoço. Ela trouxe-lhe a frigideira.

– Para que se foi meter a fazer sonhos de ruibarbo se tinha tão pouco tempo?

– Porque me apeteceu – disse a mãe. – E estou pronta quando tu estiveres.

Tinha feito os sonhos porque, durante a semana, o filho só vinha almoçar a casa neste dia, e gostava muito de sonhos.

– Não senhora... saia daqui. Quem faz isso sou eu.

Paul levantou-se e tentou tirar-lhe a frigideira da mão.

– Nem pensar nisso! – disse ela, agitando o garfo. – Temos muito tempo.

Ele voltou para a mesa, cabisbaixo, e ela continuou com os cozinhados.

– São mesmo coisas de mulher – disse ele. – Às voltas com a frigideira, quando devia estar a vestir-se para sair.

– São é mesmo coisas de rapazes, julgam que já sabem tudo – disse ela, colocando a sobremesa diante dele.

– E esteve a apanhar esse calor todo na cara – disse o filho. – Já sabe que quando lá chegar, vai ter a cara vermelha como o sol nascente.

– Se tiver, não sou eu que te vou pedir para olhares para mim.

– E, mesmo que pedisse, eu não olhava – respondeu ele.

– Ingrato!

– Afogueada!

Ela fungou e empertigou-se daquela maneira a que ele chamava «esticar-se à tartaruga».

– Já se lavou? – perguntou ele.

– Já.

– Pois olhe, não parece, tem o nariz enfarruscado, como de costume.

Ela foi ver-se ao espelho.

– Que maçada! – exclamou.

Ele levantou-se.

– Vá-se vestir, que eu lavo a loiça – disse Paul.

Ela obedeceu. Ele lavou as panelas, endireitou as costas e pegou nas botas dela. Estavam muito limpas. Mrs. Morel era daquelas pessoas naturalmente dotadas que são capazes de andar na lama sem sujarem os sapatos. Mas Paul quis limpar-lhas, mesmo assim. Eram botas de criança, das de oito xelins o par. No entanto, para ele, eram as botas mais chiques do mundo, e limpava-as com tanta reverência como se fossem flores.

Subitamente, ela apareceu à porta, muito tímida. Trazia uma blusa nova. Paul deu um salto em frente.

– Ena pá! – exclamou ele. – Que espalhafato!

Ela inspirou ligeiramente, altiva, de cabeça bem erguida.

– Não é espalhafato nenhum! – retorquiu ela. – É até bem recatada.

Mrs. Morel deu um passo em frente e o filho mirou-a de todos os lados.

– Então – perguntou ela, envergonhada, mas mostrando-se segura e arrogante. – Gostas?

– É um espanto! Vou gostar de levar uma mulher tão bonita a passear!

Contornou-a e mirou-a pelas costas.

– Muito bem! – disse ele. – Se fosse na rua atrás de si, havia de dizer: – Mas que bem vestida que aquela senhorinha vai.

Ela fungou de satisfação, como era seu hábito, mas a fazer-se desentendida.

– Sabes – disse ela –, só me custou três xelins. Por este preço não a podia comprar feita, pois não?

– Acho que não – respondeu o filho.

– E o tecido é de muito boa qualidade.

– Tremendamente bonita! – disse ele.

A blusa era branca, com raminhos púrpura e pretos.

– Demasiado jovem para a minha idade, não achas?

– Essa agora, demasiado jovem para si? – exclamou Paul, agastado. – Já agora, porque não compra uma peruca branca para pôr no alto da cabeça?

– Daqui a pouco já não é preciso – respondeu ela. – Estou aqui, estou com a cabeça toda branca.

– Pois faça favor de não estar – disse ele. – Para que quero eu uma mãe de cabelo branco?

– Pois olha que vais ter de te contentar, meu menino – disse ela, com uma entoação bastante estranha.

Saíram de casa em grande estilo, ela com a sombrinha que William lhe tinha dado, para se proteger do sol. Paul era consideravelmente mais alto do que ela, embora não fosse muito grande. O rapaz ia todo cheio de si.

Na terra lavrada, as espigas tenras brilhavam como seda. A mina de Minton desfraldava os seus penachos de vapor branco, acompanhados de roncos e roucas tossidelas.


– Olha para aquilo! – disse Mrs. Morel. Mãe e filho pararam na estrada, a ver. Ao longo da crista do grande monte da mina, desenhava-se em contraluz um pequeno grupo a avançar mansamente – um cavalo, uma carrocinha e um homem. Trepavam a encosta em direcção ao céu: ao chegarem ao cimo, o homem voltou a carroça e, com injustificado estrépito, a escória rolou pela vertente abrupta do aterro.

– Sente-se um bocadinho, mãe – disse Paul, e ela sentou-se na rocha, enquanto ele desenhava a cena rapidamente. Mrs. Morel manteve-se em silêncio enquanto o filho trabalhava, entretida a admirar a tarde e o casario vermelho a cintilar entre o verde da paisagem.

– O mundo é um lugar maravilhoso – disse ela. – E maravilhosamente belo.

– E a mina também – disse ele. – Veja como cresce, como se estivesse viva... é como uma criatura gigantesca que nós não conhecemos.

– É – disse ela. – Talvez!

– E os vagões parados, à espera, como animais em correnteza à espera da ração – disse ele.

– E eu bem contente fico de os ver aí à espera – disse a mãe. – Quer dizer que a semana vai ser boa.

– Eu gosto de sentir a mão do homem nas coisas; é sinal de vida. Nos vagões sente-se o dedo do homem, porque são mãos de homens que os conduzem.

– Pois é – disse Mrs. Morel.

Continuaram a caminhada à sombra das árvores, pela estrada principal. Ele ia explicando tudo e ela mostrava-se interessada. Passaram pelo extremo do lago Nethermere, que embalava no colo docemente, como pétalas, os reflexos do sol. Depois viraram para uma estrada particular e, com emoção crescente, aproximaram-se de uma grande quinta. Um cão desatou a ladrar furiosamente. Apareceu uma mulher, a ver quem era.

– É este o caminho para Willey Farm? – perguntou Mrs. Morel.

Paul deixou-se ficar atrás da mãe, apavorado com a ideia de serem escorraçados. Mas a mulher era prestável e indicou-lhes o caminho. Mãe e filho meteram pelo meio do trigo e da aveia, atravessaram uma pequena ponte e chegaram a um prado em pousio. Os abibes, com os seus peitos brancos reluzentes, gritavam e volteavam em redor. O lago estava estático e azul. No céu, planava uma garça. Em frente, o bosque subia denso pela encosta, verde e estático.

– É uma estrada florestal, mãe – disse Paul. – Tal e qual como no Canadá.

– Lindo, não é? – disse Mrs. Morel, olhando em volta.

– Está a ver aquela garça... está a ver... as pernas dela?

Era ele que dizia à mãe para onde devia, ou não, olhar. Mas ela gostava assim.

– E agora – disse ela – para que lado é?... Ela disse-me para atravessar o bosque. – O bosque, cerrado e sombrio, estendia-se para a esquerda.

– Sinto que aqui há um caminho – disse Paul. – A mãe tem pés de citadina; seja lá como for, mas tem.

Encontraram uma cancela e entraram numa larga vereda arborizada, com um maciço de cedros e pinheiros de um dos lados e uns quantos carvalhos decrépitos do outro a descerem pela encosta. E, entre os carvalhos, as campainhas-do-monte espraiavam-se em mancha azul sob as aveleiras ainda verdes e um manto esmorecido de folhas amareladas de carvalho. Paul apanhou flores para dar à mãe.

– Está aqui um pouco de feno acabado de chegar – disse ele, e desta vez trouxe-lhe miosótis. E de novo o coração lhe doía de tanto amor, vendo a mão dela, calejada do trabalho, pegar no raminho que ele lhe dera. Ela estava completamente feliz.

No fim da vereda era preciso saltar uma cerca. Paul passou num instante.

– Venha – disse ele –, eu ajudo-a.

– Não... sai daí. Prefiro passar à minha maneira. Ele ficou do outro lado, com as mãos no ar, pronto para a ajudar. Ela trepou com todas as cautelas.

– Mas que maneira de trepar! – exclamou Paul, trocista, quando a mãe já estava a salvo no chão.

– Malditas cercas! – bradou ela.

– Só se uma mulher for muito desajeitada – replicou ele – é que não consegue passá-las.

Em frente, ao longo da orla do bosque, estendia-se um aglomerado de casas de lavoura, baixas e vermelhas. Estugaram o passo. Pegado ao bosque havia um pomar de macieiras cujas flores caíam sobre uma mó. Em baixo era a lagoa, sob os ramos pendentes dos carvalhos. Havia vacas a usufruir da sombra. A quinta e as casas, formando três lados de um quadrilátero, abraçavam o sol viradas para o bosque. Tudo estava em silêncio.

Mãe e filho entraram no pequeno jardim cercado de grades onde pairava um perfume a cravos vermelhos. Junto à porta entreaberta viam-se alguns pães enfarinhados, deixados a arrefecer. Uma galinha aproximou-se para os debicar. De repente, assomou-se à porta uma rapariga com um avental muito sujo. Devia andar pelos catorze anos, tinha as faces morenas e rosadas, um tufo de pequenos caracóis negros muito apertados a cairem livremente, e os olhos castanhos. Parecia tímida e curiosa, com alguma desconfiança dos estranhos. A rapariga voltou a desaparecer. Logo a seguir, surgiu uma outra figura, uma mulher pequenina e frágil, rosada e com grandes olhos castanhos.

– Oh! – exclamou ela, rasgando um sorriso cintilante. – Sempre veio. Gosto muito de a ver por cá. – A voz da mulher era afável e muito triste.

As duas mulheres apertaram a mão.

– Tem a certeza de que não viemos incomodar? – disse Mrs. Morel. – Sei bem como é a vida do campo.

– De maneira nenhuma. Até é uma bênção ver caras novas. Estamos aqui tão isolados.

– Pois devem estar... – disse Mrs. Morel.

Levaram-nos até à sala, uma divisão comprida e de tectos baixos, com um grande ramo de rosas amarelas a enfeitar a lareira. As mulheres sentaram-se a conversar, enquanto Paul foi dar uma volta pela quinta. Estava no jardim a cheirar os cravos e a olhar para as plantas, quando a rapariga saiu a correr e se foi pôr junto do monte de carvão encostado à cerca.

– Creio que estas vão ser rosinhas de toucar, quando abrirem – disse ele, apontando para as roseiras ao longo da cerca. Ela olhou para ele com os grandes olhos castanhos, muito espantados, muito abertos.

– Não sei – respondeu, hesitante. – São brancas e têm o olho cor-de-rosa.

– Então são «rubores de donzela».

Miriam corou – uma cor cálida, bonita.

– Não sei – disse ela.

– Não tens grande coisa no jardim – disse ele.

– É o primeiro ano que aqui passamos – respondeu ela, com modos distantes e superiores, afastando-se e entrando em casa. Paul não ligou e continuou a exploração. A mãe veio ter com ele e deram a volta aos edifícios. Paul estava deliciado.

– Suponho que ainda tenha de ir tratar das galinhas, das vitelas e dos porcos? – disse Mrs. Morel a Mrs. Leivers.

– Não – retorquiu a mulherzinha. – Não consigo arranjar tempo para tratar do gado, e, além disso, não estou habituada. O trabalho de casa já me chega.

– Sim, suponho que sim – disse Mrs. Morel.

Daí a pouco, a rapariga veio cá fora.

– O chá está pronto, mãe – disse, com uma voz suave, musical.

– Ah, obrigada, Miriam, já vamos – respondeu a mãe, toda ela amabilidade. – Podemos ir tomar o nosso chá agora, Mrs. Morel?

– Claro – disse Mrs. Morel. – Logo que estiver pronto.

Paul, a mãe e Mrs. Leivers tomaram chá juntos. Depois foram passear pelo bosque, inundado de campainhas-do-monte, enquanto os carreiros estavam reservados aos miosótis. Mãe e filho caminhavam os dois em êxtase.

Quando voltaram, Mr. Leivers e Edgar, o filho mais velho, estavam na cozinha. Edgar devia ter dezoito anos. Depois, chegaram da escola Geoffrey e Maurice, dois rapagões de doze e treze anos. Mr. Leivers era um homem bem-parecido, na força da vida, de bigode castanho-dourado e olhos azuis sempre assestados, a perscrutar o tempo.

– Foram dar uma volta? – perguntou ele a Paul, com entusiasmo.

– Não deu para ver tudo – respondeu o rapaz, saindo em seguida com Geoffrey e Maurice.

– Onde é que tu trabalhas? – perguntou Geoffrey. Eram os três muito tímidos.

– Na Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan, em Nottingham.

– E que fazes?

– Sou empregado de escritório.

– E fazes o quê?

– Copio cartas, faço encomendas e passo facturas.

– Que tipo de cartas copias?

– Oh... todo o tipo... a maior parte são a encomendar meias elásticas.

– Meias elásticas!... Qu’é isso?

Seguiram-se muitas explicações.

– E algumas das cartas vêm de França e de outros lugares – disse Paul.

– E tu tens d’as copiar?

– Claro.

– Em francês?

– Não... traduzo-as.

– Essa agora... então sabes francês?

– Sei alguma coisa... e alemão também.

– E quem t’ensinou?

– O meu padrinho... e também álgebra e geometria.

– Eu cá não faço tenções d’encher a cabeça com essas coisas – disse Geoffrey.

Os dois rapazes mostravam-se terrivelmente superiores, mas Paul nem dava por isso. Foram à procura de ovos, vasculhando em todos os lugares. Quando estavam a dar de comer às galinhas, Miriam saiu de casa. Os rapazes não lhe ligaram. Na capoeira es-tava uma galinha com os seus pintainhos amarelos. Maurice pegou numa mão-cheia de milho e deixou a galinha vir comer-lhe à mão.

– Tens coragem de fazer o mesmo? – perguntou ele a Paul.

– Vamos lá ver... – respondeu Paul.

Ele tinha a mão pequenina, quente e habilidosa. Miriam ficou a observá-lo. Paul aproximou a mão da galinha. A ave olhou para o milho com o seu olhar duro e brilhante e, de repente, deu-lhe uma bicada na mão. Paul assustou-se, mas depois riu-se. «Pic-pic-pic», fazia-lhe a galinha na palma da mão. Paul riu-se outra vez e os rapazes riram com ele.

– Ela ferra-nos e pica-nos, mas nunca faz doer – disse Paul, quando o milho se acabou.

– Agora, Miriam, é a tua vez – disse Maurice.

– Não – gritou ela, encolhendo-se.

– Olha, parece um bebé. És mesmo um bebé! – disseram os irmãos.

– Não dói nada – disse Paul. – São só uns beliscõezinhos muito agradáveis.

– Não – gritou ela mais uma vez, abanando os caracóis negros e encolhendo-se.

– Ela não s’atreve – disse Geoffrey. – Ela nunca s’atreve a fazer nada a não ser recitar poesia.

– Não s’atreve a saltar uma cancela... não s’atreve a brincar connosco... não s’atreve a fazer frente quando outra rapariga lhe bate... não é capaz de fazer nada a não ser andar por aí convencida qu’é alguém... «A Dama do Lago»... é isso mesmo! – gritou Maurice.

Miriam estava coradíssima de vergonha e infelicidade.

– Sou capaz de fazer mais coisas que vocês – gritou ela. – Vocês não passam duns cobardes e duns brigões.

– Olha, olha, «cobardes e brigões!» – repetiram eles, arremedando-a.

«Um palhaço assim nunca me enfurece.

Todo o brutamontes silêncio merece»

recitou ele, virado para ela, a rir às gargalhadas.

Ela voltou para casa. Paul foi com os dois rapazes até ao pomar, onde tinham montado à pressa duas barras paralelas. Aí chegados, entregaram-se às respectivas demonstrações de força. Paul era mais ágil do que possante, mas foi quanto bastou. Apontou para umas flores de macieira que estavam mesmo à ponta de um ramo balouçante.

– Eu cá, se fosse a ti, não apanhava as flores – disse Edgar, o mais velho dos irmãos. – Senão, prò ano não temos maçãs.

– Eu não ia apanhá-las – respondeu Paul, indo-se embora.

Os rapazes mostravam-se hostis com ele. Interessavam-lhes mais as suas próprias brincadeiras. Paul voltou para casa, para junto da mãe. Quando ia a contornar a casa pelas traseiras, viu Miriam ajoelhada diante da capoeira da galinha, com a mão cheia de milho, a morder o lábio, numa atitude de intensa concentração. A galinha fitava-a com maldade. Cautelosamente, ela estendeu a mão. A galinha atirou-se. Ela retirou rapidamente a mão, com um grito, misto de medo e frustração.

– Ela não te magoa – disse Paul.

Miriam pôs-se de pé, muito corada.

– Só queria experimentar – disse, muito baixinho.

– Vês... não dói nada – disse ele. E, colocando apenas dois grãos de milho na palma da mão, deixou a galinha bicá-lo à vontade. – Só dá vontade de rir – continuou Paul.

Ela estendeu a mão e retirou-a, tentou novamente e fugiu para trás, com um grito. Ele fez uma careta.

– Olha, eu até a deixava comer milho da minha cara – disse Paul. – Mas ela dá muitos encontrões. Ela faz isto com toda a perfeição! Se não fizesse, já imaginaste a quantidade de terra que ela ia comer todos os dias?

Esperou, muito sério, a observá-la. Finalmente, Miriam deixou a galinha bicar-lhe a mão. Deu um gritinho, de medo e dor, porque estava assustada, um gritinho patético. Mas tinha conseguido, e voltou a repetir a proeza.

– Estás a ver – disse o rapaz. – Não faz doer, pois não?

Ela fitou-o com os olhos escuros muito abertos.

– Não – disse ela, a rir e a tremer.

Depois levantou-se e foi para casa. Parecia de alguma forma ofendida com o rapaz.

«Ele deve achar que eu não passo duma rapariga como as outras», pensava ela, cheia de vontade de lhe provar que era uma grande personagem, como a «Dama do Lago».

Paul veio encontrar a mãe pronta para partir. Mrs. Morel sorriu para o filho, e ele pegou no grande ramo de flores. Mr. e Mrs. Leivers acompanharam-nos até ao fundo da quinta. As colinas douravam-se do entardecer, e nas profundezas dos bosques sobressaía o púrpura carregado das campainhas-do-monte. Por todo o lado estava o silêncio, apenas quebrado pelo restolhar das folhas e os pássaros.

– É de facto um lugar belíssimo – disse Mrs. Morel.

– É, sim – concordou Mr. Leivers. – É um lugar bem aprazível, o pior são os coelhos. Dão cabo das pastagens. Não sei se alguma vez iremos ter lucro.

Bateu as palmas e os campos cobriram-se de movimento, junto ao bosque: por toda a parte saltavam coelhos acastanhados.

– Até custa a acreditar! – exclamou Mrs. Morel.

Ela e Paul continuaram sozinhos daí para a frente.

– Foi um dia maravilhoso, não foi, mãe? – disse Paul, falando baixinho. A lua despontava, tímida. O coração doía-lhe de tanta felicidade. A mãe não se calava, pois também ela tinha vontade de gritar de felicidade.

– Então eu não ia ajudar um homem daqueles? Não ia tratar das galinhas e dos bezerros? Havia de aprender a ordenhar, e havia de conversar com ele, e fazer planos com ele. Palavra, se eu fosse mulher dele, aquela quinta ia de vento em popa, isso é que ia... Mas não, ela não tem forças... simplesmente não tem forças. Nunca devia ver-se sobrecarregada desta maneira, percebes. Tenho pena dela, e dele também. Palavra, se ele fosse meu, nunca diria que era um mau marido... Não que ela diga, lá isso não... E ela é até muito simpática.

William veio a casa outra vez, com a namorada, pelo Pentecostes. Tinham-lhe dado uma semana de férias. O tempo estava muito bonito. Geralmente, William, Lily e Paul iam juntos dar um passeio pela manhã. William não conversava muito com a namorada, excepto para lhe contar histórias da infância; mas Paul falava sem parar com qualquer deles. A certa altura, deitaram-se os três num prado, perto da igreja de Minton. De um dos lados, junto do parque do castelo, estendia-se ondulante uma cortina de choupos – uma beleza. As sebes cobriam-se de bagas pendentes de azevinho. Os campos salpicavam-se de margaridas e flores-de-cuco, como sorrisos. William, agora com vinte e três anos, era já um homem feito, muito alto, mas tão magro que era quase só pele e osso. Deitou-se ao sol, de costas, a sonhar, enquanto Lily brincava com o seu cabelo. Paul foi apanhar margaridas. Ela tinha tirado o chapéu. O seu cabelo era negro como a crina de um cavalo. Paul aproximou-se e entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo de azeviche, lembrando enormes lantejoulas brancas e amarelas, com um toque rosado de flores-do-cuco.

– Agora pareces uma bruxinha – disse o rapaz. – Não parece, William?

Lily deu uma gargalhada. William abriu os olhos e contemplou-a. O seu olhar era um misto confuso de tristeza e desmedida admiração.

– Ele transformou-me mesmo numa visão do Além? – perguntou ela, olhando para baixo, para o seu amado, a rir.

– Então não transformou! – disse William, a sorrir. E continuou deitado a olhar para ela. Os seus olhos nunca procuravam os dela. Não queria encontrar os olhos dela. Queria estar só a olhar para ela, não que os seus olhares se encontrassem. E esta vontade de a evitar, aflorava-lhe aos olhos como a tristeza. Ele desviou-os outra vez. Ela deixou a mão esguia, onde brilhavam diamantes, brincar no cabelo dele um pouco mais. Depois disse:

– O Paul sabe como fazer as coisas.

– Óptimo – disse William. – Desde que isso te faça feliz. Ele preenche-te as manhãs e eu as noites.

Ela voltou-se para Paul, e riu-se.

– Quero pôr-te mais três flores sobre a orelha – disse ele, de pé ao lado dela. – Depois, fica pronto.

Ela deixou, e ele entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo.

– Não sentes o perfume do sol nos teus cabelos? – perguntou Paul. – Estás a ver, era assim que devias ir aos bailes.

– Obrigada – disse ela, sempre a rir.

Levantaram-se.

– Não ponhas ainda o chapéu – disse Paul.

– Achas que sim? – perguntou ela a William. – Posso ir nesta figura?

William olhou para ela outra vez. A beleza dela quase o magoava. Olhou-lhe para a cabeça coberta de flores e torceu o nariz.

– Estás muito bonita assim, se é isso que queres saber.

E ela continuou o passeio sem chapéu. William logo se recompôs do mau humor e mostrou-se muito terno com ela. Ao chegarem a uma ponte, até gravou um coração com as iniciais dos dois.

 


Ela observou-o atentamente, vendo como a sua mão forte e nervosa, salpicada de pêlos cintilantes e de sardas, gravava no tronco o coração, o que parecia deixá-la fascinada.

Durante toda a estadia, enquanto William e Lily estiveram presentes, pairava dentro de casa um sentimento de tristeza e calor humano, e também de certa ternura. Mas muitas vezes ele irritava-se. Ela tinha trazido para uma semana cinco vestidos e seis blusas.

– Ouve, não te importas de me lavares estas duas blusas... e estas coisinhas? – disse ela a Annie.

E Annie ficou em casa a lavar roupa, enquanto, na manhã seguinte, William e Lily foram passear. Mrs. Morel ficou furiosa. Às vezes, ao aperceber-se da atitude da namorada para com a irmã, o jovem odiava-a pelo seu comportamento.

No domingo de manhã, Lily apareceu muito bonita, com um vestido leve, sedoso e esvoaçante, tão azul como as penas de um gaio, e um chapéu de palha coberto de rosas, onde dominava o carmim. As pessoas não se cansavam de a admirar. Mas, à noite, quando iam a sair, ela perguntou de novo:

– Fofinho, tens as minhas luvas?

– Quais delas? – perguntou William.

– As novas, as de camurça preta.

– Não.

Seguiu-se uma busca. Tinha-as perdido.

– Está a ver, mãe – disse William. – Já é o quarto par que ela perde desde o Natal... e cada par são cinco xelins.

– Tu só me deste dois pares – repontou ela.

E à noite, depois da ceia, ficou sentada no sofá e ele foi postar-se frente à lareira, farto dela. À tarde, tinha-a deixado sozinha para ir visitar um amigo de infância, e ela ficara a ver um livro. Depois da ceia, William quis ir escrever uma carta.

– Aqui tem o seu livro, Lily – disse Mrs. Morel. – Importa-se de ficar a ler mais um bocadinho?

– Não, obrigada, não quero o livro – disse a rapariga. – Prefiro ficar só aqui sentada.

– Mas isso é muito aborrecido...

William escrevia nervosamente, a grande velocidade. Quando estava a fechar o sobrescrito, disse:

– Ler um livro!... Essa é boa, ela nunca leu um livro na vida dela.

– Não digas isso! – disse Mrs. Morel, irritada com o exagero.

– É verdade, mãe... não leu mesmo – exclamou ele, pondo-se de pé num salto e retomando o seu lugar anterior, frente à lareira. – Nunca na vida leu um livro.

– Atão essa é como eu – interveio Morel. – Essa tamém num vê nada nos livros qu’a faça ficar sentada, aborrecida, de nariz infiado nas folhas. Pra quê? Eu tamém num vejo!

– Mas tu não devias dizer essas coisas – disse Mrs. Morel ao filho.

– Mas é verdade, mãe... ela não sabe ler... que livro é que lhe deu?

– Bem, dei-lhe um livrinho da Annie Swan. Ninguém quer ler coisas pesadas num domingo à tarde.

– Pois eu aposto que ela nem dez linhas leu.

– Aí é que tu te enganas – disse a mãe.

Lily assistia à discussão sentada no sofá, com um ar muito infeliz.

– Leste alguma coisa do livro? – perguntou-lhe ele.

– Li, sim – respondeu ela.

– Quantas páginas?

– Sei lá quantas páginas...

– Diz-me uma coisa que tenhas lido.

Ela não foi capaz.

– Cala-te, William – disse a mãe. – Que ideia a tua!

– Mas ela não consegue ler, mãe! – gritou ele, secamente. – Não consegue reter nada do que lê. Não sabe ler e não sabe falar. Não há assunto nenhum sobre o qual se possa conversar com ela. Só pensa em vestidos e em como todos a admiram.

– Não lhe ligue, Lily – disse Mrs. Morel.

– Só os parvos é que se sentam de nariz infiado nos livros, é o qu’eu digo – acrescentou Morel.

E a pobre rapariga continuava a ser agredida. Ele parecia odiá-la. Mais tarde, Mrs. Morel foi buscar-lhe um livro muito simples, e era patético vê-la arrastar-se penosamente pelas primeiras páginas na tarde chuvosa. Não conseguiu passar da segunda página. Ele lia muito, e possuía uma inteligência rápida, activa. Ela não entendia nada a não ser fazer amor e tagarelar. Ele estava habituado a ter todos os seus pensamentos peneirados pela mente da mãe. Por isso, quando procurava companhia e, em resposta, lhe era pedido que fosse apenas um amante, todo ele ternuras e gorgeios, odiava a namorada.

– Sabe, mãe – disse ele, quando à noite ficaram os dois sozinhos – ela não dá valor ao dinheiro, é um catavento. Quando recebe o ordenado, é capaz de gastar uma fortuna numa porcaria qualquer como, por exemplo, marrons glacés. E, depois, sou eu que tenho de lhe comprar o passe e todos os outros extras... até a roupa interior. E quer ela casar-se... Por mim, podíamos até casar já para o ano. Mas por este andar...?

– Ia ser um lindo casamento – respondeu a mãe. – Eu, se fosse a ti, pensava duas vezes, meu filho.

– Bom... Agora já fui longe de mais para romper com tudo – disse ele. – Por isso, o melhor é casar o mais depressa possível.

– Muito bem, meu filho. Se é isso que queres, assim será, e não se fala mais no assunto... Mas olha que eu não durmo quando penso nisso.

– Ela é boa rapariga, mãe. Cá nos havemos de arranjar.

– E ela deixa que sejas tu a comprar-lhe a roupa interior? – perguntou a mãe.

– Bem... – começou ele, apologético. – Ela nunca me pediu. Mas uma manhã... estava muito frio... encontrei-a na estação toda a tremer, nem conseguia estar parada. E então perguntei-lhe se estava bem agasalhada, e ela respondeu, «Acho que sim». E então eu disse «Trazes alguma camisola quente... de lã... por baixo?» E ela disse que não, que era de algodão. Perguntei-lhe por que carga de água não tinha vestido uma coisa mais quente com um frio daqueles, e ela disse que não tinha nada mais quente. E ainda por cima, com a bronquite que ela tem! Tive de pegar nela e ir comprar-lhe uma roupa mais quente... Sabe, mãe, o dinheiro era o menos, se nós o tivéssemos... Ela devia guardar o suficiente para o passe. Mas não... vem pedir-mo, e eu tenho de inventar o dinheiro...

– Belas perspectivas – disse Mrs. Morel, amargurada.

Ele estava pálido e no seu rosto já vincado, outrora tão sorridente e descuidado, estampavam-se o conflito e o desespero.

– Mas eu não posso acabar com tudo, não agora, as coisas já foram longe de mais – disse ele. – Além disso, para certas coisas, não posso passar sem ela...

– Meu filho, lembra-te de que se trata da tua vida – disse Mrs. Morel. – Nada pode ser pior do que um casamento que já está à partida irremediavelmente marcado pelo fracasso. O meu foi suficientemente mau, Deus sabe que sim, e devia ter-te ensinado alguma coisa... Mas ainda podia ter sido muito pior.

William estava encostado à ombreira da chaminé, de mãos no bolsos. Era um homem alto e esquelético, com ar de quem seria capaz de ir até ao fim do mundo, se lhe apetecesse. Mas a mãe lia--lhe o desespero no rosto.

– Agora não posso deixá-la.

– Está bem – disse a mãe. – Mas lembra-te de que há coisas piores do que romper um noivado.

Quedaram-se em silêncio, ele de olhar parado, fitando o espaço. Só a mãe lhe podia valer e, no entanto, não a deixava decidir por ele. Continuava preso ao que tinha feito.

– E, naturalmente – acrescentou Mrs. Morel, há muito mais nobreza em romper um noivado para evitar um mal maior do que em continuar só para cumprir uma promessa.

Ele mantinha-se estático, de olhar pregado no vazio.

– Eu não posso deixá-la agora – insistiu ele.

O relógio ia avançando. Mãe e filho continuaram em silêncio, em conflito. Mas ele nada mais disse. Por fim, ela disse:

– Bem, vai dormir, meu filho... amanhã sentes-te melhor... e talvez vejas as coisas com outros olhos.

O filho deu-lhe um beijo e foi deitar-se. Ela foi abafar o borralho, sentindo o coração pesado como nunca sentira antes. Antes, com o marido, parecia sentir ruir tudo dentro dela, mas nada lhe destruía a vontade de viver. Mas agora, era a própria alma que estava ferida. A própria esperança fora atingida.

William manifestou em muitas outras ocasiões o mesmo ódio pela noiva. Na última noite que passaram em casa dos pais, fartou-se de resmungar com ela.

– Bem – disse ele – já que não me acredita, que acha que ela não é nada assim, acredita pelo menos que ela foi crismada três vezes?

– Que disparate! – disse Mrs. Morel, perdida de riso.

– Disparate ou não, o certo é que foi mesmo! É isso que o Crisma significa para ela... teatro... um espectáculo onde pode brilhar.

– Não fui nada, Mrs. Morel – gritou a rapariga. – Não fui nada. Não é verdade.

– O quê! – gritou ele, avançando para ela. – Uma vez em Bromley, outra em Beckenham, e outra mais não sei onde.

– Em mais lado nenhum! – disse ela, a chorar. – Em mais lado nenhum.

– Foi, sim! E mesmo que não fosse, para que foste crismada duas vezes?

– Da primeira vez, só tinha catorze anos, Mrs. Morel – explicou ela, desculpando-se, de lágrimas nos olhos.

– Claro – disse Mrs. Morel. – Eu entendo perfeitamente, minha filha. Não lhe ligue. Devias ter vergonha, William, a dizeres estas coisas.

– Mas é verdade. Ela é religiosa... até tem livros de orações em veludo azul... mas liga tanto à religião, ou a outra coisa qualquer, como à perna daquela mesa. Ser crismada três vezes, só pelo espectáculo, só para se mostrar! E ela é assim em tudo o mais, em tudo!

A rapariga chorava, sentada no sofá. Não era um espírito forte.

– Até no amor! – gritou ele. – É o mesmo que pedir a uma mosca que nos ame. Só quer vir para cima de nós...

– Acabou-se! – disse Mrs. Morel, peremptória. – Se queres continuar a dizer esses disparates, tens de ir para outro lugar. Tenho vergonha de ti, William. Não sabes portar-te como um homem? Só a pôr defeitos na rapariga... e depois a fingires que estás noivo...! – Mrs. Morel sucumbiu à raiva e à indignação.

William mantinha-se em silêncio. Mais tarde, arrependido, foi dar um beijo à namorada e consolá-la. No entanto, tudo o que dissera era verdade, e odiava-a.

Quando partiram, Mrs. Morel acompanhou-os a Nottingham. A caminhada até à estação de Keston era longa.

– Sabe, mãe – disse ele –, a Ciganita é muito superficial... nada penetra nela a fundo...

– William, preferia que não dissesses essas coisas – pediu Mrs. Morel, sentindo-se constrangida com a presença da rapariga.

– Mas é que não penetra mesmo, mãe... Ela está muito apaixonada por mim, agora... Mas, se eu morresse, esquecia-me em três meses.

Mrs. Morel tinha medo. O seu coração batia furiosamente perante a amargura serena das últimas palavras do filho.

– Como sabes? – retorquiu. – Tu não podes saber... e, por isso, não tens o direito de dizeres uma coisa dessas.

– Ele está sempre com estas coisas! – exclamou a rapariga.

– Três meses depois de me enterrarem, já tu tinhas arranjado outro e nunca mais te lembravas de mim – disse ele. – É esse o amor que me tens!

Mrs. Morel meteu-os no comboio, em Nottingham, e voltou para casa.

– Sabes uma coisa? – disse ela pateticamente para Paul. – Não se entendem e nunca se hão-de entender. Como vai ser, se chegarem a casar, é de mais para a minha imaginação. Se ao menos ele a deixasse, já não precisava de a atormentar desta maneira. Mas vão ficar presos um ao outro até se matarem. Quando ele disse aquilo, a caminho de Keston, foi como se eu já não pudesse dar nem mais um passo. Pobrezinha, tenho pena dela. Mas não é mulher para ele, lá isso não é. É muito cruel dizê-lo, mas como ela é muito frágil, mais valia que morresse em vez de casar com ele.

Mrs. Morel não tirou o filho do pensamento durante todo o Verão. Ele parecia estar a dar cabo da vida. Mas o casamento parecia estar ainda demorado.

– Valha-nos pelo menos uma coisa – disse ela a Paul. – Ele nunca vai juntar dinheiro suficiente para se casar, disso tenho eu a certeza. É assim que ela o vai salvar.

E a ideia animava-a. As coisas ainda tinham remédio, e acreditava firmemente que William nunca chegaria a casar com a sua Cigana. Aguardava e mantinha Paul junto de si.

Durante todo o Verão, as cartas de William soavam febris. Parecia pouco natural e empolgado. Por vezes exageradamente alegre, mas geralmente sóbrio e amargo.

– Pois é – dizia a mãe. – Anda a dar cabo dele por causa daquela criatura que não merece o amor que ele lhe tem, que não passa duma boneca de trapos.

Ele só pensava em vir a casa. As férias de Verão já lá iam, e o Natal ainda estava muito longe. Escreveu muito entusiasmado a dizer que podia vir a casa no princípio de Outubro, passar um sábado e um domingo, para a Feira do Ganso.

– Tu não andas bem, meu filho – disse-lhe a mãe quando o viu. Tê-lo assim, só para ela, dava-lhe até vontade de chorar.

– Não, não tenho passado nada bem – disse ele. – Apanhei uma constipação que se arrastou durante todo o mês. Mas já estou melhor, acho eu.

Estava um dia soalheiro de Outubro. William parecia louco de alegria, como um garoto que se escapasse às aulas. Mas logo ficou calado e reservado. Estava mais esquelético que nunca e com os olhos encovados.

– Andas a trabalhar de mais – disse a mãe.

Fazia horas extraordinárias, para juntar dinheiro para se casar, segundo disse. Só conversou com a mãe uma vez, no sábado à noite. Depois, pôs-se muito triste, com saudades da namorada.

– Sabe uma coisa, mãe, apesar disto tudo, se eu morresse, ela ia chorar por mim durante dois meses, e depois tratava de me esquecer. A mãe havia de ver, ela nunca viria aqui visitar a minha sepultura nem uma só vez.

– Ora, William – disse a mãe –, tu não vais morrer, para quê falar nisso agora?

– Mas se acontecesse... – insistiu ele.

– Ela não tem culpa... ela é assim... e se tu a escolheste, não te podes queixar... – disse a mãe.

No domingo de manhã, quando estava a pôr o colarinho, William disse, levantando o queixo:

– Veja a borbulhagem que o colarinho me fez por baixo do queixo!

Mesmo na ligação do queixo com a garganta havia uma zona muito vermelha, toda irritada.

– Não te devia fazer isso – disse a mãe. – Toma, põe um pouco deste unguento. Devias mudar de colarinhos.

William partiu no domingo à noite, aparentemente melhor e mais forte, depois destes dois dias passados em casa.

Na terça-feira de manhã, chegou um telegrama de Londres dizendo que ele estava doente. Mrs. Morel, que estava a esfregar o chão, levantou-se, leu o telegrama, chamou uma vizinha, foi a casa da senhoria, pediu-lhe dinheiro emprestado, vestiu-se e partiu. Correu até à estação de Keston e apanhou o expresso para Londres em Nottingham, onde teve de esperar quase uma hora. Figurinha frágil, com o seu chapelinho preto, não parava de perguntar, ansiosa, aos carregadores se sabiam o caminho para Elmers End. A viagem demorou três horas. Foi sempre sentada no seu canto, embalada numa espécie de torpor, sem se mexer. Na estação de King’s Cross também ninguém sabia indicar-lhe o caminho para Elmers End. Com o saco de rede na mão, com a camisa de noite, um pente e uma escova, ia de pessoa em pessoa, fazendo sempre a mesma pergunta. Por fim, mandaram-na apanhar o metropolitano até Cannon Street.

Eram seis horas quando chegou ao apartamento de William. As persianas não estavam corridas.

– Como está ele? – perguntou.

– Na mesma – disse a dona da casa.

Mrs. Morel subiu a escada atrás da senhoria. William estava deitado na cama, com os olhos injectados de sangue, muito pálido. A roupa estava espalhada pelo chão, o lume estava apagado e tinha um copo de leite na mesa de cabeceira. Ninguém viera vê-lo.

– Então, meu filho, que foi isto? – disse a mãe, mostrando coragem.

Ele não respondeu. Olhava para ela, mas não a via.

Depois, começou a dizer numa voz monocórdica, como se ditasse uma carta: «Devido a uma brecha no casco do navio, o açúcar tornou-se num bloco, cristalizou. Foi preciso parti-lo com um machado...»

Estava completamente inconsciente. Um dos seus trabalhos tinha sido ir examinar esse tal carregamento de açúcar no porto de Londres.

– Há quanto tempo está ele assim? – perguntou a mãe à senhoria.

– Chegou a casa às seis horas da manhã na segunda-feira e aparentemente dormiu o dia todo. À noite, ouvimo-lo a falar, e esta manhã chamou por si. Por isso, mandei o telegrama e chamámos o médico.

– Não se importa de acender o lume?

Mrs. Morel tentava acalmar o filho, mantê-lo quieto.

O médico chegou. Era uma pneumonia e, segundo disse, uma forma rara de erisipela, que tinha começado debaixo do queixo, provocada pelo roçar do colarinho, e se estava a espalhar a toda a cara; e esperava bem que não lhe atingisse o cérebro.

Mrs. Morel ficou a cuidar dele. Rezava por William, rezava para que ele a reconhecesse. Mas a cara do jovem cada vez perdia mais as cores. De noite, teve de lutar com o filho. Ele delirou e tornou a delirar, sem nunca recobrar a consciência. E morreu às duas da manhã, num paroxismo atroz.

Durante uma hora, Mrs. Morel permaneceu estática, sentada no quarto do filho. Depois, acordou toda a casa.

Às seis da manhã, vestiu-o com a ajuda da mulher da limpeza e em seguida saiu e foi à procura do registo civil e do médico daquele lúgubre subúrbio londrino.

Às nove horas, novo telegrama para Scargill Street: «William morreu esta noite. Dizer pai venha e traga dinheiro.»

Annie, Paul e Arthur estavam em casa. Mr. Morel tinha ido trabalhar. As três crianças não disseram uma palavra. Annie começou a choramingar, com medo. Paul foi chamar o pai.

O dia estava lindo. Na mina de Bretty, o vapor branco fundia-se lentamente com a luz do sol no céu azul, muito ameno, as roldanas da torre brilhavam no alto do aterro, e a peneira não se calava, sempre a deitar o carvão para os vagões.

– Tenho de falar com o meu pai... ele tem de ir já para Londres – disse o rapaz ao primeiro homem que encontrou no aterro.

– Queres falar com Walter Morel?... Vai ‘í dentro e diz ò Joe Ward.

Paul entrou no escritório de cima.

– Quero o meu pai... ele tem de ir pra Londres.

– O teu pai... está na mina? Quem é ele?

– Mr. Morel.

– Quem, o Walter? Aconteceu alguma coisa?

– Ele tem de ir já pra Londres.

O homem foi para o telefone e ligou para o escritório de baixo.

– Chamem o Walter Morel... 42 Hard. Aconteceu alguma coisa... o filho dele tá ‘qui.

Depois, voltou-se para Paul, e disse:

– Daqui a cinco minutos ele já aí está.

Paul foi até ao topo da mina. Viu a caixa subir, com o carregamento de carvão. A grande gaiola de ferro descansou sobre os apoios, a carga foi retirada, um contentor vazio deslizou sobre os apoios, algures tilintou uma campainha, a gaiola elevou-se e caiu como uma pedra.

Paul não acreditava que William estivesse morto... era impossível, com tanta azáfama por todo o lado. O mineiro de serviço empurrou o pequeno contentor para cima da placa giratória, e um outro homem levou-a pelo aterro fora, pelos trilhos sinuosos. «O William está morto e a minha mãe em Londres; que estará ela a fazer?», perguntava-se ele, como se se tratasse de uma charada.

Viu os contentores subirem uns atrás dos outros, e nem sinais do pai. Por fim, o vulto de um homem desenhou-se ao lado de um vagão! A gaiola descansou sobre os apoios e Morel desceu. Coxeava ligeiramente, devido a um acidente.

– És tu, Paul!... Ele tá pior?

– Tem de ir já pra Londres.

Desceram os dois o aterro, lado a lado, sob os olhares curiosos dos mineiros. Quando deixaram a mina e seguiam já ao longo da via férrea, com os campos soalheiros de Outono de um dos lados e um muro de vagões do outro, Morel perguntou, com o medo na voz:

– Ele não se curou, filho?

– Não.

– E quando foi?

Havia terror na voz do mineiro.

– Esta noite... Chegou um telegrama da mãe.

Morel deu mais alguns passos e depois encostou-se a um vagão e fincou as mãos nos joelhos. Mas não chorou. Paul olhou em volta, à espera. Um vagão balouçou lentamente em cima da balança. Paul via tudo, menos o pai, encostado ao vagão, como se estivesse cansado.

Morel só tinha ido uma vez a Londres. Pôs-se a caminho, assustado e lívido, para ir ajudar a mulher. Isto passou-se numa terça-feira. Os filhos ficaram sozinhos em casa. Paul foi trabalhar, Arthur para a escola e Annie chamou uma amiga para lhe fazer companhia.

No sábado à noite, quando Paul dobrava a esquina, de regresso de Keston, viu a mãe e o pai, que vinham da estação de Lethley Bridge. Caminhavam no escuro, em silêncio, cansados, separados. O rapaz ficou à espera.

– Mãe! – disse ele, da escuridão.

A figura franzina de Mrs. Morel pareceu não dar por ele. Paul insistiu.

– Paul! – disse ela, indiferente. Deixou-o dar-lhe um beijo, mas parecia não o ver.

Em casa foi a mesma coisa, franzina, pálida e muda. Não via nada, não dizia nada, excepto:

– O caixão chega hoje à noite, Walter. É melhor pedires ajuda. – E, depois, voltando-se para os filhos: – Vamos trazê-lo para casa.

Em seguida mergulhava num mutismo duradouro, de olhar perdido no espaço e mãos cruzadas sobre o regaço. Paul, ao vê-la assim, quase não podia respirar. Reinava em toda a casa um silêncio de morte.

– Fui trabalhar, mãe – disse Paul, tristemente.

– Ah, foste – respondeu ela, indiferente.

Passada meia hora, Morel, preocupado e confuso, entrou em casa.

– Onde havemos d’o pôr, quand’ele chegar? – perguntou à mulher.

– Na sala da frente.

– Então é melhor eu tirar de lá a mesa.

– Está bem.

– E botá-lo em cima das cadeiras?

– Tu lá sabes... sim... acho que sim.

Morel e Paul pegaram numa vela e foram para a sala. Lá não havia gás. O pai desaparafusou o tampo oval da grande mesa de mogno e libertou o centro da sala. Depois dispôs seis cadeiras em frente umas das outras, de forma a poderem suportar o caixão.

– Nunca vi ninguém mais comprido! – disse o mineiro, olhando em volta, ansioso, enquanto trabalhava.

Paul foi à janela e olhou para a rua. O freixo erguia-se monstruoso e negro, contra a imensa escuridão. Estava uma noite sem luar. Depois, voltou para junto da mãe.

Às dez horas, Morel anunciou:

– Chegou!

Todos estremeceram. Ouviu-se destrancar e abrir a porta da frente, que dava passagem directa da noite escura para dentro da sala.

– Tragam outra vela – gritou Morel.

Annie e Arthur foram buscá-la. Paul acompanhou a mãe. Estava ao lado dela, encostado à porta interior, passando-lhe o braço pela cintura. No meio da sala vazia havia seis cadeiras à espera, viradas umas para as outras. Junto à janela, Arthur segurava uma vela, encostado às cortinas de renda, e junto à porta aberta, virada para a noite, estava Annie, inclinada para a frente, com a palmatória de latão a cintilar.

Ouviu-se o barulho de um rodado. Lá fora, na escuridão da rua, Paul viu cavalos e um veículo negro, um lampião e alguns rostos empalidecidos. Depois, alguns homens – mineiros – todos em mangas de camisa, que pareciam debater-se na penumbra densa. Por fim, apareceram dois homens, vergados sob a pesada carga. Era Morel e o vizinho.

– Firme! – disse Morel, sem fôlego.

Ele e o companheiro subiram o degrau alto do jardim e surgiram à luz da vela, segurando uma das extremidades cintilantes do caixão. Mais braços, de outros homens, agitavam-se por detrás deles. Morel e Burns, à frente, vacilaram. A carga negra, pesadíssima, balançou.

– Firme, firme! – gritou Morel, num grito de dor.

Os seis carregadores já estavam todos no jardim, trazendo o caixão pelo ar. Havia ainda mais três degraus até à porta. A lanterna amarelada da carruagem brilhava sozinha, na estrada de breu.

– Agora! – disse Morel.

O caixão balançou, os homens começaram a subir os degraus com a sua carga. A chama da vela de Annie tremulou e ela começou a chorar ao ver surgir os primeiros homens. Os braços e as cabeças curvadas dos seis homens lutavam para vencerem a subida até à sala com o caixão, transportando o peso do sofrimento sobre a sua carne viva.

– Oh, meu filho... meu filho! – disse Mrs. Morel, baixinho, como se entoasse. E, de novo, de cada vez que o caixão balançava ao passo desigual dos carregadores:

– Oh, meu filho... meu filho... meu filho!

– Mãe! – disse Paul, a chorar, com o braço em volta da cintura dela. – Mãe!

Ela não ouviu.

– Oh, meu filho... meu filho! – repetia.

Paul via gotas de suor pingarem da testa do pai. Os seis homens estavam na sala, seis homens em mangas de camisa, de braços exaustos que se debatiam com a sua carga, enchendo a sala e indo de encontro aos móveis. O caixão desceu e foi suavemente pousado sobre as cadeiras. O suor pingava da testa de Morel sobre o rebordo.

– Palavra d’honra, manda cá um peso! – disse um dos homens, e os cinco mineiros soltaram um suspiro, curvaram-se perante o caixão e, trémulos da luta, desceram novamente os degraus, fechando a porta atrás de si.

A família ficou sozinha na sala com a enorme caixa envernizada. William, esticado, tinha seis pés e quatro polegadas de comprimento. O imponente caixão, de um castanho brilhante, jazia qual monumento. Paul pensou que nunca mais iam conseguir tirá-lo dali. A mãe acariciava a madeira envernizada.

Foi a enterrar na segunda-feira, no pequeno cemitério da encosta, alcandorado sobre os campos, dominando a igreja e o casario. Estava um dia de sol e os crisântemos brancos encaracolavam as pétalas ao calor.

Depois de tudo isto, nada conseguia persuadir Mrs. Morel a falar e a recuperar a sua antiga força de viver. Continuava fechada sobre si mesma. Quando voltava para casa, no comboio, tinha pensado para consigo: «Se ao menos tivesse sido eu.»

Quando Paul chegou a casa à noite, encontrou a mãe sentada com as mãos no regaço, sobre o tosco avental, já com a lida da casa despachada. Era sempre costume trocar de vestido e pôr um avental preto. Mas desta vez foi Annie quem lhe pôs a ceia, e a mãe continuou sentada em frente dela, de olhar vazio e lábios cerrados. Paul deu voltas à cabeça para arranjar novidades para lhe contar.

– Mãe, Miss Jordan apareceu lá hoje e disse que o meu esboço de uma mina a laborar estava muito bom...

Mas Mrs. Morel nem prestou atenção. Noite após noite, Paul esforçava-se por lhe contar coisas, mesmo que ela o não escutasse. Quase o enlouquecia vê-la neste estado. Até que:

– Que tem, mãe? – perguntou ele. Ela não ouviu.

– Que tem? – insistiu. – Mãe, o que é que tem?

– Sabes bem o que é que eu tenho – disse ela, irritada, virando-lhe as costas. O rapaz – tinha agora dezasseis anos – foi para a cama tristíssimo. Passou Outubro, Novembro e Dezembro sentindo-se rejeitado, um desgraçado. A mãe bem tentava, mas não conseguia reagir. Tudo o que fazia era pensar no filho morto, que tão cruelmente tinham deixado morrer.

Por fim, no dia 23 de Dezembro, Paul voltou para casa como um sonâmbulo, com os cinco xelins da gratificação de Natal no bolso. A mãe olhou para ele e o seu coração parou.

– O que se passa? – perguntou ela.

– Sinto-me mal, mãe! – respondeu ele. – Mr. Jordan deu-me cinco xelins de gratificação. – E estendeu-os à mãe, com a mão trémula. Ela pô-los em cima da mesa.

– A mãe não parece satisfeita – disse ele, como se ralhasse.

Mas Paul tremia violentamente.

– Onde é que te dói? – disse ela, desabotoando-lhe o sobretudo.

Era a velha pergunta.

– Sinto-me mal, mãe.

Ela despiu-o e meteu-o na cama. Era uma pneumonia, e grave, disse o médico.

– Ele podia não a ter apanhado, se eu o tivesse obrigado a ficar em casa e não o deixasse ir para Nottingham? – foi uma das primeiras coisas que perguntou.

– Podia não ser tão grave – disse o médico.

Mrs. Morel encontrou na resposta a sua própria condenação.

– Devia ter-me preocupado com os vivos, e não com os mortos – disse para consigo.

Paul esteve muito mal. A mãe passava as noites ao seu lado, pois não tinham dinheiro para uma enfermeira. O seu estado piorou e a fase crítica aproximava-se. Uma noite recobrou a consciência, num daqueles paroxismos fantasmagóricos e doentios de dissolução, em que todas as células do corpo parecem estilhaçar-se à pressão extrema da irritabilidade, e a consciência, como em estados de loucura, tem um derradeiro arrobo de vitalidade.

– Vou morrer, mãe! – gritou ele, soerguendo-se da almofada, lutando para respirar.

Ela ajudou-o, chorando baixinho:

– Oh, meu filho, meu filho!

Isto trouxe-o de volta. Apercebeu-se da presença da mãe. A sua força de vontade empertigou-se e prendeu-o à vida. Pousou a cabeça do peito dela e repousou no seu amor.

– De certa forma – disse a tia – foi até bom o Paul ter tido aquela doença no Natal. Foi isso que salvou a mãe.

Paul esteve de cama sete semanas. Levantou-se, finalmente, pálido e muito fraco. O pai tinha-lhe comprado um vaso de tulipas vermelhas e douradas. Era vê-las, a brilhar como fogo na janela, ao sol de Março, enquanto ele ficava sentado no sofá a conversar com a mãe. Tagarelavam os dois em perfeita intimidade. Mrs. Morel vivia agora para Paul.

William tinha sido profético. Mrs. Morel recebeu uma lembrança e uma carta de Lily pelo Natal. Da irmã de Mrs. Morel, uma carta pelo Ano Novo.

«Fui ontem a um baile. Encontrei lá pessoas adoráveis e diverti-me imenso», dizia a carta. «Não perdi uma dança... nem uma.»

Mrs. Morel nunca mais teve notícias dela.

Morel e a mulher viveram em harmonia durante algum tempo depois da morte do filho. Ele costumava quedar-se, como num êxtase, de olhos esbugalhados e olhar perdido. Depois, levantava-se de repente e ia para o Three Spots, voltando já no seu estado normal. Mas nunca mais foi passear para os lados de Shepstone, para não passar pelo escritório onde o filho trabalhara, e evitava passar pelo cemitério.


SEGUNDA PARTE


VII

AMOR DE ADOLESCENTES

NO OUTONO, Paul estivera várias vezes em Willey Farm e tinha-se tornado amigo dos dois rapazes mais novos. De início, Edgar, o mais velho, não se mostrava muito receptivo, e Miriam furtava-se também a qualquer aproximação. Tinha medo de ser desprezada pelos próprios irmãos. Rapariga de alma romântica, em toda a parte via heroínas de Walter Scott, cortejadas por cavaleiros de armadura ou chapéus emplumados. Ela própria era, na sua imaginação, uma princesa transformada em guardadora de porcos. E receava que aquele rapaz, parecido embora com um herói de Walter Scott, que pintava, falava francês, sabia álgebra e viajava todos os dias de comboio para Nottingham, visse nela simplesmente a guardadora de porcos e fosse incapaz de vislumbrar a princesa que nela se ocultava. Por isso, fugia dele.

A sua melhor amiga era a mãe. Ambas de olhos castanhos e dadas ao misticismo, eram daquelas mulheres que guardam a religião ciosamente no coração e para quem a religião é como o ar que respiram, como um véu de bruma que lhes filtra a vida. Assim, para Miriam, Cristo e Deus formavam uma só imagem sublime que ela amava com fervor, apaixonadamente, sempre que um imenso pôr do Sol incendiava o céu poente; sempre que os heróis e as heroínas – os Brian de Bois Gilberts, os Rob Roys e os Guy Mannerings; as Edites, as Lucys e as Rowenas – faziam restolhar as folhas matinais encharcadas de sol, ou se vinham sentar com ela nas alturas do seu quarto, sonhadores e solitários, quando a neve caía. Isto sim, era para ela viver. Quanto ao resto, cuidava da lida da casa, trabalho que não lhe seria pesado, se o chão de tijoleira bem polida não ficasse logo todo patinhado das pesadas botas dos irmãos; queria à viva força que o irmão mais novo, de quatro anos, a deixasse envolvê-lo e cobri-lo com o seu amor; ia à igreja, reverente, em pose contrita, e sofria angustiada perante a vulgaridade das outras meninas de coro e a banalidade da voz do cura; envolvia-se em lutas com os irmãos, que considerava uns brutamontes; e não tinha o pai em grande estima por não albergar no coração quaisquer ideais místicos, e ter como únicas ambições uma vida sem preocupações e a comida na mesa a tempo e horas.

Miriam detestava a sua condição de guardadora de porcos. Queria ser respeitada. Queria instruir-se, pensando que, se fosse capaz de ler, como Paul dizia que era, a Colomba ou a Voyage Autour de ma Chambre, o mundo a veria com outros olhos e teria por ela um profundo respeito. Como jamais poderia ser princesa por fortuna ou condição, ansiava possuir conhecimentos de que pudesse orgulhar-se; era diferente das outras pessoas e não queria ser confundida com a arraia-miúda. Ser instruída era a única marca de distinção a que pensava poder aspirar.

A sua beleza, misto de timidez, rebeldia e sensibilidade, não tinha para ela qualquer valor. Nem mesmo a sua alma, tão dada a arrebatamentos, lhe era suficiente. Precisava de algo mais que reforçasse o seu orgulho, pois sentia-se diferente das outras pessoas. Olhava Paul com vaga melancolia. De uma maneira geral, desprezava o sexo masculino. Neste caso, porém, ele era um exemplar diferente, ágil, leve, gracioso, que tanto podia mostrar-se gentil como insuportável, que era inteligente e culto, que já tinha passado por uma morte na família. O pouco que o rapaz sabia guindava-o aos píncaros a seus olhos. Contudo, esforçava-se por desprezá-lo por ele não conseguir ver nela a princesa, mas tão-só a guardadora de porcos.

Paul mal reparava nela.

Um dia, porém, adoeceu gravemente e ela sentiu que com isso ele iria enfraquecer. Se assim fosse, seria ela a mais forte e então poderia amá-lo. Se pudesse ser sua amante na fraqueza, cuidar dele, tê-lo na sua dependência, se ao menos pudesse tê-lo nos seus braços, com que força o amaria!

Assim que os céus desanuviaram e as ameixoeiras floriram, Paul partiu para Willey Farm na carroça do leiteiro. Mr. Leivers gritou pelo rapaz em tom amigável e conduziu o cavalo lentamente pela encosta acima, ao fresco da manhã, dando estalinhos com a língua para o incitar. No céu passavam nuvens brancas que se iam juntar para lá das colinas, agora visíveis à luz primaveril. As águas do Nethermere jaziam em baixo, muito azuis, em contraste com os prados ressequidos e os espinheiros.

Era uma viagem de quatro milhas e meia. Nas cercas, minúsculos botões em tons vivos e brilhantes desabrochavam em rosetas e os tordos pairavam e os melros piavam e gralhavam. Era um mundo novo, fascinante.

Miriam, espreitando da janela da cozinha, viu o cavalo transpor o grande portão branco do pátio, recortando-se contra o bosque de carvalhos desfolhados, em fundo. Nisto, um rapaz envergando um casacão muito grosso saltou para o chão e estendeu as mãos para segurar o chicote e a manta que o lavrador sadio e bem-humorado lhe entregava.

Miriam assomou-se à porta. Tinha quase dezasseis anos, era linda, de faces rosadas, ar grave e uns olhos subitamente dilatados, como em êxtase.

– Vejo – disse Paul virando-se envergonhado – que os teus narcisos estão quase a desabrochar. Não será cedo de mais? Não achas que está ainda muito frio?

– Frio? – repetiu Miriam, na sua voz terna e musical.

– O verde dos botões... – e Paul interrompeu-se, timidamente.

– Deixa-me levar-te a manta – disse Miriam, com exagerada amabilidade.

– Eu posso bem levá-la – respondeu ele, mostrando-se ofendido. Contudo, entregou-lha.

Entretanto, apareceu Mrs. Leivers.

– Deves estar cansado e cheio de frio – disse ela. – Dá-me o casaco. Que pesado.... não vais longe com ele.

Ajudou-o a despir o casacão, amabilidade a que o rapaz não estava habituado, e quase sucumbiu a tanto peso.

– Ena, mulher – disse o lavrador a rir, quando passou pela cozinha com as grandes bilhas de leite a baloiçar. – Tás aí que nem t’aguentas. – Ela ajeitou as almofadas no sofá para o rapaz se encostar.


CONTINUA

Paul, sempre atrás dele, contornou o balcão quadrangular. A sala onde estava ficava no segundo andar. Tinha um grande buraco no meio do chão, rodeado por um muro de balcões, e era por essa abertura que subiam e desciam os elevadores e passava a luz para o andar de baixo. No tecto, na mesma direcção, havia também um buraco oblongo, e, olhando para cima, podiam ver-se algumas máquinas para lá da cercadura de protecção do andar superior; e, logo por cima, uma clarabóia por onde entrava a luz para os três andares, tornando-se cada vez mais fraca à medida que se descia mais fundo, o que deixava o rés-do-chão às escuras e o primeiro andar na penumbra. A fábrica estava instalada no último andar, o armazém no segundo e a arrecadação no rés-do-chão. O lugar era velho e insalubre.

Paul foi levado para um canto muito escuro.

– Aqui é a secção Espiral – disse o empregado. – Tu fazes a Espiral com o Pappleworth. É ele o teu chefe, mas ainda não veio. Só chega lá para as oito e meia. Por isso, se quiseres, podes ir buscar as cartas a Mr. Melling, ali adiante.

E o jovem apontou para o tal velho do gabinete do fundo.

– Está bem – disse Paul.

– Está aqui uma escápula para pendurares o boné... e aqui tens os livros de registo da correspondência. Mr. Pappleworth já não deve demorar.

E o jovem, muito magro, afastou-se altaneiro, com grandes passadas desenvoltas, que ressoavam secas no soalho.

Passados um ou dois minutos, Paul parou à porta do gabinete envidraçado. O velho funcionário, com o seu bonezinho, olhou-o por cima dos óculos.

– Ora muito bom dia – disse, afável e enfático. – Queres as cartas para levares para a Espiral, não é, Thomas?

Paul não gostou que ele lhe chamasse Thomas, mas pegou nas cartas e voltou para o seu recanto escuro, onde o balcão dobrava em ângulo, onde acabava a prateleira das embalagens, e onde, mesmo ao canto, se abriam três portas. Paul sentou-se num banco alto e começou a ler as cartas, pelo menos, aquelas cuja letra era mais legível. Diziam o seguinte:

«Queira enviar-me por favor, com a máxima urgência, um par de meias de seda Espiral para senhora, sem pé, idênticas às que me enviou o ano passado... altura... da anca ao tornozelo... etc.»

Ou então: «O Major Chamberlain deseja renovar o anterior pedido de uma ligadura suspensória em seda, não elástica.»

Muitas destas cartas, algumas delas em francês ou norueguês, eram um quebra-cabeças para o rapaz, que aguardava ansioso, sentado no banco, a chegada do «chefe». Às oito e meia, sofreu um ataque de timidez quando as raparigas do andar de cima passaram por ele a correr.

Mr. Pappleworth apareceu por volta das vinte para as nove, a mastigar uma pastilha elástica de mentol, quando já todos estavam a trabalhar. Era um homem magro e pálido, de nariz vermelho e gestos rápidos e peremptórios, trajando com austera elegância. Devia andar pelos trinta e seis anos e havia nele algo de canino, garboso, brincalhão e astuto, afectuoso talvez, mas simultaneamente algo de ligeiramente desprezível.

– És o meu novo ajudante? – perguntou. Paul pôs-se de pé e disse que sim.

– Foste buscar as cartas?

Mr. Pappleworth continuou a mastigar a pastilha.

– Sim.

– Copiaste-as?

– Não.

– Então anda cá, vamos pôr-te operacional. Já trocaste de casaco?

– Não.

– O melhor é trazeres um casaco velho e guardá-lo aí.

As últimas palavras foram pronunciadas com a pastilha apertada de lado, entre os queixais. Desapareceu na penumbra, por detrás da enorme prateleira das embalagens, e reapareceu já sem casaco, com uma elegante camisa às riscas com os punhos dobrados, deixando a descoberto uns braços magros e peludos. Depois, enfiou o outro casaco. Paul reparou na magreza deste homem e em como as calças faziam pregas no traseiro. Pegou num banco, puxou-o para junto do rapaz e sentou-se.

– Senta-te – disse o homem. Paul sentou-se. Mr. Pappleworth estava muito próximo dele. Pegou nas cartas, tirou um livro comprido, de registos, da prateleira em frente, abriu-o, pegou numa caneta e disse:

– Agora, presta atenção... Vais copiar estas cartas para aqui.

Fungou duas vezes, deu uma mastigadela na pastilha, olhou demoradamente para uma carta, quedou-se pensativo e deu entrada da carta rapidamente, numa caligrafia bonita e floreada. Depois, olhou de relance para Paul.

– Estás a ver?

– Estou.

– Achas que consegues fazer o mesmo... e bem feito?

– Acho que sim.

– Então, está bem... vamos lá a ver.

Saltou para o chão. Paul pegou numa caneta. Mr. Pappleworth desapareceu. Paul gostava bastante de copiar cartas, mas escrevia devagar, laboriosamente, e muito mal. Ia ele na sua quarta carta, todo feliz e atarefado, quando Mr. Pappleworth voltou.

– Ora vejamos... que tal vai isso... já ’cabaste?

Debruçou-se sobre o ombro do rapaz, sem parar de mastigar e a cheirar a mentol.

– Diabos me levem, rapaz... Mas que belo escritor que tu me saíste! – exclamou ele, trocista. – Não te rales, quantas já fizeste? Só três! Eu tinh’até tido tempo de sobra pràs comer. Continua, miúdo, e numera-as... assim, tás a ver? Continua!

Paul não largava as cartas, enquanto Mr. Pappleworth tratava de outros assuntos. Nisto, soou um apito agudo mesmo junto ao ouvido dele, e o rapaz assustou-se. Mr. Pappleworth aproximou-se, tirou um tampão de dentro de um tubo e disse, numa voz inesperadamente agreste e autoritária:

– Sim!

Paul ouviu uma voz sumida, provavelmente de mulher, a sair pelo tubo. Ficou embasbacado, pois nunca tinha visto um tubo falante.

– Bem – disse Mr. Pappleworth, num tom agastado, falando para o tubo – nesse caso, o melhor é fazer algum do trabalho em atraso.

De novo a voz aguda da mulher se fez ouvir, com um timbre bonito, mas zangado.

– Não tenho tempo para estar aqui a ouvi-la tagarelar – disse Mr. Pappleworth, e em seguida tapou o tubo.

– Vá, miúdo, despacha-te – disse ele, suplicante, virando-se para Paul. – Era a Polly aos gritos, quer as encomendas. Não consegues andar um bocadinho mais depressa? Vá... sai daí.

Pegou no livro, para imenso desgosto de Paul, e começou ele mesmo a escrever. Fazia-o depressa e bem. Uma vez terminadas as cópias, pegou numas tiras compridas de papel amarelo, com cerca de sete centímetros de largura, e preencheu as encomendas para enviar às operárias.

– É melhor prestares atenção – disse ele a Paul, sem se interromper. Paul olhou para aqueles estranhos desenhos de pernas, coxas e tornozelos, cheios de traços e números, e algumas instruções, com que o chefe preenchia as tiras amarelas. Quando acabou, Mr. Pappleworth saltou do banco.

– Vem comigo – disse ele, e, de papéis amarelos a esvoaçar na mão, desapareceu por uma porta e desceu uma escada em direcção à cave, onde ardia uma lamparina de gás. Atravessaram a arrecadação húmida e fria, depois uma sala comprida e lúgubre com uma mesa enorme assente sobre cavaletes e entraram numa sala mais pequena e acolhedora, de tectos não muito altos, que tinha sido construída como anexo do edifício principal. Nesta sala estava uma mulher de pequena estatura, com uma blusa de sarja vermelha e cabelo preto apanhado ao alto num carrapito, em atitude expectante, de galarote.

– Cá tão elas – disse Pappleworth.

– Eu penso que será «Cá estão elas»! – exclamou Polly. – As raparigas estiveram aqui à espera quase meia hora. Pense só no tempo que se perdeu!

– Pense mas é em fazer o seu trabalho e falar menos – disse Mr. Pappleworth. – Podia ter despachado outras coisas.

– Sabe muito bem que despachámos tudo no sábado – gritou Polly, avançando para ele faiscante.

– Blá-blá-blá! – arremedou-a o homem. – Aqui tem o seu novo ajudante. Não dê cabo deste como deu do outro.

– Como nós demos do outro! – repetiu Polly. – Pois é, nós damos cabo de muita coisa, olá se damos. Também lhe digo que qualquer rapaz tinha de ficar estragado depois de estar ao pé de si.

– Vá, vá... agora é hora de trabalhar, não de conversar – disse Mr. Pappleworth num tom seco e severo.

– Também há pouco era – disse Polly, afastando-se de cabeça bem erguida. Tinha um corpo pequeno e escorreito, de quarenta anos.

Na dita sala havia duas máquinas redondas, espiraladas, em cima do poial da janela. Na sala ao lado, que comunicava com a primeira e era mais comprida, havia outras seis máquinas. Algumas raparigas dignamente vestidas e de aventais brancos conversavam umas com as outras, formando um pequeno grupo.

Não têm mais nada para fazer? – disse Mr. Pappleworth.

– Só esperar por si – disse uma delas, bem bonita, rindo com gosto.

– Bom, toca a trabalhar, toca a trabalhar – disse ele. – Anda, miúdo. Da próxima vez, já sabes o caminho.

Paul correu escada acima atrás do chefe. Mandaram-no conferir algumas facturas e fazer outras. Ele arrimou-se à secretária, esforçando-se por cumprir a tarefa na sua caligrafia execrável. Nisto, Mr. Jordan aproximou-se, vindo do gabinete envidraçado, e, para grande atrapalhação de Paul, veio pôr-se mesmo por detrás dele. Subitamente, um dedo gordo e vermelho espetou-se sobre o documento que ele estava a preencher.

– Mr. J. A. Bates, Esquire! – bradou uma voz irada, junto ao seu ouvido.

Paul olhou para o «Mr. J. A. Bates Esquire» escrito na sua letra tortuosa, e perguntou-se o que estaria mal agora.

– Não te ensinaram a fazer como deve ser, enquanto andavas na escola? Se se põe «Mr.», não se põe «Esquire»... um homem não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.

O rapaz, lamentando a sua prodigalidade no modo como esbanjava títulos, hesitou e, com dedos trémulos, apagou a palavra «Mr.». Mas logo Mr. Jordan lhe arrancou a factura das mãos.

– Faz outra! Ou vais mandar isto a um cavalheiro? – E rasgou a factura azul, irritadíssimo.

Paul recomeçou, com as orelhas a arder de vergonha, sob o olhar atento de Mr. Jordan.

– Não sei o que é que eles vos ensinam na escola. Devias escrever muito melhor do que isso. Hoje em dia, os miúdos não aprendem nada a não ser recitar poesia e tocar violino... Já viu a letra dele? – perguntou Mr. Jordan a Mr. Pappleworth.

– Já... é de primeira... não é? – respondeu Mr. Pappleworth com indiferença. – Mas ele vai aprender.

Mr. Jordan resmungou qualquer coisa desagradável. Paul percebeu que o patrão ladrava mais do que mordia. Na verdade, o pequeno fabricante era suficientemente cavalheiresco, apesar do seu mau inglês, para deixar os empregados à vontade e não se prender com ninharias. Mas tinha consciência de não ter aspecto de ser o dono e senhor de tudo aquilo, e via-se por isso forçado a desempenhar o seu papel de vilão, para repor as coisas nos seus devidos lugares.

– Ora vamos lá a ver, como é que te chamas? – perguntou Mr. Pappleworth ao rapaz.

– Paul Morel.

É curioso o que as crianças sofrem para pronunciarem os seus nomes.

– Com que então, Paul Morel! Muito bem, vá, Paul Morel, toca a acabar essa coisa, e depois...

Mr. Pappleworth sentou-se num banco e começou a escrever. Uma rapariga entrou por uma porta mesmo atrás dele, depositou em cima do balcão uns artigos de malha elástica acabados de passar a ferro e voltou a sair. Mr. Pappleworth pegou na joelheira azul claro, examinou-a, confrontou-a rapidamente com a nota de encomenda amarela e pô-la de parte. Ao lado estava uma «perna» rosada, cor de carne. Conferiu os vários artigos, preencheu algumas notas de encomenda e disse a Paul que o acompanhasse. Desta vez, saíram pela porta por onde a rapariga tinha entrado. Paul viu-se no cimo de um pequeno lanço de escadas, e em baixo viu uma sala com janelas em duas das paredes e, no extremo oposto, meia dúzia de raparigas sentadas, curvadas sobre si mesmas, a costurarem à luz das janelas e a cantarem em coro, «Duas Meninas Vestidas de Azul». Ao ouvirem a porta abrir-se, todas se voltaram e viram Mr. Pappleworth e Paul a olharem para elas do outro lado da sala. Pararam de cantar imediatamente.

– Não podem fazer menos barulho? – disse Mr. Pappleworth. – As pessoas hão-de pensar que temos a casa cheia de gatas.

Uma mulher corcunda, sentada num banco alto, voltou para Mr. Pappleworth a cara comprida e circunspecta, e disse com voz de contralto:

– Só se esses forem gatos.

Mr. Pappleworth em vão tentou causar efeito para impressionar Paul. Desceu as escadas até à sala de acabamentos e dirigiu-se à corcunda, uma tal Fanny. O seu corpo era tão pequeno, empoleirado no alto do banco, que a cabeça, com grandes bandós de cabelo castanho-claro, parecia excessivamente grande, tal como o rosto, pálido e grave. Trazia um vestido de caxemira verde-escuro, e, quando pousou o trabalho nervosamente, viu-se que os seus pulsos, cingidos por punhos estreitos, eram finos e achatados. Ele mostrou-lhe uma joelheira que tinha um defeito qualquer.

– Ora – disse ela – não precisava de vir atirar as culpas para cima de mim... a culpa não é minha – disse, subindo-lhe um rubor às faces.

– Eu não disse que a culpa era sua... e agora faça o que lhe mandei! – ripostou Mr. Pappleworth, secamente.

– Não diz que a culpa é minha, mas quer fazer parecer que é – gritou a corcunda, quase a chorar. Depois, arrancou a joelheira das mãos do «chefe», dizendo: – Está bem, eu faço isso, mas não precisa de vir com duas pedras na mão.

– Aqui está o seu novo ajudante – disse Mr. Pappleworth.

Fanny voltou-se e sorriu gentilmente para Paul.

– Oh! – disse ela.

– Pois é... agora vejam lá se o estragam com mimos.

– Se alguém o estragar, não somos nós – disse ela, indignada.

– Vamos embora, Paul – disse Mr. Pappleworth.

– Au revoi, Paul – disse uma das raparigas.

Foi uma risota. Paul saiu, corado até à alma, sem dizer palavra.

O dia nunca mais acabava. Durante toda a manhã, foram os operários a vir falar com Mr. Pappleworth, e Paul a escrever ou a aprender a preparar as embalagens para a tiragem do meio-dia. À uma da tarde, ou melhor, quando faltava um quarto para a uma, Mr. Pappleworth desapareceu, para apanhar o comboio: vivia nos arredores. À uma, Paul, sentindo-se perdido, levou o cesto do farnel para a arrecadação da cave, onde estava a tal mesa comprida sobre cavaletes, e comeu à pressa, completamente sozinho naquele espaço de penumbra e desolação. Depois, foi passear para a rua. A claridade e a liberdade que sentia nas ruas tornavam-no feliz e afoito. Mas, às duas horas, voltou para o seu canto na sala grande. Não tardou que passassem as raparigas, metendo-se com ele. Eram as de mais baixa condição, as que trabalhavam no andar de cima em tarefas mais pesadas, como o fabrico de fundas e os acabamentos dos membros artificiais. Paul ficou a aguardar a chegada de Mr. Pappleworth, sem saber o que fazer, sentando-se a rabiscar nas notas de encomenda amarelas. Mr. Pappleworth chegou às vinte para as três, sentou-se e pôs-se a tagarelar com Paul, tratando o rapaz como seu igual, até na idade.

De tarde nunca havia muito que fazer, a não ser que fosse perto do fim-de-semana e as contas tivessem de ser fechadas. Às cinco horas, todos os homens foram até à «masmorra» da mesa de cavaletes, onde tomaram chá e pão com manteiga em cima das tábuas nuas e imundas, conversando com a mesma avidez e grosseria com que tomavam a refeição. No entanto, lá em cima, o ambiente era sempre alegre e desanuviado. Certamente a cave e os cavaletes deixavam-nos transtornados.

Depois do chá, quando todos os bicos de gás estavam acesos, o trabalho fluía com mais rapidez. Era preciso despachar as encomendas para o correio da tarde. As meias chegavam lá acima ainda quentes, acabadinhas de passar, directamente das oficinas. Paul já tinha passado todas as facturas. Faltava-lhe fazer agora as embalagens e endereçá-las, e depois pesar as suas encomendas na balança. Por todo o lado se ouviam vozes a gritar pesagens, o tilintar de metais, o estalar nervoso dos cordéis, a corrida ao gabinete de Mr. Melling, para os selos. Finalmente, chegou o carteiro, sorridente e bem-disposto, como seu enorme saco. Depois a agitação abrandou, Paul pegou no cesto do farnel e correu para a estação, para apanhar o comboio das oito e vinte. O dia de trabalho era exactamente de doze horas.

A mãe esperava por ele, ansiosa. Paul tinha de ir para casa a pé desde Keston, pelo que não chegou a casa antes das nove e vinte; e tinha saído de casa antes das sete da manhã. Mrs. Morel preocupava-se com a saúde do filho, mas também ela já tivera de enfrentar tantas dificuldades, que esperava que os filhos tivessem agora a mesma genica. Teriam de suportar o que fosse preciso. Assim, Paul manteve-se na Jordan, embora durante a sua permanência nesse emprego a sua saúde sofresse com a falta de luz e de ar fresco, e as longas horas de trabalho.

Quando chegou, vinha pálido e cansado. A mãe olhou para ele, mas viu-o tão satisfeito que a sua preocupação desapareceu.

– Então, como é que foi? – perguntou ela.

– Foi tão engraçado, mãe – respondeu ele. – O trabalho não é nada pesado e eles foram muito bons para mim.

– E saíste-te bem?

– Claro... só dizem que a minha letra é péssima. Mas Mr. Pappleworth... o meu chefe... disse a Mr. Jordan que eu ia aprender. Estou na Espiral, mãe. Tem de ir lá ver. É tão bom...

Paul contou tudo à mãe, tudo o que tinha visto, pensado, todos os pormenores da experiência que vivera. A única coisa que escondeu dela foi o ter escrito «Mr. J. A. Bates Esquire». Isso, ele não queria que ela soubesse; sentia muita vergonha. Também não lhe relatou nada de mais desagradável que lhe tivessem dito, só as coisas boas, tentando fazê-la crer que estava feliz e era estimado, e que a vida lhe corria de feição... o que geralmente acontecia. Contou-lhe tudo, excepto as pequenas vergonhas ou ignomínias; jamais suportaria vê-la envergonhada ou vexada por sua causa.

Paul depressa aprendeu a gostar da Jordan. Mr. Pappleworth, que tinha um certo ar de frequentador de bares, tratava-o sempre com naturalidade, como se fossem amigos de longa data. Às vezes, o chefe da Espiral irritava-se, e então mastigava pastilhas elásticas sem parar. Mesmo assim, nunca era ofensivo, mas sim uma daquelas pessoas que se magoam mais a si próprias do que aos outros com a sua irritabilidade.

