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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FOGO NO CERRADO / Janice Diniz
FOGO NO CERRADO / Janice Diniz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

M A T A R A N A

Livro III / Primeira Parte

FOGO NO CERRADO

 

        Ninguém ousaria interrompê-los.

       O fazendeiro tamborilava os dedos por sobre a pasta de capa fosca, parda, com a etiqueta digitada na fonte Arial, a usada oficialmente nos documentos da delegacia de polícia civil da cidade. Onório Dolejal era o que estava escrito.

       O delegado, sentado na cadeira em frente à escrivaninha de Thales Dolejal, avaliava os efeitos de sua aparição no meio da tarde, debaixo da chuvarada que lavava as calçadas do centro e fazia muita gente correr para a proteção das marquises. Dobrou a perna sobre o joelho e descansou as costas no encosto da cadeira acolchoada.

       Simulavam um jogo de pôquer em silêncio.

       Então era a vez de Thales analisar as suas cartas enquanto fitava a pasta com o nome do avô. E era como se aquele nome significasse chances extras ao seu oponente, uma carta escondida na manga, por exemplo. Abrindo a pasta revolvia a terra por cima do corpo do primeiro colonizador de Matarana, retirava a corda ao redor do seu pescoço, batia no rosto carcomido e lhe dava novamente vida.

       Ele não esperava por aquele tipo de conversa.

       — O que significa isso, Rodrigo?

       O outro quase sorriu. Esfregou dois dedos no cavanhaque ralo, sem pressa, sorvendo a densidade da atmosfera.

       — É a minha garantia de vida. — disse simplesmente.

       — Não entendi.

       — É mesmo? — perguntou com escárnio e, ajeitando-se na cadeira como quem procura uma posição para declarar algo solene, continuou: — Sabe, meu amigo, quando estava no hospital me recuperando daquele tiro, pensei sobre o lance do descarte das muletas para quem passa a ter pernas biônicas... Essa teoria veio da sua cabeça, não?

       — Foi a Karen quem lhe falou? Que devemos nos livrar de suportes quando estamos fortalecidos? — perguntou retoricamente. — Sim, Rodrigo, é o que penso. Por isso não entendo por que ela ainda está com você.

       — Não, Thales, o que não entende é a razão de ela não estar com você. — afirmou, convicto. — Mas não vim aqui para falarmos sobre a minha mulher. A questão relevante nesse momento é que eu sei o que você fez vinte anos trás. — falou com calma, ainda que um pingo de ironia tingisse a significativa paráfrase. 

       O fazendeiro nem piscou, cônscio de que estava a respeito do assunto sobre a mesa e a maneira de agir do homem da lei.

       — O que você tem a ver com o suicídio do meu avô?

       — Nada, absolutamente nada. Naquela época eu nem estava em Matarana e tampouco era delegado de polícia. Faz um tempão, não é mesmo? A insensatez da juventude. Eu estudava Direito como uma forma de defender os fracos e oprimidos. Filho de um bombeiro executado com um tiro na cabeça durante um assalto e uma dona de casa que se casou mais três vezes para superar a perda do primeiro marido, eu acreditava nas regras, em seguir as regras, em manter em dia os princípios morais em quaisquer circunstâncias. Aí, o tempo passou e o lixo ao meu redor começou a feder cada vez mais. — ele tornou a se recostar na cadeira sem deixar de fixar seus olhos nos olhos de Thales. — Vim para Matarana obrigado pelo meu chefe em Cuiabá, porque descobri a sujeirada que ele fazia por lá. E quando cheguei aqui e conheci as duas forças econômicas da região, sabia que um tentaria me puxar pelos braços e o outro pelas pernas, ou seja, você e o coronel Marau tentariam me arrebentar ao meio. Admito que dancei conforme a música por anos, fazendo vista grossa para os boatos de trabalho escravo nas fazendas do coronel e também sobre o convite informal para os ex-pretendentes da Karen deixarem Matarana...

       — Aonde quer chegar? — interrompeu-o bruscamente.

       — Aqui, Thales, aqui mesmo, com você nessa sala. É aqui que termina qualquer ligação entre nós, qualquer vínculo que seja entre a polícia civil e qualquer outro latifundiário.

       Thales sorriu um sorriso que se formou lentamente nos lábios. Depois, ergueu-se da cadeira e fez um sinal em direção à parte oposta da sala, o balcão de mármore com o bar.

       — Que tal um uísque?

       Rodrigo o acompanhou com o olhar e depois respondeu para aquele que um dia fora o seu único amigo na cidade.

       — Não bebo em serviço.

       — Que seja, eu bebo.

       Servindo-se de uma dose generosa da bebida, de costas para a autoridade, Thales perguntou com displicência:

       — Quer seguir os passos do meu avô, delegado? — antes que o outro pudesse argumentar, ele se voltou com o copo cheio na mão e explicou: — Ressuscitou o arquivo de um suicida e está abrindo mão da minha proteção armada. Bem, me parece que a vida perdeu o sentido para você. Os últimos dois atentados contra a sua vida não lhe bastam como provas de que, sem mim, é um homem morto?

       Rodrigo levantou da cadeira sem a mínima intenção de abandonar o recinto.

       — Nunca pedi proteção particular. Não preciso e não quero, entendeu?

       — E quanto a Karen e a família dela? Devo ignorá-los? Veja bem, da última vez eles tiveram que se abrigar na minha casa, porque a polícia não deu conta do recado.

       O delegado ajeitou o chapéu na cabeça. Um gesto que demonstrava a incipiente irritação.

       — A polícia prendeu um dos mentores dos atentados. — disse ele.

       — Que, em seguida, foi assassinado dentro da delegacia. — completou Thales com sarcasmo. — Entendo as suas boas intenções, Rodrigo, sei sobre o seu caráter e não o julgo por já ter se tornado obsoleto. Você precisa de mim, dos meus homens, do meu poder e tudo o que significo no centro-oeste.

       — Vou dizer o que eu preciso, preciso que você tenha em mente que tanto as tuas imundícies quanto as do coronel serão investigadas com bastante dedicação, e se eu tiver de mandar os dois para a cadeia, mando os dois e ponto final, servirão de exemplo para os demais. Ninguém tem as costas quentes em Matarana, ouviu bem? Muito menos um camarada que é capaz de matar o pai do seu pai, sangue do seu sangue, simular um suicídio, subornar um delegado e acreditar todos esses anos que Deus jamais acharia uma testemunha. Pois bem, senhor Thales Dolejal, revi todos os relatórios do caso do teu avô e investiguei além. Encontrei o delegado subornado... Ele está tentando manter o segundo casamento frequentando a igreja e fazendo as pazes com o seu passado. Na verdade, — Rodrigo deu de ombros com indiferença, — acredito que ele tenha descoberto um tumor benigno e, mesmo assim, se apavorado. Isso realmente não importa. Um homem sabe os seus limites morais.

       — Claro que sabe, a extensão dos limites morais da maioria é igual a do forro da carteira de dinheiro... bem rasa. E o seu colega de profissão não passa de um oportunista que foi exonerado seis meses após a morte do meu avô. O sujeito é um pilantra.

       — O pilantra tomou o depoimento de uma testemunha que viu a briga entre você e o seu avô e tudo o que aconteceu depois.

       Thales terminou sua bebida e suspirou demonstrando fastio.

       — Vamos ver o que você tem... O relato de um ex-delegado podre de sujo e o depoimento de uma suposta testemunha de vinte anos atrás. Certo, o que fará com esse ouro?

       — Já fiz, Thales. Essa pasta aí traz toda a verdadeira investigação juntamente com a perícia feita no corpo da vítima. O laudo do IML aponta uma série de pequenas fraturas nos maxilares e nariz de Onório e isso comprova a tese de que ele foi golpeado até cair inconsciente para, em seguida, ter uma corda passada pelo pescoço e ser pendurado numa árvore. Você o enforcou. O delegado da época, pensando como eu penso agora, dirigiu duas investigações paralelas; a real, na qual juntou todas as provas, testemunhos e ocorrências policiais anteriores, quando vocês dois se pegavam no pau, ou melhor, quando o seu avô espancava você publicamente, e a investigação fictícia, baseada apenas no seu depoimento, levando em consideração o fato de que ninguém em Matarana suportava Onório Dolejal, o mal encarnado, não era assim que o chamavam?

       Os punhos do latifundiário se fecharam dentro dos bolsos laterais da calça social.

       — Ele era apenas um velho amargurado que bebia demais. — falou com esforço.

       Queria dizer a verdade. Que Onório Dolejal era um espancador, um sádico, um ladrão de terras e de vidas alheias.

       Queria confessar o crime.

       Queria, na confissão do crime, sentir o mesmo prazer ao ter em seus braços o mal desencarnado.

       — Pelo o que entendi, se acontecer algo a você, alguém entregará esse tal dossiê para as autoridades. — considerou o neto de Onório Dolejal tranquilamente.

       — Sim, é um modo do seu suporte não ser descartado com tanta facilidade.

       Thales sorriu e se aproximou de Rodrigo.

       — E se, por acaso, o coronel Marau matá-lo? Entregarão o dossiê? Veja bem, não há garantia alguma pela sua vida, meu amigo. Você está no meio de uma guerra.

       — Tem uma pessoa que saberá de onde partiu a bala. — assegurou insinuante.

       Por um segundo ou dois, Thales considerou o que o delegado lhe dissera como um blefe, um tiro no escuro. Depois, retesou os maxilares com força.

       — Está tentando jogar o meu filho contra mim?

       — O Franco é justo, nada mais.

       — Se eu quisesse acabar com você, poderia fazer isso agora e o enterrava debaixo da minha cama, enquanto em cima estaria trepando com a Karen. — começou, a voz baixa e serena: — Você é atrevido, um cara de pau que entra no meu escritório, joga essa merda toda na minha cara e ainda me ameaça. Com que direito? Se tem algo oficial para me comunicar, delegado, fala com os meus advogados. Se quer me acusar de homicídio, faça-o. Arranje gente para depor contra mim, traga a tal testemunha, chame o ex-delegado safado, arme todo o circo. Tente me deter, me ponha atrás das grades, se puder. Porque não haverá dossiê no mundo que o salvará do que estou preparando especialmente para você, Rodrigo.

       O delegado avaliou as possibilidades.

       — Ok, que tal o 147?

       Thales estreitou os olhos, curioso com a manobra alheia.

       — Consulta os teus advogados da capital, porque é por aí que começarei a azedar os teus dias.

       Rodrigo Malverde deu uma leve batidinha na aba do seu chapéu, despedindo-se do amigo de longa data.

       Ao telefone, Thales foi informado:

       — Crime de ameaça, senhor Dolejal. A pena é detenção de 1 a 6 meses ou multa.

       — Não sei como isso azedaria os meus dias. — pensou alto, desligando o telefone na cara do advogado.

         

       Franco estava tenso, não conseguia relaxar nem fingir que aceitava numa boa aquela situação.

       A esposa pegou-o na mão com carinho, demonstrando que compreendia bem o que ele sentia, mas não podiam desistir. O certo era estar ali e fazer o que deveriam fazer. Se não fosse pelo sogro jamais conseguiria a permissão do marido para a realização da ecografia. Thales o persuadira a respeito da necessidade desse tipo de exame, pusera-o em frente ao computador e pesquisara a respeito do assunto para o filho.

       Apesar dos livros lidos, Franco ainda se mantinha preso a antigas crenças nascidas da convivência com os pistoleiros toscos da fazenda. Fora apenas Bronson comentar que a sonda do ultrassom liberava radiação — motivo pelo qual levou uma bronca do patrão, que o chefe da segurança da fazenda Arco Verde deu sinal vermelho para a realização do exame. Ele temia que machucassem ou deformassem a sua filha.

       Assim que a médica espalhou o gel na barriga de Nova e, em seguida, abaixou-se para pegar a caixa de lenços descartáveis no balcão que sustentava o equipamento de ecografia, Franco limpou rapidamente o excesso do líquido gelatinoso com as fraldas da camisa.

       — É demais. — murmurou numa espécie de resmungo.

       — Franco! — Nova recriminou-o baixinho.

       Ele sorriu sem graça ao receber a recriminação da mulher e o olhar intrigado da obstetra. A doutora Vitória percebeu que o jovem caubói à sua frente estava deslocado no consultório.

       — Algum problema, senhor Dolejal?

       Nova quase riu ao ouvir a médica se referir a Franco como “senhor Dolejal”. Para todos os efeitos, essa era a designação do pai do seu marido, e não do rapaz de menos de 23 anos.

       Entretanto, ele estava incomodado, sim. 

       — Tem como fazer isso bem rápido? — revelou a ansiedade.

       — O exame? Não há nenhum tipo de problema em se fazer uma ecografia, não se preocupe. Para falar a verdade, esse gel até faz bem a pele, é umectante. Além disso, não é um exame invasivo, vou apenas deslizar esse aparelhinho por sobre a barriga de sua esposa. Não fará mal algum a ela ou ao bebê. O que o senhor acha, posso continuar? — ela tinha a paciência de professora do jardim de infância.

       Nova achou por bem interferir.

       — Amor lindo, a gente já conversou sobre isso. — disse com brandura.

       — Eu sei, eu sei...

       De pé, ao seu lado, ele mordia o lábio inferior.

       — Tudo bem? — perguntou a doutora com um sorriso simpático.

       Franco suspirou profundamente e assentiu, cravando os olhos nos movimentos da mulher de quase cinquenta anos, cabelos longos e presos num rabo de cavalo baixo.

       Olhou ao redor, avaliando pela quarta ou quinta vez o consultório sofisticado que fazia parte de uma famosa clínica de Santa Fé. Era nesse lugar que as gestantes dos empresários e latifundiários da região se consultavam; algumas, quando não dava tempo para chegar a Cuiabá, pariam por lá mesmo, no centro cirúrgico ou na sala de parto da clínica.

       Nova sorriu confiante. Piscou o olho para ele e se voltou para o monitor, as primeiras imagens revelando a silhueta do bebê. Não era uma imagem tão nítida quanto a que mostrou, segundos depois, o contorno do corpinho do feto com 12 semanas de gestação. O formato do crânio desproporcional ao tamanho do tronco miúdo e das perninhas e bracinhos. Ela sentiu os olhos se encherem de lágrimas, o peito estufou numa alegria e um sentimento maior que qualquer outro que sentira na vida. Estava cheia, transbordando da mais pura plenitude. Percebeu quando Franco pegou a sua mão, os dedos se entrelaçaram.

       — Aqui estou eu, mamãe e papai. — falou a médica, carinhosamente, enquanto deslizava a sonda pelo ventre de Nova, voltada para o monitor à procura do melhor ângulo para analisar o desenvolvimento do feto e também mostrá-lo aos seus pais.

       — Meu Deus, é um bebê de verdade! — exclamou Nova entre incrédula e exultante. Ela tinha uma criança dentro de si, outro ser humano, um absurdo coerente e maravilhoso. — Qual é o tamanho dele?

       — Uns cinco centímetros.

       — Só? — ela perguntou, rindo-se e, voltando-se para Franco completou com ternura: — Viu como é pequeninho?

       Franco estava com os olhos vidrados na tela do monitor, admirando o bebê que se mexia, revelado nas imagens que ora apareciam nítidas e claras, ora mergulhavam na confusa escuridão.

       — Aquilo lá, aquilo meio pontudo é o nariz? — indagou ele, interessado, as sobrancelhas juntas, o olhar firme.

       A médica digitou algumas teclas e ampliou a imagem.

       — Sim, sim, é o narizinho... Estão vendo que ele está chupando o dedo?

       — Ela está. — corrigiu Franco com secura — E como está tudo por lá? Os órgãos? Estão no lugar certo? A placenta é boa? Está fazendo tudo certinho... a... como... — ele parou de falar.

       Nova não conseguia desgrudar os olhos do filho, queria memorizar cada detalhe, cada movimento para mais tarde, quando acarinhasse a barriga, lembrar-se da imagem dele. Ainda assim achou estranho o silêncio repentino de Franco e se voltou para ele.

       — Tudo bem, amor lindo? — perguntou baixinho.

       Ele levou a mão ao próprio nariz, apertando-o. O corpo pendeu para frente e para trás, como se hesitasse entre ficar ou sumir porta afora. Baixou a cabeça e as mechas loiras camuflaram seu rosto.

       Nova sabia o que estava acontecendo e falou com carinho:

       — É uma droga essa alergia, né? Por que não dá uma corridinha até o banheiro para assoar o nariz?

       Franco ergueu a cabeça e relançou um rápido olhar para a médica, que permaneceu de costas apertando botões e enquadrando as imagens. Ela também conhecia a alergia que atingia alguns pais diante da visualização de um sonho.

       Ele não queria sair da sala e perder os preciosos momentos vendo a filha. E quando ouviu os batimentos cardíacos dela, num ritmo rápido e forte, os joelhos amoleceram. Apoiou-se na beirada da cama e encurvou ligeiramente o corpo para ter o melhor ângulo possível para ver o coraçãozinho que mais se parecia com uma mancha pulsante.

       — Dá para saber o sexo, doutora? — perguntou Nova, tentando ignorar a cabeça loira que girou em sua direção.

       — Olha, ainda é difícil afirmar com certeza, a margem para uma avaliação errada é muito grande.

       — Claro, né, é uma máquina! — disse Franco, contrafeito.

       — Meu marido tem certeza de que é uma menina.

       — É o instinto paterno, mãezinha. — comentou doutora Vitória com um sorriso gentil. — Está tudo muito bem. — ela se virou para Franco e disse com descontração: — Agora vamos ver para quando será a chegada de mais um Dolejal ao mundo. — emendando a seguir: — Minha secretária enviará uma cópia da gravação da ecografia para o seu pai, ok?

       — Ele pediu? — Nova perguntou, encantada com a atitude de Thales.

       — Claro que não, princesa. — Franco curvou o lábio para baixo e, a contragosto, acrescentou suspirando resignado: — Ele mandou que enviassem a gravação para a fazenda. Até parece que ele pede alguma coisa.

       — Me sinto tão mal por não tê-lo convidado para vir conosco ao exame...

       Ela percebeu que o seu tom de lamento não chegou aos ouvidos do rapaz que olhava fixamente, hipnotizado, para o bebê na tela. A expressão facial congelada num sorriso apaixonado e os olhos vertendo o brilho do amanhecer em Matarana antes da estiagem.

       — Está decidido, vou fecundá-la várias vezes, dona. — prometeu, incisivo.

       Nova riu com vontade. Havia poucos meses, ela o ordenara para que a fecundasse. O desejo de ter um filho era maior que o de ter um homem. Agora, o amor pelo filho e o amor pelo homem conviviam tranquilamente.

       Quando o casal se foi, a secretária do consultório entrou na sala e, parada junto à janela observando o caubói abrir a porta da picape para a esposa, comentou:

       — Então é esse o diabo loiro.

       Vitória sorriu enquanto ajeitava o DVD no invólucro de papel e etiquetava-o.

       — É, sim, o famoso pistoleiro de Matarana.

       — Desculpa a curiosidade, mas como ele é? Grosseirão? Sei que tem a fama de ser meio fora dos eixos.

       — Pois é, um colega meu me falou algo assim a respeito dele.

       — E?

       A obstetra sorriu com ar maternal.

       — O meu colega pediatra se enganou.

         

       Ele dirigia com uma mão no volante e a outra sobre o ventre arredondado da mulher.

       Nova admirava as fotos da ecografia com um sorriso plantado na cara.

       — Não quis falar nada, mas sabe que pensei que veríamos dois bebês? Minha barriga está grande demais para 12 semanas! — exclamou ela, sem conseguir desmanchar o sorriso.

       Franco virou a cabeça em sua direção, os óculos escuros e a aba do chapéu para baixo escondiam parte do rosto. Mas o sorriso amplo, acentuando as covinhas nas bochechas, não disfarçava o orgulho e a felicidade que sentia. E quando via Nova sorrindo, quando a via feliz, seu coração disparava de euforia.

       — Será que o outro bebê não se escondeu da tal da sonda? Ele podia muito bem estar atrás da Paola, bem camuflado, o espertinho. — comentou em tom brincalhão.

       Nova riu e pôs sua mão sobre a dele, ainda descansando em cima do lugar onde vivia o seu filho.

       — Duas ervilhas não ocupam o mesmo espaço.

       — Ainda tem coragem de chamar essa lindinha de ervilha, dona Nova? — indagou ele, lançando um olhar significativo para a barriga dela. — Ela está ouvindo tudo o que você diz, sabia, né?

       — Ouve, mas não entende. E o que eu quis dizer é o seguinte, moço lindo, a doutora liberou geral. Imagina só, se o nosso bebê tem cinco centímetros, qual é o tamanho da testa dele? Entendeu o que quero dizer, não é?

       Ele manteve o sorriso.

       — Desse jeito não vai ser difícil manter você sempre grávida.

       — Meu amor, agora é uma corrida contra o tempo. Ano que vem alcanço os 35, temos de fazer logo nossos bebês e num curto espaço entre eles... O óvulo envelhece e começa a ficar lento até ter de ser empurrado numa cadeira de rodas.

       — Deixa comigo, sou bom de mira, sempre acerto no alvo.

       — E eu não sei? — brincou, aproximando-se dele e o beijando na boca.

       — Mais um pouquinho. — ele pediu quando ela se afastou. E por isso tornou a beijá-lo.

       Até tentou voltar para junto da janela aberta e observar a paisagem da rodovia que os levava de volta a Matarana, mas Franco puxou-a para si, colando-a contra o seu tórax, o braço possessivamente sobre os ombros dela.

       — Hoje, pela manhã, quando fui para a Arco Verde, o patrão se convidou para jantar lá em casa, disse que tinha coisa pra tratar com a gente.

       — É mesmo? Nossa, o que farei pro jantar? Não cozinho tão bem quanto a Irene.

       Franco achou graça do tipo de preocupação dela.

       — Eu faço o jantar. Nada como um bom pão na frigideira. — debochou.

       — Até parece! — recriminou-o; em seguida, cogitou uma possibilidade mais à altura do convidado: — Vamos encomendar comida do Arizona.

       — Por mim, tudo bem. Mas não esquenta com isso, princesa, o problema não é a comida. O que me deixa com a pulga atrás da orelha é o convidado. Eu trabalho na Arco Verde, ele me vê todo dia por lá, então, por que tem de ir a nossa casa?

       Nova percebeu a sua incipiente exasperação. Era verdade que pai e filho estavam mais próximos, embora Franco não fosse mais o segurança de Thales Dolejal — mesmo que permanecesse no posto de braço direito. Outra verdade era que a eterna devoção, sempre acompanhada pela desconfiança, permanecia em Franco inabalável. De sua parte, Thales mostrava-se um excelente patrão, pagando ao seu chefe da segurança o salário condizente ao dos diretores do seu grupo de empresas.

       — Deve ser algo de cunho pessoal. — deduziu ela, sagazmente.

       — E o que não é pessoal, moça linda? Vindo de um camarada controlador como ele, boa coisa não é.

       — Baixa um pouco a guarda e dá uma chance ao seu pai. Ele está tentando se aproximar, do jeito dele, do jeito Dolejal de ser, como diz o Rodrigo, mas já é um avanço.

       — Não sei, não. É melhor eu ficar esperto, de olho nele.

       — Bem, quem sou eu para falar, você o conhece há bem mais tempo, só acho que os dois são orgulhosos demais, é evidente que morrem de amores um pelo outro...

       — Ei, ei, Nova, o que aconteceu com a sua memória? — perguntou, engatando dois dedos debaixo do queixo dela e erguendo seu rosto: — Esqueceu que ele mandou um cara me matar?

       — Não, mas também lembro que ele o protegeu contra esse mesmo cara. — afirmou, incisiva. — Sei que foi horrível o que o seu pai fez, e você, amor, tem todas as razões do mundo para ficar de olho nele, sim. Só que não quero que sofra tentando sufocar o que sente por ele. Nós não temos culpa de amar, porque isso não é errado. Não se sinta mal por amar o seu pai. Tenho certeza absoluta de que ele também o ama e deve se corroer por dentro ao pensar que poderia tê-lo assassinado. Convenhamos, Franco, ele faz todas as suas vontades... Aliás, a Irene me disse que o Thales sempre fez as suas vontades desde que chegou à fazenda.

       — Isso é uma bronca, Nova? — alçou a sobrancelha, interrogativo.

       — Entenda como um aviso. Para quem preza pela justiça, você está se saindo um tanto injusto para com a sua família. — disse com firmeza para, depois, emendar num tom mais terno: — É fácil amar as pessoas fáceis, não é mesmo? Difícil é amar os complicados.

       — Amo você e a nossa ervilha. Estou satisfeito assim, meu coração é pequeno.

       Ela ergueu a cabeça para ele e viu os ossos dos maxilares projetados contra a pele escanhoada.

       — Eu quero muito que a nossa família dê certo, e o seu pai faz parte dela, sim.

       — Se insiste...— deu de ombros.

       — Faço questão. A família Dolejal tem de ser igual à Malverde-Lisboa, entendeu?

       — Não adianta falar isso só pra mim.

       — Deixa comigo, hoje à noite, o seu pai também será enquadrado. — determinou.

       — Quero só ver. — fez troça com um sorrisinho.

       — Duvida? Acha que não tenho coragem de enquadrar o seu pai?

       — A dona é doida. — afirmou, obrigando-se a rir.

       Ela o apertou com força na cintura e achatou o nariz contra a camisa dele.

       — Sou doida por você, caubói. — murmurou.

       Nova precisava saber. Ver o bebê na ecografia acalmara o seu coração que ultimamente andava inquieto. Bronson no cinema. O que acontecera no banheiro do cinema? Será que Thales Dolejal sabia sobre o que acontecera?

       Mas, no fundo, não queria saber.

       Porque, sabendo, teria de tomar uma atitude, se posicionar a respeito. Fazer o que era certo.

         

       A cliente mandou embrulhar um Macaron para levar e comê-lo com café preto em sua casa. Karen, que detestava trabalhar na sua própria confeitaria, irritou-se com a petulância da mulher. Por que não bebia o seu café por ali mesmo, já que o Vaca Louca era uma confeitaria e cafeteria? Elas não tinham comprado uma máquina expressa de café para ser usada como enfeite. A sua exasperação elevou-se a potência nove milhões, quando a descarada, filha e esposa de fazendeiros, esticou a nota de cem reais para pagar algo que custava menos de cinco paus.

       Karen fitou os olhos empapuçados e grudentos de rímel nos cílios superiores e inferiores e disparou:

       — Está de gozação comigo, né? — falou alto, um sorrisinho de escárnio.

       Dona Mariana, que descera de uma camionete zero bala e tinha a aparência típica de coroa endinheirada — cabelo loiro tingido, cortado reto, alcançando a nuca e o vestido de verão longo, de seda, até os tornozelos, combinando com a bolsa de grife, queria apenas um macaron.

       — Qual é o problema? Você não tem troco para cem? — rebateu, fingindo-se de inocente.

       Karen percebeu a sutileza da pergunta e a intenção do fingimento. Sabia tudo sobre piranhas cretinas e aquela à sua frente era a regente-mor de todas elas. Era impossível esquecer que boa parte da população de 13 mil habitantes de Matarana ainda a considerasse como a vadia do cerrado, a mulher largada pelo marido, a amante que chifrara Thales Dolejal e a namorada encrenqueira do delegado linha dura. E, como se isso não bastasse, Rita Maldita, a doceira libidinosa, tinha suas amigas leais, sua clientela de alto poder aquisitivo pronta para atiçar o gênio irritadiço da concorrente bem próxima de seu estabelecimento.

       — Tenho, sim, espera só um pouquinho. — fez um sinal com a mão e se agachou atrás do balcão da máquina registradora.

       Abriu uma portinha e pegou de lá um saco plástico com quase 1 kg de moedas. Era o “porquinho” de Johnny que trocara de endereço. Como o cofre de cerâmica se espatifara ao despencar da estante durante o último atentado contra Rodrigo, o jeito foi despejar as moedas que ele guardara havia cinco ou seis anos num saco plástico. Karen resolvera, então, substituí-las por cédulas e pagara ao filho um valor meio que condizente a uma mesada de longa data acrescido, evidentemente, da aquisição de um novo computador; o anterior também levara bala dos pistoleiros do coronel.

       Ela pôs o saco com moedas sobre o balcão e ameaçou abri-lo para começar a contagem.

       Mariana fechou a cara. Porém, tal movimento somente foi perceptível porque ela falou num tom rascante o que o Botox impediu de mostrar na expressão facial:

       — Agora é você que está de gozação, né, ô mocinha?

       — Não, senhora, estou apenas contando o seu troco.

       — Isso é um ultraje! — a outra resmungou.

       Karen desistiu do intento, estava entediada e se sentindo oprimida entre as paredes e o teto da confeitaria. Relançou um rápido olhar para Ninita e Veridiana, sentadas nas cadeiras e bebericando chá. O trabalho como atendentes de um estabelecimento sempre às moscas levavam-nas a se comportarem como clientes.

       Voltou-se para Mariana e tentou ser diplomática:

       — Olha só, é uma cortesia.