– Ainda não fizeste isso? – gritava ele. – Já vi que és um mês só com domingos.

E logo se punha de novo alegre e brincalhão, o que deixava Paul muito confuso.

– Amanhã trago a minha cadelinha Yorkshire terrier – disse ele a Paul, rejubilando.

– O que é isso de Yorkshire terrier?

– O quê? Pois tu não sabes o que é uma Yorkshire terrier?... Não saber o que é um Yorkshire! – Mr. Pappleworth estava pasmado.

– É um cãozinho de pêlo sedoso... em tons de ferrugem e prata oxidada?

– É isso mesmo, meu rapaz. A minha é uma pérola. Já teve cachorrinhos que me renderam cinco libras, e ela própria vale mais de sete libras: e não chega a pesar uma libra e meia...

No dia seguinte, a cadela veio com ele. Era dez réis de cão tremeliquento. Paul não lhe ligou nenhuma; a cadela mais parecia um trapo molhado sem esperança de secar. Nisto, um dos homens chamou-a e começou a dizer piadas grosseiras. Mas Mr. Pappleworth meneou a cabeça na direcção do rapaz e a conversa prosseguiu a meia-voz.

Mr. Jordan fez apenas mais uma excursão à Espiral, para inspeccionar o trabalho de Paul e o único reparo que lhe fez, ao ver o rapaz pousar a caneta no balcão, foi:

– Tens de pôr a caneta na orelha, se queres ser um caixeiro a sério. Vá, caneta na orelha!

Num outro dia, disse ao rapaz:

– Não endireitas mais esses ombros porquê? Ora vem cá. E levou-o ao gabinete envidraçado, onde lhe colocou uns suspensórios especiais para manterem os ombros direitos.

Mas Paul preferia a companhia das raparigas. Os homens pareciam-lhe grosseiros e pouco espertos. Simpatizava com todos eles, mas achava-os desinteressantes. Ao encontrar Paul a comer na cave, Polly, a supervisora baixinha e sirigaita do rés-do-chão, perguntou-lhe se ele não queria que ela lhe cozinhasse alguma coisa no seu fogareiro e, no dia seguinte, a mãe mandou-lhe uma refeição que podia ser aquecida. Ele levou-a à salinha limpa e aconchegada onde Polly trabalhava, e depressa adquiriu o hábito de almoçar com ela. Quando chegava ao trabalho, às oito da manhã, levava-lhe o cesto, e quando descia à uma hora, já o almoço estava pronto.

Paul era pálido, não muito alto, cabelo espesso e castanho, feições irregulares e uma boca rasgada, de lábios cheios. Ela parecia um passarinho, e ele até a tratava muitas vezes por pisco. Embora fosse geralmente muito calado, com ela passava horas sentado a conversar, a contar-lhe peripécias familiares. Todas as raparigas adoravam ouvi-lo; formavam muitas vezes um círculo à sua volta, enquanto ele discursava e ria, sentado num banco. Algumas consideravam-no um fulaninho curioso, tão sério e, no entanto, tão inteligente e bem-disposto, e sempre tão delicado no modo como as tratava. Todas gostavam dele e ele adorava-as. Com Polly era diferente; a essa, ele sentia que pertencia. Mas era Connie, com a sua farta cabeleira ruiva, a sua tez de flor de macieira, a voz sussurrada, e sempre tão distinta no seu vestido preto já gasto, que apelava ao seu lado romântico.

– Quando te sentas a enrolar a meada – disse ele – parece que estás a fiar na roca... é um quadro tão bonito. Faz-me lembrar a Elaine, dos Idílios do Rei. Se eu soubesse, desenhava-te. – Ela olhou para ele de relance, timidamente ruborizada. Mais tarde, havia um esboço de que ele muito gostava: Connie sentada num banquinho, em frente à roca, a longa crina ruiva flamejante sobre o vestido preto ruçado, e os lábios rubros selados e muito sérios, a passar o fio escarlate do novelo para a bobina.

Com Louie, bonita e atiradiça, que parecia estar sempre a provocá-lo com o menear das ancas, punha-se geralmente a brincar.

– O que estás a fazer?

– Porque queres saber? – respondeu ela, levantando a cabeça, atrevida.

– Porque acho que tu não te conheces.

– Porquê?

– Porque não tens ar de te conheceres.

– Então tenho cara de quê?

– Tens cara de quem está sempre a pensar nalguma coisa. Em que é que estavas a pensar?

Ela olhou-o pelo canto do olho e disse, com uma gargalhada:

– Isso era o que tu querias saber, não era?

– Sai daí – disse ele. – Vamos lá dar uma volta à tua meia.

E, depois, pegando na manivela da máquina, começou a rodá-la.

Mas ela empurrou-o.

– Isso vai ficar tudo mal – exclamou.

E ficaram os dois a olhar um para o outro, a rir às gargalhadas.

Emma era bastante feia, e não era nem nova nem condescendente. Sentia-se, porém, feliz por se mostrar condescendente com Paul. E ele não se importava.

– Como é que se metem as agulhas? – perguntou ele um dia.

– Sai daqui, não me maces.

– Mas eu devia saber como é que se metem as agulhas.

Ela continuou a coser à máquina, sem pestanejar.

– Há tantas coisas que devias saber – respondeu ela.

– Então ensina-me a colocar as agulhas na máquina.

– Ai, este rapaz sempre é muito maçador! ... Pronto, é assim que se faz...

Ele observou-a atentamente. Nisto, soou um apito, e a seguir Polly entrou e perguntou em voz bem audível:

– Paul, Mr. Pappleworth quer saber por quanto tempo vais ficar cá em baixo a brincar com as raparigas.

Paul correu pela escada acima, a gritar «Adeusinho!», e Emma endireitou-se na cadeira e explicou:

– Não fui eu que quis que ele estivesse a brincar com a máquina.

– Qu’é qu’andavas a fazer? – perguntou Mr. Pappleworth, quando o rapaz apareceu.

– Estava só a falar com a Emma, e a aprender a colocar as agulhas na máquina.

– O melhor é pegares no teu trabalho e mudares-te lá pra baixo.

– Mas aqui não havia nada de especial para fazer, pois não?

– Mal tu saíste daqui, o patrão veio à tua procura. Um dia sai-te caro! E então estes registos?

Paul meteu mãos à obra cheio de vontade.

Regra geral, quando as raparigas voltavam, às duas horas, ele ia ao andar de cima ter com Fanny, a corcunda, que trabalhava nos acabamentos.

Mr. Pappleworth só chegava às vinte para as três, e vinha encontrar muitas vezes o rapaz sentado ao lado de Fanny a conversar, a desenhar ou a cantar com as raparigas.

– Vem cá, Paul, meu querido – gritava a Fanny. – Até pensámos que hoje não vinhas cá acima. Pensávamos que ias ficar lá em baixo por não gostares da nossa companhia.

– Fui à cidade.

– Para quê, meu lindo?

– Para ver se encontrava uma cestinha de mirtilos para a minha mãe.

– E encontraste?

E, uma vez iniciada a conversa, nunca mais terminavam. Paul gostava muito de Fanny e a corcunda gostava muito dele. Ela tinha vinte e nove anos e sofrera muito. Ele gostava de ficar sentado ao lado dela, à janela, a olhar para a rua e a desenhar a bizarra floresta de chaminés e telhados antigos e bicudos que a vista alcançava. Depois dizia:

– Canta qualquer coisa, Fanny.

– Sabes que mais? Tu não queres que eu cante – dizia ela, manejando a agulha com destreza, com as mãos magras e nervosas. – Tu queres é fazer pouco de mim.

– Não quero nada! Mas é que eu disse à minha mãe que cantavas muito bem...

– Não sei o que é que a tua mãe ia pensar de mim, se me visse, Paul. Ia pensar que eu era um macaco encarrapitado num pau.

– Ela sabe como tu és, porque eu já lhe contei. E gosta de ti. Canta lá «Naquela Taberna...». Este desenho vai ficar uma maravilha.

E, passado um minuto de hesitação, Fanny começou a cantar. Tinha uma bela voz de contralto, e todas as raparigas cantaram em coro e muito afinadas. Paul não se sentia nada embaraçado por estar ali sentado no meio das mulheres.

Quando terminou, Fanny disse:

– Sei que estão a fazer troça de mim.

– Não sejas assim, Fanny! – exclamou uma das colegas.

Uma outra vez, falou-se no cabelo ruivo de Connie.

– Cá pra mim, acho o da Fanny mais bonito – disse Emma.

– Não precisas de fazer pouco de mim – disse Fanny, agastada.

– Mas ela tem o cabelo mesmo bonito, Paul.

– É uma cor especial – disse ele. – Aquela cor fria, como a terra, e mesmo assim brilhante... como um pântano.

– Santo Deus! – exclamou uma das raparigas, a rir.

– Estás a ver como só me criticam? – disse Fanny.

– E havias de o ver solto, Paul – gritou Emma, falando a sério. – É simplesmente uma beleza. Solta o cabelo pra ele ver, Fanny, pode ser que ele o queira pintar.

Fanny recusou-se, e, no entanto, era o que mais queria fazer.

– Então solto-lho eu – disse o rapaz.

– Bem, já que insistes – disse Fanny.

Paul tirou os ganchos do carrapito com todo o cuidado, e a longa cabeleira, num tom castanho-escuro uniforme, caiu sobre a corcunda.

– Que maravilha! – exclamou ele.

As raparigas observavam-no. Reinava o silêncio. O jovem soltou-lhe mais o cabelo.

– É esplêndido – disse, sentindo-lhe o perfume. – Aposto que vale muitas libras.

– Deixo-to quando morrer – disse Fanny, em tom de brincadeira.

– Pareces-te com qualquer de nós, sentada a secar o cabelo – disse uma das raparigas à colega corcunda e pernalta.

A pobre da Fanny era morbidamente susceptível, em tudo adivinhando insultos, ao passo que Polly era directa e factual. As duas secções estavam permanentemente em guerra, e Paul vinha constantemente encontrar Fanny lavada em lágrimas. Fanny contava-lhe todas as suas mágoas, e ele, depois, ia defendê-la junto de Polly.

A filha de Mr. Jordan era pintora. Um dos seus modelos era Connie, que lhe falou de Paul. Primeiro, Miss Jordan pediu para ver alguns dos seus desenhos, e, a seguir, veio ela própria falar com ele. Era uma mulher fria e impessoal, mas mostrou algum interesse pelo rapaz.

E assim foi correndo o tempo, em harmonia. A fábrica tinha um ambiente agradável. Ninguém era empurrado ou pressionado. Paul até gostava quando o trabalho acelerava perto da hora do correio e todos se entreajudavam. Gostava de ver os colegas em acção. O homem era o trabalho e o trabalho era o homem, unidos num só. Com as raparigas era diferente. A verdadeira mulher parecia nunca estar ali presente no trabalho – era como se estivesse de fora, à espera.

Da janela do comboio, quando à noite regressava a casa, observava as luzes da cidade povoando as colinas e fundindo-se nos vales com um clarão ardente. E Paul sentia-se rico de experiência e felicidade. Mais adiante, havia uma mancha de luz em Bulwell, como miríades de pétalas caídas das estrelas sobre a terra; e, mais além, o jorro incandescente das fornalhas, projectando nas nuvens o seu sopro abrasador.

Chegado a Keston, ainda tinha de andar mais de duas milhas até casa, subindo duas colinas mais longas e descendo outras duas mais curtas. Sentindo-se muitas vezes cansado, ia contando os candeeiros à medida que subia, para ver quantos ainda faltavam. E, do alto da colina, nas noites de breu, via as aldeias espalhadas a toda a volta, a cinco ou seis milhas de distância, enxameando a noite de vida e luz, quase como um céu aberto a seus pés. Marlpool e Heanor semeavam de cintilações a escuridão mais longínqua. Uma vez por outra, o negro vale que se interpunha lá em baixo, era riscado, violado por um interminável comboio que rolava célere para sul, em direcção a Londres, ou rumo ao norte, para a Escócia. Os comboios troavam como projécteis na escuridão, fumegantes e acesos, fazendo retinir o vale à sua passagem. Mas logo desapareciam, e as luzes das cidades e das aldeias cintilavam outra vez, mergulhadas no silêncio.

Chegava, por fim, à esquina da casa, virada para o outro lado da noite. O freixo parecia agora um amigo. A mãe vibrava de alegria vendo-o chegar. Ele depositava os oito xelins orgulhosamente sobre a mesa.

– Fazem-lhe jeito, mãe? – perguntava, ansioso.

– Não vai sobejar quase nada depois de descontar o bilhete, as refeições e tudo o mais.

Em seguida, punha-a ao corrente dos acontecimentos do dia. A história da sua vida, como nas Mil e Uma Noites, mas muito mais monótona, era contada à mãe noite após noite. E ela escutava e era quase como se a vida fosse dela.


VI

UMA MORTE NA FAMÍLIA

ARTHUR MOREL ia crescendo. Era um rapaz vivo, descuidado e impulsivo, muito parecido com o pai. Tinha horror aos estudos, resmungava sempre que tinha de trabalhar e escapava-se o mais depressa que podia, para voltar para a brincadeira.

Fisicamente, continuava a ser o menino bonito da família, bem constituído, gracioso, cheio de vida. O cabelo castanho-escuro, a frescura da tez e os olhos raros, de um azul profundo e sombreados de longas pestanas, a par dos seus modos generosos e temperamento fogoso, faziam dele o preferido. Mas, à medida que crescia, o temperamento ia-se tornando instável. Tinha acessos de fúria por tudo e por nada, e mostrava-se insuportavelmente violento e irritável.

A mãe, de quem tanto gostava, já começava a perder a paciência. Arthur só pensava em si próprio. Detestava tudo o que se interpusesse entre si e o seu prazer, mesmo quando esse «tudo» era a mãe. Mas, quando se metia em apuros, era com ela que tinha intermináveis desabafos.

– Meu Deus, rapaz – disse ela, quando ele se veio queixar de um professor que, segundo ele, o tomara de ponta – se não te agrada a situação, tens de a fazer mudar, e se não podes mudar nada, tens de te adaptar.

Quanto ao pai, que ele amara desmedidamente e que o idolatrava, acabou por detestá-lo. Com a idade, Morel transformou-se lentamente numa ruína viva. O seu corpo, em tempos belo nas formas e na agilidade, mirrou com os anos, não parecendo ter amadurecido, mas, pelo contrário, ter-se tornado insignificante e desprezível, emanando baixeza e mesquinhez. E sempre que este homem de meia-idade e olhar perverso o injuriava ou o tratava com prepotência, Arthur ficava furioso. Ainda por cima, os modos de Morel eram cada vez mais grosseiros, e os seus hábitos quase repugnantes. Na fase de crescimento dos filhos e durante o período crítico da adolescência, o pai surgia-lhes aos olhos da alma como um ser feio e irritante. Em casa, os seus modos eram idênticos aos que usava com os outros mineiros no fundo da mina.

– Monstro nojento! – gritava Arthur, saltando da cadeira e saindo de casa, quando o pai o enojava.

E Morel fazia ainda pior, por saber que as crianças o detestavam. Parecia sentir prazer em afrontá-las, a ponto de quase as enlouquecer, quando, aos catorze ou quinze anos, atravessavam a fase de extrema sensibilidade e irritabilidade. Assim, Arthur, que cresceu quando o pai já se encontrava em declínio e a caminho da velhice, odiava-o acima de tudo.

Por vezes, o pai parecia pressentir todo esse ódio e desprezo que os filhos tinham por ele.

– Não há homem que se sacrifique mais pela família – bordava então. – Faz por eles tudo o que pode, e tratam-no como um cão. Mas eu tenho força para aguentar, estão a ouvir!

Não fora o tom ameaçador e o facto de não fazer por eles tanto quanto pensava, e teriam até sentido pena. Nesta altura, a guerra instalava-se quase sempre entre pai e filhos, com o primeiro persistindo nos seus modos grosseiros só para afirmar a sua autoridade. Os filhos detestavam-no.

Por fim, Arthur já andava tão exaltado e irritado que, quando ganhou uma bolsa para ir para a escola secundária de Nottingham, a mãe achou por bem deixá-lo ficar a viver na cidade com uma das suas irmãs, vindo apenas a casa aos fins-de-semana.

Annie ainda era professora estagiária na escola primária, onde ganhava quatro xelins por semana. Mas em breve seriam quinze, uma vez que passara o exame final, o que traria à família tranquilidade financeira.

Mrs. Morel era muito agarrada a Paul. Ele era calado e não excessivamente inteligente, mas continuava fiel à pintura e à mãe. Tudo o que fazia era para ela. E ela esperava pela sua chegada à noitinha, para desabafar com ele todos os seus pensamentos, tudo o que lhe acontecera durante o dia. E ele ouvia-a, sentado e atento. Era o partilhar de duas vidas.

William estava noivo da tal morena, e tinha-lhe comprado um anel de noivado que custara oito guinéus. Os irmãos ficaram sem fôlego perante soma tão fabulosa.

– Oito guinéus! – disse Morel. – Bem parvo é!... Ficava-lhe melhor se me tivesse dado antes algum a mim.

– Dar-te algum, a ti! – exclamou Mrs. Morel. – Porque havia ele de te dar algum?

Mrs. Morel lembrou-se de que o marido não lhe tinha comprado anel de noivado e, a seu ver, antes ser como o William, que não era mesquinho, embora pudesse ser parvo. Mas agora o jovem só falava nos bailes a que tinha ido com a noiva e nos vestidos deslumbrantes que ela usava; ou então contava à mãe, rejubilante, como tinham os dois ido ao teatro em grande estilo.

William queria trazer a namorada para os pais conhecerem, e Mrs. Morel disse-lhe que a trouxesse no Natal. Desta vez, William chegou acompanhado de uma senhora, mas sem presentes. Mrs. Morel tinha preparado a ceia. Ao ouvir passos, levantou-se e foi à porta. William entrou.

– Olá, mãe! – deu-lhe um beijo apressado, chegou-se para o lado e apresentou-lhe uma rapariga alta e bonita, vestida com um saia-e-casaco preto e branco aos quadradinhos e uma estola de peles.

– Cá está a Ciganita!

Miss Western estendeu a mão e rasgou um sorriso de muitos dentes.

– Oh, como está, Mrs. Morel! – exclamou.

– Devem estar com fome – disse Mrs. Morel.

– Não, não estamos. Jantámos no comboio... Tens as minhas luvas, Fofinho?

William Morel, alto e ossudo, olhou para ela acto contínuo.

– Como é que havia de tê-las? – disse ele.

– Então perdia-as. Não te zangues comigo...

Viu-se que ele tinha ficado aborrecido, mas não disse nada. Ela relanceou o olhar pela cozinha. Achou-a pequena e bizarra, com o ramo de azevinho pendurado na parede e as sempre-vivas por detrás das fotografias, as cadeiras de madeira e a mesinha de jogo. Nessa altura, entrou Morel.

– Olá, pai!

– Olá, meu filho... Mas que surpresa!

Apertaram as mãos, e William apresentou-lhe a senhora. Ela reeditou o sorriso, mostrando os dentes.

– Como está, Mr. Morel. – Morel inclinou-se respeitosamente.

– Tou bem, obrigado, e espero que também esteja... Seja muito bem-vinda.

– Ah, obrigada – respondeu ela, bastante divertida.

– Há-de querer ir para cima – disse Mrs. Morel.

– Se não se importa... mas só se não a incomodar.

– Não incomoda nada... A Annie vai consigo... Walter, leva este baú para cima.

– E não leves uma hora a aperaltar-te – disse William para a noiva.

Annie pegou num candelabro de latão e, muda de vergonha, subiu à frente da jovem até ao quarto principal, que Mr. e Mrs. Morel lhe tinham cedido. Era também pequeno e frio, iluminado apenas pelas velas. As mulheres dos mineiros só acendiam as lareiras nos quartos em caso de doença muito grave.

– Quer que desaperte as correias do baú?

– Ah, muito obrigada!

Annie estava a fazer o papel de criada. Em seguida voltou para baixo para ir buscar água quente.

– Ela deve estar muito cansada, mãe – disse William. – É uma viagem muito violenta, e na correria em que andámos...

– Queres que lhe leve alguma coisa? – perguntou Mrs. Morel.

– Não, não... Ela está bem.

Mas havia um certo gelo no ar. Passada mais de meia hora, Miss Western desceu, envergando um vestido em tons de púrpura, demasiado fino para a cozinha do mineiro.

– Tinha-te dito que não precisavas de trocar de roupa – disse William.

– Deixa lá, Fofinho!... – E, mantendo o sorriso adocicado, voltou-se para Mrs. Morel: – Não acha que ele está sempre a resmungar, Mrs. Morel?

– Ah, está? – disse Mrs. Morel. – Isso é muito feio.

– E é mesmo!

– Deve estar com frio – disse a mãe. – Não quer vir para a la-reira? – Morel saiu imediatamente da cadeira de braços.

– Venha pr’àqui – exclamou ele. – Venha pr’àqui.

– Não, pai... Não saia da sua cadeira... senta-te no sofá, Ciganita – disse William.

– Não senhor! – insistiu Morel. – Esta cadeira é mais quente. Venha sentar-se aqui, Miss Wesson.

– Muitíssimo obrigada – disse a rapariga, sentando-se na cadeira de braços do mineiro, ou seja, o lugar de honra. Teve uma tremura ao sentir o calor da cozinha invadi-la.

– Vai buscar-me um lenço, Fofinho! – disse ela, fazendo beicinho e dirigindo-se-lhe no tom íntimo de quando estavam sozinhos, o que fez os restantes membros da família sentirem-se como intrusos. Era evidente que a jovem não os considerava como pessoas: para ela não passavam de criaturas. William estremeceu.

Se aquela casa fosse em Streatham, Miss Western seria a senhora, condescendendo a conviver com a camada inferior. Para ela, estas pessoas eram no mínimo grotescas – numa palavra, da classe trabalhadora. Como poderia ela adaptar-se?

– Eu vou – disse Annie.

Miss Western ignorou-a, como teria feito com uma criada, e só quando ela voltou para baixo com o lenço disse então, com afabilidade:

– Oh, muito obrigada.

Depois, desatou a falar: do jantar no comboio, que não tinha prestado para nada, de Londres, dos bailes. Via-se que estava muito nervosa e era o medo que a fazia falar. Morel, sentado a fumar um tabaco muito forte, observava-a enquanto lançava baforadas de fumo para o ar e ouvia com atenção a sua petulante algaraviada londrina. Mrs. Morel, ostentando a sua melhor blusa de seda preta, ia-lhe respondendo com calma e poucas palavras. Os outros filhos estavam sentados, em admirativo silêncio. Miss Western era a princesa. Tinham ido buscar tudo o que havia de melhor para a servir: as melhores chávenas, as melhores colheres, a melhor toalha, o melhor bule. As crianças achavam que ela devia estar a apreciar muito o acolhimento. Mas ela sentia-se mal, por não entender as pessoas, por não saber como tratá-las. William ia dizendo piadas, sentindo-se ligeiramente comprometido.

Por volta das dez horas, disse-lhe:

– Não estás cansada, Ciganita?

– Muito, Fofinho – respondeu ela, com voz melada e inclinando a cabeça ligeiramente para o lado.

– Acendo a vela, mãe? – disse ele.

– À vontade – respondeu a mãe.

Miss Western levantou-se e estendeu a mão a Mrs. Morel.

– Boa noite, Mrs. Morel – disse ela.

Paul, sentado em frente da caldeira, deixou jorrar a água da torneira para dentro de uma garrafa de cerveja em grés. Annie abafou a garrafa numa velha camisola da mina, e deu à mãe um beijo de boas-noites. Com a casa cheia, ia ter de dormir com a senhora.

– Espera um bocadinho – disse Mrs. Morel à filha. Annie sentou-se com a botija ao colo. Miss Western despediu-se de todos com um aperto de mão, para grande atrapalhação dos presentes, e saiu, precedida por William. Passados cinco minutos, ele voltou para baixo. Sentia o coração oprimido, sem saber porquê. Falou muito pouco até todos se terem ido deitar, excepto ele e a mãe. Depois, foi pôr-se de pé frente à lareira, de pernas afastadas como costumava fazer noutros tempos, e disse, titubeante:

– Então, mãe?

– Então o quê, meu filho?

A mãe sentou-se na cadeira de baloiço. Sentia-se de certo modo ferida e humilhada por causa dele.

– Gosta dela?

– Gosto – tardou a resposta.

– Ela ainda está pouco à vontade, mãe... não está acostumada a tudo isto. É muito diferente da casa da tia dela, sabe.

– Claro que é, meu filho... Deve ser difícil para ela.

– Pois é. – E, de repente, a expressão carregou-se-lhe. – Se ao menos ela não pusesse aqueles benditos ares!

– É só a primeira reacção, meu filho. Aquilo passa-lhe.

– Tem razão, mãe – respondeu ele, gratificado. Mas o olhar continuava triste. – Sabe, ela não é como a mãe... não é compenetrada... e não se cansa muito a pensar.

– Ela é muito nova, meu filho.

– É isso!... E não teve sorte nenhuma. A mãe morreu quando ela era criança, e desde então vive com uma tia que ela já não consegue aturar. E o pai era um patife... Faltou-lhe o amor.

– Sério?!... Bem, nesse caso tens de a compensar de tudo isso.

– E perdoar-lhe muitas coisas.

– Que coisas é que tens de lhe perdoar, meu filho?

– Sei lá... quando ela se mostra superficial, por exemplo... É preciso lembrarmo-nos de que ela nunca teve ninguém que fizesse desabrochar o seu lado mais profundo... E ela gosta tremendamente de mim.

– Isso qualquer pessoa pode ver.

– Mas, sabe uma coisa, mãe... ela... ela é diferente de nós. As pessoas como ela, aquelas com quem se dá... não parecem ter os mesmos princípios que nós.

– Não deves fazer juízos precipitados – disse Mrs. Morel. Mas ele parecia contrafeito.

De manhã, contudo, levantou-se e pôs-se a cantar pela casa toda.

– Olá! – chamou ele, saudando-a do fundo das escadas, onde estava sentado. – Já te estás a levantar?

– Já – respondeu ela lá de cima, com voz sumida.

– Feliz Natal! – gritou ele.

No quarto, ouviu-se o riso dela, bonito e musical. Mas ela só desceu meia hora depois.

– Ela estava mesmo a levantar-se, quando disse? – perguntou William a Annie.

– Estava, sim – respondeu Annie.

William aguardou uns instantes e voltou para as escadas.

– Feliz Ano Novo! – gritou ele.

– Obrigada, Fofinho do meu coração! – disse uma voz risonha, de muito longe.

– Despacha-te! – implorou ele.

Tinha passado quase uma hora, e ele à espera dela. Morel, que se levantava sempre antes das seis, olhou para o relógio.

– Bem, já vi qu’é das que s’atrasam! – exclamou.

Já todos tinham tomado o pequeno-almoço, excepto William, que se foi postar ao fundo das escadas.

– Será que vou ter de mandar aí para cima um ovo de Páscoa? – gritou ele, já zangado. Ela limitou-se a rir. A família esperava algo de mágico depois de tão longa preparação. Finalmente, ela apareceu, com uma saia e uma blusa que lhe ficavam muito bem.

– Levaste mesmo todo este tempo para te vestires? – perguntou ele.

– Oh, Fofinho!... Isso não é pergunta que se faça, pois não, Mrs. Morel?

A princípio, ela representou o papel da grande dama. Quando entrou na capela ao lado de William, ele de fraque e chapéu de seda, e ela de estola de peles e saia-casaco dos melhores costureiros de Londres, Paul, Arthur e Annie esperavam que todos se curvassem até ao chão, em êxtase. E Morel, observando o parzinho galante do fundo da rua, com o seu fato domingueiro, sentia-se o pai do príncipe e da princesa.

Porém, a dama não era assim tão grande. Trabalhava desde há um ano como uma espécie de secretária, ou escriturária, num escritório de Londres.

Mas enquanto esteve com os Morels parecia uma rainha: sentava-se à mesa e deixava que Annie e Paul a servissem, como se fossem seus criados. Tratava Mrs. Morel com alguma petulância e Morel com paternalismo. Mas, passados um ou dois dias, a sua atitude começou a mudar.

William pedia sempre a Paul ou Annie que os acompanhassem nos passeios que davam. Era muito mais divertido. E Paul sentia real admiração pela Cigana, uma admiração genuína. Na verdade, a mãe não podia perdoar ao filho a adoração que mostrava pela jovem.

No segundo dia, quando Lily disse:

– Annie, sabes por acaso onde terei deixado o meu regalo? William respondeu:

– Sabes muito bem que está no teu quarto. Para que perguntas à Annie?

E Lily lá foi ao quarto, amuada, de lábios crispados. O rapaz já não suportava vê-la fazer da irmã uma criada.

Na terceira noite, William e Lily foram sentar-se na sala, às escuras, frente à lareira. Quando era um quarto para as onze, ouviram Mrs. Morel a abafar o borralho. William veio para a cozinha, seguido da namorada.

– Já é assim tão tarde, mãe? – disse ele. A mãe tinha passado a noite sozinha.

– Não quer dizer que seja tarde, meu filho... mas é tarde para eu continuar a pé.

– Então, porque não se vai deitar? – perguntou ele.

– E deixar os dois aqui sozinhos?... Não, meu filho, isso eu não faço.

– A mãe não tem confiança em nós?

– Tenha ou não tenha, é a mesma coisa... Podem ficar aqui até às onze horas, se quiserem, e eu leio mais um bocadinho.

– Vai deitar-te, Ciganita – disse William. – Não podemos fazer esperar a minha mãe.

– A Annie deixou a vela acesa, Lily – disse Mrs. Morel. – Acho que a luz será suficiente.

– Claro, obrigada. Boa noite, Mrs. Morel.

William acompanhou a namorada até ao fundo das escadas, deu-lhe um beijo e ela foi para o quarto. Ele voltou para a cozinha.

– Não tem confiança em nós, mãe? – insistiu ele, todo ofendido.

– Meu filho, já te disse que eu não vou deixar dois pombinhos como vocês sozinhos cá em baixo, com toda a gente a dormir.

E o filho não teve outro remédio senão contentar-se com a resposta. Deu um beijo à mãe e foi deitar-se.

Na Páscoa, chegou sozinho. Depois, falou longamente com a mãe sobre a namorada.

– Sabe, mãe... quando estou longe dela, nem penso nela... se não voltasse a vê-la, era a mesma coisa. Mas, quando estou com ela, à noite, gosto muito dela.

– É um amor muito estranho para acabar em casamento – disse Mrs. Morel. – Se é só isso que ela representa para ti!

– É engraçado! – exclamou William, entre o preocupado e o perplexo. – E, no entanto... Há demasiadas coisas entre nós, para eu desistir dela agora.

– Tu lá sabes – disse Mrs. Morel. – Mas, se é como dizes, eu não lhe chamaria amor... pelo menos, não parece.

– Não sei, mãe. Ela é órfã, e...

Acabaram por não chegar a uma conclusão. Ele parecia confuso e aborrecido. Ela era muito reservada. Ele gastava todas as suas energias e dinheiro com esta rapariga. Quando veio a casa, mal tinha dinheiro para levar a mãe a Nottingham.

O salário de Paul, para grande alegria sua, tinha sido aumentado no Natal para dez xelins. O rapaz continuava muito satisfeito najordan, mas a sua saúde começou a ressentir-se do pesado horário de trabalho e das condições de isolamento. A mãe, para quem ele era cada vez mais importante, pensou em como poderia ajudá-lo.

A tarde de folga dele era à segunda-feira. Numa segunda-feira, em Maio, quando estavam os dois sozinhos a tomar o pequeno-almoço, ela disse:

– Acho que vamos ter um lindo dia.

Ele olhou-a surpreendido. Alguma coisa ela tinha para lhe dizer.

– Sabias que Mr. Leivers foi morar para uma quinta nova? Pois bem, ele convidou-me a semana passada para ir fazer uma visita a Mrs. Leivers, e eu prometi-lhe que te levava lá hoje, se estivesse bom tempo. Então, vamos?

– Oh, mãezinha, mas isso é óptimo! – exclamou Paul. – Vamos esta tarde, não é?

– Se não estiveres muito cansado... olha que é uma grande caminhada.

– A que distância fica?

– Quatro milhas.

– Ora... não sou eu que me canso por fazer quatro milhas... é a mãe. Acha que consegue?

– Claro que consigo.

– Que bom!... Que bom! – exclamou ele. – Vou voltar a correr para casa. E a quinta é bonita?

– Ele diz que sim... Tu logo dirás.

– Eu não conheço Mrs. Leivers, mãe. Conhece-a?

– Então não conheces... uma mulherzinha macambúzia, com uns grandes olhos castanhos, que se costumava sentar à nossa frente na capela.

– Não me lembro.

– Julgava que pelo menos te lembrasses do chapéu, mesmo que não te lembrasses de mais nada... usa sempre o mesmo chapéu desde há seis anos, desde que a conheço: um quico preto com um farrapo de renda prantado no cucuruto, às três pancadas. Quando a via com o chapéu no alto da cabeça, domingo atrás de domingo, sempre com o mesmo chapéu, só me apetecia ir lá tirar-lho. E o marido é tão elegante e bem-parecido.

– Se calhar, era pobre – alvitrou Paul.

– E que fosse! Sei que não estava pior do que eu. Só que tinha a mania de não comprar nada novo, dava-lhe para ali.

– E ao menos é simpática?

– É. Eu sempre gostei dela... mas ela não consegue andar à altura do homem que tem... Só o orgulho consegue uma coisa dessas, nada mais.

– Porquê?

– Ora bem, ela é uma mulher pequenina, delicada, fina, com uns grandes olhos castanhos... cheios de sentimento. E eu sei que tem passado muito com sete filhos e o pouco que o Alfred Leivers lhe dá. Acho que ele não gosta muito de trabalhos pesados... e daí, talvez... Mas assim, como a vida lhe correu mal e chegou ao estado a que chegou, é orgulhosa de mais para competir com as outras mulheres e agarra-se a um trapo antigo... mas é uma mulher bonita.

– E orgulhosa, mãe?

– Não... Com as outras pessoas, não. Mas consigo mesma não podia ser mais. A pobreza e a vida triste que leva corroem-lhe a alma e ela agarra-se àquela chapeleta preta, para troçar da sua própria pobreza... ou do marido... Só Deus sabe... Mas tu vais gostar dela. Eu gosto dela.

– Bem – disse Paul –, se vamos visitá-la à quinta, não vai estar de chapéu.

– Esperemos que não – disse Mrs. Morel. – É um escândalo e uma vergonha sobrecarregar um corpo frágil como o dela daquela maneira, mas também não precisava de andar naquela figura, por despeito. Faço ideia de como ele se deve sentir!...

Paul saiu à pressa para a estação, rejubilante. Em Derby Road, havia uma cerejeira a cintilar. O velho muro de tijolo junto ao pátio do Statutes brilhava em tons de escarlate, incandescentes, e a Primavera era uma labareda verde. A estrada íngreme estendia-se esplêndida, coberta da fria poeira matinal em alternâncias de sol e sombra, absolutamente estática. As árvores, orgulhosas, deixavam pender abaulados os ombros verdes e possantes. Durante toda a manhã, de dentro do armazém, o rapaz foi brindado com um quadro de Primavera.

Quando voltou para casa, a mãe estava excitadíssima.

– Sempre vamos? – perguntou ele.

– É só o tempo de me arranjar – respondeu ela.

– Conseguiu acabar o trabalho?

– Consegui.

Paul sentou-se à mesa, à espera do almoço. Ela trouxe-lhe a frigideira.

– Para que se foi meter a fazer sonhos de ruibarbo se tinha tão pouco tempo?

– Porque me apeteceu – disse a mãe. – E estou pronta quando tu estiveres.

Tinha feito os sonhos porque, durante a semana, o filho só vinha almoçar a casa neste dia, e gostava muito de sonhos.

– Não senhora... saia daqui. Quem faz isso sou eu.

Paul levantou-se e tentou tirar-lhe a frigideira da mão.

– Nem pensar nisso! – disse ela, agitando o garfo. – Temos muito tempo.

Ele voltou para a mesa, cabisbaixo, e ela continuou com os cozinhados.

– São mesmo coisas de mulher – disse ele. – Às voltas com a frigideira, quando devia estar a vestir-se para sair.

– São é mesmo coisas de rapazes, julgam que já sabem tudo – disse ela, colocando a sobremesa diante dele.

– E esteve a apanhar esse calor todo na cara – disse o filho. – Já sabe que quando lá chegar, vai ter a cara vermelha como o sol nascente.

– Se tiver, não sou eu que te vou pedir para olhares para mim.

– E, mesmo que pedisse, eu não olhava – respondeu ele.

– Ingrato!

– Afogueada!

Ela fungou e empertigou-se daquela maneira a que ele chamava «esticar-se à tartaruga».

– Já se lavou? – perguntou ele.

– Já.

– Pois olhe, não parece, tem o nariz enfarruscado, como de costume.

Ela foi ver-se ao espelho.

– Que maçada! – exclamou.

Ele levantou-se.

– Vá-se vestir, que eu lavo a loiça – disse Paul.

Ela obedeceu. Ele lavou as panelas, endireitou as costas e pegou nas botas dela. Estavam muito limpas. Mrs. Morel era daquelas pessoas naturalmente dotadas que são capazes de andar na lama sem sujarem os sapatos. Mas Paul quis limpar-lhas, mesmo assim. Eram botas de criança, das de oito xelins o par. No entanto, para ele, eram as botas mais chiques do mundo, e limpava-as com tanta reverência como se fossem flores.

Subitamente, ela apareceu à porta, muito tímida. Trazia uma blusa nova. Paul deu um salto em frente.

– Ena pá! – exclamou ele. – Que espalhafato!

Ela inspirou ligeiramente, altiva, de cabeça bem erguida.

– Não é espalhafato nenhum! – retorquiu ela. – É até bem recatada.

Mrs. Morel deu um passo em frente e o filho mirou-a de todos os lados.

– Então – perguntou ela, envergonhada, mas mostrando-se segura e arrogante. – Gostas?

– É um espanto! Vou gostar de levar uma mulher tão bonita a passear!

Contornou-a e mirou-a pelas costas.

– Muito bem! – disse ele. – Se fosse na rua atrás de si, havia de dizer: – Mas que bem vestida que aquela senhorinha vai.

Ela fungou de satisfação, como era seu hábito, mas a fazer-se desentendida.

– Sabes – disse ela –, só me custou três xelins. Por este preço não a podia comprar feita, pois não?

– Acho que não – respondeu o filho.

– E o tecido é de muito boa qualidade.

– Tremendamente bonita! – disse ele.

A blusa era branca, com raminhos púrpura e pretos.

– Demasiado jovem para a minha idade, não achas?

– Essa agora, demasiado jovem para si? – exclamou Paul, agastado. – Já agora, porque não compra uma peruca branca para pôr no alto da cabeça?

– Daqui a pouco já não é preciso – respondeu ela. – Estou aqui, estou com a cabeça toda branca.

– Pois faça favor de não estar – disse ele. – Para que quero eu uma mãe de cabelo branco?

– Pois olha que vais ter de te contentar, meu menino – disse ela, com uma entoação bastante estranha.

Saíram de casa em grande estilo, ela com a sombrinha que William lhe tinha dado, para se proteger do sol. Paul era consideravelmente mais alto do que ela, embora não fosse muito grande. O rapaz ia todo cheio de si.

Na terra lavrada, as espigas tenras brilhavam como seda. A mina de Minton desfraldava os seus penachos de vapor branco, acompanhados de roncos e roucas tossidelas.


– Olha para aquilo! – disse Mrs. Morel. Mãe e filho pararam na estrada, a ver. Ao longo da crista do grande monte da mina, desenhava-se em contraluz um pequeno grupo a avançar mansamente – um cavalo, uma carrocinha e um homem. Trepavam a encosta em direcção ao céu: ao chegarem ao cimo, o homem voltou a carroça e, com injustificado estrépito, a escória rolou pela vertente abrupta do aterro.

– Sente-se um bocadinho, mãe – disse Paul, e ela sentou-se na rocha, enquanto ele desenhava a cena rapidamente. Mrs. Morel manteve-se em silêncio enquanto o filho trabalhava, entretida a admirar a tarde e o casario vermelho a cintilar entre o verde da paisagem.

– O mundo é um lugar maravilhoso – disse ela. – E maravilhosamente belo.

– E a mina também – disse ele. – Veja como cresce, como se estivesse viva... é como uma criatura gigantesca que nós não conhecemos.

– É – disse ela. – Talvez!

– E os vagões parados, à espera, como animais em correnteza à espera da ração – disse ele.

– E eu bem contente fico de os ver aí à espera – disse a mãe. – Quer dizer que a semana vai ser boa.

– Eu gosto de sentir a mão do homem nas coisas; é sinal de vida. Nos vagões sente-se o dedo do homem, porque são mãos de homens que os conduzem.

– Pois é – disse Mrs. Morel.

Continuaram a caminhada à sombra das árvores, pela estrada principal. Ele ia explicando tudo e ela mostrava-se interessada. Passaram pelo extremo do lago Nethermere, que embalava no colo docemente, como pétalas, os reflexos do sol. Depois viraram para uma estrada particular e, com emoção crescente, aproximaram-se de uma grande quinta. Um cão desatou a ladrar furiosamente. Apareceu uma mulher, a ver quem era.

– É este o caminho para Willey Farm? – perguntou Mrs. Morel.

Paul deixou-se ficar atrás da mãe, apavorado com a ideia de serem escorraçados. Mas a mulher era prestável e indicou-lhes o caminho. Mãe e filho meteram pelo meio do trigo e da aveia, atravessaram uma pequena ponte e chegaram a um prado em pousio. Os abibes, com os seus peitos brancos reluzentes, gritavam e volteavam em redor. O lago estava estático e azul. No céu, planava uma garça. Em frente, o bosque subia denso pela encosta, verde e estático.

– É uma estrada florestal, mãe – disse Paul. – Tal e qual como no Canadá.

– Lindo, não é? – disse Mrs. Morel, olhando em volta.

– Está a ver aquela garça... está a ver... as pernas dela?

Era ele que dizia à mãe para onde devia, ou não, olhar. Mas ela gostava assim.

– E agora – disse ela – para que lado é?... Ela disse-me para atravessar o bosque. – O bosque, cerrado e sombrio, estendia-se para a esquerda.

– Sinto que aqui há um caminho – disse Paul. – A mãe tem pés de citadina; seja lá como for, mas tem.

Encontraram uma cancela e entraram numa larga vereda arborizada, com um maciço de cedros e pinheiros de um dos lados e uns quantos carvalhos decrépitos do outro a descerem pela encosta. E, entre os carvalhos, as campainhas-do-monte espraiavam-se em mancha azul sob as aveleiras ainda verdes e um manto esmorecido de folhas amareladas de carvalho. Paul apanhou flores para dar à mãe.

– Está aqui um pouco de feno acabado de chegar – disse ele, e desta vez trouxe-lhe miosótis. E de novo o coração lhe doía de tanto amor, vendo a mão dela, calejada do trabalho, pegar no raminho que ele lhe dera. Ela estava completamente feliz.

No fim da vereda era preciso saltar uma cerca. Paul passou num instante.

– Venha – disse ele –, eu ajudo-a.

– Não... sai daí. Prefiro passar à minha maneira. Ele ficou do outro lado, com as mãos no ar, pronto para a ajudar. Ela trepou com todas as cautelas.

– Mas que maneira de trepar! – exclamou Paul, trocista, quando a mãe já estava a salvo no chão.

– Malditas cercas! – bradou ela.

– Só se uma mulher for muito desajeitada – replicou ele – é que não consegue passá-las.

Em frente, ao longo da orla do bosque, estendia-se um aglomerado de casas de lavoura, baixas e vermelhas. Estugaram o passo. Pegado ao bosque havia um pomar de macieiras cujas flores caíam sobre uma mó. Em baixo era a lagoa, sob os ramos pendentes dos carvalhos. Havia vacas a usufruir da sombra. A quinta e as casas, formando três lados de um quadrilátero, abraçavam o sol viradas para o bosque. Tudo estava em silêncio.

Mãe e filho entraram no pequeno jardim cercado de grades onde pairava um perfume a cravos vermelhos. Junto à porta entreaberta viam-se alguns pães enfarinhados, deixados a arrefecer. Uma galinha aproximou-se para os debicar. De repente, assomou-se à porta uma rapariga com um avental muito sujo. Devia andar pelos catorze anos, tinha as faces morenas e rosadas, um tufo de pequenos caracóis negros muito apertados a cairem livremente, e os olhos castanhos. Parecia tímida e curiosa, com alguma desconfiança dos estranhos. A rapariga voltou a desaparecer. Logo a seguir, surgiu uma outra figura, uma mulher pequenina e frágil, rosada e com grandes olhos castanhos.

– Oh! – exclamou ela, rasgando um sorriso cintilante. – Sempre veio. Gosto muito de a ver por cá. – A voz da mulher era afável e muito triste.

As duas mulheres apertaram a mão.

– Tem a certeza de que não viemos incomodar? – disse Mrs. Morel. – Sei bem como é a vida do campo.

– De maneira nenhuma. Até é uma bênção ver caras novas. Estamos aqui tão isolados.

– Pois devem estar... – disse Mrs. Morel.

Levaram-nos até à sala, uma divisão comprida e de tectos baixos, com um grande ramo de rosas amarelas a enfeitar a lareira. As mulheres sentaram-se a conversar, enquanto Paul foi dar uma volta pela quinta. Estava no jardim a cheirar os cravos e a olhar para as plantas, quando a rapariga saiu a correr e se foi pôr junto do monte de carvão encostado à cerca.

– Creio que estas vão ser rosinhas de toucar, quando abrirem – disse ele, apontando para as roseiras ao longo da cerca. Ela olhou para ele com os grandes olhos castanhos, muito espantados, muito abertos.

– Não sei – respondeu, hesitante. – São brancas e têm o olho cor-de-rosa.

– Então são «rubores de donzela».

Miriam corou – uma cor cálida, bonita.

– Não sei – disse ela.

– Não tens grande coisa no jardim – disse ele.

– É o primeiro ano que aqui passamos – respondeu ela, com modos distantes e superiores, afastando-se e entrando em casa. Paul não ligou e continuou a exploração. A mãe veio ter com ele e deram a volta aos edifícios. Paul estava deliciado.

– Suponho que ainda tenha de ir tratar das galinhas, das vitelas e dos porcos? – disse Mrs. Morel a Mrs. Leivers.

– Não – retorquiu a mulherzinha. – Não consigo arranjar tempo para tratar do gado, e, além disso, não estou habituada. O trabalho de casa já me chega.

– Sim, suponho que sim – disse Mrs. Morel.

Daí a pouco, a rapariga veio cá fora.

– O chá está pronto, mãe – disse, com uma voz suave, musical.

– Ah, obrigada, Miriam, já vamos – respondeu a mãe, toda ela amabilidade. – Podemos ir tomar o nosso chá agora, Mrs. Morel?

– Claro – disse Mrs. Morel. – Logo que estiver pronto.

Paul, a mãe e Mrs. Leivers tomaram chá juntos. Depois foram passear pelo bosque, inundado de campainhas-do-monte, enquanto os carreiros estavam reservados aos miosótis. Mãe e filho caminhavam os dois em êxtase.

Quando voltaram, Mr. Leivers e Edgar, o filho mais velho, estavam na cozinha. Edgar devia ter dezoito anos. Depois, chegaram da escola Geoffrey e Maurice, dois rapagões de doze e treze anos. Mr. Leivers era um homem bem-parecido, na força da vida, de bigode castanho-dourado e olhos azuis sempre assestados, a perscrutar o tempo.

– Foram dar uma volta? – perguntou ele a Paul, com entusiasmo.

– Não deu para ver tudo – respondeu o rapaz, saindo em seguida com Geoffrey e Maurice.

– Onde é que tu trabalhas? – perguntou Geoffrey. Eram os três muito tímidos.

– Na Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan, em Nottingham.

– E que fazes?

– Sou empregado de escritório.

– E fazes o quê?

– Copio cartas, faço encomendas e passo facturas.

– Que tipo de cartas copias?

– Oh... todo o tipo... a maior parte são a encomendar meias elásticas.

– Meias elásticas!... Qu’é isso?

Seguiram-se muitas explicações.

– E algumas das cartas vêm de França e de outros lugares – disse Paul.

– E tu tens d’as copiar?

– Claro.

– Em francês?

– Não... traduzo-as.

– Essa agora... então sabes francês?

– Sei alguma coisa... e alemão também.

– E quem t’ensinou?

– O meu padrinho... e também álgebra e geometria.

– Eu cá não faço tenções d’encher a cabeça com essas coisas – disse Geoffrey.

Os dois rapazes mostravam-se terrivelmente superiores, mas Paul nem dava por isso. Foram à procura de ovos, vasculhando em todos os lugares. Quando estavam a dar de comer às galinhas, Miriam saiu de casa. Os rapazes não lhe ligaram. Na capoeira es-tava uma galinha com os seus pintainhos amarelos. Maurice pegou numa mão-cheia de milho e deixou a galinha vir comer-lhe à mão.

– Tens coragem de fazer o mesmo? – perguntou ele a Paul.

– Vamos lá ver... – respondeu Paul.

Ele tinha a mão pequenina, quente e habilidosa. Miriam ficou a observá-lo. Paul aproximou a mão da galinha. A ave olhou para o milho com o seu olhar duro e brilhante e, de repente, deu-lhe uma bicada na mão. Paul assustou-se, mas depois riu-se. «Pic-pic-pic», fazia-lhe a galinha na palma da mão. Paul riu-se outra vez e os rapazes riram com ele.

– Ela ferra-nos e pica-nos, mas nunca faz doer – disse Paul, quando o milho se acabou.

– Agora, Miriam, é a tua vez – disse Maurice.

– Não – gritou ela, encolhendo-se.

– Olha, parece um bebé. És mesmo um bebé! – disseram os irmãos.

– Não dói nada – disse Paul. – São só uns beliscõezinhos muito agradáveis.

– Não – gritou ela mais uma vez, abanando os caracóis negros e encolhendo-se.

– Ela não s’atreve – disse Geoffrey. – Ela nunca s’atreve a fazer nada a não ser recitar poesia.

– Não s’atreve a saltar uma cancela... não s’atreve a brincar connosco... não s’atreve a fazer frente quando outra rapariga lhe bate... não é capaz de fazer nada a não ser andar por aí convencida qu’é alguém... «A Dama do Lago»... é isso mesmo! – gritou Maurice.

Miriam estava coradíssima de vergonha e infelicidade.

– Sou capaz de fazer mais coisas que vocês – gritou ela. – Vocês não passam duns cobardes e duns brigões.

– Olha, olha, «cobardes e brigões!» – repetiram eles, arremedando-a.

«Um palhaço assim nunca me enfurece.

Todo o brutamontes silêncio merece»

recitou ele, virado para ela, a rir às gargalhadas.

Ela voltou para casa. Paul foi com os dois rapazes até ao pomar, onde tinham montado à pressa duas barras paralelas. Aí chegados, entregaram-se às respectivas demonstrações de força. Paul era mais ágil do que possante, mas foi quanto bastou. Apontou para umas flores de macieira que estavam mesmo à ponta de um ramo balouçante.

– Eu cá, se fosse a ti, não apanhava as flores – disse Edgar, o mais velho dos irmãos. – Senão, prò ano não temos maçãs.

– Eu não ia apanhá-las – respondeu Paul, indo-se embora.

Os rapazes mostravam-se hostis com ele. Interessavam-lhes mais as suas próprias brincadeiras. Paul voltou para casa, para junto da mãe. Quando ia a contornar a casa pelas traseiras, viu Miriam ajoelhada diante da capoeira da galinha, com a mão cheia de milho, a morder o lábio, numa atitude de intensa concentração. A galinha fitava-a com maldade. Cautelosamente, ela estendeu a mão. A galinha atirou-se. Ela retirou rapidamente a mão, com um grito, misto de medo e frustração.

– Ela não te magoa – disse Paul.

Miriam pôs-se de pé, muito corada.

– Só queria experimentar – disse, muito baixinho.

– Vês... não dói nada – disse ele. E, colocando apenas dois grãos de milho na palma da mão, deixou a galinha bicá-lo à vontade. – Só dá vontade de rir – continuou Paul.

Ela estendeu a mão e retirou-a, tentou novamente e fugiu para trás, com um grito. Ele fez uma careta.

– Olha, eu até a deixava comer milho da minha cara – disse Paul. – Mas ela dá muitos encontrões. Ela faz isto com toda a perfeição! Se não fizesse, já imaginaste a quantidade de terra que ela ia comer todos os dias?

Esperou, muito sério, a observá-la. Finalmente, Miriam deixou a galinha bicar-lhe a mão. Deu um gritinho, de medo e dor, porque estava assustada, um gritinho patético. Mas tinha conseguido, e voltou a repetir a proeza.

– Estás a ver – disse o rapaz. – Não faz doer, pois não?

Ela fitou-o com os olhos escuros muito abertos.

– Não – disse ela, a rir e a tremer.

Depois levantou-se e foi para casa. Parecia de alguma forma ofendida com o rapaz.

«Ele deve achar que eu não passo duma rapariga como as outras», pensava ela, cheia de vontade de lhe provar que era uma grande personagem, como a «Dama do Lago».

Paul veio encontrar a mãe pronta para partir. Mrs. Morel sorriu para o filho, e ele pegou no grande ramo de flores. Mr. e Mrs. Leivers acompanharam-nos até ao fundo da quinta. As colinas douravam-se do entardecer, e nas profundezas dos bosques sobressaía o púrpura carregado das campainhas-do-monte. Por todo o lado estava o silêncio, apenas quebrado pelo restolhar das folhas e os pássaros.

– É de facto um lugar belíssimo – disse Mrs. Morel.

– É, sim – concordou Mr. Leivers. – É um lugar bem aprazível, o pior são os coelhos. Dão cabo das pastagens. Não sei se alguma vez iremos ter lucro.

Bateu as palmas e os campos cobriram-se de movimento, junto ao bosque: por toda a parte saltavam coelhos acastanhados.

– Até custa a acreditar! – exclamou Mrs. Morel.

Ela e Paul continuaram sozinhos daí para a frente.

– Foi um dia maravilhoso, não foi, mãe? – disse Paul, falando baixinho. A lua despontava, tímida. O coração doía-lhe de tanta felicidade. A mãe não se calava, pois também ela tinha vontade de gritar de felicidade.

– Então eu não ia ajudar um homem daqueles? Não ia tratar das galinhas e dos bezerros? Havia de aprender a ordenhar, e havia de conversar com ele, e fazer planos com ele. Palavra, se eu fosse mulher dele, aquela quinta ia de vento em popa, isso é que ia... Mas não, ela não tem forças... simplesmente não tem forças. Nunca devia ver-se sobrecarregada desta maneira, percebes. Tenho pena dela, e dele também. Palavra, se ele fosse meu, nunca diria que era um mau marido... Não que ela diga, lá isso não... E ela é até muito simpática.

William veio a casa outra vez, com a namorada, pelo Pentecostes. Tinham-lhe dado uma semana de férias. O tempo estava muito bonito. Geralmente, William, Lily e Paul iam juntos dar um passeio pela manhã. William não conversava muito com a namorada, excepto para lhe contar histórias da infância; mas Paul falava sem parar com qualquer deles. A certa altura, deitaram-se os três num prado, perto da igreja de Minton. De um dos lados, junto do parque do castelo, estendia-se ondulante uma cortina de choupos – uma beleza. As sebes cobriam-se de bagas pendentes de azevinho. Os campos salpicavam-se de margaridas e flores-de-cuco, como sorrisos. William, agora com vinte e três anos, era já um homem feito, muito alto, mas tão magro que era quase só pele e osso. Deitou-se ao sol, de costas, a sonhar, enquanto Lily brincava com o seu cabelo. Paul foi apanhar margaridas. Ela tinha tirado o chapéu. O seu cabelo era negro como a crina de um cavalo. Paul aproximou-se e entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo de azeviche, lembrando enormes lantejoulas brancas e amarelas, com um toque rosado de flores-do-cuco.

– Agora pareces uma bruxinha – disse o rapaz. – Não parece, William?

Lily deu uma gargalhada. William abriu os olhos e contemplou-a. O seu olhar era um misto confuso de tristeza e desmedida admiração.

– Ele transformou-me mesmo numa visão do Além? – perguntou ela, olhando para baixo, para o seu amado, a rir.

– Então não transformou! – disse William, a sorrir. E continuou deitado a olhar para ela. Os seus olhos nunca procuravam os dela. Não queria encontrar os olhos dela. Queria estar só a olhar para ela, não que os seus olhares se encontrassem. E esta vontade de a evitar, aflorava-lhe aos olhos como a tristeza. Ele desviou-os outra vez. Ela deixou a mão esguia, onde brilhavam diamantes, brincar no cabelo dele um pouco mais. Depois disse:

– O Paul sabe como fazer as coisas.

– Óptimo – disse William. – Desde que isso te faça feliz. Ele preenche-te as manhãs e eu as noites.

Ela voltou-se para Paul, e riu-se.

– Quero pôr-te mais três flores sobre a orelha – disse ele, de pé ao lado dela. – Depois, fica pronto.

Ela deixou, e ele entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo.

– Não sentes o perfume do sol nos teus cabelos? – perguntou Paul. – Estás a ver, era assim que devias ir aos bailes.

– Obrigada – disse ela, sempre a rir.

Levantaram-se.

– Não ponhas ainda o chapéu – disse Paul.

– Achas que sim? – perguntou ela a William. – Posso ir nesta figura?

William olhou para ela outra vez. A beleza dela quase o magoava. Olhou-lhe para a cabeça coberta de flores e torceu o nariz.

– Estás muito bonita assim, se é isso que queres saber.

E ela continuou o passeio sem chapéu. William logo se recompôs do mau humor e mostrou-se muito terno com ela. Ao chegarem a uma ponte, até gravou um coração com as iniciais dos dois.

 


Ela observou-o atentamente, vendo como a sua mão forte e nervosa, salpicada de pêlos cintilantes e de sardas, gravava no tronco o coração, o que parecia deixá-la fascinada.

Durante toda a estadia, enquanto William e Lily estiveram presentes, pairava dentro de casa um sentimento de tristeza e calor humano, e também de certa ternura. Mas muitas vezes ele irritava-se. Ela tinha trazido para uma semana cinco vestidos e seis blusas.

– Ouve, não te importas de me lavares estas duas blusas... e estas coisinhas? – disse ela a Annie.

E Annie ficou em casa a lavar roupa, enquanto, na manhã seguinte, William e Lily foram passear. Mrs. Morel ficou furiosa. Às vezes, ao aperceber-se da atitude da namorada para com a irmã, o jovem odiava-a pelo seu comportamento.

No domingo de manhã, Lily apareceu muito bonita, com um vestido leve, sedoso e esvoaçante, tão azul como as penas de um gaio, e um chapéu de palha coberto de rosas, onde dominava o carmim. As pessoas não se cansavam de a admirar. Mas, à noite, quando iam a sair, ela perguntou de novo:

– Fofinho, tens as minhas luvas?

– Quais delas? – perguntou William.

– As novas, as de camurça preta.

– Não.

Seguiu-se uma busca. Tinha-as perdido.

– Está a ver, mãe – disse William. – Já é o quarto par que ela perde desde o Natal... e cada par são cinco xelins.

– Tu só me deste dois pares – repontou ela.

E à noite, depois da ceia, ficou sentada no sofá e ele foi postar-se frente à lareira, farto dela. À tarde, tinha-a deixado sozinha para ir visitar um amigo de infância, e ela ficara a ver um livro. Depois da ceia, William quis ir escrever uma carta.

– Aqui tem o seu livro, Lily – disse Mrs. Morel. – Importa-se de ficar a ler mais um bocadinho?

– Não, obrigada, não quero o livro – disse a rapariga. – Prefiro ficar só aqui sentada.

– Mas isso é muito aborrecido...

William escrevia nervosamente, a grande velocidade. Quando estava a fechar o sobrescrito, disse:

– Ler um livro!... Essa é boa, ela nunca leu um livro na vida dela.

– Não digas isso! – disse Mrs. Morel, irritada com o exagero.

– É verdade, mãe... não leu mesmo – exclamou ele, pondo-se de pé num salto e retomando o seu lugar anterior, frente à lareira. – Nunca na vida leu um livro.

– Atão essa é como eu – interveio Morel. – Essa tamém num vê nada nos livros qu’a faça ficar sentada, aborrecida, de nariz infiado nas folhas. Pra quê? Eu tamém num vejo!

– Mas tu não devias dizer essas coisas – disse Mrs. Morel ao filho.

– Mas é verdade, mãe... ela não sabe ler... que livro é que lhe deu?

– Bem, dei-lhe um livrinho da Annie Swan. Ninguém quer ler coisas pesadas num domingo à tarde.

– Pois eu aposto que ela nem dez linhas leu.

– Aí é que tu te enganas – disse a mãe.

Lily assistia à discussão sentada no sofá, com um ar muito infeliz.

– Leste alguma coisa do livro? – perguntou-lhe ele.

– Li, sim – respondeu ela.

– Quantas páginas?

– Sei lá quantas páginas...

– Diz-me uma coisa que tenhas lido.

Ela não foi capaz.

– Cala-te, William – disse a mãe. – Que ideia a tua!

– Mas ela não consegue ler, mãe! – gritou ele, secamente. – Não consegue reter nada do que lê. Não sabe ler e não sabe falar. Não há assunto nenhum sobre o qual se possa conversar com ela. Só pensa em vestidos e em como todos a admiram.

– Não lhe ligue, Lily – disse Mrs. Morel.

– Só os parvos é que se sentam de nariz infiado nos livros, é o qu’eu digo – acrescentou Morel.

E a pobre rapariga continuava a ser agredida. Ele parecia odiá-la. Mais tarde, Mrs. Morel foi buscar-lhe um livro muito simples, e era patético vê-la arrastar-se penosamente pelas primeiras páginas na tarde chuvosa. Não conseguiu passar da segunda página. Ele lia muito, e possuía uma inteligência rápida, activa. Ela não entendia nada a não ser fazer amor e tagarelar. Ele estava habituado a ter todos os seus pensamentos peneirados pela mente da mãe. Por isso, quando procurava companhia e, em resposta, lhe era pedido que fosse apenas um amante, todo ele ternuras e gorgeios, odiava a namorada.

– Sabe, mãe – disse ele, quando à noite ficaram os dois sozinhos – ela não dá valor ao dinheiro, é um catavento. Quando recebe o ordenado, é capaz de gastar uma fortuna numa porcaria qualquer como, por exemplo, marrons glacés. E, depois, sou eu que tenho de lhe comprar o passe e todos os outros extras... até a roupa interior. E quer ela casar-se... Por mim, podíamos até casar já para o ano. Mas por este andar...?

– Ia ser um lindo casamento – respondeu a mãe. – Eu, se fosse a ti, pensava duas vezes, meu filho.

– Bom... Agora já fui longe de mais para romper com tudo – disse ele. – Por isso, o melhor é casar o mais depressa possível.

– Muito bem, meu filho. Se é isso que queres, assim será, e não se fala mais no assunto... Mas olha que eu não durmo quando penso nisso.

– Ela é boa rapariga, mãe. Cá nos havemos de arranjar.

– E ela deixa que sejas tu a comprar-lhe a roupa interior? – perguntou a mãe.

– Bem... – começou ele, apologético. – Ela nunca me pediu. Mas uma manhã... estava muito frio... encontrei-a na estação toda a tremer, nem conseguia estar parada. E então perguntei-lhe se estava bem agasalhada, e ela respondeu, «Acho que sim». E então eu disse «Trazes alguma camisola quente... de lã... por baixo?» E ela disse que não, que era de algodão. Perguntei-lhe por que carga de água não tinha vestido uma coisa mais quente com um frio daqueles, e ela disse que não tinha nada mais quente. E ainda por cima, com a bronquite que ela tem! Tive de pegar nela e ir comprar-lhe uma roupa mais quente... Sabe, mãe, o dinheiro era o menos, se nós o tivéssemos... Ela devia guardar o suficiente para o passe. Mas não... vem pedir-mo, e eu tenho de inventar o dinheiro...

– Belas perspectivas – disse Mrs. Morel, amargurada.

Ele estava pálido e no seu rosto já vincado, outrora tão sorridente e descuidado, estampavam-se o conflito e o desespero.

– Mas eu não posso acabar com tudo, não agora, as coisas já foram longe de mais – disse ele. – Além disso, para certas coisas, não posso passar sem ela...

– Meu filho, lembra-te de que se trata da tua vida – disse Mrs. Morel. – Nada pode ser pior do que um casamento que já está à partida irremediavelmente marcado pelo fracasso. O meu foi suficientemente mau, Deus sabe que sim, e devia ter-te ensinado alguma coisa... Mas ainda podia ter sido muito pior.

William estava encostado à ombreira da chaminé, de mãos no bolsos. Era um homem alto e esquelético, com ar de quem seria capaz de ir até ao fim do mundo, se lhe apetecesse. Mas a mãe lia--lhe o desespero no rosto.

– Agora não posso deixá-la.

– Está bem – disse a mãe. – Mas lembra-te de que há coisas piores do que romper um noivado.

Quedaram-se em silêncio, ele de olhar parado, fitando o espaço. Só a mãe lhe podia valer e, no entanto, não a deixava decidir por ele. Continuava preso ao que tinha feito.

– E, naturalmente – acrescentou Mrs. Morel, há muito mais nobreza em romper um noivado para evitar um mal maior do que em continuar só para cumprir uma promessa.

Ele mantinha-se estático, de olhar pregado no vazio.

– Eu não posso deixá-la agora – insistiu ele.

O relógio ia avançando. Mãe e filho continuaram em silêncio, em conflito. Mas ele nada mais disse. Por fim, ela disse:

– Bem, vai dormir, meu filho... amanhã sentes-te melhor... e talvez vejas as coisas com outros olhos.

O filho deu-lhe um beijo e foi deitar-se. Ela foi abafar o borralho, sentindo o coração pesado como nunca sentira antes. Antes, com o marido, parecia sentir ruir tudo dentro dela, mas nada lhe destruía a vontade de viver. Mas agora, era a própria alma que estava ferida. A própria esperança fora atingida.

William manifestou em muitas outras ocasiões o mesmo ódio pela noiva. Na última noite que passaram em casa dos pais, fartou-se de resmungar com ela.

– Bem – disse ele – já que não me acredita, que acha que ela não é nada assim, acredita pelo menos que ela foi crismada três vezes?

– Que disparate! – disse Mrs. Morel, perdida de riso.

– Disparate ou não, o certo é que foi mesmo! É isso que o Crisma significa para ela... teatro... um espectáculo onde pode brilhar.

– Não fui nada, Mrs. Morel – gritou a rapariga. – Não fui nada. Não é verdade.

– O quê! – gritou ele, avançando para ela. – Uma vez em Bromley, outra em Beckenham, e outra mais não sei onde.

– Em mais lado nenhum! – disse ela, a chorar. – Em mais lado nenhum.

– Foi, sim! E mesmo que não fosse, para que foste crismada duas vezes?

– Da primeira vez, só tinha catorze anos, Mrs. Morel – explicou ela, desculpando-se, de lágrimas nos olhos.

– Claro – disse Mrs. Morel. – Eu entendo perfeitamente, minha filha. Não lhe ligue. Devias ter vergonha, William, a dizeres estas coisas.

– Mas é verdade. Ela é religiosa... até tem livros de orações em veludo azul... mas liga tanto à religião, ou a outra coisa qualquer, como à perna daquela mesa. Ser crismada três vezes, só pelo espectáculo, só para se mostrar! E ela é assim em tudo o mais, em tudo!

A rapariga chorava, sentada no sofá. Não era um espírito forte.

– Até no amor! – gritou ele. – É o mesmo que pedir a uma mosca que nos ame. Só quer vir para cima de nós...

– Acabou-se! – disse Mrs. Morel, peremptória. – Se queres continuar a dizer esses disparates, tens de ir para outro lugar. Tenho vergonha de ti, William. Não sabes portar-te como um homem? Só a pôr defeitos na rapariga... e depois a fingires que estás noivo...! – Mrs. Morel sucumbiu à raiva e à indignação.

William mantinha-se em silêncio. Mais tarde, arrependido, foi dar um beijo à namorada e consolá-la. No entanto, tudo o que dissera era verdade, e odiava-a.

Quando partiram, Mrs. Morel acompanhou-os a Nottingham. A caminhada até à estação de Keston era longa.

– Sabe, mãe – disse ele –, a Ciganita é muito superficial... nada penetra nela a fundo...

– William, preferia que não dissesses essas coisas – pediu Mrs. Morel, sentindo-se constrangida com a presença da rapariga.

– Mas é que não penetra mesmo, mãe... Ela está muito apaixonada por mim, agora... Mas, se eu morresse, esquecia-me em três meses.

Mrs. Morel tinha medo. O seu coração batia furiosamente perante a amargura serena das últimas palavras do filho.

– Como sabes? – retorquiu. – Tu não podes saber... e, por isso, não tens o direito de dizeres uma coisa dessas.

– Ele está sempre com estas coisas! – exclamou a rapariga.

– Três meses depois de me enterrarem, já tu tinhas arranjado outro e nunca mais te lembravas de mim – disse ele. – É esse o amor que me tens!

Mrs. Morel meteu-os no comboio, em Nottingham, e voltou para casa.

– Sabes uma coisa? – disse ela pateticamente para Paul. – Não se entendem e nunca se hão-de entender. Como vai ser, se chegarem a casar, é de mais para a minha imaginação. Se ao menos ele a deixasse, já não precisava de a atormentar desta maneira. Mas vão ficar presos um ao outro até se matarem. Quando ele disse aquilo, a caminho de Keston, foi como se eu já não pudesse dar nem mais um passo. Pobrezinha, tenho pena dela. Mas não é mulher para ele, lá isso não é. É muito cruel dizê-lo, mas como ela é muito frágil, mais valia que morresse em vez de casar com ele.

Mrs. Morel não tirou o filho do pensamento durante todo o Verão. Ele parecia estar a dar cabo da vida. Mas o casamento parecia estar ainda demorado.

– Valha-nos pelo menos uma coisa – disse ela a Paul. – Ele nunca vai juntar dinheiro suficiente para se casar, disso tenho eu a certeza. É assim que ela o vai salvar.

E a ideia animava-a. As coisas ainda tinham remédio, e acreditava firmemente que William nunca chegaria a casar com a sua Cigana. Aguardava e mantinha Paul junto de si.

Durante todo o Verão, as cartas de William soavam febris. Parecia pouco natural e empolgado. Por vezes exageradamente alegre, mas geralmente sóbrio e amargo.

– Pois é – dizia a mãe. – Anda a dar cabo dele por causa daquela criatura que não merece o amor que ele lhe tem, que não passa duma boneca de trapos.

Ele só pensava em vir a casa. As férias de Verão já lá iam, e o Natal ainda estava muito longe. Escreveu muito entusiasmado a dizer que podia vir a casa no princípio de Outubro, passar um sábado e um domingo, para a Feira do Ganso.

– Tu não andas bem, meu filho – disse-lhe a mãe quando o viu. Tê-lo assim, só para ela, dava-lhe até vontade de chorar.

– Não, não tenho passado nada bem – disse ele. – Apanhei uma constipação que se arrastou durante todo o mês. Mas já estou melhor, acho eu.

Estava um dia soalheiro de Outubro. William parecia louco de alegria, como um garoto que se escapasse às aulas. Mas logo ficou calado e reservado. Estava mais esquelético que nunca e com os olhos encovados.

– Andas a trabalhar de mais – disse a mãe.

Fazia horas extraordinárias, para juntar dinheiro para se casar, segundo disse. Só conversou com a mãe uma vez, no sábado à noite. Depois, pôs-se muito triste, com saudades da namorada.

– Sabe uma coisa, mãe, apesar disto tudo, se eu morresse, ela ia chorar por mim durante dois meses, e depois tratava de me esquecer. A mãe havia de ver, ela nunca viria aqui visitar a minha sepultura nem uma só vez.

– Ora, William – disse a mãe –, tu não vais morrer, para quê falar nisso agora?

– Mas se acontecesse... – insistiu ele.

– Ela não tem culpa... ela é assim... e se tu a escolheste, não te podes queixar... – disse a mãe.

No domingo de manhã, quando estava a pôr o colarinho, William disse, levantando o queixo:

– Veja a borbulhagem que o colarinho me fez por baixo do queixo!

Mesmo na ligação do queixo com a garganta havia uma zona muito vermelha, toda irritada.

– Não te devia fazer isso – disse a mãe. – Toma, põe um pouco deste unguento. Devias mudar de colarinhos.

William partiu no domingo à noite, aparentemente melhor e mais forte, depois destes dois dias passados em casa.

Na terça-feira de manhã, chegou um telegrama de Londres dizendo que ele estava doente. Mrs. Morel, que estava a esfregar o chão, levantou-se, leu o telegrama, chamou uma vizinha, foi a casa da senhoria, pediu-lhe dinheiro emprestado, vestiu-se e partiu. Correu até à estação de Keston e apanhou o expresso para Londres em Nottingham, onde teve de esperar quase uma hora. Figurinha frágil, com o seu chapelinho preto, não parava de perguntar, ansiosa, aos carregadores se sabiam o caminho para Elmers End. A viagem demorou três horas. Foi sempre sentada no seu canto, embalada numa espécie de torpor, sem se mexer. Na estação de King’s Cross também ninguém sabia indicar-lhe o caminho para Elmers End. Com o saco de rede na mão, com a camisa de noite, um pente e uma escova, ia de pessoa em pessoa, fazendo sempre a mesma pergunta. Por fim, mandaram-na apanhar o metropolitano até Cannon Street.

Eram seis horas quando chegou ao apartamento de William. As persianas não estavam corridas.

– Como está ele? – perguntou.

– Na mesma – disse a dona da casa.

Mrs. Morel subiu a escada atrás da senhoria. William estava deitado na cama, com os olhos injectados de sangue, muito pálido. A roupa estava espalhada pelo chão, o lume estava apagado e tinha um copo de leite na mesa de cabeceira. Ninguém viera vê-lo.

– Então, meu filho, que foi isto? – disse a mãe, mostrando coragem.

Ele não respondeu. Olhava para ela, mas não a via.

Depois, começou a dizer numa voz monocórdica, como se ditasse uma carta: «Devido a uma brecha no casco do navio, o açúcar tornou-se num bloco, cristalizou. Foi preciso parti-lo com um machado...»

Estava completamente inconsciente. Um dos seus trabalhos tinha sido ir examinar esse tal carregamento de açúcar no porto de Londres.

– Há quanto tempo está ele assim? – perguntou a mãe à senhoria.

– Chegou a casa às seis horas da manhã na segunda-feira e aparentemente dormiu o dia todo. À noite, ouvimo-lo a falar, e esta manhã chamou por si. Por isso, mandei o telegrama e chamámos o médico.

– Não se importa de acender o lume?

Mrs. Morel tentava acalmar o filho, mantê-lo quieto.

O médico chegou. Era uma pneumonia e, segundo disse, uma forma rara de erisipela, que tinha começado debaixo do queixo, provocada pelo roçar do colarinho, e se estava a espalhar a toda a cara; e esperava bem que não lhe atingisse o cérebro.

Mrs. Morel ficou a cuidar dele. Rezava por William, rezava para que ele a reconhecesse. Mas a cara do jovem cada vez perdia mais as cores. De noite, teve de lutar com o filho. Ele delirou e tornou a delirar, sem nunca recobrar a consciência. E morreu às duas da manhã, num paroxismo atroz.

Durante uma hora, Mrs. Morel permaneceu estática, sentada no quarto do filho. Depois, acordou toda a casa.

Às seis da manhã, vestiu-o com a ajuda da mulher da limpeza e em seguida saiu e foi à procura do registo civil e do médico daquele lúgubre subúrbio londrino.

Às nove horas, novo telegrama para Scargill Street: «William morreu esta noite. Dizer pai venha e traga dinheiro.»

Annie, Paul e Arthur estavam em casa. Mr. Morel tinha ido trabalhar. As três crianças não disseram uma palavra. Annie começou a choramingar, com medo. Paul foi chamar o pai.

O dia estava lindo. Na mina de Bretty, o vapor branco fundia-se lentamente com a luz do sol no céu azul, muito ameno, as roldanas da torre brilhavam no alto do aterro, e a peneira não se calava, sempre a deitar o carvão para os vagões.

– Tenho de falar com o meu pai... ele tem de ir já para Londres – disse o rapaz ao primeiro homem que encontrou no aterro.

– Queres falar com Walter Morel?... Vai ‘í dentro e diz ò Joe Ward.

Paul entrou no escritório de cima.

– Quero o meu pai... ele tem de ir pra Londres.

– O teu pai... está na mina? Quem é ele?

– Mr. Morel.

– Quem, o Walter? Aconteceu alguma coisa?

– Ele tem de ir já pra Londres.

O homem foi para o telefone e ligou para o escritório de baixo.

– Chamem o Walter Morel... 42 Hard. Aconteceu alguma coisa... o filho dele tá ‘qui.

Depois, voltou-se para Paul, e disse:

– Daqui a cinco minutos ele já aí está.

Paul foi até ao topo da mina. Viu a caixa subir, com o carregamento de carvão. A grande gaiola de ferro descansou sobre os apoios, a carga foi retirada, um contentor vazio deslizou sobre os apoios, algures tilintou uma campainha, a gaiola elevou-se e caiu como uma pedra.

Paul não acreditava que William estivesse morto... era impossível, com tanta azáfama por todo o lado. O mineiro de serviço empurrou o pequeno contentor para cima da placa giratória, e um outro homem levou-a pelo aterro fora, pelos trilhos sinuosos. «O William está morto e a minha mãe em Londres; que estará ela a fazer?», perguntava-se ele, como se se tratasse de uma charada.

Viu os contentores subirem uns atrás dos outros, e nem sinais do pai. Por fim, o vulto de um homem desenhou-se ao lado de um vagão! A gaiola descansou sobre os apoios e Morel desceu. Coxeava ligeiramente, devido a um acidente.

– És tu, Paul!... Ele tá pior?

– Tem de ir já pra Londres.

Desceram os dois o aterro, lado a lado, sob os olhares curiosos dos mineiros. Quando deixaram a mina e seguiam já ao longo da via férrea, com os campos soalheiros de Outono de um dos lados e um muro de vagões do outro, Morel perguntou, com o medo na voz:

– Ele não se curou, filho?

– Não.

– E quando foi?

Havia terror na voz do mineiro.

– Esta noite... Chegou um telegrama da mãe.

Morel deu mais alguns passos e depois encostou-se a um vagão e fincou as mãos nos joelhos. Mas não chorou. Paul olhou em volta, à espera. Um vagão balouçou lentamente em cima da balança. Paul via tudo, menos o pai, encostado ao vagão, como se estivesse cansado.

Morel só tinha ido uma vez a Londres. Pôs-se a caminho, assustado e lívido, para ir ajudar a mulher. Isto passou-se numa terça-feira. Os filhos ficaram sozinhos em casa. Paul foi trabalhar, Arthur para a escola e Annie chamou uma amiga para lhe fazer companhia.

No sábado à noite, quando Paul dobrava a esquina, de regresso de Keston, viu a mãe e o pai, que vinham da estação de Lethley Bridge. Caminhavam no escuro, em silêncio, cansados, separados. O rapaz ficou à espera.

– Mãe! – disse ele, da escuridão.

A figura franzina de Mrs. Morel pareceu não dar por ele. Paul insistiu.

– Paul! – disse ela, indiferente. Deixou-o dar-lhe um beijo, mas parecia não o ver.

Em casa foi a mesma coisa, franzina, pálida e muda. Não via nada, não dizia nada, excepto:

– O caixão chega hoje à noite, Walter. É melhor pedires ajuda. – E, depois, voltando-se para os filhos: – Vamos trazê-lo para casa.

Em seguida mergulhava num mutismo duradouro, de olhar perdido no espaço e mãos cruzadas sobre o regaço. Paul, ao vê-la assim, quase não podia respirar. Reinava em toda a casa um silêncio de morte.

– Fui trabalhar, mãe – disse Paul, tristemente.

– Ah, foste – respondeu ela, indiferente.

Passada meia hora, Morel, preocupado e confuso, entrou em casa.

– Onde havemos d’o pôr, quand’ele chegar? – perguntou à mulher.

– Na sala da frente.

– Então é melhor eu tirar de lá a mesa.

– Está bem.

– E botá-lo em cima das cadeiras?

– Tu lá sabes... sim... acho que sim.

Morel e Paul pegaram numa vela e foram para a sala. Lá não havia gás. O pai desaparafusou o tampo oval da grande mesa de mogno e libertou o centro da sala. Depois dispôs seis cadeiras em frente umas das outras, de forma a poderem suportar o caixão.

– Nunca vi ninguém mais comprido! – disse o mineiro, olhando em volta, ansioso, enquanto trabalhava.

Paul foi à janela e olhou para a rua. O freixo erguia-se monstruoso e negro, contra a imensa escuridão. Estava uma noite sem luar. Depois, voltou para junto da mãe.

Às dez horas, Morel anunciou:

– Chegou!

Todos estremeceram. Ouviu-se destrancar e abrir a porta da frente, que dava passagem directa da noite escura para dentro da sala.

– Tragam outra vela – gritou Morel.

Annie e Arthur foram buscá-la. Paul acompanhou a mãe. Estava ao lado dela, encostado à porta interior, passando-lhe o braço pela cintura. No meio da sala vazia havia seis cadeiras à espera, viradas umas para as outras. Junto à janela, Arthur segurava uma vela, encostado às cortinas de renda, e junto à porta aberta, virada para a noite, estava Annie, inclinada para a frente, com a palmatória de latão a cintilar.

Ouviu-se o barulho de um rodado. Lá fora, na escuridão da rua, Paul viu cavalos e um veículo negro, um lampião e alguns rostos empalidecidos. Depois, alguns homens – mineiros – todos em mangas de camisa, que pareciam debater-se na penumbra densa. Por fim, apareceram dois homens, vergados sob a pesada carga. Era Morel e o vizinho.

– Firme! – disse Morel, sem fôlego.

Ele e o companheiro subiram o degrau alto do jardim e surgiram à luz da vela, segurando uma das extremidades cintilantes do caixão. Mais braços, de outros homens, agitavam-se por detrás deles. Morel e Burns, à frente, vacilaram. A carga negra, pesadíssima, balançou.

– Firme, firme! – gritou Morel, num grito de dor.

Os seis carregadores já estavam todos no jardim, trazendo o caixão pelo ar. Havia ainda mais três degraus até à porta. A lanterna amarelada da carruagem brilhava sozinha, na estrada de breu.

– Agora! – disse Morel.

O caixão balançou, os homens começaram a subir os degraus com a sua carga. A chama da vela de Annie tremulou e ela começou a chorar ao ver surgir os primeiros homens. Os braços e as cabeças curvadas dos seis homens lutavam para vencerem a subida até à sala com o caixão, transportando o peso do sofrimento sobre a sua carne viva.

– Oh, meu filho... meu filho! – disse Mrs. Morel, baixinho, como se entoasse. E, de novo, de cada vez que o caixão balançava ao passo desigual dos carregadores:

– Oh, meu filho... meu filho... meu filho!

– Mãe! – disse Paul, a chorar, com o braço em volta da cintura dela. – Mãe!

Ela não ouviu.

– Oh, meu filho... meu filho! – repetia.

Paul via gotas de suor pingarem da testa do pai. Os seis homens estavam na sala, seis homens em mangas de camisa, de braços exaustos que se debatiam com a sua carga, enchendo a sala e indo de encontro aos móveis. O caixão desceu e foi suavemente pousado sobre as cadeiras. O suor pingava da testa de Morel sobre o rebordo.

– Palavra d’honra, manda cá um peso! – disse um dos homens, e os cinco mineiros soltaram um suspiro, curvaram-se perante o caixão e, trémulos da luta, desceram novamente os degraus, fechando a porta atrás de si.

A família ficou sozinha na sala com a enorme caixa envernizada. William, esticado, tinha seis pés e quatro polegadas de comprimento. O imponente caixão, de um castanho brilhante, jazia qual monumento. Paul pensou que nunca mais iam conseguir tirá-lo dali. A mãe acariciava a madeira envernizada.

Foi a enterrar na segunda-feira, no pequeno cemitério da encosta, alcandorado sobre os campos, dominando a igreja e o casario. Estava um dia de sol e os crisântemos brancos encaracolavam as pétalas ao calor.

Depois de tudo isto, nada conseguia persuadir Mrs. Morel a falar e a recuperar a sua antiga força de viver. Continuava fechada sobre si mesma. Quando voltava para casa, no comboio, tinha pensado para consigo: «Se ao menos tivesse sido eu.»

Quando Paul chegou a casa à noite, encontrou a mãe sentada com as mãos no regaço, sobre o tosco avental, já com a lida da casa despachada. Era sempre costume trocar de vestido e pôr um avental preto. Mas desta vez foi Annie quem lhe pôs a ceia, e a mãe continuou sentada em frente dela, de olhar vazio e lábios cerrados. Paul deu voltas à cabeça para arranjar novidades para lhe contar.

– Mãe, Miss Jordan apareceu lá hoje e disse que o meu esboço de uma mina a laborar estava muito bom...

Mas Mrs. Morel nem prestou atenção. Noite após noite, Paul esforçava-se por lhe contar coisas, mesmo que ela o não escutasse. Quase o enlouquecia vê-la neste estado. Até que:

– Que tem, mãe? – perguntou ele. Ela não ouviu.

– Que tem? – insistiu. – Mãe, o que é que tem?

– Sabes bem o que é que eu tenho – disse ela, irritada, virando-lhe as costas. O rapaz – tinha agora dezasseis anos – foi para a cama tristíssimo. Passou Outubro, Novembro e Dezembro sentindo-se rejeitado, um desgraçado. A mãe bem tentava, mas não conseguia reagir. Tudo o que fazia era pensar no filho morto, que tão cruelmente tinham deixado morrer.

Por fim, no dia 23 de Dezembro, Paul voltou para casa como um sonâmbulo, com os cinco xelins da gratificação de Natal no bolso. A mãe olhou para ele e o seu coração parou.

– O que se passa? – perguntou ela.

– Sinto-me mal, mãe! – respondeu ele. – Mr. Jordan deu-me cinco xelins de gratificação. – E estendeu-os à mãe, com a mão trémula. Ela pô-los em cima da mesa.

– A mãe não parece satisfeita – disse ele, como se ralhasse.

Mas Paul tremia violentamente.

– Onde é que te dói? – disse ela, desabotoando-lhe o sobretudo.

Era a velha pergunta.

– Sinto-me mal, mãe.

Ela despiu-o e meteu-o na cama. Era uma pneumonia, e grave, disse o médico.

– Ele podia não a ter apanhado, se eu o tivesse obrigado a ficar em casa e não o deixasse ir para Nottingham? – foi uma das primeiras coisas que perguntou.

– Podia não ser tão grave – disse o médico.

Mrs. Morel encontrou na resposta a sua própria condenação.

– Devia ter-me preocupado com os vivos, e não com os mortos – disse para consigo.

Paul esteve muito mal. A mãe passava as noites ao seu lado, pois não tinham dinheiro para uma enfermeira. O seu estado piorou e a fase crítica aproximava-se. Uma noite recobrou a consciência, num daqueles paroxismos fantasmagóricos e doentios de dissolução, em que todas as células do corpo parecem estilhaçar-se à pressão extrema da irritabilidade, e a consciência, como em estados de loucura, tem um derradeiro arrobo de vitalidade.

– Vou morrer, mãe! – gritou ele, soerguendo-se da almofada, lutando para respirar.

Ela ajudou-o, chorando baixinho:

– Oh, meu filho, meu filho!

Isto trouxe-o de volta. Apercebeu-se da presença da mãe. A sua força de vontade empertigou-se e prendeu-o à vida. Pousou a cabeça do peito dela e repousou no seu amor.

– De certa forma – disse a tia – foi até bom o Paul ter tido aquela doença no Natal. Foi isso que salvou a mãe.

Paul esteve de cama sete semanas. Levantou-se, finalmente, pálido e muito fraco. O pai tinha-lhe comprado um vaso de tulipas vermelhas e douradas. Era vê-las, a brilhar como fogo na janela, ao sol de Março, enquanto ele ficava sentado no sofá a conversar com a mãe. Tagarelavam os dois em perfeita intimidade. Mrs. Morel vivia agora para Paul.

William tinha sido profético. Mrs. Morel recebeu uma lembrança e uma carta de Lily pelo Natal. Da irmã de Mrs. Morel, uma carta pelo Ano Novo.

«Fui ontem a um baile. Encontrei lá pessoas adoráveis e diverti-me imenso», dizia a carta. «Não perdi uma dança... nem uma.»

Mrs. Morel nunca mais teve notícias dela.

Morel e a mulher viveram em harmonia durante algum tempo depois da morte do filho. Ele costumava quedar-se, como num êxtase, de olhos esbugalhados e olhar perdido. Depois, levantava-se de repente e ia para o Three Spots, voltando já no seu estado normal. Mas nunca mais foi passear para os lados de Shepstone, para não passar pelo escritório onde o filho trabalhara, e evitava passar pelo cemitério.


SEGUNDA PARTE


VII

AMOR DE ADOLESCENTES

NO OUTONO, Paul estivera várias vezes em Willey Farm e tinha-se tornado amigo dos dois rapazes mais novos. De início, Edgar, o mais velho, não se mostrava muito receptivo, e Miriam furtava-se também a qualquer aproximação. Tinha medo de ser desprezada pelos próprios irmãos. Rapariga de alma romântica, em toda a parte via heroínas de Walter Scott, cortejadas por cavaleiros de armadura ou chapéus emplumados. Ela própria era, na sua imaginação, uma princesa transformada em guardadora de porcos. E receava que aquele rapaz, parecido embora com um herói de Walter Scott, que pintava, falava francês, sabia álgebra e viajava todos os dias de comboio para Nottingham, visse nela simplesmente a guardadora de porcos e fosse incapaz de vislumbrar a princesa que nela se ocultava. Por isso, fugia dele.

A sua melhor amiga era a mãe. Ambas de olhos castanhos e dadas ao misticismo, eram daquelas mulheres que guardam a religião ciosamente no coração e para quem a religião é como o ar que respiram, como um véu de bruma que lhes filtra a vida. Assim, para Miriam, Cristo e Deus formavam uma só imagem sublime que ela amava com fervor, apaixonadamente, sempre que um imenso pôr do Sol incendiava o céu poente; sempre que os heróis e as heroínas – os Brian de Bois Gilberts, os Rob Roys e os Guy Mannerings; as Edites, as Lucys e as Rowenas – faziam restolhar as folhas matinais encharcadas de sol, ou se vinham sentar com ela nas alturas do seu quarto, sonhadores e solitários, quando a neve caía. Isto sim, era para ela viver. Quanto ao resto, cuidava da lida da casa, trabalho que não lhe seria pesado, se o chão de tijoleira bem polida não ficasse logo todo patinhado das pesadas botas dos irmãos; queria à viva força que o irmão mais novo, de quatro anos, a deixasse envolvê-lo e cobri-lo com o seu amor; ia à igreja, reverente, em pose contrita, e sofria angustiada perante a vulgaridade das outras meninas de coro e a banalidade da voz do cura; envolvia-se em lutas com os irmãos, que considerava uns brutamontes; e não tinha o pai em grande estima por não albergar no coração quaisquer ideais místicos, e ter como únicas ambições uma vida sem preocupações e a comida na mesa a tempo e horas.

Miriam detestava a sua condição de guardadora de porcos. Queria ser respeitada. Queria instruir-se, pensando que, se fosse capaz de ler, como Paul dizia que era, a Colomba ou a Voyage Autour de ma Chambre, o mundo a veria com outros olhos e teria por ela um profundo respeito. Como jamais poderia ser princesa por fortuna ou condição, ansiava possuir conhecimentos de que pudesse orgulhar-se; era diferente das outras pessoas e não queria ser confundida com a arraia-miúda. Ser instruída era a única marca de distinção a que pensava poder aspirar.

A sua beleza, misto de timidez, rebeldia e sensibilidade, não tinha para ela qualquer valor. Nem mesmo a sua alma, tão dada a arrebatamentos, lhe era suficiente. Precisava de algo mais que reforçasse o seu orgulho, pois sentia-se diferente das outras pessoas. Olhava Paul com vaga melancolia. De uma maneira geral, desprezava o sexo masculino. Neste caso, porém, ele era um exemplar diferente, ágil, leve, gracioso, que tanto podia mostrar-se gentil como insuportável, que era inteligente e culto, que já tinha passado por uma morte na família. O pouco que o rapaz sabia guindava-o aos píncaros a seus olhos. Contudo, esforçava-se por desprezá-lo por ele não conseguir ver nela a princesa, mas tão-só a guardadora de porcos.

Paul mal reparava nela.

Um dia, porém, adoeceu gravemente e ela sentiu que com isso ele iria enfraquecer. Se assim fosse, seria ela a mais forte e então poderia amá-lo. Se pudesse ser sua amante na fraqueza, cuidar dele, tê-lo na sua dependência, se ao menos pudesse tê-lo nos seus braços, com que força o amaria!

Assim que os céus desanuviaram e as ameixoeiras floriram, Paul partiu para Willey Farm na carroça do leiteiro. Mr. Leivers gritou pelo rapaz em tom amigável e conduziu o cavalo lentamente pela encosta acima, ao fresco da manhã, dando estalinhos com a língua para o incitar. No céu passavam nuvens brancas que se iam juntar para lá das colinas, agora visíveis à luz primaveril. As águas do Nethermere jaziam em baixo, muito azuis, em contraste com os prados ressequidos e os espinheiros.

Era uma viagem de quatro milhas e meia. Nas cercas, minúsculos botões em tons vivos e brilhantes desabrochavam em rosetas e os tordos pairavam e os melros piavam e gralhavam. Era um mundo novo, fascinante.

Miriam, espreitando da janela da cozinha, viu o cavalo transpor o grande portão branco do pátio, recortando-se contra o bosque de carvalhos desfolhados, em fundo. Nisto, um rapaz envergando um casacão muito grosso saltou para o chão e estendeu as mãos para segurar o chicote e a manta que o lavrador sadio e bem-humorado lhe entregava.

Miriam assomou-se à porta. Tinha quase dezasseis anos, era linda, de faces rosadas, ar grave e uns olhos subitamente dilatados, como em êxtase.

– Vejo – disse Paul virando-se envergonhado – que os teus narcisos estão quase a desabrochar. Não será cedo de mais? Não achas que está ainda muito frio?

– Frio? – repetiu Miriam, na sua voz terna e musical.

– O verde dos botões... – e Paul interrompeu-se, timidamente.

– Deixa-me levar-te a manta – disse Miriam, com exagerada amabilidade.

– Eu posso bem levá-la – respondeu ele, mostrando-se ofendido. Contudo, entregou-lha.

Entretanto, apareceu Mrs. Leivers.

– Deves estar cansado e cheio de frio – disse ela. – Dá-me o casaco. Que pesado.... não vais longe com ele.

Ajudou-o a despir o casacão, amabilidade a que o rapaz não estava habituado, e quase sucumbiu a tanto peso.

– Ena, mulher – disse o lavrador a rir, quando passou pela cozinha com as grandes bilhas de leite a baloiçar. – Tás aí que nem t’aguentas. – Ela ajeitou as almofadas no sofá para o rapaz se encostar.


CONTINUA

Paul, sempre atrás dele, contornou o balcão quadrangular. A sala onde estava ficava no segundo andar. Tinha um grande buraco no meio do chão, rodeado por um muro de balcões, e era por essa abertura que subiam e desciam os elevadores e passava a luz para o andar de baixo. No tecto, na mesma direcção, havia também um buraco oblongo, e, olhando para cima, podiam ver-se algumas máquinas para lá da cercadura de protecção do andar superior; e, logo por cima, uma clarabóia por onde entrava a luz para os três andares, tornando-se cada vez mais fraca à medida que se descia mais fundo, o que deixava o rés-do-chão às escuras e o primeiro andar na penumbra. A fábrica estava instalada no último andar, o armazém no segundo e a arrecadação no rés-do-chão. O lugar era velho e insalubre.

Paul foi levado para um canto muito escuro.

– Aqui é a secção Espiral – disse o empregado. – Tu fazes a Espiral com o Pappleworth. É ele o teu chefe, mas ainda não veio. Só chega lá para as oito e meia. Por isso, se quiseres, podes ir buscar as cartas a Mr. Melling, ali adiante.

E o jovem apontou para o tal velho do gabinete do fundo.

– Está bem – disse Paul.

– Está aqui uma escápula para pendurares o boné... e aqui tens os livros de registo da correspondência. Mr. Pappleworth já não deve demorar.

E o jovem, muito magro, afastou-se altaneiro, com grandes passadas desenvoltas, que ressoavam secas no soalho.

Passados um ou dois minutos, Paul parou à porta do gabinete envidraçado. O velho funcionário, com o seu bonezinho, olhou-o por cima dos óculos.

– Ora muito bom dia – disse, afável e enfático. – Queres as cartas para levares para a Espiral, não é, Thomas?

Paul não gostou que ele lhe chamasse Thomas, mas pegou nas cartas e voltou para o seu recanto escuro, onde o balcão dobrava em ângulo, onde acabava a prateleira das embalagens, e onde, mesmo ao canto, se abriam três portas. Paul sentou-se num banco alto e começou a ler as cartas, pelo menos, aquelas cuja letra era mais legível. Diziam o seguinte:

«Queira enviar-me por favor, com a máxima urgência, um par de meias de seda Espiral para senhora, sem pé, idênticas às que me enviou o ano passado... altura... da anca ao tornozelo... etc.»

Ou então: «O Major Chamberlain deseja renovar o anterior pedido de uma ligadura suspensória em seda, não elástica.»

Muitas destas cartas, algumas delas em francês ou norueguês, eram um quebra-cabeças para o rapaz, que aguardava ansioso, sentado no banco, a chegada do «chefe». Às oito e meia, sofreu um ataque de timidez quando as raparigas do andar de cima passaram por ele a correr.

Mr. Pappleworth apareceu por volta das vinte para as nove, a mastigar uma pastilha elástica de mentol, quando já todos estavam a trabalhar. Era um homem magro e pálido, de nariz vermelho e gestos rápidos e peremptórios, trajando com austera elegância. Devia andar pelos trinta e seis anos e havia nele algo de canino, garboso, brincalhão e astuto, afectuoso talvez, mas simultaneamente algo de ligeiramente desprezível.

– És o meu novo ajudante? – perguntou. Paul pôs-se de pé e disse que sim.

– Foste buscar as cartas?

Mr. Pappleworth continuou a mastigar a pastilha.

– Sim.

– Copiaste-as?

– Não.

– Então anda cá, vamos pôr-te operacional. Já trocaste de casaco?

– Não.

– O melhor é trazeres um casaco velho e guardá-lo aí.

As últimas palavras foram pronunciadas com a pastilha apertada de lado, entre os queixais. Desapareceu na penumbra, por detrás da enorme prateleira das embalagens, e reapareceu já sem casaco, com uma elegante camisa às riscas com os punhos dobrados, deixando a descoberto uns braços magros e peludos. Depois, enfiou o outro casaco. Paul reparou na magreza deste homem e em como as calças faziam pregas no traseiro. Pegou num banco, puxou-o para junto do rapaz e sentou-se.

– Senta-te – disse o homem. Paul sentou-se. Mr. Pappleworth estava muito próximo dele. Pegou nas cartas, tirou um livro comprido, de registos, da prateleira em frente, abriu-o, pegou numa caneta e disse:

– Agora, presta atenção... Vais copiar estas cartas para aqui.

Fungou duas vezes, deu uma mastigadela na pastilha, olhou demoradamente para uma carta, quedou-se pensativo e deu entrada da carta rapidamente, numa caligrafia bonita e floreada. Depois, olhou de relance para Paul.

– Estás a ver?

– Estou.

– Achas que consegues fazer o mesmo... e bem feito?

– Acho que sim.

– Então, está bem... vamos lá a ver.

Saltou para o chão. Paul pegou numa caneta. Mr. Pappleworth desapareceu. Paul gostava bastante de copiar cartas, mas escrevia devagar, laboriosamente, e muito mal. Ia ele na sua quarta carta, todo feliz e atarefado, quando Mr. Pappleworth voltou.

– Ora vejamos... que tal vai isso... já ’cabaste?

Debruçou-se sobre o ombro do rapaz, sem parar de mastigar e a cheirar a mentol.

– Diabos me levem, rapaz... Mas que belo escritor que tu me saíste! – exclamou ele, trocista. – Não te rales, quantas já fizeste? Só três! Eu tinh’até tido tempo de sobra pràs comer. Continua, miúdo, e numera-as... assim, tás a ver? Continua!

Paul não largava as cartas, enquanto Mr. Pappleworth tratava de outros assuntos. Nisto, soou um apito agudo mesmo junto ao ouvido dele, e o rapaz assustou-se. Mr. Pappleworth aproximou-se, tirou um tampão de dentro de um tubo e disse, numa voz inesperadamente agreste e autoritária:

– Sim!

Paul ouviu uma voz sumida, provavelmente de mulher, a sair pelo tubo. Ficou embasbacado, pois nunca tinha visto um tubo falante.

– Bem – disse Mr. Pappleworth, num tom agastado, falando para o tubo – nesse caso, o melhor é fazer algum do trabalho em atraso.

De novo a voz aguda da mulher se fez ouvir, com um timbre bonito, mas zangado.

– Não tenho tempo para estar aqui a ouvi-la tagarelar – disse Mr. Pappleworth, e em seguida tapou o tubo.

– Vá, miúdo, despacha-te – disse ele, suplicante, virando-se para Paul. – Era a Polly aos gritos, quer as encomendas. Não consegues andar um bocadinho mais depressa? Vá... sai daí.

Pegou no livro, para imenso desgosto de Paul, e começou ele mesmo a escrever. Fazia-o depressa e bem. Uma vez terminadas as cópias, pegou numas tiras compridas de papel amarelo, com cerca de sete centímetros de largura, e preencheu as encomendas para enviar às operárias.

– É melhor prestares atenção – disse ele a Paul, sem se interromper. Paul olhou para aqueles estranhos desenhos de pernas, coxas e tornozelos, cheios de traços e números, e algumas instruções, com que o chefe preenchia as tiras amarelas. Quando acabou, Mr. Pappleworth saltou do banco.

– Vem comigo – disse ele, e, de papéis amarelos a esvoaçar na mão, desapareceu por uma porta e desceu uma escada em direcção à cave, onde ardia uma lamparina de gás. Atravessaram a arrecadação húmida e fria, depois uma sala comprida e lúgubre com uma mesa enorme assente sobre cavaletes e entraram numa sala mais pequena e acolhedora, de tectos não muito altos, que tinha sido construída como anexo do edifício principal. Nesta sala estava uma mulher de pequena estatura, com uma blusa de sarja vermelha e cabelo preto apanhado ao alto num carrapito, em atitude expectante, de galarote.

– Cá tão elas – disse Pappleworth.

– Eu penso que será «Cá estão elas»! – exclamou Polly. – As raparigas estiveram aqui à espera quase meia hora. Pense só no tempo que se perdeu!

– Pense mas é em fazer o seu trabalho e falar menos – disse Mr. Pappleworth. – Podia ter despachado outras coisas.

– Sabe muito bem que despachámos tudo no sábado – gritou Polly, avançando para ele faiscante.

– Blá-blá-blá! – arremedou-a o homem. – Aqui tem o seu novo ajudante. Não dê cabo deste como deu do outro.

– Como nós demos do outro! – repetiu Polly. – Pois é, nós damos cabo de muita coisa, olá se damos. Também lhe digo que qualquer rapaz tinha de ficar estragado depois de estar ao pé de si.

– Vá, vá... agora é hora de trabalhar, não de conversar – disse Mr. Pappleworth num tom seco e severo.

– Também há pouco era – disse Polly, afastando-se de cabeça bem erguida. Tinha um corpo pequeno e escorreito, de quarenta anos.

Na dita sala havia duas máquinas redondas, espiraladas, em cima do poial da janela. Na sala ao lado, que comunicava com a primeira e era mais comprida, havia outras seis máquinas. Algumas raparigas dignamente vestidas e de aventais brancos conversavam umas com as outras, formando um pequeno grupo.

Não têm mais nada para fazer? – disse Mr. Pappleworth.

– Só esperar por si – disse uma delas, bem bonita, rindo com gosto.

– Bom, toca a trabalhar, toca a trabalhar – disse ele. – Anda, miúdo. Da próxima vez, já sabes o caminho.

Paul correu escada acima atrás do chefe. Mandaram-no conferir algumas facturas e fazer outras. Ele arrimou-se à secretária, esforçando-se por cumprir a tarefa na sua caligrafia execrável. Nisto, Mr. Jordan aproximou-se, vindo do gabinete envidraçado, e, para grande atrapalhação de Paul, veio pôr-se mesmo por detrás dele. Subitamente, um dedo gordo e vermelho espetou-se sobre o documento que ele estava a preencher.

– Mr. J. A. Bates, Esquire! – bradou uma voz irada, junto ao seu ouvido.

Paul olhou para o «Mr. J. A. Bates Esquire» escrito na sua letra tortuosa, e perguntou-se o que estaria mal agora.

– Não te ensinaram a fazer como deve ser, enquanto andavas na escola? Se se põe «Mr.», não se põe «Esquire»... um homem não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.

O rapaz, lamentando a sua prodigalidade no modo como esbanjava títulos, hesitou e, com dedos trémulos, apagou a palavra «Mr.». Mas logo Mr. Jordan lhe arrancou a factura das mãos.

– Faz outra! Ou vais mandar isto a um cavalheiro? – E rasgou a factura azul, irritadíssimo.

Paul recomeçou, com as orelhas a arder de vergonha, sob o olhar atento de Mr. Jordan.

– Não sei o que é que eles vos ensinam na escola. Devias escrever muito melhor do que isso. Hoje em dia, os miúdos não aprendem nada a não ser recitar poesia e tocar violino... Já viu a letra dele? – perguntou Mr. Jordan a Mr. Pappleworth.

– Já... é de primeira... não é? – respondeu Mr. Pappleworth com indiferença. – Mas ele vai aprender.

Mr. Jordan resmungou qualquer coisa desagradável. Paul percebeu que o patrão ladrava mais do que mordia. Na verdade, o pequeno fabricante era suficientemente cavalheiresco, apesar do seu mau inglês, para deixar os empregados à vontade e não se prender com ninharias. Mas tinha consciência de não ter aspecto de ser o dono e senhor de tudo aquilo, e via-se por isso forçado a desempenhar o seu papel de vilão, para repor as coisas nos seus devidos lugares.

– Ora vamos lá a ver, como é que te chamas? – perguntou Mr. Pappleworth ao rapaz.

– Paul Morel.

É curioso o que as crianças sofrem para pronunciarem os seus nomes.

– Com que então, Paul Morel! Muito bem, vá, Paul Morel, toca a acabar essa coisa, e depois...

Mr. Pappleworth sentou-se num banco e começou a escrever. Uma rapariga entrou por uma porta mesmo atrás dele, depositou em cima do balcão uns artigos de malha elástica acabados de passar a ferro e voltou a sair. Mr. Pappleworth pegou na joelheira azul claro, examinou-a, confrontou-a rapidamente com a nota de encomenda amarela e pô-la de parte. Ao lado estava uma «perna» rosada, cor de carne. Conferiu os vários artigos, preencheu algumas notas de encomenda e disse a Paul que o acompanhasse. Desta vez, saíram pela porta por onde a rapariga tinha entrado. Paul viu-se no cimo de um pequeno lanço de escadas, e em baixo viu uma sala com janelas em duas das paredes e, no extremo oposto, meia dúzia de raparigas sentadas, curvadas sobre si mesmas, a costurarem à luz das janelas e a cantarem em coro, «Duas Meninas Vestidas de Azul». Ao ouvirem a porta abrir-se, todas se voltaram e viram Mr. Pappleworth e Paul a olharem para elas do outro lado da sala. Pararam de cantar imediatamente.

– Não podem fazer menos barulho? – disse Mr. Pappleworth. – As pessoas hão-de pensar que temos a casa cheia de gatas.

Uma mulher corcunda, sentada num banco alto, voltou para Mr. Pappleworth a cara comprida e circunspecta, e disse com voz de contralto:

– Só se esses forem gatos.

Mr. Pappleworth em vão tentou causar efeito para impressionar Paul. Desceu as escadas até à sala de acabamentos e dirigiu-se à corcunda, uma tal Fanny. O seu corpo era tão pequeno, empoleirado no alto do banco, que a cabeça, com grandes bandós de cabelo castanho-claro, parecia excessivamente grande, tal como o rosto, pálido e grave. Trazia um vestido de caxemira verde-escuro, e, quando pousou o trabalho nervosamente, viu-se que os seus pulsos, cingidos por punhos estreitos, eram finos e achatados. Ele mostrou-lhe uma joelheira que tinha um defeito qualquer.

– Ora – disse ela – não precisava de vir atirar as culpas para cima de mim... a culpa não é minha – disse, subindo-lhe um rubor às faces.

– Eu não disse que a culpa era sua... e agora faça o que lhe mandei! – ripostou Mr. Pappleworth, secamente.

– Não diz que a culpa é minha, mas quer fazer parecer que é – gritou a corcunda, quase a chorar. Depois, arrancou a joelheira das mãos do «chefe», dizendo: – Está bem, eu faço isso, mas não precisa de vir com duas pedras na mão.

– Aqui está o seu novo ajudante – disse Mr. Pappleworth.

Fanny voltou-se e sorriu gentilmente para Paul.

– Oh! – disse ela.

– Pois é... agora vejam lá se o estragam com mimos.

– Se alguém o estragar, não somos nós – disse ela, indignada.

– Vamos embora, Paul – disse Mr. Pappleworth.

– Au revoi, Paul – disse uma das raparigas.

Foi uma risota. Paul saiu, corado até à alma, sem dizer palavra.

O dia nunca mais acabava. Durante toda a manhã, foram os operários a vir falar com Mr. Pappleworth, e Paul a escrever ou a aprender a preparar as embalagens para a tiragem do meio-dia. À uma da tarde, ou melhor, quando faltava um quarto para a uma, Mr. Pappleworth desapareceu, para apanhar o comboio: vivia nos arredores. À uma, Paul, sentindo-se perdido, levou o cesto do farnel para a arrecadação da cave, onde estava a tal mesa comprida sobre cavaletes, e comeu à pressa, completamente sozinho naquele espaço de penumbra e desolação. Depois, foi passear para a rua. A claridade e a liberdade que sentia nas ruas tornavam-no feliz e afoito. Mas, às duas horas, voltou para o seu canto na sala grande. Não tardou que passassem as raparigas, metendo-se com ele. Eram as de mais baixa condição, as que trabalhavam no andar de cima em tarefas mais pesadas, como o fabrico de fundas e os acabamentos dos membros artificiais. Paul ficou a aguardar a chegada de Mr. Pappleworth, sem saber o que fazer, sentando-se a rabiscar nas notas de encomenda amarelas. Mr. Pappleworth chegou às vinte para as três, sentou-se e pôs-se a tagarelar com Paul, tratando o rapaz como seu igual, até na idade.

De tarde nunca havia muito que fazer, a não ser que fosse perto do fim-de-semana e as contas tivessem de ser fechadas. Às cinco horas, todos os homens foram até à «masmorra» da mesa de cavaletes, onde tomaram chá e pão com manteiga em cima das tábuas nuas e imundas, conversando com a mesma avidez e grosseria com que tomavam a refeição. No entanto, lá em cima, o ambiente era sempre alegre e desanuviado. Certamente a cave e os cavaletes deixavam-nos transtornados.

Depois do chá, quando todos os bicos de gás estavam acesos, o trabalho fluía com mais rapidez. Era preciso despachar as encomendas para o correio da tarde. As meias chegavam lá acima ainda quentes, acabadinhas de passar, directamente das oficinas. Paul já tinha passado todas as facturas. Faltava-lhe fazer agora as embalagens e endereçá-las, e depois pesar as suas encomendas na balança. Por todo o lado se ouviam vozes a gritar pesagens, o tilintar de metais, o estalar nervoso dos cordéis, a corrida ao gabinete de Mr. Melling, para os selos. Finalmente, chegou o carteiro, sorridente e bem-disposto, como seu enorme saco. Depois a agitação abrandou, Paul pegou no cesto do farnel e correu para a estação, para apanhar o comboio das oito e vinte. O dia de trabalho era exactamente de doze horas.

A mãe esperava por ele, ansiosa. Paul tinha de ir para casa a pé desde Keston, pelo que não chegou a casa antes das nove e vinte; e tinha saído de casa antes das sete da manhã. Mrs. Morel preocupava-se com a saúde do filho, mas também ela já tivera de enfrentar tantas dificuldades, que esperava que os filhos tivessem agora a mesma genica. Teriam de suportar o que fosse preciso. Assim, Paul manteve-se na Jordan, embora durante a sua permanência nesse emprego a sua saúde sofresse com a falta de luz e de ar fresco, e as longas horas de trabalho.

Quando chegou, vinha pálido e cansado. A mãe olhou para ele, mas viu-o tão satisfeito que a sua preocupação desapareceu.

– Então, como é que foi? – perguntou ela.

– Foi tão engraçado, mãe – respondeu ele. – O trabalho não é nada pesado e eles foram muito bons para mim.

– E saíste-te bem?

– Claro... só dizem que a minha letra é péssima. Mas Mr. Pappleworth... o meu chefe... disse a Mr. Jordan que eu ia aprender. Estou na Espiral, mãe. Tem de ir lá ver. É tão bom...

Paul contou tudo à mãe, tudo o que tinha visto, pensado, todos os pormenores da experiência que vivera. A única coisa que escondeu dela foi o ter escrito «Mr. J. A. Bates Esquire». Isso, ele não queria que ela soubesse; sentia muita vergonha. Também não lhe relatou nada de mais desagradável que lhe tivessem dito, só as coisas boas, tentando fazê-la crer que estava feliz e era estimado, e que a vida lhe corria de feição... o que geralmente acontecia. Contou-lhe tudo, excepto as pequenas vergonhas ou ignomínias; jamais suportaria vê-la envergonhada ou vexada por sua causa.

Paul depressa aprendeu a gostar da Jordan. Mr. Pappleworth, que tinha um certo ar de frequentador de bares, tratava-o sempre com naturalidade, como se fossem amigos de longa data. Às vezes, o chefe da Espiral irritava-se, e então mastigava pastilhas elásticas sem parar. Mesmo assim, nunca era ofensivo, mas sim uma daquelas pessoas que se magoam mais a si próprias do que aos outros com a sua irritabilidade.

– Ainda não fizeste isso? – gritava ele. – Já vi que és um mês só com domingos.

E logo se punha de novo alegre e brincalhão, o que deixava Paul muito confuso.

– Amanhã trago a minha cadelinha Yorkshire terrier – disse ele a Paul, rejubilando.

– O que é isso de Yorkshire terrier?

– O quê? Pois tu não sabes o que é uma Yorkshire terrier?... Não saber o que é um Yorkshire! – Mr. Pappleworth estava pasmado.

– É um cãozinho de pêlo sedoso... em tons de ferrugem e prata oxidada?

– É isso mesmo, meu rapaz. A minha é uma pérola. Já teve cachorrinhos que me renderam cinco libras, e ela própria vale mais de sete libras: e não chega a pesar uma libra e meia...

No dia seguinte, a cadela veio com ele. Era dez réis de cão tremeliquento. Paul não lhe ligou nenhuma; a cadela mais parecia um trapo molhado sem esperança de secar. Nisto, um dos homens chamou-a e começou a dizer piadas grosseiras. Mas Mr. Pappleworth meneou a cabeça na direcção do rapaz e a conversa prosseguiu a meia-voz.

Mr. Jordan fez apenas mais uma excursão à Espiral, para inspeccionar o trabalho de Paul e o único reparo que lhe fez, ao ver o rapaz pousar a caneta no balcão, foi:

– Tens de pôr a caneta na orelha, se queres ser um caixeiro a sério. Vá, caneta na orelha!

Num outro dia, disse ao rapaz:

– Não endireitas mais esses ombros porquê? Ora vem cá. E levou-o ao gabinete envidraçado, onde lhe colocou uns suspensórios especiais para manterem os ombros direitos.

Mas Paul preferia a companhia das raparigas. Os homens pareciam-lhe grosseiros e pouco espertos. Simpatizava com todos eles, mas achava-os desinteressantes. Ao encontrar Paul a comer na cave, Polly, a supervisora baixinha e sirigaita do rés-do-chão, perguntou-lhe se ele não queria que ela lhe cozinhasse alguma coisa no seu fogareiro e, no dia seguinte, a mãe mandou-lhe uma refeição que podia ser aquecida. Ele levou-a à salinha limpa e aconchegada onde Polly trabalhava, e depressa adquiriu o hábito de almoçar com ela. Quando chegava ao trabalho, às oito da manhã, levava-lhe o cesto, e quando descia à uma hora, já o almoço estava pronto.

Paul era pálido, não muito alto, cabelo espesso e castanho, feições irregulares e uma boca rasgada, de lábios cheios. Ela parecia um passarinho, e ele até a tratava muitas vezes por pisco. Embora fosse geralmente muito calado, com ela passava horas sentado a conversar, a contar-lhe peripécias familiares. Todas as raparigas adoravam ouvi-lo; formavam muitas vezes um círculo à sua volta, enquanto ele discursava e ria, sentado num banco. Algumas consideravam-no um fulaninho curioso, tão sério e, no entanto, tão inteligente e bem-disposto, e sempre tão delicado no modo como as tratava. Todas gostavam dele e ele adorava-as. Com Polly era diferente; a essa, ele sentia que pertencia. Mas era Connie, com a sua farta cabeleira ruiva, a sua tez de flor de macieira, a voz sussurrada, e sempre tão distinta no seu vestido preto já gasto, que apelava ao seu lado romântico.

– Quando te sentas a enrolar a meada – disse ele – parece que estás a fiar na roca... é um quadro tão bonito. Faz-me lembrar a Elaine, dos Idílios do Rei. Se eu soubesse, desenhava-te. – Ela olhou para ele de relance, timidamente ruborizada. Mais tarde, havia um esboço de que ele muito gostava: Connie sentada num banquinho, em frente à roca, a longa crina ruiva flamejante sobre o vestido preto ruçado, e os lábios rubros selados e muito sérios, a passar o fio escarlate do novelo para a bobina.

Com Louie, bonita e atiradiça, que parecia estar sempre a provocá-lo com o menear das ancas, punha-se geralmente a brincar.

– O que estás a fazer?

– Porque queres saber? – respondeu ela, levantando a cabeça, atrevida.

– Porque acho que tu não te conheces.

– Porquê?

– Porque não tens ar de te conheceres.

– Então tenho cara de quê?

– Tens cara de quem está sempre a pensar nalguma coisa. Em que é que estavas a pensar?

Ela olhou-o pelo canto do olho e disse, com uma gargalhada:

– Isso era o que tu querias saber, não era?

– Sai daí – disse ele. – Vamos lá dar uma volta à tua meia.

E, depois, pegando na manivela da máquina, começou a rodá-la.

Mas ela empurrou-o.

– Isso vai ficar tudo mal – exclamou.

E ficaram os dois a olhar um para o outro, a rir às gargalhadas.

Emma era bastante feia, e não era nem nova nem condescendente. Sentia-se, porém, feliz por se mostrar condescendente com Paul. E ele não se importava.

– Como é que se metem as agulhas? – perguntou ele um dia.

– Sai daqui, não me maces.

– Mas eu devia saber como é que se metem as agulhas.

Ela continuou a coser à máquina, sem pestanejar.

– Há tantas coisas que devias saber – respondeu ela.

– Então ensina-me a colocar as agulhas na máquina.

– Ai, este rapaz sempre é muito maçador! ... Pronto, é assim que se faz...

Ele observou-a atentamente. Nisto, soou um apito, e a seguir Polly entrou e perguntou em voz bem audível:

– Paul, Mr. Pappleworth quer saber por quanto tempo vais ficar cá em baixo a brincar com as raparigas.

Paul correu pela escada acima, a gritar «Adeusinho!», e Emma endireitou-se na cadeira e explicou:

– Não fui eu que quis que ele estivesse a brincar com a máquina.

– Qu’é qu’andavas a fazer? – perguntou Mr. Pappleworth, quando o rapaz apareceu.

– Estava só a falar com a Emma, e a aprender a colocar as agulhas na máquina.

– O melhor é pegares no teu trabalho e mudares-te lá pra baixo.

– Mas aqui não havia nada de especial para fazer, pois não?

– Mal tu saíste daqui, o patrão veio à tua procura. Um dia sai-te caro! E então estes registos?

Paul meteu mãos à obra cheio de vontade.

Regra geral, quando as raparigas voltavam, às duas horas, ele ia ao andar de cima ter com Fanny, a corcunda, que trabalhava nos acabamentos.

Mr. Pappleworth só chegava às vinte para as três, e vinha encontrar muitas vezes o rapaz sentado ao lado de Fanny a conversar, a desenhar ou a cantar com as raparigas.

– Vem cá, Paul, meu querido – gritava a Fanny. – Até pensámos que hoje não vinhas cá acima. Pensávamos que ias ficar lá em baixo por não gostares da nossa companhia.

– Fui à cidade.

– Para quê, meu lindo?

– Para ver se encontrava uma cestinha de mirtilos para a minha mãe.

– E encontraste?

E, uma vez iniciada a conversa, nunca mais terminavam. Paul gostava muito de Fanny e a corcunda gostava muito dele. Ela tinha vinte e nove anos e sofrera muito. Ele gostava de ficar sentado ao lado dela, à janela, a olhar para a rua e a desenhar a bizarra floresta de chaminés e telhados antigos e bicudos que a vista alcançava. Depois dizia:

– Canta qualquer coisa, Fanny.

– Sabes que mais? Tu não queres que eu cante – dizia ela, manejando a agulha com destreza, com as mãos magras e nervosas. – Tu queres é fazer pouco de mim.

– Não quero nada! Mas é que eu disse à minha mãe que cantavas muito bem...

– Não sei o que é que a tua mãe ia pensar de mim, se me visse, Paul. Ia pensar que eu era um macaco encarrapitado num pau.

– Ela sabe como tu és, porque eu já lhe contei. E gosta de ti. Canta lá «Naquela Taberna...». Este desenho vai ficar uma maravilha.

E, passado um minuto de hesitação, Fanny começou a cantar. Tinha uma bela voz de contralto, e todas as raparigas cantaram em coro e muito afinadas. Paul não se sentia nada embaraçado por estar ali sentado no meio das mulheres.

Quando terminou, Fanny disse:

– Sei que estão a fazer troça de mim.

– Não sejas assim, Fanny! – exclamou uma das colegas.

Uma outra vez, falou-se no cabelo ruivo de Connie.

– Cá pra mim, acho o da Fanny mais bonito – disse Emma.

– Não precisas de fazer pouco de mim – disse Fanny, agastada.

– Mas ela tem o cabelo mesmo bonito, Paul.

– É uma cor especial – disse ele. – Aquela cor fria, como a terra, e mesmo assim brilhante... como um pântano.

– Santo Deus! – exclamou uma das raparigas, a rir.

– Estás a ver como só me criticam? – disse Fanny.

– E havias de o ver solto, Paul – gritou Emma, falando a sério. – É simplesmente uma beleza. Solta o cabelo pra ele ver, Fanny, pode ser que ele o queira pintar.

Fanny recusou-se, e, no entanto, era o que mais queria fazer.

– Então solto-lho eu – disse o rapaz.

– Bem, já que insistes – disse Fanny.

Paul tirou os ganchos do carrapito com todo o cuidado, e a longa cabeleira, num tom castanho-escuro uniforme, caiu sobre a corcunda.

– Que maravilha! – exclamou ele.

As raparigas observavam-no. Reinava o silêncio. O jovem soltou-lhe mais o cabelo.

– É esplêndido – disse, sentindo-lhe o perfume. – Aposto que vale muitas libras.

– Deixo-to quando morrer – disse Fanny, em tom de brincadeira.

– Pareces-te com qualquer de nós, sentada a secar o cabelo – disse uma das raparigas à colega corcunda e pernalta.

A pobre da Fanny era morbidamente susceptível, em tudo adivinhando insultos, ao passo que Polly era directa e factual. As duas secções estavam permanentemente em guerra, e Paul vinha constantemente encontrar Fanny lavada em lágrimas. Fanny contava-lhe todas as suas mágoas, e ele, depois, ia defendê-la junto de Polly.

A filha de Mr. Jordan era pintora. Um dos seus modelos era Connie, que lhe falou de Paul. Primeiro, Miss Jordan pediu para ver alguns dos seus desenhos, e, a seguir, veio ela própria falar com ele. Era uma mulher fria e impessoal, mas mostrou algum interesse pelo rapaz.

E assim foi correndo o tempo, em harmonia. A fábrica tinha um ambiente agradável. Ninguém era empurrado ou pressionado. Paul até gostava quando o trabalho acelerava perto da hora do correio e todos se entreajudavam. Gostava de ver os colegas em acção. O homem era o trabalho e o trabalho era o homem, unidos num só. Com as raparigas era diferente. A verdadeira mulher parecia nunca estar ali presente no trabalho – era como se estivesse de fora, à espera.

Da janela do comboio, quando à noite regressava a casa, observava as luzes da cidade povoando as colinas e fundindo-se nos vales com um clarão ardente. E Paul sentia-se rico de experiência e felicidade. Mais adiante, havia uma mancha de luz em Bulwell, como miríades de pétalas caídas das estrelas sobre a terra; e, mais além, o jorro incandescente das fornalhas, projectando nas nuvens o seu sopro abrasador.

Chegado a Keston, ainda tinha de andar mais de duas milhas até casa, subindo duas colinas mais longas e descendo outras duas mais curtas. Sentindo-se muitas vezes cansado, ia contando os candeeiros à medida que subia, para ver quantos ainda faltavam. E, do alto da colina, nas noites de breu, via as aldeias espalhadas a toda a volta, a cinco ou seis milhas de distância, enxameando a noite de vida e luz, quase como um céu aberto a seus pés. Marlpool e Heanor semeavam de cintilações a escuridão mais longínqua. Uma vez por outra, o negro vale que se interpunha lá em baixo, era riscado, violado por um interminável comboio que rolava célere para sul, em direcção a Londres, ou rumo ao norte, para a Escócia. Os comboios troavam como projécteis na escuridão, fumegantes e acesos, fazendo retinir o vale à sua passagem. Mas logo desapareciam, e as luzes das cidades e das aldeias cintilavam outra vez, mergulhadas no silêncio.

Chegava, por fim, à esquina da casa, virada para o outro lado da noite. O freixo parecia agora um amigo. A mãe vibrava de alegria vendo-o chegar. Ele depositava os oito xelins orgulhosamente sobre a mesa.

– Fazem-lhe jeito, mãe? – perguntava, ansioso.

– Não vai sobejar quase nada depois de descontar o bilhete, as refeições e tudo o mais.

Em seguida, punha-a ao corrente dos acontecimentos do dia. A história da sua vida, como nas Mil e Uma Noites, mas muito mais monótona, era contada à mãe noite após noite. E ela escutava e era quase como se a vida fosse dela.


VI

UMA MORTE NA FAMÍLIA

ARTHUR MOREL ia crescendo. Era um rapaz vivo, descuidado e impulsivo, muito parecido com o pai. Tinha horror aos estudos, resmungava sempre que tinha de trabalhar e escapava-se o mais depressa que podia, para voltar para a brincadeira.

Fisicamente, continuava a ser o menino bonito da família, bem constituído, gracioso, cheio de vida. O cabelo castanho-escuro, a frescura da tez e os olhos raros, de um azul profundo e sombreados de longas pestanas, a par dos seus modos generosos e temperamento fogoso, faziam dele o preferido. Mas, à medida que crescia, o temperamento ia-se tornando instável. Tinha acessos de fúria por tudo e por nada, e mostrava-se insuportavelmente violento e irritável.

A mãe, de quem tanto gostava, já começava a perder a paciência. Arthur só pensava em si próprio. Detestava tudo o que se interpusesse entre si e o seu prazer, mesmo quando esse «tudo» era a mãe. Mas, quando se metia em apuros, era com ela que tinha intermináveis desabafos.

– Meu Deus, rapaz – disse ela, quando ele se veio queixar de um professor que, segundo ele, o tomara de ponta – se não te agrada a situação, tens de a fazer mudar, e se não podes mudar nada, tens de te adaptar.

Quanto ao pai, que ele amara desmedidamente e que o idolatrava, acabou por detestá-lo. Com a idade, Morel transformou-se lentamente numa ruína viva. O seu corpo, em tempos belo nas formas e na agilidade, mirrou com os anos, não parecendo ter amadurecido, mas, pelo contrário, ter-se tornado insignificante e desprezível, emanando baixeza e mesquinhez. E sempre que este homem de meia-idade e olhar perverso o injuriava ou o tratava com prepotência, Arthur ficava furioso. Ainda por cima, os modos de Morel eram cada vez mais grosseiros, e os seus hábitos quase repugnantes. Na fase de crescimento dos filhos e durante o período crítico da adolescência, o pai surgia-lhes aos olhos da alma como um ser feio e irritante. Em casa, os seus modos eram idênticos aos que usava com os outros mineiros no fundo da mina.

– Monstro nojento! – gritava Arthur, saltando da cadeira e saindo de casa, quando o pai o enojava.

E Morel fazia ainda pior, por saber que as crianças o detestavam. Parecia sentir prazer em afrontá-las, a ponto de quase as enlouquecer, quando, aos catorze ou quinze anos, atravessavam a fase de extrema sensibilidade e irritabilidade. Assim, Arthur, que cresceu quando o pai já se encontrava em declínio e a caminho da velhice, odiava-o acima de tudo.

Por vezes, o pai parecia pressentir todo esse ódio e desprezo que os filhos tinham por ele.

– Não há homem que se sacrifique mais pela família – bordava então. – Faz por eles tudo o que pode, e tratam-no como um cão. Mas eu tenho força para aguentar, estão a ouvir!

Não fora o tom ameaçador e o facto de não fazer por eles tanto quanto pensava, e teriam até sentido pena. Nesta altura, a guerra instalava-se quase sempre entre pai e filhos, com o primeiro persistindo nos seus modos grosseiros só para afirmar a sua autoridade. Os filhos detestavam-no.

Por fim, Arthur já andava tão exaltado e irritado que, quando ganhou uma bolsa para ir para a escola secundária de Nottingham, a mãe achou por bem deixá-lo ficar a viver na cidade com uma das suas irmãs, vindo apenas a casa aos fins-de-semana.

Annie ainda era professora estagiária na escola primária, onde ganhava quatro xelins por semana. Mas em breve seriam quinze, uma vez que passara o exame final, o que traria à família tranquilidade financeira.

Mrs. Morel era muito agarrada a Paul. Ele era calado e não excessivamente inteligente, mas continuava fiel à pintura e à mãe. Tudo o que fazia era para ela. E ela esperava pela sua chegada à noitinha, para desabafar com ele todos os seus pensamentos, tudo o que lhe acontecera durante o dia. E ele ouvia-a, sentado e atento. Era o partilhar de duas vidas.

William estava noivo da tal morena, e tinha-lhe comprado um anel de noivado que custara oito guinéus. Os irmãos ficaram sem fôlego perante soma tão fabulosa.

– Oito guinéus! – disse Morel. – Bem parvo é!... Ficava-lhe melhor se me tivesse dado antes algum a mim.

– Dar-te algum, a ti! – exclamou Mrs. Morel. – Porque havia ele de te dar algum?

Mrs. Morel lembrou-se de que o marido não lhe tinha comprado anel de noivado e, a seu ver, antes ser como o William, que não era mesquinho, embora pudesse ser parvo. Mas agora o jovem só falava nos bailes a que tinha ido com a noiva e nos vestidos deslumbrantes que ela usava; ou então contava à mãe, rejubilante, como tinham os dois ido ao teatro em grande estilo.

William queria trazer a namorada para os pais conhecerem, e Mrs. Morel disse-lhe que a trouxesse no Natal. Desta vez, William chegou acompanhado de uma senhora, mas sem presentes. Mrs. Morel tinha preparado a ceia. Ao ouvir passos, levantou-se e foi à porta. William entrou.

– Olá, mãe! – deu-lhe um beijo apressado, chegou-se para o lado e apresentou-lhe uma rapariga alta e bonita, vestida com um saia-e-casaco preto e branco aos quadradinhos e uma estola de peles.

– Cá está a Ciganita!

Miss Western estendeu a mão e rasgou um sorriso de muitos dentes.

– Oh, como está, Mrs. Morel! – exclamou.

– Devem estar com fome – disse Mrs. Morel.

– Não, não estamos. Jantámos no comboio... Tens as minhas luvas, Fofinho?

William Morel, alto e ossudo, olhou para ela acto contínuo.

– Como é que havia de tê-las? – disse ele.

– Então perdia-as. Não te zangues comigo...

Viu-se que ele tinha ficado aborrecido, mas não disse nada. Ela relanceou o olhar pela cozinha. Achou-a pequena e bizarra, com o ramo de azevinho pendurado na parede e as sempre-vivas por detrás das fotografias, as cadeiras de madeira e a mesinha de jogo. Nessa altura, entrou Morel.

– Olá, pai!

– Olá, meu filho... Mas que surpresa!

Apertaram as mãos, e William apresentou-lhe a senhora. Ela reeditou o sorriso, mostrando os dentes.

– Como está, Mr. Morel. – Morel inclinou-se respeitosamente.

– Tou bem, obrigado, e espero que também esteja... Seja muito bem-vinda.

– Ah, obrigada – respondeu ela, bastante divertida.

– Há-de querer ir para cima – disse Mrs. Morel.

– Se não se importa... mas só se não a incomodar.

– Não incomoda nada... A Annie vai consigo... Walter, leva este baú para cima.

– E não leves uma hora a aperaltar-te – disse William para a noiva.

Annie pegou num candelabro de latão e, muda de vergonha, subiu à frente da jovem até ao quarto principal, que Mr. e Mrs. Morel lhe tinham cedido. Era também pequeno e frio, iluminado apenas pelas velas. As mulheres dos mineiros só acendiam as lareiras nos quartos em caso de doença muito grave.

– Quer que desaperte as correias do baú?

– Ah, muito obrigada!

Annie estava a fazer o papel de criada. Em seguida voltou para baixo para ir buscar água quente.

– Ela deve estar muito cansada, mãe – disse William. – É uma viagem muito violenta, e na correria em que andámos...

– Queres que lhe leve alguma coisa? – perguntou Mrs. Morel.

– Não, não... Ela está bem.

Mas havia um certo gelo no ar. Passada mais de meia hora, Miss Western desceu, envergando um vestido em tons de púrpura, demasiado fino para a cozinha do mineiro.

– Tinha-te dito que não precisavas de trocar de roupa – disse William.

– Deixa lá, Fofinho!... – E, mantendo o sorriso adocicado, voltou-se para Mrs. Morel: – Não acha que ele está sempre a resmungar, Mrs. Morel?

– Ah, está? – disse Mrs. Morel. – Isso é muito feio.

– E é mesmo!

– Deve estar com frio – disse a mãe. – Não quer vir para a la-reira? – Morel saiu imediatamente da cadeira de braços.

– Venha pr’àqui – exclamou ele. – Venha pr’àqui.

– Não, pai... Não saia da sua cadeira... senta-te no sofá, Ciganita – disse William.

– Não senhor! – insistiu Morel. – Esta cadeira é mais quente. Venha sentar-se aqui, Miss Wesson.

– Muitíssimo obrigada – disse a rapariga, sentando-se na cadeira de braços do mineiro, ou seja, o lugar de honra. Teve uma tremura ao sentir o calor da cozinha invadi-la.

– Vai buscar-me um lenço, Fofinho! – disse ela, fazendo beicinho e dirigindo-se-lhe no tom íntimo de quando estavam sozinhos, o que fez os restantes membros da família sentirem-se como intrusos. Era evidente que a jovem não os considerava como pessoas: para ela não passavam de criaturas. William estremeceu.

Se aquela casa fosse em Streatham, Miss Western seria a senhora, condescendendo a conviver com a camada inferior. Para ela, estas pessoas eram no mínimo grotescas – numa palavra, da classe trabalhadora. Como poderia ela adaptar-se?

– Eu vou – disse Annie.

Miss Western ignorou-a, como teria feito com uma criada, e só quando ela voltou para baixo com o lenço disse então, com afabilidade:

– Oh, muito obrigada.

Depois, desatou a falar: do jantar no comboio, que não tinha prestado para nada, de Londres, dos bailes. Via-se que estava muito nervosa e era o medo que a fazia falar. Morel, sentado a fumar um tabaco muito forte, observava-a enquanto lançava baforadas de fumo para o ar e ouvia com atenção a sua petulante algaraviada londrina. Mrs. Morel, ostentando a sua melhor blusa de seda preta, ia-lhe respondendo com calma e poucas palavras. Os outros filhos estavam sentados, em admirativo silêncio. Miss Western era a princesa. Tinham ido buscar tudo o que havia de melhor para a servir: as melhores chávenas, as melhores colheres, a melhor toalha, o melhor bule. As crianças achavam que ela devia estar a apreciar muito o acolhimento. Mas ela sentia-se mal, por não entender as pessoas, por não saber como tratá-las. William ia dizendo piadas, sentindo-se ligeiramente comprometido.

Por volta das dez horas, disse-lhe:

– Não estás cansada, Ciganita?

– Muito, Fofinho – respondeu ela, com voz melada e inclinando a cabeça ligeiramente para o lado.

– Acendo a vela, mãe? – disse ele.

– À vontade – respondeu a mãe.

Miss Western levantou-se e estendeu a mão a Mrs. Morel.

– Boa noite, Mrs. Morel – disse ela.

Paul, sentado em frente da caldeira, deixou jorrar a água da torneira para dentro de uma garrafa de cerveja em grés. Annie abafou a garrafa numa velha camisola da mina, e deu à mãe um beijo de boas-noites. Com a casa cheia, ia ter de dormir com a senhora.

– Espera um bocadinho – disse Mrs. Morel à filha. Annie sentou-se com a botija ao colo. Miss Western despediu-se de todos com um aperto de mão, para grande atrapalhação dos presentes, e saiu, precedida por William. Passados cinco minutos, ele voltou para baixo. Sentia o coração oprimido, sem saber porquê. Falou muito pouco até todos se terem ido deitar, excepto ele e a mãe. Depois, foi pôr-se de pé frente à lareira, de pernas afastadas como costumava fazer noutros tempos, e disse, titubeante:

– Então, mãe?

– Então o quê, meu filho?

A mãe sentou-se na cadeira de baloiço. Sentia-se de certo modo ferida e humilhada por causa dele.

– Gosta dela?

– Gosto – tardou a resposta.

– Ela ainda está pouco à vontade, mãe... não está acostumada a tudo isto. É muito diferente da casa da tia dela, sabe.

– Claro que é, meu filho... Deve ser difícil para ela.

– Pois é. – E, de repente, a expressão carregou-se-lhe. – Se ao menos ela não pusesse aqueles benditos ares!

– É só a primeira reacção, meu filho. Aquilo passa-lhe.

– Tem razão, mãe – respondeu ele, gratificado. Mas o olhar continuava triste. – Sabe, ela não é como a mãe... não é compenetrada... e não se cansa muito a pensar.

– Ela é muito nova, meu filho.

– É isso!... E não teve sorte nenhuma. A mãe morreu quando ela era criança, e desde então vive com uma tia que ela já não consegue aturar. E o pai era um patife... Faltou-lhe o amor.

– Sério?!... Bem, nesse caso tens de a compensar de tudo isso.

– E perdoar-lhe muitas coisas.

– Que coisas é que tens de lhe perdoar, meu filho?

– Sei lá... quando ela se mostra superficial, por exemplo... É preciso lembrarmo-nos de que ela nunca teve ninguém que fizesse desabrochar o seu lado mais profundo... E ela gosta tremendamente de mim.

– Isso qualquer pessoa pode ver.

– Mas, sabe uma coisa, mãe... ela... ela é diferente de nós. As pessoas como ela, aquelas com quem se dá... não parecem ter os mesmos princípios que nós.

– Não deves fazer juízos precipitados – disse Mrs. Morel. Mas ele parecia contrafeito.

De manhã, contudo, levantou-se e pôs-se a cantar pela casa toda.

– Olá! – chamou ele, saudando-a do fundo das escadas, onde estava sentado. – Já te estás a levantar?

– Já – respondeu ela lá de cima, com voz sumida.

– Feliz Natal! – gritou ele.

No quarto, ouviu-se o riso dela, bonito e musical. Mas ela só desceu meia hora depois.

– Ela estava mesmo a levantar-se, quando disse? – perguntou William a Annie.

– Estava, sim – respondeu Annie.

William aguardou uns instantes e voltou para as escadas.

– Feliz Ano Novo! – gritou ele.

– Obrigada, Fofinho do meu coração! – disse uma voz risonha, de muito longe.

– Despacha-te! – implorou ele.

Tinha passado quase uma hora, e ele à espera dela. Morel, que se levantava sempre antes das seis, olhou para o relógio.

– Bem, já vi qu’é das que s’atrasam! – exclamou.

Já todos tinham tomado o pequeno-almoço, excepto William, que se foi postar ao fundo das escadas.

– Será que vou ter de mandar aí para cima um ovo de Páscoa? – gritou ele, já zangado. Ela limitou-se a rir. A família esperava algo de mágico depois de tão longa preparação. Finalmente, ela apareceu, com uma saia e uma blusa que lhe ficavam muito bem.

– Levaste mesmo todo este tempo para te vestires? – perguntou ele.

– Oh, Fofinho!... Isso não é pergunta que se faça, pois não, Mrs. Morel?

A princípio, ela representou o papel da grande dama. Quando entrou na capela ao lado de William, ele de fraque e chapéu de seda, e ela de estola de peles e saia-casaco dos melhores costureiros de Londres, Paul, Arthur e Annie esperavam que todos se curvassem até ao chão, em êxtase. E Morel, observando o parzinho galante do fundo da rua, com o seu fato domingueiro, sentia-se o pai do príncipe e da princesa.

Porém, a dama não era assim tão grande. Trabalhava desde há um ano como uma espécie de secretária, ou escriturária, num escritório de Londres.

Mas enquanto esteve com os Morels parecia uma rainha: sentava-se à mesa e deixava que Annie e Paul a servissem, como se fossem seus criados. Tratava Mrs. Morel com alguma petulância e Morel com paternalismo. Mas, passados um ou dois dias, a sua atitude começou a mudar.

William pedia sempre a Paul ou Annie que os acompanhassem nos passeios que davam. Era muito mais divertido. E Paul sentia real admiração pela Cigana, uma admiração genuína. Na verdade, a mãe não podia perdoar ao filho a adoração que mostrava pela jovem.

No segundo dia, quando Lily disse:

– Annie, sabes por acaso onde terei deixado o meu regalo? William respondeu:

– Sabes muito bem que está no teu quarto. Para que perguntas à Annie?

E Lily lá foi ao quarto, amuada, de lábios crispados. O rapaz já não suportava vê-la fazer da irmã uma criada.

Na terceira noite, William e Lily foram sentar-se na sala, às escuras, frente à lareira. Quando era um quarto para as onze, ouviram Mrs. Morel a abafar o borralho. William veio para a cozinha, seguido da namorada.

– Já é assim tão tarde, mãe? – disse ele. A mãe tinha passado a noite sozinha.

– Não quer dizer que seja tarde, meu filho... mas é tarde para eu continuar a pé.

– Então, porque não se vai deitar? – perguntou ele.

– E deixar os dois aqui sozinhos?... Não, meu filho, isso eu não faço.

– A mãe não tem confiança em nós?

– Tenha ou não tenha, é a mesma coisa... Podem ficar aqui até às onze horas, se quiserem, e eu leio mais um bocadinho.

– Vai deitar-te, Ciganita – disse William. – Não podemos fazer esperar a minha mãe.

– A Annie deixou a vela acesa, Lily – disse Mrs. Morel. – Acho que a luz será suficiente.

– Claro, obrigada. Boa noite, Mrs. Morel.

William acompanhou a namorada até ao fundo das escadas, deu-lhe um beijo e ela foi para o quarto. Ele voltou para a cozinha.

– Não tem confiança em nós, mãe? – insistiu ele, todo ofendido.

– Meu filho, já te disse que eu não vou deixar dois pombinhos como vocês sozinhos cá em baixo, com toda a gente a dormir.

E o filho não teve outro remédio senão contentar-se com a resposta. Deu um beijo à mãe e foi deitar-se.

Na Páscoa, chegou sozinho. Depois, falou longamente com a mãe sobre a namorada.

– Sabe, mãe... quando estou longe dela, nem penso nela... se não voltasse a vê-la, era a mesma coisa. Mas, quando estou com ela, à noite, gosto muito dela.

– É um amor muito estranho para acabar em casamento – disse Mrs. Morel. – Se é só isso que ela representa para ti!

– É engraçado! – exclamou William, entre o preocupado e o perplexo. – E, no entanto... Há demasiadas coisas entre nós, para eu desistir dela agora.

– Tu lá sabes – disse Mrs. Morel. – Mas, se é como dizes, eu não lhe chamaria amor... pelo menos, não parece.

– Não sei, mãe. Ela é órfã, e...

Acabaram por não chegar a uma conclusão. Ele parecia confuso e aborrecido. Ela era muito reservada. Ele gastava todas as suas energias e dinheiro com esta rapariga. Quando veio a casa, mal tinha dinheiro para levar a mãe a Nottingham.

O salário de Paul, para grande alegria sua, tinha sido aumentado no Natal para dez xelins. O rapaz continuava muito satisfeito najordan, mas a sua saúde começou a ressentir-se do pesado horário de trabalho e das condições de isolamento. A mãe, para quem ele era cada vez mais importante, pensou em como poderia ajudá-lo.

A tarde de folga dele era à segunda-feira. Numa segunda-feira, em Maio, quando estavam os dois sozinhos a tomar o pequeno-almoço, ela disse:

– Acho que vamos ter um lindo dia.

Ele olhou-a surpreendido. Alguma coisa ela tinha para lhe dizer.

– Sabias que Mr. Leivers foi morar para uma quinta nova? Pois bem, ele convidou-me a semana passada para ir fazer uma visita a Mrs. Leivers, e eu prometi-lhe que te levava lá hoje, se estivesse bom tempo. Então, vamos?

– Oh, mãezinha, mas isso é óptimo! – exclamou Paul. – Vamos esta tarde, não é?

– Se não estiveres muito cansado... olha que é uma grande caminhada.

– A que distância fica?

– Quatro milhas.

– Ora... não sou eu que me canso por fazer quatro milhas... é a mãe. Acha que consegue?

– Claro que consigo.

– Que bom!... Que bom! – exclamou ele. – Vou voltar a correr para casa. E a quinta é bonita?

– Ele diz que sim... Tu logo dirás.

– Eu não conheço Mrs. Leivers, mãe. Conhece-a?

– Então não conheces... uma mulherzinha macambúzia, com uns grandes olhos castanhos, que se costumava sentar à nossa frente na capela.

– Não me lembro.

– Julgava que pelo menos te lembrasses do chapéu, mesmo que não te lembrasses de mais nada... usa sempre o mesmo chapéu desde há seis anos, desde que a conheço: um quico preto com um farrapo de renda prantado no cucuruto, às três pancadas. Quando a via com o chapéu no alto da cabeça, domingo atrás de domingo, sempre com o mesmo chapéu, só me apetecia ir lá tirar-lho. E o marido é tão elegante e bem-parecido.

– Se calhar, era pobre – alvitrou Paul.

– E que fosse! Sei que não estava pior do que eu. Só que tinha a mania de não comprar nada novo, dava-lhe para ali.

– E ao menos é simpática?

– É. Eu sempre gostei dela... mas ela não consegue andar à altura do homem que tem... Só o orgulho consegue uma coisa dessas, nada mais.

– Porquê?

– Ora bem, ela é uma mulher pequenina, delicada, fina, com uns grandes olhos castanhos... cheios de sentimento. E eu sei que tem passado muito com sete filhos e o pouco que o Alfred Leivers lhe dá. Acho que ele não gosta muito de trabalhos pesados... e daí, talvez... Mas assim, como a vida lhe correu mal e chegou ao estado a que chegou, é orgulhosa de mais para competir com as outras mulheres e agarra-se a um trapo antigo... mas é uma mulher bonita.

– E orgulhosa, mãe?

– Não... Com as outras pessoas, não. Mas consigo mesma não podia ser mais. A pobreza e a vida triste que leva corroem-lhe a alma e ela agarra-se àquela chapeleta preta, para troçar da sua própria pobreza... ou do marido... Só Deus sabe... Mas tu vais gostar dela. Eu gosto dela.

– Bem – disse Paul –, se vamos visitá-la à quinta, não vai estar de chapéu.

– Esperemos que não – disse Mrs. Morel. – É um escândalo e uma vergonha sobrecarregar um corpo frágil como o dela daquela maneira, mas também não precisava de andar naquela figura, por despeito. Faço ideia de como ele se deve sentir!...

Paul saiu à pressa para a estação, rejubilante. Em Derby Road, havia uma cerejeira a cintilar. O velho muro de tijolo junto ao pátio do Statutes brilhava em tons de escarlate, incandescentes, e a Primavera era uma labareda verde. A estrada íngreme estendia-se esplêndida, coberta da fria poeira matinal em alternâncias de sol e sombra, absolutamente estática. As árvores, orgulhosas, deixavam pender abaulados os ombros verdes e possantes. Durante toda a manhã, de dentro do armazém, o rapaz foi brindado com um quadro de Primavera.

Quando voltou para casa, a mãe estava excitadíssima.

– Sempre vamos? – perguntou ele.

– É só o tempo de me arranjar – respondeu ela.

– Conseguiu acabar o trabalho?

– Consegui.

Paul sentou-se à mesa, à espera do almoço. Ela trouxe-lhe a frigideira.

– Para que se foi meter a fazer sonhos de ruibarbo se tinha tão pouco tempo?

– Porque me apeteceu – disse a mãe. – E estou pronta quando tu estiveres.

Tinha feito os sonhos porque, durante a semana, o filho só vinha almoçar a casa neste dia, e gostava muito de sonhos.

– Não senhora... saia daqui. Quem faz isso sou eu.

Paul levantou-se e tentou tirar-lhe a frigideira da mão.

– Nem pensar nisso! – disse ela, agitando o garfo. – Temos muito tempo.

Ele voltou para a mesa, cabisbaixo, e ela continuou com os cozinhados.

– São mesmo coisas de mulher – disse ele. – Às voltas com a frigideira, quando devia estar a vestir-se para sair.

– São é mesmo coisas de rapazes, julgam que já sabem tudo – disse ela, colocando a sobremesa diante dele.

– E esteve a apanhar esse calor todo na cara – disse o filho. – Já sabe que quando lá chegar, vai ter a cara vermelha como o sol nascente.

– Se tiver, não sou eu que te vou pedir para olhares para mim.

– E, mesmo que pedisse, eu não olhava – respondeu ele.

– Ingrato!

– Afogueada!

Ela fungou e empertigou-se daquela maneira a que ele chamava «esticar-se à tartaruga».

– Já se lavou? – perguntou ele.

– Já.

– Pois olhe, não parece, tem o nariz enfarruscado, como de costume.

Ela foi ver-se ao espelho.

– Que maçada! – exclamou.

Ele levantou-se.

– Vá-se vestir, que eu lavo a loiça – disse Paul.

Ela obedeceu. Ele lavou as panelas, endireitou as costas e pegou nas botas dela. Estavam muito limpas. Mrs. Morel era daquelas pessoas naturalmente dotadas que são capazes de andar na lama sem sujarem os sapatos. Mas Paul quis limpar-lhas, mesmo assim. Eram botas de criança, das de oito xelins o par. No entanto, para ele, eram as botas mais chiques do mundo, e limpava-as com tanta reverência como se fossem flores.

Subitamente, ela apareceu à porta, muito tímida. Trazia uma blusa nova. Paul deu um salto em frente.

– Ena pá! – exclamou ele. – Que espalhafato!

Ela inspirou ligeiramente, altiva, de cabeça bem erguida.

– Não é espalhafato nenhum! – retorquiu ela. – É até bem recatada.

Mrs. Morel deu um passo em frente e o filho mirou-a de todos os lados.

– Então – perguntou ela, envergonhada, mas mostrando-se segura e arrogante. – Gostas?

– É um espanto! Vou gostar de levar uma mulher tão bonita a passear!

Contornou-a e mirou-a pelas costas.

– Muito bem! – disse ele. – Se fosse na rua atrás de si, havia de dizer: – Mas que bem vestida que aquela senhorinha vai.

Ela fungou de satisfação, como era seu hábito, mas a fazer-se desentendida.

– Sabes – disse ela –, só me custou três xelins. Por este preço não a podia comprar feita, pois não?

– Acho que não – respondeu o filho.

– E o tecido é de muito boa qualidade.

– Tremendamente bonita! – disse ele.

A blusa era branca, com raminhos púrpura e pretos.

– Demasiado jovem para a minha idade, não achas?

– Essa agora, demasiado jovem para si? – exclamou Paul, agastado. – Já agora, porque não compra uma peruca branca para pôr no alto da cabeça?

– Daqui a pouco já não é preciso – respondeu ela. – Estou aqui, estou com a cabeça toda branca.

– Pois faça favor de não estar – disse ele. – Para que quero eu uma mãe de cabelo branco?

– Pois olha que vais ter de te contentar, meu menino – disse ela, com uma entoação bastante estranha.

Saíram de casa em grande estilo, ela com a sombrinha que William lhe tinha dado, para se proteger do sol. Paul era consideravelmente mais alto do que ela, embora não fosse muito grande. O rapaz ia todo cheio de si.

Na terra lavrada, as espigas tenras brilhavam como seda. A mina de Minton desfraldava os seus penachos de vapor branco, acompanhados de roncos e roucas tossidelas.


– Olha para aquilo! – disse Mrs. Morel. Mãe e filho pararam na estrada, a ver. Ao longo da crista do grande monte da mina, desenhava-se em contraluz um pequeno grupo a avançar mansamente – um cavalo, uma carrocinha e um homem. Trepavam a encosta em direcção ao céu: ao chegarem ao cimo, o homem voltou a carroça e, com injustificado estrépito, a escória rolou pela vertente abrupta do aterro.

– Sente-se um bocadinho, mãe – disse Paul, e ela sentou-se na rocha, enquanto ele desenhava a cena rapidamente. Mrs. Morel manteve-se em silêncio enquanto o filho trabalhava, entretida a admirar a tarde e o casario vermelho a cintilar entre o verde da paisagem.

– O mundo é um lugar maravilhoso – disse ela. – E maravilhosamente belo.

– E a mina também – disse ele. – Veja como cresce, como se estivesse viva... é como uma criatura gigantesca que nós não conhecemos.

– É – disse ela. – Talvez!

– E os vagões parados, à espera, como animais em correnteza à espera da ração – disse ele.

– E eu bem contente fico de os ver aí à espera – disse a mãe. – Quer dizer que a semana vai ser boa.

– Eu gosto de sentir a mão do homem nas coisas; é sinal de vida. Nos vagões sente-se o dedo do homem, porque são mãos de homens que os conduzem.

– Pois é – disse Mrs. Morel.

Continuaram a caminhada à sombra das árvores, pela estrada principal. Ele ia explicando tudo e ela mostrava-se interessada. Passaram pelo extremo do lago Nethermere, que embalava no colo docemente, como pétalas, os reflexos do sol. Depois viraram para uma estrada particular e, com emoção crescente, aproximaram-se de uma grande quinta. Um cão desatou a ladrar furiosamente. Apareceu uma mulher, a ver quem era.

– É este o caminho para Willey Farm? – perguntou Mrs. Morel.

Paul deixou-se ficar atrás da mãe, apavorado com a ideia de serem escorraçados. Mas a mulher era prestável e indicou-lhes o caminho. Mãe e filho meteram pelo meio do trigo e da aveia, atravessaram uma pequena ponte e chegaram a um prado em pousio. Os abibes, com os seus peitos brancos reluzentes, gritavam e volteavam em redor. O lago estava estático e azul. No céu, planava uma garça. Em frente, o bosque subia denso pela encosta, verde e estático.

– É uma estrada florestal, mãe – disse Paul. – Tal e qual como no Canadá.

– Lindo, não é? – disse Mrs. Morel, olhando em volta.

– Está a ver aquela garça... está a ver... as pernas dela?

Era ele que dizia à mãe para onde devia, ou não, olhar. Mas ela gostava assim.

– E agora – disse ela – para que lado é?... Ela disse-me para atravessar o bosque. – O bosque, cerrado e sombrio, estendia-se para a esquerda.

– Sinto que aqui há um caminho – disse Paul. – A mãe tem pés de citadina; seja lá como for, mas tem.

Encontraram uma cancela e entraram numa larga vereda arborizada, com um maciço de cedros e pinheiros de um dos lados e uns quantos carvalhos decrépitos do outro a descerem pela encosta. E, entre os carvalhos, as campainhas-do-monte espraiavam-se em mancha azul sob as aveleiras ainda verdes e um manto esmorecido de folhas amareladas de carvalho. Paul apanhou flores para dar à mãe.

– Está aqui um pouco de feno acabado de chegar – disse ele, e desta vez trouxe-lhe miosótis. E de novo o coração lhe doía de tanto amor, vendo a mão dela, calejada do trabalho, pegar no raminho que ele lhe dera. Ela estava completamente feliz.

No fim da vereda era preciso saltar uma cerca. Paul passou num instante.

– Venha – disse ele –, eu ajudo-a.

– Não... sai daí. Prefiro passar à minha maneira. Ele ficou do outro lado, com as mãos no ar, pronto para a ajudar. Ela trepou com todas as cautelas.

– Mas que maneira de trepar! – exclamou Paul, trocista, quando a mãe já estava a salvo no chão.

– Malditas cercas! – bradou ela.

– Só se uma mulher for muito desajeitada – replicou ele – é que não consegue passá-las.