       — Eu não quero cortesia alguma; quero é que simplesmente me dê o troco em cédulas e de preferência de 10 e 20 reais. — disse com azedume.

       — Não posso ficar sem troco. — enfatizou.

       — Mas isso, querida, não é problema do cliente.

       — Claro que não, isso é problema meu.

       Valéria entrou no recinto, cumprimentou vó Ninita e Veridiana e se aproximou do reservado onde ficava a caixa registradora e a sua sócia. Sorriu para Mariana ao reconhecê-la e indagou à cunhada:

       — O que está acontecendo?

       Mariana adiantou-se, esbaforida.

       — Já faz meia hora que estou tentando pagar essa bolacha, mas parece que a proprietária quer impor regras quanto à forma de pagamento.

       Val voltou-se para Karen tentando se familiarizar com a situação e encontrou uma mulher de pavio curto com uma faísca brilhante na ponta. Era melhor que intercedesse antes da cliente ser jogada para fora pelos fundilhos como acontecia com alguns no Colono Tranquilo.

       — Karen, por que não vai tomar um cappuccino enquanto eu vejo o troco para a nossa amiga, hein? Vim do banco, tenho muitos trocados comigo.

       A morena estava inclinada a aceitar a interferência da cunhada. Algo dentro dela não deixou que isso acontecesse. Ceder, naquele momento, pareceu-lhe como aceitar dois pés sobre as suas costas enquanto tinha a cara grudada no chão. Diante de uma sacana que frequentava o salão de beleza todas as tardes para afiar as garras e discutir a vida alheia — talvez até o apelido Vaca Louca tivesse partido primeiro daquela boquinha com colágeno, ou gordura da bunda, Karen não sabia ao certo, a vontade que tinha estava à altura de sua coragem. Ela nunca se deixava na mão.

       — A questão é que isso aí não é uma bolacha, é um doce, um bolinho francês, se quiser entender assim, mas não é uma mera bolacha. Se não sabe o que é uma iguaria francesa, ainda que a sua periquita valha milhões de reais, quero que deixe aqui no meu balcão o Macaron, enfie o rabo entre as pernas e dê o fora.

       Valéria Malverde sentiu o coração na boca. Todas as vezes que Karen resolvia trabalhar na confeitaria pegava pesado com alguém.

       Mariana sabia sobre o temperamento amalucado da mulher que andava a cavalo pela cidade enfiada num jeans justíssimo que realçava o traseiro.

       — É assim que trata a sua clientela? Não é à toa que esse pulgueiro com decoração afrancesada esteja sempre vazio. — e emendou com menosprezo: — Fica com a bolacha caseira, meu bem, porque eu ainda prefiro os cupcakes da sua vizinha. Aliás, — completou, virando-se para Val: — se não quiser afundar, é melhor deixar os cachorros no canil.

       Karen empurrou com força o balcão ao passar por Val que, em vão, tentou pegá-la pelo antebraço. Tinha nos olhos uma expressão de divertimento sádico. Não estava realmente zangada ou enraivecida. A irmã do delegado percebeu que alguém ali queria se divertir, como Tom com Jerry.

       Uma diversão que foi para o beleléu, já que o homem que usava um distintivo e tentava pôr ordem na cidade acabava de entrar.

       Val deu um discreto cutucão nas costelas de Karen.

       Rodrigo sorriu ao cumprimentar a mulherada que virara a cabeça, ao mesmo tempo, para vê-lo. Era impossível ignorar a presença de um morenão de 1,90, usando jeans, camisa xadrez aberta nos primeiros botões e remangada até a altura dos cotovelos. Além do clássico chapéu de caubói sobre o cabelo curto e castanho-claro.

       Karen não era burra nem nada. Tudo o que ela tinha de fazer era mostrar a Rodrigo que estava se comportando como uma pessoa madura e equilibrada, uma mãe de família ponderada e uma cidadã acima de qualquer suspeita. Obrigou-se a sorrir para a cliente.

       — Peço desculpas pelo comportamento da minha sócia. Às vezes, ela é impulsiva. — afirmou de um jeito brando e conciliador enquanto ignorava os olhos de Val queimando sua cara: — Tenha a certeza de que se ela falou que sua boca tem gordura de bunda não foi por mal.

       Val prendeu a respiração, as bochechas pegando fogo de vergonha.

       Mariana torcia o lábio num trejeito de repulsa. Antes que ela se manifestasse, o delegado se aproximou e, sorrindo, fez o seu pedido:

       —Tem um expresso tinindo de quente pra mim?

       Ele olhou para Karen, olhou para toda ela, cima a baixo, um sorriso charmoso no canto dos lábios. Um convite.

       Mariana entendeu que o convite era para a sua pessoa. Endireitou os ombros e mudou a máscara social que usava, suavizando a expressão do rosto para ajustar-se à nova situação.

       —Ai, delegado, sinto tanto por não ter podido ir à cerimônia de entrega do troféu de cidadão mataranense. Meus parabéns! — falou com manha, afinando a voz.

       Rodrigo ajeitou o chapéu e pousou os olhos sobre a mulher.

       — Obrigado, Mariana, mas não perdeu grande coisa, não.

       — Os melhores homens da cidade, o senhor, o meu amigo Thales e o doutor Cristiano, os melhores da região.

       Karen sorriu com deboche. Sabia o quanto tivera de insistir para o namorado aceitar o troféu e, mais do que isso, participar do evento no clube campestre. A comparação com Thales Dolejal também o incomodava sobremaneira. No entanto, as pessoas continuavam a vinculá-lo ao fazendeiro.

       Ele percebeu o sorrisinho de Karen e, se desvencilhando da inoportuna com um quase inaudível “com licença”, pegou a namorada pelo cotovelo, a firme intenção de agarrá-la no escritório da confeitaria. Já se tornara hábito tal comportamento por parte da polícia. E ela adorava.

       Coube a Val dar literalmente o troco para a cliente que, antes de sair, prometeu não voltar a pisar na pocilga e, de brinde, não recomendar aos seus amigos. Falava enquanto caminhava para a calçada como se estivesse ao celular, comunicando-se pelo fone de ouvido, do jeito que algumas pessoas faziam e que se pareciam bastante com esquizofrênicos em delicado surto.

       — É só uma espiã, não perdemos porcaria de cliente nenhuma. — afirmou Ninita do alto de sua perspicácia.

       Val concordou com a cabeça, suspirando resignada. Postou-se detrás da caixa registradora, relançando um olhar preocupado para a porta fechada do escritório. Era evidente que Karen odiava ficar por horas atrás de um balcão servindo os outros. Ainda mais quando o movimento das primeiras semanas de inauguração fora substituído pela indiferença dos consumidores da cidade.

       Rodrigo fechou a porta com um pé, um chute preciso que não a bateu com força, mas foi o suficiente para isolá-los no escritório. A boca ocupada em usufruir outra a sorvendo tal qual um fruto tenro, aos poucos, intenso e sem parar para respirar, enquanto os braços apertavam o corpo da mulher que se grudava nele.

       Ela levantou a camisa dele pela barra, expondo o abdômen sarado, os quadradinhos desenhados pelos músculos trabalhados na garagem de casa e debaixo do sol, ajudando os pedreiros com a reforma da casa. As pontas dos dedos deslizaram pela pele morena até encontrar os pelos que marcavam como seta o caminho do pecado. Ele gemeu; ela não parou. Desceu a mão pelo cós do jeans, mas não foi além. Vontade não lhe faltava. A mão ficou presa antes de alcançar o que fora pegar.

       Ele riu baixinho por entre os lábios dela, afastou-se centímetros, abriu o botão de metal e permitiu que ela baixasse o zíper. Enterrou as mãos nos cabelos de Karen, segurando o rosto para si, contra o seu, ao mesmo tempo em que chupava o seu lábio inferior e depois esfregava a boca ao longo do maxilar até prender entre os dentes e a língua o lóbulo da orelha, arrancando dela um gemido rouco que subia do fundo da garganta.

       Com um gesto urgente, ela baixou o jeans dele o suficiente para fazer o mesmo com a cueca boxer e se apropriar do pênis que se enchia de poder.

       Ele resmungou qualquer coisa junto ao seu ouvido quando o tocou intimamente. Em seguida, deitou-a sobre a mesa e tirou-lhe as botas, uma de cada vez, sem deixar de enfiar seus olhos dentro dos olhos dela, olhos de promessa.

       — Faz menos de quatro horas que saímos da cama e você está com todo esse fogo. — Karen constatou num murmúrio rouco e um sorriso endemoniado.

       Rodrigo sentia o sangue ferver dentro da cabeça, a respiração não conseguindo escapar pelo nariz no ritmo normal enquanto a livrava do jeans para se apossar da calcinha até arrancá-la pelos pés. Tocou com delicadeza no lugar onde tantas vezes o recebia tão bem e tão quente. E admirou a mulher que deitava a cabeça para trás, as pálpebras cerradas e a respiração sendo expulsa pesadamente. Enganchou as mãos por entre suas coxas e puxou-a para a beirada da mesa.

       —A Val... Rodrigo... a Val pode entrar a qual...qualquer momento.— balbuciou sôfrega.

       Ele se importou com o que ouviu. Por isso encurvou o corpo e lhe deu prazer. Com a boca.

       Quando pensou que a sensação fina e quente implodiria os seus órgãos, imediatamente, subiu à superfície de sua pele gotas grossas de suor e ela levou a mão aos lábios para não gritar, não gritar com tanto desespero e deixar escapar o orgasmo que a fazia fechar as pernas e prensar a cabeça do delegado entre as suas coxas.

       Um minuto antes de gozar, ele a penetrou forte e duro.

       E fez amor com ela.

         

       Valéria não se espantou ao ver Karen Lisboa sair do escritório descabelada, a boca inchada, um chupão no pescoço e a expressão facial de uma drogada. Atrás dela, o responsável pelo seu estado ajeitando a camisa para dentro do jeans enquanto ainda ofegava ligeiramente.

       O irmão sorriu sem jeito e se sentou com Ninita e Veridiana.

       — Vou pegar o seu café, Rodrigo. — disse Karen, meio desnorteada, sorrindo para ele com cumplicidade.

       Ele agradeceu com um gesto discreto de cabeça e voltou sua atenção para as duas que jogavam canastra à mesa, as xícaras vazias, no início da tarde de um dia qualquer da semana.

       Vó Ninita empurrou os óculos contra o rosto, pegou uma de suas cartas do leque à sua frente e disparou:

       — Sabia que tem uns hotéis à beira da estrada para fazer sacanagem? Quer que a gente seja multada pela vigilância sanitária, delegado?

       O delegado ajeitou o chapéu num trejeito engraçado. Fora pego em flagrante.

       — Nós estávamos apenas conversando, vó. — tentou argumentar.

       — Com os genitais, é claro.

       Ele baixou a cabeça e apertou os lábios, consternado. Jamais agira de forma impulsiva e inapropriada... até Karen arrancá-lo da raiz da vida segura.

       — A senhora tem razão, agi errado e peço desculpas por tê-la desrespeitado. — falou com sinceridade.

       Vó Ninita aceitou o pedido de desculpas com um gesto de assentimento e prosseguiu no jogo. O fato não passaria em branco. O fato de sua neta e o delegado terem feito sexo na confeitaria. Veridiana prestava a atenção nas cartas com os olhos e na história com os ouvidos. E, depois, repassaria o que presenciara com a boca, espalhando pelas ruas de Matarana que ouvira gritos e gemidos da sócia do Vaca Louca sendo comida pelo delegado da cidade. Mais falatórios contra a sua neta.

       A não ser que...

       — Espero que isso não se repita, Rodrigo. — determinou com aspereza.

       Ele encarou a avó de Karen e sorriu com gentileza.

       — Com certeza, vó, nunca mais. — assegurou.

       Ela se voltou para a velha amiga e comunicou solenemente:

       — Se essa história vazar, mando a Karen fazer uma visitinha pra você, Veri.

       Veridiana sorriu constrangida.

       — Que é isso, nem pensar!

       Karen se aproximou trazendo a xícara com café fumegante sobre o pires de cerâmica. Depositou-a sobre a mesa, em frente ao delegado, e aproveitou para beijá-lo de leve na boca. Sentou-se ao seu lado e sorriu para ele.

       — Tem emprego pra mim na delegacia? — sem deixá-lo responder, emendou com entusiasmo: — Sabia que nos Estados Unidos tem um pessoal que ganha dinheiro procurando foragidos? São os tais caçadores de recompensa. O que acha? Eu poderia caçar os foragidos da polícia de Matarana. — sugeriu, alegremente.

       Rodrigo assoprou a bebida e a emborcou em dois goles. Voltou-se para a namorada com um sorrisinho que já denunciava o rumo de sua resposta.

       — Por acaso estamos nos Estados Unidos?

       — E daí? Imitamos tanto os americanos, por que então não importamos mais uma porcaria deles?

       — Justamente por isso, Karen, é uma porcaria. Quem faz o trabalho da polícia é a própria. Além do mais, esse tipo de conduta é crime.

       — O que não é crime, hein? Meu Deus, não se pode fazer nada! — reclamou com mau humor.

       Ele suspirou enquanto se recostava na cadeira.

       — Pode, sim. Trabalhar no seu negócio não é contra lei. — considerou calmamente.

       — É contra a lei da vida! É um tédio de doer. É uma tortura chinesa.

       — Então por que nos meteu nessa, porra?Eu e a Veri estávamos convidando rapazes bonitos na rodoviária para trabalhar no setor do amor terceirizado. — voltou-se para Rodrigo e o informou: — Aqueles guris, coitados, chegam cheios de sonhos e ficam sem dinheiro uma semana depois... Bem, eu e a Veri pensamos em criar um site e alugar os mais bonitos para as fazendeiras e a mulherada da alta roda em geral... Tiramos até foto deles, fizemos um álbum legal, só gurizão, tudo forte, saudável e cheio de amor para dar...

       À medida que Rodrigo ouvia sobre as aventuras de Ninita, mais se apavorava com a família Lisboa e o seu corpo abandonava a posição relaxada para se endireitar, o olhar atento à senhora a sua frente.

       — Vó, não pode, isso é crime de favorecimento da prostituição. — ele se virou para Karen e completou sério: — Por acaso, vocês duas conseguem fazer algo dentro da lei?

       Neta e avó se entreolharam, aturdidas.

       — O que ele quis dizer com isso? — perguntou Karen com ironia.

       — Nada, querida, é obrigação do delegado falar esse tipo de coisa a favor da lei. No fundo, bem lá no fundo, o Rodrigo sabe que as melhores coisas da vida são as proibidas.

       Rodrigo apertou os lábios e negou com a cabeça, taxativo.

       — Podem ser até as melhores, vó, mas não são as mais certas.

       — Ok, momento-pieguice-exploda-meu-cérebro! — debochou Karen, recebendo um olhar duro de Rodrigo. — Me poupa de seus projéteis cor de mel, bom-moço, mas a verdade é que a gente era mais feliz e mais livre antes dessa bosta de confeitaria.

       — Claro que sim, ao primeiro sinal de responsabilidade você quer pular fora. — constatou ele com secura.

       Karen sorriu sem um pingo de vergonha.

       — Tem razão, papai. Então, é o seguinte: pega essa merda e enfia...

       — Eu fico no seu turno, Karen. Posso contratar outra pessoa para ficar pela manhã, quando o movimento é ainda menor ou abrir apenas à tarde. — sugeriu Val, interrompendo o que poderia se transformar numa briga. Karen era tinhosa, e Rodrigo não levava desaforo para casa.

       A cunhada, por fim, deu de ombros, indiferente ao destino de seu comércio.

       — Faça o que quiser, Val, só não me convida para participar. — virou-se para a avó e completou com um sorriso: — E a senhora está livre para bater perna e aliciar meninos.

       Ouviu um rosnado baixo ao seu lado e ignorou. Era a voz da razão tentando se impor debaixo do chapéu que lhe caía tão bem.

       — É, façam o que quiserem, mas bem feito para que eu não descubra. — avisou as duas.

       Karen sustentou o olhar direto e profundo do homem que amava. A cabeça voou rapidinho para a Arco Verde.

         

       Havia dois meses que ele se encontrava com Verônica. E apenas com ela, o que lhe parecia um tanto insensato de sua parte. Cristiano Bittencourt era cuidadoso quanto ao que se referia à sua vida afetiva. E a atual fidelidade estava mais associada à zona de conforto estabelecida pela rotina de encontros em sua cobertura e ao comodismo de apenas telefonar e ter uma mulher na sua cama do que à lealdade a qualquer tipo de sentimento. Era estranho que se sentisse anestesiado; a questão era que não gostava ou desgostava de Verônica. Sentia-se oco, vazio. E, de certa forma, tremendamente livre. A ausência de sentimentos por alguém lhe oferecia a liberdade que sempre desejara. Não estava na mão de uma pessoa. Não precisava ser aceito, paciente, compreensível e todas aquelas merdas em torno da obrigação de se sentir algo por alguém. Ele não sentia nada. Contraditoriamente, como quase toda a sua personalidade, estava feliz por isso. Satisfeito até. De bem com a vida. Sorridente pelas ruas. No controle da situação.

       Convicto de que sua existência imediata estava pronta e definida, ele ousou beneficiar-se do destino e plantou em terreno fértil a dúvida que boa parte do povo de Matarana também compartilhava com ele. Antecipou-se aos fatos.  A bem da verdade, era só uma questão de tempo para que a sua previsão se efetivasse. Agora, entretanto, não o fazia por amor. Visto que nada sentia que não fosse a felicidade de nada sentir. Cogitar que sua amiga de infância sofria violência doméstica não era de todo uma fantasia ou maledicência. Terrorismo psicológico também era considerado como abuso, uma espécie de abuso emocional, por exemplo.

       Não havia outra explicação para o casamento e a gravidez de Nova. Lavagem cerebral ou fuga da realidade. Qualquer teoria pela qual serpenteava os seus pensamentos, a única ideia que fundamentava tal comportamento era a de que ela estava sendo coagida pelo pistoleiro, sem ao menos dar-se conta disso. Porque Franco Dolejal ou diabo loiro, não importavam os nomes, jamais deixaria de ser quem era: um bandido com problemas emocionais armado até os dentes.

       Foi isso que Cris falou para Verônica e também para algumas enfermeiras e médicos do hospital. Não seria uma charrete e um vestido de Cinderela que transformaria um relacionamento doentio em um conto de fadas.

       Ele não sofria mais pelo amor perdido. Não sofria.

       Raras vezes pensava em Nova.

       Pensava mais em Franco.

 

        Ela deixou o Maverick na garagem de casa e pegou o seu melhor amigo pelas rédeas. Tencionava levar Prefontaine para um passeio pelos prados do senhor, do senhor Dolejal. Talvez conseguisse persuadir o novo chefe da segurança a aceitá-la em seu quadro de funcionários. Se Thales contratara uma mulher para ser a sua segurança particular, o filho poderia indicá-la para alguma missão de contra-ataque a Coração de Ouro. Sabia que os Dolejal armavam uma ofensiva contra os Marau. Os atentados sofridos por Rodrigo — interpretados por Thales como uma afronta à sua pessoa, seriam retaliados à altura. E como o próprio Thales dissera: ela e Franco eram os seus melhores soldados.

       Era verdade também o seu desejo de destruir o camarada que quase tirara Rodrigo de sua vida, entregá-lo a Thales e virar as costas para o destino do coronel. Pois, se deixasse a cargo da lei, o delegado teria pela frente um longo inquérito, uma papelada dos diabos e a encheção de saco de um bando de advogados.

       Com Thales todo esse trabalho era resumido. Assim funcionava a justiça em Matarana. Se o cidadão decide tirar a vida de alguém, assume também o risco de perder a sua. Faça o bem e receba o bem. Faça o mal e receba sete palmos de terra sobre si. Era justo, considerava Karen, em frente a Arco Verde, segurando firme as rédeas do seu cavalo.

       Na guarita, um velhote que carregava uma barriga gorda por cima do jeans, a camisa testando a resistência dos botões, o chapéu meio torto na cabeça. Ele tinha o nariz largo e um bigode vasto. Bolsas debaixo dos olhos que a examinavam de cima a baixo, dois riscos verticais entre as sobrancelhas.

       Ela conhecia aquele tipo de olhar.

       — Vim falar com o patrão. — comunicou simplesmente, sem apear.

       Era o tipo de olhar que tentava barrá-la nos lugares.

       O pistoleiro nem se deu ao trabalho de se aproximar, falou da porta da guarita de alvenaria e janela de vidro, aberta:

       — A senhora tem que descer do cavalo para a revista. — determinou com mau humor.

       O relincho baixo do manga-larga parecia uma troça à determinação do desavisado. Karen acariciou-lhe a crina e perguntou sem deixar de sorrir:

       — O senhor é novo por essas bandas, não?

       — Na fazenda, sim, mas não no meu trabalho, senhora.

       Ele percebeu que a senhora em questão fazia parte da tribo dos “ossos duros de roerem”. Avançou dois passos e levou a mão coldre, pouco acima da parte ostensiva na calça, a fivela do cinto.

       — Avisa o patrão que é a Karen, assim o senhor não perde pontos com ele nem comigo.

       —Vou obedecer à ordem de revista do patrão. — enfatizou.

       — Certo... o patrão ou o patrãozinho?

       — O senhor Dolejal.

       — Tem dois Dolejal agora, meu senhor. — olhou ao redor à procura de Bronson; não o encontrando, voltou-se para o tosco de cara amarrada: — Cadê o Bronson?

       — Não posso fornecer essa informação.

       Karen começou a rir.

       — O que está acontecendo nessa porra de fazenda? Abre a porteira logo e me deixa passar. Tenho livre acesso, meu querido, é só usar o rádio aí e dizer duas palavras mágicas: Karen Lisboa.

       O velhote nem se mexeu.

       — Ou a senhora desce para a revista ou a senhora cai fora daqui antes que eu me irrite.

       Ela apertou os lábios começando a se exasperar. O sol no lombo.

       — Acha mesmo que vou te dar o prazer de me apalpar, seu velho tarado? Pode tirando a mão da pistola que não vai chegar um centímetro perto dos meus peitos ou da minha bunda! E agora avisa o Bronson ou o seu patrão que estou aqui, e faça isso antes que eu desça do cavalo e do salto e te encha de porrada! — não elevou a voz, mas se cuspiu um pouco.

       — Olha, madame, se mulher maluca me assustasse, eu não tinha dado uma tunda na minha mãe. — falou sério, inabalável.

       — Idiota! Acabou de se foder de vez!

       — Só cumpro ordens do seu Franco e ninguém passa por essa porteira sem revista.

       Karen bufou.

       — Ele não é o patrão; é, no máximo, o patrãozinho, a sombra anã do dono de tudo. Duvido que o Thales aceite que ponham a mão nojenta em mim! Duvido!

       — Quem está no comando é o seu Franco.

       — No comando da segurança dessa porra de fazenda, animal burro! Quem manda em tudo e inclusive no Franco é o Thales. Chega! Olha só a magia da telefonia móvel — anunciou com sarcasmo, digitando os números do celular de quem ela esperava que resolvesse um probleminha não esperado.

       — Pode ligar até para a polícia. — zombou, o sem-noção, a cara fechada.

       Do outro lado da linha, sentado na cadeira estofada na sala refrigerada de seu escritório, Thales admirou o nome na tela do seu celular. Dois meses em silêncio. E ele somente a via rodando pela cidade com a lei e a ordem bem firme ao seu lado. Um casal ostensivo, Karen e Rodrigo.

       Podia se poupar e ignorá-la. Aguardou que após o terceiro toque, enfim, desistisse.

       Amor ou ódio, eles nunca desistiam.

       Atendeu e ouviu:

       — Thales, é o seguinte: tem um pistoleiro teu, aqui na Arco Verde, querendo me apalpar...

       Um minuto de silêncio.

       — Bom dia, Karen. Perdeu seu tempo indo à fazenda, estou no escritório do centro. — disse calmamente.

       — Vim falar com o Franco.

       — Por acaso não sabe onde a sua amiga Nova mora com ele? — enfatizou, sugestivamente.

       —Sei, sei muito bem. Vim tratar de negócios com o chefe da segurança, por isso a fazenda. Só que não consigo entrar, porque tem um tarado...

       — Karen...

       Ela esperou que ele prosseguisse. Lançou um olhar para o céu azul e fresco, que se aguentava firme até perto das duas da tarde, quando desabava água.

       — Thales?

       O velhote do bigode mantinha os olhos empapuçados grudados nela, como se esperasse pelo momento de rir de sua inocente tentativa de burlar as determinações do patrão.

       — Vai me deixar falando sozinha, é? — perguntou com impaciência.

       — O Franco tem as suas próprias regras. — disse, resoluto.

       —Ah, então é assim? Vai deixar um desconhecido me bolinar, é? Estou armada, sim, tenho comigo a Glock que você mesmo me deu...

       Ele a interrompeu:

       — Toda vez que precisa de mim, você afina a voz. Já percebeu isso, Karen? — havia um tom de divertimento na colocação.

       Ela quase riu. Só não o fez porque estava prestes a ter de se humilhar diante de um pistoleiro nojento e antipático que esperava justamente por esse momento. Bom, não custava nada tentar...

       — E adianta? — pediu com voz quase infantil.

       Thales fez um sinal para a secretária e, em seguida, pegou o telefone sem fio que ela o entregou.

       — Franco, libera a entrada da Karen sem a revista.

       — Que revista?

       Franco estava distraído, esperando que os pistoleiros da Lagosta do Brejo se ajeitassem nas cadeiras do pavilhão ocupado para a mobilização antes do ataque aos coronéis. Por um minuto ou dois, a palavra “revista” lhe pareceu algo relacionado à leitura. Nova enchia-o de livros e revistas o tempo inteiro e, às vezes, ele até sonhava com o que lia.

       — A Karen nunca é revistada, entendeu? Ela está armada e deve sair da fazenda da mesma forma que entrou. Ninguém toca um dedo sequer nela. — determinou, falando bem devagar, quase num tom de ameaça.

       O filho assimilou a informação. Fez um sinal para Paulo, o ruivo que fora transferido para a Lagosta do Brejo e voltara para participar da ofensiva, dar o recado ao homem da porteira. Depois, voltou a atenção para a ligação:

       — Resolvido, patrão.

       Thales devolveu o telefone à secretária, recostou-se na cadeira e tornou a falar com Karen, a voz arrastada de um irônico fastio:

       — O que você quer, você tem.

       Ela sorriu se sentindo muito bem ao ver o velhote emburrado, cedendo passagem para a sua entrada no reduto onde também dominava.

       — E assim não é bom para nós dois, Thales? — perguntou num tom que lembrava muito a sedução, a persuasão de quem impunha o domínio sobre um homem forte.

       — Sente prazer em conseguir tudo o que quer?

       Ela gemeu baixinho

       — Sim, muito.

       — Sente prazer em conseguir tudo o que quer de mim? — ele tragou o cigarro, prendendo a fumaça nos pulmões.

       — Por acaso aderiu ao sadomasoquismo? — ela debochou, indicando a Pre a sombra de uma figueira.

       Um riso áspero e rápido antecipou-se à resposta:

       — Talvez. Você é a minha única cicatriz que ainda sangra.

       Algo dentro dela foi surpreendido pela sinceridade dele e se manifestou como uma pressão no peito. Desmontou, o celular colado à orelha, os olhos turvos de um sentimento indefinível.

       — Não quero mais que sofra, Thales. Nem por mim nem por ninguém.

       — Vai à merda, Karen.

       Ele expulsou as palavras da boca, a raiva junto. E desligou.

       Ignorou os executivos que o acompanhavam na reunião. Alheio aos olhos fixos sobre sua figura na extremidade da mesa oval para dez lugares. Tamborilava os dedos devagar, o empresário do agronegócio que, desde a morte do avô, jamais tornara a sujar as mãos na terra, ainda que fossem as suas.

       Thales absorvia o amargor debaixo da língua, engolia-o, e a descida até o seu estômago queimava-o por dentro. Uma úlcera. Uma ferida chamada Karen Lisboa. E o remédio para a doença não era a ingestão de antiácidos.

       Levantou-se sem nada dizer e saiu da sala. Em dois meses, emagrecera sete quilos. O entendimento que perdera, além da batalha, a guerra inteira, a guerra que travava contra si mesmo por amar uma mulher canalha e a guerra por não tê-la reconquistado. 

       Decidiu retomar o que abandonara pouco depois do casamento de Franco. Havia algo a ser feito, um alvo para acertar e ferir. Alguém precisava receber a dor que ele sentia.

         

       Valéria contou novamente as cédulas; separou as de maior valor das de menor e as guardou no cofre do escritório.

       Por que a cidade estava boicotando o Vaca Louca?, perguntou-se preocupada. Tinha quase certeza de que não era por causa de uma das proprietárias, visto que Karen mal parava por lá. E quando resolvia aparecer...

       Havia tanta novidade para os mataranenses apreciarem. Doces e salgados cujas receitas atravessaram o oceano. Croissants, brioches, pães de todos os tipos e formatos. No entanto, na confeitaria de Rita havia filas para comprar o simplório pão francês.