Em frente, ao longo da orla do bosque, estendia-se um aglomerado de casas de lavoura, baixas e vermelhas. Estugaram o passo. Pegado ao bosque havia um pomar de macieiras cujas flores caíam sobre uma mó. Em baixo era a lagoa, sob os ramos pendentes dos carvalhos. Havia vacas a usufruir da sombra. A quinta e as casas, formando três lados de um quadrilátero, abraçavam o sol viradas para o bosque. Tudo estava em silêncio.

Mãe e filho entraram no pequeno jardim cercado de grades onde pairava um perfume a cravos vermelhos. Junto à porta entreaberta viam-se alguns pães enfarinhados, deixados a arrefecer. Uma galinha aproximou-se para os debicar. De repente, assomou-se à porta uma rapariga com um avental muito sujo. Devia andar pelos catorze anos, tinha as faces morenas e rosadas, um tufo de pequenos caracóis negros muito apertados a cairem livremente, e os olhos castanhos. Parecia tímida e curiosa, com alguma desconfiança dos estranhos. A rapariga voltou a desaparecer. Logo a seguir, surgiu uma outra figura, uma mulher pequenina e frágil, rosada e com grandes olhos castanhos.

– Oh! – exclamou ela, rasgando um sorriso cintilante. – Sempre veio. Gosto muito de a ver por cá. – A voz da mulher era afável e muito triste.

As duas mulheres apertaram a mão.

– Tem a certeza de que não viemos incomodar? – disse Mrs. Morel. – Sei bem como é a vida do campo.

– De maneira nenhuma. Até é uma bênção ver caras novas. Estamos aqui tão isolados.

– Pois devem estar... – disse Mrs. Morel.

Levaram-nos até à sala, uma divisão comprida e de tectos baixos, com um grande ramo de rosas amarelas a enfeitar a lareira. As mulheres sentaram-se a conversar, enquanto Paul foi dar uma volta pela quinta. Estava no jardim a cheirar os cravos e a olhar para as plantas, quando a rapariga saiu a correr e se foi pôr junto do monte de carvão encostado à cerca.

– Creio que estas vão ser rosinhas de toucar, quando abrirem – disse ele, apontando para as roseiras ao longo da cerca. Ela olhou para ele com os grandes olhos castanhos, muito espantados, muito abertos.

– Não sei – respondeu, hesitante. – São brancas e têm o olho cor-de-rosa.

– Então são «rubores de donzela».

Miriam corou – uma cor cálida, bonita.

– Não sei – disse ela.

– Não tens grande coisa no jardim – disse ele.

– É o primeiro ano que aqui passamos – respondeu ela, com modos distantes e superiores, afastando-se e entrando em casa. Paul não ligou e continuou a exploração. A mãe veio ter com ele e deram a volta aos edifícios. Paul estava deliciado.

– Suponho que ainda tenha de ir tratar das galinhas, das vitelas e dos porcos? – disse Mrs. Morel a Mrs. Leivers.

– Não – retorquiu a mulherzinha. – Não consigo arranjar tempo para tratar do gado, e, além disso, não estou habituada. O trabalho de casa já me chega.

– Sim, suponho que sim – disse Mrs. Morel.

Daí a pouco, a rapariga veio cá fora.

– O chá está pronto, mãe – disse, com uma voz suave, musical.

– Ah, obrigada, Miriam, já vamos – respondeu a mãe, toda ela amabilidade. – Podemos ir tomar o nosso chá agora, Mrs. Morel?

– Claro – disse Mrs. Morel. – Logo que estiver pronto.

Paul, a mãe e Mrs. Leivers tomaram chá juntos. Depois foram passear pelo bosque, inundado de campainhas-do-monte, enquanto os carreiros estavam reservados aos miosótis. Mãe e filho caminhavam os dois em êxtase.

Quando voltaram, Mr. Leivers e Edgar, o filho mais velho, estavam na cozinha. Edgar devia ter dezoito anos. Depois, chegaram da escola Geoffrey e Maurice, dois rapagões de doze e treze anos. Mr. Leivers era um homem bem-parecido, na força da vida, de bigode castanho-dourado e olhos azuis sempre assestados, a perscrutar o tempo.

– Foram dar uma volta? – perguntou ele a Paul, com entusiasmo.

– Não deu para ver tudo – respondeu o rapaz, saindo em seguida com Geoffrey e Maurice.

– Onde é que tu trabalhas? – perguntou Geoffrey. Eram os três muito tímidos.

– Na Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan, em Nottingham.

– E que fazes?

– Sou empregado de escritório.

– E fazes o quê?

– Copio cartas, faço encomendas e passo facturas.

– Que tipo de cartas copias?

– Oh... todo o tipo... a maior parte são a encomendar meias elásticas.

– Meias elásticas!... Qu’é isso?

Seguiram-se muitas explicações.

– E algumas das cartas vêm de França e de outros lugares – disse Paul.

– E tu tens d’as copiar?

– Claro.

– Em francês?

– Não... traduzo-as.

– Essa agora... então sabes francês?

– Sei alguma coisa... e alemão também.

– E quem t’ensinou?

– O meu padrinho... e também álgebra e geometria.

– Eu cá não faço tenções d’encher a cabeça com essas coisas – disse Geoffrey.

Os dois rapazes mostravam-se terrivelmente superiores, mas Paul nem dava por isso. Foram à procura de ovos, vasculhando em todos os lugares. Quando estavam a dar de comer às galinhas, Miriam saiu de casa. Os rapazes não lhe ligaram. Na capoeira es-tava uma galinha com os seus pintainhos amarelos. Maurice pegou numa mão-cheia de milho e deixou a galinha vir comer-lhe à mão.

– Tens coragem de fazer o mesmo? – perguntou ele a Paul.

– Vamos lá ver... – respondeu Paul.

Ele tinha a mão pequenina, quente e habilidosa. Miriam ficou a observá-lo. Paul aproximou a mão da galinha. A ave olhou para o milho com o seu olhar duro e brilhante e, de repente, deu-lhe uma bicada na mão. Paul assustou-se, mas depois riu-se. «Pic-pic-pic», fazia-lhe a galinha na palma da mão. Paul riu-se outra vez e os rapazes riram com ele.

– Ela ferra-nos e pica-nos, mas nunca faz doer – disse Paul, quando o milho se acabou.

– Agora, Miriam, é a tua vez – disse Maurice.

– Não – gritou ela, encolhendo-se.

– Olha, parece um bebé. És mesmo um bebé! – disseram os irmãos.

– Não dói nada – disse Paul. – São só uns beliscõezinhos muito agradáveis.

– Não – gritou ela mais uma vez, abanando os caracóis negros e encolhendo-se.

– Ela não s’atreve – disse Geoffrey. – Ela nunca s’atreve a fazer nada a não ser recitar poesia.

– Não s’atreve a saltar uma cancela... não s’atreve a brincar connosco... não s’atreve a fazer frente quando outra rapariga lhe bate... não é capaz de fazer nada a não ser andar por aí convencida qu’é alguém... «A Dama do Lago»... é isso mesmo! – gritou Maurice.

Miriam estava coradíssima de vergonha e infelicidade.

– Sou capaz de fazer mais coisas que vocês – gritou ela. – Vocês não passam duns cobardes e duns brigões.

– Olha, olha, «cobardes e brigões!» – repetiram eles, arremedando-a.

«Um palhaço assim nunca me enfurece.

Todo o brutamontes silêncio merece»

recitou ele, virado para ela, a rir às gargalhadas.

Ela voltou para casa. Paul foi com os dois rapazes até ao pomar, onde tinham montado à pressa duas barras paralelas. Aí chegados, entregaram-se às respectivas demonstrações de força. Paul era mais ágil do que possante, mas foi quanto bastou. Apontou para umas flores de macieira que estavam mesmo à ponta de um ramo balouçante.

– Eu cá, se fosse a ti, não apanhava as flores – disse Edgar, o mais velho dos irmãos. – Senão, prò ano não temos maçãs.

– Eu não ia apanhá-las – respondeu Paul, indo-se embora.

Os rapazes mostravam-se hostis com ele. Interessavam-lhes mais as suas próprias brincadeiras. Paul voltou para casa, para junto da mãe. Quando ia a contornar a casa pelas traseiras, viu Miriam ajoelhada diante da capoeira da galinha, com a mão cheia de milho, a morder o lábio, numa atitude de intensa concentração. A galinha fitava-a com maldade. Cautelosamente, ela estendeu a mão. A galinha atirou-se. Ela retirou rapidamente a mão, com um grito, misto de medo e frustração.

– Ela não te magoa – disse Paul.

Miriam pôs-se de pé, muito corada.

– Só queria experimentar – disse, muito baixinho.

– Vês... não dói nada – disse ele. E, colocando apenas dois grãos de milho na palma da mão, deixou a galinha bicá-lo à vontade. – Só dá vontade de rir – continuou Paul.

Ela estendeu a mão e retirou-a, tentou novamente e fugiu para trás, com um grito. Ele fez uma careta.

– Olha, eu até a deixava comer milho da minha cara – disse Paul. – Mas ela dá muitos encontrões. Ela faz isto com toda a perfeição! Se não fizesse, já imaginaste a quantidade de terra que ela ia comer todos os dias?

Esperou, muito sério, a observá-la. Finalmente, Miriam deixou a galinha bicar-lhe a mão. Deu um gritinho, de medo e dor, porque estava assustada, um gritinho patético. Mas tinha conseguido, e voltou a repetir a proeza.

– Estás a ver – disse o rapaz. – Não faz doer, pois não?

Ela fitou-o com os olhos escuros muito abertos.

– Não – disse ela, a rir e a tremer.

Depois levantou-se e foi para casa. Parecia de alguma forma ofendida com o rapaz.

«Ele deve achar que eu não passo duma rapariga como as outras», pensava ela, cheia de vontade de lhe provar que era uma grande personagem, como a «Dama do Lago».

Paul veio encontrar a mãe pronta para partir. Mrs. Morel sorriu para o filho, e ele pegou no grande ramo de flores. Mr. e Mrs. Leivers acompanharam-nos até ao fundo da quinta. As colinas douravam-se do entardecer, e nas profundezas dos bosques sobressaía o púrpura carregado das campainhas-do-monte. Por todo o lado estava o silêncio, apenas quebrado pelo restolhar das folhas e os pássaros.

– É de facto um lugar belíssimo – disse Mrs. Morel.

– É, sim – concordou Mr. Leivers. – É um lugar bem aprazível, o pior são os coelhos. Dão cabo das pastagens. Não sei se alguma vez iremos ter lucro.

Bateu as palmas e os campos cobriram-se de movimento, junto ao bosque: por toda a parte saltavam coelhos acastanhados.

– Até custa a acreditar! – exclamou Mrs. Morel.

Ela e Paul continuaram sozinhos daí para a frente.

– Foi um dia maravilhoso, não foi, mãe? – disse Paul, falando baixinho. A lua despontava, tímida. O coração doía-lhe de tanta felicidade. A mãe não se calava, pois também ela tinha vontade de gritar de felicidade.

– Então eu não ia ajudar um homem daqueles? Não ia tratar das galinhas e dos bezerros? Havia de aprender a ordenhar, e havia de conversar com ele, e fazer planos com ele. Palavra, se eu fosse mulher dele, aquela quinta ia de vento em popa, isso é que ia... Mas não, ela não tem forças... simplesmente não tem forças. Nunca devia ver-se sobrecarregada desta maneira, percebes. Tenho pena dela, e dele também. Palavra, se ele fosse meu, nunca diria que era um mau marido... Não que ela diga, lá isso não... E ela é até muito simpática.

William veio a casa outra vez, com a namorada, pelo Pentecostes. Tinham-lhe dado uma semana de férias. O tempo estava muito bonito. Geralmente, William, Lily e Paul iam juntos dar um passeio pela manhã. William não conversava muito com a namorada, excepto para lhe contar histórias da infância; mas Paul falava sem parar com qualquer deles. A certa altura, deitaram-se os três num prado, perto da igreja de Minton. De um dos lados, junto do parque do castelo, estendia-se ondulante uma cortina de choupos – uma beleza. As sebes cobriam-se de bagas pendentes de azevinho. Os campos salpicavam-se de margaridas e flores-de-cuco, como sorrisos. William, agora com vinte e três anos, era já um homem feito, muito alto, mas tão magro que era quase só pele e osso. Deitou-se ao sol, de costas, a sonhar, enquanto Lily brincava com o seu cabelo. Paul foi apanhar margaridas. Ela tinha tirado o chapéu. O seu cabelo era negro como a crina de um cavalo. Paul aproximou-se e entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo de azeviche, lembrando enormes lantejoulas brancas e amarelas, com um toque rosado de flores-do-cuco.

– Agora pareces uma bruxinha – disse o rapaz. – Não parece, William?

Lily deu uma gargalhada. William abriu os olhos e contemplou-a. O seu olhar era um misto confuso de tristeza e desmedida admiração.

– Ele transformou-me mesmo numa visão do Além? – perguntou ela, olhando para baixo, para o seu amado, a rir.

– Então não transformou! – disse William, a sorrir. E continuou deitado a olhar para ela. Os seus olhos nunca procuravam os dela. Não queria encontrar os olhos dela. Queria estar só a olhar para ela, não que os seus olhares se encontrassem. E esta vontade de a evitar, aflorava-lhe aos olhos como a tristeza. Ele desviou-os outra vez. Ela deixou a mão esguia, onde brilhavam diamantes, brincar no cabelo dele um pouco mais. Depois disse:

– O Paul sabe como fazer as coisas.

– Óptimo – disse William. – Desde que isso te faça feliz. Ele preenche-te as manhãs e eu as noites.

Ela voltou-se para Paul, e riu-se.

– Quero pôr-te mais três flores sobre a orelha – disse ele, de pé ao lado dela. – Depois, fica pronto.

Ela deixou, e ele entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo.

– Não sentes o perfume do sol nos teus cabelos? – perguntou Paul. – Estás a ver, era assim que devias ir aos bailes.

– Obrigada – disse ela, sempre a rir.

Levantaram-se.

– Não ponhas ainda o chapéu – disse Paul.

– Achas que sim? – perguntou ela a William. – Posso ir nesta figura?

William olhou para ela outra vez. A beleza dela quase o magoava. Olhou-lhe para a cabeça coberta de flores e torceu o nariz.

– Estás muito bonita assim, se é isso que queres saber.

E ela continuou o passeio sem chapéu. William logo se recompôs do mau humor e mostrou-se muito terno com ela. Ao chegarem a uma ponte, até gravou um coração com as iniciais dos dois.

 


Ela observou-o atentamente, vendo como a sua mão forte e nervosa, salpicada de pêlos cintilantes e de sardas, gravava no tronco o coração, o que parecia deixá-la fascinada.

Durante toda a estadia, enquanto William e Lily estiveram presentes, pairava dentro de casa um sentimento de tristeza e calor humano, e também de certa ternura. Mas muitas vezes ele irritava-se. Ela tinha trazido para uma semana cinco vestidos e seis blusas.

– Ouve, não te importas de me lavares estas duas blusas... e estas coisinhas? – disse ela a Annie.

E Annie ficou em casa a lavar roupa, enquanto, na manhã seguinte, William e Lily foram passear. Mrs. Morel ficou furiosa. Às vezes, ao aperceber-se da atitude da namorada para com a irmã, o jovem odiava-a pelo seu comportamento.

No domingo de manhã, Lily apareceu muito bonita, com um vestido leve, sedoso e esvoaçante, tão azul como as penas de um gaio, e um chapéu de palha coberto de rosas, onde dominava o carmim. As pessoas não se cansavam de a admirar. Mas, à noite, quando iam a sair, ela perguntou de novo:

– Fofinho, tens as minhas luvas?

– Quais delas? – perguntou William.

– As novas, as de camurça preta.

– Não.

Seguiu-se uma busca. Tinha-as perdido.

– Está a ver, mãe – disse William. – Já é o quarto par que ela perde desde o Natal... e cada par são cinco xelins.

– Tu só me deste dois pares – repontou ela.

E à noite, depois da ceia, ficou sentada no sofá e ele foi postar-se frente à lareira, farto dela. À tarde, tinha-a deixado sozinha para ir visitar um amigo de infância, e ela ficara a ver um livro. Depois da ceia, William quis ir escrever uma carta.

– Aqui tem o seu livro, Lily – disse Mrs. Morel. – Importa-se de ficar a ler mais um bocadinho?

– Não, obrigada, não quero o livro – disse a rapariga. – Prefiro ficar só aqui sentada.

– Mas isso é muito aborrecido...

William escrevia nervosamente, a grande velocidade. Quando estava a fechar o sobrescrito, disse:

– Ler um livro!... Essa é boa, ela nunca leu um livro na vida dela.

– Não digas isso! – disse Mrs. Morel, irritada com o exagero.

– É verdade, mãe... não leu mesmo – exclamou ele, pondo-se de pé num salto e retomando o seu lugar anterior, frente à lareira. – Nunca na vida leu um livro.

– Atão essa é como eu – interveio Morel. – Essa tamém num vê nada nos livros qu’a faça ficar sentada, aborrecida, de nariz infiado nas folhas. Pra quê? Eu tamém num vejo!

– Mas tu não devias dizer essas coisas – disse Mrs. Morel ao filho.

– Mas é verdade, mãe... ela não sabe ler... que livro é que lhe deu?

– Bem, dei-lhe um livrinho da Annie Swan. Ninguém quer ler coisas pesadas num domingo à tarde.

– Pois eu aposto que ela nem dez linhas leu.

– Aí é que tu te enganas – disse a mãe.

Lily assistia à discussão sentada no sofá, com um ar muito infeliz.

– Leste alguma coisa do livro? – perguntou-lhe ele.

– Li, sim – respondeu ela.

– Quantas páginas?

– Sei lá quantas páginas...

– Diz-me uma coisa que tenhas lido.

Ela não foi capaz.

– Cala-te, William – disse a mãe. – Que ideia a tua!

– Mas ela não consegue ler, mãe! – gritou ele, secamente. – Não consegue reter nada do que lê. Não sabe ler e não sabe falar. Não há assunto nenhum sobre o qual se possa conversar com ela. Só pensa em vestidos e em como todos a admiram.

– Não lhe ligue, Lily – disse Mrs. Morel.

– Só os parvos é que se sentam de nariz infiado nos livros, é o qu’eu digo – acrescentou Morel.

E a pobre rapariga continuava a ser agredida. Ele parecia odiá-la. Mais tarde, Mrs. Morel foi buscar-lhe um livro muito simples, e era patético vê-la arrastar-se penosamente pelas primeiras páginas na tarde chuvosa. Não conseguiu passar da segunda página. Ele lia muito, e possuía uma inteligência rápida, activa. Ela não entendia nada a não ser fazer amor e tagarelar. Ele estava habituado a ter todos os seus pensamentos peneirados pela mente da mãe. Por isso, quando procurava companhia e, em resposta, lhe era pedido que fosse apenas um amante, todo ele ternuras e gorgeios, odiava a namorada.

– Sabe, mãe – disse ele, quando à noite ficaram os dois sozinhos – ela não dá valor ao dinheiro, é um catavento. Quando recebe o ordenado, é capaz de gastar uma fortuna numa porcaria qualquer como, por exemplo, marrons glacés. E, depois, sou eu que tenho de lhe comprar o passe e todos os outros extras... até a roupa interior. E quer ela casar-se... Por mim, podíamos até casar já para o ano. Mas por este andar...?

– Ia ser um lindo casamento – respondeu a mãe. – Eu, se fosse a ti, pensava duas vezes, meu filho.

– Bom... Agora já fui longe de mais para romper com tudo – disse ele. – Por isso, o melhor é casar o mais depressa possível.

– Muito bem, meu filho. Se é isso que queres, assim será, e não se fala mais no assunto... Mas olha que eu não durmo quando penso nisso.

– Ela é boa rapariga, mãe. Cá nos havemos de arranjar.

– E ela deixa que sejas tu a comprar-lhe a roupa interior? – perguntou a mãe.

– Bem... – começou ele, apologético. – Ela nunca me pediu. Mas uma manhã... estava muito frio... encontrei-a na estação toda a tremer, nem conseguia estar parada. E então perguntei-lhe se estava bem agasalhada, e ela respondeu, «Acho que sim». E então eu disse «Trazes alguma camisola quente... de lã... por baixo?» E ela disse que não, que era de algodão. Perguntei-lhe por que carga de água não tinha vestido uma coisa mais quente com um frio daqueles, e ela disse que não tinha nada mais quente. E ainda por cima, com a bronquite que ela tem! Tive de pegar nela e ir comprar-lhe uma roupa mais quente... Sabe, mãe, o dinheiro era o menos, se nós o tivéssemos... Ela devia guardar o suficiente para o passe. Mas não... vem pedir-mo, e eu tenho de inventar o dinheiro...

– Belas perspectivas – disse Mrs. Morel, amargurada.

Ele estava pálido e no seu rosto já vincado, outrora tão sorridente e descuidado, estampavam-se o conflito e o desespero.

– Mas eu não posso acabar com tudo, não agora, as coisas já foram longe de mais – disse ele. – Além disso, para certas coisas, não posso passar sem ela...

– Meu filho, lembra-te de que se trata da tua vida – disse Mrs. Morel. – Nada pode ser pior do que um casamento que já está à partida irremediavelmente marcado pelo fracasso. O meu foi suficientemente mau, Deus sabe que sim, e devia ter-te ensinado alguma coisa... Mas ainda podia ter sido muito pior.

William estava encostado à ombreira da chaminé, de mãos no bolsos. Era um homem alto e esquelético, com ar de quem seria capaz de ir até ao fim do mundo, se lhe apetecesse. Mas a mãe lia--lhe o desespero no rosto.

– Agora não posso deixá-la.

– Está bem – disse a mãe. – Mas lembra-te de que há coisas piores do que romper um noivado.

Quedaram-se em silêncio, ele de olhar parado, fitando o espaço. Só a mãe lhe podia valer e, no entanto, não a deixava decidir por ele. Continuava preso ao que tinha feito.

– E, naturalmente – acrescentou Mrs. Morel, há muito mais nobreza em romper um noivado para evitar um mal maior do que em continuar só para cumprir uma promessa.

Ele mantinha-se estático, de olhar pregado no vazio.

– Eu não posso deixá-la agora – insistiu ele.

O relógio ia avançando. Mãe e filho continuaram em silêncio, em conflito. Mas ele nada mais disse. Por fim, ela disse:

– Bem, vai dormir, meu filho... amanhã sentes-te melhor... e talvez vejas as coisas com outros olhos.

O filho deu-lhe um beijo e foi deitar-se. Ela foi abafar o borralho, sentindo o coração pesado como nunca sentira antes. Antes, com o marido, parecia sentir ruir tudo dentro dela, mas nada lhe destruía a vontade de viver. Mas agora, era a própria alma que estava ferida. A própria esperança fora atingida.

William manifestou em muitas outras ocasiões o mesmo ódio pela noiva. Na última noite que passaram em casa dos pais, fartou-se de resmungar com ela.

– Bem – disse ele – já que não me acredita, que acha que ela não é nada assim, acredita pelo menos que ela foi crismada três vezes?

– Que disparate! – disse Mrs. Morel, perdida de riso.

– Disparate ou não, o certo é que foi mesmo! É isso que o Crisma significa para ela... teatro... um espectáculo onde pode brilhar.

– Não fui nada, Mrs. Morel – gritou a rapariga. – Não fui nada. Não é verdade.

– O quê! – gritou ele, avançando para ela. – Uma vez em Bromley, outra em Beckenham, e outra mais não sei onde.

– Em mais lado nenhum! – disse ela, a chorar. – Em mais lado nenhum.

– Foi, sim! E mesmo que não fosse, para que foste crismada duas vezes?

– Da primeira vez, só tinha catorze anos, Mrs. Morel – explicou ela, desculpando-se, de lágrimas nos olhos.

– Claro – disse Mrs. Morel. – Eu entendo perfeitamente, minha filha. Não lhe ligue. Devias ter vergonha, William, a dizeres estas coisas.

– Mas é verdade. Ela é religiosa... até tem livros de orações em veludo azul... mas liga tanto à religião, ou a outra coisa qualquer, como à perna daquela mesa. Ser crismada três vezes, só pelo espectáculo, só para se mostrar! E ela é assim em tudo o mais, em tudo!

A rapariga chorava, sentada no sofá. Não era um espírito forte.

– Até no amor! – gritou ele. – É o mesmo que pedir a uma mosca que nos ame. Só quer vir para cima de nós...

– Acabou-se! – disse Mrs. Morel, peremptória. – Se queres continuar a dizer esses disparates, tens de ir para outro lugar. Tenho vergonha de ti, William. Não sabes portar-te como um homem? Só a pôr defeitos na rapariga... e depois a fingires que estás noivo...! – Mrs. Morel sucumbiu à raiva e à indignação.

William mantinha-se em silêncio. Mais tarde, arrependido, foi dar um beijo à namorada e consolá-la. No entanto, tudo o que dissera era verdade, e odiava-a.

Quando partiram, Mrs. Morel acompanhou-os a Nottingham. A caminhada até à estação de Keston era longa.

– Sabe, mãe – disse ele –, a Ciganita é muito superficial... nada penetra nela a fundo...

– William, preferia que não dissesses essas coisas – pediu Mrs. Morel, sentindo-se constrangida com a presença da rapariga.

– Mas é que não penetra mesmo, mãe... Ela está muito apaixonada por mim, agora... Mas, se eu morresse, esquecia-me em três meses.

Mrs. Morel tinha medo. O seu coração batia furiosamente perante a amargura serena das últimas palavras do filho.

– Como sabes? – retorquiu. – Tu não podes saber... e, por isso, não tens o direito de dizeres uma coisa dessas.

– Ele está sempre com estas coisas! – exclamou a rapariga.

– Três meses depois de me enterrarem, já tu tinhas arranjado outro e nunca mais te lembravas de mim – disse ele. – É esse o amor que me tens!

Mrs. Morel meteu-os no comboio, em Nottingham, e voltou para casa.

– Sabes uma coisa? – disse ela pateticamente para Paul. – Não se entendem e nunca se hão-de entender. Como vai ser, se chegarem a casar, é de mais para a minha imaginação. Se ao menos ele a deixasse, já não precisava de a atormentar desta maneira. Mas vão ficar presos um ao outro até se matarem. Quando ele disse aquilo, a caminho de Keston, foi como se eu já não pudesse dar nem mais um passo. Pobrezinha, tenho pena dela. Mas não é mulher para ele, lá isso não é. É muito cruel dizê-lo, mas como ela é muito frágil, mais valia que morresse em vez de casar com ele.

Mrs. Morel não tirou o filho do pensamento durante todo o Verão. Ele parecia estar a dar cabo da vida. Mas o casamento parecia estar ainda demorado.

– Valha-nos pelo menos uma coisa – disse ela a Paul. – Ele nunca vai juntar dinheiro suficiente para se casar, disso tenho eu a certeza. É assim que ela o vai salvar.

E a ideia animava-a. As coisas ainda tinham remédio, e acreditava firmemente que William nunca chegaria a casar com a sua Cigana. Aguardava e mantinha Paul junto de si.

Durante todo o Verão, as cartas de William soavam febris. Parecia pouco natural e empolgado. Por vezes exageradamente alegre, mas geralmente sóbrio e amargo.

– Pois é – dizia a mãe. – Anda a dar cabo dele por causa daquela criatura que não merece o amor que ele lhe tem, que não passa duma boneca de trapos.

Ele só pensava em vir a casa. As férias de Verão já lá iam, e o Natal ainda estava muito longe. Escreveu muito entusiasmado a dizer que podia vir a casa no princípio de Outubro, passar um sábado e um domingo, para a Feira do Ganso.

– Tu não andas bem, meu filho – disse-lhe a mãe quando o viu. Tê-lo assim, só para ela, dava-lhe até vontade de chorar.

– Não, não tenho passado nada bem – disse ele. – Apanhei uma constipação que se arrastou durante todo o mês. Mas já estou melhor, acho eu.

Estava um dia soalheiro de Outubro. William parecia louco de alegria, como um garoto que se escapasse às aulas. Mas logo ficou calado e reservado. Estava mais esquelético que nunca e com os olhos encovados.

– Andas a trabalhar de mais – disse a mãe.

Fazia horas extraordinárias, para juntar dinheiro para se casar, segundo disse. Só conversou com a mãe uma vez, no sábado à noite. Depois, pôs-se muito triste, com saudades da namorada.

– Sabe uma coisa, mãe, apesar disto tudo, se eu morresse, ela ia chorar por mim durante dois meses, e depois tratava de me esquecer. A mãe havia de ver, ela nunca viria aqui visitar a minha sepultura nem uma só vez.

– Ora, William – disse a mãe –, tu não vais morrer, para quê falar nisso agora?

– Mas se acontecesse... – insistiu ele.

– Ela não tem culpa... ela é assim... e se tu a escolheste, não te podes queixar... – disse a mãe.

No domingo de manhã, quando estava a pôr o colarinho, William disse, levantando o queixo:

– Veja a borbulhagem que o colarinho me fez por baixo do queixo!

Mesmo na ligação do queixo com a garganta havia uma zona muito vermelha, toda irritada.

– Não te devia fazer isso – disse a mãe. – Toma, põe um pouco deste unguento. Devias mudar de colarinhos.

William partiu no domingo à noite, aparentemente melhor e mais forte, depois destes dois dias passados em casa.

Na terça-feira de manhã, chegou um telegrama de Londres dizendo que ele estava doente. Mrs. Morel, que estava a esfregar o chão, levantou-se, leu o telegrama, chamou uma vizinha, foi a casa da senhoria, pediu-lhe dinheiro emprestado, vestiu-se e partiu. Correu até à estação de Keston e apanhou o expresso para Londres em Nottingham, onde teve de esperar quase uma hora. Figurinha frágil, com o seu chapelinho preto, não parava de perguntar, ansiosa, aos carregadores se sabiam o caminho para Elmers End. A viagem demorou três horas. Foi sempre sentada no seu canto, embalada numa espécie de torpor, sem se mexer. Na estação de King’s Cross também ninguém sabia indicar-lhe o caminho para Elmers End. Com o saco de rede na mão, com a camisa de noite, um pente e uma escova, ia de pessoa em pessoa, fazendo sempre a mesma pergunta. Por fim, mandaram-na apanhar o metropolitano até Cannon Street.

Eram seis horas quando chegou ao apartamento de William. As persianas não estavam corridas.

– Como está ele? – perguntou.

– Na mesma – disse a dona da casa.

Mrs. Morel subiu a escada atrás da senhoria. William estava deitado na cama, com os olhos injectados de sangue, muito pálido. A roupa estava espalhada pelo chão, o lume estava apagado e tinha um copo de leite na mesa de cabeceira. Ninguém viera vê-lo.

– Então, meu filho, que foi isto? – disse a mãe, mostrando coragem.

Ele não respondeu. Olhava para ela, mas não a via.

Depois, começou a dizer numa voz monocórdica, como se ditasse uma carta: «Devido a uma brecha no casco do navio, o açúcar tornou-se num bloco, cristalizou. Foi preciso parti-lo com um machado...»

Estava completamente inconsciente. Um dos seus trabalhos tinha sido ir examinar esse tal carregamento de açúcar no porto de Londres.

– Há quanto tempo está ele assim? – perguntou a mãe à senhoria.

– Chegou a casa às seis horas da manhã na segunda-feira e aparentemente dormiu o dia todo. À noite, ouvimo-lo a falar, e esta manhã chamou por si. Por isso, mandei o telegrama e chamámos o médico.

– Não se importa de acender o lume?

Mrs. Morel tentava acalmar o filho, mantê-lo quieto.

O médico chegou. Era uma pneumonia e, segundo disse, uma forma rara de erisipela, que tinha começado debaixo do queixo, provocada pelo roçar do colarinho, e se estava a espalhar a toda a cara; e esperava bem que não lhe atingisse o cérebro.

Mrs. Morel ficou a cuidar dele. Rezava por William, rezava para que ele a reconhecesse. Mas a cara do jovem cada vez perdia mais as cores. De noite, teve de lutar com o filho. Ele delirou e tornou a delirar, sem nunca recobrar a consciência. E morreu às duas da manhã, num paroxismo atroz.

Durante uma hora, Mrs. Morel permaneceu estática, sentada no quarto do filho. Depois, acordou toda a casa.

Às seis da manhã, vestiu-o com a ajuda da mulher da limpeza e em seguida saiu e foi à procura do registo civil e do médico daquele lúgubre subúrbio londrino.

Às nove horas, novo telegrama para Scargill Street: «William morreu esta noite. Dizer pai venha e traga dinheiro.»

Annie, Paul e Arthur estavam em casa. Mr. Morel tinha ido trabalhar. As três crianças não disseram uma palavra. Annie começou a choramingar, com medo. Paul foi chamar o pai.

O dia estava lindo. Na mina de Bretty, o vapor branco fundia-se lentamente com a luz do sol no céu azul, muito ameno, as roldanas da torre brilhavam no alto do aterro, e a peneira não se calava, sempre a deitar o carvão para os vagões.

– Tenho de falar com o meu pai... ele tem de ir já para Londres – disse o rapaz ao primeiro homem que encontrou no aterro.

– Queres falar com Walter Morel?... Vai ‘í dentro e diz ò Joe Ward.

Paul entrou no escritório de cima.

– Quero o meu pai... ele tem de ir pra Londres.

– O teu pai... está na mina? Quem é ele?

– Mr. Morel.

– Quem, o Walter? Aconteceu alguma coisa?

– Ele tem de ir já pra Londres.

O homem foi para o telefone e ligou para o escritório de baixo.

– Chamem o Walter Morel... 42 Hard. Aconteceu alguma coisa... o filho dele tá ‘qui.

Depois, voltou-se para Paul, e disse:

– Daqui a cinco minutos ele já aí está.

Paul foi até ao topo da mina. Viu a caixa subir, com o carregamento de carvão. A grande gaiola de ferro descansou sobre os apoios, a carga foi retirada, um contentor vazio deslizou sobre os apoios, algures tilintou uma campainha, a gaiola elevou-se e caiu como uma pedra.

Paul não acreditava que William estivesse morto... era impossível, com tanta azáfama por todo o lado. O mineiro de serviço empurrou o pequeno contentor para cima da placa giratória, e um outro homem levou-a pelo aterro fora, pelos trilhos sinuosos. «O William está morto e a minha mãe em Londres; que estará ela a fazer?», perguntava-se ele, como se se tratasse de uma charada.

Viu os contentores subirem uns atrás dos outros, e nem sinais do pai. Por fim, o vulto de um homem desenhou-se ao lado de um vagão! A gaiola descansou sobre os apoios e Morel desceu. Coxeava ligeiramente, devido a um acidente.

– És tu, Paul!... Ele tá pior?

– Tem de ir já pra Londres.

Desceram os dois o aterro, lado a lado, sob os olhares curiosos dos mineiros. Quando deixaram a mina e seguiam já ao longo da via férrea, com os campos soalheiros de Outono de um dos lados e um muro de vagões do outro, Morel perguntou, com o medo na voz:

– Ele não se curou, filho?

– Não.

– E quando foi?

Havia terror na voz do mineiro.

– Esta noite... Chegou um telegrama da mãe.

Morel deu mais alguns passos e depois encostou-se a um vagão e fincou as mãos nos joelhos. Mas não chorou. Paul olhou em volta, à espera. Um vagão balouçou lentamente em cima da balança. Paul via tudo, menos o pai, encostado ao vagão, como se estivesse cansado.

Morel só tinha ido uma vez a Londres. Pôs-se a caminho, assustado e lívido, para ir ajudar a mulher. Isto passou-se numa terça-feira. Os filhos ficaram sozinhos em casa. Paul foi trabalhar, Arthur para a escola e Annie chamou uma amiga para lhe fazer companhia.

No sábado à noite, quando Paul dobrava a esquina, de regresso de Keston, viu a mãe e o pai, que vinham da estação de Lethley Bridge. Caminhavam no escuro, em silêncio, cansados, separados. O rapaz ficou à espera.

– Mãe! – disse ele, da escuridão.

A figura franzina de Mrs. Morel pareceu não dar por ele. Paul insistiu.

– Paul! – disse ela, indiferente. Deixou-o dar-lhe um beijo, mas parecia não o ver.

Em casa foi a mesma coisa, franzina, pálida e muda. Não via nada, não dizia nada, excepto:

– O caixão chega hoje à noite, Walter. É melhor pedires ajuda. – E, depois, voltando-se para os filhos: – Vamos trazê-lo para casa.

Em seguida mergulhava num mutismo duradouro, de olhar perdido no espaço e mãos cruzadas sobre o regaço. Paul, ao vê-la assim, quase não podia respirar. Reinava em toda a casa um silêncio de morte.

– Fui trabalhar, mãe – disse Paul, tristemente.

– Ah, foste – respondeu ela, indiferente.

Passada meia hora, Morel, preocupado e confuso, entrou em casa.

– Onde havemos d’o pôr, quand’ele chegar? – perguntou à mulher.

– Na sala da frente.

– Então é melhor eu tirar de lá a mesa.

– Está bem.

– E botá-lo em cima das cadeiras?

– Tu lá sabes... sim... acho que sim.

Morel e Paul pegaram numa vela e foram para a sala. Lá não havia gás. O pai desaparafusou o tampo oval da grande mesa de mogno e libertou o centro da sala. Depois dispôs seis cadeiras em frente umas das outras, de forma a poderem suportar o caixão.

– Nunca vi ninguém mais comprido! – disse o mineiro, olhando em volta, ansioso, enquanto trabalhava.

Paul foi à janela e olhou para a rua. O freixo erguia-se monstruoso e negro, contra a imensa escuridão. Estava uma noite sem luar. Depois, voltou para junto da mãe.

Às dez horas, Morel anunciou:

– Chegou!

Todos estremeceram. Ouviu-se destrancar e abrir a porta da frente, que dava passagem directa da noite escura para dentro da sala.

– Tragam outra vela – gritou Morel.

Annie e Arthur foram buscá-la. Paul acompanhou a mãe. Estava ao lado dela, encostado à porta interior, passando-lhe o braço pela cintura. No meio da sala vazia havia seis cadeiras à espera, viradas umas para as outras. Junto à janela, Arthur segurava uma vela, encostado às cortinas de renda, e junto à porta aberta, virada para a noite, estava Annie, inclinada para a frente, com a palmatória de latão a cintilar.

Ouviu-se o barulho de um rodado. Lá fora, na escuridão da rua, Paul viu cavalos e um veículo negro, um lampião e alguns rostos empalidecidos. Depois, alguns homens – mineiros – todos em mangas de camisa, que pareciam debater-se na penumbra densa. Por fim, apareceram dois homens, vergados sob a pesada carga. Era Morel e o vizinho.

– Firme! – disse Morel, sem fôlego.

Ele e o companheiro subiram o degrau alto do jardim e surgiram à luz da vela, segurando uma das extremidades cintilantes do caixão. Mais braços, de outros homens, agitavam-se por detrás deles. Morel e Burns, à frente, vacilaram. A carga negra, pesadíssima, balançou.

– Firme, firme! – gritou Morel, num grito de dor.

Os seis carregadores já estavam todos no jardim, trazendo o caixão pelo ar. Havia ainda mais três degraus até à porta. A lanterna amarelada da carruagem brilhava sozinha, na estrada de breu.

– Agora! – disse Morel.

O caixão balançou, os homens começaram a subir os degraus com a sua carga. A chama da vela de Annie tremulou e ela começou a chorar ao ver surgir os primeiros homens. Os braços e as cabeças curvadas dos seis homens lutavam para vencerem a subida até à sala com o caixão, transportando o peso do sofrimento sobre a sua carne viva.

– Oh, meu filho... meu filho! – disse Mrs. Morel, baixinho, como se entoasse. E, de novo, de cada vez que o caixão balançava ao passo desigual dos carregadores:

– Oh, meu filho... meu filho... meu filho!

– Mãe! – disse Paul, a chorar, com o braço em volta da cintura dela. – Mãe!

Ela não ouviu.

– Oh, meu filho... meu filho! – repetia.

Paul via gotas de suor pingarem da testa do pai. Os seis homens estavam na sala, seis homens em mangas de camisa, de braços exaustos que se debatiam com a sua carga, enchendo a sala e indo de encontro aos móveis. O caixão desceu e foi suavemente pousado sobre as cadeiras. O suor pingava da testa de Morel sobre o rebordo.

– Palavra d’honra, manda cá um peso! – disse um dos homens, e os cinco mineiros soltaram um suspiro, curvaram-se perante o caixão e, trémulos da luta, desceram novamente os degraus, fechando a porta atrás de si.

A família ficou sozinha na sala com a enorme caixa envernizada. William, esticado, tinha seis pés e quatro polegadas de comprimento. O imponente caixão, de um castanho brilhante, jazia qual monumento. Paul pensou que nunca mais iam conseguir tirá-lo dali. A mãe acariciava a madeira envernizada.

Foi a enterrar na segunda-feira, no pequeno cemitério da encosta, alcandorado sobre os campos, dominando a igreja e o casario. Estava um dia de sol e os crisântemos brancos encaracolavam as pétalas ao calor.

Depois de tudo isto, nada conseguia persuadir Mrs. Morel a falar e a recuperar a sua antiga força de viver. Continuava fechada sobre si mesma. Quando voltava para casa, no comboio, tinha pensado para consigo: «Se ao menos tivesse sido eu.»

Quando Paul chegou a casa à noite, encontrou a mãe sentada com as mãos no regaço, sobre o tosco avental, já com a lida da casa despachada. Era sempre costume trocar de vestido e pôr um avental preto. Mas desta vez foi Annie quem lhe pôs a ceia, e a mãe continuou sentada em frente dela, de olhar vazio e lábios cerrados. Paul deu voltas à cabeça para arranjar novidades para lhe contar.

– Mãe, Miss Jordan apareceu lá hoje e disse que o meu esboço de uma mina a laborar estava muito bom...

Mas Mrs. Morel nem prestou atenção. Noite após noite, Paul esforçava-se por lhe contar coisas, mesmo que ela o não escutasse. Quase o enlouquecia vê-la neste estado. Até que:

– Que tem, mãe? – perguntou ele. Ela não ouviu.

– Que tem? – insistiu. – Mãe, o que é que tem?

– Sabes bem o que é que eu tenho – disse ela, irritada, virando-lhe as costas. O rapaz – tinha agora dezasseis anos – foi para a cama tristíssimo. Passou Outubro, Novembro e Dezembro sentindo-se rejeitado, um desgraçado. A mãe bem tentava, mas não conseguia reagir. Tudo o que fazia era pensar no filho morto, que tão cruelmente tinham deixado morrer.

Por fim, no dia 23 de Dezembro, Paul voltou para casa como um sonâmbulo, com os cinco xelins da gratificação de Natal no bolso. A mãe olhou para ele e o seu coração parou.

– O que se passa? – perguntou ela.

– Sinto-me mal, mãe! – respondeu ele. – Mr. Jordan deu-me cinco xelins de gratificação. – E estendeu-os à mãe, com a mão trémula. Ela pô-los em cima da mesa.

– A mãe não parece satisfeita – disse ele, como se ralhasse.

Mas Paul tremia violentamente.

– Onde é que te dói? – disse ela, desabotoando-lhe o sobretudo.

Era a velha pergunta.

– Sinto-me mal, mãe.

Ela despiu-o e meteu-o na cama. Era uma pneumonia, e grave, disse o médico.

– Ele podia não a ter apanhado, se eu o tivesse obrigado a ficar em casa e não o deixasse ir para Nottingham? – foi uma das primeiras coisas que perguntou.

– Podia não ser tão grave – disse o médico.

Mrs. Morel encontrou na resposta a sua própria condenação.

– Devia ter-me preocupado com os vivos, e não com os mortos – disse para consigo.

Paul esteve muito mal. A mãe passava as noites ao seu lado, pois não tinham dinheiro para uma enfermeira. O seu estado piorou e a fase crítica aproximava-se. Uma noite recobrou a consciência, num daqueles paroxismos fantasmagóricos e doentios de dissolução, em que todas as células do corpo parecem estilhaçar-se à pressão extrema da irritabilidade, e a consciência, como em estados de loucura, tem um derradeiro arrobo de vitalidade.

– Vou morrer, mãe! – gritou ele, soerguendo-se da almofada, lutando para respirar.

Ela ajudou-o, chorando baixinho:

– Oh, meu filho, meu filho!

Isto trouxe-o de volta. Apercebeu-se da presença da mãe. A sua força de vontade empertigou-se e prendeu-o à vida. Pousou a cabeça do peito dela e repousou no seu amor.

– De certa forma – disse a tia – foi até bom o Paul ter tido aquela doença no Natal. Foi isso que salvou a mãe.

Paul esteve de cama sete semanas. Levantou-se, finalmente, pálido e muito fraco. O pai tinha-lhe comprado um vaso de tulipas vermelhas e douradas. Era vê-las, a brilhar como fogo na janela, ao sol de Março, enquanto ele ficava sentado no sofá a conversar com a mãe. Tagarelavam os dois em perfeita intimidade. Mrs. Morel vivia agora para Paul.

William tinha sido profético. Mrs. Morel recebeu uma lembrança e uma carta de Lily pelo Natal. Da irmã de Mrs. Morel, uma carta pelo Ano Novo.

«Fui ontem a um baile. Encontrei lá pessoas adoráveis e diverti-me imenso», dizia a carta. «Não perdi uma dança... nem uma.»

Mrs. Morel nunca mais teve notícias dela.

Morel e a mulher viveram em harmonia durante algum tempo depois da morte do filho. Ele costumava quedar-se, como num êxtase, de olhos esbugalhados e olhar perdido. Depois, levantava-se de repente e ia para o Three Spots, voltando já no seu estado normal. Mas nunca mais foi passear para os lados de Shepstone, para não passar pelo escritório onde o filho trabalhara, e evitava passar pelo cemitério.


SEGUNDA PARTE


VII

AMOR DE ADOLESCENTES

NO OUTONO, Paul estivera várias vezes em Willey Farm e tinha-se tornado amigo dos dois rapazes mais novos. De início, Edgar, o mais velho, não se mostrava muito receptivo, e Miriam furtava-se também a qualquer aproximação. Tinha medo de ser desprezada pelos próprios irmãos. Rapariga de alma romântica, em toda a parte via heroínas de Walter Scott, cortejadas por cavaleiros de armadura ou chapéus emplumados. Ela própria era, na sua imaginação, uma princesa transformada em guardadora de porcos. E receava que aquele rapaz, parecido embora com um herói de Walter Scott, que pintava, falava francês, sabia álgebra e viajava todos os dias de comboio para Nottingham, visse nela simplesmente a guardadora de porcos e fosse incapaz de vislumbrar a princesa que nela se ocultava. Por isso, fugia dele.

A sua melhor amiga era a mãe. Ambas de olhos castanhos e dadas ao misticismo, eram daquelas mulheres que guardam a religião ciosamente no coração e para quem a religião é como o ar que respiram, como um véu de bruma que lhes filtra a vida. Assim, para Miriam, Cristo e Deus formavam uma só imagem sublime que ela amava com fervor, apaixonadamente, sempre que um imenso pôr do Sol incendiava o céu poente; sempre que os heróis e as heroínas – os Brian de Bois Gilberts, os Rob Roys e os Guy Mannerings; as Edites, as Lucys e as Rowenas – faziam restolhar as folhas matinais encharcadas de sol, ou se vinham sentar com ela nas alturas do seu quarto, sonhadores e solitários, quando a neve caía. Isto sim, era para ela viver. Quanto ao resto, cuidava da lida da casa, trabalho que não lhe seria pesado, se o chão de tijoleira bem polida não ficasse logo todo patinhado das pesadas botas dos irmãos; queria à viva força que o irmão mais novo, de quatro anos, a deixasse envolvê-lo e cobri-lo com o seu amor; ia à igreja, reverente, em pose contrita, e sofria angustiada perante a vulgaridade das outras meninas de coro e a banalidade da voz do cura; envolvia-se em lutas com os irmãos, que considerava uns brutamontes; e não tinha o pai em grande estima por não albergar no coração quaisquer ideais místicos, e ter como únicas ambições uma vida sem preocupações e a comida na mesa a tempo e horas.

Miriam detestava a sua condição de guardadora de porcos. Queria ser respeitada. Queria instruir-se, pensando que, se fosse capaz de ler, como Paul dizia que era, a Colomba ou a Voyage Autour de ma Chambre, o mundo a veria com outros olhos e teria por ela um profundo respeito. Como jamais poderia ser princesa por fortuna ou condição, ansiava possuir conhecimentos de que pudesse orgulhar-se; era diferente das outras pessoas e não queria ser confundida com a arraia-miúda. Ser instruída era a única marca de distinção a que pensava poder aspirar.

A sua beleza, misto de timidez, rebeldia e sensibilidade, não tinha para ela qualquer valor. Nem mesmo a sua alma, tão dada a arrebatamentos, lhe era suficiente. Precisava de algo mais que reforçasse o seu orgulho, pois sentia-se diferente das outras pessoas. Olhava Paul com vaga melancolia. De uma maneira geral, desprezava o sexo masculino. Neste caso, porém, ele era um exemplar diferente, ágil, leve, gracioso, que tanto podia mostrar-se gentil como insuportável, que era inteligente e culto, que já tinha passado por uma morte na família. O pouco que o rapaz sabia guindava-o aos píncaros a seus olhos. Contudo, esforçava-se por desprezá-lo por ele não conseguir ver nela a princesa, mas tão-só a guardadora de porcos.

Paul mal reparava nela.

Um dia, porém, adoeceu gravemente e ela sentiu que com isso ele iria enfraquecer. Se assim fosse, seria ela a mais forte e então poderia amá-lo. Se pudesse ser sua amante na fraqueza, cuidar dele, tê-lo na sua dependência, se ao menos pudesse tê-lo nos seus braços, com que força o amaria!

Assim que os céus desanuviaram e as ameixoeiras floriram, Paul partiu para Willey Farm na carroça do leiteiro. Mr. Leivers gritou pelo rapaz em tom amigável e conduziu o cavalo lentamente pela encosta acima, ao fresco da manhã, dando estalinhos com a língua para o incitar. No céu passavam nuvens brancas que se iam juntar para lá das colinas, agora visíveis à luz primaveril. As águas do Nethermere jaziam em baixo, muito azuis, em contraste com os prados ressequidos e os espinheiros.

Era uma viagem de quatro milhas e meia. Nas cercas, minúsculos botões em tons vivos e brilhantes desabrochavam em rosetas e os tordos pairavam e os melros piavam e gralhavam. Era um mundo novo, fascinante.

Miriam, espreitando da janela da cozinha, viu o cavalo transpor o grande portão branco do pátio, recortando-se contra o bosque de carvalhos desfolhados, em fundo. Nisto, um rapaz envergando um casacão muito grosso saltou para o chão e estendeu as mãos para segurar o chicote e a manta que o lavrador sadio e bem-humorado lhe entregava.

Miriam assomou-se à porta. Tinha quase dezasseis anos, era linda, de faces rosadas, ar grave e uns olhos subitamente dilatados, como em êxtase.

– Vejo – disse Paul virando-se envergonhado – que os teus narcisos estão quase a desabrochar. Não será cedo de mais? Não achas que está ainda muito frio?

– Frio? – repetiu Miriam, na sua voz terna e musical.

– O verde dos botões... – e Paul interrompeu-se, timidamente.

– Deixa-me levar-te a manta – disse Miriam, com exagerada amabilidade.

– Eu posso bem levá-la – respondeu ele, mostrando-se ofendido. Contudo, entregou-lha.

Entretanto, apareceu Mrs. Leivers.

– Deves estar cansado e cheio de frio – disse ela. – Dá-me o casaco. Que pesado.... não vais longe com ele.

Ajudou-o a despir o casacão, amabilidade a que o rapaz não estava habituado, e quase sucumbiu a tanto peso.

– Ena, mulher – disse o lavrador a rir, quando passou pela cozinha com as grandes bilhas de leite a baloiçar. – Tás aí que nem t’aguentas. – Ela ajeitou as almofadas no sofá para o rapaz se encostar.


CONTINUA

Paul, sempre atrás dele, contornou o balcão quadrangular. A sala onde estava ficava no segundo andar. Tinha um grande buraco no meio do chão, rodeado por um muro de balcões, e era por essa abertura que subiam e desciam os elevadores e passava a luz para o andar de baixo. No tecto, na mesma direcção, havia também um buraco oblongo, e, olhando para cima, podiam ver-se algumas máquinas para lá da cercadura de protecção do andar superior; e, logo por cima, uma clarabóia por onde entrava a luz para os três andares, tornando-se cada vez mais fraca à medida que se descia mais fundo, o que deixava o rés-do-chão às escuras e o primeiro andar na penumbra. A fábrica estava instalada no último andar, o armazém no segundo e a arrecadação no rés-do-chão. O lugar era velho e insalubre.

Paul foi levado para um canto muito escuro.

– Aqui é a secção Espiral – disse o empregado. – Tu fazes a Espiral com o Pappleworth. É ele o teu chefe, mas ainda não veio. Só chega lá para as oito e meia. Por isso, se quiseres, podes ir buscar as cartas a Mr. Melling, ali adiante.

E o jovem apontou para o tal velho do gabinete do fundo.

– Está bem – disse Paul.

– Está aqui uma escápula para pendurares o boné... e aqui tens os livros de registo da correspondência. Mr. Pappleworth já não deve demorar.

E o jovem, muito magro, afastou-se altaneiro, com grandes passadas desenvoltas, que ressoavam secas no soalho.

Passados um ou dois minutos, Paul parou à porta do gabinete envidraçado. O velho funcionário, com o seu bonezinho, olhou-o por cima dos óculos.

– Ora muito bom dia – disse, afável e enfático. – Queres as cartas para levares para a Espiral, não é, Thomas?

Paul não gostou que ele lhe chamasse Thomas, mas pegou nas cartas e voltou para o seu recanto escuro, onde o balcão dobrava em ângulo, onde acabava a prateleira das embalagens, e onde, mesmo ao canto, se abriam três portas. Paul sentou-se num banco alto e começou a ler as cartas, pelo menos, aquelas cuja letra era mais legível. Diziam o seguinte:

«Queira enviar-me por favor, com a máxima urgência, um par de meias de seda Espiral para senhora, sem pé, idênticas às que me enviou o ano passado... altura... da anca ao tornozelo... etc.»

Ou então: «O Major Chamberlain deseja renovar o anterior pedido de uma ligadura suspensória em seda, não elástica.»

Muitas destas cartas, algumas delas em francês ou norueguês, eram um quebra-cabeças para o rapaz, que aguardava ansioso, sentado no banco, a chegada do «chefe». Às oito e meia, sofreu um ataque de timidez quando as raparigas do andar de cima passaram por ele a correr.

Mr. Pappleworth apareceu por volta das vinte para as nove, a mastigar uma pastilha elástica de mentol, quando já todos estavam a trabalhar. Era um homem magro e pálido, de nariz vermelho e gestos rápidos e peremptórios, trajando com austera elegância. Devia andar pelos trinta e seis anos e havia nele algo de canino, garboso, brincalhão e astuto, afectuoso talvez, mas simultaneamente algo de ligeiramente desprezível.

– És o meu novo ajudante? – perguntou. Paul pôs-se de pé e disse que sim.

– Foste buscar as cartas?

Mr. Pappleworth continuou a mastigar a pastilha.

– Sim.

– Copiaste-as?

– Não.

– Então anda cá, vamos pôr-te operacional. Já trocaste de casaco?

– Não.

– O melhor é trazeres um casaco velho e guardá-lo aí.

As últimas palavras foram pronunciadas com a pastilha apertada de lado, entre os queixais. Desapareceu na penumbra, por detrás da enorme prateleira das embalagens, e reapareceu já sem casaco, com uma elegante camisa às riscas com os punhos dobrados, deixando a descoberto uns braços magros e peludos. Depois, enfiou o outro casaco. Paul reparou na magreza deste homem e em como as calças faziam pregas no traseiro. Pegou num banco, puxou-o para junto do rapaz e sentou-se.

– Senta-te – disse o homem. Paul sentou-se. Mr. Pappleworth estava muito próximo dele. Pegou nas cartas, tirou um livro comprido, de registos, da prateleira em frente, abriu-o, pegou numa caneta e disse:

– Agora, presta atenção... Vais copiar estas cartas para aqui.

Fungou duas vezes, deu uma mastigadela na pastilha, olhou demoradamente para uma carta, quedou-se pensativo e deu entrada da carta rapidamente, numa caligrafia bonita e floreada. Depois, olhou de relance para Paul.

– Estás a ver?

– Estou.

– Achas que consegues fazer o mesmo... e bem feito?

– Acho que sim.

– Então, está bem... vamos lá a ver.

Saltou para o chão. Paul pegou numa caneta. Mr. Pappleworth desapareceu. Paul gostava bastante de copiar cartas, mas escrevia devagar, laboriosamente, e muito mal. Ia ele na sua quarta carta, todo feliz e atarefado, quando Mr. Pappleworth voltou.

– Ora vejamos... que tal vai isso... já ’cabaste?

Debruçou-se sobre o ombro do rapaz, sem parar de mastigar e a cheirar a mentol.

– Diabos me levem, rapaz... Mas que belo escritor que tu me saíste! – exclamou ele, trocista. – Não te rales, quantas já fizeste? Só três! Eu tinh’até tido tempo de sobra pràs comer. Continua, miúdo, e numera-as... assim, tás a ver? Continua!

Paul não largava as cartas, enquanto Mr. Pappleworth tratava de outros assuntos. Nisto, soou um apito agudo mesmo junto ao ouvido dele, e o rapaz assustou-se. Mr. Pappleworth aproximou-se, tirou um tampão de dentro de um tubo e disse, numa voz inesperadamente agreste e autoritária:

– Sim!

Paul ouviu uma voz sumida, provavelmente de mulher, a sair pelo tubo. Ficou embasbacado, pois nunca tinha visto um tubo falante.

– Bem – disse Mr. Pappleworth, num tom agastado, falando para o tubo – nesse caso, o melhor é fazer algum do trabalho em atraso.

De novo a voz aguda da mulher se fez ouvir, com um timbre bonito, mas zangado.

– Não tenho tempo para estar aqui a ouvi-la tagarelar – disse Mr. Pappleworth, e em seguida tapou o tubo.

– Vá, miúdo, despacha-te – disse ele, suplicante, virando-se para Paul. – Era a Polly aos gritos, quer as encomendas. Não consegues andar um bocadinho mais depressa? Vá... sai daí.

Pegou no livro, para imenso desgosto de Paul, e começou ele mesmo a escrever. Fazia-o depressa e bem. Uma vez terminadas as cópias, pegou numas tiras compridas de papel amarelo, com cerca de sete centímetros de largura, e preencheu as encomendas para enviar às operárias.

– É melhor prestares atenção – disse ele a Paul, sem se interromper. Paul olhou para aqueles estranhos desenhos de pernas, coxas e tornozelos, cheios de traços e números, e algumas instruções, com que o chefe preenchia as tiras amarelas. Quando acabou, Mr. Pappleworth saltou do banco.

– Vem comigo – disse ele, e, de papéis amarelos a esvoaçar na mão, desapareceu por uma porta e desceu uma escada em direcção à cave, onde ardia uma lamparina de gás. Atravessaram a arrecadação húmida e fria, depois uma sala comprida e lúgubre com uma mesa enorme assente sobre cavaletes e entraram numa sala mais pequena e acolhedora, de tectos não muito altos, que tinha sido construída como anexo do edifício principal. Nesta sala estava uma mulher de pequena estatura, com uma blusa de sarja vermelha e cabelo preto apanhado ao alto num carrapito, em atitude expectante, de galarote.

– Cá tão elas – disse Pappleworth.

– Eu penso que será «Cá estão elas»! – exclamou Polly. – As raparigas estiveram aqui à espera quase meia hora. Pense só no tempo que se perdeu!

– Pense mas é em fazer o seu trabalho e falar menos – disse Mr. Pappleworth. – Podia ter despachado outras coisas.

– Sabe muito bem que despachámos tudo no sábado – gritou Polly, avançando para ele faiscante.

– Blá-blá-blá! – arremedou-a o homem. – Aqui tem o seu novo ajudante. Não dê cabo deste como deu do outro.

– Como nós demos do outro! – repetiu Polly. – Pois é, nós damos cabo de muita coisa, olá se damos. Também lhe digo que qualquer rapaz tinha de ficar estragado depois de estar ao pé de si.

– Vá, vá... agora é hora de trabalhar, não de conversar – disse Mr. Pappleworth num tom seco e severo.

– Também há pouco era – disse Polly, afastando-se de cabeça bem erguida. Tinha um corpo pequeno e escorreito, de quarenta anos.

Na dita sala havia duas máquinas redondas, espiraladas, em cima do poial da janela. Na sala ao lado, que comunicava com a primeira e era mais comprida, havia outras seis máquinas. Algumas raparigas dignamente vestidas e de aventais brancos conversavam umas com as outras, formando um pequeno grupo.

Não têm mais nada para fazer? – disse Mr. Pappleworth.

– Só esperar por si – disse uma delas, bem bonita, rindo com gosto.

– Bom, toca a trabalhar, toca a trabalhar – disse ele. – Anda, miúdo. Da próxima vez, já sabes o caminho.

Paul correu escada acima atrás do chefe. Mandaram-no conferir algumas facturas e fazer outras. Ele arrimou-se à secretária, esforçando-se por cumprir a tarefa na sua caligrafia execrável. Nisto, Mr. Jordan aproximou-se, vindo do gabinete envidraçado, e, para grande atrapalhação de Paul, veio pôr-se mesmo por detrás dele. Subitamente, um dedo gordo e vermelho espetou-se sobre o documento que ele estava a preencher.

– Mr. J. A. Bates, Esquire! – bradou uma voz irada, junto ao seu ouvido.

Paul olhou para o «Mr. J. A. Bates Esquire» escrito na sua letra tortuosa, e perguntou-se o que estaria mal agora.

– Não te ensinaram a fazer como deve ser, enquanto andavas na escola? Se se põe «Mr.», não se põe «Esquire»... um homem não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.

O rapaz, lamentando a sua prodigalidade no modo como esbanjava títulos, hesitou e, com dedos trémulos, apagou a palavra «Mr.». Mas logo Mr. Jordan lhe arrancou a factura das mãos.

– Faz outra! Ou vais mandar isto a um cavalheiro? – E rasgou a factura azul, irritadíssimo.

Paul recomeçou, com as orelhas a arder de vergonha, sob o olhar atento de Mr. Jordan.

– Não sei o que é que eles vos ensinam na escola. Devias escrever muito melhor do que isso. Hoje em dia, os miúdos não aprendem nada a não ser recitar poesia e tocar violino... Já viu a letra dele? – perguntou Mr. Jordan a Mr. Pappleworth.

– Já... é de primeira... não é? – respondeu Mr. Pappleworth com indiferença. – Mas ele vai aprender.

Mr. Jordan resmungou qualquer coisa desagradável. Paul percebeu que o patrão ladrava mais do que mordia. Na verdade, o pequeno fabricante era suficientemente cavalheiresco, apesar do seu mau inglês, para deixar os empregados à vontade e não se prender com ninharias. Mas tinha consciência de não ter aspecto de ser o dono e senhor de tudo aquilo, e via-se por isso forçado a desempenhar o seu papel de vilão, para repor as coisas nos seus devidos lugares.

– Ora vamos lá a ver, como é que te chamas? – perguntou Mr. Pappleworth ao rapaz.

– Paul Morel.

É curioso o que as crianças sofrem para pronunciarem os seus nomes.

– Com que então, Paul Morel! Muito bem, vá, Paul Morel, toca a acabar essa coisa, e depois...

Mr. Pappleworth sentou-se num banco e começou a escrever. Uma rapariga entrou por uma porta mesmo atrás dele, depositou em cima do balcão uns artigos de malha elástica acabados de passar a ferro e voltou a sair. Mr. Pappleworth pegou na joelheira azul claro, examinou-a, confrontou-a rapidamente com a nota de encomenda amarela e pô-la de parte. Ao lado estava uma «perna» rosada, cor de carne. Conferiu os vários artigos, preencheu algumas notas de encomenda e disse a Paul que o acompanhasse. Desta vez, saíram pela porta por onde a rapariga tinha entrado. Paul viu-se no cimo de um pequeno lanço de escadas, e em baixo viu uma sala com janelas em duas das paredes e, no extremo oposto, meia dúzia de raparigas sentadas, curvadas sobre si mesmas, a costurarem à luz das janelas e a cantarem em coro, «Duas Meninas Vestidas de Azul». Ao ouvirem a porta abrir-se, todas se voltaram e viram Mr. Pappleworth e Paul a olharem para elas do outro lado da sala. Pararam de cantar imediatamente.

– Não podem fazer menos barulho? – disse Mr. Pappleworth. – As pessoas hão-de pensar que temos a casa cheia de gatas.

Uma mulher corcunda, sentada num banco alto, voltou para Mr. Pappleworth a cara comprida e circunspecta, e disse com voz de contralto:

– Só se esses forem gatos.

Mr. Pappleworth em vão tentou causar efeito para impressionar Paul. Desceu as escadas até à sala de acabamentos e dirigiu-se à corcunda, uma tal Fanny. O seu corpo era tão pequeno, empoleirado no alto do banco, que a cabeça, com grandes bandós de cabelo castanho-claro, parecia excessivamente grande, tal como o rosto, pálido e grave. Trazia um vestido de caxemira verde-escuro, e, quando pousou o trabalho nervosamente, viu-se que os seus pulsos, cingidos por punhos estreitos, eram finos e achatados. Ele mostrou-lhe uma joelheira que tinha um defeito qualquer.

– Ora – disse ela – não precisava de vir atirar as culpas para cima de mim... a culpa não é minha – disse, subindo-lhe um rubor às faces.

– Eu não disse que a culpa era sua... e agora faça o que lhe mandei! – ripostou Mr. Pappleworth, secamente.

– Não diz que a culpa é minha, mas quer fazer parecer que é – gritou a corcunda, quase a chorar. Depois, arrancou a joelheira das mãos do «chefe», dizendo: – Está bem, eu faço isso, mas não precisa de vir com duas pedras na mão.

– Aqui está o seu novo ajudante – disse Mr. Pappleworth.

Fanny voltou-se e sorriu gentilmente para Paul.

– Oh! – disse ela.

– Pois é... agora vejam lá se o estragam com mimos.

– Se alguém o estragar, não somos nós – disse ela, indignada.

– Vamos embora, Paul – disse Mr. Pappleworth.

– Au revoi, Paul – disse uma das raparigas.

Foi uma risota. Paul saiu, corado até à alma, sem dizer palavra.

O dia nunca mais acabava. Durante toda a manhã, foram os operários a vir falar com Mr. Pappleworth, e Paul a escrever ou a aprender a preparar as embalagens para a tiragem do meio-dia. À uma da tarde, ou melhor, quando faltava um quarto para a uma, Mr. Pappleworth desapareceu, para apanhar o comboio: vivia nos arredores. À uma, Paul, sentindo-se perdido, levou o cesto do farnel para a arrecadação da cave, onde estava a tal mesa comprida sobre cavaletes, e comeu à pressa, completamente sozinho naquele espaço de penumbra e desolação. Depois, foi passear para a rua. A claridade e a liberdade que sentia nas ruas tornavam-no feliz e afoito. Mas, às duas horas, voltou para o seu canto na sala grande. Não tardou que passassem as raparigas, metendo-se com ele. Eram as de mais baixa condição, as que trabalhavam no andar de cima em tarefas mais pesadas, como o fabrico de fundas e os acabamentos dos membros artificiais. Paul ficou a aguardar a chegada de Mr. Pappleworth, sem saber o que fazer, sentando-se a rabiscar nas notas de encomenda amarelas. Mr. Pappleworth chegou às vinte para as três, sentou-se e pôs-se a tagarelar com Paul, tratando o rapaz como seu igual, até na idade.

De tarde nunca havia muito que fazer, a não ser que fosse perto do fim-de-semana e as contas tivessem de ser fechadas. Às cinco horas, todos os homens foram até à «masmorra» da mesa de cavaletes, onde tomaram chá e pão com manteiga em cima das tábuas nuas e imundas, conversando com a mesma avidez e grosseria com que tomavam a refeição. No entanto, lá em cima, o ambiente era sempre alegre e desanuviado. Certamente a cave e os cavaletes deixavam-nos transtornados.

Depois do chá, quando todos os bicos de gás estavam acesos, o trabalho fluía com mais rapidez. Era preciso despachar as encomendas para o correio da tarde. As meias chegavam lá acima ainda quentes, acabadinhas de passar, directamente das oficinas. Paul já tinha passado todas as facturas. Faltava-lhe fazer agora as embalagens e endereçá-las, e depois pesar as suas encomendas na balança. Por todo o lado se ouviam vozes a gritar pesagens, o tilintar de metais, o estalar nervoso dos cordéis, a corrida ao gabinete de Mr. Melling, para os selos. Finalmente, chegou o carteiro, sorridente e bem-disposto, como seu enorme saco. Depois a agitação abrandou, Paul pegou no cesto do farnel e correu para a estação, para apanhar o comboio das oito e vinte. O dia de trabalho era exactamente de doze horas.

A mãe esperava por ele, ansiosa. Paul tinha de ir para casa a pé desde Keston, pelo que não chegou a casa antes das nove e vinte; e tinha saído de casa antes das sete da manhã. Mrs. Morel preocupava-se com a saúde do filho, mas também ela já tivera de enfrentar tantas dificuldades, que esperava que os filhos tivessem agora a mesma genica. Teriam de suportar o que fosse preciso. Assim, Paul manteve-se na Jordan, embora durante a sua permanência nesse emprego a sua saúde sofresse com a falta de luz e de ar fresco, e as longas horas de trabalho.

Quando chegou, vinha pálido e cansado. A mãe olhou para ele, mas viu-o tão satisfeito que a sua preocupação desapareceu.

– Então, como é que foi? – perguntou ela.

– Foi tão engraçado, mãe – respondeu ele. – O trabalho não é nada pesado e eles foram muito bons para mim.

– E saíste-te bem?

– Claro... só dizem que a minha letra é péssima. Mas Mr. Pappleworth... o meu chefe... disse a Mr. Jordan que eu ia aprender. Estou na Espiral, mãe. Tem de ir lá ver. É tão bom...

Paul contou tudo à mãe, tudo o que tinha visto, pensado, todos os pormenores da experiência que vivera. A única coisa que escondeu dela foi o ter escrito «Mr. J. A. Bates Esquire». Isso, ele não queria que ela soubesse; sentia muita vergonha. Também não lhe relatou nada de mais desagradável que lhe tivessem dito, só as coisas boas, tentando fazê-la crer que estava feliz e era estimado, e que a vida lhe corria de feição... o que geralmente acontecia. Contou-lhe tudo, excepto as pequenas vergonhas ou ignomínias; jamais suportaria vê-la envergonhada ou vexada por sua causa.

Paul depressa aprendeu a gostar da Jordan. Mr. Pappleworth, que tinha um certo ar de frequentador de bares, tratava-o sempre com naturalidade, como se fossem amigos de longa data. Às vezes, o chefe da Espiral irritava-se, e então mastigava pastilhas elásticas sem parar. Mesmo assim, nunca era ofensivo, mas sim uma daquelas pessoas que se magoam mais a si próprias do que aos outros com a sua irritabilidade.

– Ainda não fizeste isso? – gritava ele. – Já vi que és um mês só com domingos.

E logo se punha de novo alegre e brincalhão, o que deixava Paul muito confuso.

– Amanhã trago a minha cadelinha Yorkshire terrier – disse ele a Paul, rejubilando.

– O que é isso de Yorkshire terrier?

– O quê? Pois tu não sabes o que é uma Yorkshire terrier?... Não saber o que é um Yorkshire! – Mr. Pappleworth estava pasmado.

– É um cãozinho de pêlo sedoso... em tons de ferrugem e prata oxidada?

– É isso mesmo, meu rapaz. A minha é uma pérola. Já teve cachorrinhos que me renderam cinco libras, e ela própria vale mais de sete libras: e não chega a pesar uma libra e meia...

No dia seguinte, a cadela veio com ele. Era dez réis de cão tremeliquento. Paul não lhe ligou nenhuma; a cadela mais parecia um trapo molhado sem esperança de secar. Nisto, um dos homens chamou-a e começou a dizer piadas grosseiras. Mas Mr. Pappleworth meneou a cabeça na direcção do rapaz e a conversa prosseguiu a meia-voz.

Mr. Jordan fez apenas mais uma excursão à Espiral, para inspeccionar o trabalho de Paul e o único reparo que lhe fez, ao ver o rapaz pousar a caneta no balcão, foi:

– Tens de pôr a caneta na orelha, se queres ser um caixeiro a sério. Vá, caneta na orelha!

Num outro dia, disse ao rapaz:

– Não endireitas mais esses ombros porquê? Ora vem cá. E levou-o ao gabinete envidraçado, onde lhe colocou uns suspensórios especiais para manterem os ombros direitos.

Mas Paul preferia a companhia das raparigas. Os homens pareciam-lhe grosseiros e pouco espertos. Simpatizava com todos eles, mas achava-os desinteressantes. Ao encontrar Paul a comer na cave, Polly, a supervisora baixinha e sirigaita do rés-do-chão, perguntou-lhe se ele não queria que ela lhe cozinhasse alguma coisa no seu fogareiro e, no dia seguinte, a mãe mandou-lhe uma refeição que podia ser aquecida. Ele levou-a à salinha limpa e aconchegada onde Polly trabalhava, e depressa adquiriu o hábito de almoçar com ela. Quando chegava ao trabalho, às oito da manhã, levava-lhe o cesto, e quando descia à uma hora, já o almoço estava pronto.

Paul era pálido, não muito alto, cabelo espesso e castanho, feições irregulares e uma boca rasgada, de lábios cheios. Ela parecia um passarinho, e ele até a tratava muitas vezes por pisco. Embora fosse geralmente muito calado, com ela passava horas sentado a conversar, a contar-lhe peripécias familiares. Todas as raparigas adoravam ouvi-lo; formavam muitas vezes um círculo à sua volta, enquanto ele discursava e ria, sentado num banco. Algumas consideravam-no um fulaninho curioso, tão sério e, no entanto, tão inteligente e bem-disposto, e sempre tão delicado no modo como as tratava. Todas gostavam dele e ele adorava-as. Com Polly era diferente; a essa, ele sentia que pertencia. Mas era Connie, com a sua farta cabeleira ruiva, a sua tez de flor de macieira, a voz sussurrada, e sempre tão distinta no seu vestido preto já gasto, que apelava ao seu lado romântico.

– Quando te sentas a enrolar a meada – disse ele – parece que estás a fiar na roca... é um quadro tão bonito. Faz-me lembrar a Elaine, dos Idílios do Rei. Se eu soubesse, desenhava-te. – Ela olhou para ele de relance, timidamente ruborizada. Mais tarde, havia um esboço de que ele muito gostava: Connie sentada num banquinho, em frente à roca, a longa crina ruiva flamejante sobre o vestido preto ruçado, e os lábios rubros selados e muito sérios, a passar o fio escarlate do novelo para a bobina.

Com Louie, bonita e atiradiça, que parecia estar sempre a provocá-lo com o menear das ancas, punha-se geralmente a brincar.

– O que estás a fazer?

– Porque queres saber? – respondeu ela, levantando a cabeça, atrevida.

– Porque acho que tu não te conheces.

– Porquê?

– Porque não tens ar de te conheceres.

– Então tenho cara de quê?

– Tens cara de quem está sempre a pensar nalguma coisa. Em que é que estavas a pensar?

Ela olhou-o pelo canto do olho e disse, com uma gargalhada:

– Isso era o que tu querias saber, não era?

– Sai daí – disse ele. – Vamos lá dar uma volta à tua meia.

E, depois, pegando na manivela da máquina, começou a rodá-la.

Mas ela empurrou-o.

– Isso vai ficar tudo mal – exclamou.

E ficaram os dois a olhar um para o outro, a rir às gargalhadas.

Emma era bastante feia, e não era nem nova nem condescendente. Sentia-se, porém, feliz por se mostrar condescendente com Paul. E ele não se importava.

– Como é que se metem as agulhas? – perguntou ele um dia.

– Sai daqui, não me maces.

– Mas eu devia saber como é que se metem as agulhas.

Ela continuou a coser à máquina, sem pestanejar.

– Há tantas coisas que devias saber – respondeu ela.

– Então ensina-me a colocar as agulhas na máquina.

– Ai, este rapaz sempre é muito maçador! ... Pronto, é assim que se faz...

Ele observou-a atentamente. Nisto, soou um apito, e a seguir Polly entrou e perguntou em voz bem audível:

– Paul, Mr. Pappleworth quer saber por quanto tempo vais ficar cá em baixo a brincar com as raparigas.

Paul correu pela escada acima, a gritar «Adeusinho!», e Emma endireitou-se na cadeira e explicou:

– Não fui eu que quis que ele estivesse a brincar com a máquina.

– Qu’é qu’andavas a fazer? – perguntou Mr. Pappleworth, quando o rapaz apareceu.

– Estava só a falar com a Emma, e a aprender a colocar as agulhas na máquina.

– O melhor é pegares no teu trabalho e mudares-te lá pra baixo.

– Mas aqui não havia nada de especial para fazer, pois não?

– Mal tu saíste daqui, o patrão veio à tua procura. Um dia sai-te caro! E então estes registos?

Paul meteu mãos à obra cheio de vontade.

Regra geral, quando as raparigas voltavam, às duas horas, ele ia ao andar de cima ter com Fanny, a corcunda, que trabalhava nos acabamentos.

Mr. Pappleworth só chegava às vinte para as três, e vinha encontrar muitas vezes o rapaz sentado ao lado de Fanny a conversar, a desenhar ou a cantar com as raparigas.

– Vem cá, Paul, meu querido – gritava a Fanny. – Até pensámos que hoje não vinhas cá acima. Pensávamos que ias ficar lá em baixo por não gostares da nossa companhia.

– Fui à cidade.

– Para quê, meu lindo?

– Para ver se encontrava uma cestinha de mirtilos para a minha mãe.

– E encontraste?

E, uma vez iniciada a conversa, nunca mais terminavam. Paul gostava muito de Fanny e a corcunda gostava muito dele. Ela tinha vinte e nove anos e sofrera muito. Ele gostava de ficar sentado ao lado dela, à janela, a olhar para a rua e a desenhar a bizarra floresta de chaminés e telhados antigos e bicudos que a vista alcançava. Depois dizia:

– Canta qualquer coisa, Fanny.

– Sabes que mais? Tu não queres que eu cante – dizia ela, manejando a agulha com destreza, com as mãos magras e nervosas. – Tu queres é fazer pouco de mim.

– Não quero nada! Mas é que eu disse à minha mãe que cantavas muito bem...

– Não sei o que é que a tua mãe ia pensar de mim, se me visse, Paul. Ia pensar que eu era um macaco encarrapitado num pau.

– Ela sabe como tu és, porque eu já lhe contei. E gosta de ti. Canta lá «Naquela Taberna...». Este desenho vai ficar uma maravilha.

E, passado um minuto de hesitação, Fanny começou a cantar. Tinha uma bela voz de contralto, e todas as raparigas cantaram em coro e muito afinadas. Paul não se sentia nada embaraçado por estar ali sentado no meio das mulheres.

Quando terminou, Fanny disse:

– Sei que estão a fazer troça de mim.

– Não sejas assim, Fanny! – exclamou uma das colegas.

Uma outra vez, falou-se no cabelo ruivo de Connie.

– Cá pra mim, acho o da Fanny mais bonito – disse Emma.

– Não precisas de fazer pouco de mim – disse Fanny, agastada.

– Mas ela tem o cabelo mesmo bonito, Paul.

– É uma cor especial – disse ele. – Aquela cor fria, como a terra, e mesmo assim brilhante... como um pântano.

– Santo Deus! – exclamou uma das raparigas, a rir.

– Estás a ver como só me criticam? – disse Fanny.

– E havias de o ver solto, Paul – gritou Emma, falando a sério. – É simplesmente uma beleza. Solta o cabelo pra ele ver, Fanny, pode ser que ele o queira pintar.

Fanny recusou-se, e, no entanto, era o que mais queria fazer.

– Então solto-lho eu – disse o rapaz.

– Bem, já que insistes – disse Fanny.

Paul tirou os ganchos do carrapito com todo o cuidado, e a longa cabeleira, num tom castanho-escuro uniforme, caiu sobre a corcunda.

– Que maravilha! – exclamou ele.

As raparigas observavam-no. Reinava o silêncio. O jovem soltou-lhe mais o cabelo.

– É esplêndido – disse, sentindo-lhe o perfume. – Aposto que vale muitas libras.

– Deixo-to quando morrer – disse Fanny, em tom de brincadeira.

– Pareces-te com qualquer de nós, sentada a secar o cabelo – disse uma das raparigas à colega corcunda e pernalta.

A pobre da Fanny era morbidamente susceptível, em tudo adivinhando insultos, ao passo que Polly era directa e factual. As duas secções estavam permanentemente em guerra, e Paul vinha constantemente encontrar Fanny lavada em lágrimas. Fanny contava-lhe todas as suas mágoas, e ele, depois, ia defendê-la junto de Polly.

A filha de Mr. Jordan era pintora. Um dos seus modelos era Connie, que lhe falou de Paul. Primeiro, Miss Jordan pediu para ver alguns dos seus desenhos, e, a seguir, veio ela própria falar com ele. Era uma mulher fria e impessoal, mas mostrou algum interesse pelo rapaz.

E assim foi correndo o tempo, em harmonia. A fábrica tinha um ambiente agradável. Ninguém era empurrado ou pressionado. Paul até gostava quando o trabalho acelerava perto da hora do correio e todos se entreajudavam. Gostava de ver os colegas em acção. O homem era o trabalho e o trabalho era o homem, unidos num só. Com as raparigas era diferente. A verdadeira mulher parecia nunca estar ali presente no trabalho – era como se estivesse de fora, à espera.

Da janela do comboio, quando à noite regressava a casa, observava as luzes da cidade povoando as colinas e fundindo-se nos vales com um clarão ardente. E Paul sentia-se rico de experiência e felicidade. Mais adiante, havia uma mancha de luz em Bulwell, como miríades de pétalas caídas das estrelas sobre a terra; e, mais além, o jorro incandescente das fornalhas, projectando nas nuvens o seu sopro abrasador.

Chegado a Keston, ainda tinha de andar mais de duas milhas até casa, subindo duas colinas mais longas e descendo outras duas mais curtas. Sentindo-se muitas vezes cansado, ia contando os candeeiros à medida que subia, para ver quantos ainda faltavam. E, do alto da colina, nas noites de breu, via as aldeias espalhadas a toda a volta, a cinco ou seis milhas de distância, enxameando a noite de vida e luz, quase como um céu aberto a seus pés. Marlpool e Heanor semeavam de cintilações a escuridão mais longínqua. Uma vez por outra, o negro vale que se interpunha lá em baixo, era riscado, violado por um interminável comboio que rolava célere para sul, em direcção a Londres, ou rumo ao norte, para a Escócia. Os comboios troavam como projécteis na escuridão, fumegantes e acesos, fazendo retinir o vale à sua passagem. Mas logo desapareciam, e as luzes das cidades e das aldeias cintilavam outra vez, mergulhadas no silêncio.

Chegava, por fim, à esquina da casa, virada para o outro lado da noite. O freixo parecia agora um amigo. A mãe vibrava de alegria vendo-o chegar. Ele depositava os oito xelins orgulhosamente sobre a mesa.

– Fazem-lhe jeito, mãe? – perguntava, ansioso.

– Não vai sobejar quase nada depois de descontar o bilhete, as refeições e tudo o mais.

Em seguida, punha-a ao corrente dos acontecimentos do dia. A história da sua vida, como nas Mil e Uma Noites, mas muito mais monótona, era contada à mãe noite após noite. E ela escutava e era quase como se a vida fosse dela.


VI

UMA MORTE NA FAMÍLIA

ARTHUR MOREL ia crescendo. Era um rapaz vivo, descuidado e impulsivo, muito parecido com o pai. Tinha horror aos estudos, resmungava sempre que tinha de trabalhar e escapava-se o mais depressa que podia, para voltar para a brincadeira.

Fisicamente, continuava a ser o menino bonito da família, bem constituído, gracioso, cheio de vida. O cabelo castanho-escuro, a frescura da tez e os olhos raros, de um azul profundo e sombreados de longas pestanas, a par dos seus modos generosos e temperamento fogoso, faziam dele o preferido. Mas, à medida que crescia, o temperamento ia-se tornando instável. Tinha acessos de fúria por tudo e por nada, e mostrava-se insuportavelmente violento e irritável.

A mãe, de quem tanto gostava, já começava a perder a paciência. Arthur só pensava em si próprio. Detestava tudo o que se interpusesse entre si e o seu prazer, mesmo quando esse «tudo» era a mãe. Mas, quando se metia em apuros, era com ela que tinha intermináveis desabafos.

– Meu Deus, rapaz – disse ela, quando ele se veio queixar de um professor que, segundo ele, o tomara de ponta – se não te agrada a situação, tens de a fazer mudar, e se não podes mudar nada, tens de te adaptar.

Quanto ao pai, que ele amara desmedidamente e que o idolatrava, acabou por detestá-lo. Com a idade, Morel transformou-se lentamente numa ruína viva. O seu corpo, em tempos belo nas formas e na agilidade, mirrou com os anos, não parecendo ter amadurecido, mas, pelo contrário, ter-se tornado insignificante e desprezível, emanando baixeza e mesquinhez. E sempre que este homem de meia-idade e olhar perverso o injuriava ou o tratava com prepotência, Arthur ficava furioso. Ainda por cima, os modos de Morel eram cada vez mais grosseiros, e os seus hábitos quase repugnantes. Na fase de crescimento dos filhos e durante o período crítico da adolescência, o pai surgia-lhes aos olhos da alma como um ser feio e irritante. Em casa, os seus modos eram idênticos aos que usava com os outros mineiros no fundo da mina.

– Monstro nojento! – gritava Arthur, saltando da cadeira e saindo de casa, quando o pai o enojava.

E Morel fazia ainda pior, por saber que as crianças o detestavam. Parecia sentir prazer em afrontá-las, a ponto de quase as enlouquecer, quando, aos catorze ou quinze anos, atravessavam a fase de extrema sensibilidade e irritabilidade. Assim, Arthur, que cresceu quando o pai já se encontrava em declínio e a caminho da velhice, odiava-o acima de tudo.

Por vezes, o pai parecia pressentir todo esse ódio e desprezo que os filhos tinham por ele.

– Não há homem que se sacrifique mais pela família – bordava então. – Faz por eles tudo o que pode, e tratam-no como um cão. Mas eu tenho força para aguentar, estão a ouvir!

Não fora o tom ameaçador e o facto de não fazer por eles tanto quanto pensava, e teriam até sentido pena. Nesta altura, a guerra instalava-se quase sempre entre pai e filhos, com o primeiro persistindo nos seus modos grosseiros só para afirmar a sua autoridade. Os filhos detestavam-no.

Por fim, Arthur já andava tão exaltado e irritado que, quando ganhou uma bolsa para ir para a escola secundária de Nottingham, a mãe achou por bem deixá-lo ficar a viver na cidade com uma das suas irmãs, vindo apenas a casa aos fins-de-semana.

Annie ainda era professora estagiária na escola primária, onde ganhava quatro xelins por semana. Mas em breve seriam quinze, uma vez que passara o exame final, o que traria à família tranquilidade financeira.

Mrs. Morel era muito agarrada a Paul. Ele era calado e não excessivamente inteligente, mas continuava fiel à pintura e à mãe. Tudo o que fazia era para ela. E ela esperava pela sua chegada à noitinha, para desabafar com ele todos os seus pensamentos, tudo o que lhe acontecera durante o dia. E ele ouvia-a, sentado e atento. Era o partilhar de duas vidas.

William estava noivo da tal morena, e tinha-lhe comprado um anel de noivado que custara oito guinéus. Os irmãos ficaram sem fôlego perante soma tão fabulosa.

– Oito guinéus! – disse Morel. – Bem parvo é!... Ficava-lhe melhor se me tivesse dado antes algum a mim.

– Dar-te algum, a ti! – exclamou Mrs. Morel. – Porque havia ele de te dar algum?

Mrs. Morel lembrou-se de que o marido não lhe tinha comprado anel de noivado e, a seu ver, antes ser como o William, que não era mesquinho, embora pudesse ser parvo. Mas agora o jovem só falava nos bailes a que tinha ido com a noiva e nos vestidos deslumbrantes que ela usava; ou então contava à mãe, rejubilante, como tinham os dois ido ao teatro em grande estilo.

William queria trazer a namorada para os pais conhecerem, e Mrs. Morel disse-lhe que a trouxesse no Natal. Desta vez, William chegou acompanhado de uma senhora, mas sem presentes. Mrs. Morel tinha preparado a ceia. Ao ouvir passos, levantou-se e foi à porta. William entrou.

– Olá, mãe! – deu-lhe um beijo apressado, chegou-se para o lado e apresentou-lhe uma rapariga alta e bonita, vestida com um saia-e-casaco preto e branco aos quadradinhos e uma estola de peles.

– Cá está a Ciganita!

Miss Western estendeu a mão e rasgou um sorriso de muitos dentes.

– Oh, como está, Mrs. Morel! – exclamou.

– Devem estar com fome – disse Mrs. Morel.

– Não, não estamos. Jantámos no comboio... Tens as minhas luvas, Fofinho?

William Morel, alto e ossudo, olhou para ela acto contínuo.

– Como é que havia de tê-las? – disse ele.

– Então perdia-as. Não te zangues comigo...

Viu-se que ele tinha ficado aborrecido, mas não disse nada. Ela relanceou o olhar pela cozinha. Achou-a pequena e bizarra, com o ramo de azevinho pendurado na parede e as sempre-vivas por detrás das fotografias, as cadeiras de madeira e a mesinha de jogo. Nessa altura, entrou Morel.

– Olá, pai!

– Olá, meu filho... Mas que surpresa!

Apertaram as mãos, e William apresentou-lhe a senhora. Ela reeditou o sorriso, mostrando os dentes.

– Como está, Mr. Morel. – Morel inclinou-se respeitosamente.

– Tou bem, obrigado, e espero que também esteja... Seja muito bem-vinda.

– Ah, obrigada – respondeu ela, bastante divertida.

– Há-de querer ir para cima – disse Mrs. Morel.

– Se não se importa... mas só se não a incomodar.

– Não incomoda nada... A Annie vai consigo... Walter, leva este baú para cima.

– E não leves uma hora a aperaltar-te – disse William para a noiva.

Annie pegou num candelabro de latão e, muda de vergonha, subiu à frente da jovem até ao quarto principal, que Mr. e Mrs. Morel lhe tinham cedido. Era também pequeno e frio, iluminado apenas pelas velas. As mulheres dos mineiros só acendiam as lareiras nos quartos em caso de doença muito grave.

– Quer que desaperte as correias do baú?

– Ah, muito obrigada!

Annie estava a fazer o papel de criada. Em seguida voltou para baixo para ir buscar água quente.

– Ela deve estar muito cansada, mãe – disse William. – É uma viagem muito violenta, e na correria em que andámos...

– Queres que lhe leve alguma coisa? – perguntou Mrs. Morel.

– Não, não... Ela está bem.

Mas havia um certo gelo no ar. Passada mais de meia hora, Miss Western desceu, envergando um vestido em tons de púrpura, demasiado fino para a cozinha do mineiro.

– Tinha-te dito que não precisavas de trocar de roupa – disse William.

– Deixa lá, Fofinho!... – E, mantendo o sorriso adocicado, voltou-se para Mrs. Morel: – Não acha que ele está sempre a resmungar, Mrs. Morel?

– Ah, está? – disse Mrs. Morel. – Isso é muito feio.

– E é mesmo!

– Deve estar com frio – disse a mãe. – Não quer vir para a la-reira? – Morel saiu imediatamente da cadeira de braços.

– Venha pr’àqui – exclamou ele. – Venha pr’àqui.

– Não, pai... Não saia da sua cadeira... senta-te no sofá, Ciganita – disse William.

– Não senhor! – insistiu Morel. – Esta cadeira é mais quente. Venha sentar-se aqui, Miss Wesson.

– Muitíssimo obrigada – disse a rapariga, sentando-se na cadeira de braços do mineiro, ou seja, o lugar de honra. Teve uma tremura ao sentir o calor da cozinha invadi-la.

– Vai buscar-me um lenço, Fofinho! – disse ela, fazendo beicinho e dirigindo-se-lhe no tom íntimo de quando estavam sozinhos, o que fez os restantes membros da família sentirem-se como intrusos. Era evidente que a jovem não os considerava como pessoas: para ela não passavam de criaturas. William estremeceu.

Se aquela casa fosse em Streatham, Miss Western seria a senhora, condescendendo a conviver com a camada inferior. Para ela, estas pessoas eram no mínimo grotescas – numa palavra, da classe trabalhadora. Como poderia ela adaptar-se?

– Eu vou – disse Annie.

Miss Western ignorou-a, como teria feito com uma criada, e só quando ela voltou para baixo com o lenço disse então, com afabilidade:

– Oh, muito obrigada.

Depois, desatou a falar: do jantar no comboio, que não tinha prestado para nada, de Londres, dos bailes. Via-se que estava muito nervosa e era o medo que a fazia falar. Morel, sentado a fumar um tabaco muito forte, observava-a enquanto lançava baforadas de fumo para o ar e ouvia com atenção a sua petulante algaraviada londrina. Mrs. Morel, ostentando a sua melhor blusa de seda preta, ia-lhe respondendo com calma e poucas palavras. Os outros filhos estavam sentados, em admirativo silêncio. Miss Western era a princesa. Tinham ido buscar tudo o que havia de melhor para a servir: as melhores chávenas, as melhores colheres, a melhor toalha, o melhor bule. As crianças achavam que ela devia estar a apreciar muito o acolhimento. Mas ela sentia-se mal, por não entender as pessoas, por não saber como tratá-las. William ia dizendo piadas, sentindo-se ligeiramente comprometido.

Por volta das dez horas, disse-lhe:

– Não estás cansada, Ciganita?

– Muito, Fofinho – respondeu ela, com voz melada e inclinando a cabeça ligeiramente para o lado.

– Acendo a vela, mãe? – disse ele.

– À vontade – respondeu a mãe.

Miss Western levantou-se e estendeu a mão a Mrs. Morel.

– Boa noite, Mrs. Morel – disse ela.

Paul, sentado em frente da caldeira, deixou jorrar a água da torneira para dentro de uma garrafa de cerveja em grés. Annie abafou a garrafa numa velha camisola da mina, e deu à mãe um beijo de boas-noites. Com a casa cheia, ia ter de dormir com a senhora.

– Espera um bocadinho – disse Mrs. Morel à filha. Annie sentou-se com a botija ao colo. Miss Western despediu-se de todos com um aperto de mão, para grande atrapalhação dos presentes, e saiu, precedida por William. Passados cinco minutos, ele voltou para baixo. Sentia o coração oprimido, sem saber porquê. Falou muito pouco até todos se terem ido deitar, excepto ele e a mãe. Depois, foi pôr-se de pé frente à lareira, de pernas afastadas como costumava fazer noutros tempos, e disse, titubeante:

– Então, mãe?

– Então o quê, meu filho?

A mãe sentou-se na cadeira de baloiço. Sentia-se de certo modo ferida e humilhada por causa dele.

– Gosta dela?

– Gosto – tardou a resposta.

– Ela ainda está pouco à vontade, mãe... não está acostumada a tudo isto. É muito diferente da casa da tia dela, sabe.

– Claro que é, meu filho... Deve ser difícil para ela.

– Pois é. – E, de repente, a expressão carregou-se-lhe. – Se ao menos ela não pusesse aqueles benditos ares!

– É só a primeira reacção, meu filho. Aquilo passa-lhe.

– Tem razão, mãe – respondeu ele, gratificado. Mas o olhar continuava triste. – Sabe, ela não é como a mãe... não é compenetrada... e não se cansa muito a pensar.

– Ela é muito nova, meu filho.

– É isso!... E não teve sorte nenhuma. A mãe morreu quando ela era criança, e desde então vive com uma tia que ela já não consegue aturar. E o pai era um patife... Faltou-lhe o amor.

– Sério?!... Bem, nesse caso tens de a compensar de tudo isso.

– E perdoar-lhe muitas coisas.

– Que coisas é que tens de lhe perdoar, meu filho?

– Sei lá... quando ela se mostra superficial, por exemplo... É preciso lembrarmo-nos de que ela nunca teve ninguém que fizesse desabrochar o seu lado mais profundo... E ela gosta tremendamente de mim.

– Isso qualquer pessoa pode ver.

– Mas, sabe uma coisa, mãe... ela... ela é diferente de nós. As pessoas como ela, aquelas com quem se dá... não parecem ter os mesmos princípios que nós.

– Não deves fazer juízos precipitados – disse Mrs. Morel. Mas ele parecia contrafeito.

De manhã, contudo, levantou-se e pôs-se a cantar pela casa toda.

– Olá! – chamou ele, saudando-a do fundo das escadas, onde estava sentado. – Já te estás a levantar?

– Já – respondeu ela lá de cima, com voz sumida.

– Feliz Natal! – gritou ele.

No quarto, ouviu-se o riso dela, bonito e musical. Mas ela só desceu meia hora depois.

– Ela estava mesmo a levantar-se, quando disse? – perguntou William a Annie.

– Estava, sim – respondeu Annie.

William aguardou uns instantes e voltou para as escadas.

– Feliz Ano Novo! – gritou ele.

– Obrigada, Fofinho do meu coração! – disse uma voz risonha, de muito longe.

– Despacha-te! – implorou ele.

Tinha passado quase uma hora, e ele à espera dela. Morel, que se levantava sempre antes das seis, olhou para o relógio.

– Bem, já vi qu’é das que s’atrasam! – exclamou.

Já todos tinham tomado o pequeno-almoço, excepto William, que se foi postar ao fundo das escadas.

– Será que vou ter de mandar aí para cima um ovo de Páscoa? – gritou ele, já zangado. Ela limitou-se a rir. A família esperava algo de mágico depois de tão longa preparação. Finalmente, ela apareceu, com uma saia e uma blusa que lhe ficavam muito bem.

– Levaste mesmo todo este tempo para te vestires? – perguntou ele.

– Oh, Fofinho!... Isso não é pergunta que se faça, pois não, Mrs. Morel?

A princípio, ela representou o papel da grande dama. Quando entrou na capela ao lado de William, ele de fraque e chapéu de seda, e ela de estola de peles e saia-casaco dos melhores costureiros de Londres, Paul, Arthur e Annie esperavam que todos se curvassem até ao chão, em êxtase. E Morel, observando o parzinho galante do fundo da rua, com o seu fato domingueiro, sentia-se o pai do príncipe e da princesa.

Porém, a dama não era assim tão grande. Trabalhava desde há um ano como uma espécie de secretária, ou escriturária, num escritório de Londres.

Mas enquanto esteve com os Morels parecia uma rainha: sentava-se à mesa e deixava que Annie e Paul a servissem, como se fossem seus criados. Tratava Mrs. Morel com alguma petulância e Morel com paternalismo. Mas, passados um ou dois dias, a sua atitude começou a mudar.

William pedia sempre a Paul ou Annie que os acompanhassem nos passeios que davam. Era muito mais divertido. E Paul sentia real admiração pela Cigana, uma admiração genuína. Na verdade, a mãe não podia perdoar ao filho a adoração que mostrava pela jovem.

No segundo dia, quando Lily disse:

– Annie, sabes por acaso onde terei deixado o meu regalo? William respondeu:

– Sabes muito bem que está no teu quarto. Para que perguntas à Annie?

E Lily lá foi ao quarto, amuada, de lábios crispados. O rapaz já não suportava vê-la fazer da irmã uma criada.

Na terceira noite, William e Lily foram sentar-se na sala, às escuras, frente à lareira. Quando era um quarto para as onze, ouviram Mrs. Morel a abafar o borralho. William veio para a cozinha, seguido da namorada.

– Já é assim tão tarde, mãe? – disse ele. A mãe tinha passado a noite sozinha.

– Não quer dizer que seja tarde, meu filho... mas é tarde para eu continuar a pé.

– Então, porque não se vai deitar? – perguntou ele.

– E deixar os dois aqui sozinhos?... Não, meu filho, isso eu não faço.

– A mãe não tem confiança em nós?

– Tenha ou não tenha, é a mesma coisa... Podem ficar aqui até às onze horas, se quiserem, e eu leio mais um bocadinho.

– Vai deitar-te, Ciganita – disse William. – Não podemos fazer esperar a minha mãe.

– A Annie deixou a vela acesa, Lily – disse Mrs. Morel. – Acho que a luz será suficiente.

– Claro, obrigada. Boa noite, Mrs. Morel.

William acompanhou a namorada até ao fundo das escadas, deu-lhe um beijo e ela foi para o quarto. Ele voltou para a cozinha.

– Não tem confiança em nós, mãe? – insistiu ele, todo ofendido.

– Meu filho, já te disse que eu não vou deixar dois pombinhos como vocês sozinhos cá em baixo, com toda a gente a dormir.

E o filho não teve outro remédio senão contentar-se com a resposta. Deu um beijo à mãe e foi deitar-se.

Na Páscoa, chegou sozinho. Depois, falou longamente com a mãe sobre a namorada.

– Sabe, mãe... quando estou longe dela, nem penso nela... se não voltasse a vê-la, era a mesma coisa. Mas, quando estou com ela, à noite, gosto muito dela.

– É um amor muito estranho para acabar em casamento – disse Mrs. Morel. – Se é só isso que ela representa para ti!

– É engraçado! – exclamou William, entre o preocupado e o perplexo. – E, no entanto... Há demasiadas coisas entre nós, para eu desistir dela agora.

– Tu lá sabes – disse Mrs. Morel. – Mas, se é como dizes, eu não lhe chamaria amor... pelo menos, não parece.

– Não sei, mãe. Ela é órfã, e...

Acabaram por não chegar a uma conclusão. Ele parecia confuso e aborrecido. Ela era muito reservada. Ele gastava todas as suas energias e dinheiro com esta rapariga. Quando veio a casa, mal tinha dinheiro para levar a mãe a Nottingham.

O salário de Paul, para grande alegria sua, tinha sido aumentado no Natal para dez xelins. O rapaz continuava muito satisfeito najordan, mas a sua saúde começou a ressentir-se do pesado horário de trabalho e das condições de isolamento. A mãe, para quem ele era cada vez mais importante, pensou em como poderia ajudá-lo.

A tarde de folga dele era à segunda-feira. Numa segunda-feira, em Maio, quando estavam os dois sozinhos a tomar o pequeno-almoço, ela disse:

– Acho que vamos ter um lindo dia.

Ele olhou-a surpreendido. Alguma coisa ela tinha para lhe dizer.

– Sabias que Mr. Leivers foi morar para uma quinta nova? Pois bem, ele convidou-me a semana passada para ir fazer uma visita a Mrs. Leivers, e eu prometi-lhe que te levava lá hoje, se estivesse bom tempo. Então, vamos?

– Oh, mãezinha, mas isso é óptimo! – exclamou Paul. – Vamos esta tarde, não é?

– Se não estiveres muito cansado... olha que é uma grande caminhada.

– A que distância fica?

– Quatro milhas.

– Ora... não sou eu que me canso por fazer quatro milhas... é a mãe. Acha que consegue?

– Claro que consigo.

– Que bom!... Que bom! – exclamou ele. – Vou voltar a correr para casa. E a quinta é bonita?

– Ele diz que sim... Tu logo dirás.

– Eu não conheço Mrs. Leivers, mãe. Conhece-a?

– Então não conheces... uma mulherzinha macambúzia, com uns grandes olhos castanhos, que se costumava sentar à nossa frente na capela.

– Não me lembro.

– Julgava que pelo menos te lembrasses do chapéu, mesmo que não te lembrasses de mais nada... usa sempre o mesmo chapéu desde há seis anos, desde que a conheço: um quico preto com um farrapo de renda prantado no cucuruto, às três pancadas. Quando a via com o chapéu no alto da cabeça, domingo atrás de domingo, sempre com o mesmo chapéu, só me apetecia ir lá tirar-lho. E o marido é tão elegante e bem-parecido.

– Se calhar, era pobre – alvitrou Paul.

– E que fosse! Sei que não estava pior do que eu. Só que tinha a mania de não comprar nada novo, dava-lhe para ali.

– E ao menos é simpática?

– É. Eu sempre gostei dela... mas ela não consegue andar à altura do homem que tem... Só o orgulho consegue uma coisa dessas, nada mais.

– Porquê?

– Ora bem, ela é uma mulher pequenina, delicada, fina, com uns grandes olhos castanhos... cheios de sentimento. E eu sei que tem passado muito com sete filhos e o pouco que o Alfred Leivers lhe dá. Acho que ele não gosta muito de trabalhos pesados... e daí, talvez... Mas assim, como a vida lhe correu mal e chegou ao estado a que chegou, é orgulhosa de mais para competir com as outras mulheres e agarra-se a um trapo antigo... mas é uma mulher bonita.

– E orgulhosa, mãe?

– Não... Com as outras pessoas, não. Mas consigo mesma não podia ser mais. A pobreza e a vida triste que leva corroem-lhe a alma e ela agarra-se àquela chapeleta preta, para troçar da sua própria pobreza... ou do marido... Só Deus sabe... Mas tu vais gostar dela. Eu gosto dela.

– Bem – disse Paul –, se vamos visitá-la à quinta, não vai estar de chapéu.

– Esperemos que não – disse Mrs. Morel. – É um escândalo e uma vergonha sobrecarregar um corpo frágil como o dela daquela maneira, mas também não precisava de andar naquela figura, por despeito. Faço ideia de como ele se deve sentir!...

Paul saiu à pressa para a estação, rejubilante. Em Derby Road, havia uma cerejeira a cintilar. O velho muro de tijolo junto ao pátio do Statutes brilhava em tons de escarlate, incandescentes, e a Primavera era uma labareda verde. A estrada íngreme estendia-se esplêndida, coberta da fria poeira matinal em alternâncias de sol e sombra, absolutamente estática. As árvores, orgulhosas, deixavam pender abaulados os ombros verdes e possantes. Durante toda a manhã, de dentro do armazém, o rapaz foi brindado com um quadro de Primavera.

Quando voltou para casa, a mãe estava excitadíssima.

– Sempre vamos? – perguntou ele.

– É só o tempo de me arranjar – respondeu ela.

– Conseguiu acabar o trabalho?

– Consegui.

Paul sentou-se à mesa, à espera do almoço. Ela trouxe-lhe a frigideira.

– Para que se foi meter a fazer sonhos de ruibarbo se tinha tão pouco tempo?

– Porque me apeteceu – disse a mãe. – E estou pronta quando tu estiveres.

Tinha feito os sonhos porque, durante a semana, o filho só vinha almoçar a casa neste dia, e gostava muito de sonhos.

– Não senhora... saia daqui. Quem faz isso sou eu.

Paul levantou-se e tentou tirar-lhe a frigideira da mão.

– Nem pensar nisso! – disse ela, agitando o garfo. – Temos muito tempo.

Ele voltou para a mesa, cabisbaixo, e ela continuou com os cozinhados.

– São mesmo coisas de mulher – disse ele. – Às voltas com a frigideira, quando devia estar a vestir-se para sair.

– São é mesmo coisas de rapazes, julgam que já sabem tudo – disse ela, colocando a sobremesa diante dele.

– E esteve a apanhar esse calor todo na cara – disse o filho. – Já sabe que quando lá chegar, vai ter a cara vermelha como o sol nascente.

– Se tiver, não sou eu que te vou pedir para olhares para mim.

– E, mesmo que pedisse, eu não olhava – respondeu ele.

– Ingrato!

– Afogueada!

Ela fungou e empertigou-se daquela maneira a que ele chamava «esticar-se à tartaruga».

– Já se lavou? – perguntou ele.

– Já.

– Pois olhe, não parece, tem o nariz enfarruscado, como de costume.

Ela foi ver-se ao espelho.

– Que maçada! – exclamou.

Ele levantou-se.

– Vá-se vestir, que eu lavo a loiça – disse Paul.

Ela obedeceu. Ele lavou as panelas, endireitou as costas e pegou nas botas dela. Estavam muito limpas. Mrs. Morel era daquelas pessoas naturalmente dotadas que são capazes de andar na lama sem sujarem os sapatos. Mas Paul quis limpar-lhas, mesmo assim. Eram botas de criança, das de oito xelins o par. No entanto, para ele, eram as botas mais chiques do mundo, e limpava-as com tanta reverência como se fossem flores.

Subitamente, ela apareceu à porta, muito tímida. Trazia uma blusa nova. Paul deu um salto em frente.

– Ena pá! – exclamou ele. – Que espalhafato!

Ela inspirou ligeiramente, altiva, de cabeça bem erguida.

– Não é espalhafato nenhum! – retorquiu ela. – É até bem recatada.

Mrs. Morel deu um passo em frente e o filho mirou-a de todos os lados.

– Então – perguntou ela, envergonhada, mas mostrando-se segura e arrogante. – Gostas?

– É um espanto! Vou gostar de levar uma mulher tão bonita a passear!

Contornou-a e mirou-a pelas costas.

– Muito bem! – disse ele. – Se fosse na rua atrás de si, havia de dizer: – Mas que bem vestida que aquela senhorinha vai.

Ela fungou de satisfação, como era seu hábito, mas a fazer-se desentendida.

– Sabes – disse ela –, só me custou três xelins. Por este preço não a podia comprar feita, pois não?

– Acho que não – respondeu o filho.

– E o tecido é de muito boa qualidade.

– Tremendamente bonita! – disse ele.

A blusa era branca, com raminhos púrpura e pretos.

– Demasiado jovem para a minha idade, não achas?

– Essa agora, demasiado jovem para si? – exclamou Paul, agastado. – Já agora, porque não compra uma peruca branca para pôr no alto da cabeça?

– Daqui a pouco já não é preciso – respondeu ela. – Estou aqui, estou com a cabeça toda branca.

– Pois faça favor de não estar – disse ele. – Para que quero eu uma mãe de cabelo branco?

– Pois olha que vais ter de te contentar, meu menino – disse ela, com uma entoação bastante estranha.

Saíram de casa em grande estilo, ela com a sombrinha que William lhe tinha dado, para se proteger do sol. Paul era consideravelmente mais alto do que ela, embora não fosse muito grande. O rapaz ia todo cheio de si.

Na terra lavrada, as espigas tenras brilhavam como seda. A mina de Minton desfraldava os seus penachos de vapor branco, acompanhados de roncos e roucas tossidelas.


– Olha para aquilo! – disse Mrs. Morel. Mãe e filho pararam na estrada, a ver. Ao longo da crista do grande monte da mina, desenhava-se em contraluz um pequeno grupo a avançar mansamente – um cavalo, uma carrocinha e um homem. Trepavam a encosta em direcção ao céu: ao chegarem ao cimo, o homem voltou a carroça e, com injustificado estrépito, a escória rolou pela vertente abrupta do aterro.

– Sente-se um bocadinho, mãe – disse Paul, e ela sentou-se na rocha, enquanto ele desenhava a cena rapidamente. Mrs. Morel manteve-se em silêncio enquanto o filho trabalhava, entretida a admirar a tarde e o casario vermelho a cintilar entre o verde da paisagem.

– O mundo é um lugar maravilhoso – disse ela. – E maravilhosamente belo.

– E a mina também – disse ele. – Veja como cresce, como se estivesse viva... é como uma criatura gigantesca que nós não conhecemos.

– É – disse ela. – Talvez!

– E os vagões parados, à espera, como animais em correnteza à espera da ração – disse ele.

– E eu bem contente fico de os ver aí à espera – disse a mãe. – Quer dizer que a semana vai ser boa.

– Eu gosto de sentir a mão do homem nas coisas; é sinal de vida. Nos vagões sente-se o dedo do homem, porque são mãos de homens que os conduzem.

– Pois é – disse Mrs. Morel.

Continuaram a caminhada à sombra das árvores, pela estrada principal. Ele ia explicando tudo e ela mostrava-se interessada. Passaram pelo extremo do lago Nethermere, que embalava no colo docemente, como pétalas, os reflexos do sol. Depois viraram para uma estrada particular e, com emoção crescente, aproximaram-se de uma grande quinta. Um cão desatou a ladrar furiosamente. Apareceu uma mulher, a ver quem era.

– É este o caminho para Willey Farm? – perguntou Mrs. Morel.

Paul deixou-se ficar atrás da mãe, apavorado com a ideia de serem escorraçados. Mas a mulher era prestável e indicou-lhes o caminho. Mãe e filho meteram pelo meio do trigo e da aveia, atravessaram uma pequena ponte e chegaram a um prado em pousio. Os abibes, com os seus peitos brancos reluzentes, gritavam e volteavam em redor. O lago estava estático e azul. No céu, planava uma garça. Em frente, o bosque subia denso pela encosta, verde e estático.

– É uma estrada florestal, mãe – disse Paul. – Tal e qual como no Canadá.

– Lindo, não é? – disse Mrs. Morel, olhando em volta.

– Está a ver aquela garça... está a ver... as pernas dela?

Era ele que dizia à mãe para onde devia, ou não, olhar. Mas ela gostava assim.

– E agora – disse ela – para que lado é?... Ela disse-me para atravessar o bosque. – O bosque, cerrado e sombrio, estendia-se para a esquerda.

– Sinto que aqui há um caminho – disse Paul. – A mãe tem pés de citadina; seja lá como for, mas tem.

Encontraram uma cancela e entraram numa larga vereda arborizada, com um maciço de cedros e pinheiros de um dos lados e uns quantos carvalhos decrépitos do outro a descerem pela encosta. E, entre os carvalhos, as campainhas-do-monte espraiavam-se em mancha azul sob as aveleiras ainda verdes e um manto esmorecido de folhas amareladas de carvalho. Paul apanhou flores para dar à mãe.

– Está aqui um pouco de feno acabado de chegar – disse ele, e desta vez trouxe-lhe miosótis. E de novo o coração lhe doía de tanto amor, vendo a mão dela, calejada do trabalho, pegar no raminho que ele lhe dera. Ela estava completamente feliz.

No fim da vereda era preciso saltar uma cerca. Paul passou num instante.

– Venha – disse ele –, eu ajudo-a.

– Não... sai daí. Prefiro passar à minha maneira. Ele ficou do outro lado, com as mãos no ar, pronto para a ajudar. Ela trepou com todas as cautelas.

– Mas que maneira de trepar! – exclamou Paul, trocista, quando a mãe já estava a salvo no chão.

– Malditas cercas! – bradou ela.

– Só se uma mulher for muito desajeitada – replicou ele – é que não consegue passá-las.

Em frente, ao longo da orla do bosque, estendia-se um aglomerado de casas de lavoura, baixas e vermelhas. Estugaram o passo. Pegado ao bosque havia um pomar de macieiras cujas flores caíam sobre uma mó. Em baixo era a lagoa, sob os ramos pendentes dos carvalhos. Havia vacas a usufruir da sombra. A quinta e as casas, formando três lados de um quadrilátero, abraçavam o sol viradas para o bosque. Tudo estava em silêncio.

Mãe e filho entraram no pequeno jardim cercado de grades onde pairava um perfume a cravos vermelhos. Junto à porta entreaberta viam-se alguns pães enfarinhados, deixados a arrefecer. Uma galinha aproximou-se para os debicar. De repente, assomou-se à porta uma rapariga com um avental muito sujo. Devia andar pelos catorze anos, tinha as faces morenas e rosadas, um tufo de pequenos caracóis negros muito apertados a cairem livremente, e os olhos castanhos. Parecia tímida e curiosa, com alguma desconfiança dos estranhos. A rapariga voltou a desaparecer. Logo a seguir, surgiu uma outra figura, uma mulher pequenina e frágil, rosada e com grandes olhos castanhos.

– Oh! – exclamou ela, rasgando um sorriso cintilante. – Sempre veio. Gosto muito de a ver por cá. – A voz da mulher era afável e muito triste.

As duas mulheres apertaram a mão.

– Tem a certeza de que não viemos incomodar? – disse Mrs. Morel. – Sei bem como é a vida do campo.

– De maneira nenhuma. Até é uma bênção ver caras novas. Estamos aqui tão isolados.

– Pois devem estar... – disse Mrs. Morel.

Levaram-nos até à sala, uma divisão comprida e de tectos baixos, com um grande ramo de rosas amarelas a enfeitar a lareira. As mulheres sentaram-se a conversar, enquanto Paul foi dar uma volta pela quinta. Estava no jardim a cheirar os cravos e a olhar para as plantas, quando a rapariga saiu a correr e se foi pôr junto do monte de carvão encostado à cerca.

– Creio que estas vão ser rosinhas de toucar, quando abrirem – disse ele, apontando para as roseiras ao longo da cerca. Ela olhou para ele com os grandes olhos castanhos, muito espantados, muito abertos.

– Não sei – respondeu, hesitante. – São brancas e têm o olho cor-de-rosa.

– Então são «rubores de donzela».

Miriam corou – uma cor cálida, bonita.

– Não sei – disse ela.

– Não tens grande coisa no jardim – disse ele.

– É o primeiro ano que aqui passamos – respondeu ela, com modos distantes e superiores, afastando-se e entrando em casa. Paul não ligou e continuou a exploração. A mãe veio ter com ele e deram a volta aos edifícios. Paul estava deliciado.

– Suponho que ainda tenha de ir tratar das galinhas, das vitelas e dos porcos? – disse Mrs. Morel a Mrs. Leivers.

– Não – retorquiu a mulherzinha. – Não consigo arranjar tempo para tratar do gado, e, além disso, não estou habituada. O trabalho de casa já me chega.

– Sim, suponho que sim – disse Mrs. Morel.

Daí a pouco, a rapariga veio cá fora.

– O chá está pronto, mãe – disse, com uma voz suave, musical.

– Ah, obrigada, Miriam, já vamos – respondeu a mãe, toda ela amabilidade. – Podemos ir tomar o nosso chá agora, Mrs. Morel?

– Claro – disse Mrs. Morel. – Logo que estiver pronto.

Paul, a mãe e Mrs. Leivers tomaram chá juntos. Depois foram passear pelo bosque, inundado de campainhas-do-monte, enquanto os carreiros estavam reservados aos miosótis. Mãe e filho caminhavam os dois em êxtase.

Quando voltaram, Mr. Leivers e Edgar, o filho mais velho, estavam na cozinha. Edgar devia ter dezoito anos. Depois, chegaram da escola Geoffrey e Maurice, dois rapagões de doze e treze anos. Mr. Leivers era um homem bem-parecido, na força da vida, de bigode castanho-dourado e olhos azuis sempre assestados, a perscrutar o tempo.

– Foram dar uma volta? – perguntou ele a Paul, com entusiasmo.

– Não deu para ver tudo – respondeu o rapaz, saindo em seguida com Geoffrey e Maurice.

– Onde é que tu trabalhas? – perguntou Geoffrey. Eram os três muito tímidos.

– Na Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan, em Nottingham.

– E que fazes?

– Sou empregado de escritório.

– E fazes o quê?

– Copio cartas, faço encomendas e passo facturas.

– Que tipo de cartas copias?

– Oh... todo o tipo... a maior parte são a encomendar meias elásticas.

– Meias elásticas!... Qu’é isso?

Seguiram-se muitas explicações.

– E algumas das cartas vêm de França e de outros lugares – disse Paul.

– E tu tens d’as copiar?

– Claro.

– Em francês?

– Não... traduzo-as.

– Essa agora... então sabes francês?

– Sei alguma coisa... e alemão também.

– E quem t’ensinou?

– O meu padrinho... e também álgebra e geometria.

– Eu cá não faço tenções d’encher a cabeça com essas coisas – disse Geoffrey.

Os dois rapazes mostravam-se terrivelmente superiores, mas Paul nem dava por isso. Foram à procura de ovos, vasculhando em todos os lugares. Quando estavam a dar de comer às galinhas, Miriam saiu de casa. Os rapazes não lhe ligaram. Na capoeira es-tava uma galinha com os seus pintainhos amarelos. Maurice pegou numa mão-cheia de milho e deixou a galinha vir comer-lhe à mão.

– Tens coragem de fazer o mesmo? – perguntou ele a Paul.

– Vamos lá ver... – respondeu Paul.

Ele tinha a mão pequenina, quente e habilidosa. Miriam ficou a observá-lo. Paul aproximou a mão da galinha. A ave olhou para o milho com o seu olhar duro e brilhante e, de repente, deu-lhe uma bicada na mão. Paul assustou-se, mas depois riu-se. «Pic-pic-pic», fazia-lhe a galinha na palma da mão. Paul riu-se outra vez e os rapazes riram com ele.

– Ela ferra-nos e pica-nos, mas nunca faz doer – disse Paul, quando o milho se acabou.

– Agora, Miriam, é a tua vez – disse Maurice.

– Não – gritou ela, encolhendo-se.

– Olha, parece um bebé. És mesmo um bebé! – disseram os irmãos.

– Não dói nada – disse Paul. – São só uns beliscõezinhos muito agradáveis.

– Não – gritou ela mais uma vez, abanando os caracóis negros e encolhendo-se.

– Ela não s’atreve – disse Geoffrey. – Ela nunca s’atreve a fazer nada a não ser recitar poesia.

– Não s’atreve a saltar uma cancela... não s’atreve a brincar connosco... não s’atreve a fazer frente quando outra rapariga lhe bate... não é capaz de fazer nada a não ser andar por aí convencida qu’é alguém... «A Dama do Lago»... é isso mesmo! – gritou Maurice.

Miriam estava coradíssima de vergonha e infelicidade.

– Sou capaz de fazer mais coisas que vocês – gritou ela. – Vocês não passam duns cobardes e duns brigões.

– Olha, olha, «cobardes e brigões!» – repetiram eles, arremedando-a.

«Um palhaço assim nunca me enfurece.

Todo o brutamontes silêncio merece»

recitou ele, virado para ela, a rir às gargalhadas.

Ela voltou para casa. Paul foi com os dois rapazes até ao pomar, onde tinham montado à pressa duas barras paralelas. Aí chegados, entregaram-se às respectivas demonstrações de força. Paul era mais ágil do que possante, mas foi quanto bastou. Apontou para umas flores de macieira que estavam mesmo à ponta de um ramo balouçante.

– Eu cá, se fosse a ti, não apanhava as flores – disse Edgar, o mais velho dos irmãos. – Senão, prò ano não temos maçãs.

– Eu não ia apanhá-las – respondeu Paul, indo-se embora.

Os rapazes mostravam-se hostis com ele. Interessavam-lhes mais as suas próprias brincadeiras. Paul voltou para casa, para junto da mãe. Quando ia a contornar a casa pelas traseiras, viu Miriam ajoelhada diante da capoeira da galinha, com a mão cheia de milho, a morder o lábio, numa atitude de intensa concentração. A galinha fitava-a com maldade. Cautelosamente, ela estendeu a mão. A galinha atirou-se. Ela retirou rapidamente a mão, com um grito, misto de medo e frustração.

– Ela não te magoa – disse Paul.

Miriam pôs-se de pé, muito corada.

– Só queria experimentar – disse, muito baixinho.

– Vês... não dói nada – disse ele. E, colocando apenas dois grãos de milho na palma da mão, deixou a galinha bicá-lo à vontade. – Só dá vontade de rir – continuou Paul.

Ela estendeu a mão e retirou-a, tentou novamente e fugiu para trás, com um grito. Ele fez uma careta.

– Olha, eu até a deixava comer milho da minha cara – disse Paul. – Mas ela dá muitos encontrões. Ela faz isto com toda a perfeição! Se não fizesse, já imaginaste a quantidade de terra que ela ia comer todos os dias?

Esperou, muito sério, a observá-la. Finalmente, Miriam deixou a galinha bicar-lhe a mão. Deu um gritinho, de medo e dor, porque estava assustada, um gritinho patético. Mas tinha conseguido, e voltou a repetir a proeza.

– Estás a ver – disse o rapaz. – Não faz doer, pois não?

Ela fitou-o com os olhos escuros muito abertos.

– Não – disse ela, a rir e a tremer.

Depois levantou-se e foi para casa. Parecia de alguma forma ofendida com o rapaz.

«Ele deve achar que eu não passo duma rapariga como as outras», pensava ela, cheia de vontade de lhe provar que era uma grande personagem, como a «Dama do Lago».

Paul veio encontrar a mãe pronta para partir. Mrs. Morel sorriu para o filho, e ele pegou no grande ramo de flores. Mr. e Mrs. Leivers acompanharam-nos até ao fundo da quinta. As colinas douravam-se do entardecer, e nas profundezas dos bosques sobressaía o púrpura carregado das campainhas-do-monte. Por todo o lado estava o silêncio, apenas quebrado pelo restolhar das folhas e os pássaros.

– É de facto um lugar belíssimo – disse Mrs. Morel.

– É, sim – concordou Mr. Leivers. – É um lugar bem aprazível, o pior são os coelhos. Dão cabo das pastagens. Não sei se alguma vez iremos ter lucro.

Bateu as palmas e os campos cobriram-se de movimento, junto ao bosque: por toda a parte saltavam coelhos acastanhados.

– Até custa a acreditar! – exclamou Mrs. Morel.

Ela e Paul continuaram sozinhos daí para a frente.

– Foi um dia maravilhoso, não foi, mãe? – disse Paul, falando baixinho. A lua despontava, tímida. O coração doía-lhe de tanta felicidade. A mãe não se calava, pois também ela tinha vontade de gritar de felicidade.

– Então eu não ia ajudar um homem daqueles? Não ia tratar das galinhas e dos bezerros? Havia de aprender a ordenhar, e havia de conversar com ele, e fazer planos com ele. Palavra, se eu fosse mulher dele, aquela quinta ia de vento em popa, isso é que ia... Mas não, ela não tem forças... simplesmente não tem forças. Nunca devia ver-se sobrecarregada desta maneira, percebes. Tenho pena dela, e dele também. Palavra, se ele fosse meu, nunca diria que era um mau marido... Não que ela diga, lá isso não... E ela é até muito simpática.

William veio a casa outra vez, com a namorada, pelo Pentecostes. Tinham-lhe dado uma semana de férias. O tempo estava muito bonito. Geralmente, William, Lily e Paul iam juntos dar um passeio pela manhã. William não conversava muito com a namorada, excepto para lhe contar histórias da infância; mas Paul falava sem parar com qualquer deles. A certa altura, deitaram-se os três num prado, perto da igreja de Minton. De um dos lados, junto do parque do castelo, estendia-se ondulante uma cortina de choupos – uma beleza. As sebes cobriam-se de bagas pendentes de azevinho. Os campos salpicavam-se de margaridas e flores-de-cuco, como sorrisos. William, agora com vinte e três anos, era já um homem feito, muito alto, mas tão magro que era quase só pele e osso. Deitou-se ao sol, de costas, a sonhar, enquanto Lily brincava com o seu cabelo. Paul foi apanhar margaridas. Ela tinha tirado o chapéu. O seu cabelo era negro como a crina de um cavalo. Paul aproximou-se e entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo de azeviche, lembrando enormes lantejoulas brancas e amarelas, com um toque rosado de flores-do-cuco.

– Agora pareces uma bruxinha – disse o rapaz. – Não parece, William?

Lily deu uma gargalhada. William abriu os olhos e contemplou-a. O seu olhar era um misto confuso de tristeza e desmedida admiração.

– Ele transformou-me mesmo numa visão do Além? – perguntou ela, olhando para baixo, para o seu amado, a rir.

– Então não transformou! – disse William, a sorrir. E continuou deitado a olhar para ela. Os seus olhos nunca procuravam os dela. Não queria encontrar os olhos dela. Queria estar só a olhar para ela, não que os seus olhares se encontrassem. E esta vontade de a evitar, aflorava-lhe aos olhos como a tristeza. Ele desviou-os outra vez. Ela deixou a mão esguia, onde brilhavam diamantes, brincar no cabelo dele um pouco mais. Depois disse:

– O Paul sabe como fazer as coisas.

– Óptimo – disse William. – Desde que isso te faça feliz. Ele preenche-te as manhãs e eu as noites.

Ela voltou-se para Paul, e riu-se.

– Quero pôr-te mais três flores sobre a orelha – disse ele, de pé ao lado dela. – Depois, fica pronto.

Ela deixou, e ele entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo.

– Não sentes o perfume do sol nos teus cabelos? – perguntou Paul. – Estás a ver, era assim que devias ir aos bailes.

– Obrigada – disse ela, sempre a rir.

Levantaram-se.

– Não ponhas ainda o chapéu – disse Paul.

– Achas que sim? – perguntou ela a William. – Posso ir nesta figura?

William olhou para ela outra vez. A beleza dela quase o magoava. Olhou-lhe para a cabeça coberta de flores e torceu o nariz.

– Estás muito bonita assim, se é isso que queres saber.

E ela continuou o passeio sem chapéu. William logo se recompôs do mau humor e mostrou-se muito terno com ela. Ao chegarem a uma ponte, até gravou um coração com as iniciais dos dois.

 


Ela observou-o atentamente, vendo como a sua mão forte e nervosa, salpicada de pêlos cintilantes e de sardas, gravava no tronco o coração, o que parecia deixá-la fascinada.

Durante toda a estadia, enquanto William e Lily estiveram presentes, pairava dentro de casa um sentimento de tristeza e calor humano, e também de certa ternura. Mas muitas vezes ele irritava-se. Ela tinha trazido para uma semana cinco vestidos e seis blusas.

– Ouve, não te importas de me lavares estas duas blusas... e estas coisinhas? – disse ela a Annie.

E Annie ficou em casa a lavar roupa, enquanto, na manhã seguinte, William e Lily foram passear. Mrs. Morel ficou furiosa. Às vezes, ao aperceber-se da atitude da namorada para com a irmã, o jovem odiava-a pelo seu comportamento.

No domingo de manhã, Lily apareceu muito bonita, com um vestido leve, sedoso e esvoaçante, tão azul como as penas de um gaio, e um chapéu de palha coberto de rosas, onde dominava o carmim. As pessoas não se cansavam de a admirar. Mas, à noite, quando iam a sair, ela perguntou de novo:

– Fofinho, tens as minhas luvas?

– Quais delas? – perguntou William.

– As novas, as de camurça preta.

– Não.

Seguiu-se uma busca. Tinha-as perdido.

– Está a ver, mãe – disse William. – Já é o quarto par que ela perde desde o Natal... e cada par são cinco xelins.

– Tu só me deste dois pares – repontou ela.

E à noite, depois da ceia, ficou sentada no sofá e ele foi postar-se frente à lareira, farto dela. À tarde, tinha-a deixado sozinha para ir visitar um amigo de infância, e ela ficara a ver um livro. Depois da ceia, William quis ir escrever uma carta.

– Aqui tem o seu livro, Lily – disse Mrs. Morel. – Importa-se de ficar a ler mais um bocadinho?

– Não, obrigada, não quero o livro – disse a rapariga. – Prefiro ficar só aqui sentada.

– Mas isso é muito aborrecido...

William escrevia nervosamente, a grande velocidade. Quando estava a fechar o sobrescrito, disse:

– Ler um livro!... Essa é boa, ela nunca leu um livro na vida dela.

– Não digas isso! – disse Mrs. Morel, irritada com o exagero.

– É verdade, mãe... não leu mesmo – exclamou ele, pondo-se de pé num salto e retomando o seu lugar anterior, frente à lareira. – Nunca na vida leu um livro.

– Atão essa é como eu – interveio Morel. – Essa tamém num vê nada nos livros qu’a faça ficar sentada, aborrecida, de nariz infiado nas folhas. Pra quê? Eu tamém num vejo!

– Mas tu não devias dizer essas coisas – disse Mrs. Morel ao filho.

– Mas é verdade, mãe... ela não sabe ler... que livro é que lhe deu?

– Bem, dei-lhe um livrinho da Annie Swan. Ninguém quer ler coisas pesadas num domingo à tarde.

– Pois eu aposto que ela nem dez linhas leu.

– Aí é que tu te enganas – disse a mãe.

Lily assistia à discussão sentada no sofá, com um ar muito infeliz.

– Leste alguma coisa do livro? – perguntou-lhe ele.

– Li, sim – respondeu ela.

– Quantas páginas?

– Sei lá quantas páginas...

– Diz-me uma coisa que tenhas lido.

Ela não foi capaz.

– Cala-te, William – disse a mãe. – Que ideia a tua!

– Mas ela não consegue ler, mãe! – gritou ele, secamente. – Não consegue reter nada do que lê. Não sabe ler e não sabe falar. Não há assunto nenhum sobre o qual se possa conversar com ela. Só pensa em vestidos e em como todos a admiram.

– Não lhe ligue, Lily – disse Mrs. Morel.

– Só os parvos é que se sentam de nariz infiado nos livros, é o qu’eu digo – acrescentou Morel.

E a pobre rapariga continuava a ser agredida. Ele parecia odiá-la. Mais tarde, Mrs. Morel foi buscar-lhe um livro muito simples, e era patético vê-la arrastar-se penosamente pelas primeiras páginas na tarde chuvosa. Não conseguiu passar da segunda página. Ele lia muito, e possuía uma inteligência rápida, activa. Ela não entendia nada a não ser fazer amor e tagarelar. Ele estava habituado a ter todos os seus pensamentos peneirados pela mente da mãe. Por isso, quando procurava companhia e, em resposta, lhe era pedido que fosse apenas um amante, todo ele ternuras e gorgeios, odiava a namorada.

– Sabe, mãe – disse ele, quando à noite ficaram os dois sozinhos – ela não dá valor ao dinheiro, é um catavento. Quando recebe o ordenado, é capaz de gastar uma fortuna numa porcaria qualquer como, por exemplo, marrons glacés. E, depois, sou eu que tenho de lhe comprar o passe e todos os outros extras... até a roupa interior. E quer ela casar-se... Por mim, podíamos até casar já para o ano. Mas por este andar...?

– Ia ser um lindo casamento – respondeu a mãe. – Eu, se fosse a ti, pensava duas vezes, meu filho.

– Bom... Agora já fui longe de mais para romper com tudo – disse ele. – Por isso, o melhor é casar o mais depressa possível.

– Muito bem, meu filho. Se é isso que queres, assim será, e não se fala mais no assunto... Mas olha que eu não durmo quando penso nisso.

– Ela é boa rapariga, mãe. Cá nos havemos de arranjar.

– E ela deixa que sejas tu a comprar-lhe a roupa interior? – perguntou a mãe.

– Bem... – começou ele, apologético. – Ela nunca me pediu. Mas uma manhã... estava muito frio... encontrei-a na estação toda a tremer, nem conseguia estar parada. E então perguntei-lhe se estava bem agasalhada, e ela respondeu, «Acho que sim». E então eu disse «Trazes alguma camisola quente... de lã... por baixo?» E ela disse que não, que era de algodão. Perguntei-lhe por que carga de água não tinha vestido uma coisa mais quente com um frio daqueles, e ela disse que não tinha nada mais quente. E ainda por cima, com a bronquite que ela tem! Tive de pegar nela e ir comprar-lhe uma roupa mais quente... Sabe, mãe, o dinheiro era o menos, se nós o tivéssemos... Ela devia guardar o suficiente para o passe. Mas não... vem pedir-mo, e eu tenho de inventar o dinheiro...

– Belas perspectivas – disse Mrs. Morel, amargurada.

Ele estava pálido e no seu rosto já vincado, outrora tão sorridente e descuidado, estampavam-se o conflito e o desespero.

– Mas eu não posso acabar com tudo, não agora, as coisas já foram longe de mais – disse ele. – Além disso, para certas coisas, não posso passar sem ela...

– Meu filho, lembra-te de que se trata da tua vida – disse Mrs. Morel. – Nada pode ser pior do que um casamento que já está à partida irremediavelmente marcado pelo fracasso. O meu foi suficientemente mau, Deus sabe que sim, e devia ter-te ensinado alguma coisa... Mas ainda podia ter sido muito pior.

William estava encostado à ombreira da chaminé, de mãos no bolsos. Era um homem alto e esquelético, com ar de quem seria capaz de ir até ao fim do mundo, se lhe apetecesse. Mas a mãe lia--lhe o desespero no rosto.

– Agora não posso deixá-la.

– Está bem – disse a mãe. – Mas lembra-te de que há coisas piores do que romper um noivado.

Quedaram-se em silêncio, ele de olhar parado, fitando o espaço. Só a mãe lhe podia valer e, no entanto, não a deixava decidir por ele. Continuava preso ao que tinha feito.

– E, naturalmente – acrescentou Mrs. Morel, há muito mais nobreza em romper um noivado para evitar um mal maior do que em continuar só para cumprir uma promessa.

Ele mantinha-se estático, de olhar pregado no vazio.

– Eu não posso deixá-la agora – insistiu ele.

O relógio ia avançando. Mãe e filho continuaram em silêncio, em conflito. Mas ele nada mais disse. Por fim, ela disse:

– Bem, vai dormir, meu filho... amanhã sentes-te melhor... e talvez vejas as coisas com outros olhos.

O filho deu-lhe um beijo e foi deitar-se. Ela foi abafar o borralho, sentindo o coração pesado como nunca sentira antes. Antes, com o marido, parecia sentir ruir tudo dentro dela, mas nada lhe destruía a vontade de viver. Mas agora, era a própria alma que estava ferida. A própria esperança fora atingida.

William manifestou em muitas outras ocasiões o mesmo ódio pela noiva. Na última noite que passaram em casa dos pais, fartou-se de resmungar com ela.

– Bem – disse ele – já que não me acredita, que acha que ela não é nada assim, acredita pelo menos que ela foi crismada três vezes?

– Que disparate! – disse Mrs. Morel, perdida de riso.

– Disparate ou não, o certo é que foi mesmo! É isso que o Crisma significa para ela... teatro... um espectáculo onde pode brilhar.

– Não fui nada, Mrs. Morel – gritou a rapariga. – Não fui nada. Não é verdade.

– O quê! – gritou ele, avançando para ela. – Uma vez em Bromley, outra em Beckenham, e outra mais não sei onde.

– Em mais lado nenhum! – disse ela, a chorar. – Em mais lado nenhum.

– Foi, sim! E mesmo que não fosse, para que foste crismada duas vezes?

– Da primeira vez, só tinha catorze anos, Mrs. Morel – explicou ela, desculpando-se, de lágrimas nos olhos.

– Claro – disse Mrs. Morel. – Eu entendo perfeitamente, minha filha. Não lhe ligue. Devias ter vergonha, William, a dizeres estas coisas.

– Mas é verdade. Ela é religiosa... até tem livros de orações em veludo azul... mas liga tanto à religião, ou a outra coisa qualquer, como à perna daquela mesa. Ser crismada três vezes, só pelo espectáculo, só para se mostrar! E ela é assim em tudo o mais, em tudo!

A rapariga chorava, sentada no sofá. Não era um espírito forte.

– Até no amor! – gritou ele. – É o mesmo que pedir a uma mosca que nos ame. Só quer vir para cima de nós...

– Acabou-se! – disse Mrs. Morel, peremptória. – Se queres continuar a dizer esses disparates, tens de ir para outro lugar. Tenho vergonha de ti, William. Não sabes portar-te como um homem? Só a pôr defeitos na rapariga... e depois a fingires que estás noivo...! – Mrs. Morel sucumbiu à raiva e à indignação.

William mantinha-se em silêncio. Mais tarde, arrependido, foi dar um beijo à namorada e consolá-la. No entanto, tudo o que dissera era verdade, e odiava-a.

Quando partiram, Mrs. Morel acompanhou-os a Nottingham. A caminhada até à estação de Keston era longa.

– Sabe, mãe – disse ele –, a Ciganita é muito superficial... nada penetra nela a fundo...

– William, preferia que não dissesses essas coisas – pediu Mrs. Morel, sentindo-se constrangida com a presença da rapariga.

– Mas é que não penetra mesmo, mãe... Ela está muito apaixonada por mim, agora... Mas, se eu morresse, esquecia-me em três meses.

Mrs. Morel tinha medo. O seu coração batia furiosamente perante a amargura serena das últimas palavras do filho.

– Como sabes? – retorquiu. – Tu não podes saber... e, por isso, não tens o direito de dizeres uma coisa dessas.

– Ele está sempre com estas coisas! – exclamou a rapariga.

– Três meses depois de me enterrarem, já tu tinhas arranjado outro e nunca mais te lembravas de mim – disse ele. – É esse o amor que me tens!

Mrs. Morel meteu-os no comboio, em Nottingham, e voltou para casa.

– Sabes uma coisa? – disse ela pateticamente para Paul. – Não se entendem e nunca se hão-de entender. Como vai ser, se chegarem a casar, é de mais para a minha imaginação. Se ao menos ele a deixasse, já não precisava de a atormentar desta maneira. Mas vão ficar presos um ao outro até se matarem. Quando ele disse aquilo, a caminho de Keston, foi como se eu já não pudesse dar nem mais um passo. Pobrezinha, tenho pena dela. Mas não é mulher para ele, lá isso não é. É muito cruel dizê-lo, mas como ela é muito frágil, mais valia que morresse em vez de casar com ele.

Mrs. Morel não tirou o filho do pensamento durante todo o Verão. Ele parecia estar a dar cabo da vida. Mas o casamento parecia estar ainda demorado.

– Valha-nos pelo menos uma coisa – disse ela a Paul. – Ele nunca vai juntar dinheiro suficiente para se casar, disso tenho eu a certeza. É assim que ela o vai salvar.

E a ideia animava-a. As coisas ainda tinham remédio, e acreditava firmemente que William nunca chegaria a casar com a sua Cigana. Aguardava e mantinha Paul junto de si.

Durante todo o Verão, as cartas de William soavam febris. Parecia pouco natural e empolgado. Por vezes exageradamente alegre, mas geralmente sóbrio e amargo.

– Pois é – dizia a mãe. – Anda a dar cabo dele por causa daquela criatura que não merece o amor que ele lhe tem, que não passa duma boneca de trapos.

Ele só pensava em vir a casa. As férias de Verão já lá iam, e o Natal ainda estava muito longe. Escreveu muito entusiasmado a dizer que podia vir a casa no princípio de Outubro, passar um sábado e um domingo, para a Feira do Ganso.

– Tu não andas bem, meu filho – disse-lhe a mãe quando o viu. Tê-lo assim, só para ela, dava-lhe até vontade de chorar.

– Não, não tenho passado nada bem – disse ele. – Apanhei uma constipação que se arrastou durante todo o mês. Mas já estou melhor, acho eu.

Estava um dia soalheiro de Outubro. William parecia louco de alegria, como um garoto que se escapasse às aulas. Mas logo ficou calado e reservado. Estava mais esquelético que nunca e com os olhos encovados.

– Andas a trabalhar de mais – disse a mãe.

Fazia horas extraordinárias, para juntar dinheiro para se casar, segundo disse. Só conversou com a mãe uma vez, no sábado à noite. Depois, pôs-se muito triste, com saudades da namorada.

– Sabe uma coisa, mãe, apesar disto tudo, se eu morresse, ela ia chorar por mim durante dois meses, e depois tratava de me esquecer. A mãe havia de ver, ela nunca viria aqui visitar a minha sepultura nem uma só vez.

– Ora, William – disse a mãe –, tu não vais morrer, para quê falar nisso agora?

– Mas se acontecesse... – insistiu ele.

– Ela não tem culpa... ela é assim... e se tu a escolheste, não te podes queixar... – disse a mãe.

No domingo de manhã, quando estava a pôr o colarinho, William disse, levantando o queixo:

– Veja a borbulhagem que o colarinho me fez por baixo do queixo!

Mesmo na ligação do queixo com a garganta havia uma zona muito vermelha, toda irritada.

– Não te devia fazer isso – disse a mãe. – Toma, põe um pouco deste unguento. Devias mudar de colarinhos.

William partiu no domingo à noite, aparentemente melhor e mais forte, depois destes dois dias passados em casa.

Na terça-feira de manhã, chegou um telegrama de Londres dizendo que ele estava doente. Mrs. Morel, que estava a esfregar o chão, levantou-se, leu o telegrama, chamou uma vizinha, foi a casa da senhoria, pediu-lhe dinheiro emprestado, vestiu-se e partiu. Correu até à estação de Keston e apanhou o expresso para Londres em Nottingham, onde teve de esperar quase uma hora. Figurinha frágil, com o seu chapelinho preto, não parava de perguntar, ansiosa, aos carregadores se sabiam o caminho para Elmers End. A viagem demorou três horas. Foi sempre sentada no seu canto, embalada numa espécie de torpor, sem se mexer. Na estação de King’s Cross também ninguém sabia indicar-lhe o caminho para Elmers End. Com o saco de rede na mão, com a camisa de noite, um pente e uma escova, ia de pessoa em pessoa, fazendo sempre a mesma pergunta. Por fim, mandaram-na apanhar o metropolitano até Cannon Street.

Eram seis horas quando chegou ao apartamento de William. As persianas não estavam corridas.

– Como está ele? – perguntou.

– Na mesma – disse a dona da casa.

Mrs. Morel subiu a escada atrás da senhoria. William estava deitado na cama, com os olhos injectados de sangue, muito pálido. A roupa estava espalhada pelo chão, o lume estava apagado e tinha um copo de leite na mesa de cabeceira. Ninguém viera vê-lo.

– Então, meu filho, que foi isto? – disse a mãe, mostrando coragem.

Ele não respondeu. Olhava para ela, mas não a via.

Depois, começou a dizer numa voz monocórdica, como se ditasse uma carta: «Devido a uma brecha no casco do navio, o açúcar tornou-se num bloco, cristalizou. Foi preciso parti-lo com um machado...»

Estava completamente inconsciente. Um dos seus trabalhos tinha sido ir examinar esse tal carregamento de açúcar no porto de Londres.

– Há quanto tempo está ele assim? – perguntou a mãe à senhoria.

– Chegou a casa às seis horas da manhã na segunda-feira e aparentemente dormiu o dia todo. À noite, ouvimo-lo a falar, e esta manhã chamou por si. Por isso, mandei o telegrama e chamámos o médico.

– Não se importa de acender o lume?

Mrs. Morel tentava acalmar o filho, mantê-lo quieto.

O médico chegou. Era uma pneumonia e, segundo disse, uma forma rara de erisipela, que tinha começado debaixo do queixo, provocada pelo roçar do colarinho, e se estava a espalhar a toda a cara; e esperava bem que não lhe atingisse o cérebro.

Mrs. Morel ficou a cuidar dele. Rezava por William, rezava para que ele a reconhecesse. Mas a cara do jovem cada vez perdia mais as cores. De noite, teve de lutar com o filho. Ele delirou e tornou a delirar, sem nunca recobrar a consciência. E morreu às duas da manhã, num paroxismo atroz.

Durante uma hora, Mrs. Morel permaneceu estática, sentada no quarto do filho. Depois, acordou toda a casa.

Às seis da manhã, vestiu-o com a ajuda da mulher da limpeza e em seguida saiu e foi à procura do registo civil e do médico daquele lúgubre subúrbio londrino.

Às nove horas, novo telegrama para Scargill Street: «William morreu esta noite. Dizer pai venha e traga dinheiro.»

Annie, Paul e Arthur estavam em casa. Mr. Morel tinha ido trabalhar. As três crianças não disseram uma palavra. Annie começou a choramingar, com medo. Paul foi chamar o pai.

O dia estava lindo. Na mina de Bretty, o vapor branco fundia-se lentamente com a luz do sol no céu azul, muito ameno, as roldanas da torre brilhavam no alto do aterro, e a peneira não se calava, sempre a deitar o carvão para os vagões.

– Tenho de falar com o meu pai... ele tem de ir já para Londres – disse o rapaz ao primeiro homem que encontrou no aterro.

– Queres falar com Walter Morel?... Vai ‘í dentro e diz ò Joe Ward.

Paul entrou no escritório de cima.

– Quero o meu pai... ele tem de ir pra Londres.

– O teu pai... está na mina? Quem é ele?

– Mr. Morel.

– Quem, o Walter? Aconteceu alguma coisa?

– Ele tem de ir já pra Londres.

O homem foi para o telefone e ligou para o escritório de baixo.

– Chamem o Walter Morel... 42 Hard. Aconteceu alguma coisa... o filho dele tá ‘qui.

Depois, voltou-se para Paul, e disse:

– Daqui a cinco minutos ele já aí está.

Paul foi até ao topo da mina. Viu a caixa subir, com o carregamento de carvão. A grande gaiola de ferro descansou sobre os apoios, a carga foi retirada, um contentor vazio deslizou sobre os apoios, algures tilintou uma campainha, a gaiola elevou-se e caiu como uma pedra.

Paul não acreditava que William estivesse morto... era impossível, com tanta azáfama por todo o lado. O mineiro de serviço empurrou o pequeno contentor para cima da placa giratória, e um outro homem levou-a pelo aterro fora, pelos trilhos sinuosos. «O William está morto e a minha mãe em Londres; que estará ela a fazer?», perguntava-se ele, como se se tratasse de uma charada.

Viu os contentores subirem uns atrás dos outros, e nem sinais do pai. Por fim, o vulto de um homem desenhou-se ao lado de um vagão! A gaiola descansou sobre os apoios e Morel desceu. Coxeava ligeiramente, devido a um acidente.

– És tu, Paul!... Ele tá pior?

– Tem de ir já pra Londres.

Desceram os dois o aterro, lado a lado, sob os olhares curiosos dos mineiros. Quando deixaram a mina e seguiam já ao longo da via férrea, com os campos soalheiros de Outono de um dos lados e um muro de vagões do outro, Morel perguntou, com o medo na voz:

– Ele não se curou, filho?

– Não.

– E quando foi?

Havia terror na voz do mineiro.

– Esta noite... Chegou um telegrama da mãe.

Morel deu mais alguns passos e depois encostou-se a um vagão e fincou as mãos nos joelhos. Mas não chorou. Paul olhou em volta, à espera. Um vagão balouçou lentamente em cima da balança. Paul via tudo, menos o pai, encostado ao vagão, como se estivesse cansado.

Morel só tinha ido uma vez a Londres. Pôs-se a caminho, assustado e lívido, para ir ajudar a mulher. Isto passou-se numa terça-feira. Os filhos ficaram sozinhos em casa. Paul foi trabalhar, Arthur para a escola e Annie chamou uma amiga para lhe fazer companhia.

No sábado à noite, quando Paul dobrava a esquina, de regresso de Keston, viu a mãe e o pai, que vinham da estação de Lethley Bridge. Caminhavam no escuro, em silêncio, cansados, separados. O rapaz ficou à espera.

– Mãe! – disse ele, da escuridão.

A figura franzina de Mrs. Morel pareceu não dar por ele. Paul insistiu.

– Paul! – disse ela, indiferente. Deixou-o dar-lhe um beijo, mas parecia não o ver.

Em casa foi a mesma coisa, franzina, pálida e muda. Não via nada, não dizia nada, excepto:

– O caixão chega hoje à noite, Walter. É melhor pedires ajuda. – E, depois, voltando-se para os filhos: – Vamos trazê-lo para casa.

Em seguida mergulhava num mutismo duradouro, de olhar perdido no espaço e mãos cruzadas sobre o regaço. Paul, ao vê-la assim, quase não podia respirar. Reinava em toda a casa um silêncio de morte.

– Fui trabalhar, mãe – disse Paul, tristemente.

– Ah, foste – respondeu ela, indiferente.

Passada meia hora, Morel, preocupado e confuso, entrou em casa.

– Onde havemos d’o pôr, quand’ele chegar? – perguntou à mulher.

– Na sala da frente.

– Então é melhor eu tirar de lá a mesa.

– Está bem.

– E botá-lo em cima das cadeiras?

– Tu lá sabes... sim... acho que sim.

Morel e Paul pegaram numa vela e foram para a sala. Lá não havia gás. O pai desaparafusou o tampo oval da grande mesa de mogno e libertou o centro da sala. Depois dispôs seis cadeiras em frente umas das outras, de forma a poderem suportar o caixão.

– Nunca vi ninguém mais comprido! – disse o mineiro, olhando em volta, ansioso, enquanto trabalhava.

Paul foi à janela e olhou para a rua. O freixo erguia-se monstruoso e negro, contra a imensa escuridão. Estava uma noite sem luar. Depois, voltou para junto da mãe.

Às dez horas, Morel anunciou:

– Chegou!

Todos estremeceram. Ouviu-se destrancar e abrir a porta da frente, que dava passagem directa da noite escura para dentro da sala.

– Tragam outra vela – gritou Morel.

Annie e Arthur foram buscá-la. Paul acompanhou a mãe. Estava ao lado dela, encostado à porta interior, passando-lhe o braço pela cintura. No meio da sala vazia havia seis cadeiras à espera, viradas umas para as outras. Junto à janela, Arthur segurava uma vela, encostado às cortinas de renda, e junto à porta aberta, virada para a noite, estava Annie, inclinada para a frente, com a palmatória de latão a cintilar.

Ouviu-se o barulho de um rodado. Lá fora, na escuridão da rua, Paul viu cavalos e um veículo negro, um lampião e alguns rostos empalidecidos. Depois, alguns homens – mineiros – todos em mangas de camisa, que pareciam debater-se na penumbra densa. Por fim, apareceram dois homens, vergados sob a pesada carga. Era Morel e o vizinho.

– Firme! – disse Morel, sem fôlego.

Ele e o companheiro subiram o degrau alto do jardim e surgiram à luz da vela, segurando uma das extremidades cintilantes do caixão. Mais braços, de outros homens, agitavam-se por detrás deles. Morel e Burns, à frente, vacilaram. A carga negra, pesadíssima, balançou.

– Firme, firme! – gritou Morel, num grito de dor.

Os seis carregadores já estavam todos no jardim, trazendo o caixão pelo ar. Havia ainda mais três degraus até à porta. A lanterna amarelada da carruagem brilhava sozinha, na estrada de breu.

– Agora! – disse Morel.

O caixão balançou, os homens começaram a subir os degraus com a sua carga. A chama da vela de Annie tremulou e ela começou a chorar ao ver surgir os primeiros homens. Os braços e as cabeças curvadas dos seis homens lutavam para vencerem a subida até à sala com o caixão, transportando o peso do sofrimento sobre a sua carne viva.

– Oh, meu filho... meu filho! – disse Mrs. Morel, baixinho, como se entoasse. E, de novo, de cada vez que o caixão balançava ao passo desigual dos carregadores:

– Oh, meu filho... meu filho... meu filho!

– Mãe! – disse Paul, a chorar, com o braço em volta da cintura dela. – Mãe!

Ela não ouviu.

– Oh, meu filho... meu filho! – repetia.

Paul via gotas de suor pingarem da testa do pai. Os seis homens estavam na sala, seis homens em mangas de camisa, de braços exaustos que se debatiam com a sua carga, enchendo a sala e indo de encontro aos móveis. O caixão desceu e foi suavemente pousado sobre as cadeiras. O suor pingava da testa de Morel sobre o rebordo.

– Palavra d’honra, manda cá um peso! – disse um dos homens, e os cinco mineiros soltaram um suspiro, curvaram-se perante o caixão e, trémulos da luta, desceram novamente os degraus, fechando a porta atrás de si.

A família ficou sozinha na sala com a enorme caixa envernizada. William, esticado, tinha seis pés e quatro polegadas de comprimento. O imponente caixão, de um castanho brilhante, jazia qual monumento. Paul pensou que nunca mais iam conseguir tirá-lo dali. A mãe acariciava a madeira envernizada.

Foi a enterrar na segunda-feira, no pequeno cemitério da encosta, alcandorado sobre os campos, dominando a igreja e o casario. Estava um dia de sol e os crisântemos brancos encaracolavam as pétalas ao calor.

Depois de tudo isto, nada conseguia persuadir Mrs. Morel a falar e a recuperar a sua antiga força de viver. Continuava fechada sobre si mesma. Quando voltava para casa, no comboio, tinha pensado para consigo: «Se ao menos tivesse sido eu.»

Quando Paul chegou a casa à noite, encontrou a mãe sentada com as mãos no regaço, sobre o tosco avental, já com a lida da casa despachada. Era sempre costume trocar de vestido e pôr um avental preto. Mas desta vez foi Annie quem lhe pôs a ceia, e a mãe continuou sentada em frente dela, de olhar vazio e lábios cerrados. Paul deu voltas à cabeça para arranjar novidades para lhe contar.

– Mãe, Miss Jordan apareceu lá hoje e disse que o meu esboço de uma mina a laborar estava muito bom...

Mas Mrs. Morel nem prestou atenção. Noite após noite, Paul esforçava-se por lhe contar coisas, mesmo que ela o não escutasse. Quase o enlouquecia vê-la neste estado. Até que:

– Que tem, mãe? – perguntou ele. Ela não ouviu.

– Que tem? – insistiu. – Mãe, o que é que tem?

– Sabes bem o que é que eu tenho – disse ela, irritada, virando-lhe as costas. O rapaz – tinha agora dezasseis anos – foi para a cama tristíssimo. Passou Outubro, Novembro e Dezembro sentindo-se rejeitado, um desgraçado. A mãe bem tentava, mas não conseguia reagir. Tudo o que fazia era pensar no filho morto, que tão cruelmente tinham deixado morrer.

Por fim, no dia 23 de Dezembro, Paul voltou para casa como um sonâmbulo, com os cinco xelins da gratificação de Natal no bolso. A mãe olhou para ele e o seu coração parou.

– O que se passa? – perguntou ela.

– Sinto-me mal, mãe! – respondeu ele. – Mr. Jordan deu-me cinco xelins de gratificação. – E estendeu-os à mãe, com a mão trémula. Ela pô-los em cima da mesa.

– A mãe não parece satisfeita – disse ele, como se ralhasse.

Mas Paul tremia violentamente.

– Onde é que te dói? – disse ela, desabotoando-lhe o sobretudo.

Era a velha pergunta.

– Sinto-me mal, mãe.

Ela despiu-o e meteu-o na cama. Era uma pneumonia, e grave, disse o médico.

– Ele podia não a ter apanhado, se eu o tivesse obrigado a ficar em casa e não o deixasse ir para Nottingham? – foi uma das primeiras coisas que perguntou.

– Podia não ser tão grave – disse o médico.

Mrs. Morel encontrou na resposta a sua própria condenação.

– Devia ter-me preocupado com os vivos, e não com os mortos – disse para consigo.

Paul esteve muito mal. A mãe passava as noites ao seu lado, pois não tinham dinheiro para uma enfermeira. O seu estado piorou e a fase crítica aproximava-se. Uma noite recobrou a consciência, num daqueles paroxismos fantasmagóricos e doentios de dissolução, em que todas as células do corpo parecem estilhaçar-se à pressão extrema da irritabilidade, e a consciência, como em estados de loucura, tem um derradeiro arrobo de vitalidade.