       Encontrou vó Ninita cortando uma generosa fatia de torta para duas senhoras bem vestidas. E pelo o que percebeu, eram suas amigas companheiras de bingo. Servidas na mesa pela mais amável de suas funcionárias, as meninas da terceira idade antes de sorverem o chá gelado, testaram o sabor do limão com o chantili e o leite condensado. Sorriram ao mesmo tempo.

       Quando via no rosto de suas clientes pelo menos um pequeno esboço de prazer, sentia que o Vaca Louca tinha chance de ainda dar certo e superar a resistência da cidade. Oferecer algo de qualidade e original, sem parâmetros de comparação, era uma tarefa para os fortes. Esse pensamento acalentava sua alma, saber que trafegava pela estrada dos pioneiros, dos desbravadores, dos primeiros a começar — como a própria colonização de Matarana pelos demais brasileiros.

       Postou-se detrás do caixa e suspirou resignada. Folheou o caderno com a lista de pagamento dos seus fornecedores e balançou a cabeça. Karen teria de mexer na sua conta bancária pessoal novamente.

       Percebeu a entrada de uma nova cliente e ergueu o rosto com o melhor de seus sorrisos. A morena alta, corpo escultural e cheia de carnes como munição extra à beleza dos traços faciais bem marcados, pisou com suas botas sem fazer barulho. O chapéu com a aba puxada para frente foi ligeiramente empurrado para trás, porque ela averiguava o local com olhos que esquadrinhavam cada parte, canto, detendo-se aqui e ali, avaliando possibilidades e não deixando de ignorar as duas atendentes uniformizadas detrás do balcão dos doces, as clientes concentradas em levar o garfinho à boca entre um comentário com “hmmm” e outro e, por fim, a morena no caixa.

       Sustentou o olhar sério e perscrutador da cowgirl até perceber, atrás dela, a entrada daquele que fez os seus batimentos cardíacos dispararem. O coração batia tão forte, tão forte que ela o sentia no corpo inteiro e era como se ele tivesse criado braços e punhos e esmurrasse as costelas tentando afastá-las para ter mais espaço e explodir confortavelmente.

       Exagero ou não, Valéria cogitou um desagradável desmaio ao ver Thales entrar com todo o corpo grande e alto vestido no terno escuro e reduzindo o tamanho da confeitaria.

       — Conferido, patrão.

       — Obrigado, Virgínia. Aguarde-me lá fora que vou falar com uma velha amiga.

       Ele falou com os olhos postos na mulher que sentia um filete de suor descer do couro cabeludo para a nuca, fino, morno. Falava baixo e sereno, o homem de olhos azuis. A serenidade em ordenar e lhe causar arritmia cardíaca como um intruso que enlouquece o órgão que trabalha apenas para bombear o sangue e não para deflagrar emoções. Mas ele estava ali, parado no meio do recinto, com um esboço de sorriso no canto da boca e os olhos presos nos dela, escravizando-a.

       Tudo o que era certo, perdeu o rumo. Tudo o que era errado, encontrou-a de braços abertos. Tudo o que era medo, ela quis. E tentar fugir, uma distração para não se considerar. Sem saída, o peito explodindo de ar quente, inflado de angústia. Toda ela, da cabeça aos pés, descobriu que sentira saudade, tanta saudade que com receio de enlouquecer pela ausência, pela falta do veneno bom, do monstro nas veias, da melancolia que a tingia de azul e ternura, com receio de se pôr de joelhos ou de esmurrá-lo para deixá-la entrar na sua vida até os poros — tanta saudade sentira que a mente ocupou-se em não pensar nele.

       Agora vinha tudo à superfície.

       — Como está, Valéria?

       Ele estava mais magro, o que suavizava sua face. Discretos sulcos acima dos maxilares projetavam as maçãs do rosto e destacavam os olhos grandes, protegidos pelas pálpebras relaxadas e os cílios escuros e cumpridos.

       Tencionava responder o de praxe, um “tudo-bem” mecânico. Abriu a boca e saiu a respiração. Tanta coisa para falar e a falta das palavras. Desorientada. Dentro da sua mente, os pensamentos mais racionais, todos eles, corriam por labirintos de espelhos como ratinhos de laboratório. Desesperados por uma explicação lógica atiravam-se suicidas, os pensamentos e concepções de vida, do topo do cérebro, em queda livre, aterrissando nos braços protetores e traidores dos sentimentos.

       Ela descolou os lábios e ouviu a própria voz, saída debaixo do lençol, puxá-lo para perto:

       — Por que não veio antes?

       Não era para ter dito isso.

       Ele se aproximou, o queixo altivo, a atenção somente em quem o interessava no momento.

       — Tentei resistir.

       Talvez ainda não fosse o bastante, então ele completou com seriedade:

       — Você atiçou a minha curiosidade, Valéria, ao afirmar que era a mulher da minha vida. Não posso deixá-la impune, terá de cumprir essa ameaça.

       Ela sorriu um sorriso trêmulo e baixou a cabeça. A recordação da sensação da língua chupando a sua, a boca tomando-a com paixão e selvageria, o desejo. Sentiu as bochechas queimarem e as pernas tremerem. Não era vergonha, de forma alguma. Era vontade e por isso não podia enfrentá-lo naquela hora da tarde, com a atenção de Ninita e Veridiana voltada para ambos, com a segurança à porta, com o cheiro de baunilha e canela morna e todo aquele maluco amor falando por ela.

       — Quer um expresso?

       Tentou pular da ponte com paraquedas.

       — Quero. — ele respondeu concentrado nela. — Quero um expresso depois do jantar. Amanhã à noite. O Bronson irá buscá-la em sua casa às 20 horas.

       Ela o encarou com os olhos rasos de lágrimas.

       — Não posso continuar.

       — Não prenda os cabelos, Valéria. — sugeriu com um sorriso charmoso.

       —Não posso seguir em frente com você.

       Ele olhou ao redor, acenou discretamente com a cabeça para vó Ninita e fez menção de sair. Mas ficou. As mãos nos bolsos laterais da calça social meio que levantava a barra do paletó e também expunha o cinto preto de couro. A postura autoconfiante nada tinha de arrogância ou soberba; era a manifestação do carisma inato dos líderes, dos homens no comando, dos homens que nasciam para vencer e proteger.

       — Sinto falta de nossas conversas.

       — Eu também, mas... — ela balançou a cabeça, confusa. — Quando esquecer a Karen a gente volta a se ver, ok? Preciso cuidar de mim, não adianta fazer dieta e me entupir de problemas. — tentou sorrir.

       Thales alçou a sobrancelha, interrogativo.

       — Sou um problema?

       — E dos grandes.

       — Não me faça implorar, mulher. — pediu, a voz mansa e arrastada, um leve sorriso nos lábios, o convite.

       Ser forte era desprezar o que mais se queria.

       Olhou para ele e sorriu.

       — Vamos jantar, sim, Thales.

       Ela era a mulher mais frágil de Matarana. Se a vida fosse um filme de terror, Valéria seria a primeira a morrer, a que iria até o celeiro à noite para investigar um barulho.

       Talvez por isso fosse tão amiga da vodca. Amava o que poderia destruí-la.

       Ao volante da Silverado, Thales Dolejal permitiu-se sorrir. Devolveria a Rodrigo Malverde a sua irmãzinha aos pedaços.

         

       Franco terminou de falar e acendeu um cigarro. Diante de mais de quarenta pistoleiros era um verdadeiro milagre o silêncio que fazia naquele galpão de madeira com telhas de zinco e o sol ardendo sobre todos. Ele mesmo sentia o cabelo grudado nas têmporas e não via a hora de tirar a roupa e pular no Rio Verde.

       Voltou-se para o quadro branco e os seus garranchos expondo a estratégia com o pincel atômico preto, os rabiscos revelavam o posto de cada grupo de pistoleiros, a localização dos pontos estratégicos na Coração de Ouro e o posicionamento dos seguranças do coronel Marau.

       Franziu o cenho ao ver Karen e o seu chapéu à entrada. Obrigou-se a ir até ela que estranhamente parecia intimidada com o ambiente rústico, quente e cheio de homens.

       — O patrão não está na fazenda. — foi direto ao ponto.

       — Vim falar com você.

       Ele sorriu de leve e coçou o queixo, pensativo.

       — É mesmo? Não consigo imaginar um motivo para me procurar.

       Karen pôs as mãos nos bolsos traseiros do jeans. Com Franco não adiantaria qualquer joguinho.

       — Preciso de ação. Quero um lugar aqui, fazer parte da ofensiva contra o suíno, vingar o que fizeram contra o Rodrigo. É isso aí.

       — Olha ao redor, veio gente de tudo o que é lugar, não preciso de mais ninguém. — ele gostou de dizer isso.

       — O Thales disse que eu e você somos os seus melhores soldados. — atacou.

       — Nunca vi você lutando, dona. O que normalmente apronta é confusão, mas isso não tem nada a ver com valentia.

       — Não dificulta, Franco. — pediu.

       — Se está entediada procure o que fazer no salão paroquial ou na associação das mulheres entediadas, sei lá. — afirmou, dando de ombros, indiferente.

       — Ai, porra!, deixa de ser besta!

       —Deixa de ser besta você! — apontou o dedo para ela e continuou sem elevar a voz: — Não quero ter de cuidar da sua proteção. Saiba que se a mocinha entediada se foder, terei de prestar contas ao patrão, ao Rodrigo e à Nova.

       — Sei me cuidar!

       — Olha aqui, ô moscona, você foi já foi salva por mim e o Rodrigo e, depois, pelo Bronson. Isso já não prova que a senhorita mais atrapalha do que ajuda? — torceu o lábio com escárnio — A conversa termina por aqui, dê meia-volta e vá assar uns bolinhos.

       Karen conhecia o temperamento de Franco. Não adiantaria argumentar.

       — Sabe, tenho informações privilegiadas da polícia, podem ser úteis, não acha? — ainda assim tentou.

       Franco sorriu expondo os dentes alvos e as covinhas ao redor dos lábios.

       — Duvido que o delegado abra o jogo com você. Valeu pela tentativa, estou comovido com o seu desespero.

       — Não estou pedindo esmola ou penico, só quero fazer algo importante como os homens dessa merda de cidade fazem. Eu também tenho uma pistola, Franco, e bem grande.

       — Caramba, Karen, queria muito ter você ao meu lado metendo bala, mas não vou bater de frente com o Rodrigo. Tenho certeza absoluta de que ele é contra essa sua ideia maluca de ser homem mesmo sendo mulher. — debochou.

       — Me dá uma chance, porra! Sou melhor que a Virgínia. Pergunta pra ela, já dei um pau nela também.

       — Eu sei que sim... mas o que tem de forte também tem de inconsequente. — ele suspirou profundamente e coçou a cabeça depois de tirar o chapéu: — Por mim, levaria você comigo só para ter o prazer de ver você meter a mão nos caras sem piedade. É certo que odeia os homens. O problema é que tem dois deles que estão bem de olho em você, e eu não tenho saco para me meter em briga que não é minha. Se fosse minha mulher, Karen, estava é prenha em casa me esperando com a comida pronta e a banheira com coisinha cheirosa.

       Ela o olhou com desprezo.

       — Machista de merda.

       Ele riu com vontade, a cabeça deitada para trás, as mechas loiras e bagunçadas deixando à mostra o rosto quase feminino.

       — Não se preocupe que eu também faço a minha parte. — piscou o olho de forma significativa e mudou o rumo da conversa: — Preciso voltar ao trabalho, dona. Tenha uma boa-tarde.

       E deu-lhe as costas, o filho do Homem.

 

        Leonardo Marau conseguiu com facilidade distribuir a pasta de coca entre as bocas de fumo da Vila Zumbi. Em dois meses, tivera a habilidade de impor o seu domínio em Matarana como um eficiente fornecedor para a produção do óxi. A última carga, trazida da Bolívia clandestinamente por meio de um Cessna, foi empilhada em um dos pavilhões da Coração de Ouro para, poucos dias depois, ser espalhada pela região.

       Ele tirou os óculos escuros e os pendurou na abertura da camisa xadrez, os primeiros botões abertos logo abaixo da gola engomada. Entrou em um dos pavilhões, sendo seguido por dois de seus capangas, abriu e fechou duas portas antes de alcançar uma terceira, que foi destravada e aberta, quando ele girou a maçaneta.

       Parou com as mãos na cintura e admirou os tijolos prontos e preparados para partirem. Várias pilhas da mercadoria que, pouco a pouco, tornava-o mais rico. Milhões de reais em 345 kg de pasta de cocaína.  O próximo passo era tirar a polícia dos seus calcanhares.

       O delegado entrara na Coração de Ouro com mandado em punho, um agente com pavio  curto e seis policiais militares. O advogado da família atendeu-os prestativo enquanto tentava acalmar a ira do coronel. Para o dono da fazenda, a acusação de tentativa de homicídio contra o delegado era infundada, mais do que isso, era manipulada por Thales Dolejal — que, aos olhos do coronel, tinha a polícia civil de Matarana nas mãos.

       Leonardo permanecera ao lado do pai o tempo inteiro, omitindo-se de atuar como advogado para não supostamente desprestigiar Dr. Lourenço; além disso, como afirmou ao pai após a saída da polícia com as mãos abanando e nada de apreensão de picape usada em atentado, já que não a encontraram — ele ainda precisava passar pelo exame da OAB. O coronel anuiu, resignado. Perdera um bom momento para assistir à atuação do filho advogado impor-se ao delegado protegido por seu inimigo de anos.

       O executivo do narcotráfico, que jamais injetara droga na veia e tampouco fumara sequer um cigarro de maconha, se desviara de uma bala. Porém, sabia que havia outra arma engatilhada em sua direção. Rodrigo Malverde, durante a ofensiva policial, mirara seus olhos duramente nele. Não era coincidência que invadisse a fazenda logo após o assassinato de Vitorino, antecedido pela matança na Vila Zumbi, na boca de fumo mais tradicional da cidade. O delegado sabia sobre a sua ligação com Joaquim, o traficante morto. E começava a juntar as peças para montar o quadro da nova paisagem de Matarana. Provavelmente, encontrara pistas na cena do crime na Vila Zumbi que o levara a Vitorino...

       E depois?

       Leonardo tirou o chapéu e arou o cabelo curto com os dedos. Ele havia dado pouco tempo para Vitorino contar o que quer que fosse ao delegado. Poucas horas antes de receber o beijo da morte direto no tórax. Um de seus capangas, treinado pelo braço direito do coronel, eliminara habilmente o pistoleiro que, por não ter executado o delegado, acabara preso e morto.

       Agora, mais do que nunca, precisava do delegado. Debaixo da terra.

       Voltou-se ao sentir a presença de um de seus capangas.

       — O que foi, Francisco?

       O rapaz de origem alemã, cabelo quase branco e pele cor-de-rosa, descascada no nariz, respondeu o que não podia ser desconsiderado também como um aviso:

       — O coronel quer falar com o senhor. Ele está aqui por perto xeretando.

       O filho de Marau contraiu os lábios, irritado.

       O velho não aceitara muito bem que a decoração do escritório de advocacia do seu filho tivesse de esperar pela aquisição do registro da ordem dos advogados para funcionar. Exigira que ele retornasse o quanto antes à capital para providenciar o tal registro, fazendo a prova e, com certeza, sendo aprovado. Se não fosse a entrada intempestiva da polícia com a firme intenção de apreender a picape usada no primeiro atentado contra o delegado, na estrada vicinal, pouco antes da 163 e, seguido disso, a prisão e o assassinato do seu braço direito, o coronel não estaria tão atento aos passos de cada um na sua fazenda.

       Precisou esfriar a cabeça e aguardar alguns minutos no compartimento isolado dentro do pavilhão onde eram estocados os pesticidas.

       Sabia o que o seu pai queria. Respostas. Por que Vitorino fora preso? Quem o havia matado? Por que o delegado fora alvo de atentados? E por que o delegado tinha motivos para acreditar que a ordem partira da Coração de Ouro?

       Leonardo Marau não temia o seu pai de jeito nenhum. Não o temia porque sabia o que ele ainda “pretendia” saber. Por isso ajeitou o chapéu na cabeça e relançou um último olhar por sobre a sua mina de pó. Abriu e fechou todas as portas que separavam a vida bucólica da fazenda do submundo que o acolhera de braços abertos.

         

       O coronel Marau era um camarada das antigas, do tipo que colecionava certas crenças e ignorava tantas outras. Era preciso acreditar em alguma coisa na vida para poder seguir em frente, acreditar em alguém, acreditar na família, por exemplo. Bem, ele não apostava todas as suas fichas na filha, nos netos ou na inconveniente esposa; apostava, sim, hectares de terra no filho mais novo, seu filho homem. Leonardo Marau era a sua crença mais arraigada e o alvo de seu amor mais profundo.

       Ele catou do chão um punhado de capim, puxou-o da raiz como que com o gesto arrancasse cabelos de uma cabeça humana, com força, sangrando o couro. Observou o punhado verde na palma da mão. Nada justificava uma traição, uma mentira. O fruto não tinha o direito de envenenar a árvore. Ainda que o fruto fosse a razão vital da árvore aceitar a seiva singrando dentro de si, densa, essencial, como o amor de um pai pelo filho. O fruto não tinha o direito de macular a seiva para envenenar a árvore, apodrecer cada galho, minguar de vida o que nasceu para dominar o prado.

       Havia dois dias que o coronel refugiara-se em um quarto de hotel em Belo Quinto. A família pensava que ele estava na fazenda de Santa Fé. A família de fracassados que ele carregava nas costas. Precisara da reclusão para absorver o veneno, administrá-lo dentro do organismo a fim de fortalecê-lo em vez de matá-lo. A vontade de sucumbir era verdadeira ao ponto de levá-lo a um quarto de hotel depois de comprar raticida e depositá-lo sobre a mesa para ser usado antes de dormir, entre a oração e o fechar de olhos.

       O desgosto engrossara a saliva debaixo de sua língua e o seu corpo inteiro doía. Todo um amor desperdiçado. Anos de trabalho, dinheiro em vários bancos, negociatas e... Para quem deixaria o seu legado? Quem herdaria a sua terra?

       Olhou ao redor com os olhos embaçados. Um punhal entre as suas costelas, mal conseguia respirar. Um homem podia envelhecer e sedimentar a alma de calos que ainda assim era um merda iludido.

       Voltou-se ao ouvir passos atrás de si. Ele estava numa situação em que não podia dar às costas a quem quer que fosse.

       Viu o filho e, por um momento, olhou-o com carinho, um carinho profundo misturado com tristeza, talvez o mesmo sentimento, ainda que fugaz, desconcertante até, que o condenado à forca sente pelo seu algoz com o capuz. Então viu mais que um filho, viu um bebê que voltava da maternidade, uma criança que tentava caminhar e caía, que andava de bicicleta com rodinhas... Viu também que jamais o deixara cair uma segunda vez, o seu filho feito de ouro, a sua maior riqueza, o maior trunfo sobre o seu inimigo Thales Dolejal, que juntara da estrada o bastardo que tivera com uma prostituta. Viu o seu próprio filho sorrir ao encontrá-lo com um punhado de capim na mão, a terra deslizando-lhe pelos dedos, o torpor de um corpo sem ter porque se mexer. E o coronel tornou a ver o filho com olhos de pai e se sentiu pobre, o mais pobre de todos. Por mais que se esforçasse em acumular patrimônio e capital, jamais seria tão rico quanto Thales Dolejal, porque o bastardo que herdara os seus genes morrera por minutos para salvá-lo. Lealdade era o que dava base para o amor.

       Leonardo manteve o sorriso nos lábios ao se aproximar do pai. E o coronel perdeu anos de vida ao retribuir o sorriso, sabendo o que sabia. Engolindo a vontade de dizer que a faculdade de Direito era uma mentira, que o dinheiro enviado para a capital fora usado no Acre para a compra de entorpecentes e, se o delegado estivesse certo, assim como Thales Dolejal tinha um filho que não batia bem da cabeça mas que o amava acima de Deus, ele, Emílio Marau, tinha um filho traficante. E nada mais do que isso.

       Quando o coronel falou a voz saiu firme e baixa. Ele era um homem das antigas e resolvia os seus problemas de um jeito muito simples:

       — Eu devia ter deixado você cair mais vezes.

       O filho estreitou os olhos, intrigado.

       — O que foi, pai?

       O coronel fez um gesto com a cabeça para dois de seus pistoleiros, os mais velhos. Aproximaram-se como cobras ágeis para dar o bote, e cada um segurou um braço de Leonardo que, surpreso, não esboçou reação que não fosse a expressão interrogativa direta no progenitor.

       — O delegado me perguntou por que um traficante pé de chinelo da Vila Zumbi tinha telefonado para você pouco antes de morrer. Eu não soube responder. Você sabe, meu filho?

       Leonardo empalideceu.

       — O desgraçado estava blefando, pai, o filho da puta é pau-mandado do Dolejal. — argumentou.

       Dois camaradas segurando-o como se fosse um bandido pego em terras alheias. Ele sentia o suor gelado escorrer pela coluna.

       — Isso eu sei, mas o que me deixa encafifado é de onde ele tirou essa ideia, hein? — indagou, fingindo-se de sonso.

       Leonardo deixou-se ficar preso entre os pistoleiros. A reação partia do intelecto, do cérebro que corria a mil por hora deflagrando as respostas corretas.

       — Não conheço ninguém na Vila Zumbi, nem tive tempo de conhecer, pai. — ele suspirou pesadamente e completou, agora, num tom de quase pesar: — Não acredito que esteja desconfiando de mim. Não fui eu que me tornei viciado; foi o seu neto!

       — É, estou cercado por gente fraca mesmo. — considerou com amargura.— Se o delegado provar que o número do teu celular está registrado no telefone do defunto traficante, o que sugere que eu faça contigo, filho? — perguntou argutamente, sem esconder a dor.

       — Isso não vai acontecer, pai! O delegado está fazendo o jogo dele, nos pondo um contra o outro. É coisa do Dolejal, é armação dele. Nunca falei com traficante nenhum. — enfatizou, tentando não perder a linha.

       O coronel fitou o horizonte sentindo-se enojado de tudo. Dobrou o braço para trás e tirou da cintura, entre o cinto e a bombacha, a faca de cabo de madeira guardada dentro da bainha de couro. Voltou a sua atenção para a lâmina, pensativo, quase anestesiado depois de aguentar a overdose de decepção e infelicidade.

       — Precisamos dar um jeito nesse delegado, não é mesmo?

       Leonardo assentiu, os olhos cravados na faca.

       — Pelas vias legais não será possível, pai. — arriscou.

       O velho ergueu a cabeça e demonstrou o que lhe passava na alma.

       — Por quê?

       — O que alegaremos?

       — É você o advogado, não é?

       Ele queria que o filho assumisse o erro, pedisse perdão, inventasse uma justificativa qualquer, uma desculpa tola...

       Leonardo sorriu impondo-se uma segurança que estava longe de sentir.

       — Sim, meu pai, sou advogado, deixa comigo.

       O coronel aproximou a ponta da faca da bochecha esquerda do filho, descansando a lâmina sobre a pele nívea, quase junto à pálpebra inferior do olho claro e arregalado. O filete de suor deslizou pela têmpora e encontrou o aço inoxidável, umedecendo-o.

       Leonardo fechou os olhos ao sentir a lâmina rasgar a sua pele, a dor fina e aguda do corte. Segurou a respiração e tentou virar a cabeça para escapar.

       —Você tem de se redimir comigo, filho. — a voz grossa do coronel soou como um trovão.

       O homem que sempre lhe dera de tudo, agora cobrava.

       — Sou um bom filho. — murmurou.

       — Sim, um excelente filho, o melhor de todos. E eu sou o homem mais poderoso da região, sou o melhor de todos.

       — O senhor é o melhor pai que eu poderia ter.

       Eu te odeio, odeio, manipulador de merda! Vou tirar a tua fazenda, encher teus pavilhões de coca, pôr fogo nos teus grãos e te enterrar vivo.

       — Leonardo, quero que limpe qualquer vestígio de droga da minha fazenda! Não quero saber sobre essa sujeirada toda. Quero me manter longe dessa merda e só não vou te entregar para o delegado porque quero que faça ele desaparecer, entendeu? Se ele não desaparecer, terei de entregar você para a polícia. Não vejo alternativa. Você e o Vitorino fizeram muita merda às minhas costas.

       O coronel guardou a faca na bainha e deu o assunto por encerrado.

       Os pistoleiros soltaram o filho do coronel e receberam o olhar gelado dele. Postaram-se ao lado do patrão, sem deixarem de fitar o mais novo.

       — Eu já tentei matar duas vezes o delegado.

       — É mesmo? Então está faltando competência. Espero que tenha sucesso na terceira tentativa, pois terá apenas mais uma chance para acertar ele de jeito. — o tom era de ameaça.

       Leonardo procurou impor-se uma pose superior, natural, pôs os óculos escuros.

       — Os homens do Dolejal estão sempre por perto, isso também dificulta.

       — Não sabe pensar, meu filho? — perguntou o coronel, encarando-o com desdém. — Nada de emboscadas, ele escapa de todas, não é mesmo? Então simplesmente entra na casa dele e atira em quem ver pela frente.

       — É, parece bem simples. — debochou.

       — Os planos perfeitos são os mais simples. — retrucou o pai com um sorriso forçado. — Agora, vá com eles, precisam limpar a fazenda antes que a polícia faça isso por nós. — afirmou, fazendo um aceno com a cabeça para os pistoleiros.

       — Eu só queria aumentar o nosso poder na região, pai. — tentou se justificar com simulada humildade.

       — Claro, filho, aumentar o poder na região. — repetiu, sem fitá-lo.

       Leonardo foi escoltado pelos pistoleiros. Era fato que ele jamais mostraria o esconderijo da sua preciosa droga, da sua liberdade para todo o sempre. Levou-os onde guardava 15 tabletes de pasta de coca que, na manhã seguinte, seriam distribuídos em Belo Quinto. O problema era que os pistoleiros do seu pai não sabiam como tirar a droga da fazenda sem serem abordados pela polícia, que os vigiava para além da porteira e arames farpados que a cercavam. E, assim, a droga ficou na Coração de Ouro.

       À noite os mesmos pistoleiros foram com Leonardo para o descampado perto da pista de pouso desativada. Afirmaram que queriam se juntar a ele nesse novo empreendimento e o convenceram a levá-los até o local onde o Cessna aterrissara com o entorpecente vindo da Bolívia.

       O traficante que se passava por caubói, ainda que caubói de butique, não percebeu a manobra do seu velho pai. E foi lá mesmo, na pista de terra de chão batido, que ele foi espancado até desmaiar.

         

       Nova ajeitou o arranjo com margaridas miúdas no centro da mesa. Relançou um rápido olhar para o rapaz lendo o Jornal do Cerrado displicentemente sentado à mesa, ainda vestido com as roupas do trabalho. Franzia a testa concentrado na leitura, interessado em se manter a par dos eventos políticos e sociais da cidade. Franco tornara-se um leitor voraz, lia tudo que lhe era dado e, quando sem material, pedia indicações.

       Ele trouxera do restaurante lombo de porco assado, abacaxi caramelado e purê de maçã. Embalada em invólucros térmicos, dentro de sacolas de papelão personalizadas, o Arizona oferecia a melhor comida da região. A escolha do cardápio do jantar coubera a Nova que, com habilidade, investigara os gostos gastronômicos do sogro por meio de um rápido e eficiente interrogatório junto a Franco. Era incrível, ele sabia tudo sobre Thales Dolejal.

       Olhou mais uma vez para o marido e perguntou como quem não queria nada, descansando os talheres sobre a toalha de linho branco:

       ― Não vai tomar banho, amor lindo?

       Ela o viu sorrir sem desviar a atenção do jornal.

       ― Já lavei as mãos, dona.

       ― Não custa nada ficar bonitinho para o seu pai, é a primeira vez que ele vem jantar conosco.

       ― Bonitinho? ― perguntou num tom divertido, o jornal sendo abandonado sobre a mesa. ― Sou macho demais pra ficar “bonitinho”. Além disso, o patrão já me conhece, não preciso me enfeitar para ele, já consegui o emprego, Nova. ― brincou, levantando-se e deslizando a cadeira para debaixo da mesa.

       Chegando-se devagar até ela, como se movesse o corpo consciente de cada músculo que se definia debaixo da pele dourada, ele parou e puxou-a pela cintura, abraçando-a.

       ― Tenho ou não cheiro de macho?

       Delicioso.

       Ela bateu de leve no ombro dele, sorrindo.

       ― Só penso besteira quando me encosto em você.

       ― É?, que tipo de besteira, me diz. ― pediu com um sorrisinho malicioso.

       ― Prefiro não falar, acho que te assustaria. ― respondeu meio sem jeito.

       Ele se afastou o suficiente para poder encará-la nos olhos, direto e preciso. Ainda sorria ao perguntar:

       ― Olha bem com quem casou, senhora Dolejal.