– Vou morrer, mãe! – gritou ele, soerguendo-se da almofada, lutando para respirar.

Ela ajudou-o, chorando baixinho:

– Oh, meu filho, meu filho!

Isto trouxe-o de volta. Apercebeu-se da presença da mãe. A sua força de vontade empertigou-se e prendeu-o à vida. Pousou a cabeça do peito dela e repousou no seu amor.

– De certa forma – disse a tia – foi até bom o Paul ter tido aquela doença no Natal. Foi isso que salvou a mãe.

Paul esteve de cama sete semanas. Levantou-se, finalmente, pálido e muito fraco. O pai tinha-lhe comprado um vaso de tulipas vermelhas e douradas. Era vê-las, a brilhar como fogo na janela, ao sol de Março, enquanto ele ficava sentado no sofá a conversar com a mãe. Tagarelavam os dois em perfeita intimidade. Mrs. Morel vivia agora para Paul.

William tinha sido profético. Mrs. Morel recebeu uma lembrança e uma carta de Lily pelo Natal. Da irmã de Mrs. Morel, uma carta pelo Ano Novo.

«Fui ontem a um baile. Encontrei lá pessoas adoráveis e diverti-me imenso», dizia a carta. «Não perdi uma dança... nem uma.»

Mrs. Morel nunca mais teve notícias dela.

Morel e a mulher viveram em harmonia durante algum tempo depois da morte do filho. Ele costumava quedar-se, como num êxtase, de olhos esbugalhados e olhar perdido. Depois, levantava-se de repente e ia para o Three Spots, voltando já no seu estado normal. Mas nunca mais foi passear para os lados de Shepstone, para não passar pelo escritório onde o filho trabalhara, e evitava passar pelo cemitério.


SEGUNDA PARTE


VII

AMOR DE ADOLESCENTES

NO OUTONO, Paul estivera várias vezes em Willey Farm e tinha-se tornado amigo dos dois rapazes mais novos. De início, Edgar, o mais velho, não se mostrava muito receptivo, e Miriam furtava-se também a qualquer aproximação. Tinha medo de ser desprezada pelos próprios irmãos. Rapariga de alma romântica, em toda a parte via heroínas de Walter Scott, cortejadas por cavaleiros de armadura ou chapéus emplumados. Ela própria era, na sua imaginação, uma princesa transformada em guardadora de porcos. E receava que aquele rapaz, parecido embora com um herói de Walter Scott, que pintava, falava francês, sabia álgebra e viajava todos os dias de comboio para Nottingham, visse nela simplesmente a guardadora de porcos e fosse incapaz de vislumbrar a princesa que nela se ocultava. Por isso, fugia dele.

A sua melhor amiga era a mãe. Ambas de olhos castanhos e dadas ao misticismo, eram daquelas mulheres que guardam a religião ciosamente no coração e para quem a religião é como o ar que respiram, como um véu de bruma que lhes filtra a vida. Assim, para Miriam, Cristo e Deus formavam uma só imagem sublime que ela amava com fervor, apaixonadamente, sempre que um imenso pôr do Sol incendiava o céu poente; sempre que os heróis e as heroínas – os Brian de Bois Gilberts, os Rob Roys e os Guy Mannerings; as Edites, as Lucys e as Rowenas – faziam restolhar as folhas matinais encharcadas de sol, ou se vinham sentar com ela nas alturas do seu quarto, sonhadores e solitários, quando a neve caía. Isto sim, era para ela viver. Quanto ao resto, cuidava da lida da casa, trabalho que não lhe seria pesado, se o chão de tijoleira bem polida não ficasse logo todo patinhado das pesadas botas dos irmãos; queria à viva força que o irmão mais novo, de quatro anos, a deixasse envolvê-lo e cobri-lo com o seu amor; ia à igreja, reverente, em pose contrita, e sofria angustiada perante a vulgaridade das outras meninas de coro e a banalidade da voz do cura; envolvia-se em lutas com os irmãos, que considerava uns brutamontes; e não tinha o pai em grande estima por não albergar no coração quaisquer ideais místicos, e ter como únicas ambições uma vida sem preocupações e a comida na mesa a tempo e horas.

Miriam detestava a sua condição de guardadora de porcos. Queria ser respeitada. Queria instruir-se, pensando que, se fosse capaz de ler, como Paul dizia que era, a Colomba ou a Voyage Autour de ma Chambre, o mundo a veria com outros olhos e teria por ela um profundo respeito. Como jamais poderia ser princesa por fortuna ou condição, ansiava possuir conhecimentos de que pudesse orgulhar-se; era diferente das outras pessoas e não queria ser confundida com a arraia-miúda. Ser instruída era a única marca de distinção a que pensava poder aspirar.

A sua beleza, misto de timidez, rebeldia e sensibilidade, não tinha para ela qualquer valor. Nem mesmo a sua alma, tão dada a arrebatamentos, lhe era suficiente. Precisava de algo mais que reforçasse o seu orgulho, pois sentia-se diferente das outras pessoas. Olhava Paul com vaga melancolia. De uma maneira geral, desprezava o sexo masculino. Neste caso, porém, ele era um exemplar diferente, ágil, leve, gracioso, que tanto podia mostrar-se gentil como insuportável, que era inteligente e culto, que já tinha passado por uma morte na família. O pouco que o rapaz sabia guindava-o aos píncaros a seus olhos. Contudo, esforçava-se por desprezá-lo por ele não conseguir ver nela a princesa, mas tão-só a guardadora de porcos.

Paul mal reparava nela.

Um dia, porém, adoeceu gravemente e ela sentiu que com isso ele iria enfraquecer. Se assim fosse, seria ela a mais forte e então poderia amá-lo. Se pudesse ser sua amante na fraqueza, cuidar dele, tê-lo na sua dependência, se ao menos pudesse tê-lo nos seus braços, com que força o amaria!

Assim que os céus desanuviaram e as ameixoeiras floriram, Paul partiu para Willey Farm na carroça do leiteiro. Mr. Leivers gritou pelo rapaz em tom amigável e conduziu o cavalo lentamente pela encosta acima, ao fresco da manhã, dando estalinhos com a língua para o incitar. No céu passavam nuvens brancas que se iam juntar para lá das colinas, agora visíveis à luz primaveril. As águas do Nethermere jaziam em baixo, muito azuis, em contraste com os prados ressequidos e os espinheiros.

Era uma viagem de quatro milhas e meia. Nas cercas, minúsculos botões em tons vivos e brilhantes desabrochavam em rosetas e os tordos pairavam e os melros piavam e gralhavam. Era um mundo novo, fascinante.

Miriam, espreitando da janela da cozinha, viu o cavalo transpor o grande portão branco do pátio, recortando-se contra o bosque de carvalhos desfolhados, em fundo. Nisto, um rapaz envergando um casacão muito grosso saltou para o chão e estendeu as mãos para segurar o chicote e a manta que o lavrador sadio e bem-humorado lhe entregava.

Miriam assomou-se à porta. Tinha quase dezasseis anos, era linda, de faces rosadas, ar grave e uns olhos subitamente dilatados, como em êxtase.

– Vejo – disse Paul virando-se envergonhado – que os teus narcisos estão quase a desabrochar. Não será cedo de mais? Não achas que está ainda muito frio?

– Frio? – repetiu Miriam, na sua voz terna e musical.

– O verde dos botões... – e Paul interrompeu-se, timidamente.

– Deixa-me levar-te a manta – disse Miriam, com exagerada amabilidade.

– Eu posso bem levá-la – respondeu ele, mostrando-se ofendido. Contudo, entregou-lha.

Entretanto, apareceu Mrs. Leivers.

– Deves estar cansado e cheio de frio – disse ela. – Dá-me o casaco. Que pesado.... não vais longe com ele.

Ajudou-o a despir o casacão, amabilidade a que o rapaz não estava habituado, e quase sucumbiu a tanto peso.

– Ena, mulher – disse o lavrador a rir, quando passou pela cozinha com as grandes bilhas de leite a baloiçar. – Tás aí que nem t’aguentas. – Ela ajeitou as almofadas no sofá para o rapaz se encostar.


CONTINUA

Paul, sempre atrás dele, contornou o balcão quadrangular. A sala onde estava ficava no segundo andar. Tinha um grande buraco no meio do chão, rodeado por um muro de balcões, e era por essa abertura que subiam e desciam os elevadores e passava a luz para o andar de baixo. No tecto, na mesma direcção, havia também um buraco oblongo, e, olhando para cima, podiam ver-se algumas máquinas para lá da cercadura de protecção do andar superior; e, logo por cima, uma clarabóia por onde entrava a luz para os três andares, tornando-se cada vez mais fraca à medida que se descia mais fundo, o que deixava o rés-do-chão às escuras e o primeiro andar na penumbra. A fábrica estava instalada no último andar, o armazém no segundo e a arrecadação no rés-do-chão. O lugar era velho e insalubre.

Paul foi levado para um canto muito escuro.

– Aqui é a secção Espiral – disse o empregado. – Tu fazes a Espiral com o Pappleworth. É ele o teu chefe, mas ainda não veio. Só chega lá para as oito e meia. Por isso, se quiseres, podes ir buscar as cartas a Mr. Melling, ali adiante.

E o jovem apontou para o tal velho do gabinete do fundo.

– Está bem – disse Paul.

– Está aqui uma escápula para pendurares o boné... e aqui tens os livros de registo da correspondência. Mr. Pappleworth já não deve demorar.

E o jovem, muito magro, afastou-se altaneiro, com grandes passadas desenvoltas, que ressoavam secas no soalho.

Passados um ou dois minutos, Paul parou à porta do gabinete envidraçado. O velho funcionário, com o seu bonezinho, olhou-o por cima dos óculos.

– Ora muito bom dia – disse, afável e enfático. – Queres as cartas para levares para a Espiral, não é, Thomas?

Paul não gostou que ele lhe chamasse Thomas, mas pegou nas cartas e voltou para o seu recanto escuro, onde o balcão dobrava em ângulo, onde acabava a prateleira das embalagens, e onde, mesmo ao canto, se abriam três portas. Paul sentou-se num banco alto e começou a ler as cartas, pelo menos, aquelas cuja letra era mais legível. Diziam o seguinte:

«Queira enviar-me por favor, com a máxima urgência, um par de meias de seda Espiral para senhora, sem pé, idênticas às que me enviou o ano passado... altura... da anca ao tornozelo... etc.»

Ou então: «O Major Chamberlain deseja renovar o anterior pedido de uma ligadura suspensória em seda, não elástica.»

Muitas destas cartas, algumas delas em francês ou norueguês, eram um quebra-cabeças para o rapaz, que aguardava ansioso, sentado no banco, a chegada do «chefe». Às oito e meia, sofreu um ataque de timidez quando as raparigas do andar de cima passaram por ele a correr.

Mr. Pappleworth apareceu por volta das vinte para as nove, a mastigar uma pastilha elástica de mentol, quando já todos estavam a trabalhar. Era um homem magro e pálido, de nariz vermelho e gestos rápidos e peremptórios, trajando com austera elegância. Devia andar pelos trinta e seis anos e havia nele algo de canino, garboso, brincalhão e astuto, afectuoso talvez, mas simultaneamente algo de ligeiramente desprezível.

– És o meu novo ajudante? – perguntou. Paul pôs-se de pé e disse que sim.

– Foste buscar as cartas?

Mr. Pappleworth continuou a mastigar a pastilha.

– Sim.

– Copiaste-as?

– Não.

– Então anda cá, vamos pôr-te operacional. Já trocaste de casaco?

– Não.

– O melhor é trazeres um casaco velho e guardá-lo aí.

As últimas palavras foram pronunciadas com a pastilha apertada de lado, entre os queixais. Desapareceu na penumbra, por detrás da enorme prateleira das embalagens, e reapareceu já sem casaco, com uma elegante camisa às riscas com os punhos dobrados, deixando a descoberto uns braços magros e peludos. Depois, enfiou o outro casaco. Paul reparou na magreza deste homem e em como as calças faziam pregas no traseiro. Pegou num banco, puxou-o para junto do rapaz e sentou-se.

– Senta-te – disse o homem. Paul sentou-se. Mr. Pappleworth estava muito próximo dele. Pegou nas cartas, tirou um livro comprido, de registos, da prateleira em frente, abriu-o, pegou numa caneta e disse:

– Agora, presta atenção... Vais copiar estas cartas para aqui.

Fungou duas vezes, deu uma mastigadela na pastilha, olhou demoradamente para uma carta, quedou-se pensativo e deu entrada da carta rapidamente, numa caligrafia bonita e floreada. Depois, olhou de relance para Paul.

– Estás a ver?

– Estou.

– Achas que consegues fazer o mesmo... e bem feito?

– Acho que sim.

– Então, está bem... vamos lá a ver.

Saltou para o chão. Paul pegou numa caneta. Mr. Pappleworth desapareceu. Paul gostava bastante de copiar cartas, mas escrevia devagar, laboriosamente, e muito mal. Ia ele na sua quarta carta, todo feliz e atarefado, quando Mr. Pappleworth voltou.

– Ora vejamos... que tal vai isso... já ’cabaste?

Debruçou-se sobre o ombro do rapaz, sem parar de mastigar e a cheirar a mentol.

– Diabos me levem, rapaz... Mas que belo escritor que tu me saíste! – exclamou ele, trocista. – Não te rales, quantas já fizeste? Só três! Eu tinh’até tido tempo de sobra pràs comer. Continua, miúdo, e numera-as... assim, tás a ver? Continua!

Paul não largava as cartas, enquanto Mr. Pappleworth tratava de outros assuntos. Nisto, soou um apito agudo mesmo junto ao ouvido dele, e o rapaz assustou-se. Mr. Pappleworth aproximou-se, tirou um tampão de dentro de um tubo e disse, numa voz inesperadamente agreste e autoritária:

– Sim!

Paul ouviu uma voz sumida, provavelmente de mulher, a sair pelo tubo. Ficou embasbacado, pois nunca tinha visto um tubo falante.

– Bem – disse Mr. Pappleworth, num tom agastado, falando para o tubo – nesse caso, o melhor é fazer algum do trabalho em atraso.

De novo a voz aguda da mulher se fez ouvir, com um timbre bonito, mas zangado.

– Não tenho tempo para estar aqui a ouvi-la tagarelar – disse Mr. Pappleworth, e em seguida tapou o tubo.

– Vá, miúdo, despacha-te – disse ele, suplicante, virando-se para Paul. – Era a Polly aos gritos, quer as encomendas. Não consegues andar um bocadinho mais depressa? Vá... sai daí.

Pegou no livro, para imenso desgosto de Paul, e começou ele mesmo a escrever. Fazia-o depressa e bem. Uma vez terminadas as cópias, pegou numas tiras compridas de papel amarelo, com cerca de sete centímetros de largura, e preencheu as encomendas para enviar às operárias.

– É melhor prestares atenção – disse ele a Paul, sem se interromper. Paul olhou para aqueles estranhos desenhos de pernas, coxas e tornozelos, cheios de traços e números, e algumas instruções, com que o chefe preenchia as tiras amarelas. Quando acabou, Mr. Pappleworth saltou do banco.

– Vem comigo – disse ele, e, de papéis amarelos a esvoaçar na mão, desapareceu por uma porta e desceu uma escada em direcção à cave, onde ardia uma lamparina de gás. Atravessaram a arrecadação húmida e fria, depois uma sala comprida e lúgubre com uma mesa enorme assente sobre cavaletes e entraram numa sala mais pequena e acolhedora, de tectos não muito altos, que tinha sido construída como anexo do edifício principal. Nesta sala estava uma mulher de pequena estatura, com uma blusa de sarja vermelha e cabelo preto apanhado ao alto num carrapito, em atitude expectante, de galarote.

– Cá tão elas – disse Pappleworth.

– Eu penso que será «Cá estão elas»! – exclamou Polly. – As raparigas estiveram aqui à espera quase meia hora. Pense só no tempo que se perdeu!

– Pense mas é em fazer o seu trabalho e falar menos – disse Mr. Pappleworth. – Podia ter despachado outras coisas.

– Sabe muito bem que despachámos tudo no sábado – gritou Polly, avançando para ele faiscante.

– Blá-blá-blá! – arremedou-a o homem. – Aqui tem o seu novo ajudante. Não dê cabo deste como deu do outro.

– Como nós demos do outro! – repetiu Polly. – Pois é, nós damos cabo de muita coisa, olá se damos. Também lhe digo que qualquer rapaz tinha de ficar estragado depois de estar ao pé de si.

– Vá, vá... agora é hora de trabalhar, não de conversar – disse Mr. Pappleworth num tom seco e severo.

– Também há pouco era – disse Polly, afastando-se de cabeça bem erguida. Tinha um corpo pequeno e escorreito, de quarenta anos.

Na dita sala havia duas máquinas redondas, espiraladas, em cima do poial da janela. Na sala ao lado, que comunicava com a primeira e era mais comprida, havia outras seis máquinas. Algumas raparigas dignamente vestidas e de aventais brancos conversavam umas com as outras, formando um pequeno grupo.

Não têm mais nada para fazer? – disse Mr. Pappleworth.

– Só esperar por si – disse uma delas, bem bonita, rindo com gosto.

– Bom, toca a trabalhar, toca a trabalhar – disse ele. – Anda, miúdo. Da próxima vez, já sabes o caminho.

Paul correu escada acima atrás do chefe. Mandaram-no conferir algumas facturas e fazer outras. Ele arrimou-se à secretária, esforçando-se por cumprir a tarefa na sua caligrafia execrável. Nisto, Mr. Jordan aproximou-se, vindo do gabinete envidraçado, e, para grande atrapalhação de Paul, veio pôr-se mesmo por detrás dele. Subitamente, um dedo gordo e vermelho espetou-se sobre o documento que ele estava a preencher.

– Mr. J. A. Bates, Esquire! – bradou uma voz irada, junto ao seu ouvido.

Paul olhou para o «Mr. J. A. Bates Esquire» escrito na sua letra tortuosa, e perguntou-se o que estaria mal agora.

– Não te ensinaram a fazer como deve ser, enquanto andavas na escola? Se se põe «Mr.», não se põe «Esquire»... um homem não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.

O rapaz, lamentando a sua prodigalidade no modo como esbanjava títulos, hesitou e, com dedos trémulos, apagou a palavra «Mr.». Mas logo Mr. Jordan lhe arrancou a factura das mãos.

– Faz outra! Ou vais mandar isto a um cavalheiro? – E rasgou a factura azul, irritadíssimo.

Paul recomeçou, com as orelhas a arder de vergonha, sob o olhar atento de Mr. Jordan.

– Não sei o que é que eles vos ensinam na escola. Devias escrever muito melhor do que isso. Hoje em dia, os miúdos não aprendem nada a não ser recitar poesia e tocar violino... Já viu a letra dele? – perguntou Mr. Jordan a Mr. Pappleworth.

– Já... é de primeira... não é? – respondeu Mr. Pappleworth com indiferença. – Mas ele vai aprender.

Mr. Jordan resmungou qualquer coisa desagradável. Paul percebeu que o patrão ladrava mais do que mordia. Na verdade, o pequeno fabricante era suficientemente cavalheiresco, apesar do seu mau inglês, para deixar os empregados à vontade e não se prender com ninharias. Mas tinha consciência de não ter aspecto de ser o dono e senhor de tudo aquilo, e via-se por isso forçado a desempenhar o seu papel de vilão, para repor as coisas nos seus devidos lugares.

– Ora vamos lá a ver, como é que te chamas? – perguntou Mr. Pappleworth ao rapaz.

– Paul Morel.

É curioso o que as crianças sofrem para pronunciarem os seus nomes.

– Com que então, Paul Morel! Muito bem, vá, Paul Morel, toca a acabar essa coisa, e depois...

Mr. Pappleworth sentou-se num banco e começou a escrever. Uma rapariga entrou por uma porta mesmo atrás dele, depositou em cima do balcão uns artigos de malha elástica acabados de passar a ferro e voltou a sair. Mr. Pappleworth pegou na joelheira azul claro, examinou-a, confrontou-a rapidamente com a nota de encomenda amarela e pô-la de parte. Ao lado estava uma «perna» rosada, cor de carne. Conferiu os vários artigos, preencheu algumas notas de encomenda e disse a Paul que o acompanhasse. Desta vez, saíram pela porta por onde a rapariga tinha entrado. Paul viu-se no cimo de um pequeno lanço de escadas, e em baixo viu uma sala com janelas em duas das paredes e, no extremo oposto, meia dúzia de raparigas sentadas, curvadas sobre si mesmas, a costurarem à luz das janelas e a cantarem em coro, «Duas Meninas Vestidas de Azul». Ao ouvirem a porta abrir-se, todas se voltaram e viram Mr. Pappleworth e Paul a olharem para elas do outro lado da sala. Pararam de cantar imediatamente.

– Não podem fazer menos barulho? – disse Mr. Pappleworth. – As pessoas hão-de pensar que temos a casa cheia de gatas.

Uma mulher corcunda, sentada num banco alto, voltou para Mr. Pappleworth a cara comprida e circunspecta, e disse com voz de contralto:

– Só se esses forem gatos.

Mr. Pappleworth em vão tentou causar efeito para impressionar Paul. Desceu as escadas até à sala de acabamentos e dirigiu-se à corcunda, uma tal Fanny. O seu corpo era tão pequeno, empoleirado no alto do banco, que a cabeça, com grandes bandós de cabelo castanho-claro, parecia excessivamente grande, tal como o rosto, pálido e grave. Trazia um vestido de caxemira verde-escuro, e, quando pousou o trabalho nervosamente, viu-se que os seus pulsos, cingidos por punhos estreitos, eram finos e achatados. Ele mostrou-lhe uma joelheira que tinha um defeito qualquer.

– Ora – disse ela – não precisava de vir atirar as culpas para cima de mim... a culpa não é minha – disse, subindo-lhe um rubor às faces.

– Eu não disse que a culpa era sua... e agora faça o que lhe mandei! – ripostou Mr. Pappleworth, secamente.

– Não diz que a culpa é minha, mas quer fazer parecer que é – gritou a corcunda, quase a chorar. Depois, arrancou a joelheira das mãos do «chefe», dizendo: – Está bem, eu faço isso, mas não precisa de vir com duas pedras na mão.

– Aqui está o seu novo ajudante – disse Mr. Pappleworth.

Fanny voltou-se e sorriu gentilmente para Paul.

– Oh! – disse ela.

– Pois é... agora vejam lá se o estragam com mimos.

– Se alguém o estragar, não somos nós – disse ela, indignada.

– Vamos embora, Paul – disse Mr. Pappleworth.

– Au revoi, Paul – disse uma das raparigas.

Foi uma risota. Paul saiu, corado até à alma, sem dizer palavra.

O dia nunca mais acabava. Durante toda a manhã, foram os operários a vir falar com Mr. Pappleworth, e Paul a escrever ou a aprender a preparar as embalagens para a tiragem do meio-dia. À uma da tarde, ou melhor, quando faltava um quarto para a uma, Mr. Pappleworth desapareceu, para apanhar o comboio: vivia nos arredores. À uma, Paul, sentindo-se perdido, levou o cesto do farnel para a arrecadação da cave, onde estava a tal mesa comprida sobre cavaletes, e comeu à pressa, completamente sozinho naquele espaço de penumbra e desolação. Depois, foi passear para a rua. A claridade e a liberdade que sentia nas ruas tornavam-no feliz e afoito. Mas, às duas horas, voltou para o seu canto na sala grande. Não tardou que passassem as raparigas, metendo-se com ele. Eram as de mais baixa condição, as que trabalhavam no andar de cima em tarefas mais pesadas, como o fabrico de fundas e os acabamentos dos membros artificiais. Paul ficou a aguardar a chegada de Mr. Pappleworth, sem saber o que fazer, sentando-se a rabiscar nas notas de encomenda amarelas. Mr. Pappleworth chegou às vinte para as três, sentou-se e pôs-se a tagarelar com Paul, tratando o rapaz como seu igual, até na idade.

De tarde nunca havia muito que fazer, a não ser que fosse perto do fim-de-semana e as contas tivessem de ser fechadas. Às cinco horas, todos os homens foram até à «masmorra» da mesa de cavaletes, onde tomaram chá e pão com manteiga em cima das tábuas nuas e imundas, conversando com a mesma avidez e grosseria com que tomavam a refeição. No entanto, lá em cima, o ambiente era sempre alegre e desanuviado. Certamente a cave e os cavaletes deixavam-nos transtornados.

Depois do chá, quando todos os bicos de gás estavam acesos, o trabalho fluía com mais rapidez. Era preciso despachar as encomendas para o correio da tarde. As meias chegavam lá acima ainda quentes, acabadinhas de passar, directamente das oficinas. Paul já tinha passado todas as facturas. Faltava-lhe fazer agora as embalagens e endereçá-las, e depois pesar as suas encomendas na balança. Por todo o lado se ouviam vozes a gritar pesagens, o tilintar de metais, o estalar nervoso dos cordéis, a corrida ao gabinete de Mr. Melling, para os selos. Finalmente, chegou o carteiro, sorridente e bem-disposto, como seu enorme saco. Depois a agitação abrandou, Paul pegou no cesto do farnel e correu para a estação, para apanhar o comboio das oito e vinte. O dia de trabalho era exactamente de doze horas.

A mãe esperava por ele, ansiosa. Paul tinha de ir para casa a pé desde Keston, pelo que não chegou a casa antes das nove e vinte; e tinha saído de casa antes das sete da manhã. Mrs. Morel preocupava-se com a saúde do filho, mas também ela já tivera de enfrentar tantas dificuldades, que esperava que os filhos tivessem agora a mesma genica. Teriam de suportar o que fosse preciso. Assim, Paul manteve-se na Jordan, embora durante a sua permanência nesse emprego a sua saúde sofresse com a falta de luz e de ar fresco, e as longas horas de trabalho.

Quando chegou, vinha pálido e cansado. A mãe olhou para ele, mas viu-o tão satisfeito que a sua preocupação desapareceu.

– Então, como é que foi? – perguntou ela.

– Foi tão engraçado, mãe – respondeu ele. – O trabalho não é nada pesado e eles foram muito bons para mim.

– E saíste-te bem?

– Claro... só dizem que a minha letra é péssima. Mas Mr. Pappleworth... o meu chefe... disse a Mr. Jordan que eu ia aprender. Estou na Espiral, mãe. Tem de ir lá ver. É tão bom...

Paul contou tudo à mãe, tudo o que tinha visto, pensado, todos os pormenores da experiência que vivera. A única coisa que escondeu dela foi o ter escrito «Mr. J. A. Bates Esquire». Isso, ele não queria que ela soubesse; sentia muita vergonha. Também não lhe relatou nada de mais desagradável que lhe tivessem dito, só as coisas boas, tentando fazê-la crer que estava feliz e era estimado, e que a vida lhe corria de feição... o que geralmente acontecia. Contou-lhe tudo, excepto as pequenas vergonhas ou ignomínias; jamais suportaria vê-la envergonhada ou vexada por sua causa.

Paul depressa aprendeu a gostar da Jordan. Mr. Pappleworth, que tinha um certo ar de frequentador de bares, tratava-o sempre com naturalidade, como se fossem amigos de longa data. Às vezes, o chefe da Espiral irritava-se, e então mastigava pastilhas elásticas sem parar. Mesmo assim, nunca era ofensivo, mas sim uma daquelas pessoas que se magoam mais a si próprias do que aos outros com a sua irritabilidade.

– Ainda não fizeste isso? – gritava ele. – Já vi que és um mês só com domingos.

E logo se punha de novo alegre e brincalhão, o que deixava Paul muito confuso.

– Amanhã trago a minha cadelinha Yorkshire terrier – disse ele a Paul, rejubilando.

– O que é isso de Yorkshire terrier?

– O quê? Pois tu não sabes o que é uma Yorkshire terrier?... Não saber o que é um Yorkshire! – Mr. Pappleworth estava pasmado.

– É um cãozinho de pêlo sedoso... em tons de ferrugem e prata oxidada?

– É isso mesmo, meu rapaz. A minha é uma pérola. Já teve cachorrinhos que me renderam cinco libras, e ela própria vale mais de sete libras: e não chega a pesar uma libra e meia...

No dia seguinte, a cadela veio com ele. Era dez réis de cão tremeliquento. Paul não lhe ligou nenhuma; a cadela mais parecia um trapo molhado sem esperança de secar. Nisto, um dos homens chamou-a e começou a dizer piadas grosseiras. Mas Mr. Pappleworth meneou a cabeça na direcção do rapaz e a conversa prosseguiu a meia-voz.

Mr. Jordan fez apenas mais uma excursão à Espiral, para inspeccionar o trabalho de Paul e o único reparo que lhe fez, ao ver o rapaz pousar a caneta no balcão, foi:

– Tens de pôr a caneta na orelha, se queres ser um caixeiro a sério. Vá, caneta na orelha!

Num outro dia, disse ao rapaz:

– Não endireitas mais esses ombros porquê? Ora vem cá. E levou-o ao gabinete envidraçado, onde lhe colocou uns suspensórios especiais para manterem os ombros direitos.

Mas Paul preferia a companhia das raparigas. Os homens pareciam-lhe grosseiros e pouco espertos. Simpatizava com todos eles, mas achava-os desinteressantes. Ao encontrar Paul a comer na cave, Polly, a supervisora baixinha e sirigaita do rés-do-chão, perguntou-lhe se ele não queria que ela lhe cozinhasse alguma coisa no seu fogareiro e, no dia seguinte, a mãe mandou-lhe uma refeição que podia ser aquecida. Ele levou-a à salinha limpa e aconchegada onde Polly trabalhava, e depressa adquiriu o hábito de almoçar com ela. Quando chegava ao trabalho, às oito da manhã, levava-lhe o cesto, e quando descia à uma hora, já o almoço estava pronto.

Paul era pálido, não muito alto, cabelo espesso e castanho, feições irregulares e uma boca rasgada, de lábios cheios. Ela parecia um passarinho, e ele até a tratava muitas vezes por pisco. Embora fosse geralmente muito calado, com ela passava horas sentado a conversar, a contar-lhe peripécias familiares. Todas as raparigas adoravam ouvi-lo; formavam muitas vezes um círculo à sua volta, enquanto ele discursava e ria, sentado num banco. Algumas consideravam-no um fulaninho curioso, tão sério e, no entanto, tão inteligente e bem-disposto, e sempre tão delicado no modo como as tratava. Todas gostavam dele e ele adorava-as. Com Polly era diferente; a essa, ele sentia que pertencia. Mas era Connie, com a sua farta cabeleira ruiva, a sua tez de flor de macieira, a voz sussurrada, e sempre tão distinta no seu vestido preto já gasto, que apelava ao seu lado romântico.

– Quando te sentas a enrolar a meada – disse ele – parece que estás a fiar na roca... é um quadro tão bonito. Faz-me lembrar a Elaine, dos Idílios do Rei. Se eu soubesse, desenhava-te. – Ela olhou para ele de relance, timidamente ruborizada. Mais tarde, havia um esboço de que ele muito gostava: Connie sentada num banquinho, em frente à roca, a longa crina ruiva flamejante sobre o vestido preto ruçado, e os lábios rubros selados e muito sérios, a passar o fio escarlate do novelo para a bobina.

Com Louie, bonita e atiradiça, que parecia estar sempre a provocá-lo com o menear das ancas, punha-se geralmente a brincar.

– O que estás a fazer?

– Porque queres saber? – respondeu ela, levantando a cabeça, atrevida.

– Porque acho que tu não te conheces.

– Porquê?

– Porque não tens ar de te conheceres.

– Então tenho cara de quê?

– Tens cara de quem está sempre a pensar nalguma coisa. Em que é que estavas a pensar?

Ela olhou-o pelo canto do olho e disse, com uma gargalhada:

– Isso era o que tu querias saber, não era?

– Sai daí – disse ele. – Vamos lá dar uma volta à tua meia.

E, depois, pegando na manivela da máquina, começou a rodá-la.

Mas ela empurrou-o.

– Isso vai ficar tudo mal – exclamou.

E ficaram os dois a olhar um para o outro, a rir às gargalhadas.

Emma era bastante feia, e não era nem nova nem condescendente. Sentia-se, porém, feliz por se mostrar condescendente com Paul. E ele não se importava.

– Como é que se metem as agulhas? – perguntou ele um dia.

– Sai daqui, não me maces.

– Mas eu devia saber como é que se metem as agulhas.

Ela continuou a coser à máquina, sem pestanejar.

– Há tantas coisas que devias saber – respondeu ela.

– Então ensina-me a colocar as agulhas na máquina.

– Ai, este rapaz sempre é muito maçador! ... Pronto, é assim que se faz...

Ele observou-a atentamente. Nisto, soou um apito, e a seguir Polly entrou e perguntou em voz bem audível:

– Paul, Mr. Pappleworth quer saber por quanto tempo vais ficar cá em baixo a brincar com as raparigas.

Paul correu pela escada acima, a gritar «Adeusinho!», e Emma endireitou-se na cadeira e explicou:

– Não fui eu que quis que ele estivesse a brincar com a máquina.

– Qu’é qu’andavas a fazer? – perguntou Mr. Pappleworth, quando o rapaz apareceu.

– Estava só a falar com a Emma, e a aprender a colocar as agulhas na máquina.

– O melhor é pegares no teu trabalho e mudares-te lá pra baixo.

– Mas aqui não havia nada de especial para fazer, pois não?

– Mal tu saíste daqui, o patrão veio à tua procura. Um dia sai-te caro! E então estes registos?

Paul meteu mãos à obra cheio de vontade.

Regra geral, quando as raparigas voltavam, às duas horas, ele ia ao andar de cima ter com Fanny, a corcunda, que trabalhava nos acabamentos.

Mr. Pappleworth só chegava às vinte para as três, e vinha encontrar muitas vezes o rapaz sentado ao lado de Fanny a conversar, a desenhar ou a cantar com as raparigas.

– Vem cá, Paul, meu querido – gritava a Fanny. – Até pensámos que hoje não vinhas cá acima. Pensávamos que ias ficar lá em baixo por não gostares da nossa companhia.

– Fui à cidade.

– Para quê, meu lindo?

– Para ver se encontrava uma cestinha de mirtilos para a minha mãe.

– E encontraste?

E, uma vez iniciada a conversa, nunca mais terminavam. Paul gostava muito de Fanny e a corcunda gostava muito dele. Ela tinha vinte e nove anos e sofrera muito. Ele gostava de ficar sentado ao lado dela, à janela, a olhar para a rua e a desenhar a bizarra floresta de chaminés e telhados antigos e bicudos que a vista alcançava. Depois dizia:

– Canta qualquer coisa, Fanny.

– Sabes que mais? Tu não queres que eu cante – dizia ela, manejando a agulha com destreza, com as mãos magras e nervosas. – Tu queres é fazer pouco de mim.

– Não quero nada! Mas é que eu disse à minha mãe que cantavas muito bem...

– Não sei o que é que a tua mãe ia pensar de mim, se me visse, Paul. Ia pensar que eu era um macaco encarrapitado num pau.

– Ela sabe como tu és, porque eu já lhe contei. E gosta de ti. Canta lá «Naquela Taberna...». Este desenho vai ficar uma maravilha.

E, passado um minuto de hesitação, Fanny começou a cantar. Tinha uma bela voz de contralto, e todas as raparigas cantaram em coro e muito afinadas. Paul não se sentia nada embaraçado por estar ali sentado no meio das mulheres.

Quando terminou, Fanny disse:

– Sei que estão a fazer troça de mim.

– Não sejas assim, Fanny! – exclamou uma das colegas.

Uma outra vez, falou-se no cabelo ruivo de Connie.

– Cá pra mim, acho o da Fanny mais bonito – disse Emma.

– Não precisas de fazer pouco de mim – disse Fanny, agastada.

– Mas ela tem o cabelo mesmo bonito, Paul.

– É uma cor especial – disse ele. – Aquela cor fria, como a terra, e mesmo assim brilhante... como um pântano.

– Santo Deus! – exclamou uma das raparigas, a rir.

– Estás a ver como só me criticam? – disse Fanny.

– E havias de o ver solto, Paul – gritou Emma, falando a sério. – É simplesmente uma beleza. Solta o cabelo pra ele ver, Fanny, pode ser que ele o queira pintar.

Fanny recusou-se, e, no entanto, era o que mais queria fazer.

– Então solto-lho eu – disse o rapaz.

– Bem, já que insistes – disse Fanny.

Paul tirou os ganchos do carrapito com todo o cuidado, e a longa cabeleira, num tom castanho-escuro uniforme, caiu sobre a corcunda.

– Que maravilha! – exclamou ele.

As raparigas observavam-no. Reinava o silêncio. O jovem soltou-lhe mais o cabelo.

– É esplêndido – disse, sentindo-lhe o perfume. – Aposto que vale muitas libras.

– Deixo-to quando morrer – disse Fanny, em tom de brincadeira.

– Pareces-te com qualquer de nós, sentada a secar o cabelo – disse uma das raparigas à colega corcunda e pernalta.

A pobre da Fanny era morbidamente susceptível, em tudo adivinhando insultos, ao passo que Polly era directa e factual. As duas secções estavam permanentemente em guerra, e Paul vinha constantemente encontrar Fanny lavada em lágrimas. Fanny contava-lhe todas as suas mágoas, e ele, depois, ia defendê-la junto de Polly.

A filha de Mr. Jordan era pintora. Um dos seus modelos era Connie, que lhe falou de Paul. Primeiro, Miss Jordan pediu para ver alguns dos seus desenhos, e, a seguir, veio ela própria falar com ele. Era uma mulher fria e impessoal, mas mostrou algum interesse pelo rapaz.

E assim foi correndo o tempo, em harmonia. A fábrica tinha um ambiente agradável. Ninguém era empurrado ou pressionado. Paul até gostava quando o trabalho acelerava perto da hora do correio e todos se entreajudavam. Gostava de ver os colegas em acção. O homem era o trabalho e o trabalho era o homem, unidos num só. Com as raparigas era diferente. A verdadeira mulher parecia nunca estar ali presente no trabalho – era como se estivesse de fora, à espera.

Da janela do comboio, quando à noite regressava a casa, observava as luzes da cidade povoando as colinas e fundindo-se nos vales com um clarão ardente. E Paul sentia-se rico de experiência e felicidade. Mais adiante, havia uma mancha de luz em Bulwell, como miríades de pétalas caídas das estrelas sobre a terra; e, mais além, o jorro incandescente das fornalhas, projectando nas nuvens o seu sopro abrasador.

Chegado a Keston, ainda tinha de andar mais de duas milhas até casa, subindo duas colinas mais longas e descendo outras duas mais curtas. Sentindo-se muitas vezes cansado, ia contando os candeeiros à medida que subia, para ver quantos ainda faltavam. E, do alto da colina, nas noites de breu, via as aldeias espalhadas a toda a volta, a cinco ou seis milhas de distância, enxameando a noite de vida e luz, quase como um céu aberto a seus pés. Marlpool e Heanor semeavam de cintilações a escuridão mais longínqua. Uma vez por outra, o negro vale que se interpunha lá em baixo, era riscado, violado por um interminável comboio que rolava célere para sul, em direcção a Londres, ou rumo ao norte, para a Escócia. Os comboios troavam como projécteis na escuridão, fumegantes e acesos, fazendo retinir o vale à sua passagem. Mas logo desapareciam, e as luzes das cidades e das aldeias cintilavam outra vez, mergulhadas no silêncio.

Chegava, por fim, à esquina da casa, virada para o outro lado da noite. O freixo parecia agora um amigo. A mãe vibrava de alegria vendo-o chegar. Ele depositava os oito xelins orgulhosamente sobre a mesa.

– Fazem-lhe jeito, mãe? – perguntava, ansioso.

– Não vai sobejar quase nada depois de descontar o bilhete, as refeições e tudo o mais.

Em seguida, punha-a ao corrente dos acontecimentos do dia. A história da sua vida, como nas Mil e Uma Noites, mas muito mais monótona, era contada à mãe noite após noite. E ela escutava e era quase como se a vida fosse dela.


VI

UMA MORTE NA FAMÍLIA

ARTHUR MOREL ia crescendo. Era um rapaz vivo, descuidado e impulsivo, muito parecido com o pai. Tinha horror aos estudos, resmungava sempre que tinha de trabalhar e escapava-se o mais depressa que podia, para voltar para a brincadeira.

Fisicamente, continuava a ser o menino bonito da família, bem constituído, gracioso, cheio de vida. O cabelo castanho-escuro, a frescura da tez e os olhos raros, de um azul profundo e sombreados de longas pestanas, a par dos seus modos generosos e temperamento fogoso, faziam dele o preferido. Mas, à medida que crescia, o temperamento ia-se tornando instável. Tinha acessos de fúria por tudo e por nada, e mostrava-se insuportavelmente violento e irritável.

A mãe, de quem tanto gostava, já começava a perder a paciência. Arthur só pensava em si próprio. Detestava tudo o que se interpusesse entre si e o seu prazer, mesmo quando esse «tudo» era a mãe. Mas, quando se metia em apuros, era com ela que tinha intermináveis desabafos.

– Meu Deus, rapaz – disse ela, quando ele se veio queixar de um professor que, segundo ele, o tomara de ponta – se não te agrada a situação, tens de a fazer mudar, e se não podes mudar nada, tens de te adaptar.

Quanto ao pai, que ele amara desmedidamente e que o idolatrava, acabou por detestá-lo. Com a idade, Morel transformou-se lentamente numa ruína viva. O seu corpo, em tempos belo nas formas e na agilidade, mirrou com os anos, não parecendo ter amadurecido, mas, pelo contrário, ter-se tornado insignificante e desprezível, emanando baixeza e mesquinhez. E sempre que este homem de meia-idade e olhar perverso o injuriava ou o tratava com prepotência, Arthur ficava furioso. Ainda por cima, os modos de Morel eram cada vez mais grosseiros, e os seus hábitos quase repugnantes. Na fase de crescimento dos filhos e durante o período crítico da adolescência, o pai surgia-lhes aos olhos da alma como um ser feio e irritante. Em casa, os seus modos eram idênticos aos que usava com os outros mineiros no fundo da mina.

– Monstro nojento! – gritava Arthur, saltando da cadeira e saindo de casa, quando o pai o enojava.

E Morel fazia ainda pior, por saber que as crianças o detestavam. Parecia sentir prazer em afrontá-las, a ponto de quase as enlouquecer, quando, aos catorze ou quinze anos, atravessavam a fase de extrema sensibilidade e irritabilidade. Assim, Arthur, que cresceu quando o pai já se encontrava em declínio e a caminho da velhice, odiava-o acima de tudo.

Por vezes, o pai parecia pressentir todo esse ódio e desprezo que os filhos tinham por ele.

– Não há homem que se sacrifique mais pela família – bordava então. – Faz por eles tudo o que pode, e tratam-no como um cão. Mas eu tenho força para aguentar, estão a ouvir!

Não fora o tom ameaçador e o facto de não fazer por eles tanto quanto pensava, e teriam até sentido pena. Nesta altura, a guerra instalava-se quase sempre entre pai e filhos, com o primeiro persistindo nos seus modos grosseiros só para afirmar a sua autoridade. Os filhos detestavam-no.

Por fim, Arthur já andava tão exaltado e irritado que, quando ganhou uma bolsa para ir para a escola secundária de Nottingham, a mãe achou por bem deixá-lo ficar a viver na cidade com uma das suas irmãs, vindo apenas a casa aos fins-de-semana.

Annie ainda era professora estagiária na escola primária, onde ganhava quatro xelins por semana. Mas em breve seriam quinze, uma vez que passara o exame final, o que traria à família tranquilidade financeira.

Mrs. Morel era muito agarrada a Paul. Ele era calado e não excessivamente inteligente, mas continuava fiel à pintura e à mãe. Tudo o que fazia era para ela. E ela esperava pela sua chegada à noitinha, para desabafar com ele todos os seus pensamentos, tudo o que lhe acontecera durante o dia. E ele ouvia-a, sentado e atento. Era o partilhar de duas vidas.

William estava noivo da tal morena, e tinha-lhe comprado um anel de noivado que custara oito guinéus. Os irmãos ficaram sem fôlego perante soma tão fabulosa.

– Oito guinéus! – disse Morel. – Bem parvo é!... Ficava-lhe melhor se me tivesse dado antes algum a mim.

– Dar-te algum, a ti! – exclamou Mrs. Morel. – Porque havia ele de te dar algum?

Mrs. Morel lembrou-se de que o marido não lhe tinha comprado anel de noivado e, a seu ver, antes ser como o William, que não era mesquinho, embora pudesse ser parvo. Mas agora o jovem só falava nos bailes a que tinha ido com a noiva e nos vestidos deslumbrantes que ela usava; ou então contava à mãe, rejubilante, como tinham os dois ido ao teatro em grande estilo.

William queria trazer a namorada para os pais conhecerem, e Mrs. Morel disse-lhe que a trouxesse no Natal. Desta vez, William chegou acompanhado de uma senhora, mas sem presentes. Mrs. Morel tinha preparado a ceia. Ao ouvir passos, levantou-se e foi à porta. William entrou.

– Olá, mãe! – deu-lhe um beijo apressado, chegou-se para o lado e apresentou-lhe uma rapariga alta e bonita, vestida com um saia-e-casaco preto e branco aos quadradinhos e uma estola de peles.

– Cá está a Ciganita!

Miss Western estendeu a mão e rasgou um sorriso de muitos dentes.

– Oh, como está, Mrs. Morel! – exclamou.

– Devem estar com fome – disse Mrs. Morel.

– Não, não estamos. Jantámos no comboio... Tens as minhas luvas, Fofinho?

William Morel, alto e ossudo, olhou para ela acto contínuo.

– Como é que havia de tê-las? – disse ele.

– Então perdia-as. Não te zangues comigo...

Viu-se que ele tinha ficado aborrecido, mas não disse nada. Ela relanceou o olhar pela cozinha. Achou-a pequena e bizarra, com o ramo de azevinho pendurado na parede e as sempre-vivas por detrás das fotografias, as cadeiras de madeira e a mesinha de jogo. Nessa altura, entrou Morel.

– Olá, pai!

– Olá, meu filho... Mas que surpresa!

Apertaram as mãos, e William apresentou-lhe a senhora. Ela reeditou o sorriso, mostrando os dentes.

– Como está, Mr. Morel. – Morel inclinou-se respeitosamente.

– Tou bem, obrigado, e espero que também esteja... Seja muito bem-vinda.

– Ah, obrigada – respondeu ela, bastante divertida.

– Há-de querer ir para cima – disse Mrs. Morel.

– Se não se importa... mas só se não a incomodar.

– Não incomoda nada... A Annie vai consigo... Walter, leva este baú para cima.

– E não leves uma hora a aperaltar-te – disse William para a noiva.

Annie pegou num candelabro de latão e, muda de vergonha, subiu à frente da jovem até ao quarto principal, que Mr. e Mrs. Morel lhe tinham cedido. Era também pequeno e frio, iluminado apenas pelas velas. As mulheres dos mineiros só acendiam as lareiras nos quartos em caso de doença muito grave.

– Quer que desaperte as correias do baú?

– Ah, muito obrigada!

Annie estava a fazer o papel de criada. Em seguida voltou para baixo para ir buscar água quente.

– Ela deve estar muito cansada, mãe – disse William. – É uma viagem muito violenta, e na correria em que andámos...

– Queres que lhe leve alguma coisa? – perguntou Mrs. Morel.

– Não, não... Ela está bem.

Mas havia um certo gelo no ar. Passada mais de meia hora, Miss Western desceu, envergando um vestido em tons de púrpura, demasiado fino para a cozinha do mineiro.

– Tinha-te dito que não precisavas de trocar de roupa – disse William.

– Deixa lá, Fofinho!... – E, mantendo o sorriso adocicado, voltou-se para Mrs. Morel: – Não acha que ele está sempre a resmungar, Mrs. Morel?

– Ah, está? – disse Mrs. Morel. – Isso é muito feio.

– E é mesmo!

– Deve estar com frio – disse a mãe. – Não quer vir para a la-reira? – Morel saiu imediatamente da cadeira de braços.

– Venha pr’àqui – exclamou ele. – Venha pr’àqui.

– Não, pai... Não saia da sua cadeira... senta-te no sofá, Ciganita – disse William.

– Não senhor! – insistiu Morel. – Esta cadeira é mais quente. Venha sentar-se aqui, Miss Wesson.

– Muitíssimo obrigada – disse a rapariga, sentando-se na cadeira de braços do mineiro, ou seja, o lugar de honra. Teve uma tremura ao sentir o calor da cozinha invadi-la.

– Vai buscar-me um lenço, Fofinho! – disse ela, fazendo beicinho e dirigindo-se-lhe no tom íntimo de quando estavam sozinhos, o que fez os restantes membros da família sentirem-se como intrusos. Era evidente que a jovem não os considerava como pessoas: para ela não passavam de criaturas. William estremeceu.

Se aquela casa fosse em Streatham, Miss Western seria a senhora, condescendendo a conviver com a camada inferior. Para ela, estas pessoas eram no mínimo grotescas – numa palavra, da classe trabalhadora. Como poderia ela adaptar-se?

– Eu vou – disse Annie.

Miss Western ignorou-a, como teria feito com uma criada, e só quando ela voltou para baixo com o lenço disse então, com afabilidade:

– Oh, muito obrigada.

Depois, desatou a falar: do jantar no comboio, que não tinha prestado para nada, de Londres, dos bailes. Via-se que estava muito nervosa e era o medo que a fazia falar. Morel, sentado a fumar um tabaco muito forte, observava-a enquanto lançava baforadas de fumo para o ar e ouvia com atenção a sua petulante algaraviada londrina. Mrs. Morel, ostentando a sua melhor blusa de seda preta, ia-lhe respondendo com calma e poucas palavras. Os outros filhos estavam sentados, em admirativo silêncio. Miss Western era a princesa. Tinham ido buscar tudo o que havia de melhor para a servir: as melhores chávenas, as melhores colheres, a melhor toalha, o melhor bule. As crianças achavam que ela devia estar a apreciar muito o acolhimento. Mas ela sentia-se mal, por não entender as pessoas, por não saber como tratá-las. William ia dizendo piadas, sentindo-se ligeiramente comprometido.

Por volta das dez horas, disse-lhe:

– Não estás cansada, Ciganita?

– Muito, Fofinho – respondeu ela, com voz melada e inclinando a cabeça ligeiramente para o lado.

– Acendo a vela, mãe? – disse ele.

– À vontade – respondeu a mãe.

Miss Western levantou-se e estendeu a mão a Mrs. Morel.

– Boa noite, Mrs. Morel – disse ela.

Paul, sentado em frente da caldeira, deixou jorrar a água da torneira para dentro de uma garrafa de cerveja em grés. Annie abafou a garrafa numa velha camisola da mina, e deu à mãe um beijo de boas-noites. Com a casa cheia, ia ter de dormir com a senhora.

– Espera um bocadinho – disse Mrs. Morel à filha. Annie sentou-se com a botija ao colo. Miss Western despediu-se de todos com um aperto de mão, para grande atrapalhação dos presentes, e saiu, precedida por William. Passados cinco minutos, ele voltou para baixo. Sentia o coração oprimido, sem saber porquê. Falou muito pouco até todos se terem ido deitar, excepto ele e a mãe. Depois, foi pôr-se de pé frente à lareira, de pernas afastadas como costumava fazer noutros tempos, e disse, titubeante:

– Então, mãe?

– Então o quê, meu filho?

A mãe sentou-se na cadeira de baloiço. Sentia-se de certo modo ferida e humilhada por causa dele.

– Gosta dela?

– Gosto – tardou a resposta.

– Ela ainda está pouco à vontade, mãe... não está acostumada a tudo isto. É muito diferente da casa da tia dela, sabe.

– Claro que é, meu filho... Deve ser difícil para ela.

– Pois é. – E, de repente, a expressão carregou-se-lhe. – Se ao menos ela não pusesse aqueles benditos ares!

– É só a primeira reacção, meu filho. Aquilo passa-lhe.

– Tem razão, mãe – respondeu ele, gratificado. Mas o olhar continuava triste. – Sabe, ela não é como a mãe... não é compenetrada... e não se cansa muito a pensar.

– Ela é muito nova, meu filho.

– É isso!... E não teve sorte nenhuma. A mãe morreu quando ela era criança, e desde então vive com uma tia que ela já não consegue aturar. E o pai era um patife... Faltou-lhe o amor.

– Sério?!... Bem, nesse caso tens de a compensar de tudo isso.

– E perdoar-lhe muitas coisas.

– Que coisas é que tens de lhe perdoar, meu filho?

– Sei lá... quando ela se mostra superficial, por exemplo... É preciso lembrarmo-nos de que ela nunca teve ninguém que fizesse desabrochar o seu lado mais profundo... E ela gosta tremendamente de mim.

– Isso qualquer pessoa pode ver.

– Mas, sabe uma coisa, mãe... ela... ela é diferente de nós. As pessoas como ela, aquelas com quem se dá... não parecem ter os mesmos princípios que nós.

– Não deves fazer juízos precipitados – disse Mrs. Morel. Mas ele parecia contrafeito.

De manhã, contudo, levantou-se e pôs-se a cantar pela casa toda.

– Olá! – chamou ele, saudando-a do fundo das escadas, onde estava sentado. – Já te estás a levantar?

– Já – respondeu ela lá de cima, com voz sumida.

– Feliz Natal! – gritou ele.

No quarto, ouviu-se o riso dela, bonito e musical. Mas ela só desceu meia hora depois.

– Ela estava mesmo a levantar-se, quando disse? – perguntou William a Annie.

– Estava, sim – respondeu Annie.

William aguardou uns instantes e voltou para as escadas.

– Feliz Ano Novo! – gritou ele.

– Obrigada, Fofinho do meu coração! – disse uma voz risonha, de muito longe.

– Despacha-te! – implorou ele.

Tinha passado quase uma hora, e ele à espera dela. Morel, que se levantava sempre antes das seis, olhou para o relógio.

– Bem, já vi qu’é das que s’atrasam! – exclamou.

Já todos tinham tomado o pequeno-almoço, excepto William, que se foi postar ao fundo das escadas.

– Será que vou ter de mandar aí para cima um ovo de Páscoa? – gritou ele, já zangado. Ela limitou-se a rir. A família esperava algo de mágico depois de tão longa preparação. Finalmente, ela apareceu, com uma saia e uma blusa que lhe ficavam muito bem.

– Levaste mesmo todo este tempo para te vestires? – perguntou ele.

– Oh, Fofinho!... Isso não é pergunta que se faça, pois não, Mrs. Morel?

A princípio, ela representou o papel da grande dama. Quando entrou na capela ao lado de William, ele de fraque e chapéu de seda, e ela de estola de peles e saia-casaco dos melhores costureiros de Londres, Paul, Arthur e Annie esperavam que todos se curvassem até ao chão, em êxtase. E Morel, observando o parzinho galante do fundo da rua, com o seu fato domingueiro, sentia-se o pai do príncipe e da princesa.

Porém, a dama não era assim tão grande. Trabalhava desde há um ano como uma espécie de secretária, ou escriturária, num escritório de Londres.

Mas enquanto esteve com os Morels parecia uma rainha: sentava-se à mesa e deixava que Annie e Paul a servissem, como se fossem seus criados. Tratava Mrs. Morel com alguma petulância e Morel com paternalismo. Mas, passados um ou dois dias, a sua atitude começou a mudar.

William pedia sempre a Paul ou Annie que os acompanhassem nos passeios que davam. Era muito mais divertido. E Paul sentia real admiração pela Cigana, uma admiração genuína. Na verdade, a mãe não podia perdoar ao filho a adoração que mostrava pela jovem.

No segundo dia, quando Lily disse:

– Annie, sabes por acaso onde terei deixado o meu regalo? William respondeu:

– Sabes muito bem que está no teu quarto. Para que perguntas à Annie?

E Lily lá foi ao quarto, amuada, de lábios crispados. O rapaz já não suportava vê-la fazer da irmã uma criada.

Na terceira noite, William e Lily foram sentar-se na sala, às escuras, frente à lareira. Quando era um quarto para as onze, ouviram Mrs. Morel a abafar o borralho. William veio para a cozinha, seguido da namorada.

– Já é assim tão tarde, mãe? – disse ele. A mãe tinha passado a noite sozinha.

– Não quer dizer que seja tarde, meu filho... mas é tarde para eu continuar a pé.

– Então, porque não se vai deitar? – perguntou ele.

– E deixar os dois aqui sozinhos?... Não, meu filho, isso eu não faço.

– A mãe não tem confiança em nós?

– Tenha ou não tenha, é a mesma coisa... Podem ficar aqui até às onze horas, se quiserem, e eu leio mais um bocadinho.

– Vai deitar-te, Ciganita – disse William. – Não podemos fazer esperar a minha mãe.

– A Annie deixou a vela acesa, Lily – disse Mrs. Morel. – Acho que a luz será suficiente.

– Claro, obrigada. Boa noite, Mrs. Morel.

William acompanhou a namorada até ao fundo das escadas, deu-lhe um beijo e ela foi para o quarto. Ele voltou para a cozinha.

– Não tem confiança em nós, mãe? – insistiu ele, todo ofendido.

– Meu filho, já te disse que eu não vou deixar dois pombinhos como vocês sozinhos cá em baixo, com toda a gente a dormir.

E o filho não teve outro remédio senão contentar-se com a resposta. Deu um beijo à mãe e foi deitar-se.

Na Páscoa, chegou sozinho. Depois, falou longamente com a mãe sobre a namorada.

– Sabe, mãe... quando estou longe dela, nem penso nela... se não voltasse a vê-la, era a mesma coisa. Mas, quando estou com ela, à noite, gosto muito dela.

– É um amor muito estranho para acabar em casamento – disse Mrs. Morel. – Se é só isso que ela representa para ti!

– É engraçado! – exclamou William, entre o preocupado e o perplexo. – E, no entanto... Há demasiadas coisas entre nós, para eu desistir dela agora.

– Tu lá sabes – disse Mrs. Morel. – Mas, se é como dizes, eu não lhe chamaria amor... pelo menos, não parece.

– Não sei, mãe. Ela é órfã, e...

Acabaram por não chegar a uma conclusão. Ele parecia confuso e aborrecido. Ela era muito reservada. Ele gastava todas as suas energias e dinheiro com esta rapariga. Quando veio a casa, mal tinha dinheiro para levar a mãe a Nottingham.

O salário de Paul, para grande alegria sua, tinha sido aumentado no Natal para dez xelins. O rapaz continuava muito satisfeito najordan, mas a sua saúde começou a ressentir-se do pesado horário de trabalho e das condições de isolamento. A mãe, para quem ele era cada vez mais importante, pensou em como poderia ajudá-lo.

A tarde de folga dele era à segunda-feira. Numa segunda-feira, em Maio, quando estavam os dois sozinhos a tomar o pequeno-almoço, ela disse:

– Acho que vamos ter um lindo dia.

Ele olhou-a surpreendido. Alguma coisa ela tinha para lhe dizer.

– Sabias que Mr. Leivers foi morar para uma quinta nova? Pois bem, ele convidou-me a semana passada para ir fazer uma visita a Mrs. Leivers, e eu prometi-lhe que te levava lá hoje, se estivesse bom tempo. Então, vamos?

– Oh, mãezinha, mas isso é óptimo! – exclamou Paul. – Vamos esta tarde, não é?

– Se não estiveres muito cansado... olha que é uma grande caminhada.

– A que distância fica?

– Quatro milhas.

– Ora... não sou eu que me canso por fazer quatro milhas... é a mãe. Acha que consegue?

– Claro que consigo.

– Que bom!... Que bom! – exclamou ele. – Vou voltar a correr para casa. E a quinta é bonita?

– Ele diz que sim... Tu logo dirás.

– Eu não conheço Mrs. Leivers, mãe. Conhece-a?

– Então não conheces... uma mulherzinha macambúzia, com uns grandes olhos castanhos, que se costumava sentar à nossa frente na capela.

– Não me lembro.

– Julgava que pelo menos te lembrasses do chapéu, mesmo que não te lembrasses de mais nada... usa sempre o mesmo chapéu desde há seis anos, desde que a conheço: um quico preto com um farrapo de renda prantado no cucuruto, às três pancadas. Quando a via com o chapéu no alto da cabeça, domingo atrás de domingo, sempre com o mesmo chapéu, só me apetecia ir lá tirar-lho. E o marido é tão elegante e bem-parecido.

– Se calhar, era pobre – alvitrou Paul.

– E que fosse! Sei que não estava pior do que eu. Só que tinha a mania de não comprar nada novo, dava-lhe para ali.

– E ao menos é simpática?

– É. Eu sempre gostei dela... mas ela não consegue andar à altura do homem que tem... Só o orgulho consegue uma coisa dessas, nada mais.

– Porquê?

– Ora bem, ela é uma mulher pequenina, delicada, fina, com uns grandes olhos castanhos... cheios de sentimento. E eu sei que tem passado muito com sete filhos e o pouco que o Alfred Leivers lhe dá. Acho que ele não gosta muito de trabalhos pesados... e daí, talvez... Mas assim, como a vida lhe correu mal e chegou ao estado a que chegou, é orgulhosa de mais para competir com as outras mulheres e agarra-se a um trapo antigo... mas é uma mulher bonita.

– E orgulhosa, mãe?

– Não... Com as outras pessoas, não. Mas consigo mesma não podia ser mais. A pobreza e a vida triste que leva corroem-lhe a alma e ela agarra-se àquela chapeleta preta, para troçar da sua própria pobreza... ou do marido... Só Deus sabe... Mas tu vais gostar dela. Eu gosto dela.

– Bem – disse Paul –, se vamos visitá-la à quinta, não vai estar de chapéu.

– Esperemos que não – disse Mrs. Morel. – É um escândalo e uma vergonha sobrecarregar um corpo frágil como o dela daquela maneira, mas também não precisava de andar naquela figura, por despeito. Faço ideia de como ele se deve sentir!...

Paul saiu à pressa para a estação, rejubilante. Em Derby Road, havia uma cerejeira a cintilar. O velho muro de tijolo junto ao pátio do Statutes brilhava em tons de escarlate, incandescentes, e a Primavera era uma labareda verde. A estrada íngreme estendia-se esplêndida, coberta da fria poeira matinal em alternâncias de sol e sombra, absolutamente estática. As árvores, orgulhosas, deixavam pender abaulados os ombros verdes e possantes. Durante toda a manhã, de dentro do armazém, o rapaz foi brindado com um quadro de Primavera.

Quando voltou para casa, a mãe estava excitadíssima.

– Sempre vamos? – perguntou ele.

– É só o tempo de me arranjar – respondeu ela.

– Conseguiu acabar o trabalho?

– Consegui.

Paul sentou-se à mesa, à espera do almoço. Ela trouxe-lhe a frigideira.

– Para que se foi meter a fazer sonhos de ruibarbo se tinha tão pouco tempo?

– Porque me apeteceu – disse a mãe. – E estou pronta quando tu estiveres.

Tinha feito os sonhos porque, durante a semana, o filho só vinha almoçar a casa neste dia, e gostava muito de sonhos.

– Não senhora... saia daqui. Quem faz isso sou eu.

Paul levantou-se e tentou tirar-lhe a frigideira da mão.

– Nem pensar nisso! – disse ela, agitando o garfo. – Temos muito tempo.

Ele voltou para a mesa, cabisbaixo, e ela continuou com os cozinhados.

– São mesmo coisas de mulher – disse ele. – Às voltas com a frigideira, quando devia estar a vestir-se para sair.

– São é mesmo coisas de rapazes, julgam que já sabem tudo – disse ela, colocando a sobremesa diante dele.

– E esteve a apanhar esse calor todo na cara – disse o filho. – Já sabe que quando lá chegar, vai ter a cara vermelha como o sol nascente.

– Se tiver, não sou eu que te vou pedir para olhares para mim.

– E, mesmo que pedisse, eu não olhava – respondeu ele.

– Ingrato!

– Afogueada!

Ela fungou e empertigou-se daquela maneira a que ele chamava «esticar-se à tartaruga».

– Já se lavou? – perguntou ele.

– Já.

– Pois olhe, não parece, tem o nariz enfarruscado, como de costume.

Ela foi ver-se ao espelho.

– Que maçada! – exclamou.

Ele levantou-se.

– Vá-se vestir, que eu lavo a loiça – disse Paul.

Ela obedeceu. Ele lavou as panelas, endireitou as costas e pegou nas botas dela. Estavam muito limpas. Mrs. Morel era daquelas pessoas naturalmente dotadas que são capazes de andar na lama sem sujarem os sapatos. Mas Paul quis limpar-lhas, mesmo assim. Eram botas de criança, das de oito xelins o par. No entanto, para ele, eram as botas mais chiques do mundo, e limpava-as com tanta reverência como se fossem flores.

Subitamente, ela apareceu à porta, muito tímida. Trazia uma blusa nova. Paul deu um salto em frente.

– Ena pá! – exclamou ele. – Que espalhafato!

Ela inspirou ligeiramente, altiva, de cabeça bem erguida.

– Não é espalhafato nenhum! – retorquiu ela. – É até bem recatada.

Mrs. Morel deu um passo em frente e o filho mirou-a de todos os lados.

– Então – perguntou ela, envergonhada, mas mostrando-se segura e arrogante. – Gostas?

– É um espanto! Vou gostar de levar uma mulher tão bonita a passear!

Contornou-a e mirou-a pelas costas.

– Muito bem! – disse ele. – Se fosse na rua atrás de si, havia de dizer: – Mas que bem vestida que aquela senhorinha vai.

Ela fungou de satisfação, como era seu hábito, mas a fazer-se desentendida.

– Sabes – disse ela –, só me custou três xelins. Por este preço não a podia comprar feita, pois não?

– Acho que não – respondeu o filho.

– E o tecido é de muito boa qualidade.

– Tremendamente bonita! – disse ele.

A blusa era branca, com raminhos púrpura e pretos.

– Demasiado jovem para a minha idade, não achas?

– Essa agora, demasiado jovem para si? – exclamou Paul, agastado. – Já agora, porque não compra uma peruca branca para pôr no alto da cabeça?

– Daqui a pouco já não é preciso – respondeu ela. – Estou aqui, estou com a cabeça toda branca.

– Pois faça favor de não estar – disse ele. – Para que quero eu uma mãe de cabelo branco?

– Pois olha que vais ter de te contentar, meu menino – disse ela, com uma entoação bastante estranha.

Saíram de casa em grande estilo, ela com a sombrinha que William lhe tinha dado, para se proteger do sol. Paul era consideravelmente mais alto do que ela, embora não fosse muito grande. O rapaz ia todo cheio de si.

Na terra lavrada, as espigas tenras brilhavam como seda. A mina de Minton desfraldava os seus penachos de vapor branco, acompanhados de roncos e roucas tossidelas.


– Olha para aquilo! – disse Mrs. Morel. Mãe e filho pararam na estrada, a ver. Ao longo da crista do grande monte da mina, desenhava-se em contraluz um pequeno grupo a avançar mansamente – um cavalo, uma carrocinha e um homem. Trepavam a encosta em direcção ao céu: ao chegarem ao cimo, o homem voltou a carroça e, com injustificado estrépito, a escória rolou pela vertente abrupta do aterro.

– Sente-se um bocadinho, mãe – disse Paul, e ela sentou-se na rocha, enquanto ele desenhava a cena rapidamente. Mrs. Morel manteve-se em silêncio enquanto o filho trabalhava, entretida a admirar a tarde e o casario vermelho a cintilar entre o verde da paisagem.

– O mundo é um lugar maravilhoso – disse ela. – E maravilhosamente belo.

– E a mina também – disse ele. – Veja como cresce, como se estivesse viva... é como uma criatura gigantesca que nós não conhecemos.

– É – disse ela. – Talvez!

– E os vagões parados, à espera, como animais em correnteza à espera da ração – disse ele.

– E eu bem contente fico de os ver aí à espera – disse a mãe. – Quer dizer que a semana vai ser boa.

– Eu gosto de sentir a mão do homem nas coisas; é sinal de vida. Nos vagões sente-se o dedo do homem, porque são mãos de homens que os conduzem.

– Pois é – disse Mrs. Morel.

Continuaram a caminhada à sombra das árvores, pela estrada principal. Ele ia explicando tudo e ela mostrava-se interessada. Passaram pelo extremo do lago Nethermere, que embalava no colo docemente, como pétalas, os reflexos do sol. Depois viraram para uma estrada particular e, com emoção crescente, aproximaram-se de uma grande quinta. Um cão desatou a ladrar furiosamente. Apareceu uma mulher, a ver quem era.

– É este o caminho para Willey Farm? – perguntou Mrs. Morel.

Paul deixou-se ficar atrás da mãe, apavorado com a ideia de serem escorraçados. Mas a mulher era prestável e indicou-lhes o caminho. Mãe e filho meteram pelo meio do trigo e da aveia, atravessaram uma pequena ponte e chegaram a um prado em pousio. Os abibes, com os seus peitos brancos reluzentes, gritavam e volteavam em redor. O lago estava estático e azul. No céu, planava uma garça. Em frente, o bosque subia denso pela encosta, verde e estático.

– É uma estrada florestal, mãe – disse Paul. – Tal e qual como no Canadá.

– Lindo, não é? – disse Mrs. Morel, olhando em volta.

– Está a ver aquela garça... está a ver... as pernas dela?

Era ele que dizia à mãe para onde devia, ou não, olhar. Mas ela gostava assim.

– E agora – disse ela – para que lado é?... Ela disse-me para atravessar o bosque. – O bosque, cerrado e sombrio, estendia-se para a esquerda.

– Sinto que aqui há um caminho – disse Paul. – A mãe tem pés de citadina; seja lá como for, mas tem.

Encontraram uma cancela e entraram numa larga vereda arborizada, com um maciço de cedros e pinheiros de um dos lados e uns quantos carvalhos decrépitos do outro a descerem pela encosta. E, entre os carvalhos, as campainhas-do-monte espraiavam-se em mancha azul sob as aveleiras ainda verdes e um manto esmorecido de folhas amareladas de carvalho. Paul apanhou flores para dar à mãe.

– Está aqui um pouco de feno acabado de chegar – disse ele, e desta vez trouxe-lhe miosótis. E de novo o coração lhe doía de tanto amor, vendo a mão dela, calejada do trabalho, pegar no raminho que ele lhe dera. Ela estava completamente feliz.

No fim da vereda era preciso saltar uma cerca. Paul passou num instante.

– Venha – disse ele –, eu ajudo-a.

– Não... sai daí. Prefiro passar à minha maneira. Ele ficou do outro lado, com as mãos no ar, pronto para a ajudar. Ela trepou com todas as cautelas.

– Mas que maneira de trepar! – exclamou Paul, trocista, quando a mãe já estava a salvo no chão.

– Malditas cercas! – bradou ela.

– Só se uma mulher for muito desajeitada – replicou ele – é que não consegue passá-las.

Em frente, ao longo da orla do bosque, estendia-se um aglomerado de casas de lavoura, baixas e vermelhas. Estugaram o passo. Pegado ao bosque havia um pomar de macieiras cujas flores caíam sobre uma mó. Em baixo era a lagoa, sob os ramos pendentes dos carvalhos. Havia vacas a usufruir da sombra. A quinta e as casas, formando três lados de um quadrilátero, abraçavam o sol viradas para o bosque. Tudo estava em silêncio.

Mãe e filho entraram no pequeno jardim cercado de grades onde pairava um perfume a cravos vermelhos. Junto à porta entreaberta viam-se alguns pães enfarinhados, deixados a arrefecer. Uma galinha aproximou-se para os debicar. De repente, assomou-se à porta uma rapariga com um avental muito sujo. Devia andar pelos catorze anos, tinha as faces morenas e rosadas, um tufo de pequenos caracóis negros muito apertados a cairem livremente, e os olhos castanhos. Parecia tímida e curiosa, com alguma desconfiança dos estranhos. A rapariga voltou a desaparecer. Logo a seguir, surgiu uma outra figura, uma mulher pequenina e frágil, rosada e com grandes olhos castanhos.

– Oh! – exclamou ela, rasgando um sorriso cintilante. – Sempre veio. Gosto muito de a ver por cá. – A voz da mulher era afável e muito triste.

As duas mulheres apertaram a mão.

– Tem a certeza de que não viemos incomodar? – disse Mrs. Morel. – Sei bem como é a vida do campo.

– De maneira nenhuma. Até é uma bênção ver caras novas. Estamos aqui tão isolados.

– Pois devem estar... – disse Mrs. Morel.

Levaram-nos até à sala, uma divisão comprida e de tectos baixos, com um grande ramo de rosas amarelas a enfeitar a lareira. As mulheres sentaram-se a conversar, enquanto Paul foi dar uma volta pela quinta. Estava no jardim a cheirar os cravos e a olhar para as plantas, quando a rapariga saiu a correr e se foi pôr junto do monte de carvão encostado à cerca.

– Creio que estas vão ser rosinhas de toucar, quando abrirem – disse ele, apontando para as roseiras ao longo da cerca. Ela olhou para ele com os grandes olhos castanhos, muito espantados, muito abertos.

– Não sei – respondeu, hesitante. – São brancas e têm o olho cor-de-rosa.

– Então são «rubores de donzela».

Miriam corou – uma cor cálida, bonita.

– Não sei – disse ela.

– Não tens grande coisa no jardim – disse ele.

– É o primeiro ano que aqui passamos – respondeu ela, com modos distantes e superiores, afastando-se e entrando em casa. Paul não ligou e continuou a exploração. A mãe veio ter com ele e deram a volta aos edifícios. Paul estava deliciado.

– Suponho que ainda tenha de ir tratar das galinhas, das vitelas e dos porcos? – disse Mrs. Morel a Mrs. Leivers.

– Não – retorquiu a mulherzinha. – Não consigo arranjar tempo para tratar do gado, e, além disso, não estou habituada. O trabalho de casa já me chega.

– Sim, suponho que sim – disse Mrs. Morel.

Daí a pouco, a rapariga veio cá fora.

– O chá está pronto, mãe – disse, com uma voz suave, musical.

– Ah, obrigada, Miriam, já vamos – respondeu a mãe, toda ela amabilidade. – Podemos ir tomar o nosso chá agora, Mrs. Morel?

– Claro – disse Mrs. Morel. – Logo que estiver pronto.

Paul, a mãe e Mrs. Leivers tomaram chá juntos. Depois foram passear pelo bosque, inundado de campainhas-do-monte, enquanto os carreiros estavam reservados aos miosótis. Mãe e filho caminhavam os dois em êxtase.

Quando voltaram, Mr. Leivers e Edgar, o filho mais velho, estavam na cozinha. Edgar devia ter dezoito anos. Depois, chegaram da escola Geoffrey e Maurice, dois rapagões de doze e treze anos. Mr. Leivers era um homem bem-parecido, na força da vida, de bigode castanho-dourado e olhos azuis sempre assestados, a perscrutar o tempo.

– Foram dar uma volta? – perguntou ele a Paul, com entusiasmo.

– Não deu para ver tudo – respondeu o rapaz, saindo em seguida com Geoffrey e Maurice.

– Onde é que tu trabalhas? – perguntou Geoffrey. Eram os três muito tímidos.

– Na Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan, em Nottingham.

– E que fazes?

– Sou empregado de escritório.

– E fazes o quê?

– Copio cartas, faço encomendas e passo facturas.

– Que tipo de cartas copias?

– Oh... todo o tipo... a maior parte são a encomendar meias elásticas.

– Meias elásticas!... Qu’é isso?

Seguiram-se muitas explicações.

– E algumas das cartas vêm de França e de outros lugares – disse Paul.

– E tu tens d’as copiar?

– Claro.

– Em francês?

– Não... traduzo-as.

– Essa agora... então sabes francês?

– Sei alguma coisa... e alemão também.

– E quem t’ensinou?

– O meu padrinho... e também álgebra e geometria.

– Eu cá não faço tenções d’encher a cabeça com essas coisas – disse Geoffrey.

Os dois rapazes mostravam-se terrivelmente superiores, mas Paul nem dava por isso. Foram à procura de ovos, vasculhando em todos os lugares. Quando estavam a dar de comer às galinhas, Miriam saiu de casa. Os rapazes não lhe ligaram. Na capoeira es-tava uma galinha com os seus pintainhos amarelos. Maurice pegou numa mão-cheia de milho e deixou a galinha vir comer-lhe à mão.

– Tens coragem de fazer o mesmo? – perguntou ele a Paul.

– Vamos lá ver... – respondeu Paul.

Ele tinha a mão pequenina, quente e habilidosa. Miriam ficou a observá-lo. Paul aproximou a mão da galinha. A ave olhou para o milho com o seu olhar duro e brilhante e, de repente, deu-lhe uma bicada na mão. Paul assustou-se, mas depois riu-se. «Pic-pic-pic», fazia-lhe a galinha na palma da mão. Paul riu-se outra vez e os rapazes riram com ele.

– Ela ferra-nos e pica-nos, mas nunca faz doer – disse Paul, quando o milho se acabou.

– Agora, Miriam, é a tua vez – disse Maurice.

– Não – gritou ela, encolhendo-se.

– Olha, parece um bebé. És mesmo um bebé! – disseram os irmãos.

– Não dói nada – disse Paul. – São só uns beliscõezinhos muito agradáveis.

– Não – gritou ela mais uma vez, abanando os caracóis negros e encolhendo-se.

– Ela não s’atreve – disse Geoffrey. – Ela nunca s’atreve a fazer nada a não ser recitar poesia.

– Não s’atreve a saltar uma cancela... não s’atreve a brincar connosco... não s’atreve a fazer frente quando outra rapariga lhe bate... não é capaz de fazer nada a não ser andar por aí convencida qu’é alguém... «A Dama do Lago»... é isso mesmo! – gritou Maurice.

Miriam estava coradíssima de vergonha e infelicidade.

– Sou capaz de fazer mais coisas que vocês – gritou ela. – Vocês não passam duns cobardes e duns brigões.

– Olha, olha, «cobardes e brigões!» – repetiram eles, arremedando-a.

«Um palhaço assim nunca me enfurece.

Todo o brutamontes silêncio merece»

recitou ele, virado para ela, a rir às gargalhadas.

Ela voltou para casa. Paul foi com os dois rapazes até ao pomar, onde tinham montado à pressa duas barras paralelas. Aí chegados, entregaram-se às respectivas demonstrações de força. Paul era mais ágil do que possante, mas foi quanto bastou. Apontou para umas flores de macieira que estavam mesmo à ponta de um ramo balouçante.

– Eu cá, se fosse a ti, não apanhava as flores – disse Edgar, o mais velho dos irmãos. – Senão, prò ano não temos maçãs.

– Eu não ia apanhá-las – respondeu Paul, indo-se embora.

Os rapazes mostravam-se hostis com ele. Interessavam-lhes mais as suas próprias brincadeiras. Paul voltou para casa, para junto da mãe. Quando ia a contornar a casa pelas traseiras, viu Miriam ajoelhada diante da capoeira da galinha, com a mão cheia de milho, a morder o lábio, numa atitude de intensa concentração. A galinha fitava-a com maldade. Cautelosamente, ela estendeu a mão. A galinha atirou-se. Ela retirou rapidamente a mão, com um grito, misto de medo e frustração.