       ― Sei, você não tem medo de nada e nada o assusta... bom, então... Ah, Franco, deixa pra lá.... Que mania irritante de me forçar a falar coisas que prefiro manter seguras dentro da cabeça.

       ― Não acredito que estamos casados, e você tem vergonha de falar sacanagem pra mim. ― afirmou de um jeito que misturava incredulidade com diversão. ― Pode falar tudo, Nova, sabe que gosto de escutar... O que é, hein? O que sente quando fica bem coladinha em mim, hã?

       Nova o encarou com uma seriedade que não combinava com a situação.

       ― Sinto vontade de cortá-lo em pedaços bem pequenos e depois engoli-lo todinho, cada parte de você. E, dentro de mim, te proteger de todos, não deixá-lo partir ou morrer jamais, ficar com você para sempre. Às vezes, porém, penso que o melhor seria retaliar o seu corpo inteiro e costurá-lo debaixo da minha pele, andar com você pela cidade, carregá-lo comigo até a minha morte.

       ― Jesus Cristo, Nova, que é isso? Está me assustando! ― exclamou, afastando-se dela e a olhando como se a visse pela primeira vez: ― Pensei que quisesse transar em público ou qualquer sacanagem barra pesada como... como... sei lá, transar enquanto dirijo, por exemplo... Mas isso!, porra, princesa, me comer de verdade!

       Ela juntou as mãos e estalou os dedos, num gesto de ansiedade, e disse quase num murmúrio:

       ― E não é só isso.

       Franco arou os cabelos com os dedos.

       ― Ai, ai, ai...

       ― Quando me abraça forte, me vem uma vontade quase incontrolável de entrar em você, atravessar a sua pele como um fantasma, sabe?, e me grudar entre as suas costelas, as minhas mãos apertando o seu coração para ajudá-lo a bater sempre forte... É, é isso que sinto quando enlouqueço um pouquinho sentindo o teu cheiro...Não sou totalmente certa da cabeça, Franco. Ninguém, é, viu?

       ― Aham, sei. ― ele coçou a nuca, confuso. ― Nunca senti essas coisas aí, não. Acho que sou um tipo de doido mais comum. ― em seguida, sorriu com ternura e tocou na bochecha dela: ― É por isso que quando te judio na cama você me morde todo?

       Ela escondeu o rosto com as mãos.

       ― Não fica assim, princesa, eu gosto, dói mas eu gosto. Casei com uma canibalzinha... ― completou rindo muito e puxando-a para si. ― Ei, olha pra mim, sou o homem ideal para ser comido.

       ― Para, Franco, não devia ter falado nada. Esse tipo de pensamento maluco a gente não fala, mas, é claro, você arranca confissões até dos mortos!― exclamou, resignada.

       ― Quer me comer, princesa?

       ― Pronto, agora vai debochar até o homem pisar na lua de novo.

       Ele a apertou entre os braços e beijou o topo de sua cabeça.

       ― Entendi o que falou, bobinha. Me assustou um pouco, você fala de um jeito tão sério. Mas sei que é outra coisa, que tem medo de me perder, de nos separarmos por algum motivo. Vou te dizer uma coisa, mas não é para parar de me morder, porque aprecio muito a sua violência na cama, ― disse, sorrindo de forma sedutora e emendou impondo-se seriedade: ― não tem de temer o que não vai acontecer, entendeu? Sei que é difícil acreditar que a vida nos dará trégua e viveremos um mar de rosas, como o Bronson fala... mar de rosas... que porra é essa não faço a mínima! Mas é verdade, a gente vai ainda levar muito nas guampas, princesa, e todos esses anos em que nós dois fomos rejeitados, de um jeito ou de outro, também pesarão na balança contra nós. É por isso que tem medo de me perder, porque já viveu essa perda quando foi rejeitada pelo doutor bunda mole e pelo seu ex-marido panaca. A Irene sempre diz que temos de olhar para frente, e ela entende das coisas. Outro dia, na fazenda, o Bronson me chamou e eu olhei pra trás, acabei pisando numa bosta recém-saída do forno. ― completou brincando e abraçando-a.

       ― Meu Deus do céu!, você é tão doce, Franco. ― ela sussurrou, emocionada, enfiando o nariz na camiseta dele.

       Ele riu baixinho.

       ― Bonitinho e doce...Que tal me chamar de loirinha linda, hein?

       O ronco suave da Silverado quebrou o encanto. Imediatamente os músculos de Franco se retesaram. No fundo, ele acreditava que o pai não apareceria para o jantar. Na última hora ele daria um desculpa qualquer para se ausentar. A vida não dava trégua mesmo, pensou, desvencilhando-se da mulher e preparando-se para o enfrentamento.

       Ela o seguiu, um dedo enfiado no cós do jeans dele, a curiosidade arregalando os seus olhos. Estava tensa, como sempre ficava diante do pai do seu marido, do patrão do homem que amava, do fazendeiro que mandava outros homens matar por ele.

       Ao abrir a porta e encontrá-lo saindo da picape, depois de determinar a Virgínia que voltasse com os demais pistoleiros para a Arco Verde, Franco já não sabia mais o que sentia recebendo à mesa, à mesa de sua casa, aquele que o rejeitara e o protegera na mesma medida. Observou a camionete com os pistoleiros se distanciarem até alcançar a rodovia federal e concentrou sua atenção, inclusive estreitando os olhos, na figura alta e imponente que caminhava sem pressa, com um leve sorriso nos lábios.

       Thales trazia uma pequena cesta de vime com laços lilases, um objeto um tanto feminino que contrastava com a roupa formal, a camisa azul-escura enfiada na calça jeans preta que escondia as botas de dois mil reais. O cabelo curto, ainda úmido, deixava à mostra o rosto escanhoado, a aparência de homem limpo, de quem parecia sempre acabar de sair do banho.

       Parou à entrada da casa e entregou a cesta ao filho. Antes, contudo, retirou um delicado buquê de rosas brancas e o entregou à nora.

       ―A Irene pediu para que entregasse esses doces para vocês. ― comentou com um esboço de sorriso e acrescentou sem modéstia: ― Mas as flores são minhas, Nova Dolejal.

       Ela não deixou de perceber a ênfase no sobrenome. Seria algum tipo de aviso? Uma antecipação do que ocorreria mais tarde? Fora ele, o sogro, que se convidara para o jantar. E nada que Thales fizesse fugia de uma programação objetiva. Era isso que deixava o marido tenso e vigilante.

       Tomou o buquê nas mãos e instintivamente o cheirou.

       ― Obrigada, senhor Dolejal. ― agradeceu com um sorriso leve, percebendo que ele alçava as sobrancelhas como se ela tivesse cometido algum lapso. E cometera. ― Oh, desculpa... Thales.

       Sentia-se estranha ao chamar o homem que um dia fora o seu chefe pelo primeiro nome. Mas era assim que ele determinara.

       Ele se voltou para o filho e pôs uma mão sobre seu ombro.

       ― Sua esposa passa o dia inteiro sozinha, aqui, no meio do mato, é mais seguro para os dois que morem na Arco Verde. ― afirmou com serenidade.

       Franco relançou um olhar avaliativo para Nova, deu de ombros e respondeu:

       ― Estamos bem, patrão.

       Thales não aceitava muito bem ser contrariado.

       ― Até a poeira assentar prefiro tê-los por perto.

       ― Poeira? ― Nova interrompeu, desconfiada.

       Falavam sobre Everaldo?

       Franco pôs as mãos nos bolsos do jeans e balançou a cabeça como que, com tal gesto, espantasse a importância da questão:

       ― Daqui a alguns dias, tudo estará terminado e a cidade limpa. Poderemos permanecer aqui, o quarto da Paola já está montado, não quero mais nenhuma mudança.

       Nova percebeu que o marido já demonstrava os primeiros sinais de filho, ou seja, começava a fazer birra. Interferiu na conversa, convidando o sogro para acompanhá-la até a cozinha. Ele pareceu aliviado pela sua interferência, esboçou um sorriso e deu às costas a Franco, que os seguiu com o cenho franzido, a expressão facial de quem aceitava ficar em segundo plano, ainda que contrariado.

       ― Nós terminamos ontem de decorar o quarto do bebê. ― começou Nova, indicando a cadeira na extremidade da mesa e emendando: ― Se o senhor... ah, desculpa, mas é tão difícil chamá-lo pelo nome.

       Thales sorriu, mas não se sentou na cadeira. Olhou ao redor e perguntou com interesse:

       ― Onde é o quarto do meu neto?

       ― Vou levá-lo até lá. ― providenciou Nova, satisfeita com o interesse de Thales.

       De longe, Franco acompanhava com as pálpebras semicerradas a movimentação do pai por sua casa, via-o analisando os móveis e objetos de decoração, avaliando a pintura nas paredes sem deixar de perceber as estrias do mofo no teto de alvenaria e, em passadas largas e lentas, avançava sobre o terreno que pertencia ao dono de uma agropecuária no centro da cidade. Era uma casinha de tijolo à vista, com quintal e árvores frutíferas à beira do Rio Verde. O aluguel era alto e a construção exigia manutenção que o proprietário pouco se importava em oferecer.

       O olhar crítico do latifundiário somente se suavizou ao parar diante da porta aberta do quarto infantil. Cortinas, berço, sofá e almofadas, tudo cor-de-rosa.

       Ele se voltou para Nova com a pergunta nos olhos, e coube a ela informá-lo:

       ― O Franco gosta de cor-de-rosa.

       O pai da criança, que se aproximava ainda emburrado, corrigiu-a:

       ― “Meninas” gostam de cor-de-rosa.

       Thales o encarou por um ou dois minutos.

       ― É um daqueles seus pressentimentos que nunca falham? ― ao vê-lo assentir, completou com interesse: ― O que mais pressente?

       Franco ponderou se deveria entrar naquela conversa. Era verdade que o patrão sabia sobre algumas de suas esquisitices desde que voltara do mundo dos mortos.

       ― Que terei três filhas. ― afirmou com serenidade.

       Mas não era aconselhável expor mais do que o necessário.

       Nova sorriu encantada.

       ― Terá comigo?

       Franco a olhou entre aturdido e zangado:

       ― E com quem mais seria? Com o Bronson?

       ― E você nunca erra?

       Thales respondeu pelo filho:

       ― Nunca errou. Acho que quando o coração do Franco parou de bater por alguns minutos, o seu cérebro acionou alguma área que desconhecemos. ― emendou, em seguida, dando de ombros: ― O que mais posso dizer?, que os mortos lhe deram o poder de enxergar para além da realidade?

       ― E me deram. Não tem nada estranho com o meu cérebro. ― resmungou Franco, completando com o olhar direto e atrevido no pai: ― E um menino. Teremos outro diabinho loiro na família Dolejal, patrão. Não sei se pretende juntar mais um desgraçado da estrada ou se encontrará outro bastardo que teve com suas acompanhantes de viagem, mas a verdade é que pressinto a chegada de um irmãozinho.

       A tranquilidade do fazendeiro não se alterou ao manter seus olhos na feição sorridente do filho, um sorriso sarcástico que o convidava a um leve embate, nada grave, apenas para polir as armaduras que, dia após dia, entre eles, perdia o metal da proteção. Estavam quase nus, pai e filho, tateando no escuro à procura do encontro.

       ― Não é de hoje que tenho o hábito de proteger os perdidos e os azarados; às vezes, cachorros com sarna e fome, outras vezes, pessoas desempregadas ou crianças abandonadas à própria sorte. Por isso acredito na sua previsão, Franco, e até gosto. Sinto falta de ter uma criança correndo pela fazenda, seguindo os pistoleiros e me imitando como se eu fosse o seu ídolo. ― havia um pingo de tristeza na sentença acrescida por um longo olhar interrogativo que implicitamente o inquiria: não sou mais o seu ídolo?

       Ele foi à raiz do drama, escavando com as mãos e retirando os entulhos que atrapalhavam a visão.

       Para Nova, aquilo era a mais clara e bonita declaração de amor. Thales acompanhara a vida de Franco na sua fazenda, observara-o de longe, educara-o como um pai mesmo no papel de patrão e agora também como um pai vivia a síndrome do ninho vazio e exibia os traços característicos do ressentimento típico dessa fase.

       Franco não conseguiu manter o sorriso nem o prazer do desafio. Aceitou o que ele disse como um golpe no estômago, o punho fechado, e teve de se encurvar para recebê-lo. Momentos como aquele eram únicos, ele o sabia.

       ― Você terá a chance de repetir essa experiência, é só substituir uma criança por outra. Mas fico pensando em como uma criança revive a experiência de ter um pai, depois que não é mais criança.

       A mágoa de Franco era visível em seus olhos úmidos.

       ― Se não é mais criança, não deve agir como tal. ― repreendeu-o com firmeza, mas sem deixar de usar um tom terno. ― Nunca escondi a sua importância para mim. O que quer mais?

       ― Nada, patrão. ― respondeu Franco, baixando a cabeça, constrangido pela repreensão.

       ― “Nada, patrão”?

       ― Sim, o senhor é o meu patrão.  ― afirmou o filho, entredentes.

       Thales riu um riso áspero e descrente

       ― Você é um Dolejal dos pés à cabeça, cheio de orgulho, ressentimento e raiva. ― virando-se para a nora, emendou: ― Já antecipo que precisará de muita paciência para criar o seu filho, aconselho-a a não mimá-lo como fiz com o meu.

       Ela relançou um olhar para o marido, que mantinha a cabeça baixa e os lábios constritos. Era a posição de obediência de um empregado, e não a de respeito de um filho.  Aquela relação afetiva era por demais confusa, mas não se podia negar a intensidade de todos os seus sentimentos.

       Afagou o ventre com carinho e sorriu, dizendo, em seguida, ao mais velho:

       ― Dentro do possível e de suas limitações emocionais, Thales, você criou e educou uma pessoa maravilhosa. O Franco é justo, leal e um marido perfeito, só tenho que agradecer a você por isso, muito obrigada.

       Pegou-os de surpresa, como bem reparou.

       Franco ergueu o rosto com um sorriso gentil, o reconhecimento de um elogio como o reconhecimento de uma missão cumprida. Determinado que estava em ser o melhor de todos para Nova, ouvi-la ratificar a sua intenção punha aquele sorriso no seu rosto.

       Thales meneou levemente a cabeça, tinha um ar divertido na expressão que se abria e o rejuvenescia anos.

       ― Obrigado, Nova. ― voltando-se para o filho, completou com suavidade: ― Talvez a minha parte na sua vida tenha sido a de te ensinar a se proteger sozinho e, inclusive, a se proteger de mim. ― deu de ombros e acrescentou um breve sorriso antes de afirmar, encarando-o nos olhos, sem desviar: ― Eu sempre soube que você me superaria, Franco. E é assim que tem de ser, porque foi criado para ser o melhor.

       Franco engoliu em seco, atônito. Para aonde ele estava indo? Que caminho, estratégia nova era aquela?

       Thales repetiu o gesto que costumava fazer quando precisava monopolizar a atenção do seu ex-segurança, pôs as mãos sobre os ombros de Franco e entrou na sua mente. Viu a si mesmo no olhar que misturava ansiedade e aturdimento e muito de esperança, aquele tipo de esperança que somente os mais desiludidos a possuíam. Era ele aquele olhar. Era ele aquele menino de 22 anos. Era dele aquele filho.

       ― O que se diz a alguém que se pôs no mundo quando descobre que o ama depois de ter planejado tirá-lo de sua vida? ― indagou com a voz baixa e serena.

       O silêncio que se seguiu pesou sobre eles. Apenas se ouviam os bichos lá fora, no meio do mato, agitados debaixo da lua.

       Discretamente, Nova saiu do quarto, o coração acelerado, as lágrimas borrando a maquiagem.

       A encomenda de seu assassinato nunca fora conversada, assim como o motivo que o levara a dormir com a mulher do seu pai. Franco considerou que, no final das contas, eles estavam quites.

       E ainda juntos.

       Ele refletiu sobre a pergunta por um tempo, separando cada sentimento como quando Nova separava os feijões bons dos bichados sobre a mesa da cozinha. Não queria que os sentimentos bichados estragassem o momento. Diante de si, a segunda pessoa que mais amava no mundo. E precisara de dez anos para conquistá-la.

       Tudo o que vinha de Franco era intenso e imprevisível. Ainda assim, Thales permaneceu imóvel, as mãos pousadas de forma possessiva sobre o ser que desafiava o monstro adormecido de sua alma com a dedicação de um revolucionário xiita, cego de amor pela causa, louco de dor por acreditar não ser correspondido.

       ―Todos nós cometemos erros, patrão. ― respondeu por fim, mal conseguindo extrair da garganta a voz.

       Thales retesou os maxilares.

       ― Olha para mim, Franco. ― ordenou, sério.

       Franco obedeceu-lhe e permaneceu à espera.

       ― O que diria ao seu filho?

       ― Não sei, patrão.

       ― Olha para mim, eu mandei!

       ― Estou olhando! Estou olhando, porra!

       Thales sacudiu-o pelos ombros com raiva:

       ― O que quer de mim, Franco? Por que você e a Karen nunca estão satisfeitos?

       ― Não sei, patrão. ― retrucou quase num sussurro.

       Enraivecido, Thales se desvencilhou do filho. Olhava-o com desprezo, contaminado pela impotência da não compreensão de todas as regras, alguém roubava no jogo, como sempre, alguém não dava a cara à tapa.

       ― O que VOCÊ quer de mim? Que eu me ponha de joelhos? Que eu arranque o meu coração e te dê? ― gritou Franco, descontrolado, vertendo lágrimas.

       Arou o cabelo com os dedos num gesto que revelava todo o seu nervosismo, a carga emocional que o enchia de energia; porém, naquele instante, aniquilava-o ao ponto de esmagá-lo contra o chão. Caiu de joelhos e escondeu o rosto com as mãos, chorando, os ombros se sacudiam em espasmos convulsos.

       O seu mundo sempre fora capenga; depois, Nova o consertou. E agora o pai voltava de uma longa viagem e trazia bombons nos bolsos. Chocolate não sustentava edificações.

       Thales detestava boa parte da humanidade...

       Ajoelhou-se diante do filho e admirou a beleza de um choro profundo. Tinha o poder de terminar com aquela dor em segundos. Qualquer gesto ou palavra. Contudo, preferiu somente olhar para o filho chorando como uma criança, uma criança largada no acostamento de uma rodovia. E foi apenas quando a criança ergueu os olhos molhados e avermelhados para ele, que se permitiu abandonar a contemplação do belo e agir, destruir uma situação para construir outra.

       Sorriu um sorriso de pai.

       ― Odeio quando me chama de patrão. Acho que assumir um filho não é apenas registrá-lo ou torná-lo o seu herdeiro, não é mesmo? ― indagou, a voz quase sumida. ― Assumir um filho é assumir a sua própria imortalidade, apesar de que pouco me importo com isso. O que me importa mesmo é saber se você me entende, se você entende que eu sou o seu pai, que você é o meu único filho e que amo você. O que acha disso tudo, Franco?

       Franco limpou as lágrimas com o dorso da mão e fungou. Sentia-se exaurido emocionalmente e, ao mesmo tempo, pleno e exultante. Não sabia o que falar. Não sabia como falar. Tanta vontade de poder amá-lo. Ficou imóvel, paralisado.

       Thales detestava boa parte da humanidade e a outra parte, nascera para proteger e cuidar.

       Puxou o filho para si, o braço enganchando-o pela nuca. Trouxe-o contra o seu peito, a fortaleza que recebia o jovem guerreiro de volta ao lar. Abraçou-o com força para que ele sentisse que jamais seria abandonado e que essa mesma força ele também a tinha no coração e nos genes.

       Franco tinha tanta fome daquele gesto, anos subnutrido ansiando o alimento, perto e longe de sua boca. Seus braços não acreditavam que aprisionavam em seu arco o corpo de sua origem e destino. Abraçou o pai e chorou, molhando a camisa dele.

       ― Desculpa. ― disse baixinho.

       Thales balançou a cabeça, sorrindo, e bagunçou desajeitadamente o cabelo do filho.

       Ninguém jamais separaria os Dolejal.

         

       Durante a estação chuvosa, à noite, o céu de Matarana era vibrante e profundo. Pontinhos brilhantes minavam o tecido de seda negro, tingindo a cidade de uma luminosidade diferente das luzes artificiais das casas e postes públicos. Vez ou outra era possível encontrar uma coruja sobre um muro ou torcendo e retorcendo seu pescoço no gramado de uma casa. Excluindo os humanos, tudo inspirava a paz naquela cidadezinha.

       Karen sorriu consigo mesma ao perceber que um par de olhinhos escuros, separados por um focinho longo e estreito, fitava à frente com bastante atenção, as orelhas apontadas em alerta, a postura rígida e imponente sentada entre ela e Rodrigo, que dirigia a picape. Bonnie se recuperara do tiro; mancava ligeiramente, mas nada que lhe tirasse a mobilidade. Mudança maior ocorrera por parte do seu dono e fiel parceiro. Rodrigo não a levava mais consigo para as diligências ou à delegacia. Todo o zelo e dedicação que dispensava ao seu bichinho de estimação ganharam, após o atentado, ares de excessiva proteção. A cadela dobermann agora se tornara um cãozinho doméstico que se refestelava à sombra das árvores e zanzava de um lado para outro tão-somente nos limites do pátio de casa, sem coleira.

       Esticou o braço para mudar de estação de rádio e esse movimento foi o suficiente para chamar a atenção de Bonnie. Abrindo e fechando a boca como se bocejasse, ela virou a cabeça em direção a Karen. Parecia que perguntava: “por acaso tem permissão para fuçar no que não é seu?’’ Karen, por sua vez, preferiu acariciar o pelo negro e sedoso da cadela e verificar a cicatrização do tiro acima da coxa. Estava tudo bem. Bichinho e dono se recuperando plenamente dos respectivos tiros. Pelo menos, do ponto de vista físico.

       ― Ah, não, mãe, nada de música de caipira, ― reclamou Johnny, no banco detrás, abaixando o livro que lia e entregando-lhe um CD, ― põe um som de verdade.

       Rodrigo riu e relanceou um olhar divertido, pelo retrovisor, para o enteado.

       Bonnie lambeu-se e virou a cabeça para o seu ídolo, lançando-lhe um longo olhar pedinte. Ela era por demais ciumenta, considerou Karen, ajeitando o CD no aparelho e pondo The  Turtles a rodar So  Happy  Together.

       Como o motorista não era insensível aos sentimentos alheios, puxou a cabeça da cadela para contra o seu peito, beijando-a no topo. A imensa dobermann derreteu-se toda com o carinho, dobrou as patas e deixou-se escorregar para as pernas do dono. Como era encorpada ficou praticamente empacada entre o peito de Rodrigo e o volante da picape, obstruindo parcialmente sua visão da rua.

       Karen puxou Bonnie com jeitinho. As duas tentavam estabelecer uma boa relação; a bem da verdade, apenas a namorada do delegado. A sua amiga de quatro patas não fazia concessões quanto ao amor de sua vida. Assim, bastava um belo rosnado para pôr a mulher que também usava chapéu de caubói no seu devido lugar. Por respeito ou medo, Karen não se metia com Bonnie e a última, cheia de si, se tornava dia após dia mais espaçosa.

       ― Não acha que é meio perigoso nos expormos em público? ― ela considerou, prestando atenção na expressão facial do delegado que sempre era bastante reveladora.

       Era uma boa questão aquela. O delegado havia convidado a família para um passeio no centro, tomarem um sorvete, se refrescarem e curtirem a noite como qualquer família normal. Ele forçava uma normalidade longe do que lhes acontecera havia pouco tempo. Era verdade que o principal suspeito dos atentados fora assassinado dentro da delegacia, embora Vitorino tenha sido mero executor de um plano elaborado por alguém mais importante e, infelizmente, vivo e livre pela cidade.

       Tentou sorrir para imprimir ao gesto leveza. Tencionava amenizar a conotação dramática da situação.

       ― Temos de seguir com nossas vidas, Karen.  Quando o Vitorino foi morto, percebi que os Marau pisaram no freio, talvez tentem outra manobra, mas ainda é cedo. Além disso, daqui a dois dias fecharemos o cerco na Vila Zumbi, enquanto uma força-tarefa do Ministério do Trabalho com a Polícia Federal inspeciona as fazendas menores do coronel. Com uma cajadada só daremos fim ao tráfico de óxi e ao trabalho escravo.

       Ela notou o quanto ele estava confiante no sucesso da empreitada. Atingiriam o coronel Marau por todos os flancos.

       Será que a polícia também sabia sobre a invasão dos pistoleiros da Arco Verde? Era provável que não. Um tipo de ofensiva que jamais teria a conivência do delegado. O que Thales queria com a Coração de Ouro? E o que faria invadindo uma propriedade privada? A intenção era a de matar o coronel? Não, não era essa.

       ― E quanto a Coração de Ouro? ― perguntou, vendo-o manobrar para estacionar diante da sorveteria com mesinhas brancas na calçada e no seu interior envidraçado.

       Ele girou a chave na ignição desligando o motor da camionete. Alçou uma sobrancelha demonstrando com o ricto o aturdimento quanto à pergunta. Virou-se para a namorada com um esboço de sorriso meio debochado:

       ― É um tanto curioso mencionar a Coração de Ouro, Karen, mas acho que essa fazenda não é do interesse nem da polícia nem de qualquer órgão do governo. Entretanto, ― ele fez uma breve pausa desferindo-lhe um olhar penetrante: ― é do interesse do Dolejal, não é mesmo? Aliás, eu soube também que ele está comprando briga com o coronel Rodrigues e isso significa que quer se tornar de fato o dono de tudo, o rei do cerrado.

       Karen sorriu sem jeito.

       ― Bem, ele sempre fez propaganda de ser o segundo homem mais rico da região, ainda que fosse o primeiro. Acho que já está na hora de acabarmos com esses coronéis todos e aceitarmos os novos tempos, e é o que os Dolejal significam.

       ― Até pouco tempo você era capaz de atirar na cabeça do Thales. ― comentou com franqueza, ainda mantendo um sorriso preguiçoso nos lábios. ― E agora o defende como se ele fosse Bruce Wayne e Matarana uma Gotham City da vida.

       Johnny gargalhou no banco detrás, e Bonnie ocupou-se em quase quebrar o pescoço para ver o que acontecia com o guri.

       ― Todo mundo quer se sentir protegido, Rodrigo.

       Não foi da boca de Karen que a afirmação partiu. O tom era casual e até brincalhão, Johnny também vivia no mesmo mundo que os adultos.

       Rodrigo obrigou-se a relevar o assunto, ainda mais que a participação do enteado como defensor de Thales não lhe caía bem no estômago.

       Saiu da picape aguardando que Bonnie fizesse o mesmo. Depois circundou a camionete e abriu a porta do passageiro enquanto via Johnny descer com um sorrisinho divertido nos lábios. Ele tinha a personalidade da mãe, porém com a leveza e o bom humor típicos da idade.

       Quando bateu a porta atrás da namorada, aproveitou para puxá-la pela cintura e apertá-la entre os seus braços. Foi recebido com o calor de um corpo forte e preparado para amá-lo todas as noites. Ele não se cansava de ajeitar a mecha revolta do seu cabelo para detrás da orelha, cheirá-la na dobra do pescoço, trazê-la para perto de si, grudá-la feito velcro na sua camisa, o calor de um corpo alcançando o outro, os poros se enchendo da umidade de cada um sem distingui-los, sem separá-los.

       Afastou o suficiente para sorrir e acrescentar ao sorriso a sentença fria e direta:

       ― Não quero mais que vá à Arco Verde sem mim.

       Karen tentou manter a expressão de encanto e apaixonamento no rosto, ainda estava meio tocada pela delicadeza do namorado, os seus carinhos de seda e a sua masculinidade de macho alfa que tirava seus pés do chão. Por isso sentiu como se tivesse enfiado o dedo numa tomada de 220 volts.

       ― Quê?! Não entendi. ― só conseguiu balbuciar.

       Qual fora a última vez que um homem determinara as pisadas de suas botas?

       ― Preciso repetir? ― ele não sorria mais e o seu tom também deixara de ser gentil. ― Quando foi morar comigo tomou uma decisão, não acho que pega bem essa história de livre acesso à fazenda do teu ex e, antes que pense que sou moralista, acho que não pega bem é para mim, que sou o seu homem agora.

       ― Por acaso está tentando me pôr o cabresto?

       Ele estreitou os olhos perigosamente, visto que o lampejo de sarcasmo na pergunta irritava-o sobremaneira:

       ― Parece que a única linguagem que você conhece é a da imposição, e eu não sou como o Thales que te deixava livre pelo prado, comigo a conversa é bem outra, madame.

       Karen levantou o queixo com altivez, incapaz de acreditar que Rodrigo tentava se impor a ela.

       ― Não devia falar nesses termos comigo.

       ― É mesmo? O que vai fazer? Correr para Arco Verde pedir emprego? Qual será a próxima desculpa que usará para rever o teu ex-amante?

       Um nó bem apertado na garganta e na boca do estômago, era o que ela sentia ao vê-lo zangado, falando baixo, tão baixo que parecia soquear as palavras entre os dentes.

       ― Fui para falar com o Franco.

       ― Eu sei, foi ele mesmo que me contou sobre sua visita intempestiva. Saiba que mais um pobre coitado foi demitido por sua causa... ― ele arou o cabelo num gesto que denunciava sua tentativa de restabelecer seu autocontrole. ― Sabe, Karen, o poder que tem sobre o Thales ainda vai destruir outras pessoas.

       ― Não tenho culpa, ele é viciado em destruição, não posso fazer nada. ― justificou-se nervosa. ― Sinto muito pelo velhote da guarita. Que merda!Posso falar com o...

       ― Não, chega de falar com o Thales! Será que não entende? Antes sentia um ódio mortal e agora é a sua mais forte aliada. Será que não percebe que de um jeito ou de outro você arranja um modo de se ligar a ele?

       Johnny se enfiou entre os dois, de costas para a mãe e olhando diretamente para o padrasto, sério.

       ― A gente não veio se divertir? Se é para bancar o xerifão em tempo integral, eu e a mãe vamos assaltar um banco e aí, sim, será divertido.

       Rodrigo suspirou resignado, fitou as próprias botas e retornou o olhar ao garoto. Bagunçou o cabelo dele com um sorriso sem graça.

       ― Tem toda a razão, Johnny. ― voltando-se para Karen, pegou sua mão entrelaçando os dedos e melou a voz já arrastada e sedutora: ― É verdade, a gente veio se divertir, meu amor. Percebeu a ênfase no “meu”, né? ― brincou, piscando o olho com charme.

       Ela ainda não estava certa se deveria baixar a guarda e aceitar aquela mudança de atitude tão rápida e influenciada pela intervenção do filho. Rodrigo era doido por Johnny e fazia de tudo para desempenhar o papel de pai, assim como o fazia com a sobrinha. Ele interrompera a conversa que os levariam a uma boa briga. Contudo, evitara ir mais longe por causa do enteado e da sua imagem diante dele. O assunto estava no ar, respirava junto com os dois, e o assunto ainda era Thales Dolejal.

       Ao afastar a cadeira para Karen sentar, ele roçou os lábios em seu cabelo e confiscou-lhe brevemente o lóbulo da orelha entre os dentes. Em seguida, sentou-se diante dela, a aba do chapéu meio abaixada mostrava parte de seus olhos cor de mel e expunha os maxilares retesados com pontos da barba de um dia.

       Ela não sorriu o resto da noite, tampouco foi indelicada ou rabugenta. Conversou com o filho sobre as provas finais e a perspectiva de ingressar no último ano do ensino médio aos 16 anos. “Grande bosta, mãe”, comentara Johnny sem muito interesse e dando fim no seu sundae com calda de caramelo. Para Rodrigo ela endereçou palavras amenas e floridas, sem cores vibrantes, o suficiente para agradá-lo na medida certa. Não queria se meter em outra discussão e estragar a noite de Johnny. Em breve começaria a famigerada terapia de casal proposta pelo namorado. Aliás, como Karen reparou, não fora proposta por Rodrigo; fora, isso sim, imposta por ele.

       Fitou-o fundo nos olhos. Ele aceitou o convite para ser investigado, interrogado em silêncio. O rosto bonito, a postura autoconfiante e tranquila, a boca num sorriso que transmitia calor e desafio. Como jamais percebera essa característica que a cada dia despontava dominante na personalidade dele? O que a fizera fechar os olhos para isso? O amor profundo? O desejo sexual intenso? O carisma à prova de balas? Rodrigo Malverde era mandão, um legítimo e enervante mandão.

       Engoliu o creme gelado sem desviar seus olhos dos dele, que aguardavam uma decisão.

       Karen desacreditou em si mesma. O que estava acontecendo com ela? Tantas vezes batera de frente com os homens e agora fugia da briga como uma covarde... Ou como alguém que tinha muito a perder.

       Sorriu para o seu namorado, e ele retribuiu o gesto, um sorriso calmo de quem já sabia que ela decidira nunca mais entrar na Arco Verde sem ele.

       Ao chegar em casa, ela abriu o registro do chuveiro, o jato de água morna caía fazendo barulho contra o piso azulejado,  digitou no celular os números que sabia de cor. 

       A voz do outro lado da linha era baixa e distraída.

       ― Hmm, fala!

       ― Você precisa saber que daqui a dois dias a polícia estará bastante ocupada na Vila Zumbi, sugiro então que aproveitem a oportunidade.

       ― Preciso agradecer? ― a pergunta foi feita num resmungo.

       ― Não, não precisa, só quero que ele saiba que a minha lealdade é para sempre. Pode dizer isso a ele, Franco?

       ― Ele está aqui na minha frente agora, posso passar o telefone e...

       Karen desligou.

         

       Franco depositou o celular sobre a mesa, avaliando criticamente a informação recebida, uma valiosa informação, por sinal. Sentiu o olhar do pai sobre si à espera que revelasse o teor da conversa com Karen.

       ― Era ela, não era? ― Thales perguntou, a serenidade de quem dominava alguns signos do universo.

       ― Pois é, nada como uma ajudinha dos amigos. ― disse Franco dando de ombros; depois, sorveu a cerveja e passou o recado adiante: ― Ela mandou dizer também que sempre será leal ao senhor.

       Thales levou à boca o garfo com o purê de maçã, degustando-o sem pressa, entretido na vazão profunda de seus pensamentos. Cortou uma lâmina fina do lombo de porco no seu prato cobrindo-o com uma fatia de abacaxi caramelado, pedaços pequenos e o gesto quase de enfado ao ter o talher e a comida sobre a língua. Tinha a doçura e a acidez na boca. E eram esses os sabores dos sentimentos que alcançavam mas não atingiam Karen Lisboa.

       ― Ela só é leal a si mesma. ― comentou o fazendeiro como se pensasse alto.

       Nova e Franco se entreolharam.

       ― O que pretendem fazer na Coração de Ouro? ― perguntou ansiosa a mulher de Franco.

       E foi ele próprio que respondeu, depois de limpar a boca no guardanapo.

       ― Ah, a gente vai dar um susto no coronel, só isso. Vamos apenas mostrar o nosso... digamos, poder de fogo, princesa. Ele não pode achar que atirando contra o nosso delegado não vai também levar chumbo na bunda. ― completou, rindo bem feliz da vida.

       ― Meu Deus, Franco, o assunto é sério! Aquela fazenda é minada de pistoleiros armados, e eles com certeza vão revidar.

       ― Quarenta contra quinze, Nova, o coronel está frito.

       Nova voltou sua atenção ao membro mais velho da família.

       ― Invadir uma propriedade privada é crime.

       Thales ergueu o cálice com o vinho branco gelado e sorveu-o sem esboçar reação. Ao terminar com a última gota da bebida, procurou acalmar a nora exalando a própria calma ao falar:

       ― Não será uma invasão. Vamos apenas entrar na Coração de Ouro. Para falar a verdade, eu devo uma visita ao coronel, não é mesmo, Franco?

       Os Dolejal trocaram olhares cúmplices e maldosos, e Nova sentiu um fio gelado percorrer-lhe a coluna.

       ― É, pai, uma visitinha.

       Eles eram iguais, Nova não pôde deixar de notar.

       Mordeu o lábio inferior, indecisa. Queria entrar em um determinado assunto com a mesma coragem que eles entrariam na Coração de Ouro. Confrontar o marido era uma atitude arriscada, Franco oscilava emocionalmente entre os extremos. Por outro lado, enfrentar um homem maduro, experiente, que controlava com habilidade as emoções parecia ainda menos indicado. Ela era agora a garota da família, a única mulher Dolejal, e precisava tirar proveito dessa situação, e não pô-los contra si, na defensiva.

       O problema era que a voz continuava a sussurrar ao ouvido...

       ― Por que o Bronson apareceu no cinema?

       Ela olhou para Franco sem piscar, o coração acelerado, o sangue subindo ao rosto. Esperou que ele a fuzilasse com o olhar, não sabia por que reagiria assim, mas foi tudo o que ela esperou dele. Mas Franco apenas parou de mastigar e ficou fitando o vazio a sua frente, imóvel.

       Coube a Thales interferir com secura:

       ― Você é uma Dolejal, senhorita Monteiro?

       A pergunta dúbia desarmou-a.

       ― Minha família é a Dolejal. ― afirmou com convicção, observando de esguelha a estranha imobilidade do marido.

       Franco gemia por dentro um gemido de aflição. Agulhas em sua pele não doíam tanto quanto a possibilidade de Nova saber o que havia acontecido no banheiro do cinema. Ele seria abandonado mais uma vez.

       Thales ajeitou-se confortavelmente na cadeira e se permitiu um sorriso, mirando com atenção a expressão ansiosa da mulher à sua frente:

       ― Antes de vir para cá, vi a sua filha. É emocionante ver uma criança se formar, um ser humano se desenvolver para poder enfim nascer nessa terra que herdamos dos nossos pais. A filha do meu único filho, o meu herdeiro. Quero o melhor para os meus netos, cuidar do futuro deles e limpar a cidade de toda a maldade. A maior riqueza que alguém pode deixar aos seus é oferecer proteção e conforto, um lugar bom para se viver, um lugar sem criminosos, um lugar limpo. Claro que para se fazer uma boa faxina temos de eventualmente sujar as mãos, não é mesmo, Nova? Talvez você não me entenda, já que nunca deve ter feito uma faxina na vida, mas outros devem tê-la feito por você. Alguém sujou feio as mãos para livrá-la de todo o mal, para que você também não se sujasse ou pior que isso...morresse. ― ele descansou os antebraços sobre a mesa e avançou parte do corpo de forma ameaçadora: ― Para ser uma legítima Dolejal é preciso amar de forma incondicional na limpeza e na sujeira, no certo e no errado, até que a morte dos nossos inimigos nos separe deles, amém. Entendeu, Nova? ― indagou por fim com sutileza.

       Em nenhum momento ele deixou de encará-la com um desafio seco e bruto nos olhos, olhos de predador, olhos de quem recolhe almas pelo caminho.

       Ela sentiu medo, desde sempre sentira medo dele. A confissão de seus crimes. Uma família de criminosos. Ela amava um criminoso, Franco talvez até fosse um assassino frio e cruel. Instintivamente, levou a mão ao ventre e voltou-se para o marido. Ele olhava para ela, o rosto branco de cera, os lábios ressecados, a expectativa angustiante da espera.

       Franco estava em pânico, porque também tinha medo. Nova percebeu que ele tinha medo dela, o que era impossível de se acreditar. Franco com medo? E foi por causa desse medo, refletido em todo o seu rosto e corpo imóveis, que ela descobriu que o marido matara alguém no banheiro do cinema e Bronson fora apenas o faxineiro.

       Ouviu um barulho de vidro quebrado. Olhou ao redor, nada caiu. Alguém atirara uma pedra contra os vidros que a protegiam do mundo, a redoma que criara para viver com Franco, a redoma dentro da sua cabeça, a redoma estava quebrada.

         

       Com a ponta do dedo Karen desenhava um coração no azulejo da parede, a flecha partia-o ao meio em direção ao infinito, uma dezena de ladrilhos acima. Desmanchou o desenho com a palma da mão aberta e se pôs debaixo da ducha morna. O jato forte batia contra os seus ombros, os músculos tensionados. Fechou os olhos e se imaginou tragada para o interior de uma cachoeira, ergueu a face para o chuveiro e parou de respirar. E por não conseguir aspirar o cheiro que conhecia desde que apertara pela primeira vez a sua mão, assustou-se ao ver Rodrigo tão perto, à entrada da porta de correr do boxe, vestido e sem chapéu, olhando para ela como sempre o fazia quando a amava sem tocá-la. Era um modo diferente de ser olhada, as pálpebras semicerradas, o brilho de admiração e placidez no olhar, o esboço de um sorriso gentil. Ninguém a olhava daquela maneira, como se falasse com os olhos “Você é perfeita”.

       Esperou que tirasse a roupa e a acompanhasse no banho. Uma prática bastante comum entre os dois, o banho juntos antes da cama; o banho juntos depois do amor. Mas Rodrigo não fez qualquer menção de despir-se, e Karen estreitou as sobrancelhas não o compreendendo. Com um sorriso charmoso, que deveria servir como resposta, ele estendeu o braço e pegou o frasco com o xampu.

       ― Vou cuidar de você, mimá-la um pouco. ― disse numa voz arrastada e baixa, um afago aos seus ouvidos.

       Ela ficou sem jeito. Tudo o que ele mais fazia era cuidar dela. Ameaçou dizer que já estava na hora de ela cuidar dele, ainda que a sua intenção fosse para, além disso, protegê-lo. Entretanto, ele antecipou-se a qualquer objeção:

       ― Fui grosso ainda há pouco e quero me redimir. ― assumiu com simplicidade, derramando o creme por sobre o cabelo dela. ― Estou errando na medida, eu sei; às vezes sou molenga demais e outras...um legítimo troglodita.

       Ela riu e balançou a cabeça em negativo.

       ― Nunca esteve nem perto de se parecer com um troglodita.

       ― É mesmo? ― perguntou, alçando uma sobrancelha e emendando com um sorrisinho: ― Então cala a boca e se vira para eu poder lavar o seu cabelo.

       ― Seu troglodita! ― xingou, divertindo-se com o jeitão dele.

       Rodrigo devolveu o sorriso e postou-se um passo adiante para o interior do cubículo de acrílico, as pontas das botas recebendo os respingos da água.

       ― Por que não entra e me acompanha?

       ― Acho que o sexo pode esperar um pouco, não é? ― ele acariciou o couro cabeludo devagar, aumentando o volume da espuma e acrescentou com ternura: ― A vontade agora é de fazer carinho na minha amiga de longa data.

       Ela se virou para olhá-lo, um fio de espuma deslizou na sua testa, e Rodrigo aparou-o antes de entrar nos olhos dela. Um gesto que resumia tudo o que ele sempre fizera por ela.

       Incapaz de falar, Karen apenas se deixou ser ensaboada em cada parte do corpo que se abria e umedecia para recebê-lo. Mas ele não entrou. Limpou-a da poeira da rua, dos olhares maledicentes, da fuligem dos carros e do cansaço do cotidiano. Depois, pegou sua mão para sair do boxe e secou o seu corpo com a toalha.

       Segurou-se nos ombros do homem que secava o seu corpo como se ela fosse uma criança. Todo o erotismo, inato à personalidade dele, estava no gesto de simplesmente cuidar dela. E foi com cuidado que a envolveu no robe e a pegou no colo.

       Era tarde, e todos estavam enfiados em seus quartos. O som da televisão no quarto de Val era o único que denunciava a presença de gente acordada na casa. Ela não conseguia dormir. Os outros brigavam com zumbis no computador, com amigos pelo Facebook ou com Deus durante as orações.

       Rodrigo passou pelo corredor na semiescuridão, entrou no quarto e a deitou sobre a cama. Havia apenas o lençol e os dois travesseiros, a colcha retirada e dobrada sobre a cômoda. A luz do abajur sobre o criado-mudo e o aparelho de som ligado, nenhuma música.

       Entre o banheiro e a cama, ela pousou a cabeça contra o tórax dele, os primeiros botões da camisa abertos, o cheiro da colônia masculina misturada ao seu odor natural, tépido, ao cheiro estonteante de homem moreno. Todavia, antes de deitar a cabeça e ouvir os batimentos cardíacos dele, esfregou a bochecha no cavanhaque ralo e no maxilar com pontos de barba, que lhe arranharam a pele de forma prazerosa, como quando roçavam na pele fina entre suas coxas. Baixando a cabeça sem desviar do seu caminho, ele encaixou o lábio inferior entre os seus lábios, um sorriso nos olhos.

       Na cama de Rodrigo. Deitada de costas e vendo-o movimentar-se pelo quarto, a porta trancada. A aproximação até o aparelho de som, a escolha do disco, o posicionamento da agulha de brilhante sobre a faixa escolhida e o início da viagem.

       Ele se virou e falou numa voz macia quase um ronrono:

       ― Me acompanha numa cavalgada?

       Ela gemeu baixinho em resposta.

       Viu-o então abrindo a camisa, soltando cada botão com vagar até arrancá-la do tronco e jogá-la em qualquer parte. Depois, ele parou. Nada mais foi retirado, nem mesmo os olhos dos olhos dela que, encantada, respirava mais rápido e fundo, a expectativa arrebatando-a em cheio.

       A década de 70 alcançou-os, e Roberto Carlos contou que cavalgaria por toda a noite por uma estrada colorida, enquanto Rodrigo sentava na beirada da cama e encurvava-se ligeiramente para retirar algo da gaveta do criado-mudo. Um pacote pequeno, decorado com laços dourados, uma embalagem bastante feminina.

       Karen se ajeitou sobre os cotovelos, seduzida pela música altamente erótica que enchia de luxúria o ambiente e interessada no embrulho que era aberto sem perícia. Vasculhou a feição masculina, ele se concentrava em desvendar o mistério dos laços. Ela o ajudou, e recebeu como pagamento um beijo na boca, a mão enganchada na sua nuca pressionando-lhe a cabeça. Ao abrir os olhos, encontrou-o de pose de uma atração.

       Ele se virou e comentou com naturalidade:

       ― Frutas vermelhas. Eu, bem... ― deu de ombros meio sem jeito ― nunca comprei essas coisas femininas.

       A embalagem de uma marca famosa revelava que o creme para o corpo fora comprado fora de Matarana. Imaginá-lo entrando em uma perfumaria de chapéu, botas e distintivo, o coldre da Glock visível no cós frontal do jeans à procura de um hidratante para a pele era, no mínimo, uma visão interessante.

       ― A Val te ajudou? ― sondou com um esboço de sorriso.

       Ele fez que não com a cabeça.

       ― A Jasmine tinha um igual?

       Repetindo o gesto, acrescentou a título de informação:

       ― Quer saber a história do creme? ― perguntou, enquanto depositava sobre a própria mão a substância branca. Friccionou-a no abdômen dela devagar após afastar a abertura do robe, e continuou, os olhos ocupados na tarefa que desempenhava: ― Uma noite fiquei até tarde na delegacia, foi antes dos atentados, então não tinha muita aporrinhação além do caso do Teobaldo. Eu até deveria estar pensando no corretor assassinado, mas não conseguia parar de pensar na vontade de estar com você e de me tornar um dia o seu porto seguro, o seu caminho de volta. Não tenho uma cidade inteira para oferecer nem uma fazenda ou um sobrenome que abra portas e isso até pouco tempo me incomodava...

       Ela o interrompeu fazendo menção em se levantar para calá-lo, mas ao fazê-lo, Rodrigo pôs dois dedos sobre os seus lábios e continuou com brandura:

       ― Sei o que me dirá, sei quem é você e que tipo de mulher representa. Só que todo homem quer dar o que tem de melhor para a mulher que ama e nesse desejo doido a gente acaba se esquecendo de alguns valores. ― ele suspirou fundo. ― Quando levou aquele bolo para mim na delegacia, para matar a minha fome, entendi o seu modo de amar e pensei que a recíproca deveria ser no mesmo nível e, assim, me senti mais seguro para amá-la do meu modo também, que é cuidando, protegendo e de vez em quando puxando a sua orelha... ― riu-se baixinho e, endereçando os olhos para o frasco que tornava a despejar o creme sobre a mão, completou com simplicidade: ― Aí fui até Santa Fé, numa butique chique, e comprei essa frescurinha. Sabia que um dia do mesmo modo que você me alimentou com o bolo que fez, eu lhe daria conforto com o que tenho, com as minhas mãos e a minha vontade de vê-la feliz comigo.

       Karen ergueu os olhos rasos de lágrimas, não tinha condições de falar, sua voz sairia feia, aos pedaços. Ao piscar, a água escorreu pelo seu rosto até ser absorvida por uma boca que a acariciou com um beijo leve.

       Era inacreditável que um homem que lidava com a possibilidade da própria morte a cada dobrar de esquina fosse tão terno e carinhoso, tão especial e único.

       Respirou fundo a fim de firmar a voz e murmurou embargada:

       ― É por isso que preciso te proteger, não posso perder uma pessoa como você.

       ― Não se preocupe com isso, sei como me defender e, melhor ainda, garota, sei como contra-atacar. ― enfatizou.

       ― Mas eu posso ajudá-lo. O Franco me chispou da Arco Verde porque não quer se indispor com você. Mas preciso estar do teu lado para combater os teus inimigos e ter certeza absoluta de que não te machucarão. Eu sou assim, Rodrigo! Não conseguirá me deter.

       ― E se eu pedir para que fique com a nossa família e a proteja? Acha que a Val consegue dar conta do recado? Viu o que aconteceu ontem quando entrou uma barata voadora pela janela? ― indagou num tom brincalhão.

       ― Só eu posso te dar proteção...― a voz saiu fraca, pois nem ela mesma acreditava no que dizia.

       ― Sei como se sente, mas, acredite, Karen, não somos super-heróis. ― afirmou com um leve sorriso.

       Rodrigo deitou o creme sobre a palma da mão e o deslizou sobre os seios dela, uma lentidão de afago, circulando um mamilo, depois outro, enfim as duas mãos pressionando ambos os seios.

       Karen deitou a cabeça para trás, os cotovelos enterrados no colchão, o peito arfando numa respiração pesada. Mirou os olhos no teto e entreabriu os lábios quando um gemido escapou depois de sentir o calor úmido de uma língua lambendo o bico; um depois o outro, retornando ao primeiro, enquanto as mãos permaneciam acariciando os peitos, as mãos grandes tomando-os e os apertando à medida que a intensidade do afago se aproximava do desejo de posse sexual.

       Num gesto rápido e brusco, rindo-se baixinho diante da expressão assustada da mulher ao arregalar os olhos após ser virada na cama, deitou-a de bruços. Urgia se acalmar, abanar com pano úmido o incipiente incêndio. Estava disposto a reconfortá-la massageando seu corpo cansado de tantas caminhadas vida afora. Tocando o dorso delicado e comprimindo cada vértebra, soltando músculos, impregnando de carinho cada extensão de pele no terreno que cedia e se moldava ao seu domínio sem opressão, a livraria da aridez de uma existência difícil desde menina, queria dar-lhe nova vida, fazer brotar o orvalho por sobre a couraça da espartana.

       Desceu primeiro com o rosto até as nádegas que receberam delicados beijos e o toque quase imperceptível de seu cavanhaque, que a invadiu entre as pernas e a tomou como um sobrevivente do deserto ao sorver entre as mãos em concha a água que o enlouquecia e o vivificava... até virá-la para si. Ela estava pronta.

       Pôs-se dentro dela sem se mexer. Ali ficou quieto e cheio, duro. Deitou sobre ela, o tórax comprimindo-lhe os seios, os braços envolvendo-a por baixo do pescoço e ao redor das costas, tiras que a enfaixavam com a precisão e a beleza do domínio de teias de aranha. Mas não era uma prisão. Ela o sabia. Quando o viu, as pálpebras semicerradas, as narinas dilatadas e toda a feição inchada de quem era possuído corpo e alma, apenas entreabriu os lábios para recebê-lo na boca e afastou ainda mais as pernas para tê-lo no âmago.

       Devagar, bem devagar, ele a cavalgou, a musculatura das coxas e nádegas contraindo e se estirando, a respiração saindo em golfadas do fundo da garganta, o gozo oprimido até o momento da primeira explosão, quando ela cruzou as pernas ao redor da cintura dele. E depois.

 

       Franco acompanhou o pai até a picape, observando a escolta do outro lado da rua, os faróis desligados camuflavam a camionete com dois pistoleiros da Arco Verde de prontidão. Um deles tinha o cabelo longo e preto, era Virgínia, que se tornara praticamente a sombra do patrão, ainda que o último a mantivesse em sua mira. Algo nela o perturbava, e ao chefe da segurança também. De qualquer forma, ela era apenas uma entre dezenas de capangas armados. Que mal poderia fazer?

       Thales abriu a porta da Silverado e se voltou para o filho. O semblante circunspecto revelando que ponderava sobre um assunto importante.

       ― Lembra aquela tarde em que entrou no meu escritório puto da cara com a tal jornalista mimada?

       Franco assentiu sem falar.

       ― Foi essa a primeira impressão que teve da sua mulher. E por mais que ela tenha se apaixonado por você, por um sujeito com a sua fama, não significa que tenha errado sobre o julgamento que fez dela.

       ― O que quer dizer com isso? ― perguntou, desconfiado.

       O fazendeiro suspirou profundamente e era um tipo de suspiro de quem se impõe uma pausa antes de se fazer compreender.

       ― Que talvez, Franco, ela não tenha estômago para aceitar determinadas situações.

       Era esse tipo de argumento que Franco não queria ouvir. Entretanto, no fundo, pressentia a verdade daquela sentença.

       ― Acho que ela já sabe sobre determinadas situações. ― falou baixinho, quase para si.

       A praticidade de Thales Dolejal era-lhe um dos seus maiores aliados.

       ― Temos de dobrá-la, filho. Afinal, ela tem um Dolejal na barriga e outro na mão, não é mesmo? ― indagou com leve ironia e determinou: ― Corte as asas dela, não seja tolo como eu fui com a Karen. Ela é uma mocinha da cidade que se encantou com o pistoleiro com fama de mau, então dê a Nova o que ela quer, rédea curta e voz de comando.

       Com um tapinha amistoso no ombro do filho, o latifundiário deu a conversa por encerrada e postou-se atrás do volante. Relançou um rápido olhar para o seu melhor pistoleiro, o mais temido da região, e viu um rapaz acuado diante das circunstâncias. Balançou a cabeça, decepcionado. Noutros tempos, domar uma mulher, para Franco, funcionaria aos seus instintos como um desafio de final de semana, algo trivial para amenizar o tédio. Mas fora só aparecer a tal forasteira que o diabo loiro perdera os bagos. Um verdadeiro desperdício de armamento, cogitou Thales, pisando no acelerador até ultrapassar a marca dos 120 km por hora.

       Ao voltar pelos fundos da casa, encontrou Nova diante da pia lavando a louça do jantar. Postou-se atrás dela, tomando a esponja ensaboada das mãos.

       ― Volta para o quarto, princesa, eu dou um jeito nessa sujeirada. ― sugeriu de um jeito manso e sem coragem para encará-la.

       Nova não refutou a ideia, visto que desejava muito um tempo só para si. Precisava pôr os pensamentos em ordem, catá-los no lodo do riacho onde estavam afogados de medo e apreensão. Temia que do fundo de sua mente a figura de Cris emergisse apontando o dedo e dizendo: “Eu não disse?”.

       ― Obrigada, vou dormir então. ― afirmou, a cabeça baixa, certo desconforto como quando se voltava a falar com alguém após uma briga. Mas eles não haviam brigado.

       Franco largou a esponja sobre os pratos sujos e a acompanhou até o quarto. Esperou que ela retirasse a colcha e ajeitasse os travesseiros. Manteve-se à porta, atento a cada gesto da mulher que abria e fechava gavetas, preparando-se para dormir. Sentia-se inquieto, incomodado e era perceptível até mesmo um princípio de náusea na boca do estômago. O silêncio de Nova e o fato de ignorá-lo, ali parado feito um bobo, sinalizavam nuvens escuras no céu dos novos dias.

       Ela escolheu um pijama curto de algodão, o tecido branco com miniaturas de balões de aniversário, coloridos, estampados na regata e no short curto. Passou por ele e se encaminhou para o banheiro a fim de escovar os dentes. Foi seguida por uma figura alta que balançava os braços para frente e para trás, ao longo do corpo, na defensiva. A intenção era fechar-se em concha para avaliar melhor o que teria pela frente se aceitasse como normal e natural um homem tirar a vida de outro. Por isso continuou a ignorar o marido enquanto enxaguava a boca, secava o rosto e retornava ao quarto.

       Deitou-se e estendeu o braço para desligar a lâmpada do abajur.

       ― Nova...

       Precisava dormir para esquecer.

       Desde o início a violência estivera presente no relacionamento deles. E fora em função disso que Franco se tornara o seu segurança particular. Sempre o vira como seu salvador, e não como um matador. Havia uma importante diferença entre essas duas visões.

       ― Nova, fala comigo.

       Ele se ajoelhou ao lado da cama. Toda a juventude e o desamparo dessa juventude estampados em seu rosto. Não, era impossível que alguém tão jovem e belo puxasse o gatilho ou espancasse até a morte outro ser humano. Matar era uma ação suja e pesada; não era como nos filmes, uma encenação, um apontar e atirar e o ator finge que morre. Cometer um homicídio, junto com o estupro e a pedofilia, era um dos delitos mais graves contra uma pessoa. Ainda que fosse legítima defesa, como ele poderia ter matado alguém e depois sentado na cadeira do cinema para assistir a Duro de Matar? Que tipo de indivíduo agiria de forma tão fria?

       A resposta veio como um raio: o diabo loiro.

       ― Amanhã a gente conversa. ― comunicou secamente, virando-se de lado a fim de lhe dar as costas.

       ― Vai me deixar?