– Ela não te magoa – disse Paul.

Miriam pôs-se de pé, muito corada.

– Só queria experimentar – disse, muito baixinho.

– Vês... não dói nada – disse ele. E, colocando apenas dois grãos de milho na palma da mão, deixou a galinha bicá-lo à vontade. – Só dá vontade de rir – continuou Paul.

Ela estendeu a mão e retirou-a, tentou novamente e fugiu para trás, com um grito. Ele fez uma careta.

– Olha, eu até a deixava comer milho da minha cara – disse Paul. – Mas ela dá muitos encontrões. Ela faz isto com toda a perfeição! Se não fizesse, já imaginaste a quantidade de terra que ela ia comer todos os dias?

Esperou, muito sério, a observá-la. Finalmente, Miriam deixou a galinha bicar-lhe a mão. Deu um gritinho, de medo e dor, porque estava assustada, um gritinho patético. Mas tinha conseguido, e voltou a repetir a proeza.

– Estás a ver – disse o rapaz. – Não faz doer, pois não?

Ela fitou-o com os olhos escuros muito abertos.

– Não – disse ela, a rir e a tremer.

Depois levantou-se e foi para casa. Parecia de alguma forma ofendida com o rapaz.

«Ele deve achar que eu não passo duma rapariga como as outras», pensava ela, cheia de vontade de lhe provar que era uma grande personagem, como a «Dama do Lago».

Paul veio encontrar a mãe pronta para partir. Mrs. Morel sorriu para o filho, e ele pegou no grande ramo de flores. Mr. e Mrs. Leivers acompanharam-nos até ao fundo da quinta. As colinas douravam-se do entardecer, e nas profundezas dos bosques sobressaía o púrpura carregado das campainhas-do-monte. Por todo o lado estava o silêncio, apenas quebrado pelo restolhar das folhas e os pássaros.

– É de facto um lugar belíssimo – disse Mrs. Morel.

– É, sim – concordou Mr. Leivers. – É um lugar bem aprazível, o pior são os coelhos. Dão cabo das pastagens. Não sei se alguma vez iremos ter lucro.

Bateu as palmas e os campos cobriram-se de movimento, junto ao bosque: por toda a parte saltavam coelhos acastanhados.

– Até custa a acreditar! – exclamou Mrs. Morel.

Ela e Paul continuaram sozinhos daí para a frente.

– Foi um dia maravilhoso, não foi, mãe? – disse Paul, falando baixinho. A lua despontava, tímida. O coração doía-lhe de tanta felicidade. A mãe não se calava, pois também ela tinha vontade de gritar de felicidade.

– Então eu não ia ajudar um homem daqueles? Não ia tratar das galinhas e dos bezerros? Havia de aprender a ordenhar, e havia de conversar com ele, e fazer planos com ele. Palavra, se eu fosse mulher dele, aquela quinta ia de vento em popa, isso é que ia... Mas não, ela não tem forças... simplesmente não tem forças. Nunca devia ver-se sobrecarregada desta maneira, percebes. Tenho pena dela, e dele também. Palavra, se ele fosse meu, nunca diria que era um mau marido... Não que ela diga, lá isso não... E ela é até muito simpática.

William veio a casa outra vez, com a namorada, pelo Pentecostes. Tinham-lhe dado uma semana de férias. O tempo estava muito bonito. Geralmente, William, Lily e Paul iam juntos dar um passeio pela manhã. William não conversava muito com a namorada, excepto para lhe contar histórias da infância; mas Paul falava sem parar com qualquer deles. A certa altura, deitaram-se os três num prado, perto da igreja de Minton. De um dos lados, junto do parque do castelo, estendia-se ondulante uma cortina de choupos – uma beleza. As sebes cobriam-se de bagas pendentes de azevinho. Os campos salpicavam-se de margaridas e flores-de-cuco, como sorrisos. William, agora com vinte e três anos, era já um homem feito, muito alto, mas tão magro que era quase só pele e osso. Deitou-se ao sol, de costas, a sonhar, enquanto Lily brincava com o seu cabelo. Paul foi apanhar margaridas. Ela tinha tirado o chapéu. O seu cabelo era negro como a crina de um cavalo. Paul aproximou-se e entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo de azeviche, lembrando enormes lantejoulas brancas e amarelas, com um toque rosado de flores-do-cuco.

– Agora pareces uma bruxinha – disse o rapaz. – Não parece, William?

Lily deu uma gargalhada. William abriu os olhos e contemplou-a. O seu olhar era um misto confuso de tristeza e desmedida admiração.

– Ele transformou-me mesmo numa visão do Além? – perguntou ela, olhando para baixo, para o seu amado, a rir.

– Então não transformou! – disse William, a sorrir. E continuou deitado a olhar para ela. Os seus olhos nunca procuravam os dela. Não queria encontrar os olhos dela. Queria estar só a olhar para ela, não que os seus olhares se encontrassem. E esta vontade de a evitar, aflorava-lhe aos olhos como a tristeza. Ele desviou-os outra vez. Ela deixou a mão esguia, onde brilhavam diamantes, brincar no cabelo dele um pouco mais. Depois disse:

– O Paul sabe como fazer as coisas.

– Óptimo – disse William. – Desde que isso te faça feliz. Ele preenche-te as manhãs e eu as noites.

Ela voltou-se para Paul, e riu-se.

– Quero pôr-te mais três flores sobre a orelha – disse ele, de pé ao lado dela. – Depois, fica pronto.

Ela deixou, e ele entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo.

– Não sentes o perfume do sol nos teus cabelos? – perguntou Paul. – Estás a ver, era assim que devias ir aos bailes.

– Obrigada – disse ela, sempre a rir.

Levantaram-se.

– Não ponhas ainda o chapéu – disse Paul.

– Achas que sim? – perguntou ela a William. – Posso ir nesta figura?

William olhou para ela outra vez. A beleza dela quase o magoava. Olhou-lhe para a cabeça coberta de flores e torceu o nariz.

– Estás muito bonita assim, se é isso que queres saber.

E ela continuou o passeio sem chapéu. William logo se recompôs do mau humor e mostrou-se muito terno com ela. Ao chegarem a uma ponte, até gravou um coração com as iniciais dos dois.

 


Ela observou-o atentamente, vendo como a sua mão forte e nervosa, salpicada de pêlos cintilantes e de sardas, gravava no tronco o coração, o que parecia deixá-la fascinada.

Durante toda a estadia, enquanto William e Lily estiveram presentes, pairava dentro de casa um sentimento de tristeza e calor humano, e também de certa ternura. Mas muitas vezes ele irritava-se. Ela tinha trazido para uma semana cinco vestidos e seis blusas.

– Ouve, não te importas de me lavares estas duas blusas... e estas coisinhas? – disse ela a Annie.

E Annie ficou em casa a lavar roupa, enquanto, na manhã seguinte, William e Lily foram passear. Mrs. Morel ficou furiosa. Às vezes, ao aperceber-se da atitude da namorada para com a irmã, o jovem odiava-a pelo seu comportamento.

No domingo de manhã, Lily apareceu muito bonita, com um vestido leve, sedoso e esvoaçante, tão azul como as penas de um gaio, e um chapéu de palha coberto de rosas, onde dominava o carmim. As pessoas não se cansavam de a admirar. Mas, à noite, quando iam a sair, ela perguntou de novo:

– Fofinho, tens as minhas luvas?

– Quais delas? – perguntou William.

– As novas, as de camurça preta.

– Não.

Seguiu-se uma busca. Tinha-as perdido.

– Está a ver, mãe – disse William. – Já é o quarto par que ela perde desde o Natal... e cada par são cinco xelins.

– Tu só me deste dois pares – repontou ela.

E à noite, depois da ceia, ficou sentada no sofá e ele foi postar-se frente à lareira, farto dela. À tarde, tinha-a deixado sozinha para ir visitar um amigo de infância, e ela ficara a ver um livro. Depois da ceia, William quis ir escrever uma carta.

– Aqui tem o seu livro, Lily – disse Mrs. Morel. – Importa-se de ficar a ler mais um bocadinho?

– Não, obrigada, não quero o livro – disse a rapariga. – Prefiro ficar só aqui sentada.

– Mas isso é muito aborrecido...

William escrevia nervosamente, a grande velocidade. Quando estava a fechar o sobrescrito, disse:

– Ler um livro!... Essa é boa, ela nunca leu um livro na vida dela.

– Não digas isso! – disse Mrs. Morel, irritada com o exagero.

– É verdade, mãe... não leu mesmo – exclamou ele, pondo-se de pé num salto e retomando o seu lugar anterior, frente à lareira. – Nunca na vida leu um livro.

– Atão essa é como eu – interveio Morel. – Essa tamém num vê nada nos livros qu’a faça ficar sentada, aborrecida, de nariz infiado nas folhas. Pra quê? Eu tamém num vejo!

– Mas tu não devias dizer essas coisas – disse Mrs. Morel ao filho.

– Mas é verdade, mãe... ela não sabe ler... que livro é que lhe deu?

– Bem, dei-lhe um livrinho da Annie Swan. Ninguém quer ler coisas pesadas num domingo à tarde.

– Pois eu aposto que ela nem dez linhas leu.

– Aí é que tu te enganas – disse a mãe.

Lily assistia à discussão sentada no sofá, com um ar muito infeliz.

– Leste alguma coisa do livro? – perguntou-lhe ele.

– Li, sim – respondeu ela.

– Quantas páginas?

– Sei lá quantas páginas...

– Diz-me uma coisa que tenhas lido.

Ela não foi capaz.

– Cala-te, William – disse a mãe. – Que ideia a tua!

– Mas ela não consegue ler, mãe! – gritou ele, secamente. – Não consegue reter nada do que lê. Não sabe ler e não sabe falar. Não há assunto nenhum sobre o qual se possa conversar com ela. Só pensa em vestidos e em como todos a admiram.

– Não lhe ligue, Lily – disse Mrs. Morel.

– Só os parvos é que se sentam de nariz infiado nos livros, é o qu’eu digo – acrescentou Morel.

E a pobre rapariga continuava a ser agredida. Ele parecia odiá-la. Mais tarde, Mrs. Morel foi buscar-lhe um livro muito simples, e era patético vê-la arrastar-se penosamente pelas primeiras páginas na tarde chuvosa. Não conseguiu passar da segunda página. Ele lia muito, e possuía uma inteligência rápida, activa. Ela não entendia nada a não ser fazer amor e tagarelar. Ele estava habituado a ter todos os seus pensamentos peneirados pela mente da mãe. Por isso, quando procurava companhia e, em resposta, lhe era pedido que fosse apenas um amante, todo ele ternuras e gorgeios, odiava a namorada.

– Sabe, mãe – disse ele, quando à noite ficaram os dois sozinhos – ela não dá valor ao dinheiro, é um catavento. Quando recebe o ordenado, é capaz de gastar uma fortuna numa porcaria qualquer como, por exemplo, marrons glacés. E, depois, sou eu que tenho de lhe comprar o passe e todos os outros extras... até a roupa interior. E quer ela casar-se... Por mim, podíamos até casar já para o ano. Mas por este andar...?

– Ia ser um lindo casamento – respondeu a mãe. – Eu, se fosse a ti, pensava duas vezes, meu filho.

– Bom... Agora já fui longe de mais para romper com tudo – disse ele. – Por isso, o melhor é casar o mais depressa possível.

– Muito bem, meu filho. Se é isso que queres, assim será, e não se fala mais no assunto... Mas olha que eu não durmo quando penso nisso.

– Ela é boa rapariga, mãe. Cá nos havemos de arranjar.

– E ela deixa que sejas tu a comprar-lhe a roupa interior? – perguntou a mãe.

– Bem... – começou ele, apologético. – Ela nunca me pediu. Mas uma manhã... estava muito frio... encontrei-a na estação toda a tremer, nem conseguia estar parada. E então perguntei-lhe se estava bem agasalhada, e ela respondeu, «Acho que sim». E então eu disse «Trazes alguma camisola quente... de lã... por baixo?» E ela disse que não, que era de algodão. Perguntei-lhe por que carga de água não tinha vestido uma coisa mais quente com um frio daqueles, e ela disse que não tinha nada mais quente. E ainda por cima, com a bronquite que ela tem! Tive de pegar nela e ir comprar-lhe uma roupa mais quente... Sabe, mãe, o dinheiro era o menos, se nós o tivéssemos... Ela devia guardar o suficiente para o passe. Mas não... vem pedir-mo, e eu tenho de inventar o dinheiro...

– Belas perspectivas – disse Mrs. Morel, amargurada.

Ele estava pálido e no seu rosto já vincado, outrora tão sorridente e descuidado, estampavam-se o conflito e o desespero.

– Mas eu não posso acabar com tudo, não agora, as coisas já foram longe de mais – disse ele. – Além disso, para certas coisas, não posso passar sem ela...

– Meu filho, lembra-te de que se trata da tua vida – disse Mrs. Morel. – Nada pode ser pior do que um casamento que já está à partida irremediavelmente marcado pelo fracasso. O meu foi suficientemente mau, Deus sabe que sim, e devia ter-te ensinado alguma coisa... Mas ainda podia ter sido muito pior.

William estava encostado à ombreira da chaminé, de mãos no bolsos. Era um homem alto e esquelético, com ar de quem seria capaz de ir até ao fim do mundo, se lhe apetecesse. Mas a mãe lia--lhe o desespero no rosto.

– Agora não posso deixá-la.

– Está bem – disse a mãe. – Mas lembra-te de que há coisas piores do que romper um noivado.

Quedaram-se em silêncio, ele de olhar parado, fitando o espaço. Só a mãe lhe podia valer e, no entanto, não a deixava decidir por ele. Continuava preso ao que tinha feito.

– E, naturalmente – acrescentou Mrs. Morel, há muito mais nobreza em romper um noivado para evitar um mal maior do que em continuar só para cumprir uma promessa.

Ele mantinha-se estático, de olhar pregado no vazio.

– Eu não posso deixá-la agora – insistiu ele.

O relógio ia avançando. Mãe e filho continuaram em silêncio, em conflito. Mas ele nada mais disse. Por fim, ela disse:

– Bem, vai dormir, meu filho... amanhã sentes-te melhor... e talvez vejas as coisas com outros olhos.

O filho deu-lhe um beijo e foi deitar-se. Ela foi abafar o borralho, sentindo o coração pesado como nunca sentira antes. Antes, com o marido, parecia sentir ruir tudo dentro dela, mas nada lhe destruía a vontade de viver. Mas agora, era a própria alma que estava ferida. A própria esperança fora atingida.

William manifestou em muitas outras ocasiões o mesmo ódio pela noiva. Na última noite que passaram em casa dos pais, fartou-se de resmungar com ela.

– Bem – disse ele – já que não me acredita, que acha que ela não é nada assim, acredita pelo menos que ela foi crismada três vezes?

– Que disparate! – disse Mrs. Morel, perdida de riso.

– Disparate ou não, o certo é que foi mesmo! É isso que o Crisma significa para ela... teatro... um espectáculo onde pode brilhar.

– Não fui nada, Mrs. Morel – gritou a rapariga. – Não fui nada. Não é verdade.

– O quê! – gritou ele, avançando para ela. – Uma vez em Bromley, outra em Beckenham, e outra mais não sei onde.

– Em mais lado nenhum! – disse ela, a chorar. – Em mais lado nenhum.

– Foi, sim! E mesmo que não fosse, para que foste crismada duas vezes?

– Da primeira vez, só tinha catorze anos, Mrs. Morel – explicou ela, desculpando-se, de lágrimas nos olhos.

– Claro – disse Mrs. Morel. – Eu entendo perfeitamente, minha filha. Não lhe ligue. Devias ter vergonha, William, a dizeres estas coisas.

– Mas é verdade. Ela é religiosa... até tem livros de orações em veludo azul... mas liga tanto à religião, ou a outra coisa qualquer, como à perna daquela mesa. Ser crismada três vezes, só pelo espectáculo, só para se mostrar! E ela é assim em tudo o mais, em tudo!

A rapariga chorava, sentada no sofá. Não era um espírito forte.

– Até no amor! – gritou ele. – É o mesmo que pedir a uma mosca que nos ame. Só quer vir para cima de nós...

– Acabou-se! – disse Mrs. Morel, peremptória. – Se queres continuar a dizer esses disparates, tens de ir para outro lugar. Tenho vergonha de ti, William. Não sabes portar-te como um homem? Só a pôr defeitos na rapariga... e depois a fingires que estás noivo...! – Mrs. Morel sucumbiu à raiva e à indignação.

William mantinha-se em silêncio. Mais tarde, arrependido, foi dar um beijo à namorada e consolá-la. No entanto, tudo o que dissera era verdade, e odiava-a.

Quando partiram, Mrs. Morel acompanhou-os a Nottingham. A caminhada até à estação de Keston era longa.

– Sabe, mãe – disse ele –, a Ciganita é muito superficial... nada penetra nela a fundo...

– William, preferia que não dissesses essas coisas – pediu Mrs. Morel, sentindo-se constrangida com a presença da rapariga.

– Mas é que não penetra mesmo, mãe... Ela está muito apaixonada por mim, agora... Mas, se eu morresse, esquecia-me em três meses.

Mrs. Morel tinha medo. O seu coração batia furiosamente perante a amargura serena das últimas palavras do filho.

– Como sabes? – retorquiu. – Tu não podes saber... e, por isso, não tens o direito de dizeres uma coisa dessas.

– Ele está sempre com estas coisas! – exclamou a rapariga.

– Três meses depois de me enterrarem, já tu tinhas arranjado outro e nunca mais te lembravas de mim – disse ele. – É esse o amor que me tens!

Mrs. Morel meteu-os no comboio, em Nottingham, e voltou para casa.

– Sabes uma coisa? – disse ela pateticamente para Paul. – Não se entendem e nunca se hão-de entender. Como vai ser, se chegarem a casar, é de mais para a minha imaginação. Se ao menos ele a deixasse, já não precisava de a atormentar desta maneira. Mas vão ficar presos um ao outro até se matarem. Quando ele disse aquilo, a caminho de Keston, foi como se eu já não pudesse dar nem mais um passo. Pobrezinha, tenho pena dela. Mas não é mulher para ele, lá isso não é. É muito cruel dizê-lo, mas como ela é muito frágil, mais valia que morresse em vez de casar com ele.

Mrs. Morel não tirou o filho do pensamento durante todo o Verão. Ele parecia estar a dar cabo da vida. Mas o casamento parecia estar ainda demorado.

– Valha-nos pelo menos uma coisa – disse ela a Paul. – Ele nunca vai juntar dinheiro suficiente para se casar, disso tenho eu a certeza. É assim que ela o vai salvar.

E a ideia animava-a. As coisas ainda tinham remédio, e acreditava firmemente que William nunca chegaria a casar com a sua Cigana. Aguardava e mantinha Paul junto de si.

Durante todo o Verão, as cartas de William soavam febris. Parecia pouco natural e empolgado. Por vezes exageradamente alegre, mas geralmente sóbrio e amargo.

– Pois é – dizia a mãe. – Anda a dar cabo dele por causa daquela criatura que não merece o amor que ele lhe tem, que não passa duma boneca de trapos.

Ele só pensava em vir a casa. As férias de Verão já lá iam, e o Natal ainda estava muito longe. Escreveu muito entusiasmado a dizer que podia vir a casa no princípio de Outubro, passar um sábado e um domingo, para a Feira do Ganso.

– Tu não andas bem, meu filho – disse-lhe a mãe quando o viu. Tê-lo assim, só para ela, dava-lhe até vontade de chorar.

– Não, não tenho passado nada bem – disse ele. – Apanhei uma constipação que se arrastou durante todo o mês. Mas já estou melhor, acho eu.

Estava um dia soalheiro de Outubro. William parecia louco de alegria, como um garoto que se escapasse às aulas. Mas logo ficou calado e reservado. Estava mais esquelético que nunca e com os olhos encovados.

– Andas a trabalhar de mais – disse a mãe.

Fazia horas extraordinárias, para juntar dinheiro para se casar, segundo disse. Só conversou com a mãe uma vez, no sábado à noite. Depois, pôs-se muito triste, com saudades da namorada.

– Sabe uma coisa, mãe, apesar disto tudo, se eu morresse, ela ia chorar por mim durante dois meses, e depois tratava de me esquecer. A mãe havia de ver, ela nunca viria aqui visitar a minha sepultura nem uma só vez.

– Ora, William – disse a mãe –, tu não vais morrer, para quê falar nisso agora?

– Mas se acontecesse... – insistiu ele.

– Ela não tem culpa... ela é assim... e se tu a escolheste, não te podes queixar... – disse a mãe.

No domingo de manhã, quando estava a pôr o colarinho, William disse, levantando o queixo:

– Veja a borbulhagem que o colarinho me fez por baixo do queixo!

Mesmo na ligação do queixo com a garganta havia uma zona muito vermelha, toda irritada.

– Não te devia fazer isso – disse a mãe. – Toma, põe um pouco deste unguento. Devias mudar de colarinhos.

William partiu no domingo à noite, aparentemente melhor e mais forte, depois destes dois dias passados em casa.

Na terça-feira de manhã, chegou um telegrama de Londres dizendo que ele estava doente. Mrs. Morel, que estava a esfregar o chão, levantou-se, leu o telegrama, chamou uma vizinha, foi a casa da senhoria, pediu-lhe dinheiro emprestado, vestiu-se e partiu. Correu até à estação de Keston e apanhou o expresso para Londres em Nottingham, onde teve de esperar quase uma hora. Figurinha frágil, com o seu chapelinho preto, não parava de perguntar, ansiosa, aos carregadores se sabiam o caminho para Elmers End. A viagem demorou três horas. Foi sempre sentada no seu canto, embalada numa espécie de torpor, sem se mexer. Na estação de King’s Cross também ninguém sabia indicar-lhe o caminho para Elmers End. Com o saco de rede na mão, com a camisa de noite, um pente e uma escova, ia de pessoa em pessoa, fazendo sempre a mesma pergunta. Por fim, mandaram-na apanhar o metropolitano até Cannon Street.

Eram seis horas quando chegou ao apartamento de William. As persianas não estavam corridas.

– Como está ele? – perguntou.

– Na mesma – disse a dona da casa.

Mrs. Morel subiu a escada atrás da senhoria. William estava deitado na cama, com os olhos injectados de sangue, muito pálido. A roupa estava espalhada pelo chão, o lume estava apagado e tinha um copo de leite na mesa de cabeceira. Ninguém viera vê-lo.

– Então, meu filho, que foi isto? – disse a mãe, mostrando coragem.

Ele não respondeu. Olhava para ela, mas não a via.

Depois, começou a dizer numa voz monocórdica, como se ditasse uma carta: «Devido a uma brecha no casco do navio, o açúcar tornou-se num bloco, cristalizou. Foi preciso parti-lo com um machado...»

Estava completamente inconsciente. Um dos seus trabalhos tinha sido ir examinar esse tal carregamento de açúcar no porto de Londres.

– Há quanto tempo está ele assim? – perguntou a mãe à senhoria.

– Chegou a casa às seis horas da manhã na segunda-feira e aparentemente dormiu o dia todo. À noite, ouvimo-lo a falar, e esta manhã chamou por si. Por isso, mandei o telegrama e chamámos o médico.

– Não se importa de acender o lume?

Mrs. Morel tentava acalmar o filho, mantê-lo quieto.

O médico chegou. Era uma pneumonia e, segundo disse, uma forma rara de erisipela, que tinha começado debaixo do queixo, provocada pelo roçar do colarinho, e se estava a espalhar a toda a cara; e esperava bem que não lhe atingisse o cérebro.

Mrs. Morel ficou a cuidar dele. Rezava por William, rezava para que ele a reconhecesse. Mas a cara do jovem cada vez perdia mais as cores. De noite, teve de lutar com o filho. Ele delirou e tornou a delirar, sem nunca recobrar a consciência. E morreu às duas da manhã, num paroxismo atroz.

Durante uma hora, Mrs. Morel permaneceu estática, sentada no quarto do filho. Depois, acordou toda a casa.

Às seis da manhã, vestiu-o com a ajuda da mulher da limpeza e em seguida saiu e foi à procura do registo civil e do médico daquele lúgubre subúrbio londrino.

Às nove horas, novo telegrama para Scargill Street: «William morreu esta noite. Dizer pai venha e traga dinheiro.»

Annie, Paul e Arthur estavam em casa. Mr. Morel tinha ido trabalhar. As três crianças não disseram uma palavra. Annie começou a choramingar, com medo. Paul foi chamar o pai.

O dia estava lindo. Na mina de Bretty, o vapor branco fundia-se lentamente com a luz do sol no céu azul, muito ameno, as roldanas da torre brilhavam no alto do aterro, e a peneira não se calava, sempre a deitar o carvão para os vagões.

– Tenho de falar com o meu pai... ele tem de ir já para Londres – disse o rapaz ao primeiro homem que encontrou no aterro.

– Queres falar com Walter Morel?... Vai ‘í dentro e diz ò Joe Ward.

Paul entrou no escritório de cima.

– Quero o meu pai... ele tem de ir pra Londres.

– O teu pai... está na mina? Quem é ele?

– Mr. Morel.

– Quem, o Walter? Aconteceu alguma coisa?

– Ele tem de ir já pra Londres.

O homem foi para o telefone e ligou para o escritório de baixo.

– Chamem o Walter Morel... 42 Hard. Aconteceu alguma coisa... o filho dele tá ‘qui.

Depois, voltou-se para Paul, e disse:

– Daqui a cinco minutos ele já aí está.

Paul foi até ao topo da mina. Viu a caixa subir, com o carregamento de carvão. A grande gaiola de ferro descansou sobre os apoios, a carga foi retirada, um contentor vazio deslizou sobre os apoios, algures tilintou uma campainha, a gaiola elevou-se e caiu como uma pedra.

Paul não acreditava que William estivesse morto... era impossível, com tanta azáfama por todo o lado. O mineiro de serviço empurrou o pequeno contentor para cima da placa giratória, e um outro homem levou-a pelo aterro fora, pelos trilhos sinuosos. «O William está morto e a minha mãe em Londres; que estará ela a fazer?», perguntava-se ele, como se se tratasse de uma charada.

Viu os contentores subirem uns atrás dos outros, e nem sinais do pai. Por fim, o vulto de um homem desenhou-se ao lado de um vagão! A gaiola descansou sobre os apoios e Morel desceu. Coxeava ligeiramente, devido a um acidente.

– És tu, Paul!... Ele tá pior?

– Tem de ir já pra Londres.

Desceram os dois o aterro, lado a lado, sob os olhares curiosos dos mineiros. Quando deixaram a mina e seguiam já ao longo da via férrea, com os campos soalheiros de Outono de um dos lados e um muro de vagões do outro, Morel perguntou, com o medo na voz:

– Ele não se curou, filho?

– Não.

– E quando foi?

Havia terror na voz do mineiro.

– Esta noite... Chegou um telegrama da mãe.

Morel deu mais alguns passos e depois encostou-se a um vagão e fincou as mãos nos joelhos. Mas não chorou. Paul olhou em volta, à espera. Um vagão balouçou lentamente em cima da balança. Paul via tudo, menos o pai, encostado ao vagão, como se estivesse cansado.

Morel só tinha ido uma vez a Londres. Pôs-se a caminho, assustado e lívido, para ir ajudar a mulher. Isto passou-se numa terça-feira. Os filhos ficaram sozinhos em casa. Paul foi trabalhar, Arthur para a escola e Annie chamou uma amiga para lhe fazer companhia.

No sábado à noite, quando Paul dobrava a esquina, de regresso de Keston, viu a mãe e o pai, que vinham da estação de Lethley Bridge. Caminhavam no escuro, em silêncio, cansados, separados. O rapaz ficou à espera.

– Mãe! – disse ele, da escuridão.

A figura franzina de Mrs. Morel pareceu não dar por ele. Paul insistiu.

– Paul! – disse ela, indiferente. Deixou-o dar-lhe um beijo, mas parecia não o ver.

Em casa foi a mesma coisa, franzina, pálida e muda. Não via nada, não dizia nada, excepto:

– O caixão chega hoje à noite, Walter. É melhor pedires ajuda. – E, depois, voltando-se para os filhos: – Vamos trazê-lo para casa.

Em seguida mergulhava num mutismo duradouro, de olhar perdido no espaço e mãos cruzadas sobre o regaço. Paul, ao vê-la assim, quase não podia respirar. Reinava em toda a casa um silêncio de morte.

– Fui trabalhar, mãe – disse Paul, tristemente.

– Ah, foste – respondeu ela, indiferente.

Passada meia hora, Morel, preocupado e confuso, entrou em casa.

– Onde havemos d’o pôr, quand’ele chegar? – perguntou à mulher.

– Na sala da frente.

– Então é melhor eu tirar de lá a mesa.

– Está bem.

– E botá-lo em cima das cadeiras?

– Tu lá sabes... sim... acho que sim.

Morel e Paul pegaram numa vela e foram para a sala. Lá não havia gás. O pai desaparafusou o tampo oval da grande mesa de mogno e libertou o centro da sala. Depois dispôs seis cadeiras em frente umas das outras, de forma a poderem suportar o caixão.

– Nunca vi ninguém mais comprido! – disse o mineiro, olhando em volta, ansioso, enquanto trabalhava.

Paul foi à janela e olhou para a rua. O freixo erguia-se monstruoso e negro, contra a imensa escuridão. Estava uma noite sem luar. Depois, voltou para junto da mãe.

Às dez horas, Morel anunciou:

– Chegou!

Todos estremeceram. Ouviu-se destrancar e abrir a porta da frente, que dava passagem directa da noite escura para dentro da sala.

– Tragam outra vela – gritou Morel.

Annie e Arthur foram buscá-la. Paul acompanhou a mãe. Estava ao lado dela, encostado à porta interior, passando-lhe o braço pela cintura. No meio da sala vazia havia seis cadeiras à espera, viradas umas para as outras. Junto à janela, Arthur segurava uma vela, encostado às cortinas de renda, e junto à porta aberta, virada para a noite, estava Annie, inclinada para a frente, com a palmatória de latão a cintilar.

Ouviu-se o barulho de um rodado. Lá fora, na escuridão da rua, Paul viu cavalos e um veículo negro, um lampião e alguns rostos empalidecidos. Depois, alguns homens – mineiros – todos em mangas de camisa, que pareciam debater-se na penumbra densa. Por fim, apareceram dois homens, vergados sob a pesada carga. Era Morel e o vizinho.

– Firme! – disse Morel, sem fôlego.

Ele e o companheiro subiram o degrau alto do jardim e surgiram à luz da vela, segurando uma das extremidades cintilantes do caixão. Mais braços, de outros homens, agitavam-se por detrás deles. Morel e Burns, à frente, vacilaram. A carga negra, pesadíssima, balançou.

– Firme, firme! – gritou Morel, num grito de dor.

Os seis carregadores já estavam todos no jardim, trazendo o caixão pelo ar. Havia ainda mais três degraus até à porta. A lanterna amarelada da carruagem brilhava sozinha, na estrada de breu.

– Agora! – disse Morel.

O caixão balançou, os homens começaram a subir os degraus com a sua carga. A chama da vela de Annie tremulou e ela começou a chorar ao ver surgir os primeiros homens. Os braços e as cabeças curvadas dos seis homens lutavam para vencerem a subida até à sala com o caixão, transportando o peso do sofrimento sobre a sua carne viva.

– Oh, meu filho... meu filho! – disse Mrs. Morel, baixinho, como se entoasse. E, de novo, de cada vez que o caixão balançava ao passo desigual dos carregadores:

– Oh, meu filho... meu filho... meu filho!

– Mãe! – disse Paul, a chorar, com o braço em volta da cintura dela. – Mãe!

Ela não ouviu.

– Oh, meu filho... meu filho! – repetia.

Paul via gotas de suor pingarem da testa do pai. Os seis homens estavam na sala, seis homens em mangas de camisa, de braços exaustos que se debatiam com a sua carga, enchendo a sala e indo de encontro aos móveis. O caixão desceu e foi suavemente pousado sobre as cadeiras. O suor pingava da testa de Morel sobre o rebordo.

– Palavra d’honra, manda cá um peso! – disse um dos homens, e os cinco mineiros soltaram um suspiro, curvaram-se perante o caixão e, trémulos da luta, desceram novamente os degraus, fechando a porta atrás de si.

A família ficou sozinha na sala com a enorme caixa envernizada. William, esticado, tinha seis pés e quatro polegadas de comprimento. O imponente caixão, de um castanho brilhante, jazia qual monumento. Paul pensou que nunca mais iam conseguir tirá-lo dali. A mãe acariciava a madeira envernizada.

Foi a enterrar na segunda-feira, no pequeno cemitério da encosta, alcandorado sobre os campos, dominando a igreja e o casario. Estava um dia de sol e os crisântemos brancos encaracolavam as pétalas ao calor.

Depois de tudo isto, nada conseguia persuadir Mrs. Morel a falar e a recuperar a sua antiga força de viver. Continuava fechada sobre si mesma. Quando voltava para casa, no comboio, tinha pensado para consigo: «Se ao menos tivesse sido eu.»

Quando Paul chegou a casa à noite, encontrou a mãe sentada com as mãos no regaço, sobre o tosco avental, já com a lida da casa despachada. Era sempre costume trocar de vestido e pôr um avental preto. Mas desta vez foi Annie quem lhe pôs a ceia, e a mãe continuou sentada em frente dela, de olhar vazio e lábios cerrados. Paul deu voltas à cabeça para arranjar novidades para lhe contar.

– Mãe, Miss Jordan apareceu lá hoje e disse que o meu esboço de uma mina a laborar estava muito bom...

Mas Mrs. Morel nem prestou atenção. Noite após noite, Paul esforçava-se por lhe contar coisas, mesmo que ela o não escutasse. Quase o enlouquecia vê-la neste estado. Até que:

– Que tem, mãe? – perguntou ele. Ela não ouviu.

– Que tem? – insistiu. – Mãe, o que é que tem?

– Sabes bem o que é que eu tenho – disse ela, irritada, virando-lhe as costas. O rapaz – tinha agora dezasseis anos – foi para a cama tristíssimo. Passou Outubro, Novembro e Dezembro sentindo-se rejeitado, um desgraçado. A mãe bem tentava, mas não conseguia reagir. Tudo o que fazia era pensar no filho morto, que tão cruelmente tinham deixado morrer.

Por fim, no dia 23 de Dezembro, Paul voltou para casa como um sonâmbulo, com os cinco xelins da gratificação de Natal no bolso. A mãe olhou para ele e o seu coração parou.

– O que se passa? – perguntou ela.

– Sinto-me mal, mãe! – respondeu ele. – Mr. Jordan deu-me cinco xelins de gratificação. – E estendeu-os à mãe, com a mão trémula. Ela pô-los em cima da mesa.

– A mãe não parece satisfeita – disse ele, como se ralhasse.

Mas Paul tremia violentamente.

– Onde é que te dói? – disse ela, desabotoando-lhe o sobretudo.

Era a velha pergunta.

– Sinto-me mal, mãe.

Ela despiu-o e meteu-o na cama. Era uma pneumonia, e grave, disse o médico.

– Ele podia não a ter apanhado, se eu o tivesse obrigado a ficar em casa e não o deixasse ir para Nottingham? – foi uma das primeiras coisas que perguntou.

– Podia não ser tão grave – disse o médico.

Mrs. Morel encontrou na resposta a sua própria condenação.

– Devia ter-me preocupado com os vivos, e não com os mortos – disse para consigo.

Paul esteve muito mal. A mãe passava as noites ao seu lado, pois não tinham dinheiro para uma enfermeira. O seu estado piorou e a fase crítica aproximava-se. Uma noite recobrou a consciência, num daqueles paroxismos fantasmagóricos e doentios de dissolução, em que todas as células do corpo parecem estilhaçar-se à pressão extrema da irritabilidade, e a consciência, como em estados de loucura, tem um derradeiro arrobo de vitalidade.

– Vou morrer, mãe! – gritou ele, soerguendo-se da almofada, lutando para respirar.

Ela ajudou-o, chorando baixinho:

– Oh, meu filho, meu filho!

Isto trouxe-o de volta. Apercebeu-se da presença da mãe. A sua força de vontade empertigou-se e prendeu-o à vida. Pousou a cabeça do peito dela e repousou no seu amor.

– De certa forma – disse a tia – foi até bom o Paul ter tido aquela doença no Natal. Foi isso que salvou a mãe.

Paul esteve de cama sete semanas. Levantou-se, finalmente, pálido e muito fraco. O pai tinha-lhe comprado um vaso de tulipas vermelhas e douradas. Era vê-las, a brilhar como fogo na janela, ao sol de Março, enquanto ele ficava sentado no sofá a conversar com a mãe. Tagarelavam os dois em perfeita intimidade. Mrs. Morel vivia agora para Paul.

William tinha sido profético. Mrs. Morel recebeu uma lembrança e uma carta de Lily pelo Natal. Da irmã de Mrs. Morel, uma carta pelo Ano Novo.

«Fui ontem a um baile. Encontrei lá pessoas adoráveis e diverti-me imenso», dizia a carta. «Não perdi uma dança... nem uma.»

Mrs. Morel nunca mais teve notícias dela.

Morel e a mulher viveram em harmonia durante algum tempo depois da morte do filho. Ele costumava quedar-se, como num êxtase, de olhos esbugalhados e olhar perdido. Depois, levantava-se de repente e ia para o Three Spots, voltando já no seu estado normal. Mas nunca mais foi passear para os lados de Shepstone, para não passar pelo escritório onde o filho trabalhara, e evitava passar pelo cemitério.


SEGUNDA PARTE


VII

AMOR DE ADOLESCENTES

NO OUTONO, Paul estivera várias vezes em Willey Farm e tinha-se tornado amigo dos dois rapazes mais novos. De início, Edgar, o mais velho, não se mostrava muito receptivo, e Miriam furtava-se também a qualquer aproximação. Tinha medo de ser desprezada pelos próprios irmãos. Rapariga de alma romântica, em toda a parte via heroínas de Walter Scott, cortejadas por cavaleiros de armadura ou chapéus emplumados. Ela própria era, na sua imaginação, uma princesa transformada em guardadora de porcos. E receava que aquele rapaz, parecido embora com um herói de Walter Scott, que pintava, falava francês, sabia álgebra e viajava todos os dias de comboio para Nottingham, visse nela simplesmente a guardadora de porcos e fosse incapaz de vislumbrar a princesa que nela se ocultava. Por isso, fugia dele.

A sua melhor amiga era a mãe. Ambas de olhos castanhos e dadas ao misticismo, eram daquelas mulheres que guardam a religião ciosamente no coração e para quem a religião é como o ar que respiram, como um véu de bruma que lhes filtra a vida. Assim, para Miriam, Cristo e Deus formavam uma só imagem sublime que ela amava com fervor, apaixonadamente, sempre que um imenso pôr do Sol incendiava o céu poente; sempre que os heróis e as heroínas – os Brian de Bois Gilberts, os Rob Roys e os Guy Mannerings; as Edites, as Lucys e as Rowenas – faziam restolhar as folhas matinais encharcadas de sol, ou se vinham sentar com ela nas alturas do seu quarto, sonhadores e solitários, quando a neve caía. Isto sim, era para ela viver. Quanto ao resto, cuidava da lida da casa, trabalho que não lhe seria pesado, se o chão de tijoleira bem polida não ficasse logo todo patinhado das pesadas botas dos irmãos; queria à viva força que o irmão mais novo, de quatro anos, a deixasse envolvê-lo e cobri-lo com o seu amor; ia à igreja, reverente, em pose contrita, e sofria angustiada perante a vulgaridade das outras meninas de coro e a banalidade da voz do cura; envolvia-se em lutas com os irmãos, que considerava uns brutamontes; e não tinha o pai em grande estima por não albergar no coração quaisquer ideais místicos, e ter como únicas ambições uma vida sem preocupações e a comida na mesa a tempo e horas.

Miriam detestava a sua condição de guardadora de porcos. Queria ser respeitada. Queria instruir-se, pensando que, se fosse capaz de ler, como Paul dizia que era, a Colomba ou a Voyage Autour de ma Chambre, o mundo a veria com outros olhos e teria por ela um profundo respeito. Como jamais poderia ser princesa por fortuna ou condição, ansiava possuir conhecimentos de que pudesse orgulhar-se; era diferente das outras pessoas e não queria ser confundida com a arraia-miúda. Ser instruída era a única marca de distinção a que pensava poder aspirar.

A sua beleza, misto de timidez, rebeldia e sensibilidade, não tinha para ela qualquer valor. Nem mesmo a sua alma, tão dada a arrebatamentos, lhe era suficiente. Precisava de algo mais que reforçasse o seu orgulho, pois sentia-se diferente das outras pessoas. Olhava Paul com vaga melancolia. De uma maneira geral, desprezava o sexo masculino. Neste caso, porém, ele era um exemplar diferente, ágil, leve, gracioso, que tanto podia mostrar-se gentil como insuportável, que era inteligente e culto, que já tinha passado por uma morte na família. O pouco que o rapaz sabia guindava-o aos píncaros a seus olhos. Contudo, esforçava-se por desprezá-lo por ele não conseguir ver nela a princesa, mas tão-só a guardadora de porcos.

Paul mal reparava nela.

Um dia, porém, adoeceu gravemente e ela sentiu que com isso ele iria enfraquecer. Se assim fosse, seria ela a mais forte e então poderia amá-lo. Se pudesse ser sua amante na fraqueza, cuidar dele, tê-lo na sua dependência, se ao menos pudesse tê-lo nos seus braços, com que força o amaria!

Assim que os céus desanuviaram e as ameixoeiras floriram, Paul partiu para Willey Farm na carroça do leiteiro. Mr. Leivers gritou pelo rapaz em tom amigável e conduziu o cavalo lentamente pela encosta acima, ao fresco da manhã, dando estalinhos com a língua para o incitar. No céu passavam nuvens brancas que se iam juntar para lá das colinas, agora visíveis à luz primaveril. As águas do Nethermere jaziam em baixo, muito azuis, em contraste com os prados ressequidos e os espinheiros.

Era uma viagem de quatro milhas e meia. Nas cercas, minúsculos botões em tons vivos e brilhantes desabrochavam em rosetas e os tordos pairavam e os melros piavam e gralhavam. Era um mundo novo, fascinante.

Miriam, espreitando da janela da cozinha, viu o cavalo transpor o grande portão branco do pátio, recortando-se contra o bosque de carvalhos desfolhados, em fundo. Nisto, um rapaz envergando um casacão muito grosso saltou para o chão e estendeu as mãos para segurar o chicote e a manta que o lavrador sadio e bem-humorado lhe entregava.

Miriam assomou-se à porta. Tinha quase dezasseis anos, era linda, de faces rosadas, ar grave e uns olhos subitamente dilatados, como em êxtase.

– Vejo – disse Paul virando-se envergonhado – que os teus narcisos estão quase a desabrochar. Não será cedo de mais? Não achas que está ainda muito frio?

– Frio? – repetiu Miriam, na sua voz terna e musical.

– O verde dos botões... – e Paul interrompeu-se, timidamente.

– Deixa-me levar-te a manta – disse Miriam, com exagerada amabilidade.

– Eu posso bem levá-la – respondeu ele, mostrando-se ofendido. Contudo, entregou-lha.

Entretanto, apareceu Mrs. Leivers.

– Deves estar cansado e cheio de frio – disse ela. – Dá-me o casaco. Que pesado.... não vais longe com ele.

Ajudou-o a despir o casacão, amabilidade a que o rapaz não estava habituado, e quase sucumbiu a tanto peso.

– Ena, mulher – disse o lavrador a rir, quando passou pela cozinha com as grandes bilhas de leite a baloiçar. – Tás aí que nem t’aguentas. – Ela ajeitou as almofadas no sofá para o rapaz se encostar.


CONTINUA

Paul, sempre atrás dele, contornou o balcão quadrangular. A sala onde estava ficava no segundo andar. Tinha um grande buraco no meio do chão, rodeado por um muro de balcões, e era por essa abertura que subiam e desciam os elevadores e passava a luz para o andar de baixo. No tecto, na mesma direcção, havia também um buraco oblongo, e, olhando para cima, podiam ver-se algumas máquinas para lá da cercadura de protecção do andar superior; e, logo por cima, uma clarabóia por onde entrava a luz para os três andares, tornando-se cada vez mais fraca à medida que se descia mais fundo, o que deixava o rés-do-chão às escuras e o primeiro andar na penumbra. A fábrica estava instalada no último andar, o armazém no segundo e a arrecadação no rés-do-chão. O lugar era velho e insalubre.

Paul foi levado para um canto muito escuro.

– Aqui é a secção Espiral – disse o empregado. – Tu fazes a Espiral com o Pappleworth. É ele o teu chefe, mas ainda não veio. Só chega lá para as oito e meia. Por isso, se quiseres, podes ir buscar as cartas a Mr. Melling, ali adiante.

E o jovem apontou para o tal velho do gabinete do fundo.

– Está bem – disse Paul.

– Está aqui uma escápula para pendurares o boné... e aqui tens os livros de registo da correspondência. Mr. Pappleworth já não deve demorar.

E o jovem, muito magro, afastou-se altaneiro, com grandes passadas desenvoltas, que ressoavam secas no soalho.

Passados um ou dois minutos, Paul parou à porta do gabinete envidraçado. O velho funcionário, com o seu bonezinho, olhou-o por cima dos óculos.

– Ora muito bom dia – disse, afável e enfático. – Queres as cartas para levares para a Espiral, não é, Thomas?

Paul não gostou que ele lhe chamasse Thomas, mas pegou nas cartas e voltou para o seu recanto escuro, onde o balcão dobrava em ângulo, onde acabava a prateleira das embalagens, e onde, mesmo ao canto, se abriam três portas. Paul sentou-se num banco alto e começou a ler as cartas, pelo menos, aquelas cuja letra era mais legível. Diziam o seguinte:

«Queira enviar-me por favor, com a máxima urgência, um par de meias de seda Espiral para senhora, sem pé, idênticas às que me enviou o ano passado... altura... da anca ao tornozelo... etc.»

Ou então: «O Major Chamberlain deseja renovar o anterior pedido de uma ligadura suspensória em seda, não elástica.»

Muitas destas cartas, algumas delas em francês ou norueguês, eram um quebra-cabeças para o rapaz, que aguardava ansioso, sentado no banco, a chegada do «chefe». Às oito e meia, sofreu um ataque de timidez quando as raparigas do andar de cima passaram por ele a correr.

Mr. Pappleworth apareceu por volta das vinte para as nove, a mastigar uma pastilha elástica de mentol, quando já todos estavam a trabalhar. Era um homem magro e pálido, de nariz vermelho e gestos rápidos e peremptórios, trajando com austera elegância. Devia andar pelos trinta e seis anos e havia nele algo de canino, garboso, brincalhão e astuto, afectuoso talvez, mas simultaneamente algo de ligeiramente desprezível.

– És o meu novo ajudante? – perguntou. Paul pôs-se de pé e disse que sim.

– Foste buscar as cartas?

Mr. Pappleworth continuou a mastigar a pastilha.

– Sim.

– Copiaste-as?

– Não.

– Então anda cá, vamos pôr-te operacional. Já trocaste de casaco?

– Não.

– O melhor é trazeres um casaco velho e guardá-lo aí.

As últimas palavras foram pronunciadas com a pastilha apertada de lado, entre os queixais. Desapareceu na penumbra, por detrás da enorme prateleira das embalagens, e reapareceu já sem casaco, com uma elegante camisa às riscas com os punhos dobrados, deixando a descoberto uns braços magros e peludos. Depois, enfiou o outro casaco. Paul reparou na magreza deste homem e em como as calças faziam pregas no traseiro. Pegou num banco, puxou-o para junto do rapaz e sentou-se.

– Senta-te – disse o homem. Paul sentou-se. Mr. Pappleworth estava muito próximo dele. Pegou nas cartas, tirou um livro comprido, de registos, da prateleira em frente, abriu-o, pegou numa caneta e disse:

– Agora, presta atenção... Vais copiar estas cartas para aqui.

Fungou duas vezes, deu uma mastigadela na pastilha, olhou demoradamente para uma carta, quedou-se pensativo e deu entrada da carta rapidamente, numa caligrafia bonita e floreada. Depois, olhou de relance para Paul.

– Estás a ver?

– Estou.

– Achas que consegues fazer o mesmo... e bem feito?

– Acho que sim.

– Então, está bem... vamos lá a ver.

Saltou para o chão. Paul pegou numa caneta. Mr. Pappleworth desapareceu. Paul gostava bastante de copiar cartas, mas escrevia devagar, laboriosamente, e muito mal. Ia ele na sua quarta carta, todo feliz e atarefado, quando Mr. Pappleworth voltou.

– Ora vejamos... que tal vai isso... já ’cabaste?

Debruçou-se sobre o ombro do rapaz, sem parar de mastigar e a cheirar a mentol.

– Diabos me levem, rapaz... Mas que belo escritor que tu me saíste! – exclamou ele, trocista. – Não te rales, quantas já fizeste? Só três! Eu tinh’até tido tempo de sobra pràs comer. Continua, miúdo, e numera-as... assim, tás a ver? Continua!

Paul não largava as cartas, enquanto Mr. Pappleworth tratava de outros assuntos. Nisto, soou um apito agudo mesmo junto ao ouvido dele, e o rapaz assustou-se. Mr. Pappleworth aproximou-se, tirou um tampão de dentro de um tubo e disse, numa voz inesperadamente agreste e autoritária:

– Sim!

Paul ouviu uma voz sumida, provavelmente de mulher, a sair pelo tubo. Ficou embasbacado, pois nunca tinha visto um tubo falante.

– Bem – disse Mr. Pappleworth, num tom agastado, falando para o tubo – nesse caso, o melhor é fazer algum do trabalho em atraso.

De novo a voz aguda da mulher se fez ouvir, com um timbre bonito, mas zangado.

– Não tenho tempo para estar aqui a ouvi-la tagarelar – disse Mr. Pappleworth, e em seguida tapou o tubo.

– Vá, miúdo, despacha-te – disse ele, suplicante, virando-se para Paul. – Era a Polly aos gritos, quer as encomendas. Não consegues andar um bocadinho mais depressa? Vá... sai daí.

Pegou no livro, para imenso desgosto de Paul, e começou ele mesmo a escrever. Fazia-o depressa e bem. Uma vez terminadas as cópias, pegou numas tiras compridas de papel amarelo, com cerca de sete centímetros de largura, e preencheu as encomendas para enviar às operárias.

– É melhor prestares atenção – disse ele a Paul, sem se interromper. Paul olhou para aqueles estranhos desenhos de pernas, coxas e tornozelos, cheios de traços e números, e algumas instruções, com que o chefe preenchia as tiras amarelas. Quando acabou, Mr. Pappleworth saltou do banco.

– Vem comigo – disse ele, e, de papéis amarelos a esvoaçar na mão, desapareceu por uma porta e desceu uma escada em direcção à cave, onde ardia uma lamparina de gás. Atravessaram a arrecadação húmida e fria, depois uma sala comprida e lúgubre com uma mesa enorme assente sobre cavaletes e entraram numa sala mais pequena e acolhedora, de tectos não muito altos, que tinha sido construída como anexo do edifício principal. Nesta sala estava uma mulher de pequena estatura, com uma blusa de sarja vermelha e cabelo preto apanhado ao alto num carrapito, em atitude expectante, de galarote.

– Cá tão elas – disse Pappleworth.

– Eu penso que será «Cá estão elas»! – exclamou Polly. – As raparigas estiveram aqui à espera quase meia hora. Pense só no tempo que se perdeu!

– Pense mas é em fazer o seu trabalho e falar menos – disse Mr. Pappleworth. – Podia ter despachado outras coisas.

– Sabe muito bem que despachámos tudo no sábado – gritou Polly, avançando para ele faiscante.

– Blá-blá-blá! – arremedou-a o homem. – Aqui tem o seu novo ajudante. Não dê cabo deste como deu do outro.

– Como nós demos do outro! – repetiu Polly. – Pois é, nós damos cabo de muita coisa, olá se damos. Também lhe digo que qualquer rapaz tinha de ficar estragado depois de estar ao pé de si.

– Vá, vá... agora é hora de trabalhar, não de conversar – disse Mr. Pappleworth num tom seco e severo.

– Também há pouco era – disse Polly, afastando-se de cabeça bem erguida. Tinha um corpo pequeno e escorreito, de quarenta anos.

Na dita sala havia duas máquinas redondas, espiraladas, em cima do poial da janela. Na sala ao lado, que comunicava com a primeira e era mais comprida, havia outras seis máquinas. Algumas raparigas dignamente vestidas e de aventais brancos conversavam umas com as outras, formando um pequeno grupo.

Não têm mais nada para fazer? – disse Mr. Pappleworth.

– Só esperar por si – disse uma delas, bem bonita, rindo com gosto.

– Bom, toca a trabalhar, toca a trabalhar – disse ele. – Anda, miúdo. Da próxima vez, já sabes o caminho.

Paul correu escada acima atrás do chefe. Mandaram-no conferir algumas facturas e fazer outras. Ele arrimou-se à secretária, esforçando-se por cumprir a tarefa na sua caligrafia execrável. Nisto, Mr. Jordan aproximou-se, vindo do gabinete envidraçado, e, para grande atrapalhação de Paul, veio pôr-se mesmo por detrás dele. Subitamente, um dedo gordo e vermelho espetou-se sobre o documento que ele estava a preencher.

– Mr. J. A. Bates, Esquire! – bradou uma voz irada, junto ao seu ouvido.

Paul olhou para o «Mr. J. A. Bates Esquire» escrito na sua letra tortuosa, e perguntou-se o que estaria mal agora.

– Não te ensinaram a fazer como deve ser, enquanto andavas na escola? Se se põe «Mr.», não se põe «Esquire»... um homem não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.

O rapaz, lamentando a sua prodigalidade no modo como esbanjava títulos, hesitou e, com dedos trémulos, apagou a palavra «Mr.». Mas logo Mr. Jordan lhe arrancou a factura das mãos.

– Faz outra! Ou vais mandar isto a um cavalheiro? – E rasgou a factura azul, irritadíssimo.

Paul recomeçou, com as orelhas a arder de vergonha, sob o olhar atento de Mr. Jordan.

– Não sei o que é que eles vos ensinam na escola. Devias escrever muito melhor do que isso. Hoje em dia, os miúdos não aprendem nada a não ser recitar poesia e tocar violino... Já viu a letra dele? – perguntou Mr. Jordan a Mr. Pappleworth.

– Já... é de primeira... não é? – respondeu Mr. Pappleworth com indiferença. – Mas ele vai aprender.

Mr. Jordan resmungou qualquer coisa desagradável. Paul percebeu que o patrão ladrava mais do que mordia. Na verdade, o pequeno fabricante era suficientemente cavalheiresco, apesar do seu mau inglês, para deixar os empregados à vontade e não se prender com ninharias. Mas tinha consciência de não ter aspecto de ser o dono e senhor de tudo aquilo, e via-se por isso forçado a desempenhar o seu papel de vilão, para repor as coisas nos seus devidos lugares.

– Ora vamos lá a ver, como é que te chamas? – perguntou Mr. Pappleworth ao rapaz.

– Paul Morel.

É curioso o que as crianças sofrem para pronunciarem os seus nomes.

– Com que então, Paul Morel! Muito bem, vá, Paul Morel, toca a acabar essa coisa, e depois...

Mr. Pappleworth sentou-se num banco e começou a escrever. Uma rapariga entrou por uma porta mesmo atrás dele, depositou em cima do balcão uns artigos de malha elástica acabados de passar a ferro e voltou a sair. Mr. Pappleworth pegou na joelheira azul claro, examinou-a, confrontou-a rapidamente com a nota de encomenda amarela e pô-la de parte. Ao lado estava uma «perna» rosada, cor de carne. Conferiu os vários artigos, preencheu algumas notas de encomenda e disse a Paul que o acompanhasse. Desta vez, saíram pela porta por onde a rapariga tinha entrado. Paul viu-se no cimo de um pequeno lanço de escadas, e em baixo viu uma sala com janelas em duas das paredes e, no extremo oposto, meia dúzia de raparigas sentadas, curvadas sobre si mesmas, a costurarem à luz das janelas e a cantarem em coro, «Duas Meninas Vestidas de Azul». Ao ouvirem a porta abrir-se, todas se voltaram e viram Mr. Pappleworth e Paul a olharem para elas do outro lado da sala. Pararam de cantar imediatamente.

– Não podem fazer menos barulho? – disse Mr. Pappleworth. – As pessoas hão-de pensar que temos a casa cheia de gatas.

Uma mulher corcunda, sentada num banco alto, voltou para Mr. Pappleworth a cara comprida e circunspecta, e disse com voz de contralto:

– Só se esses forem gatos.

Mr. Pappleworth em vão tentou causar efeito para impressionar Paul. Desceu as escadas até à sala de acabamentos e dirigiu-se à corcunda, uma tal Fanny. O seu corpo era tão pequeno, empoleirado no alto do banco, que a cabeça, com grandes bandós de cabelo castanho-claro, parecia excessivamente grande, tal como o rosto, pálido e grave. Trazia um vestido de caxemira verde-escuro, e, quando pousou o trabalho nervosamente, viu-se que os seus pulsos, cingidos por punhos estreitos, eram finos e achatados. Ele mostrou-lhe uma joelheira que tinha um defeito qualquer.

– Ora – disse ela – não precisava de vir atirar as culpas para cima de mim... a culpa não é minha – disse, subindo-lhe um rubor às faces.

– Eu não disse que a culpa era sua... e agora faça o que lhe mandei! – ripostou Mr. Pappleworth, secamente.

– Não diz que a culpa é minha, mas quer fazer parecer que é – gritou a corcunda, quase a chorar. Depois, arrancou a joelheira das mãos do «chefe», dizendo: – Está bem, eu faço isso, mas não precisa de vir com duas pedras na mão.

– Aqui está o seu novo ajudante – disse Mr. Pappleworth.

Fanny voltou-se e sorriu gentilmente para Paul.

– Oh! – disse ela.

– Pois é... agora vejam lá se o estragam com mimos.

– Se alguém o estragar, não somos nós – disse ela, indignada.

– Vamos embora, Paul – disse Mr. Pappleworth.

– Au revoi, Paul – disse uma das raparigas.

Foi uma risota. Paul saiu, corado até à alma, sem dizer palavra.

O dia nunca mais acabava. Durante toda a manhã, foram os operários a vir falar com Mr. Pappleworth, e Paul a escrever ou a aprender a preparar as embalagens para a tiragem do meio-dia. À uma da tarde, ou melhor, quando faltava um quarto para a uma, Mr. Pappleworth desapareceu, para apanhar o comboio: vivia nos arredores. À uma, Paul, sentindo-se perdido, levou o cesto do farnel para a arrecadação da cave, onde estava a tal mesa comprida sobre cavaletes, e comeu à pressa, completamente sozinho naquele espaço de penumbra e desolação. Depois, foi passear para a rua. A claridade e a liberdade que sentia nas ruas tornavam-no feliz e afoito. Mas, às duas horas, voltou para o seu canto na sala grande. Não tardou que passassem as raparigas, metendo-se com ele. Eram as de mais baixa condição, as que trabalhavam no andar de cima em tarefas mais pesadas, como o fabrico de fundas e os acabamentos dos membros artificiais. Paul ficou a aguardar a chegada de Mr. Pappleworth, sem saber o que fazer, sentando-se a rabiscar nas notas de encomenda amarelas. Mr. Pappleworth chegou às vinte para as três, sentou-se e pôs-se a tagarelar com Paul, tratando o rapaz como seu igual, até na idade.

De tarde nunca havia muito que fazer, a não ser que fosse perto do fim-de-semana e as contas tivessem de ser fechadas. Às cinco horas, todos os homens foram até à «masmorra» da mesa de cavaletes, onde tomaram chá e pão com manteiga em cima das tábuas nuas e imundas, conversando com a mesma avidez e grosseria com que tomavam a refeição. No entanto, lá em cima, o ambiente era sempre alegre e desanuviado. Certamente a cave e os cavaletes deixavam-nos transtornados.

Depois do chá, quando todos os bicos de gás estavam acesos, o trabalho fluía com mais rapidez. Era preciso despachar as encomendas para o correio da tarde. As meias chegavam lá acima ainda quentes, acabadinhas de passar, directamente das oficinas. Paul já tinha passado todas as facturas. Faltava-lhe fazer agora as embalagens e endereçá-las, e depois pesar as suas encomendas na balança. Por todo o lado se ouviam vozes a gritar pesagens, o tilintar de metais, o estalar nervoso dos cordéis, a corrida ao gabinete de Mr. Melling, para os selos. Finalmente, chegou o carteiro, sorridente e bem-disposto, como seu enorme saco. Depois a agitação abrandou, Paul pegou no cesto do farnel e correu para a estação, para apanhar o comboio das oito e vinte. O dia de trabalho era exactamente de doze horas.

A mãe esperava por ele, ansiosa. Paul tinha de ir para casa a pé desde Keston, pelo que não chegou a casa antes das nove e vinte; e tinha saído de casa antes das sete da manhã. Mrs. Morel preocupava-se com a saúde do filho, mas também ela já tivera de enfrentar tantas dificuldades, que esperava que os filhos tivessem agora a mesma genica. Teriam de suportar o que fosse preciso. Assim, Paul manteve-se na Jordan, embora durante a sua permanência nesse emprego a sua saúde sofresse com a falta de luz e de ar fresco, e as longas horas de trabalho.

Quando chegou, vinha pálido e cansado. A mãe olhou para ele, mas viu-o tão satisfeito que a sua preocupação desapareceu.

– Então, como é que foi? – perguntou ela.

– Foi tão engraçado, mãe – respondeu ele. – O trabalho não é nada pesado e eles foram muito bons para mim.

– E saíste-te bem?

– Claro... só dizem que a minha letra é péssima. Mas Mr. Pappleworth... o meu chefe... disse a Mr. Jordan que eu ia aprender. Estou na Espiral, mãe. Tem de ir lá ver. É tão bom...

Paul contou tudo à mãe, tudo o que tinha visto, pensado, todos os pormenores da experiência que vivera. A única coisa que escondeu dela foi o ter escrito «Mr. J. A. Bates Esquire». Isso, ele não queria que ela soubesse; sentia muita vergonha. Também não lhe relatou nada de mais desagradável que lhe tivessem dito, só as coisas boas, tentando fazê-la crer que estava feliz e era estimado, e que a vida lhe corria de feição... o que geralmente acontecia. Contou-lhe tudo, excepto as pequenas vergonhas ou ignomínias; jamais suportaria vê-la envergonhada ou vexada por sua causa.

Paul depressa aprendeu a gostar da Jordan. Mr. Pappleworth, que tinha um certo ar de frequentador de bares, tratava-o sempre com naturalidade, como se fossem amigos de longa data. Às vezes, o chefe da Espiral irritava-se, e então mastigava pastilhas elásticas sem parar. Mesmo assim, nunca era ofensivo, mas sim uma daquelas pessoas que se magoam mais a si próprias do que aos outros com a sua irritabilidade.

– Ainda não fizeste isso? – gritava ele. – Já vi que és um mês só com domingos.

E logo se punha de novo alegre e brincalhão, o que deixava Paul muito confuso.

– Amanhã trago a minha cadelinha Yorkshire terrier – disse ele a Paul, rejubilando.

– O que é isso de Yorkshire terrier?

– O quê? Pois tu não sabes o que é uma Yorkshire terrier?... Não saber o que é um Yorkshire! – Mr. Pappleworth estava pasmado.

– É um cãozinho de pêlo sedoso... em tons de ferrugem e prata oxidada?

– É isso mesmo, meu rapaz. A minha é uma pérola. Já teve cachorrinhos que me renderam cinco libras, e ela própria vale mais de sete libras: e não chega a pesar uma libra e meia...

No dia seguinte, a cadela veio com ele. Era dez réis de cão tremeliquento. Paul não lhe ligou nenhuma; a cadela mais parecia um trapo molhado sem esperança de secar. Nisto, um dos homens chamou-a e começou a dizer piadas grosseiras. Mas Mr. Pappleworth meneou a cabeça na direcção do rapaz e a conversa prosseguiu a meia-voz.

Mr. Jordan fez apenas mais uma excursão à Espiral, para inspeccionar o trabalho de Paul e o único reparo que lhe fez, ao ver o rapaz pousar a caneta no balcão, foi:

– Tens de pôr a caneta na orelha, se queres ser um caixeiro a sério. Vá, caneta na orelha!

Num outro dia, disse ao rapaz:

– Não endireitas mais esses ombros porquê? Ora vem cá. E levou-o ao gabinete envidraçado, onde lhe colocou uns suspensórios especiais para manterem os ombros direitos.

Mas Paul preferia a companhia das raparigas. Os homens pareciam-lhe grosseiros e pouco espertos. Simpatizava com todos eles, mas achava-os desinteressantes. Ao encontrar Paul a comer na cave, Polly, a supervisora baixinha e sirigaita do rés-do-chão, perguntou-lhe se ele não queria que ela lhe cozinhasse alguma coisa no seu fogareiro e, no dia seguinte, a mãe mandou-lhe uma refeição que podia ser aquecida. Ele levou-a à salinha limpa e aconchegada onde Polly trabalhava, e depressa adquiriu o hábito de almoçar com ela. Quando chegava ao trabalho, às oito da manhã, levava-lhe o cesto, e quando descia à uma hora, já o almoço estava pronto.

Paul era pálido, não muito alto, cabelo espesso e castanho, feições irregulares e uma boca rasgada, de lábios cheios. Ela parecia um passarinho, e ele até a tratava muitas vezes por pisco. Embora fosse geralmente muito calado, com ela passava horas sentado a conversar, a contar-lhe peripécias familiares. Todas as raparigas adoravam ouvi-lo; formavam muitas vezes um círculo à sua volta, enquanto ele discursava e ria, sentado num banco. Algumas consideravam-no um fulaninho curioso, tão sério e, no entanto, tão inteligente e bem-disposto, e sempre tão delicado no modo como as tratava. Todas gostavam dele e ele adorava-as. Com Polly era diferente; a essa, ele sentia que pertencia. Mas era Connie, com a sua farta cabeleira ruiva, a sua tez de flor de macieira, a voz sussurrada, e sempre tão distinta no seu vestido preto já gasto, que apelava ao seu lado romântico.

– Quando te sentas a enrolar a meada – disse ele – parece que estás a fiar na roca... é um quadro tão bonito. Faz-me lembrar a Elaine, dos Idílios do Rei. Se eu soubesse, desenhava-te. – Ela olhou para ele de relance, timidamente ruborizada. Mais tarde, havia um esboço de que ele muito gostava: Connie sentada num banquinho, em frente à roca, a longa crina ruiva flamejante sobre o vestido preto ruçado, e os lábios rubros selados e muito sérios, a passar o fio escarlate do novelo para a bobina.

Com Louie, bonita e atiradiça, que parecia estar sempre a provocá-lo com o menear das ancas, punha-se geralmente a brincar.

– O que estás a fazer?

– Porque queres saber? – respondeu ela, levantando a cabeça, atrevida.

– Porque acho que tu não te conheces.

– Porquê?

– Porque não tens ar de te conheceres.

– Então tenho cara de quê?

– Tens cara de quem está sempre a pensar nalguma coisa. Em que é que estavas a pensar?

Ela olhou-o pelo canto do olho e disse, com uma gargalhada:

– Isso era o que tu querias saber, não era?

– Sai daí – disse ele. – Vamos lá dar uma volta à tua meia.

E, depois, pegando na manivela da máquina, começou a rodá-la.

Mas ela empurrou-o.

– Isso vai ficar tudo mal – exclamou.

E ficaram os dois a olhar um para o outro, a rir às gargalhadas.

Emma era bastante feia, e não era nem nova nem condescendente. Sentia-se, porém, feliz por se mostrar condescendente com Paul. E ele não se importava.

– Como é que se metem as agulhas? – perguntou ele um dia.

– Sai daqui, não me maces.

– Mas eu devia saber como é que se metem as agulhas.

Ela continuou a coser à máquina, sem pestanejar.

– Há tantas coisas que devias saber – respondeu ela.

– Então ensina-me a colocar as agulhas na máquina.

– Ai, este rapaz sempre é muito maçador! ... Pronto, é assim que se faz...

Ele observou-a atentamente. Nisto, soou um apito, e a seguir Polly entrou e perguntou em voz bem audível:

– Paul, Mr. Pappleworth quer saber por quanto tempo vais ficar cá em baixo a brincar com as raparigas.

Paul correu pela escada acima, a gritar «Adeusinho!», e Emma endireitou-se na cadeira e explicou:

– Não fui eu que quis que ele estivesse a brincar com a máquina.

– Qu’é qu’andavas a fazer? – perguntou Mr. Pappleworth, quando o rapaz apareceu.

– Estava só a falar com a Emma, e a aprender a colocar as agulhas na máquina.

– O melhor é pegares no teu trabalho e mudares-te lá pra baixo.

– Mas aqui não havia nada de especial para fazer, pois não?

– Mal tu saíste daqui, o patrão veio à tua procura. Um dia sai-te caro! E então estes registos?

Paul meteu mãos à obra cheio de vontade.

Regra geral, quando as raparigas voltavam, às duas horas, ele ia ao andar de cima ter com Fanny, a corcunda, que trabalhava nos acabamentos.

Mr. Pappleworth só chegava às vinte para as três, e vinha encontrar muitas vezes o rapaz sentado ao lado de Fanny a conversar, a desenhar ou a cantar com as raparigas.

– Vem cá, Paul, meu querido – gritava a Fanny. – Até pensámos que hoje não vinhas cá acima. Pensávamos que ias ficar lá em baixo por não gostares da nossa companhia.

– Fui à cidade.

– Para quê, meu lindo?

– Para ver se encontrava uma cestinha de mirtilos para a minha mãe.

– E encontraste?

E, uma vez iniciada a conversa, nunca mais terminavam. Paul gostava muito de Fanny e a corcunda gostava muito dele. Ela tinha vinte e nove anos e sofrera muito. Ele gostava de ficar sentado ao lado dela, à janela, a olhar para a rua e a desenhar a bizarra floresta de chaminés e telhados antigos e bicudos que a vista alcançava. Depois dizia:

– Canta qualquer coisa, Fanny.

– Sabes que mais? Tu não queres que eu cante – dizia ela, manejando a agulha com destreza, com as mãos magras e nervosas. – Tu queres é fazer pouco de mim.

– Não quero nada! Mas é que eu disse à minha mãe que cantavas muito bem...

– Não sei o que é que a tua mãe ia pensar de mim, se me visse, Paul. Ia pensar que eu era um macaco encarrapitado num pau.

– Ela sabe como tu és, porque eu já lhe contei. E gosta de ti. Canta lá «Naquela Taberna...». Este desenho vai ficar uma maravilha.

E, passado um minuto de hesitação, Fanny começou a cantar. Tinha uma bela voz de contralto, e todas as raparigas cantaram em coro e muito afinadas. Paul não se sentia nada embaraçado por estar ali sentado no meio das mulheres.

Quando terminou, Fanny disse:

– Sei que estão a fazer troça de mim.

– Não sejas assim, Fanny! – exclamou uma das colegas.

Uma outra vez, falou-se no cabelo ruivo de Connie.

– Cá pra mim, acho o da Fanny mais bonito – disse Emma.

– Não precisas de fazer pouco de mim – disse Fanny, agastada.

– Mas ela tem o cabelo mesmo bonito, Paul.

– É uma cor especial – disse ele. – Aquela cor fria, como a terra, e mesmo assim brilhante... como um pântano.

– Santo Deus! – exclamou uma das raparigas, a rir.

– Estás a ver como só me criticam? – disse Fanny.

– E havias de o ver solto, Paul – gritou Emma, falando a sério. – É simplesmente uma beleza. Solta o cabelo pra ele ver, Fanny, pode ser que ele o queira pintar.

Fanny recusou-se, e, no entanto, era o que mais queria fazer.

– Então solto-lho eu – disse o rapaz.

– Bem, já que insistes – disse Fanny.

Paul tirou os ganchos do carrapito com todo o cuidado, e a longa cabeleira, num tom castanho-escuro uniforme, caiu sobre a corcunda.

– Que maravilha! – exclamou ele.

As raparigas observavam-no. Reinava o silêncio. O jovem soltou-lhe mais o cabelo.

– É esplêndido – disse, sentindo-lhe o perfume. – Aposto que vale muitas libras.

– Deixo-to quando morrer – disse Fanny, em tom de brincadeira.

– Pareces-te com qualquer de nós, sentada a secar o cabelo – disse uma das raparigas à colega corcunda e pernalta.

A pobre da Fanny era morbidamente susceptível, em tudo adivinhando insultos, ao passo que Polly era directa e factual. As duas secções estavam permanentemente em guerra, e Paul vinha constantemente encontrar Fanny lavada em lágrimas. Fanny contava-lhe todas as suas mágoas, e ele, depois, ia defendê-la junto de Polly.

A filha de Mr. Jordan era pintora. Um dos seus modelos era Connie, que lhe falou de Paul. Primeiro, Miss Jordan pediu para ver alguns dos seus desenhos, e, a seguir, veio ela própria falar com ele. Era uma mulher fria e impessoal, mas mostrou algum interesse pelo rapaz.

E assim foi correndo o tempo, em harmonia. A fábrica tinha um ambiente agradável. Ninguém era empurrado ou pressionado. Paul até gostava quando o trabalho acelerava perto da hora do correio e todos se entreajudavam. Gostava de ver os colegas em acção. O homem era o trabalho e o trabalho era o homem, unidos num só. Com as raparigas era diferente. A verdadeira mulher parecia nunca estar ali presente no trabalho – era como se estivesse de fora, à espera.

Da janela do comboio, quando à noite regressava a casa, observava as luzes da cidade povoando as colinas e fundindo-se nos vales com um clarão ardente. E Paul sentia-se rico de experiência e felicidade. Mais adiante, havia uma mancha de luz em Bulwell, como miríades de pétalas caídas das estrelas sobre a terra; e, mais além, o jorro incandescente das fornalhas, projectando nas nuvens o seu sopro abrasador.

Chegado a Keston, ainda tinha de andar mais de duas milhas até casa, subindo duas colinas mais longas e descendo outras duas mais curtas. Sentindo-se muitas vezes cansado, ia contando os candeeiros à medida que subia, para ver quantos ainda faltavam. E, do alto da colina, nas noites de breu, via as aldeias espalhadas a toda a volta, a cinco ou seis milhas de distância, enxameando a noite de vida e luz, quase como um céu aberto a seus pés. Marlpool e Heanor semeavam de cintilações a escuridão mais longínqua. Uma vez por outra, o negro vale que se interpunha lá em baixo, era riscado, violado por um interminável comboio que rolava célere para sul, em direcção a Londres, ou rumo ao norte, para a Escócia. Os comboios troavam como projécteis na escuridão, fumegantes e acesos, fazendo retinir o vale à sua passagem. Mas logo desapareciam, e as luzes das cidades e das aldeias cintilavam outra vez, mergulhadas no silêncio.

Chegava, por fim, à esquina da casa, virada para o outro lado da noite. O freixo parecia agora um amigo. A mãe vibrava de alegria vendo-o chegar. Ele depositava os oito xelins orgulhosamente sobre a mesa.

– Fazem-lhe jeito, mãe? – perguntava, ansioso.

– Não vai sobejar quase nada depois de descontar o bilhete, as refeições e tudo o mais.

Em seguida, punha-a ao corrente dos acontecimentos do dia. A história da sua vida, como nas Mil e Uma Noites, mas muito mais monótona, era contada à mãe noite após noite. E ela escutava e era quase como se a vida fosse dela.


VI

UMA MORTE NA FAMÍLIA

ARTHUR MOREL ia crescendo. Era um rapaz vivo, descuidado e impulsivo, muito parecido com o pai. Tinha horror aos estudos, resmungava sempre que tinha de trabalhar e escapava-se o mais depressa que podia, para voltar para a brincadeira.

Fisicamente, continuava a ser o menino bonito da família, bem constituído, gracioso, cheio de vida. O cabelo castanho-escuro, a frescura da tez e os olhos raros, de um azul profundo e sombreados de longas pestanas, a par dos seus modos generosos e temperamento fogoso, faziam dele o preferido. Mas, à medida que crescia, o temperamento ia-se tornando instável. Tinha acessos de fúria por tudo e por nada, e mostrava-se insuportavelmente violento e irritável.

A mãe, de quem tanto gostava, já começava a perder a paciência. Arthur só pensava em si próprio. Detestava tudo o que se interpusesse entre si e o seu prazer, mesmo quando esse «tudo» era a mãe. Mas, quando se metia em apuros, era com ela que tinha intermináveis desabafos.

– Meu Deus, rapaz – disse ela, quando ele se veio queixar de um professor que, segundo ele, o tomara de ponta – se não te agrada a situação, tens de a fazer mudar, e se não podes mudar nada, tens de te adaptar.

Quanto ao pai, que ele amara desmedidamente e que o idolatrava, acabou por detestá-lo. Com a idade, Morel transformou-se lentamente numa ruína viva. O seu corpo, em tempos belo nas formas e na agilidade, mirrou com os anos, não parecendo ter amadurecido, mas, pelo contrário, ter-se tornado insignificante e desprezível, emanando baixeza e mesquinhez. E sempre que este homem de meia-idade e olhar perverso o injuriava ou o tratava com prepotência, Arthur ficava furioso. Ainda por cima, os modos de Morel eram cada vez mais grosseiros, e os seus hábitos quase repugnantes. Na fase de crescimento dos filhos e durante o período crítico da adolescência, o pai surgia-lhes aos olhos da alma como um ser feio e irritante. Em casa, os seus modos eram idênticos aos que usava com os outros mineiros no fundo da mina.

– Monstro nojento! – gritava Arthur, saltando da cadeira e saindo de casa, quando o pai o enojava.

E Morel fazia ainda pior, por saber que as crianças o detestavam. Parecia sentir prazer em afrontá-las, a ponto de quase as enlouquecer, quando, aos catorze ou quinze anos, atravessavam a fase de extrema sensibilidade e irritabilidade. Assim, Arthur, que cresceu quando o pai já se encontrava em declínio e a caminho da velhice, odiava-o acima de tudo.

Por vezes, o pai parecia pressentir todo esse ódio e desprezo que os filhos tinham por ele.

– Não há homem que se sacrifique mais pela família – bordava então. – Faz por eles tudo o que pode, e tratam-no como um cão. Mas eu tenho força para aguentar, estão a ouvir!

Não fora o tom ameaçador e o facto de não fazer por eles tanto quanto pensava, e teriam até sentido pena. Nesta altura, a guerra instalava-se quase sempre entre pai e filhos, com o primeiro persistindo nos seus modos grosseiros só para afirmar a sua autoridade. Os filhos detestavam-no.

Por fim, Arthur já andava tão exaltado e irritado que, quando ganhou uma bolsa para ir para a escola secundária de Nottingham, a mãe achou por bem deixá-lo ficar a viver na cidade com uma das suas irmãs, vindo apenas a casa aos fins-de-semana.

Annie ainda era professora estagiária na escola primária, onde ganhava quatro xelins por semana. Mas em breve seriam quinze, uma vez que passara o exame final, o que traria à família tranquilidade financeira.