       Ela engoliu em seco ao ouvir a voz baixa que mais se parecia com um gemido de um animal machucado. Respondeu por cima do ombro sem se dar ao trabalho de se voltar:

       ― É impossível deixá-lo, Franco, por isso a nossa situação é ainda mais complicada. Agora me deixa tentar dormir, por favor. ― disse secamente.

       Ele não foi embora. Teria de voltar por um caminho de pregos e estacas, um caminho minado de incertezas.

       Ergueu-se do chão e deitou de lado na cama, atrás da mulher que cada vez mais se encolhia para se afastar. Colou-se ao corpo pequeno que carregava outra vida e passou um braço por sobre ele, como sempre, de forma possessiva. Fora gerado pelo Citotec e parido pelo destino. Criado pela terra e educado por pistoleiros. Um homem como Franco não desistia do que lhe era importante.

                 ― Atravessei a margem do rio, não foi? ― ela perguntou, a voz abafada contra o travesseiro.

       A resposta foi o abraço apertado e longo, do tipo quando se despedia de alguém no aeroporto sem saber ao certo se o avião levaria a pessoa amada ou o próprio coração; não era, portanto, o abraço das chegadas, onde a saudade se grudava e mal deixava respirar mas ainda assim abria botões de flores debaixo do azul do céu. O abraço da partida era avassalador e, mesmo que nem ele nem ela partissem, ambos se despediam de uma fase de suas vidas, do período da ilusão e do encantamento quando se projetava no outro todas as suas aspirações fictícias, seus desejos imaginários forjados por anos de crenças nem sempre lógicas. Mas era apenas uma ponte, essa fase de contos de fada, uma ponte para se atravessar até chegar ao mundo real.

       E foi mais ou menos isso que Franco disse:

       ― Sou o seu rio, Nova, e agora você me conhece todo, até o fundo.

       Sentiu-a estremecer e beijou o topo da cabeça dela.

       ― Não posso aceitar o que você faz, seria como aceitar o que o Everaldo tentou fazer com você.

       Ele a interrompeu bruscamente:

       ― O Everaldo é um matador de aluguel.

       ― E você, Dolejal? Mata a mando do próprio pai. Qual é a diferença?

       ― Não mato pessoas, ― assegurou com seriedade e completou a informação para que ela jamais esquecesse a essência de seu trabalho: ― executo bandidos, criminosos que matam pessoas.

       Ela se virou com os olhos revelando a raiva que sentia.

       ― Justiça com as próprias mãos? E a polícia e a Justiça, para quê servem? Os Dolejal julgam, sentenciam e executam? Ainda que Matarana seja uma terra de pistoleiros, nós temos um delegado honesto e determinado a pôr ordem na cidade. O seu trabalho deveria ser o de proteger como chefe da segurança da Arco Verde, e não o mesmo trabalho de um verme como o Everaldo. Não há diferença alguma entre vocês dois! Tenho é nojo de você, Franco, nojo, ouviu bem? ― gritou, tentando se desvencilhar dele.

       Ele se pôs por sobre ela, cuidando para não tocar no seu abdômen proeminente, mas o suficiente para tê-la presa debaixo de si. O olhar duro, os lábios contraídos e uma veia grossa latejando no meio da testa.

       ― Não sou igual ao Everaldo, Nova, você está errada.

       ― Me solta! Me solta, agora! ― gritou, erguendo o joelho para tentar acertá-lo.

       Num movimento ágil, ele se esquivou da joelhada no quadril e puxou-a com força pela cintura, apertando-a entre seus braços com desespero.

       Nova se debatia com força. Tinha consciência de que era uma briga entre desiguais. Ela estava grávida e sua estatura mignon não ajudava a enfrentar um homem de 1.80 e a força muscular de um atleta. Embora Franco fosse forte, usou dessa qualidade apenas para segurar a esposa a fim de que ela não caísse da cama e se machucasse. Por um momento esquivou-se dos tapas, joelhadas e uma malsucedida tentativa de puxar seus cabelos. Depois, deixou que ela descarregasse a frustração de ele ser o sapo que sempre lhe havia dito que era e suportou os golpes sem esboçar reação. Até que ela o acertou entre as pernas, e ele se curvou de dor, o rosto vermelho, um ganido preso na garganta.

       Viu-a escapar da cama vestida no seu pijama infantil, sair do quarto, alcançar a sala, abrir a porta e correr para a rua.

       Dobrado sobre os lençóis, louco de dor, ele mal conseguia respirar.

         

       Leonardo Marau estava nu diante do espelho. Levou à mão até a pálpebra esquerda, mas não a tocou. A pele arroxeada inchara ao ponto de parecer que revestia um ovo de galinha no lugar de um olho humano. Estrias avermelhadas tingiam o globo ocular e, logo abaixo, o maxilar com hematomas. Ao voltar a si, depois da surra que levara dos capangas do coronel, ele sentira o gosto do próprio sangue no fundo da garganta e se arrastara pelo chão até se refugiar debaixo de uma mangueira à espera que um de seus pistoleiros aparecesse para levá-lo ao hospital.

       Ninguém apareceu.

       Foi assim que Leonardo descobriu que o bando de covardes que até poucos meses o seguia havia voltado a se submeter à autoridade do latifundiário. Estava sozinho com quase 4oo kg de pasta de coca em um galpão. Teria que se desfazer da droga, vendê-la para pagar os bolivianos.

       Aproximou-se do espelho olhando-se diretamente, pois não queria ver o filho do coronel espancado a mando do próprio pai. Um homem que feria a sua cria não deveria ser considerado um ser humano e sim algo entre monstro e mutante besta-fera. A surra lhe despertara sentimentos até então soterrados pela ambição. E tudo o que ele fizera, desde o tempo no Acre escondendo a mentira da faculdade em Cuiabá e o retorno a Matarana para comercializar a pasta de coca, tudo que planejara com a intenção de enriquecer sem ter de baixar a cabeça para o seu pai, tudo era apenas a ponta do iceberg. Porque Leonardo Marau odiava o velhote gorducho que tratava a sua mãe e a sua irmã como pessoas de quinta categoria; os fracos, dizia ele, os fracassados. E era isso o que justamente ele, o filho que o desapontara, sentia por ele, pelo ditador que lhe causava asco havia muito tempo, tanto tempo que ele precisara esquecer o quanto o enojava estar vinculado a um grosseirão endinheirado para poder usufruir do berço onde nascera.

       Tencionava agora se livrar da mercadoria valiosa e, em vez de abandonar Matarana, ele destruiria a Coração de Ouro e depois a Arco Verde.

       Gemeu de dor ao vestir-se para sair. Desceu os degraus da escada que conduzia até o hall de entrada da casa-sede. Ouviu as vozes que se misturavam na sala de jantar. Não sabia qual desculpa o coronel dera à família a respeito do estado lamentável do filho. Qualquer desculpa dita eles acreditariam ou fingiriam acreditar; afinal, Leonardo era explicitamente o preferido do coronel e jamais pensariam que fora ele próprio que mandara descer o sarrafo no seu bacharel em Direito, a sua preciosidade.

       Ao volante da picape, mal enxergando à frente, visto que contava apenas com a visão de um olho, Leonardo fechou a cara e parou diante da porteira.

       O segurança apertou um botão e o portão de ferro se abriu.

       A camionete deslizou para a estrada, os galhos secos e os cascalhos bateram contra o assoalho antes de alcançar a estrada de asfalto.

       O caubói ferido queria ferir.

       Havia uma boa lista para começar a guerra: o delegado inconveniente, o dono da Arco Verde e o seu dissimulado filho e o coronel. Sim, o velho precisava também levar uma liçãozinha. 

       Encurvou-se até o painel e abriu o porta-luvas, retirando de lá a pistola que tiraria do corpo a alma de Rodrigo Malverde. E de quem se interpusesse entre ele e o xerife.

       Acelerou, os lábios apertados e a pálpebra doendo uma dor quente e pulsante. Teria de passar pela Arco Verde antes de entrar na estrada vicinal, próxima ao Rio Verde, até a casa dos Malverde. O primeiro momento crítico da ação.  A ideia então era a de deixar a picape em uma clareira e seguir a pé.

       Quantas pessoas moravam com o delegado? Quantas delas teria de matar para o projétil certeiro chegar até ele?

 

       Ela ainda não sabia exatamente para onde ir. Sabia apenas que tinha de correr, fugir para algum lugar seguro. Embora a cidade inteira pertencesse ao responsável por sua corrida ao longo do acostamento da estrada, quase perto da meia-noite. Debaixo dos pés nus a terra úmida, pedrinhas e tiras de galhos finos que a machucavam e impediam que sua corrida ganhasse fôlego. A dor no baixo-ventre também a fez diminuir o ritmo. Assim, Nova teve de se esgueirar para o interior do mato, ainda que seguisse pelo contorno da estrada asfaltada, a fim de continuar a sua caminhada na escuridão da noite, o peito arfando, a cabeça cheia de pensamentos.

       Já não era a primeira vez que se apavorava e fugia. À época em que invadira a Coração de Ouro também fizera o mesmo ao perceber que caíra em uma emboscada. Talvez o fato de ter conhecido e se apaixonado por Franco fosse também outra cilada. Ela não era o tipo que enfrentava os problemas de frente; preferia ignorá-los ou fugir, o que não deixava de ser de certa forma um enfrentamento.

       Naquele momento, entretanto, não estava em jogo os seus sentimentos pelo marido. Amava-o, sem dúvida. Só não sabia o que fazer com aquele amor nascido do medo e da sua atração pelo medo que, contraditoriamente, colidia com a sua noção de certo e errado.

       Parou e respirou fundo. Tremia muito. Abraçou-se ao próprio corpo olhando ao redor, atrás de si, a entrada de uma clareira; do outro lado, a estrada. Os postes públicos com lâmpadas vacilantes e frágeis e os ruídos noturnos das criaturas. Agora não se sentia mais segura. O seu cavaleiro de armadura brilhante não poderia salvá-la porque ela fugia dele. E era a segunda vez que o seu mundo ruía.

       Agachou-se o máximo que pôde ao perceber os faróis de uma picape que riscavam a tira de asfalto passando por seu esconderijo em alta velocidade. O coração na garganta. Trêmula, ergueu-se e correu para a estrada para certificar-se se era a picape vermelha. Suspirou aliviada ao ver a traseira de uma Hilux.

       Precisava parar em algum lugar e descansar. Temia que as suas emoções atingissem o bebê. Na verdade, temia pela vida do filho também fora da segurança de seu ventre. Como seria o seu futuro tendo como pai um pistoleiro que colecionava inimigos? Teria de levar o filho à escolinha escoltado por capangas da Arco Verde?

       Isso era tudo menos uma vida normal.

       Agora, mais do que nunca, era nítida a compreensão sobre os motivos que tornaram Rodrigo um alvo a ser aniquilado. Ele era o oposto da essência de Matarana: justo, íntegro e generoso. Ele era o bem na luta contra o mal. E estava sozinho na arena com os leões.

       Uma fisgada latejante obrigou-a quase a se dobrar de dor. Ergueu o pé e o sangue subia à superfície da sola, parte dela descolada após pisar na lasca de uma pedra.

         

       O refeitório da fazenda era usado como salão de festas quando um funcionário ou outro fazia aniversário ou batizava um filho ou resolvia ficar noivo. Para grandes festas, como um casamento da peonada, usava-se um galpão maior, arejado e com sistema de alto-falantes.

       Bronson olhava fixamente para a vareta preta, pensava fundo, concentrado, a fim de não tremer a mão ao pegá-la pela extremidade debaixo de uma vareta amarela. A vareta preta era a mais valiosa, e se ele a puxasse sem tocar em qualquer outra ganharia o jogo. Via de esguelha quatro ou cinco camaradas com sorrisos debochados e olhos postos no emaranhado de varetas coloridas sobre a mesa. A aposta fora um engradado de cerveja. Na reta final da competição, frente a frente, o velho pistoleiro e Paulo.

       Um sorriso de dentes amarelados pela nicotina revelou o prazer de se apoderar do objeto desejado. Bronson balançou a vareta preta no ar como se fosse um troféu. Riu da cara dos rapazes se empurrando e falando besteiras, relacionando o jogo pega-varetas com a habilidade do velho pistoleiro em pegar varas maiores. Bronson, por sua vez, somente ria. Até que apenas ele ficou rindo, já que ninguém imaginava que o patrão aparecesse no refeitório tarde da noite.

       ― Reúna os homens e me siga!

       A voz grave se impôs destoando do clima alegre e festivo do recinto.

       Bronson ergueu-se rapidamente e fez um sinal com a mão para um grupo de homens obedecerem à ordem. Alcançou o patrão e, caminhando ao seu lado, esperou que ele revelasse o motivo da determinação:

       ― A minha nora está criando problemas para o Franco. ― disse com um esgar de amargor no canto dos lábios. ― Telefonei há pouco para saber se estava tudo bem encaminhado, e ele não atendeu o celular.

       ― O menino é meio distraído, patrão, vai ver ele deixou o telefone em algum lugar...

       ― Não, não foi isso. ― ele parou e encarou o velho de chapéu de caubói e pálpebras empapuçadas, o tom era o de acusação: ― Você o ensinou a atirar, mas não foi capaz de ensiná-lo a se proteger. E o que temos agora é um garoto que se protege se armando até os dentes. Só que isso não o protegeu de ser pego por uma vaca.

       ― Entendo perfeitamente...A Lúcia também está me fodendo a vida.― emendou Bronson esfregando a nuca. ― A gente dá uma olhada por lá e avisa o senhor. ― decidiu.

       ― Quero os dois aqui na fazenda.

       ― Sim, senhor.

       Bronson chamou quatro pistoleiros e rumaram para a casinha à beira do Rio Verde. Não havia ninguém na casa. Portas e janelas abertas, lâmpadas acesas, celulares sobre a cama e a mesa da cozinha, louça suja na pia, ausência da picape na garagem. Foi o que Bronson relatou ao patrão.

       Imediatamente, Thales e mais vinte homens entraram nas camionetes que seguiram em comboio até Bronson.

 

       Abraçados, ele ainda dentro dela, beijava-a sem pressa.

       Rodrigo puxara-a para o seu colo na terceira vez que a possuíra, de frente um para outro, gozaram olhando-se nos olhos.

       Karen admirava a transformação da face do seu amor ao atingir o ponto agudo do prazer, ele ficava ainda mais lindo e sensual. As delicadas rugas ao redor dos olhos salientavam-se, os dentes frontais mordiam o lábio inferior e a expressão inteira do rosto era a de dor aguda e boa, dor boa, a pele brilhando pela fina camada de suor. Por isso ela não fechava os olhos depois que gozava. Porque era a vez dele.

       ― Hmm... Que tal umas férias depois que as coisas se acalmarem? ― ele perguntou, boca encostada noutra boca, mãos desenhando círculos nas costas dela, brincando de se desencontrarem.

       ― Só nós dois.

       Ele sorriu e deslizou os lábios para mordiscar o lóbulo da sua orelha. Depois, encarou-a, as pálpebras relaxadas e a respiração retomando o seu ritmo normal.

       ― Uma cabana, eu e você. O paraíso logo ali depois da curva. ― brincou, ajeitando uma mecha de cabelo úmido para detrás da orelha dela.

       Karen abraçou-o com força, adorando a ideia.

       ― Uma transferência resolveria os nossos problemas. ― murmurou.

       Ele se afastou um pouco.

       ― Sabe que pretendo tornar Matarana uma cidade boa e decente. E, além disso, ― tocou-a no queixo erguendo o seu rosto e completou com seriedade: ― você é a minha parceira, a minha companheira e acho que nessa altura do campeonato não preciso de uma segunda versão da Jasmine.

       A amiga não se adaptara a Matarana e exigira que ele pedisse transferência para um lugar civilizado. Rodrigo acatou a decisão da esposa, mas não teve tempo de fazer a mudança. Jasmine morrera antes disso na estrada.

       ― Foi só uma sugestão.

       ― Sei que sim, Karen. ― disse, esboçando um frágil sorriso.

       Ela o beijou afagando os cabelos dele com os dedos, bagunçando os fios curtos e irregulares. A noite estava perfeita e era assim que deveria continuar. Reclamou baixinho quando Rodrigo pegou-a pelos ombros afastando-a ligeiramente.

       ― Espera um pouquinho, ouvi um barulho na porta. ― ele pôs o dedo indicador sobre os lábios e alçou as sobrancelhas num gesto que demonstrava o quanto deveriam se manter atentos.

       Rapidamente, sentado na cama, vestiu o jeans e pegou a Glock que estava sobre o criado-mudo. Antes que Karen o seguisse, visto que ela enfiava o robe ao contrário procurando com os olhos a sua automática, Rodrigo se antecipou resoluto:

       ― Tira o pessoal dos quartos e traz todo mundo para cá, inclusive a Bonnie. ― salientou, erguendo-se após destravar a arma.

       O delegado foi até a porta e voltou-se determinando em voz baixa:

       ― Assim que eu chegar à cozinha pode sair e pegar o povo, ok?

       Karen sentia a adrenalina coçar debaixo da pele. Levantou-se como se tivesse sido mordida por uma cobra. Ao mesmo tempo, uma aflição dos diabos cortava o ritmo da respiração. Tentou endereçar-lhe um sorriso corajoso, mas, provavelmente, somente entortou o rosto.

       ― Está tudo bem, parceira. ― enfatizou ele, percebendo a tensão da mulher.

       Rodrigo atravessou o corredor com passadas largas e cautelosas. Em um ou dois minutos tinha um dobermann nos seus calcanhares. Fez um careta e parou. Abaixou-se e acariciou a cabeça da cachorra. Em seguida, pegou-a no colo e a deixou no quarto onde Karen se preparava para sair, apertada no cinto do robe, escabelada e com a automática em punho.

       Entre a parede lateral da janela da cozinha, na alvenaria, e a porta, o delegado se postou e, esgueirando-se a fim de olhar para fora, o jardim frontal da casa, avançou parte da cabeça. Não viu nada que não fosse a sua picape, uma vez que era o Maverick de Karen que ocupava vaga na garagem interna.

        Aproveitou para desligar a lâmpada do lustre que ficava no alpendre e era toda a iluminação externa, além dos postes públicos a alguns metros dali.

       Um toque leve na madeira da porta o pôs em sobreaviso.

       Franziu o cenho, intrigado. Destrancou a porta da sala e girou a maçaneta sem fazer barulho. Contornou a casa pelos fundos até chegar à garagem. Por trás da parede, escalou a grade da janela e subiu até alcançar o telhado. Esgueirando-se com os pés nus por sobre as telhas chegou até a parte da frente e aguardou o momento certo para pular por sobre o camarada.

       A terceira batida à porta, seguida por um pedido em tom de lamento, o fez pular para o chão, mas com o cuidado de não cair por sobre a pessoa que o procurava. Flexionou os joelhos e ouviu estalos nas juntas. Se o telhado fosse um pouco mais alto e ele menos flexível e fora de forma, teria se machucado.

       ― Por favor, Rodrigo, abre pra mim...

       Era Nova e estava parada diante de sua casa com um pé banhado em sangue. Ela estremeceu os ombros ao se assustar com o homem que aparecera num salto atrás de si.

       Ele não sabia por onde começar. O instinto protetor agiu no lugar da razão. Pegou-a no colo e bateu à porta para Karen abri-la.

       A família enfiada no quarto, o último, localizado nos fundos da casa depois do longo corredor. Karen explicou aos trancos e solavancos o que acontecia e, na verdade, o que acontecia era que alguém simplesmente batera à porta. Se fosse em outros tempos, uma visita após a meia-noite não causaria tamanho alarde. Todavia, após os atentados contra a vida de Rodrigo, o inesperado podia muito bem ser o terceiro atentado.

       Val, metida na camisola de fantasminha camarada, apertava as mãos com nervosismo:

       ― Deixei a porra do meu celular no quarto.

       Karen fez sinal para que ela se calasse e colou a orelha na porta.

       Johnny e Sabrina se sentaram na cama e vó Ninita os acompanhou sem, no entanto, deixar de acender um cigarro. E foi ela quem fez o melhor dos comentários:

       ― Não é melhor desligarmos a luz, não?

       Val correu até o interruptor.

       ― Meu Deus do céu!,  aonde estão os policiais militares que iam fazer a vigilância? Estão nos enrolando!

       ― Sabe por que, né? Coisa da prefeita do coronel que está fazendo corpo mole dizendo que o efetivo é pequeno demais para deslocar homens para cá. ― considerou Sabrina, sagazmente.

       ― É, mas e os homens da Arco Verde? ― perguntou Johnny com os olhos arregalados.

       Karen voltou-se para o filho e travou a arma. Aproximou-se dele e o beijou na testa.

       ― Vai dar tudo certo, parceiro. ― disse, fingindo um otimismo que não sentia.

       Johnny tentou sorrir e ajeitou-se contra os travesseiros, a expressão de tensão e expectativa.

       Ouviu a voz grave e familiar gritando o seu nome. Karen disparou pelo corredor como se tivesse fogo nos cascos. Ao chegar à cozinha, viu Rodrigo batendo contra o vidro da janela.

       ― O que está fazendo trancado na rua, homem?

       Destrancou a porta e abriu-a.

       ― Fiz uma manobra para surpreender quem quer que fosse, ― ele falou meio sem graça e apontou para a mulher pequena, de pijama e cara de dor, nos seus braços ― e acabei surpreendido por essa moça aqui.

       ― Puta merda, Nova, quer nos matar de susto?

       Foi tudo o que Karen disse.

       Rodrigo entrou com Nova nos braços, passou por Karen e deixou-a numa cadeira. Ela ergueu o pé ferido e listras vermelhas escorriam-lhe por debaixo da sola, uma parte da pele rasgada e solta, expondo a carne.

       ― Veio buscar uma xícara de açúcar, comadre? ― indagou Karen, o tom era o de deboche e desconfiança, o olhar demorava-se nas roupas de dormir da amiga e na sua palidez, fosse pela dor no pé sangrando ou pelo motivo que a fizera aparecer à noite em sua casa.

       Rodrigo interferiu fazendo um sinal à sobrinha e acrescentando com bastante ênfase:

       ― Busca o estojo de primeiros socorros, dona enfermeira.

       Sabrina assentiu, curiosa em saber o que estava realmente acontecendo. Ao sair para o corredor até o banheiro, esbarrou em Johnny e aproveitou para contar que o suposto perigo iminente não passava da amiga de suas mães aprontando alguma. E emendou baixinho:

       ― Vai ver ela voltou a se meter em encrencas, como fazia antes de casar com o diabo loiro. Parece que não aprende que para ser forte em Matarana tem de ter bala na agulha, né, meu bem?

       Johnny adorava o jeito da sobrinha do delegado.

       ― Você é má, Sabrina.

       Ela riu com vontade ao receber o elogio.

       Karen esperava por uma boa justificativa para a amiga irromper tarde da noite à sua porta, andando sozinha pela estrada sem o seu fiel guarda-costas. Contudo, a amiga não queria abrir o jogo, fitava o pé com uma careta de dor, procurando ignorar todos os olhares da casa sobre si. Até que Val sentou ao seu lado e perguntou na cara dura:

       ― O Franco bateu em você?

       Nova empalideceu à simples menção de que a amiga pensasse que Franco poderia tê-la machucado. Voltou-se para ela e respondeu secamente:

       ― Ele jamais me machucaria. ― ao sentir a pressão do olhar de Karen, completou sem fitá-la: ― Só preciso de um tempo para pensar em algumas coisas...

       ― Que coisas? ― Karen inquiriu com brusquidão.

       ― Coisas minhas, Karen. Estou grávida, preciso pensar no futuro do meu filho... essas coisas...

       Karen e Rodrigo se entreolharam cúmplices. Era possível que o casal mais jovem estivesse passando por sua primeira crise ou talvez fosse apenas uma briguinha sem grandes consequências.

       ― Bem, vou pôr uma roupa decente porque daqui a pouco teremos a visita do diabo. ― declarou Karen com naturalidade e deixando a cozinha gingando o quadril com displicência.

       Um breve silêncio recaiu sobre todos.

       Rodrigo se pôs à janela e deu uma rápida averiguada ao redor. Aproveitou para acender a lâmpada do alpendre e, percebendo-se sem camisa, pediu licença meio sem jeito e voltou para o quarto. A deixa eficiente para a aproximação de Val e vó Ninita. Foi a última quem desferiu o primeiro golpe:

       ― Por acaso a senhora sabe onde amarrou o seu bode?

       Nova esboçou um frágil sorriso ao mesmo tempo em que relançava um olhar aturdido a Val, que suspirou profundamente e concordou com a mais velha:

       ― A vó tem razão. Não sei o que aconteceu e é óbvio que estamos aqui para apoiá-la, mas se pensa que casou só com o Franco está enganada.

       ― Como assim?

       Foi a vez da avó de Karen esclarecer a questão:

       ― Já devia ter percebido que casou com a família inteira. Agora você é uma Dolejal, milionária, poderosa e completamente escrava desse bendito sobrenome. Eles não vão deixar que decida o que quer fazer ou não. Pensa bem, querida, Thales Dolejal controla a cidade, boa parte dos empresários, além dos juízes de Santa Fé... ― ela baixou o tom da voz para não ser ouvida pela autoridade: ― E ainda que a polícia se rebele, não se pode dizer que o delegado e o fazendeiro sejam propriamente inimigos, uma vez que já foram bem amigos. E para piorar ainda mais a situação, o seu sogrinho tem plenos poderes sobre a fera em forma de gente, fera essa que você mesma amansou... o teu marido. Acha mesmo que pode sair correndo pelo mato feito uma gazela enlouquecida impunemente?

       Sabrina entrou carregando o estojo com iodo, algodão, gaze, esparadrapo e pomadas.

       Nova sentia-se anestesiada após ouvir as palavras da avó de Karen. Vó Ninita conhecia Thales Dolejal havia mais de dez anos e sabia como ele agia. Ela tinha razão. A pergunta à mesa do jantar: “Você é uma Dolejal, senhorita Monteiro?” fora um aviso sobre sua nova condição agora que entrara para a sua família. O mais assustador não fora o tom sinistro da pergunta, e sim o silêncio respeitoso de Franco ao ouvi-la.

       ― Preciso de um tempo. ― as palavras pareciam enfraquecer à medida que ela percebia as suas opções. Amava o marido. Era esposa de um pistoleiro. E pertencia à família poderosa e cheia de segredos.

       Ela e Cris teriam sido ingênuos ao escolherem morar em Matarana? A ingenuidade típica dos forasteiros que lhes enchiam os olhos de sonhos e os pulmões de esperança. Cris acordara antes dela.

       Nova não queria acordar.

       Sabrina trouxe uma bacia com água morna, pegou com delicadeza o tornozelo de Nova, mergulhando seu pé.

       ― Está doendo, né?

       ― Um pouquinho. ― respondeu à sobrinha de Rodrigo; doía muito mais viver o dilema que crescia dentro dela junto com o seu bebê. ― Não quero criar mais problemas para vocês. Fui impulsiva e saí correndo, é o que eu sempre faço, saio correndo por aí. Me apavoro e fujo. Aliás, quase tudo me apavora. Não sei por que sou assim. Sinto as coisas de uma forma exagerada e dramática e é impossível qualquer tipo de raciocínio quando parece que acabei de cair num buraco. Acho que não tenho estrutura psicológica para ser uma Dolejal, ainda sou a forasteira de Minas cuja maior ambição na vida era viver uma história de amor, ― riu-se com desprezo por si mesma e completou com tristeza: ― como se isso dependesse apenas de mim. Sou ingênua, vó, a senhora tem razão.

       ― A ingenuidade, às vezes, é a melhor proteção, ― afirmou Ninita com o semblante sério e, ao ver a neta voltar à cozinha seguida pelo namorado, completou: ― assim como a ignorância uma benção. A gente não precisa destrinchar a vida do outro só porque moramos debaixo do mesmo teto.

       ― É isso aí, vó. ― falou Karen, vestida na regata preta e no jeans. ― Existe uma coisa, minha cara amiga, que se chama “determinação do perímetro”, a famosa DP...

       Johnny emborcou o seu copo com leite e achocolatado em pó até o fim e, e entre um arroto e uma risada, fez troça:

       ― DP não é delegacia de polícia, Rodrigo?

       O delegado tentou não rir, visto que Karen o olhava fixamente como se dissesse: vai debochar do que estou falando? E ele não estava muito a fim de perder pontos com ela. Endereçou um olhar divertido ao garoto e postou-se à janela, de olho no pátio frontal e, um pouco adiante, na entrada cujo portão enferrujado a mantinha aberta. Suspirou resignado e fez uma anotação mental: consertar o portão e comprar uma tranca.

       ― Posso continuar falando, ô pivete? ― a mãe emparedou o filho, que ainda exibia um sorrisinho debochado enquanto se dirigia de volta ao seu quarto para matar assaltantes de banco zumbizados. Ela continuou: ― Cada um tem o seu perímetro de atuação e por isso tem de ser respeitado. Num bom português seria mais ou menos assim: cada um no seu quadrado, entendeu? Você cuida da sua vida, o Franco da dele e os dois da vida como casal.

       Nova não esperava aquele tipo de conversa vindo de Karen, que sempre a defendia de tudo e de todos. Inclusive, era estranho percebê-la praticamente defendendo Franco, um homem, um homem que era filho de Thales e, além disso, ambos se tratavam como cão e gato. De certa forma sentiu-se ofendida e um pouco enciumada. Via Karen como uma irmã mais velha, ainda que fosse apenas um ano mais velha. Entretanto, a amiga tinha uma postura tão imponente e uma personalidade tão forte que parecia bem mais velha e sábia, como se fosse a chefe de uma tribo de mulheres selvagens.

       ― Quer que eu simplesmente feche os olhos, é? Ou melhor, que me esconda debaixo da omissão como uma tartaruga dentro do casco?

       Karen estreitou os olhos, avaliativa.

       ― Nem sempre é a verdade que traz a felicidade, Nova. É incrível que depois de tantos anos rastejando por um cara que falava bonito e agia de forma porca, você ainda não acredita que quando sabemos sobre algo temos de tomar uma atitude.

       ― Eu sei, foi por isso mesmo que fugi.

       ― Mas nenhum Dolejal foge. ― constatou Karen num tom tranquilo e ameaçador, que ligou o radar do delegado.

       ― Se quiser ficar aqui, sinta-se à vontade. ― ele assegurou, interferindo na conversa sem diplomacia e, desviando seus olhos de Karen para Nova, acrescentou de forma significativa: ― A minha casa é um território neutro, viu? Uma espécie de Suíça. Não precisa falar mais nada. Dentro de casa, não sou um delegado de polícia e não deixei de ser o seu amigo.

       Nova conseguiu sorrir e se sentiu bem melhor. Rodrigo passava uma confiança tremenda, como se tudo fosse realmente dar certo enfim.

       ― Ei, vai comprar briga com o diabo loiro?

       ― Com quem for, Karen. ― assegurou, encarando-a fixamente. Até com o pai do diabo loiro ele compraria briga, era o que dizia aquele olhar.

       E foi Val quem contornou a situação:

       ― O meu irmão adora salvar donzelas em apuros.

       Rodrigo assentiu com a cabeça, aceitando a declaração da irmã. Era verdade, sim, ele não era nem um pouco objetivo quando percebia que precisava agir e salvar uma mulher em situação de risco. Era possível que Nova tivesse acessado a parte obscura da vida de Franco, aquela parte que nem mesmo a polícia tinha provas sobre a sua existência e periculosidade.

       Ele contornou a mesa e abaixou-se diante de Nova, o rosto transmitindo segurança e carinho.

        ― Não está sozinha nem é obrigada a aceitar qualquer que seja a situação. Você tem amigos, viu?

       ― Eu sei, Rodrigo. Vocês são a minha família desde que cheguei de Minas e não teria suportado metade das coisas que suportei se não os tivessem bem perto de mim. Acho que é apenas isso que devo ao Cris, conhecê-los e fazer parte da vida de vocês.

       Rodrigo beijou o dorso das mãos dela. Ele gostava muito daquela garota miúda, que ora parecia a mais sensata das Três Mosqueteiras Tresloucadas, ora a mais lunática. Suspirou fundo e afirmou com convicção:

       ― Nada de ruim acontecerá com você e o seu bebê, tenha certeza disso.

       Karen se aproximou e pôs uma mão sobre o ombro da amiga:

       ― No fundo, sabe que está fazendo merda, né? E como é uma mulher experiente e madura vai ceder e voltar para a casa.

       Nova e Val olharam para Karen ao mesmo tempo, incrédulas. Mas foi Rodrigo quem mais uma vez se interpôs:

       ― Se ela quiser voltar e quando achar adequado. ― enfatizou com o tom de voz e o arquear das sobrancelhas.

       ― Não se meta, delegado. ― declarou Karen, secamente.

       Ele não gostou da grosseria desproporcional. Sabia o quanto Karen era ciumenta, mas era ridículo que se sentisse ameaçada em relação a Nova. Ou seria outra questão em jogo?

       Não teve tempo para interrogá-la. Sabrina elevou a voz, avisando sobre a entrada de uma pessoa.

       ― O cara está a pé, tio, e vindo para cá.

       Nova prendeu a respiração. Franco viera buscá-la. Relançou o olhar para Rodrigo que se aproximava da porta para sair. Ela viu quando Karen atravessou a cozinha feito um foguete e segurou o antebraço do namorado antes de ele dar o primeiro passo para fora da casa.

       Voltando-se aturdido ele nem precisou perguntar:

       ― O Franco não se separa da sua picape. ― afirmou Karen, sem rodeios.

       Rodrigo considerou por alguns segundos aquela informação. Depois, sorriu para acalmar a mulher e retrucou com suavidade:

       ― Acha mesmo que o coronel mandaria um matador sozinho e a pé para me executar?

       Sim, parecia um absurdo, Karen considerou.

       ― É só mandar o camarada se identificar, cacete. ― disse Val, nervosa, arrancando com os dentes frontais as cutículas do polegar.

       ― Deixa que eu pergunto...

       ― Não, vó! ― exclamou Karen com determinação. Em seguida, se voltou para Rodrigo com ansiedade: ― Não é o Franco.

         

       Quando ele alcançou a entrada do pátio da casa do delegado, não contava com a ironia do destino materializada em forma de gente. Leonardo seguia confiante, mesmo que enxergasse apenas com um olho e o corpo doesse após quase ter sido moído na porrada. Arrastava as botas com uma determinação mais emocional do que física. A automática destravada já estava à mão e pronta para fazer o serviço destinado. Tinha a alma limpa e o desejo de cobrar uma dívida. Havia algum tempo que Rodrigo Malverde o fazia de idiota escapando das emboscadas e prendendo Vitorino. Semear a desconfiança na cabeça do seu pai, certamente, fora o estopim para deflagrar a sua irremediável exclusão do planeta.

       Por outro lado, matar o delegado de Dolejal era o mesmo que abrir caminho para a ampliação dos poderes do coronel. Era sabido que o latifundiário sulista tinha conexões com a Secretaria de Segurança do estado e, em breve, um delegado de suas relações seria transferido para Matarana, ocupando então a vaga do falecido Malverde. O impacto para Thales Dolejal seria fascinante aos olhos dos Marau. Após 10 anos de proteção policial, ele se tornaria o alvo principal da artilharia pesada da polícia, enquanto para Leonardo restava saber se conseguiria também ampliar o seu negócio oferecendo sociedade no narcotráfico ao novo homem da lei.

       Uma cidade perfeita, pensou Leonardo, ao fixar o silenciador na arma. Agachou-se ao lado da picape do delegado, após subir e pular o muro que dividia a casa dos Malverde com um terreno abandonado.

       Respirou fundo antes de se levantar e se dirigir a casa. O plano era atirar no primeiro que abrisse a porta e ― sem parar, revezando as duas pistolas que trouxera, deitar todos no chão.

       Baixou a aba do chapéu e incitou o caminho de colisão.

       Jamais matara alguém e exterminaria uma família inteira. Trincou os maxilares, insatisfeito com a decisão. Ele não tolerava sujar as mãos, pois fora criado para ser servido.

       Antes de sair detrás da picape protegida debaixo da mangueira cujos galhos despencavam como cordas mortas e nodosas, ouviu passos resolutos sobre os cascalhos. Voltou-se para trás e se agachou o quanto pôde, os joelhos dobrando e mantendo o corpo flexionado. Tirou o chapéu e jogou-o no chão. O peito começou subir e descer numa respiração pesada, o ódio fervia no sangue, queimava nas veias e doía. Mirou a figura alta e loira que adentrou pelo portão, posicionou-o sob a sua mira, o dedo no gatilho, a ponta do cano em direção aos cabelos revoltos sobre os ombros encurvados.

       A mão tremeu e balançou a arma.

       Quando Franco parou e olhou ao seu redor, Leonardo esperou para ser descoberto.

        

        Karen não conseguiu segurar Rodrigo em casa. Assim que saiu, ela se pôs à janela com a Glock preparada para ser usada. Manteve a atenção direta naquele que parara à entrada, um espectro imóvel. E quando o espectro levou a mão ao coldre na cintura, Karen quebrou o vidro da cozinha com o cano da pistola.

       Rodrigo parou e, instintivamente, também destravou a sua arma. Por um segundo considerou que o camarada tivesse atirado contra a janela, mas a voz de Karen elevou-se para avisá-lo que estava a postos:

       ― Tem mais gente armada aqui, ô sujeito! ― gritou ela, as duas mãos juntas firmando a Glock na extremidade dos braços estendidos, decidida a acertar o intruso a qualquer movimento suspeito.

       Nova tentou se levantar, mas ao pisar no chão com o pé machucado, tornou a se sentar. Restou pedir com a voz angustiada:

       ― Por favor, Karen, vê se não é o Franco.

       No minuto seguinte, Rodrigo gritou para amenizar a tensão de todos:

       ― É o Franco!

       No entanto, o pistoleiro era o único que não estava calmo. Na verdade, ele estava fora. Assim que ultrapassara o portão aberto, uma sensação de alheamento tomou conta dele. Já não era primeira vez. Quando isso acontecia, precisava parar e esperar os ouvidos pararem de zumbir e a energia voltar ao corpo. Era como quando desmaiara uma vez, uma sucção de força extraída de sua cabeça e a percepção de outra realidade no estranhamento do que o cercava como real.

       Sentindo que ficaria inconsciente, dobrou o corpo e apoiou-se nos antebraços sobre os joelhos. A névoa não o envolveria para o abraço escuro e vazio. Ele não queria ir. Ele não sairia dali sem Nova. Lutou bravamente até descobrir o que estava errado.

       ― Ela está aqui. ― afirmou Rodrigo, aproximando-se e levando a arma ao coldre na coxa.

       Vendo-o encurvado como se passasse mal, o delegado estreitou as sobrancelhas, preocupado.

       ― O que tem, guri?

       Franco agachou-se e baixou a cabeça. Pegavam-no pelos pés, da terra, debaixo da terra, puxavam-no para baixo. Respirou forte, as abas das narinas se arreganharam para que o ar pudesse entrar e o oxigênio nutri-lo de força. As pálpebras pesaram como se carregassem chumbo e era difícil manter os olhos abertos.

       ― Franco! Vem, vamos entrar. É perigoso ficarmos...

       Ele não se mexeu. E o delegado virou-se para trás, dando de ombros, demonstrando sua incapacidade para compreender o ocorrido.

       Karen se voltou para Nova:

       ― O teu marido está tendo um treco.

       Nova ficou de pé e tentou caminhar. Sabrina ajudou-a a alcançar a porta, cedendo o ombro como suporte para a mulher do pistoleiro.

       ― Não vai sair daqui, amiga. ― disse Valéria.

       ― Ele precisa de mim.

       ― É verdade, mas você fugiu, não foi?

       ― Não entende, Karen, ele...

       Karen se interpôs entre as duas e a porta:

       ― É você quem não entende. Senta na cadeira e fica quieta. ― ordenou, séria.

       Coube a ela repetir o gesto de obediência que também usava para com o sogro. Sentou-se e se abraçou ao próprio corpo a fim de tentar impedir a tremedeira que irrompia de seus músculos.

       Val aproximou-se discretamente e sentou ao seu lado, pegando a sua mão, confortando-a em silêncio.

       ― Mais alguém quer bancar o herói aqui? ― perguntou Karen com dureza.

       Ninita foi a única a se pronunciar:

       ― Posso ir mijar ou vou levar bronca também?

       ― Vai mijar, vó, vai. ― respondeu a neta secamente e voltando a se posicionar à janela, de olho nos homens no meio do pátio. ― A próxima vez que bancar a perua enlouquecida, Nova, corre até a rodoviária e volta para tua terra, viu? Não quero que envolva o meu marido nos seus problemas pessoais. Ele está com a cabeça a prêmio e ainda tem de se preocupar com briguinhas de casal, me poupa! Se a tua situação com o Franco é ruim, arranja um emprego e vira gente.

       Nova abaixou a cabeça e começou a chorar baixinho.

       Não era certo ser tão dura com uma grávida cheia de hormônios, considerou Val, mas preferiu não bater de frente com a cunhada. Abraçou a amiga com carinho, trazendo sua cabeça para o seu ombro. Karen jamais dosava suas palavras, fosse para os inimigos ou amigos. Contudo, de todas elas a que mais chamara a sua atenção fora a nova designação do seu irmão: claramente Karen se referira a ele como “marido”. Rodrigo fora promovido.

         

       Franco estava de pé, os braços estendidos alguns centímetros afastados do tronco, os dedos mexiam-se exercitando as juntas, estalando no aquecimento para o movimento a seguir, após ele erguer a cabeça e fitar o delegado com os olhos congestionados, as pálpebras caídas, as narinas dilatadas e o denso silêncio de uma possível possessão.

       ― Tudo bem? ― insistiu Rodrigo na pergunta que não seria respondida.

       Franco precisou de uma fração de tempo para sacar duas pistolas enquanto o corpo girava à esquerda acompanhando o giro da cabeça e a propulsão dos pés.

       Antes que Rodrigo esboçasse qualquer reação, presenciou o ataque de um puma à presa mergulhada na escuridão. Ele não via ninguém ao redor no pátio iluminado por uma frágil lâmpada, cercado por pedras e a grama baixa, o canteiro com rosas paralelo ao muro alto de alvenaria, a picape entre ambos. E foi para lá que Franco se encaminhou, os braços estendidos e as armas destravadas, as botas pisando com determinação no chão que se estendia aos seus pés, resolutos, determinados, como um matador destinado a cumprir a sua missão.

       Ele não se protegeu ao pular por sobre o capô da picape e deslizar para o outro lado, pondo-se sobre duas pernas sem dificuldade. Ainda que o vão entre o utilitário e o muro de quase dois metros estivesse escuro, Franco pressentia a presença de olhos vigilantes, a presença de alguém que não deveria estar ali.

       Rodrigo surgiu atrás de si, a mira pronta para ajudá-lo a desarmar quem quer que fosse. Conhecia um pouco sobre a natureza mística do filho de Thales, sabia sobre os seus instintos. No entanto, ao alcançá-lo, encontrou-o mirando o vazio. Ajustando o foco da lanterna para o chão, o que descobriu foi apenas o que sempre estivera por ali, a casinha de Bonnie abandonada. Mas Franco ainda se mantinha imóvel e pronto para atirar.

       Até que virou a cabeça em direção ao muro que os separavam de um terreno baldio e que se tornara um matagal alto com árvores de tamanhos irregulares.

       ― Viu alguém? ― o delegado perguntou, vendo-o impulsionar o corpo para escalar o muro e, em seguida, pular para o outro lado.

       Rodrigo pôs as mãos na cintura e calculou a trabalheira que daria imitar a atitude do chefe da segurança da Arco Verde. Estalou a língua no palato e desistiu da empreitada. Conhecia onde morava e era só sair pelo portão para entrar no terreno vizinho. E foi o que fez. Tornando a empunhar a arma e intrigado com a inquietação do outro. Era certo que vira alguém.

       Lembrou-se da busca por Karen quando Mendes a sequestrara. Os instintos do pistoleiro captaram o “cheiro morno de sangue”, e eles a encontraram.

       Desembaraçou-se dos arbustos menores, os galhos secos e tortuosos eram como braços que o agarravam e o impediam de acompanhar a corrida frenética de Franco, caçando o seu alvo com o desespero faminto de um predador. Rodrigo tentou alcançá-lo para lhe dar cobertura ou impedi-lo de cometer um crime. Correu a plenos pulmões e, ainda que estivesse em forma, era incapaz de pôr no mesmo páreo os seus 38 anos contra os 22 de Franco. Parou, ofegante. Dobrou os joelhos e apoiou-se neles com os braços. Tomou novo fôlego ao ver a silhueta do rapaz contra a luz da lua, poucos metros a sua frente. Recomeçou a correr.

       Somente conseguiu alcançá-lo quando ele parou. Nesse momento, veio a sua mente a expressão “pôr os bofes pra fora”. Os pulmões exigiam que fossem cuspidos para se dilatarem com mais conforto.

       ― Onde está a sua inseparável picape?

       ― Deu pau na bateria ― enfim Franco falou; em seguida, confessou ainda atento ao redor: ― Senti alguém nos vigiando. A respiração tinha cheiro de sangue coagulado, uma coisa nojenta demais. ― virando-se para Rodrigo, completou com a expressão séria: ― Os olhos do camarada grudaram nas minhas costas. Acredita nisso? Ele estava de tocaia, o filho da puta estava de tocaia para pegar você, delegado.

       Rodrigo estava com a garganta seca. Correra com a boca aberta, algo não muito indicado. Endireitou os ombros não deixando de observar a cadência tranquila na respiração do garoto, a cor dourada na pele que destacava os olhos azuis e límpidos. Ele parecia ter voltado ao normal. Bem, pensou Rodrigo, voltara à normalidade típica de Franco Dolejal, normalidade estranha, por assim dizer.

       ― Quem estava de tocaia? ― perguntou, olhando ao redor, vasculhando o pouco que enxergava com o rastro de luz da lanterna.

       Franco deu de ombros e guardou no cós da cintura, frontal e traseiro, o seu armamento portátil. A postura relaxada demonstrava que o suspeito escafedera-se.

       ― Por acaso acha que eu sou a Mãe Dináh? ― debochou com um sorrisinho.

       ― Olha, pode até não ser, mas há pouco parecia um Pai de Santo recebendo uma entidade.

       ― Sou intuitivo, Rodrigo, coisa de cabra macho.

       O delegado armou um sorriso nos lábios e respirou fundo para espantar a tensão que lhe endurecera os músculos dos braços e das costas.

       ―Vou chamar o pessoal da DP para fazermos uma varredura.

       Franco ergueu a mão num sinal para contê-lo ao ver o celular pronto para ser usado:

       ― Deixa comigo, tenho um batalhão de homens para vasculhar a região.

       ― Obrigado, mas deixa os seus cães farejadores fora disso, ok? A competência é da polícia. ― foi incisivo.

       ― Assim como as sentinelas na sua casa? Ou como a escolta de militares quando você sai para as diligências? Engraçado, são todos invisíveis. Não estou te chamando de coroa, mas você é como um pai pra mim, um cara que prezo pra cacete, então enfia esse orgulho goela abaixo e me deixa pescar esse peixão fugitivo. ― a voz mostrava determinação, ainda que os olhos refletissem tranquilidade e desafio. ― Trago ele vivo, pode até ser que venha meio esfolado, mas vivo, pronto para ser interrogado por você. Olhe ao seu redor, é inútil lutar sozinho contra o coronel, chega até ser uma questão matemática, cara, o velho está em maior número. E, além disso, o que não falta em Matarana é lugar ermo para enterrar o corpo de um delegado da polícia civil. ― acrescentou de forma persuasiva.

       O delegado não estava convencido de fazer conchavo com um Dolejal, apesar da confiança que nutria pela geração mais nova deles. Fitou longamente o loiro a sua frente, escavou um pouco a sua própria intuição e não encontrou qualquer vestígio de mau pressentimento.

       Na verdade, encontrou sim.

         

       Karen estava tremendamente irritada com a situação. A prisão forçada, dentro de casa, tirava-a do sério e testava um temperamento já um tanto explosivo. Queria estar ao lado dele, ao lado do seu homem, como soldados aliados no campo de guerra. Ela não nascera para esperar pelo guerreiro. Era ela a guerreira e não se trancava em casa uma mulher composta dessa matéria.

       O ronco dos motores e os fachos de luz dos faróis antecederam a entrada do comboio de camionetes que imediatamente se perfilaram lado a lado, em oblíquo, diante da casa. Da primeira delas, saltaram a motorista debaixo do chapéu de vaqueira e o fazendeiro na calça social escura e camisa branca impecável. Atrás de si, vinte capangas sentados com meio corpo pra fora das janelas e nas caçambas, todos com espingardas empunhadas de forma ostensiva.

       Surpreendeu-se ao ver Thales e o seu exército de pistoleiros no pátio de sua casa naquela hora da madrugada que, por sinal, não era uma madrugada trivial. Observou que até mesmo Bronson estava presente e com cara de poucos amigos.

       Antes de abrir a porta para indagá-lo a respeito de sua visita inesperada, ouviu a voz da avó:

       ― Quando fui fazer xixi levei o teu celular e chamei o pai do guri. ― confessou ela.

       Karen olhou-a detidamente.

       ― Sabe o que a senhora é?

       Ninita sorriu como uma menininha travessa.

       ― Uma filha da puta?

       ― Não, vó, uma sacana muito inteligente. Agora eu posso ir atrás do Rodrigo e vocês ficarão protegidas com o Thales. ― afirmou a neta com um sorriso de vitória, abrindo a porta e quase esbarrando na muralha de carne e osso à sua frente.

       ― Por que tanta pressa? Tudo isso é saudade? ― perguntou Thales sério, ainda que debochasse e barrasse o seu caminho.

       Ela só queria correr e se juntar a Rodrigo. Encontrá-lo onde estivesse para ter certeza de que estava bem. Mas Thales não era o tipo de pessoa que facilitava as coisas. As mãos enfiadas nos bolsos laterais da calça social e agora um sorriso que era forçado a parecer natural, embora todo o conjunto do rosto mostrasse escárnio e desdém, revelava sinais de fraqueza por baixo da carcaça de arrogância. Talvez apenas Karen o visse rastejando dentro do corpo cuja coluna ereta e queixo altivo escondiam o antigo amante alquebrado.

       ― Não tenho tempo para brincadeiras, meu querido, mas não posso negar que gostei muito de vê-lo. ― piscou o olho e tentou novamente passar por ele.

       Uma mão em seu antebraço a conteve; um olhar penetrante segurou-a no mesmo lugar.

       ― O que está acontecendo aqui?

       Suspirou cansada.

       ― Teu filho fez alguma merda e deixou a Nova apavorada. Ela está esperando um bebê, é normal que fique mais sensível, ainda mais quando descobre que entrou para a máfia.

       Thales sorriu levemente.

       ― Devia ter uma conversa com sua amiga e explicar como realmente são as coisas em Matarana. ― sugeriu de forma persuasiva, os olhos cravados na boca da mulher que se agitava para se desvencilhar dele e partir.

       ― Não se preocupe com isso, ela é gamada por ele, e mulher nessa condição pisoteia os próprios princípios, esmaga todos eles num piscar de olhos. ― voltou-se para ele e o encarou: ― Vocês dois precisam afastá-la do Rodrigo. Sabe como é, né?, gente boa e honesta contamina quem decide trilhar o mau caminho. ― acresceu com ironia.

       ― Interessante. Você também divide a humanidade entre bons e maus? Houve uma época em que era mais original e aceitava a vida sem se preocupar com os rótulos. Será que a melhor mulher de Matarana contaminou-se com os Malverde e se enfraqueceu recitando agora valores morais?

       ― Não, estou ainda mais forte e por isso vou atrás do melhor homem de Matarana. Com licença, a sua nora está no quarto. ― antes de deixá-lo plantado entre a porta e o segundo degrau do alpendre, acrescentou: ― Ah, avisarei o seu filho que veio buscá-lo.

       Karen sabia que ele ainda estava olhando para ela quando desceu a escadinha e correu para fora do portão em direção ao matagal adjacente a casa. A consciência de que ele ainda se corroia com a situação estabelecida entre os dois não lhe tirava o sono, desde que permanecesse na função de aliado da polícia.

       Thales considerou impedi-la de se enfiar no meio do mato. Cogitou trancá-la em casa até que os homens voltassem com o delegado e Franco. Aí lembrou quem era Karen, lembrou-se da parte boa e ruim que ela representava, e simplesmente permitiu que debandasse. Se, por um lado, ainda quisesse vê-la de joelhos e vencida; por outro, temia que sofresse. E era por isso também que precisava ficar de olho no delegado. Se ele fosse abatido, Karen sofreria. No fundo, ele não queria ser o motivo do sofrimento dela. Nem de ser incapaz de manter vivo um de seus protegidos.

       O que ele queria então? Thales se perguntava olhando para uma porta fechada à sua frente. A resposta até que não era complicada. Queria que ela sentisse a sua falta. Poderia até lhe dizer isso por telefone. Ele precisava se manter importante para a mulher que o transformara em um desgraçado vingativo.

       Bateu à porta e esperou. Era hábito por aquela região, entre as famílias mais simples, que a entrada da casa fosse pela sua parte lateral ou dos fundos, sempre passando primeiro pela cozinha, onde normalmente recebiam as visitas.

       Foi dona Ninita quem o recebeu, um cigarro no canto da boca, o olhar gentil de reconhecimento.

       ― Obrigado por ter-me avisado sobre o meu filho. ― disse ele de forma educada e estendeu-lhe a mão.

       A avó de Karen aceitou o agradecimento e apertou a mão com firmeza.

       ― O guri nem chegou a entrar. Não sei o que aconteceu, ele e o Rodrigo saíram correndo.

       ― Devem ter visto alguém. ― e acrescentou num tom de brincadeira, ainda que não sorrisse: ― Imagina o que acontece quando dois paranoicos estão juntos.

       Ninita imaginou, sim, e torceu para que o suspeito em questão fosse filho de chocadeira, porque se tivesse uma mãe viva, a pobre desgraçada veria o filho na prisão.

       Afastou uma cadeira e fez sinal para o fazendeiro, um leve sorriso nos lábios que raramente sorriam. Ninita era uma durona das antigas.

       ― Senta, por favor, seu Dolejal, que eu vou chamar a Nova.

       Ele agradeceu e se sentou com as costas relaxadas contra o encosto da cadeira, as pernas cruzadas.

       Ninita percebeu que ele se sentia à vontade, confortável, um sorriso simpático nos lábios e os olhos curiosos xeretando cada parte do ambiente jamais visitado. Alcançou o longo corredor até o quarto de Val.

       No caminho refletiu sobre a presença do ex-caso da neta na cozinha do atual caso, parecia aquele tipo de putaria típica da novela das nove. E era sobre putaria que a senhora setentona pensava quando o furacão Sandy quase a arrancou do chão.

         

       Apenas a luz do abajur sobre o criado-mudo iluminava o quarto de Val. Sabrina, sentada à beira da sua cama, fazia carinho no dorso da mão de Nova que, deitada de lado, tentava relaxar a musculatura das costas, dolorida de tensão.

       Valéria achou bonito o carinho da filha para com Nova e era como se ela cuidasse de uma paciente ferida e carente no leito hospitalar. O que estava longe de ser o caso da amiga. A esposa de Franco estava assustada e sensível demais por causa da gravidez. E Val tinha certeza absoluta de que assim que ela visse o marido, assim que ele botasse a ponta da bota esquerda na casa para buscá-la, ela se atiraria em seus braços.

       Val e Nova não eram como Karen; elas, sozinhas, não se bastavam. Elas precisavam dos outros para viver e viviam através deles. Eram como plantas voltadas para o calor e a luz do sol, de si mesmas não tiravam alimento nem energia, precisavam de uma fonte externa. Nova precisava de Franco para existir para os outros e para si própria. E Val precisava da filha e do irmão.

       E agora Val precisava impedir que os seus pés corressem em direção à voz que ouvira na cozinha.

       Mãe e filha se entreolharam. E foi a última quem primeiro perguntou:

       ― É o Dolejal?

       Nova ergueu meio corpo, o rosto cansado expressou ansiedade:

       ― O Thales também veio me buscar?

       Val engasgou com a saliva. Uma veia grossa pulsava no seu pescoço. Ela sentia o tremor da veia.

       ― Fiquem aqui que eu vou ver. ― sugeriu num fiapo de voz.

       Sabrina se voltou para Nova e o seu olhar dizia tudo. Porém, o que ele dizia parecia-lhe sem sentido, visto que sua mãe jamais arregalara os olhos e tremera as narinas ao receber em casa uma visita do sexo masculino.

       ― O que ela tem, hein? ― perguntou à Nova.

        A mulher de Franco se ajeitou nos travesseiros e respondeu com um sorriso brincalhão:

       ― Tua mãe foi tocada pela fadinha do amor.

       Sabrina franziu o cenho sem entender, e foi preciso uma breve explicação:

       ― Bem, ela está vivendo o que tem de viver, é isso. O que você viveu com o Eduardo, por exemplo.

       ― Mas o cara da farmácia da segunda via é doido por ela, até pediu o telefone daqui de casa, quer levar a mãe pra jantar e, sei lá... ― balançou a cabeça, incomodada: ― Sei que a mãe é bonitona, mas...

       ― Mas acha que Thales Dolejal é muita areia pro caminhão dela?

       ― Sinceramente?

       ― Ela é perfeita para ele.

       Sabrina balançou a cabeça, pensativa.

       ― Isso não vai dar certo.

       Nova percebeu que qualquer argumento a favor do romance entre Val e Thales seria limitado, optou então por descansar a cabeça no travesseiro e observar a futura enfermeira ligar a televisão à procura de um filme de terror.

         

       Valéria escancarou as portas do guarda-roupa, deu um passo para trás e levou as mãos às bochechas, ligeiramente atônita. Onde estaria a roupa mágica que poria aos seus pés o homem da sua vida?