Mrs. Morel era muito agarrada a Paul. Ele era calado e não excessivamente inteligente, mas continuava fiel à pintura e à mãe. Tudo o que fazia era para ela. E ela esperava pela sua chegada à noitinha, para desabafar com ele todos os seus pensamentos, tudo o que lhe acontecera durante o dia. E ele ouvia-a, sentado e atento. Era o partilhar de duas vidas.

William estava noivo da tal morena, e tinha-lhe comprado um anel de noivado que custara oito guinéus. Os irmãos ficaram sem fôlego perante soma tão fabulosa.

– Oito guinéus! – disse Morel. – Bem parvo é!... Ficava-lhe melhor se me tivesse dado antes algum a mim.

– Dar-te algum, a ti! – exclamou Mrs. Morel. – Porque havia ele de te dar algum?

Mrs. Morel lembrou-se de que o marido não lhe tinha comprado anel de noivado e, a seu ver, antes ser como o William, que não era mesquinho, embora pudesse ser parvo. Mas agora o jovem só falava nos bailes a que tinha ido com a noiva e nos vestidos deslumbrantes que ela usava; ou então contava à mãe, rejubilante, como tinham os dois ido ao teatro em grande estilo.

William queria trazer a namorada para os pais conhecerem, e Mrs. Morel disse-lhe que a trouxesse no Natal. Desta vez, William chegou acompanhado de uma senhora, mas sem presentes. Mrs. Morel tinha preparado a ceia. Ao ouvir passos, levantou-se e foi à porta. William entrou.

– Olá, mãe! – deu-lhe um beijo apressado, chegou-se para o lado e apresentou-lhe uma rapariga alta e bonita, vestida com um saia-e-casaco preto e branco aos quadradinhos e uma estola de peles.

– Cá está a Ciganita!

Miss Western estendeu a mão e rasgou um sorriso de muitos dentes.

– Oh, como está, Mrs. Morel! – exclamou.

– Devem estar com fome – disse Mrs. Morel.

– Não, não estamos. Jantámos no comboio... Tens as minhas luvas, Fofinho?

William Morel, alto e ossudo, olhou para ela acto contínuo.

– Como é que havia de tê-las? – disse ele.

– Então perdia-as. Não te zangues comigo...

Viu-se que ele tinha ficado aborrecido, mas não disse nada. Ela relanceou o olhar pela cozinha. Achou-a pequena e bizarra, com o ramo de azevinho pendurado na parede e as sempre-vivas por detrás das fotografias, as cadeiras de madeira e a mesinha de jogo. Nessa altura, entrou Morel.

– Olá, pai!

– Olá, meu filho... Mas que surpresa!

Apertaram as mãos, e William apresentou-lhe a senhora. Ela reeditou o sorriso, mostrando os dentes.

– Como está, Mr. Morel. – Morel inclinou-se respeitosamente.

– Tou bem, obrigado, e espero que também esteja... Seja muito bem-vinda.

– Ah, obrigada – respondeu ela, bastante divertida.

– Há-de querer ir para cima – disse Mrs. Morel.

– Se não se importa... mas só se não a incomodar.

– Não incomoda nada... A Annie vai consigo... Walter, leva este baú para cima.

– E não leves uma hora a aperaltar-te – disse William para a noiva.

Annie pegou num candelabro de latão e, muda de vergonha, subiu à frente da jovem até ao quarto principal, que Mr. e Mrs. Morel lhe tinham cedido. Era também pequeno e frio, iluminado apenas pelas velas. As mulheres dos mineiros só acendiam as lareiras nos quartos em caso de doença muito grave.

– Quer que desaperte as correias do baú?

– Ah, muito obrigada!

Annie estava a fazer o papel de criada. Em seguida voltou para baixo para ir buscar água quente.

– Ela deve estar muito cansada, mãe – disse William. – É uma viagem muito violenta, e na correria em que andámos...

– Queres que lhe leve alguma coisa? – perguntou Mrs. Morel.

– Não, não... Ela está bem.

Mas havia um certo gelo no ar. Passada mais de meia hora, Miss Western desceu, envergando um vestido em tons de púrpura, demasiado fino para a cozinha do mineiro.

– Tinha-te dito que não precisavas de trocar de roupa – disse William.

– Deixa lá, Fofinho!... – E, mantendo o sorriso adocicado, voltou-se para Mrs. Morel: – Não acha que ele está sempre a resmungar, Mrs. Morel?

– Ah, está? – disse Mrs. Morel. – Isso é muito feio.

– E é mesmo!

– Deve estar com frio – disse a mãe. – Não quer vir para a la-reira? – Morel saiu imediatamente da cadeira de braços.

– Venha pr’àqui – exclamou ele. – Venha pr’àqui.

– Não, pai... Não saia da sua cadeira... senta-te no sofá, Ciganita – disse William.

– Não senhor! – insistiu Morel. – Esta cadeira é mais quente. Venha sentar-se aqui, Miss Wesson.

– Muitíssimo obrigada – disse a rapariga, sentando-se na cadeira de braços do mineiro, ou seja, o lugar de honra. Teve uma tremura ao sentir o calor da cozinha invadi-la.

– Vai buscar-me um lenço, Fofinho! – disse ela, fazendo beicinho e dirigindo-se-lhe no tom íntimo de quando estavam sozinhos, o que fez os restantes membros da família sentirem-se como intrusos. Era evidente que a jovem não os considerava como pessoas: para ela não passavam de criaturas. William estremeceu.

Se aquela casa fosse em Streatham, Miss Western seria a senhora, condescendendo a conviver com a camada inferior. Para ela, estas pessoas eram no mínimo grotescas – numa palavra, da classe trabalhadora. Como poderia ela adaptar-se?

– Eu vou – disse Annie.

Miss Western ignorou-a, como teria feito com uma criada, e só quando ela voltou para baixo com o lenço disse então, com afabilidade:

– Oh, muito obrigada.

Depois, desatou a falar: do jantar no comboio, que não tinha prestado para nada, de Londres, dos bailes. Via-se que estava muito nervosa e era o medo que a fazia falar. Morel, sentado a fumar um tabaco muito forte, observava-a enquanto lançava baforadas de fumo para o ar e ouvia com atenção a sua petulante algaraviada londrina. Mrs. Morel, ostentando a sua melhor blusa de seda preta, ia-lhe respondendo com calma e poucas palavras. Os outros filhos estavam sentados, em admirativo silêncio. Miss Western era a princesa. Tinham ido buscar tudo o que havia de melhor para a servir: as melhores chávenas, as melhores colheres, a melhor toalha, o melhor bule. As crianças achavam que ela devia estar a apreciar muito o acolhimento. Mas ela sentia-se mal, por não entender as pessoas, por não saber como tratá-las. William ia dizendo piadas, sentindo-se ligeiramente comprometido.

Por volta das dez horas, disse-lhe:

– Não estás cansada, Ciganita?

– Muito, Fofinho – respondeu ela, com voz melada e inclinando a cabeça ligeiramente para o lado.

– Acendo a vela, mãe? – disse ele.

– À vontade – respondeu a mãe.

Miss Western levantou-se e estendeu a mão a Mrs. Morel.

– Boa noite, Mrs. Morel – disse ela.

Paul, sentado em frente da caldeira, deixou jorrar a água da torneira para dentro de uma garrafa de cerveja em grés. Annie abafou a garrafa numa velha camisola da mina, e deu à mãe um beijo de boas-noites. Com a casa cheia, ia ter de dormir com a senhora.

– Espera um bocadinho – disse Mrs. Morel à filha. Annie sentou-se com a botija ao colo. Miss Western despediu-se de todos com um aperto de mão, para grande atrapalhação dos presentes, e saiu, precedida por William. Passados cinco minutos, ele voltou para baixo. Sentia o coração oprimido, sem saber porquê. Falou muito pouco até todos se terem ido deitar, excepto ele e a mãe. Depois, foi pôr-se de pé frente à lareira, de pernas afastadas como costumava fazer noutros tempos, e disse, titubeante:

– Então, mãe?

– Então o quê, meu filho?

A mãe sentou-se na cadeira de baloiço. Sentia-se de certo modo ferida e humilhada por causa dele.

– Gosta dela?

– Gosto – tardou a resposta.

– Ela ainda está pouco à vontade, mãe... não está acostumada a tudo isto. É muito diferente da casa da tia dela, sabe.

– Claro que é, meu filho... Deve ser difícil para ela.

– Pois é. – E, de repente, a expressão carregou-se-lhe. – Se ao menos ela não pusesse aqueles benditos ares!

– É só a primeira reacção, meu filho. Aquilo passa-lhe.

– Tem razão, mãe – respondeu ele, gratificado. Mas o olhar continuava triste. – Sabe, ela não é como a mãe... não é compenetrada... e não se cansa muito a pensar.

– Ela é muito nova, meu filho.

– É isso!... E não teve sorte nenhuma. A mãe morreu quando ela era criança, e desde então vive com uma tia que ela já não consegue aturar. E o pai era um patife... Faltou-lhe o amor.

– Sério?!... Bem, nesse caso tens de a compensar de tudo isso.

– E perdoar-lhe muitas coisas.

– Que coisas é que tens de lhe perdoar, meu filho?

– Sei lá... quando ela se mostra superficial, por exemplo... É preciso lembrarmo-nos de que ela nunca teve ninguém que fizesse desabrochar o seu lado mais profundo... E ela gosta tremendamente de mim.

– Isso qualquer pessoa pode ver.

– Mas, sabe uma coisa, mãe... ela... ela é diferente de nós. As pessoas como ela, aquelas com quem se dá... não parecem ter os mesmos princípios que nós.

– Não deves fazer juízos precipitados – disse Mrs. Morel. Mas ele parecia contrafeito.

De manhã, contudo, levantou-se e pôs-se a cantar pela casa toda.

– Olá! – chamou ele, saudando-a do fundo das escadas, onde estava sentado. – Já te estás a levantar?

– Já – respondeu ela lá de cima, com voz sumida.

– Feliz Natal! – gritou ele.

No quarto, ouviu-se o riso dela, bonito e musical. Mas ela só desceu meia hora depois.

– Ela estava mesmo a levantar-se, quando disse? – perguntou William a Annie.

– Estava, sim – respondeu Annie.

William aguardou uns instantes e voltou para as escadas.

– Feliz Ano Novo! – gritou ele.

– Obrigada, Fofinho do meu coração! – disse uma voz risonha, de muito longe.

– Despacha-te! – implorou ele.

Tinha passado quase uma hora, e ele à espera dela. Morel, que se levantava sempre antes das seis, olhou para o relógio.

– Bem, já vi qu’é das que s’atrasam! – exclamou.

Já todos tinham tomado o pequeno-almoço, excepto William, que se foi postar ao fundo das escadas.

– Será que vou ter de mandar aí para cima um ovo de Páscoa? – gritou ele, já zangado. Ela limitou-se a rir. A família esperava algo de mágico depois de tão longa preparação. Finalmente, ela apareceu, com uma saia e uma blusa que lhe ficavam muito bem.

– Levaste mesmo todo este tempo para te vestires? – perguntou ele.

– Oh, Fofinho!... Isso não é pergunta que se faça, pois não, Mrs. Morel?

A princípio, ela representou o papel da grande dama. Quando entrou na capela ao lado de William, ele de fraque e chapéu de seda, e ela de estola de peles e saia-casaco dos melhores costureiros de Londres, Paul, Arthur e Annie esperavam que todos se curvassem até ao chão, em êxtase. E Morel, observando o parzinho galante do fundo da rua, com o seu fato domingueiro, sentia-se o pai do príncipe e da princesa.

Porém, a dama não era assim tão grande. Trabalhava desde há um ano como uma espécie de secretária, ou escriturária, num escritório de Londres.

Mas enquanto esteve com os Morels parecia uma rainha: sentava-se à mesa e deixava que Annie e Paul a servissem, como se fossem seus criados. Tratava Mrs. Morel com alguma petulância e Morel com paternalismo. Mas, passados um ou dois dias, a sua atitude começou a mudar.

William pedia sempre a Paul ou Annie que os acompanhassem nos passeios que davam. Era muito mais divertido. E Paul sentia real admiração pela Cigana, uma admiração genuína. Na verdade, a mãe não podia perdoar ao filho a adoração que mostrava pela jovem.

No segundo dia, quando Lily disse:

– Annie, sabes por acaso onde terei deixado o meu regalo? William respondeu:

– Sabes muito bem que está no teu quarto. Para que perguntas à Annie?

E Lily lá foi ao quarto, amuada, de lábios crispados. O rapaz já não suportava vê-la fazer da irmã uma criada.

Na terceira noite, William e Lily foram sentar-se na sala, às escuras, frente à lareira. Quando era um quarto para as onze, ouviram Mrs. Morel a abafar o borralho. William veio para a cozinha, seguido da namorada.

– Já é assim tão tarde, mãe? – disse ele. A mãe tinha passado a noite sozinha.

– Não quer dizer que seja tarde, meu filho... mas é tarde para eu continuar a pé.

– Então, porque não se vai deitar? – perguntou ele.

– E deixar os dois aqui sozinhos?... Não, meu filho, isso eu não faço.

– A mãe não tem confiança em nós?

– Tenha ou não tenha, é a mesma coisa... Podem ficar aqui até às onze horas, se quiserem, e eu leio mais um bocadinho.

– Vai deitar-te, Ciganita – disse William. – Não podemos fazer esperar a minha mãe.

– A Annie deixou a vela acesa, Lily – disse Mrs. Morel. – Acho que a luz será suficiente.

– Claro, obrigada. Boa noite, Mrs. Morel.

William acompanhou a namorada até ao fundo das escadas, deu-lhe um beijo e ela foi para o quarto. Ele voltou para a cozinha.

– Não tem confiança em nós, mãe? – insistiu ele, todo ofendido.

– Meu filho, já te disse que eu não vou deixar dois pombinhos como vocês sozinhos cá em baixo, com toda a gente a dormir.

E o filho não teve outro remédio senão contentar-se com a resposta. Deu um beijo à mãe e foi deitar-se.

Na Páscoa, chegou sozinho. Depois, falou longamente com a mãe sobre a namorada.

– Sabe, mãe... quando estou longe dela, nem penso nela... se não voltasse a vê-la, era a mesma coisa. Mas, quando estou com ela, à noite, gosto muito dela.

– É um amor muito estranho para acabar em casamento – disse Mrs. Morel. – Se é só isso que ela representa para ti!

– É engraçado! – exclamou William, entre o preocupado e o perplexo. – E, no entanto... Há demasiadas coisas entre nós, para eu desistir dela agora.

– Tu lá sabes – disse Mrs. Morel. – Mas, se é como dizes, eu não lhe chamaria amor... pelo menos, não parece.

– Não sei, mãe. Ela é órfã, e...

Acabaram por não chegar a uma conclusão. Ele parecia confuso e aborrecido. Ela era muito reservada. Ele gastava todas as suas energias e dinheiro com esta rapariga. Quando veio a casa, mal tinha dinheiro para levar a mãe a Nottingham.

O salário de Paul, para grande alegria sua, tinha sido aumentado no Natal para dez xelins. O rapaz continuava muito satisfeito najordan, mas a sua saúde começou a ressentir-se do pesado horário de trabalho e das condições de isolamento. A mãe, para quem ele era cada vez mais importante, pensou em como poderia ajudá-lo.

A tarde de folga dele era à segunda-feira. Numa segunda-feira, em Maio, quando estavam os dois sozinhos a tomar o pequeno-almoço, ela disse:

– Acho que vamos ter um lindo dia.

Ele olhou-a surpreendido. Alguma coisa ela tinha para lhe dizer.

– Sabias que Mr. Leivers foi morar para uma quinta nova? Pois bem, ele convidou-me a semana passada para ir fazer uma visita a Mrs. Leivers, e eu prometi-lhe que te levava lá hoje, se estivesse bom tempo. Então, vamos?

– Oh, mãezinha, mas isso é óptimo! – exclamou Paul. – Vamos esta tarde, não é?

– Se não estiveres muito cansado... olha que é uma grande caminhada.

– A que distância fica?

– Quatro milhas.

– Ora... não sou eu que me canso por fazer quatro milhas... é a mãe. Acha que consegue?

– Claro que consigo.

– Que bom!... Que bom! – exclamou ele. – Vou voltar a correr para casa. E a quinta é bonita?

– Ele diz que sim... Tu logo dirás.

– Eu não conheço Mrs. Leivers, mãe. Conhece-a?

– Então não conheces... uma mulherzinha macambúzia, com uns grandes olhos castanhos, que se costumava sentar à nossa frente na capela.

– Não me lembro.

– Julgava que pelo menos te lembrasses do chapéu, mesmo que não te lembrasses de mais nada... usa sempre o mesmo chapéu desde há seis anos, desde que a conheço: um quico preto com um farrapo de renda prantado no cucuruto, às três pancadas. Quando a via com o chapéu no alto da cabeça, domingo atrás de domingo, sempre com o mesmo chapéu, só me apetecia ir lá tirar-lho. E o marido é tão elegante e bem-parecido.

– Se calhar, era pobre – alvitrou Paul.

– E que fosse! Sei que não estava pior do que eu. Só que tinha a mania de não comprar nada novo, dava-lhe para ali.

– E ao menos é simpática?

– É. Eu sempre gostei dela... mas ela não consegue andar à altura do homem que tem... Só o orgulho consegue uma coisa dessas, nada mais.

– Porquê?

– Ora bem, ela é uma mulher pequenina, delicada, fina, com uns grandes olhos castanhos... cheios de sentimento. E eu sei que tem passado muito com sete filhos e o pouco que o Alfred Leivers lhe dá. Acho que ele não gosta muito de trabalhos pesados... e daí, talvez... Mas assim, como a vida lhe correu mal e chegou ao estado a que chegou, é orgulhosa de mais para competir com as outras mulheres e agarra-se a um trapo antigo... mas é uma mulher bonita.

– E orgulhosa, mãe?

– Não... Com as outras pessoas, não. Mas consigo mesma não podia ser mais. A pobreza e a vida triste que leva corroem-lhe a alma e ela agarra-se àquela chapeleta preta, para troçar da sua própria pobreza... ou do marido... Só Deus sabe... Mas tu vais gostar dela. Eu gosto dela.

– Bem – disse Paul –, se vamos visitá-la à quinta, não vai estar de chapéu.

– Esperemos que não – disse Mrs. Morel. – É um escândalo e uma vergonha sobrecarregar um corpo frágil como o dela daquela maneira, mas também não precisava de andar naquela figura, por despeito. Faço ideia de como ele se deve sentir!...

Paul saiu à pressa para a estação, rejubilante. Em Derby Road, havia uma cerejeira a cintilar. O velho muro de tijolo junto ao pátio do Statutes brilhava em tons de escarlate, incandescentes, e a Primavera era uma labareda verde. A estrada íngreme estendia-se esplêndida, coberta da fria poeira matinal em alternâncias de sol e sombra, absolutamente estática. As árvores, orgulhosas, deixavam pender abaulados os ombros verdes e possantes. Durante toda a manhã, de dentro do armazém, o rapaz foi brindado com um quadro de Primavera.

Quando voltou para casa, a mãe estava excitadíssima.

– Sempre vamos? – perguntou ele.

– É só o tempo de me arranjar – respondeu ela.

– Conseguiu acabar o trabalho?

– Consegui.

Paul sentou-se à mesa, à espera do almoço. Ela trouxe-lhe a frigideira.

– Para que se foi meter a fazer sonhos de ruibarbo se tinha tão pouco tempo?

– Porque me apeteceu – disse a mãe. – E estou pronta quando tu estiveres.

Tinha feito os sonhos porque, durante a semana, o filho só vinha almoçar a casa neste dia, e gostava muito de sonhos.

– Não senhora... saia daqui. Quem faz isso sou eu.

Paul levantou-se e tentou tirar-lhe a frigideira da mão.

– Nem pensar nisso! – disse ela, agitando o garfo. – Temos muito tempo.

Ele voltou para a mesa, cabisbaixo, e ela continuou com os cozinhados.

– São mesmo coisas de mulher – disse ele. – Às voltas com a frigideira, quando devia estar a vestir-se para sair.

– São é mesmo coisas de rapazes, julgam que já sabem tudo – disse ela, colocando a sobremesa diante dele.

– E esteve a apanhar esse calor todo na cara – disse o filho. – Já sabe que quando lá chegar, vai ter a cara vermelha como o sol nascente.

– Se tiver, não sou eu que te vou pedir para olhares para mim.

– E, mesmo que pedisse, eu não olhava – respondeu ele.

– Ingrato!

– Afogueada!

Ela fungou e empertigou-se daquela maneira a que ele chamava «esticar-se à tartaruga».

– Já se lavou? – perguntou ele.

– Já.

– Pois olhe, não parece, tem o nariz enfarruscado, como de costume.

Ela foi ver-se ao espelho.

– Que maçada! – exclamou.

Ele levantou-se.

– Vá-se vestir, que eu lavo a loiça – disse Paul.

Ela obedeceu. Ele lavou as panelas, endireitou as costas e pegou nas botas dela. Estavam muito limpas. Mrs. Morel era daquelas pessoas naturalmente dotadas que são capazes de andar na lama sem sujarem os sapatos. Mas Paul quis limpar-lhas, mesmo assim. Eram botas de criança, das de oito xelins o par. No entanto, para ele, eram as botas mais chiques do mundo, e limpava-as com tanta reverência como se fossem flores.

Subitamente, ela apareceu à porta, muito tímida. Trazia uma blusa nova. Paul deu um salto em frente.

– Ena pá! – exclamou ele. – Que espalhafato!

Ela inspirou ligeiramente, altiva, de cabeça bem erguida.

– Não é espalhafato nenhum! – retorquiu ela. – É até bem recatada.

Mrs. Morel deu um passo em frente e o filho mirou-a de todos os lados.

– Então – perguntou ela, envergonhada, mas mostrando-se segura e arrogante. – Gostas?

– É um espanto! Vou gostar de levar uma mulher tão bonita a passear!

Contornou-a e mirou-a pelas costas.

– Muito bem! – disse ele. – Se fosse na rua atrás de si, havia de dizer: – Mas que bem vestida que aquela senhorinha vai.

Ela fungou de satisfação, como era seu hábito, mas a fazer-se desentendida.

– Sabes – disse ela –, só me custou três xelins. Por este preço não a podia comprar feita, pois não?

– Acho que não – respondeu o filho.

– E o tecido é de muito boa qualidade.

– Tremendamente bonita! – disse ele.

A blusa era branca, com raminhos púrpura e pretos.

– Demasiado jovem para a minha idade, não achas?

– Essa agora, demasiado jovem para si? – exclamou Paul, agastado. – Já agora, porque não compra uma peruca branca para pôr no alto da cabeça?

– Daqui a pouco já não é preciso – respondeu ela. – Estou aqui, estou com a cabeça toda branca.

– Pois faça favor de não estar – disse ele. – Para que quero eu uma mãe de cabelo branco?

– Pois olha que vais ter de te contentar, meu menino – disse ela, com uma entoação bastante estranha.

Saíram de casa em grande estilo, ela com a sombrinha que William lhe tinha dado, para se proteger do sol. Paul era consideravelmente mais alto do que ela, embora não fosse muito grande. O rapaz ia todo cheio de si.

Na terra lavrada, as espigas tenras brilhavam como seda. A mina de Minton desfraldava os seus penachos de vapor branco, acompanhados de roncos e roucas tossidelas.


– Olha para aquilo! – disse Mrs. Morel. Mãe e filho pararam na estrada, a ver. Ao longo da crista do grande monte da mina, desenhava-se em contraluz um pequeno grupo a avançar mansamente – um cavalo, uma carrocinha e um homem. Trepavam a encosta em direcção ao céu: ao chegarem ao cimo, o homem voltou a carroça e, com injustificado estrépito, a escória rolou pela vertente abrupta do aterro.

– Sente-se um bocadinho, mãe – disse Paul, e ela sentou-se na rocha, enquanto ele desenhava a cena rapidamente. Mrs. Morel manteve-se em silêncio enquanto o filho trabalhava, entretida a admirar a tarde e o casario vermelho a cintilar entre o verde da paisagem.

– O mundo é um lugar maravilhoso – disse ela. – E maravilhosamente belo.

– E a mina também – disse ele. – Veja como cresce, como se estivesse viva... é como uma criatura gigantesca que nós não conhecemos.

– É – disse ela. – Talvez!

– E os vagões parados, à espera, como animais em correnteza à espera da ração – disse ele.

– E eu bem contente fico de os ver aí à espera – disse a mãe. – Quer dizer que a semana vai ser boa.

– Eu gosto de sentir a mão do homem nas coisas; é sinal de vida. Nos vagões sente-se o dedo do homem, porque são mãos de homens que os conduzem.

– Pois é – disse Mrs. Morel.

Continuaram a caminhada à sombra das árvores, pela estrada principal. Ele ia explicando tudo e ela mostrava-se interessada. Passaram pelo extremo do lago Nethermere, que embalava no colo docemente, como pétalas, os reflexos do sol. Depois viraram para uma estrada particular e, com emoção crescente, aproximaram-se de uma grande quinta. Um cão desatou a ladrar furiosamente. Apareceu uma mulher, a ver quem era.

– É este o caminho para Willey Farm? – perguntou Mrs. Morel.

Paul deixou-se ficar atrás da mãe, apavorado com a ideia de serem escorraçados. Mas a mulher era prestável e indicou-lhes o caminho. Mãe e filho meteram pelo meio do trigo e da aveia, atravessaram uma pequena ponte e chegaram a um prado em pousio. Os abibes, com os seus peitos brancos reluzentes, gritavam e volteavam em redor. O lago estava estático e azul. No céu, planava uma garça. Em frente, o bosque subia denso pela encosta, verde e estático.

– É uma estrada florestal, mãe – disse Paul. – Tal e qual como no Canadá.

– Lindo, não é? – disse Mrs. Morel, olhando em volta.

– Está a ver aquela garça... está a ver... as pernas dela?

Era ele que dizia à mãe para onde devia, ou não, olhar. Mas ela gostava assim.

– E agora – disse ela – para que lado é?... Ela disse-me para atravessar o bosque. – O bosque, cerrado e sombrio, estendia-se para a esquerda.

– Sinto que aqui há um caminho – disse Paul. – A mãe tem pés de citadina; seja lá como for, mas tem.

Encontraram uma cancela e entraram numa larga vereda arborizada, com um maciço de cedros e pinheiros de um dos lados e uns quantos carvalhos decrépitos do outro a descerem pela encosta. E, entre os carvalhos, as campainhas-do-monte espraiavam-se em mancha azul sob as aveleiras ainda verdes e um manto esmorecido de folhas amareladas de carvalho. Paul apanhou flores para dar à mãe.

– Está aqui um pouco de feno acabado de chegar – disse ele, e desta vez trouxe-lhe miosótis. E de novo o coração lhe doía de tanto amor, vendo a mão dela, calejada do trabalho, pegar no raminho que ele lhe dera. Ela estava completamente feliz.

No fim da vereda era preciso saltar uma cerca. Paul passou num instante.

– Venha – disse ele –, eu ajudo-a.

– Não... sai daí. Prefiro passar à minha maneira. Ele ficou do outro lado, com as mãos no ar, pronto para a ajudar. Ela trepou com todas as cautelas.

– Mas que maneira de trepar! – exclamou Paul, trocista, quando a mãe já estava a salvo no chão.

– Malditas cercas! – bradou ela.

– Só se uma mulher for muito desajeitada – replicou ele – é que não consegue passá-las.

Em frente, ao longo da orla do bosque, estendia-se um aglomerado de casas de lavoura, baixas e vermelhas. Estugaram o passo. Pegado ao bosque havia um pomar de macieiras cujas flores caíam sobre uma mó. Em baixo era a lagoa, sob os ramos pendentes dos carvalhos. Havia vacas a usufruir da sombra. A quinta e as casas, formando três lados de um quadrilátero, abraçavam o sol viradas para o bosque. Tudo estava em silêncio.

Mãe e filho entraram no pequeno jardim cercado de grades onde pairava um perfume a cravos vermelhos. Junto à porta entreaberta viam-se alguns pães enfarinhados, deixados a arrefecer. Uma galinha aproximou-se para os debicar. De repente, assomou-se à porta uma rapariga com um avental muito sujo. Devia andar pelos catorze anos, tinha as faces morenas e rosadas, um tufo de pequenos caracóis negros muito apertados a cairem livremente, e os olhos castanhos. Parecia tímida e curiosa, com alguma desconfiança dos estranhos. A rapariga voltou a desaparecer. Logo a seguir, surgiu uma outra figura, uma mulher pequenina e frágil, rosada e com grandes olhos castanhos.

– Oh! – exclamou ela, rasgando um sorriso cintilante. – Sempre veio. Gosto muito de a ver por cá. – A voz da mulher era afável e muito triste.

As duas mulheres apertaram a mão.

– Tem a certeza de que não viemos incomodar? – disse Mrs. Morel. – Sei bem como é a vida do campo.

– De maneira nenhuma. Até é uma bênção ver caras novas. Estamos aqui tão isolados.

– Pois devem estar... – disse Mrs. Morel.

Levaram-nos até à sala, uma divisão comprida e de tectos baixos, com um grande ramo de rosas amarelas a enfeitar a lareira. As mulheres sentaram-se a conversar, enquanto Paul foi dar uma volta pela quinta. Estava no jardim a cheirar os cravos e a olhar para as plantas, quando a rapariga saiu a correr e se foi pôr junto do monte de carvão encostado à cerca.

– Creio que estas vão ser rosinhas de toucar, quando abrirem – disse ele, apontando para as roseiras ao longo da cerca. Ela olhou para ele com os grandes olhos castanhos, muito espantados, muito abertos.

– Não sei – respondeu, hesitante. – São brancas e têm o olho cor-de-rosa.

– Então são «rubores de donzela».

Miriam corou – uma cor cálida, bonita.

– Não sei – disse ela.

– Não tens grande coisa no jardim – disse ele.

– É o primeiro ano que aqui passamos – respondeu ela, com modos distantes e superiores, afastando-se e entrando em casa. Paul não ligou e continuou a exploração. A mãe veio ter com ele e deram a volta aos edifícios. Paul estava deliciado.

– Suponho que ainda tenha de ir tratar das galinhas, das vitelas e dos porcos? – disse Mrs. Morel a Mrs. Leivers.

– Não – retorquiu a mulherzinha. – Não consigo arranjar tempo para tratar do gado, e, além disso, não estou habituada. O trabalho de casa já me chega.

– Sim, suponho que sim – disse Mrs. Morel.

Daí a pouco, a rapariga veio cá fora.

– O chá está pronto, mãe – disse, com uma voz suave, musical.

– Ah, obrigada, Miriam, já vamos – respondeu a mãe, toda ela amabilidade. – Podemos ir tomar o nosso chá agora, Mrs. Morel?

– Claro – disse Mrs. Morel. – Logo que estiver pronto.

Paul, a mãe e Mrs. Leivers tomaram chá juntos. Depois foram passear pelo bosque, inundado de campainhas-do-monte, enquanto os carreiros estavam reservados aos miosótis. Mãe e filho caminhavam os dois em êxtase.

Quando voltaram, Mr. Leivers e Edgar, o filho mais velho, estavam na cozinha. Edgar devia ter dezoito anos. Depois, chegaram da escola Geoffrey e Maurice, dois rapagões de doze e treze anos. Mr. Leivers era um homem bem-parecido, na força da vida, de bigode castanho-dourado e olhos azuis sempre assestados, a perscrutar o tempo.

– Foram dar uma volta? – perguntou ele a Paul, com entusiasmo.

– Não deu para ver tudo – respondeu o rapaz, saindo em seguida com Geoffrey e Maurice.

– Onde é que tu trabalhas? – perguntou Geoffrey. Eram os três muito tímidos.

– Na Fábrica de Acessórios Ortopédicos Jordan, em Nottingham.

– E que fazes?

– Sou empregado de escritório.

– E fazes o quê?

– Copio cartas, faço encomendas e passo facturas.

– Que tipo de cartas copias?

– Oh... todo o tipo... a maior parte são a encomendar meias elásticas.

– Meias elásticas!... Qu’é isso?

Seguiram-se muitas explicações.

– E algumas das cartas vêm de França e de outros lugares – disse Paul.

– E tu tens d’as copiar?

– Claro.

– Em francês?

– Não... traduzo-as.

– Essa agora... então sabes francês?

– Sei alguma coisa... e alemão também.

– E quem t’ensinou?

– O meu padrinho... e também álgebra e geometria.

– Eu cá não faço tenções d’encher a cabeça com essas coisas – disse Geoffrey.

Os dois rapazes mostravam-se terrivelmente superiores, mas Paul nem dava por isso. Foram à procura de ovos, vasculhando em todos os lugares. Quando estavam a dar de comer às galinhas, Miriam saiu de casa. Os rapazes não lhe ligaram. Na capoeira es-tava uma galinha com os seus pintainhos amarelos. Maurice pegou numa mão-cheia de milho e deixou a galinha vir comer-lhe à mão.

– Tens coragem de fazer o mesmo? – perguntou ele a Paul.

– Vamos lá ver... – respondeu Paul.

Ele tinha a mão pequenina, quente e habilidosa. Miriam ficou a observá-lo. Paul aproximou a mão da galinha. A ave olhou para o milho com o seu olhar duro e brilhante e, de repente, deu-lhe uma bicada na mão. Paul assustou-se, mas depois riu-se. «Pic-pic-pic», fazia-lhe a galinha na palma da mão. Paul riu-se outra vez e os rapazes riram com ele.

– Ela ferra-nos e pica-nos, mas nunca faz doer – disse Paul, quando o milho se acabou.

– Agora, Miriam, é a tua vez – disse Maurice.

– Não – gritou ela, encolhendo-se.

– Olha, parece um bebé. És mesmo um bebé! – disseram os irmãos.

– Não dói nada – disse Paul. – São só uns beliscõezinhos muito agradáveis.

– Não – gritou ela mais uma vez, abanando os caracóis negros e encolhendo-se.

– Ela não s’atreve – disse Geoffrey. – Ela nunca s’atreve a fazer nada a não ser recitar poesia.

– Não s’atreve a saltar uma cancela... não s’atreve a brincar connosco... não s’atreve a fazer frente quando outra rapariga lhe bate... não é capaz de fazer nada a não ser andar por aí convencida qu’é alguém... «A Dama do Lago»... é isso mesmo! – gritou Maurice.

Miriam estava coradíssima de vergonha e infelicidade.

– Sou capaz de fazer mais coisas que vocês – gritou ela. – Vocês não passam duns cobardes e duns brigões.

– Olha, olha, «cobardes e brigões!» – repetiram eles, arremedando-a.

«Um palhaço assim nunca me enfurece.

Todo o brutamontes silêncio merece»

recitou ele, virado para ela, a rir às gargalhadas.

Ela voltou para casa. Paul foi com os dois rapazes até ao pomar, onde tinham montado à pressa duas barras paralelas. Aí chegados, entregaram-se às respectivas demonstrações de força. Paul era mais ágil do que possante, mas foi quanto bastou. Apontou para umas flores de macieira que estavam mesmo à ponta de um ramo balouçante.

– Eu cá, se fosse a ti, não apanhava as flores – disse Edgar, o mais velho dos irmãos. – Senão, prò ano não temos maçãs.

– Eu não ia apanhá-las – respondeu Paul, indo-se embora.

Os rapazes mostravam-se hostis com ele. Interessavam-lhes mais as suas próprias brincadeiras. Paul voltou para casa, para junto da mãe. Quando ia a contornar a casa pelas traseiras, viu Miriam ajoelhada diante da capoeira da galinha, com a mão cheia de milho, a morder o lábio, numa atitude de intensa concentração. A galinha fitava-a com maldade. Cautelosamente, ela estendeu a mão. A galinha atirou-se. Ela retirou rapidamente a mão, com um grito, misto de medo e frustração.

– Ela não te magoa – disse Paul.

Miriam pôs-se de pé, muito corada.

– Só queria experimentar – disse, muito baixinho.

– Vês... não dói nada – disse ele. E, colocando apenas dois grãos de milho na palma da mão, deixou a galinha bicá-lo à vontade. – Só dá vontade de rir – continuou Paul.

Ela estendeu a mão e retirou-a, tentou novamente e fugiu para trás, com um grito. Ele fez uma careta.

– Olha, eu até a deixava comer milho da minha cara – disse Paul. – Mas ela dá muitos encontrões. Ela faz isto com toda a perfeição! Se não fizesse, já imaginaste a quantidade de terra que ela ia comer todos os dias?

Esperou, muito sério, a observá-la. Finalmente, Miriam deixou a galinha bicar-lhe a mão. Deu um gritinho, de medo e dor, porque estava assustada, um gritinho patético. Mas tinha conseguido, e voltou a repetir a proeza.

– Estás a ver – disse o rapaz. – Não faz doer, pois não?

Ela fitou-o com os olhos escuros muito abertos.

– Não – disse ela, a rir e a tremer.

Depois levantou-se e foi para casa. Parecia de alguma forma ofendida com o rapaz.

«Ele deve achar que eu não passo duma rapariga como as outras», pensava ela, cheia de vontade de lhe provar que era uma grande personagem, como a «Dama do Lago».

Paul veio encontrar a mãe pronta para partir. Mrs. Morel sorriu para o filho, e ele pegou no grande ramo de flores. Mr. e Mrs. Leivers acompanharam-nos até ao fundo da quinta. As colinas douravam-se do entardecer, e nas profundezas dos bosques sobressaía o púrpura carregado das campainhas-do-monte. Por todo o lado estava o silêncio, apenas quebrado pelo restolhar das folhas e os pássaros.

– É de facto um lugar belíssimo – disse Mrs. Morel.

– É, sim – concordou Mr. Leivers. – É um lugar bem aprazível, o pior são os coelhos. Dão cabo das pastagens. Não sei se alguma vez iremos ter lucro.

Bateu as palmas e os campos cobriram-se de movimento, junto ao bosque: por toda a parte saltavam coelhos acastanhados.

– Até custa a acreditar! – exclamou Mrs. Morel.

Ela e Paul continuaram sozinhos daí para a frente.

– Foi um dia maravilhoso, não foi, mãe? – disse Paul, falando baixinho. A lua despontava, tímida. O coração doía-lhe de tanta felicidade. A mãe não se calava, pois também ela tinha vontade de gritar de felicidade.

– Então eu não ia ajudar um homem daqueles? Não ia tratar das galinhas e dos bezerros? Havia de aprender a ordenhar, e havia de conversar com ele, e fazer planos com ele. Palavra, se eu fosse mulher dele, aquela quinta ia de vento em popa, isso é que ia... Mas não, ela não tem forças... simplesmente não tem forças. Nunca devia ver-se sobrecarregada desta maneira, percebes. Tenho pena dela, e dele também. Palavra, se ele fosse meu, nunca diria que era um mau marido... Não que ela diga, lá isso não... E ela é até muito simpática.

William veio a casa outra vez, com a namorada, pelo Pentecostes. Tinham-lhe dado uma semana de férias. O tempo estava muito bonito. Geralmente, William, Lily e Paul iam juntos dar um passeio pela manhã. William não conversava muito com a namorada, excepto para lhe contar histórias da infância; mas Paul falava sem parar com qualquer deles. A certa altura, deitaram-se os três num prado, perto da igreja de Minton. De um dos lados, junto do parque do castelo, estendia-se ondulante uma cortina de choupos – uma beleza. As sebes cobriam-se de bagas pendentes de azevinho. Os campos salpicavam-se de margaridas e flores-de-cuco, como sorrisos. William, agora com vinte e três anos, era já um homem feito, muito alto, mas tão magro que era quase só pele e osso. Deitou-se ao sol, de costas, a sonhar, enquanto Lily brincava com o seu cabelo. Paul foi apanhar margaridas. Ela tinha tirado o chapéu. O seu cabelo era negro como a crina de um cavalo. Paul aproximou-se e entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo de azeviche, lembrando enormes lantejoulas brancas e amarelas, com um toque rosado de flores-do-cuco.

– Agora pareces uma bruxinha – disse o rapaz. – Não parece, William?

Lily deu uma gargalhada. William abriu os olhos e contemplou-a. O seu olhar era um misto confuso de tristeza e desmedida admiração.

– Ele transformou-me mesmo numa visão do Além? – perguntou ela, olhando para baixo, para o seu amado, a rir.

– Então não transformou! – disse William, a sorrir. E continuou deitado a olhar para ela. Os seus olhos nunca procuravam os dela. Não queria encontrar os olhos dela. Queria estar só a olhar para ela, não que os seus olhares se encontrassem. E esta vontade de a evitar, aflorava-lhe aos olhos como a tristeza. Ele desviou-os outra vez. Ela deixou a mão esguia, onde brilhavam diamantes, brincar no cabelo dele um pouco mais. Depois disse:

– O Paul sabe como fazer as coisas.

– Óptimo – disse William. – Desde que isso te faça feliz. Ele preenche-te as manhãs e eu as noites.

Ela voltou-se para Paul, e riu-se.

– Quero pôr-te mais três flores sobre a orelha – disse ele, de pé ao lado dela. – Depois, fica pronto.

Ela deixou, e ele entrelaçou-lhe as margaridas no cabelo.

– Não sentes o perfume do sol nos teus cabelos? – perguntou Paul. – Estás a ver, era assim que devias ir aos bailes.

– Obrigada – disse ela, sempre a rir.

Levantaram-se.

– Não ponhas ainda o chapéu – disse Paul.

– Achas que sim? – perguntou ela a William. – Posso ir nesta figura?

William olhou para ela outra vez. A beleza dela quase o magoava. Olhou-lhe para a cabeça coberta de flores e torceu o nariz.

– Estás muito bonita assim, se é isso que queres saber.

E ela continuou o passeio sem chapéu. William logo se recompôs do mau humor e mostrou-se muito terno com ela. Ao chegarem a uma ponte, até gravou um coração com as iniciais dos dois.

 


Ela observou-o atentamente, vendo como a sua mão forte e nervosa, salpicada de pêlos cintilantes e de sardas, gravava no tronco o coração, o que parecia deixá-la fascinada.

Durante toda a estadia, enquanto William e Lily estiveram presentes, pairava dentro de casa um sentimento de tristeza e calor humano, e também de certa ternura. Mas muitas vezes ele irritava-se. Ela tinha trazido para uma semana cinco vestidos e seis blusas.

– Ouve, não te importas de me lavares estas duas blusas... e estas coisinhas? – disse ela a Annie.

E Annie ficou em casa a lavar roupa, enquanto, na manhã seguinte, William e Lily foram passear. Mrs. Morel ficou furiosa. Às vezes, ao aperceber-se da atitude da namorada para com a irmã, o jovem odiava-a pelo seu comportamento.

No domingo de manhã, Lily apareceu muito bonita, com um vestido leve, sedoso e esvoaçante, tão azul como as penas de um gaio, e um chapéu de palha coberto de rosas, onde dominava o carmim. As pessoas não se cansavam de a admirar. Mas, à noite, quando iam a sair, ela perguntou de novo:

– Fofinho, tens as minhas luvas?

– Quais delas? – perguntou William.

– As novas, as de camurça preta.

– Não.

Seguiu-se uma busca. Tinha-as perdido.

– Está a ver, mãe – disse William. – Já é o quarto par que ela perde desde o Natal... e cada par são cinco xelins.

– Tu só me deste dois pares – repontou ela.

E à noite, depois da ceia, ficou sentada no sofá e ele foi postar-se frente à lareira, farto dela. À tarde, tinha-a deixado sozinha para ir visitar um amigo de infância, e ela ficara a ver um livro. Depois da ceia, William quis ir escrever uma carta.

– Aqui tem o seu livro, Lily – disse Mrs. Morel. – Importa-se de ficar a ler mais um bocadinho?

– Não, obrigada, não quero o livro – disse a rapariga. – Prefiro ficar só aqui sentada.

– Mas isso é muito aborrecido...

William escrevia nervosamente, a grande velocidade. Quando estava a fechar o sobrescrito, disse:

– Ler um livro!... Essa é boa, ela nunca leu um livro na vida dela.

– Não digas isso! – disse Mrs. Morel, irritada com o exagero.

– É verdade, mãe... não leu mesmo – exclamou ele, pondo-se de pé num salto e retomando o seu lugar anterior, frente à lareira. – Nunca na vida leu um livro.

– Atão essa é como eu – interveio Morel. – Essa tamém num vê nada nos livros qu’a faça ficar sentada, aborrecida, de nariz infiado nas folhas. Pra quê? Eu tamém num vejo!

– Mas tu não devias dizer essas coisas – disse Mrs. Morel ao filho.

– Mas é verdade, mãe... ela não sabe ler... que livro é que lhe deu?

– Bem, dei-lhe um livrinho da Annie Swan. Ninguém quer ler coisas pesadas num domingo à tarde.

– Pois eu aposto que ela nem dez linhas leu.

– Aí é que tu te enganas – disse a mãe.

Lily assistia à discussão sentada no sofá, com um ar muito infeliz.

– Leste alguma coisa do livro? – perguntou-lhe ele.

– Li, sim – respondeu ela.

– Quantas páginas?

– Sei lá quantas páginas...

– Diz-me uma coisa que tenhas lido.

Ela não foi capaz.

– Cala-te, William – disse a mãe. – Que ideia a tua!

– Mas ela não consegue ler, mãe! – gritou ele, secamente. – Não consegue reter nada do que lê. Não sabe ler e não sabe falar. Não há assunto nenhum sobre o qual se possa conversar com ela. Só pensa em vestidos e em como todos a admiram.

– Não lhe ligue, Lily – disse Mrs. Morel.

– Só os parvos é que se sentam de nariz infiado nos livros, é o qu’eu digo – acrescentou Morel.

E a pobre rapariga continuava a ser agredida. Ele parecia odiá-la. Mais tarde, Mrs. Morel foi buscar-lhe um livro muito simples, e era patético vê-la arrastar-se penosamente pelas primeiras páginas na tarde chuvosa. Não conseguiu passar da segunda página. Ele lia muito, e possuía uma inteligência rápida, activa. Ela não entendia nada a não ser fazer amor e tagarelar. Ele estava habituado a ter todos os seus pensamentos peneirados pela mente da mãe. Por isso, quando procurava companhia e, em resposta, lhe era pedido que fosse apenas um amante, todo ele ternuras e gorgeios, odiava a namorada.

– Sabe, mãe – disse ele, quando à noite ficaram os dois sozinhos – ela não dá valor ao dinheiro, é um catavento. Quando recebe o ordenado, é capaz de gastar uma fortuna numa porcaria qualquer como, por exemplo, marrons glacés. E, depois, sou eu que tenho de lhe comprar o passe e todos os outros extras... até a roupa interior. E quer ela casar-se... Por mim, podíamos até casar já para o ano. Mas por este andar...?

– Ia ser um lindo casamento – respondeu a mãe. – Eu, se fosse a ti, pensava duas vezes, meu filho.

– Bom... Agora já fui longe de mais para romper com tudo – disse ele. – Por isso, o melhor é casar o mais depressa possível.

– Muito bem, meu filho. Se é isso que queres, assim será, e não se fala mais no assunto... Mas olha que eu não durmo quando penso nisso.

– Ela é boa rapariga, mãe. Cá nos havemos de arranjar.

– E ela deixa que sejas tu a comprar-lhe a roupa interior? – perguntou a mãe.

– Bem... – começou ele, apologético. – Ela nunca me pediu. Mas uma manhã... estava muito frio... encontrei-a na estação toda a tremer, nem conseguia estar parada. E então perguntei-lhe se estava bem agasalhada, e ela respondeu, «Acho que sim». E então eu disse «Trazes alguma camisola quente... de lã... por baixo?» E ela disse que não, que era de algodão. Perguntei-lhe por que carga de água não tinha vestido uma coisa mais quente com um frio daqueles, e ela disse que não tinha nada mais quente. E ainda por cima, com a bronquite que ela tem! Tive de pegar nela e ir comprar-lhe uma roupa mais quente... Sabe, mãe, o dinheiro era o menos, se nós o tivéssemos... Ela devia guardar o suficiente para o passe. Mas não... vem pedir-mo, e eu tenho de inventar o dinheiro...

– Belas perspectivas – disse Mrs. Morel, amargurada.

Ele estava pálido e no seu rosto já vincado, outrora tão sorridente e descuidado, estampavam-se o conflito e o desespero.

– Mas eu não posso acabar com tudo, não agora, as coisas já foram longe de mais – disse ele. – Além disso, para certas coisas, não posso passar sem ela...

– Meu filho, lembra-te de que se trata da tua vida – disse Mrs. Morel. – Nada pode ser pior do que um casamento que já está à partida irremediavelmente marcado pelo fracasso. O meu foi suficientemente mau, Deus sabe que sim, e devia ter-te ensinado alguma coisa... Mas ainda podia ter sido muito pior.

William estava encostado à ombreira da chaminé, de mãos no bolsos. Era um homem alto e esquelético, com ar de quem seria capaz de ir até ao fim do mundo, se lhe apetecesse. Mas a mãe lia--lhe o desespero no rosto.

– Agora não posso deixá-la.

– Está bem – disse a mãe. – Mas lembra-te de que há coisas piores do que romper um noivado.

Quedaram-se em silêncio, ele de olhar parado, fitando o espaço. Só a mãe lhe podia valer e, no entanto, não a deixava decidir por ele. Continuava preso ao que tinha feito.

– E, naturalmente – acrescentou Mrs. Morel, há muito mais nobreza em romper um noivado para evitar um mal maior do que em continuar só para cumprir uma promessa.

Ele mantinha-se estático, de olhar pregado no vazio.

– Eu não posso deixá-la agora – insistiu ele.

O relógio ia avançando. Mãe e filho continuaram em silêncio, em conflito. Mas ele nada mais disse. Por fim, ela disse:

– Bem, vai dormir, meu filho... amanhã sentes-te melhor... e talvez vejas as coisas com outros olhos.

O filho deu-lhe um beijo e foi deitar-se. Ela foi abafar o borralho, sentindo o coração pesado como nunca sentira antes. Antes, com o marido, parecia sentir ruir tudo dentro dela, mas nada lhe destruía a vontade de viver. Mas agora, era a própria alma que estava ferida. A própria esperança fora atingida.

William manifestou em muitas outras ocasiões o mesmo ódio pela noiva. Na última noite que passaram em casa dos pais, fartou-se de resmungar com ela.

– Bem – disse ele – já que não me acredita, que acha que ela não é nada assim, acredita pelo menos que ela foi crismada três vezes?

– Que disparate! – disse Mrs. Morel, perdida de riso.

– Disparate ou não, o certo é que foi mesmo! É isso que o Crisma significa para ela... teatro... um espectáculo onde pode brilhar.

– Não fui nada, Mrs. Morel – gritou a rapariga. – Não fui nada. Não é verdade.

– O quê! – gritou ele, avançando para ela. – Uma vez em Bromley, outra em Beckenham, e outra mais não sei onde.

– Em mais lado nenhum! – disse ela, a chorar. – Em mais lado nenhum.

– Foi, sim! E mesmo que não fosse, para que foste crismada duas vezes?

– Da primeira vez, só tinha catorze anos, Mrs. Morel – explicou ela, desculpando-se, de lágrimas nos olhos.

– Claro – disse Mrs. Morel. – Eu entendo perfeitamente, minha filha. Não lhe ligue. Devias ter vergonha, William, a dizeres estas coisas.

– Mas é verdade. Ela é religiosa... até tem livros de orações em veludo azul... mas liga tanto à religião, ou a outra coisa qualquer, como à perna daquela mesa. Ser crismada três vezes, só pelo espectáculo, só para se mostrar! E ela é assim em tudo o mais, em tudo!

A rapariga chorava, sentada no sofá. Não era um espírito forte.

– Até no amor! – gritou ele. – É o mesmo que pedir a uma mosca que nos ame. Só quer vir para cima de nós...

– Acabou-se! – disse Mrs. Morel, peremptória. – Se queres continuar a dizer esses disparates, tens de ir para outro lugar. Tenho vergonha de ti, William. Não sabes portar-te como um homem? Só a pôr defeitos na rapariga... e depois a fingires que estás noivo...! – Mrs. Morel sucumbiu à raiva e à indignação.

William mantinha-se em silêncio. Mais tarde, arrependido, foi dar um beijo à namorada e consolá-la. No entanto, tudo o que dissera era verdade, e odiava-a.

Quando partiram, Mrs. Morel acompanhou-os a Nottingham. A caminhada até à estação de Keston era longa.

– Sabe, mãe – disse ele –, a Ciganita é muito superficial... nada penetra nela a fundo...

– William, preferia que não dissesses essas coisas – pediu Mrs. Morel, sentindo-se constrangida com a presença da rapariga.

– Mas é que não penetra mesmo, mãe... Ela está muito apaixonada por mim, agora... Mas, se eu morresse, esquecia-me em três meses.

Mrs. Morel tinha medo. O seu coração batia furiosamente perante a amargura serena das últimas palavras do filho.

– Como sabes? – retorquiu. – Tu não podes saber... e, por isso, não tens o direito de dizeres uma coisa dessas.

– Ele está sempre com estas coisas! – exclamou a rapariga.

– Três meses depois de me enterrarem, já tu tinhas arranjado outro e nunca mais te lembravas de mim – disse ele. – É esse o amor que me tens!

Mrs. Morel meteu-os no comboio, em Nottingham, e voltou para casa.

– Sabes uma coisa? – disse ela pateticamente para Paul. – Não se entendem e nunca se hão-de entender. Como vai ser, se chegarem a casar, é de mais para a minha imaginação. Se ao menos ele a deixasse, já não precisava de a atormentar desta maneira. Mas vão ficar presos um ao outro até se matarem. Quando ele disse aquilo, a caminho de Keston, foi como se eu já não pudesse dar nem mais um passo. Pobrezinha, tenho pena dela. Mas não é mulher para ele, lá isso não é. É muito cruel dizê-lo, mas como ela é muito frágil, mais valia que morresse em vez de casar com ele.

Mrs. Morel não tirou o filho do pensamento durante todo o Verão. Ele parecia estar a dar cabo da vida. Mas o casamento parecia estar ainda demorado.

– Valha-nos pelo menos uma coisa – disse ela a Paul. – Ele nunca vai juntar dinheiro suficiente para se casar, disso tenho eu a certeza. É assim que ela o vai salvar.

E a ideia animava-a. As coisas ainda tinham remédio, e acreditava firmemente que William nunca chegaria a casar com a sua Cigana. Aguardava e mantinha Paul junto de si.

Durante todo o Verão, as cartas de William soavam febris. Parecia pouco natural e empolgado. Por vezes exageradamente alegre, mas geralmente sóbrio e amargo.

– Pois é – dizia a mãe. – Anda a dar cabo dele por causa daquela criatura que não merece o amor que ele lhe tem, que não passa duma boneca de trapos.

Ele só pensava em vir a casa. As férias de Verão já lá iam, e o Natal ainda estava muito longe. Escreveu muito entusiasmado a dizer que podia vir a casa no princípio de Outubro, passar um sábado e um domingo, para a Feira do Ganso.

– Tu não andas bem, meu filho – disse-lhe a mãe quando o viu. Tê-lo assim, só para ela, dava-lhe até vontade de chorar.

– Não, não tenho passado nada bem – disse ele. – Apanhei uma constipação que se arrastou durante todo o mês. Mas já estou melhor, acho eu.

Estava um dia soalheiro de Outubro. William parecia louco de alegria, como um garoto que se escapasse às aulas. Mas logo ficou calado e reservado. Estava mais esquelético que nunca e com os olhos encovados.

– Andas a trabalhar de mais – disse a mãe.

Fazia horas extraordinárias, para juntar dinheiro para se casar, segundo disse. Só conversou com a mãe uma vez, no sábado à noite. Depois, pôs-se muito triste, com saudades da namorada.

– Sabe uma coisa, mãe, apesar disto tudo, se eu morresse, ela ia chorar por mim durante dois meses, e depois tratava de me esquecer. A mãe havia de ver, ela nunca viria aqui visitar a minha sepultura nem uma só vez.

– Ora, William – disse a mãe –, tu não vais morrer, para quê falar nisso agora?

– Mas se acontecesse... – insistiu ele.

– Ela não tem culpa... ela é assim... e se tu a escolheste, não te podes queixar... – disse a mãe.

No domingo de manhã, quando estava a pôr o colarinho, William disse, levantando o queixo:

– Veja a borbulhagem que o colarinho me fez por baixo do queixo!

Mesmo na ligação do queixo com a garganta havia uma zona muito vermelha, toda irritada.

– Não te devia fazer isso – disse a mãe. – Toma, põe um pouco deste unguento. Devias mudar de colarinhos.

William partiu no domingo à noite, aparentemente melhor e mais forte, depois destes dois dias passados em casa.

Na terça-feira de manhã, chegou um telegrama de Londres dizendo que ele estava doente. Mrs. Morel, que estava a esfregar o chão, levantou-se, leu o telegrama, chamou uma vizinha, foi a casa da senhoria, pediu-lhe dinheiro emprestado, vestiu-se e partiu. Correu até à estação de Keston e apanhou o expresso para Londres em Nottingham, onde teve de esperar quase uma hora. Figurinha frágil, com o seu chapelinho preto, não parava de perguntar, ansiosa, aos carregadores se sabiam o caminho para Elmers End. A viagem demorou três horas. Foi sempre sentada no seu canto, embalada numa espécie de torpor, sem se mexer. Na estação de King’s Cross também ninguém sabia indicar-lhe o caminho para Elmers End. Com o saco de rede na mão, com a camisa de noite, um pente e uma escova, ia de pessoa em pessoa, fazendo sempre a mesma pergunta. Por fim, mandaram-na apanhar o metropolitano até Cannon Street.

Eram seis horas quando chegou ao apartamento de William. As persianas não estavam corridas.

– Como está ele? – perguntou.

– Na mesma – disse a dona da casa.

Mrs. Morel subiu a escada atrás da senhoria. William estava deitado na cama, com os olhos injectados de sangue, muito pálido. A roupa estava espalhada pelo chão, o lume estava apagado e tinha um copo de leite na mesa de cabeceira. Ninguém viera vê-lo.

– Então, meu filho, que foi isto? – disse a mãe, mostrando coragem.

Ele não respondeu. Olhava para ela, mas não a via.

Depois, começou a dizer numa voz monocórdica, como se ditasse uma carta: «Devido a uma brecha no casco do navio, o açúcar tornou-se num bloco, cristalizou. Foi preciso parti-lo com um machado...»

Estava completamente inconsciente. Um dos seus trabalhos tinha sido ir examinar esse tal carregamento de açúcar no porto de Londres.

– Há quanto tempo está ele assim? – perguntou a mãe à senhoria.

– Chegou a casa às seis horas da manhã na segunda-feira e aparentemente dormiu o dia todo. À noite, ouvimo-lo a falar, e esta manhã chamou por si. Por isso, mandei o telegrama e chamámos o médico.

– Não se importa de acender o lume?

Mrs. Morel tentava acalmar o filho, mantê-lo quieto.

O médico chegou. Era uma pneumonia e, segundo disse, uma forma rara de erisipela, que tinha começado debaixo do queixo, provocada pelo roçar do colarinho, e se estava a espalhar a toda a cara; e esperava bem que não lhe atingisse o cérebro.

Mrs. Morel ficou a cuidar dele. Rezava por William, rezava para que ele a reconhecesse. Mas a cara do jovem cada vez perdia mais as cores. De noite, teve de lutar com o filho. Ele delirou e tornou a delirar, sem nunca recobrar a consciência. E morreu às duas da manhã, num paroxismo atroz.

Durante uma hora, Mrs. Morel permaneceu estática, sentada no quarto do filho. Depois, acordou toda a casa.

Às seis da manhã, vestiu-o com a ajuda da mulher da limpeza e em seguida saiu e foi à procura do registo civil e do médico daquele lúgubre subúrbio londrino.

Às nove horas, novo telegrama para Scargill Street: «William morreu esta noite. Dizer pai venha e traga dinheiro.»

Annie, Paul e Arthur estavam em casa. Mr. Morel tinha ido trabalhar. As três crianças não disseram uma palavra. Annie começou a choramingar, com medo. Paul foi chamar o pai.

O dia estava lindo. Na mina de Bretty, o vapor branco fundia-se lentamente com a luz do sol no céu azul, muito ameno, as roldanas da torre brilhavam no alto do aterro, e a peneira não se calava, sempre a deitar o carvão para os vagões.

– Tenho de falar com o meu pai... ele tem de ir já para Londres – disse o rapaz ao primeiro homem que encontrou no aterro.

– Queres falar com Walter Morel?... Vai ‘í dentro e diz ò Joe Ward.

Paul entrou no escritório de cima.

– Quero o meu pai... ele tem de ir pra Londres.

– O teu pai... está na mina? Quem é ele?

– Mr. Morel.

– Quem, o Walter? Aconteceu alguma coisa?

– Ele tem de ir já pra Londres.

O homem foi para o telefone e ligou para o escritório de baixo.

– Chamem o Walter Morel... 42 Hard. Aconteceu alguma coisa... o filho dele tá ‘qui.

Depois, voltou-se para Paul, e disse:

– Daqui a cinco minutos ele já aí está.

Paul foi até ao topo da mina. Viu a caixa subir, com o carregamento de carvão. A grande gaiola de ferro descansou sobre os apoios, a carga foi retirada, um contentor vazio deslizou sobre os apoios, algures tilintou uma campainha, a gaiola elevou-se e caiu como uma pedra.

Paul não acreditava que William estivesse morto... era impossível, com tanta azáfama por todo o lado. O mineiro de serviço empurrou o pequeno contentor para cima da placa giratória, e um outro homem levou-a pelo aterro fora, pelos trilhos sinuosos. «O William está morto e a minha mãe em Londres; que estará ela a fazer?», perguntava-se ele, como se se tratasse de uma charada.

Viu os contentores subirem uns atrás dos outros, e nem sinais do pai. Por fim, o vulto de um homem desenhou-se ao lado de um vagão! A gaiola descansou sobre os apoios e Morel desceu. Coxeava ligeiramente, devido a um acidente.

– És tu, Paul!... Ele tá pior?

– Tem de ir já pra Londres.

Desceram os dois o aterro, lado a lado, sob os olhares curiosos dos mineiros. Quando deixaram a mina e seguiam já ao longo da via férrea, com os campos soalheiros de Outono de um dos lados e um muro de vagões do outro, Morel perguntou, com o medo na voz:

– Ele não se curou, filho?

– Não.

– E quando foi?

Havia terror na voz do mineiro.

– Esta noite... Chegou um telegrama da mãe.

Morel deu mais alguns passos e depois encostou-se a um vagão e fincou as mãos nos joelhos. Mas não chorou. Paul olhou em volta, à espera. Um vagão balouçou lentamente em cima da balança. Paul via tudo, menos o pai, encostado ao vagão, como se estivesse cansado.

Morel só tinha ido uma vez a Londres. Pôs-se a caminho, assustado e lívido, para ir ajudar a mulher. Isto passou-se numa terça-feira. Os filhos ficaram sozinhos em casa. Paul foi trabalhar, Arthur para a escola e Annie chamou uma amiga para lhe fazer companhia.

No sábado à noite, quando Paul dobrava a esquina, de regresso de Keston, viu a mãe e o pai, que vinham da estação de Lethley Bridge. Caminhavam no escuro, em silêncio, cansados, separados. O rapaz ficou à espera.

– Mãe! – disse ele, da escuridão.

A figura franzina de Mrs. Morel pareceu não dar por ele. Paul insistiu.

– Paul! – disse ela, indiferente. Deixou-o dar-lhe um beijo, mas parecia não o ver.

Em casa foi a mesma coisa, franzina, pálida e muda. Não via nada, não dizia nada, excepto:

– O caixão chega hoje à noite, Walter. É melhor pedires ajuda. – E, depois, voltando-se para os filhos: – Vamos trazê-lo para casa.

Em seguida mergulhava num mutismo duradouro, de olhar perdido no espaço e mãos cruzadas sobre o regaço. Paul, ao vê-la assim, quase não podia respirar. Reinava em toda a casa um silêncio de morte.

– Fui trabalhar, mãe – disse Paul, tristemente.

– Ah, foste – respondeu ela, indiferente.

Passada meia hora, Morel, preocupado e confuso, entrou em casa.

– Onde havemos d’o pôr, quand’ele chegar? – perguntou à mulher.

– Na sala da frente.

– Então é melhor eu tirar de lá a mesa.

– Está bem.

– E botá-lo em cima das cadeiras?

– Tu lá sabes... sim... acho que sim.

Morel e Paul pegaram numa vela e foram para a sala. Lá não havia gás. O pai desaparafusou o tampo oval da grande mesa de mogno e libertou o centro da sala. Depois dispôs seis cadeiras em frente umas das outras, de forma a poderem suportar o caixão.

– Nunca vi ninguém mais comprido! – disse o mineiro, olhando em volta, ansioso, enquanto trabalhava.

Paul foi à janela e olhou para a rua. O freixo erguia-se monstruoso e negro, contra a imensa escuridão. Estava uma noite sem luar. Depois, voltou para junto da mãe.

Às dez horas, Morel anunciou:

– Chegou!

Todos estremeceram. Ouviu-se destrancar e abrir a porta da frente, que dava passagem directa da noite escura para dentro da sala.

– Tragam outra vela – gritou Morel.

Annie e Arthur foram buscá-la. Paul acompanhou a mãe. Estava ao lado dela, encostado à porta interior, passando-lhe o braço pela cintura. No meio da sala vazia havia seis cadeiras à espera, viradas umas para as outras. Junto à janela, Arthur segurava uma vela, encostado às cortinas de renda, e junto à porta aberta, virada para a noite, estava Annie, inclinada para a frente, com a palmatória de latão a cintilar.

Ouviu-se o barulho de um rodado. Lá fora, na escuridão da rua, Paul viu cavalos e um veículo negro, um lampião e alguns rostos empalidecidos. Depois, alguns homens – mineiros – todos em mangas de camisa, que pareciam debater-se na penumbra densa. Por fim, apareceram dois homens, vergados sob a pesada carga. Era Morel e o vizinho.

– Firme! – disse Morel, sem fôlego.

Ele e o companheiro subiram o degrau alto do jardim e surgiram à luz da vela, segurando uma das extremidades cintilantes do caixão. Mais braços, de outros homens, agitavam-se por detrás deles. Morel e Burns, à frente, vacilaram. A carga negra, pesadíssima, balançou.

– Firme, firme! – gritou Morel, num grito de dor.

Os seis carregadores já estavam todos no jardim, trazendo o caixão pelo ar. Havia ainda mais três degraus até à porta. A lanterna amarelada da carruagem brilhava sozinha, na estrada de breu.

– Agora! – disse Morel.

O caixão balançou, os homens começaram a subir os degraus com a sua carga. A chama da vela de Annie tremulou e ela começou a chorar ao ver surgir os primeiros homens. Os braços e as cabeças curvadas dos seis homens lutavam para vencerem a subida até à sala com o caixão, transportando o peso do sofrimento sobre a sua carne viva.

– Oh, meu filho... meu filho! – disse Mrs. Morel, baixinho, como se entoasse. E, de novo, de cada vez que o caixão balançava ao passo desigual dos carregadores:

– Oh, meu filho... meu filho... meu filho!

– Mãe! – disse Paul, a chorar, com o braço em volta da cintura dela. – Mãe!

Ela não ouviu.

– Oh, meu filho... meu filho! – repetia.

Paul via gotas de suor pingarem da testa do pai. Os seis homens estavam na sala, seis homens em mangas de camisa, de braços exaustos que se debatiam com a sua carga, enchendo a sala e indo de encontro aos móveis. O caixão desceu e foi suavemente pousado sobre as cadeiras. O suor pingava da testa de Morel sobre o rebordo.

– Palavra d’honra, manda cá um peso! – disse um dos homens, e os cinco mineiros soltaram um suspiro, curvaram-se perante o caixão e, trémulos da luta, desceram novamente os degraus, fechando a porta atrás de si.

A família ficou sozinha na sala com a enorme caixa envernizada. William, esticado, tinha seis pés e quatro polegadas de comprimento. O imponente caixão, de um castanho brilhante, jazia qual monumento. Paul pensou que nunca mais iam conseguir tirá-lo dali. A mãe acariciava a madeira envernizada.

Foi a enterrar na segunda-feira, no pequeno cemitério da encosta, alcandorado sobre os campos, dominando a igreja e o casario. Estava um dia de sol e os crisântemos brancos encaracolavam as pétalas ao calor.

Depois de tudo isto, nada conseguia persuadir Mrs. Morel a falar e a recuperar a sua antiga força de viver. Continuava fechada sobre si mesma. Quando voltava para casa, no comboio, tinha pensado para consigo: «Se ao menos tivesse sido eu.»

Quando Paul chegou a casa à noite, encontrou a mãe sentada com as mãos no regaço, sobre o tosco avental, já com a lida da casa despachada. Era sempre costume trocar de vestido e pôr um avental preto. Mas desta vez foi Annie quem lhe pôs a ceia, e a mãe continuou sentada em frente dela, de olhar vazio e lábios cerrados. Paul deu voltas à cabeça para arranjar novidades para lhe contar.

– Mãe, Miss Jordan apareceu lá hoje e disse que o meu esboço de uma mina a laborar estava muito bom...

Mas Mrs. Morel nem prestou atenção. Noite após noite, Paul esforçava-se por lhe contar coisas, mesmo que ela o não escutasse. Quase o enlouquecia vê-la neste estado. Até que:

– Que tem, mãe? – perguntou ele. Ela não ouviu.

– Que tem? – insistiu. – Mãe, o que é que tem?

– Sabes bem o que é que eu tenho – disse ela, irritada, virando-lhe as costas. O rapaz – tinha agora dezasseis anos – foi para a cama tristíssimo. Passou Outubro, Novembro e Dezembro sentindo-se rejeitado, um desgraçado. A mãe bem tentava, mas não conseguia reagir. Tudo o que fazia era pensar no filho morto, que tão cruelmente tinham deixado morrer.

Por fim, no dia 23 de Dezembro, Paul voltou para casa como um sonâmbulo, com os cinco xelins da gratificação de Natal no bolso. A mãe olhou para ele e o seu coração parou.

– O que se passa? – perguntou ela.

– Sinto-me mal, mãe! – respondeu ele. – Mr. Jordan deu-me cinco xelins de gratificação. – E estendeu-os à mãe, com a mão trémula. Ela pô-los em cima da mesa.

– A mãe não parece satisfeita – disse ele, como se ralhasse.

Mas Paul tremia violentamente.

– Onde é que te dói? – disse ela, desabotoando-lhe o sobretudo.

Era a velha pergunta.

– Sinto-me mal, mãe.

Ela despiu-o e meteu-o na cama. Era uma pneumonia, e grave, disse o médico.

– Ele podia não a ter apanhado, se eu o tivesse obrigado a ficar em casa e não o deixasse ir para Nottingham? – foi uma das primeiras coisas que perguntou.

– Podia não ser tão grave – disse o médico.

Mrs. Morel encontrou na resposta a sua própria condenação.

– Devia ter-me preocupado com os vivos, e não com os mortos – disse para consigo.

Paul esteve muito mal. A mãe passava as noites ao seu lado, pois não tinham dinheiro para uma enfermeira. O seu estado piorou e a fase crítica aproximava-se. Uma noite recobrou a consciência, num daqueles paroxismos fantasmagóricos e doentios de dissolução, em que todas as células do corpo parecem estilhaçar-se à pressão extrema da irritabilidade, e a consciência, como em estados de loucura, tem um derradeiro arrobo de vitalidade.

– Vou morrer, mãe! – gritou ele, soerguendo-se da almofada, lutando para respirar.

Ela ajudou-o, chorando baixinho:

– Oh, meu filho, meu filho!

Isto trouxe-o de volta. Apercebeu-se da presença da mãe. A sua força de vontade empertigou-se e prendeu-o à vida. Pousou a cabeça do peito dela e repousou no seu amor.

– De certa forma – disse a tia – foi até bom o Paul ter tido aquela doença no Natal. Foi isso que salvou a mãe.

Paul esteve de cama sete semanas. Levantou-se, finalmente, pálido e muito fraco. O pai tinha-lhe comprado um vaso de tulipas vermelhas e douradas. Era vê-las, a brilhar como fogo na janela, ao sol de Março, enquanto ele ficava sentado no sofá a conversar com a mãe. Tagarelavam os dois em perfeita intimidade. Mrs. Morel vivia agora para Paul.

William tinha sido profético. Mrs. Morel recebeu uma lembrança e uma carta de Lily pelo Natal. Da irmã de Mrs. Morel, uma carta pelo Ano Novo.

«Fui ontem a um baile. Encontrei lá pessoas adoráveis e diverti-me imenso», dizia a carta. «Não perdi uma dança... nem uma.»

Mrs. Morel nunca mais teve notícias dela.

Morel e a mulher viveram em harmonia durante algum tempo depois da morte do filho. Ele costumava quedar-se, como num êxtase, de olhos esbugalhados e olhar perdido. Depois, levantava-se de repente e ia para o Three Spots, voltando já no seu estado normal. Mas nunca mais foi passear para os lados de Shepstone, para não passar pelo escritório onde o filho trabalhara, e evitava passar pelo cemitério.


SEGUNDA PARTE


VII

AMOR DE ADOLESCENTES

NO OUTONO, Paul estivera várias vezes em Willey Farm e tinha-se tornado amigo dos dois rapazes mais novos. De início, Edgar, o mais velho, não se mostrava muito receptivo, e Miriam furtava-se também a qualquer aproximação. Tinha medo de ser desprezada pelos próprios irmãos. Rapariga de alma romântica, em toda a parte via heroínas de Walter Scott, cortejadas por cavaleiros de armadura ou chapéus emplumados. Ela própria era, na sua imaginação, uma princesa transformada em guardadora de porcos. E receava que aquele rapaz, parecido embora com um herói de Walter Scott, que pintava, falava francês, sabia álgebra e viajava todos os dias de comboio para Nottingham, visse nela simplesmente a guardadora de porcos e fosse incapaz de vislumbrar a princesa que nela se ocultava. Por isso, fugia dele.

A sua melhor amiga era a mãe. Ambas de olhos castanhos e dadas ao misticismo, eram daquelas mulheres que guardam a religião ciosamente no coração e para quem a religião é como o ar que respiram, como um véu de bruma que lhes filtra a vida. Assim, para Miriam, Cristo e Deus formavam uma só imagem sublime que ela amava com fervor, apaixonadamente, sempre que um imenso pôr do Sol incendiava o céu poente; sempre que os heróis e as heroínas – os Brian de Bois Gilberts, os Rob Roys e os Guy Mannerings; as Edites, as Lucys e as Rowenas – faziam restolhar as folhas matinais encharcadas de sol, ou se vinham sentar com ela nas alturas do seu quarto, sonhadores e solitários, quando a neve caía. Isto sim, era para ela viver. Quanto ao resto, cuidava da lida da casa, trabalho que não lhe seria pesado, se o chão de tijoleira bem polida não ficasse logo todo patinhado das pesadas botas dos irmãos; queria à viva força que o irmão mais novo, de quatro anos, a deixasse envolvê-lo e cobri-lo com o seu amor; ia à igreja, reverente, em pose contrita, e sofria angustiada perante a vulgaridade das outras meninas de coro e a banalidade da voz do cura; envolvia-se em lutas com os irmãos, que considerava uns brutamontes; e não tinha o pai em grande estima por não albergar no coração quaisquer ideais místicos, e ter como únicas ambições uma vida sem preocupações e a comida na mesa a tempo e horas.

Miriam detestava a sua condição de guardadora de porcos. Queria ser respeitada. Queria instruir-se, pensando que, se fosse capaz de ler, como Paul dizia que era, a Colomba ou a Voyage Autour de ma Chambre, o mundo a veria com outros olhos e teria por ela um profundo respeito. Como jamais poderia ser princesa por fortuna ou condição, ansiava possuir conhecimentos de que pudesse orgulhar-se; era diferente das outras pessoas e não queria ser confundida com a arraia-miúda. Ser instruída era a única marca de distinção a que pensava poder aspirar.

A sua beleza, misto de timidez, rebeldia e sensibilidade, não tinha para ela qualquer valor. Nem mesmo a sua alma, tão dada a arrebatamentos, lhe era suficiente. Precisava de algo mais que reforçasse o seu orgulho, pois sentia-se diferente das outras pessoas. Olhava Paul com vaga melancolia. De uma maneira geral, desprezava o sexo masculino. Neste caso, porém, ele era um exemplar diferente, ágil, leve, gracioso, que tanto podia mostrar-se gentil como insuportável, que era inteligente e culto, que já tinha passado por uma morte na família. O pouco que o rapaz sabia guindava-o aos píncaros a seus olhos. Contudo, esforçava-se por desprezá-lo por ele não conseguir ver nela a princesa, mas tão-só a guardadora de porcos.

Paul mal reparava nela.

Um dia, porém, adoeceu gravemente e ela sentiu que com isso ele iria enfraquecer. Se assim fosse, seria ela a mais forte e então poderia amá-lo. Se pudesse ser sua amante na fraqueza, cuidar dele, tê-lo na sua dependência, se ao menos pudesse tê-lo nos seus braços, com que força o amaria!

Assim que os céus desanuviaram e as ameixoeiras floriram, Paul partiu para Willey Farm na carroça do leiteiro. Mr. Leivers gritou pelo rapaz em tom amigável e conduziu o cavalo lentamente pela encosta acima, ao fresco da manhã, dando estalinhos com a língua para o incitar. No céu passavam nuvens brancas que se iam juntar para lá das colinas, agora visíveis à luz primaveril. As águas do Nethermere jaziam em baixo, muito azuis, em contraste com os prados ressequidos e os espinheiros.

Era uma viagem de quatro milhas e meia. Nas cercas, minúsculos botões em tons vivos e brilhantes desabrochavam em rosetas e os tordos pairavam e os melros piavam e gralhavam. Era um mundo novo, fascinante.

Miriam, espreitando da janela da cozinha, viu o cavalo transpor o grande portão branco do pátio, recortando-se contra o bosque de carvalhos desfolhados, em fundo. Nisto, um rapaz envergando um casacão muito grosso saltou para o chão e estendeu as mãos para segurar o chicote e a manta que o lavrador sadio e bem-humorado lhe entregava.

Miriam assomou-se à porta. Tinha quase dezasseis anos, era linda, de faces rosadas, ar grave e uns olhos subitamente dilatados, como em êxtase.

– Vejo – disse Paul virando-se envergonhado – que os teus narcisos estão quase a desabrochar. Não será cedo de mais? Não achas que está ainda muito frio?

– Frio? – repetiu Miriam, na sua voz terna e musical.

– O verde dos botões... – e Paul interrompeu-se, timidamente.

– Deixa-me levar-te a manta – disse Miriam, com exagerada amabilidade.

– Eu posso bem levá-la – respondeu ele, mostrando-se ofendido. Contudo, entregou-lha.

Entretanto, apareceu Mrs. Leivers.

– Deves estar cansado e cheio de frio – disse ela. – Dá-me o casaco. Que pesado.... não vais longe com ele.

Ajudou-o a despir o casacão, amabilidade a que o rapaz não estava habituado, e quase sucumbiu a tanto peso.

– Ena, mulher – disse o lavrador a rir, quando passou pela cozinha com as grandes bilhas de leite a baloiçar. – Tás aí que nem t’aguentas. – Ela ajeitou as almofadas no sofá para o rapaz se encostar.

 

 

                                     CONTINUA

 

 

 

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