       Era impossível que o deixasse vê-la na camisola que vestia, uma segunda vez acabaria com qualquer chance de conquistá-lo. Precisava causar uma boa impressão, algo bem comportado e sensual, que não mostrasse que ela tinha posto suas roupas abaixo para criar uma imagem sedutora e fisgá-lo. Ainda que a intenção fosse essa.

       Experimentou um jeans e uma regata, como Karen se vestia. O efeito não era o mesmo. A cunhada tinha a cintura estreita e o abdômen enxuto, estufava assim apenas a parte detrás da calça. Um nó de angústia e frustração a fez desistir de tudo, de se vestir bonita para ele, de vê-lo, de jantar com ele e de entrar na sua vida.

       Mas foi uma hesitação momentânea e durou até ouvir os passos de Ninita no corredor. Abriu a porta e pegou a velhinha pelo antebraço:

       ― Aonde vai, vó? ― sussurrou.

       ― Chamar a Nova, ora.

       ― Me dá um tempo com ele, quero dizer, sozinha com ele. ― pediu.

       A avó de Karen mordeu o lábio inferior, pensativa.

       ― O que ganho se deixar?

       ― Lavo sua roupa por um mês. ― prometeu.

       ― Certo, as calcinhas também?

       Val fez uma careta e bateu amistosamente no ombro de Ninita.

       ― Claro que não!

       ― Tudo bem. Corre lá e agarra o homem, assim ele deixa a minha neta em paz. Sugiro uma boa overdose de sexo. ― falou, espirituosa.

       Val sentiu o sangue subir às bochechas. Piscou o olho e voltou a se concentrar na montanha de roupas espalhadas sobre a cama e o tapete.

       Encontrou um vestido de verão, de malha, longo até os tornozelos. Sim, não mostraria suas pernocas. O charme do mistério também seduzia. As costas e os ombros desnudos na frente-única amarrada atrás do pescoço. Um corte reto num caimento mole, marcado logo abaixo do decote avantajado; tamanho 42 para quem vestia 44.

       Olhou-se demoradamente no espelho, um sorriso malicioso nos lábios e o fogo da paixão no olhar. Penteou o longo cabelo e deixou as mechas descansarem sobre as costas. Um pouco de perfume vestiu-a de almíscar. Calçou as sandálias e saiu para o evento.

       Ao chegar à entrada da cozinha, parou.

       Ninguém se acostumava àquele tipo de beleza numa região de aridez e chuva de cinzas; principalmente, a uma beleza agressiva. Não era como contemplar uma pintura; era mais como admirar a terra, a terra no poço do penhasco, e o perigo da queda fatal. Ondas de temor lambiam suas as panturrilhas e quase lhe dobravam os joelhos. E quando ele percebeu a sua chegada e a encarou sem se esquivar de ser revistado e revirado por dentro, ela se entregou não apenas na roupa e no perfume, ela se entregou na alma revelada no brilho do olho. Porque os seus olhos disseram que o amava por ser belo, por ser perfeito, por ser quem era com tudo o que vinha com isso, por ter nascido e por existir, por ser proibido e inacessível, por ser o ogro que ela desejava aceitar sem modificá-lo, sem retocá-lo e sem se deixar destruir por ele.

       Ao entrar, Valéria desconfiou que ele percebera a manobra de conquista. Na fisionomia séria um brilho de divertimento que contrastava com o lampejo de luxúria, os olhos se detiveram no decote que revelava e escondia parte dos seios. O modo como Thales a olhou, oscilando gradativamente da mera constatação de uma intenção de sedução para a aceitação da estratégia, a admiração velada pelo corpo cheio pressionando a malha do vestido. O azul dos olhos escureceu chamando-a para dentro, convidava-a a mergulhar no oceano profundo e quente. E ela se viu banhando nua nas águas dele, e, nelas, Valéria era bonita e desejável. Através dos olhos dele, a realidade era melhor. Ela se aceitava melhor.

       ― Como vai, Thales?

       Cruzou o recinto até se postar entre a mesa e o balcão da pia, o janelão de vidro aberto, e a noite entrando com o vento suave e morno, a atmosfera cheirando a eucalipto e o barulho das botas de quem estava lá fora.

       ― Como vai você, Valéria?

       A pergunta foi feita num vagar rouco e arrastado, uma correnteza fluída de quando se dá um salto num planeta sem gravidade. Intencional ou não, toda a vez que Thales a chamava pelo nome tocava a sua pele o lençol de uma cama com ele. E também isso ele sabia.

       ― Pensei que fôssemos nos ver apenas amanhã. ― forçou um tom casual que o tremor na voz o corrompeu.

       O sorriso nasceu preguiçoso no rosto cuja macheza explícita se evidenciava na barba por fazer.

       ― Pra ver como sou um homem de sorte. ― comentou simplesmente; em seguida, tornou a vasculhar o seu corpo atrás de evidências de que tudo fora posto ali para servi-lo.

       Ela deu-lhe as costas a fim de ganhar tempo e reunir coragem para voltar ao embate. Aproveitou para abrir a porta do armário aéreo e retirar o pote plástico com o pó de café. Determinada a se controlar, continuou a se mexer pela cozinha em busca do bule de inox e o coador.

       Falou sem se voltar:

       ― Gosta de café passado?

       Não obtendo resposta, voltou-se e o encontrou olhando para o seu traseiro.

       ― Gosto. ― ele respondeu ao esbarrar os olhos nos olhos dela; depois, completou sugestivamente: ― Forte e quente, você gosta?

       Ela pensou em responder que sim e com duas doses de vodca. Se ele se referia realmente a café. Mas talvez a vodca não mais tivesse sobre si o efeito que Thales causava. Desde que dividira o mesmo teto com ele nenhuma bebida fazia efeito no seu organismo. De certa forma, Val perdera o prazer de antes, de sorver os seus sucos batizados. Ansiava, sim, por algo mais forte, como um viciado subindo os degraus da dependência e descendo os da dignidade.

       A ideia era se ocupar com qualquer tarefa que não o permitisse hipnotizá-la para além do normal. Por isso se manteve atenta ao acrescentar a água fumegante para vê-la misturar-se ao pó marrom, encher até a borda do coador e, depois, descerem misturados pó e água.

       Um barulho na rua a fez se aproximar da janela. Estranhou o número de pistoleiros que viera com o patrão. Encurvou o corpo para frente quase encostando o quadril no balcão da pia, indagou intrigada:

       ― Por que tantos homens?

       ― O Bronson encontrou a casa do Franco aberta e a picape abandonada no acostamento da estrada. ― ele respondeu calmamente e acresceu: ― Se tivéssemos que procurar por ele, pela região, eu teria de utilizar um bom contingente de funcionários.

       ― A Nova veio direto para cá. ― comunicou-o, enquanto enchia novamente o coador com água.

       O cheiro do café era delicioso e combinava com a cena intimista, o aconchego de sua casa, a simplicidade no encontro entre duas pessoas que se conheciam havia muito tempo e que, no fundo, não se conheciam.

       Percebeu-o atrás de si, fazendo o mesmo que ela, olhando para fora através da janela. O corpo forte colou-se ao dela. O propósito de fazê-la sentir todo o seu poder e calor pressionando-a contra a virilha, encurvando-se ligeiramente por sobre ela e, ao mesmo tempo, ignorando o ato, enquanto comentava distraidamente o motivo de andar com tantos capangas ao seu redor.

       ― Ainda há muitos desses na Arco Verde. ― falou baixinho, a boca quase encostada à sua orelha.

       Se Val virasse o rosto centímetros para o lado, esbarraria no rosto dele tão próximo ao seu que aspirava o cheiro de sua pele e cabelo. Preferiu fingir que se interessava pela movimentação no pátio logo depois do alpendre.

       ― Almíscar ― ele sussurrou antes de prender-lhe o lóbulo da orelha entre os dentes frontais.

       Ela gemeu baixinho oferecendo-lhe o pescoço, que foi mordiscado com suavidade em toda a sua extensão, alcançando o ombro nu e retornando pelo mesmo caminho até parar a boca na parte superior da orelha, descendo para o maxilar, os braços enlaçando-lhe o tronco, as mãos abertas, o abdômen; as nádegas firmemente pressionadas contra a dureza de seu sexo.

       Thales estava atordoado de desejo e fascinado pela beleza espetacular do corpo grande e feminino, explosivo, dinamite debaixo de um vestido comprado em alguma liquidação, loucura de mulher tipicamente suburbana, domesticada pela vida de prestadora de serviços caseiros, sem maquiagem, sem unhas de porcelana, sem sofisticação alguma, sem classe, simplória e completamente disposta a enfrentá-lo na arena. Desarmada e tola, oferecendo-se para ser tatuada pelo seu suor e, ah!, ele imprimiria naquela pele branca e cheia de sardas a sua marca, fosse beijando a pele do seu pescoço, arrepiada, fosse subindo as mãos e apertando os seios fartos, sentindo debaixo da palma os bicos duros, a excitação dela o consumia em labaredas que se espalhavam pelos músculos, tencionando-os e os estirando ao limite.

       ― Seu plano é me enlouquecer, Valéria Malverde? ― ele gemeu, a voz rouca contra a sua orelha, o ar falando junto, a respiração pesada.

       Sim, ela guardou para si a resposta, deitando a cabeça para trás, encontrando o tórax dele, o apoio do corpo forte. Estava drogada, só podia. A única coisa que a interessava era se deixar ser apalpada, apertada, desbravada por um colonizador. O seu.

       Gemeu alto quando a mão grande avançou por dentro do decote e pegou seu peito com domínio, pegou-o como se pegasse um objeto seu, posse, força. O desejo aumentou ao ponto da perda da noção de certo e errado, ultrapassando o limite do sensato e do desatino. Ela queria senti-lo mais e mais. Forçou o quadril para trás para encontrá-lo pronto.

       ― Quero você na minha cama. ― a voz sufocada de desejo golpeou os últimos pudores dela, nocauteou-os, e a vontade subjugou a razão.

       ― O que você quer, Thales? ― insistiu entre um gemido e um suspiro profundo. Ela queria ouvir, precisava ouvir novamente.

       Ele a virou para si e a olhou com firmeza. O rosto afogueado de tesão, as mechas curtas e úmidas na testa, as linhas de expressão pronunciadas ao redor das pálpebras, toda a fisionomia de um animal com fome, um predador voraz diante de uma presa fácil.

       ― O que você também quer. ― repetiu devagar, com a sinceridade crua que lhe era peculiar.

       Só que não era a expressão de um desejo, ela bem o percebeu quando ele continuou com um leve sorriso maldoso:

       ― Deixarei marcas em você que nem o tempo apagará.

       Valéria ouviu alguém gritar dentro de sua cabeça para correr e fugir.

       ― Estou preparada. ― constatou com serenidade.

       Thales nunca imaginou que ainda existissem mulheres ingênuas como a irmã do delegado. Testou mais uma vez:

       ― Quer mesmo fazer parte do meu inferno? ― os olhos se estreitaram avaliando-a.

       ― Vou tirá-lo do inferno. ― declarou com simplicidade.

       Fora tão fácil, tão fácil. Sem jogos ou estratégias, sem plano algum para uma elaborada vingança e já estava a mulher se entregando. Ela sorria como uma tola, como toda mulher enganada por si mesma sorria.

       Por um momento teve vontade de abandoná-la na cozinha e voltar para sua vida, esquecer a intenção de punir Rodrigo. A facilidade em ter Valéria o incomodava e, de certa forma, o exasperava. Ela não lutava para se proteger dele nem para se preservar de uma decepção. Ela o aceitava de braços abertos como a vítima o seu algoz. Por isso, e ainda mais, precisava apanhar da vida para aprender a ser inteligente. Ele lhe daria uma boa lição, prometeu a si mesmo.

       E depois baixou a cabeça e a beijou, os braços apertaram-na com força.

         

       Karen encontrou-os no meio do caminho, o foco branco da luz da lanterna chegou antes das figuras altas toldadas por chapéus, caminhando lado a lado, remexendo levemente os quadris de forma displicente, cansados, arrastando as botas no mato baixo. Aqueles dois eram os legítimos caubóis do cerrado, pensou ela, com um sorriso de reconhecimento e ajustando as passadas largas a um ritmo menos puxado.

       Jogou-se nos braços de Rodrigo, que lhe enrodilhou o corpo e a apertou num abraço daqueles, cheio de contentamento. Mas depois se afastou para encará-la com um ricto de contrariedade, já que ela não devia estar ali.

       ― Se você e a Glock estão aqui, quem está protegendo o pessoal de casa?

       Karen sorriu de modo travesso.

       ― O exército do Franco chegou com tudo.

       O loiro apertou o passo, uma ruga de preocupação acentuava a expressão agora séria. Rodrigo, como sempre, exigia explicações para compreender a situação como um todo.

       ― É algum tipo de estratégia para limitar os passos da Nova? ― a pergunta direcionada para o homem ao seu lado.

       Franco nem se deu ao trabalho de se voltar ou diminuir o passo para responder secamente:

       ― Não sei o que está falando. Vim buscar minha mulher e espero que ela queira voltar comigo, senão...

       ― Senão...? ― o semblante do delegado demonstrava a sua disposição em defender a amiga. ― Vai fazer o quê, hein? Levá-la de arrasto como um primitivo?

       ― Não, delegado. ― resmungou.

       Karen tinha o hábito de pôr lenha na fogueira:

       ― Meu amigo, não é porque casou que algemou a Nova na tua cama, viu? O que tem de fazer é conversar com ela usando aquele teu charminho de menino-bruto-abandonado-na-estrada, isso realmente parte o coração de qualquer mulher.

       Rodrigo interferiu com ponderação antes que Franco a mandasse à merda e a confusão se instaurasse de vez.

       ― Tente ser maduro e racional, controle-se, ela precisa de segurança, está grávida e longe de casa, é uma situação difícil.

       ― Quem sabe o senhor mesmo não pega a Nova no colo e a consola? ― indagou Karen, irritada: ― Porra, Rodrigo, ela tem trinta e poucos anos nas guampas e é tratada como se fosse uma adolescente retardada que precisa de proteção e palavras gentis para não ficar traumatizada com a brutalidade da vida. Me poupa, cacete! A gente já queimou sutiã, meu filho! Mulher não nasceu para ser protegida, nem Deus quer isso, Ele Próprio nos escolheu para gerar e parir vocês, os tais fortões! Nós temos o poder! Nós somos a força da natureza! Nós é que protegemos vocês, diabos! Quem foi que te ensinou a comer, caminhar e fazer coco no penico, hein, ô Rodrigo? Foi uma mulher, meu querido! Então para de tratar a mulherada como bonequinhas de porcelana!

       O delegado não sabia o que falar, já não era a primeira vez que os discursos de Karen o deixavam mudo. Concordava com ela em cada vírgula, mas, ainda assim, por ser tão importante, o sexo feminino precisava de proteção dobrada. Talvez Karen não percebesse que a sua necessidade de se impor aos homens revelasse justamente a sua fragilidade, mesmo sendo a mulher durona que ele tanto amava.

       ― O Rodrigo tem razão. ― afirmou Franco, espicaçando o efeito do discurso.

       Karen então prontamente encerrou o assunto.

       ― Então te fode, Franco.

       O pistoleiro não havia percebido que Karen estava de fato do seu lado tentando facilitar a sua relação com Nova. Relanceou-lhe um olhar de esguelha e a viu olhando para Rodrigo de um jeito que jamais a vira olhar para o patrão. Um olhar amoroso e sereno, de admiração e respeito. Mesmo desbocada e bruta, Karen Lisboa não fora domesticada por Rodrigo ― e jamais o seria, ele tinha certeza disso, ela fora, isso sim, conquistada por ele.

       ― Se a minha mulher não me quiser mais, eu vou embora do centro-oeste. Monto na minha picape e ganho o mundo, e espero encontrar algum inimigo de grosso calibre pelo caminho pra me abater de vez. ― falou com amargura.

       ― Céus, quanta sabedoria! ― debochou Karen. ― Vai deixar a tua filha sem pai e abrir caminho para a Nova casar com outro, além, é claro, que embolsará uma bela pensão e viverá feliz da vida à beira da piscina com o próximo pistoleiro saradão. ― caiu na gargalhada.

       A caminhada cessou num átimo, e todos olharam para a mesma direção.

       ― Pra quê tudo isso? ― interrompeu Rodrigo ao adentrarem o pátio de sua casa.

       Franco sorriu sem jeito ao ver as camionetes cercadas pelos seus subordinados da Arco Verde.

       ― Acho que foi por que eu me esqueci de fechar a porta de casa.

         

       Foi como voltar de um desmaio, da escuridão tépida e morosa da inconsciência, apesar de contraditoriamente todos seus os sentidos se mantivessem em alerta. O corpo vibrava numa frequência aguda, a carne comprimida por outro corpo, exigente e ousado. Valéria mergulhou no beijo e era como se todo o seu ser beijasse a maciez firme da boca de Thales. Nunca lhe havia passado pela cabeça que alguém tão controlado e determinado no comando de suas ações fosse também um macho lascivo e avassalador, quente, e tal constatação a levava a pensar de forma vulgar, comparando-o com os garanhões comprados a peso de ouro para cobrirem éguas.

       Ela se afastou antes dele. E foi esse gesto de afastamento, impondo a distância de poucos centímetros entre ambos, que a permitiu presenciar o evento. Thales injetava o azul de seus olhos dentro de suas veias e a droga já corria por sua corrente sanguínea do mesmo modo que acontecera com Karen anos atrás. Foi mágico até, um tipo de sofisticado sadismo por parte dele, que encontrou a reverência contemplativa do seu lado mais forte, imbatível e totalmente entregue à dependência da toxina que minaria não apenas o seu sistema nervoso, como também os seus pudores criados à base de chás e comédias românticas.

       Thales estava tomado pela vontade de fazer sexo com ela, afastar o fundilho da calcinha, arreganhar suas coxas e meter fundo olhando para o seu rosto limpo de mulher caseira, de dona de casa certinha, de santa com cheiro de almíscar vertendo suor corrompido pela libido. Lambeu com os olhos cada palmo do corpo feminino e sensual, desenhado com curvas generosas, flambando-a para ser servida com a maçã na boca, de bruços, na sua cama. A boca inchada, as marcas avermelhadas na pele e as pálpebras quase fechadas, toda a expressão facial de Valéria e os seus seios fartos, os bicos se projetando duros, as coxas cheias de carne, o vale quente pulsando, toda ela ofegava ainda presa no arco dos seus braços e prometia oferecer a melhor de suas aventuras eróticas. Nada como uma submissa para deflagrar a paixão de um dominador.

       Notou quando ela baixou o olhar discretamente para a sua cintura, um sorriso de satisfação ao perceber que o excitara ao ponto de revelar na calça o tamanho de uma bela ereção. E a reação ao sorriso dela o levou a imaginá-la de joelhos diante da fonte.

       ― Acho que eles chegaram. ― Valéria deixou escapar junto com a respiração.

       ― Então temos um segredo? ― perguntou ele, com certo divertimento na entonação de voz baixa e irônica.

       ― Por quê? Quer que a Karen nos veja?

       Thales percebeu que a submissão de Valéria era bem dosada.

       ― Para falar a verdade, prefiro que o seu irmão nos dê o flagrante. ― afirmou com um meio sorriso, soltando levemente as rédeas da mulher que já estava presa por elas. ― Tenho a impressão de que ele a porá de castigo se descobrir que brinca comigo no parquinho.

       Val ouvira falar sobre o senso de humor esquisito do fazendeiro.

       Ele sorria sem vestígio algum de maldade ou ironia.

       Ela então sorriu de volta. E, ainda se olhando, eles riram; estavam rindo de si mesmos.

       Até que a porta foi aberta bruscamente, e Franco entrou, não demonstrando qualquer interesse em compreender o motivo da agitação da irmã do delegado, retirando-se do diminuto espaço entre o balcão da pia e o seu pai.

       Ele realmente não se importava com nada que não fosse ver Nova. Mas teve de parar no meio da cozinha, uma vez que não estava em sua casa e precisava cumprir determinados protocolos de civilidade, como lhe dizia Rodrigo.

       ― Vá buscar a sua mulher. ― ordenou Thales com a naturalidade típica de quem está acostumado a mandar.

       Valéria fez menção de levá-lo até o quarto, porém se deteve ao ver a mágoa cristalina que quase se derramava de uma pálpebra, a que tremia. Por isso apenas indicou o caminho sem se juntar ao casal.

       ― Franco, ela está no quarto com a Sabrina.

         

       Ao encontrar Nova deitada na cama, recostada contra dois travesseiros e o pé com a atadura, Franco pôde enfim desaguar a dor que quase o asfixiava. As lágrimas vertiam em fios sinuosos descendo pelos maxilares e pingando no chão. O choro silencioso, sem escândalo, sem soluço. Apenas os olhos molhados e o queixo trêmulo.

       Sabrina ergueu-se rapidamente sem deixar de se sentir contaminada por toda aquela tristeza que ela não soube definir de onde vinha e por que se instalara não somente em Franco, mas também nas paredes, cortinas e dentro dela. E era como se ela estivesse assistindo ao lamento calado e até sereno de uma criança que sonhara com a morte da própria mãe. Logo Franco cuja morte materna não fora apenas um pesadelo. Conteve-se para não abraçá-lo.

       Antes de sair e fechar a porta atrás de si, ela viu o diabo loiro, o psicopata de Matarana, ajoelhar-se ao lado da cama, pegar o pé ferido da esposa, baixar a cabeça e beijá-lo delicadamente. Com esse gesto ele dizia tudo, Sabrina pensou, um nó apertado na garganta.

       Ele não pediu para não ser abandonado; uma segunda vez ele não pediria. Na decisão não havia rastro de orgulho ou soberba e sim a determinação de aceitar o seu destino, a fatalidade de ser largado no acostamento das estradas. O que Nova resolvesse seria acatado por ele. Ela era a sua vida e se a sua vida desejasse partir, assim seria.

       ― Entre nós, você sabe, é uma estrada sem volta. ― ela começou, fitando-o de cabeça baixa, os lábios descansando levemente sobre o seu pé, o cabelo atirado para frente escondendo o seu rosto. ― Nunca mais seremos iguais a como éramos antes do que aconteceu, e não adianta tentarmos esquecer e seguir em frente. A gente nunca esquece o que é importante e o problema acaba criando vida própria e toma conta de tudo.  Essa coisa de margem de rio acabou, ou sou a sua mulher ou não sou mais. E se não me disser exatamente como age e o que faz, qual é a natureza do seu trabalho, vou acreditar que não o conheço de verdade. Sinceramente, não quero deixar de ser a princesa para me transformar na bruxa, entendeu? ― perguntou, incisiva.

       Ele apenas assentiu levemente com a cabeça.

       ― Olha pra mim. ― pediu e foi atendida.

       Vê-lo chorar não a fazia nada bem. A ponta do nariz avermelhada e as lágrimas que desciam dos olhos injetados contrastavam com o rosto másculo com a barba por fazer.

       ― Por algum motivo sempre imaginei que a sua fama de pistoleiro fosse mais devido ao seu comportamento irreverente do que a algum ato ilícito. Não sei, talvez conhecendo a sua docilidade e estando apaixonada por você, elaborei uma bela fantasia, uma ideia romântica que o tornava um justiceiro, sim, alguém perigoso, mas que jamais faria mal a alguém. Ou talvez eu tivesse tanto medo de descobrir que o homem mais maravilhoso do mundo era, na verdade, um assassino frio, que acreditei nessa fantasia de sermos comparsas. Afinal, quantas vezes me autointitulei de bandidona? ― indagou com um sorriso triste. ― Mas o amor verdadeiro não é feito de projeções, não é mesmo?

       Ela parou de falar, a voz carregada de emoção. Uma faca partia em pedaços o seu coração que sangrava angústia.

       ― Amo você, princesa... amo demais, não sei falar palavra bonita, não sei como dizer o que sinto por você, a única coisa que me interessa nessa desgraceira de vida é ver você sem esse olhar de tristeza por minha causa... ― ele começou a falar aos trancos, engolindo as lágrimas, tremendo cada sílaba, afoito, quase se afogando na vontade de trazê-la para perto outra vez. ― Só acreditei que tinha sorte na vida quando você se interessou por mim, alguém como você, meu Deus, nunca alguém como você ia querer coisa com alguém como eu. Sempre soube disso, eu sempre soube que...

       ― Era um assassino? É isso, Franco?

       ― Não.

       ― O que sempre soube então?

       Ele a olhou prolongadamente e por fim revelou quase num sussurro:

       ― Que eu não sou uma boa pessoa.

       ―E o que fará a respeito?

       ― O que posso fazer, minha genética é fodida.

       ― Para de bancar o moleque ou volta pra escola, Franco! ― repreendeu-o com austeridade. ― Chega de culpar a mãe prostituta que o rejeitou ou o pai que o criou como um empregado ou essa sua famosa genética avariada! Cresça e assuma a responsabilidade das suas ações! Não continuarei casada com um pistoleiro matador, ouviu bem? Vou sofrer horrores longe de você, nem quero pensar em não vê-lo todos os dias... ― ela parou, consternada, puxou um pouco mais de ar para os pulmões e continuou: ―Viu o que fez? A gente precisava dessa merda toda, hein? Não basta ser segurança de fazenda, tem de sair por aí matando gente?

       ― Princesa, não mato gente. ― insistiu.

       ― Bandido também é gente, Franco.

       ― Para mim, não.

       ― Claro, isso justifica tudo, não é?

       ― Não, não justifica.

       ― Quantas pessoas você matou?

       Ele sorriu com o canto dos lábios.

       ― Nenhuma pessoa. ― antes que ela falasse após abrir a boca, acresceu significativamente: ― Mas dei fim a dois bandidos.

       ― Meu Deus! Sabe quanto tempo de prisão pegará por esses dois homicídios?

       ― Tudo é bem-feito, Nova, não se preocupe com isso. ― assegurou.

       ― Claro, o Bronson descarta corpo e o Thales joga uma boa pá de terra sobre qualquer investigação. ― considerou exasperada.

       ― Porque ninguém se interessa por bandido morto. Só você. ― enfatizou de forma significativa.

       As lágrimas haviam secado, ainda que os cílios estivessem úmidos. Um rastro de choro se mostrava no leve inchaço das pálpebras e no tom corado das maçãs do rosto. Ele mantinha os olhos cravados nos dela, talvez como uma forma de hipnotizá-la para mudar o seu modo de pensar ou talvez para trazer de volta a Nova com a qual se casara.

       ― O interesse que tenho é por você. ― afirmou convicta sem, no entanto, baixar a guarda: ― Já disse em várias ocasiões o quanto o amo e não vejo outra forma de amar alguém que não seja se preocupar com a pessoa e desejar o melhor para ela. Você, Franco, nunca teve chance de escolher o seu próprio caminho, foi pego pelo Thales na estrada e depois criado com os pistoleiros. O que mais poderia fazer? Quem poderia tê-lo aconselhado? Em quem você confiaria para aceitar um conselho? Não é tarde para mudar, entendeu? Continue como segurança, não vejo problema algum nisso, mas lembrando que a sua função é a de defender e proteger. É preciso que haja um limite nesse seu trabalho. Quem prende bandido é o Rodrigo e o resto da polícia; você, o seu pai e os pistoleiros são cidadãos comuns. ― ela fez uma pausa, pois precisava reunir coragem para jogar a sentença no ar: ― De agora em diante, você é apenas o chefe da segurança da Arco Verde, como sempre o foi. Tem de cuidar de quem entra, dos limites da fazenda e tudo que se relaciona com essa segurança. Acabaram as ofensivas armadas contra os inimigos do teu pai ou ações de justiça com as próprias mãos. Se não andar na linha, Franco, vou embora com a nossa filha. ― declarou com firmeza.

       Quarenta homens preparados para pôr fim à dinastia Marau. Em menos de quarenta e oito horas, sob o seu comando, a entrada de Thales Dolejal, pela primeira vez em vinte anos, no terreno do seu maior inimigo.

       Franco não hesitou ao afirmar:

       ― Andarei na linha, princesa, pode deixar comigo.

       Ela ainda não estava certa sobre a verdade daquelas palavras.

       ― E o que falou há pouco no jantar, de invadir a Coração de Ouro?

       ― É só uma visita, nem tirarei minhas armas do coldre. ― respondeu com serenidade e depois completou sem rodeios. ― É o meu trabalho, estou à frente dos meus homens e preciso garantir a segurança do meu pai.

       Nova percebeu que batera de frente com a devoção a Thales Dolejal. Sustentou o olhar atento do marido, perscrutador até, para, em seguida, se recostar nos travesseiros e chorar.

       Foi então que o desespero tomou conta do pistoleiro.

       Num átimo, ele se postou ao lado da mulher, à beira da cama, e a puxou para si abraçando-a. Apertou o corpo pequeno contra o seu, sentindo a fragilidade de duas vidas entre os seus braços e, ao mesmo tempo, a força e o poder que detinham sobre ele.

       ― Volta comigo pra casa, por favor. ― ele não pediu uma segunda vez. Implorou.

       Franco jamais mudaria, havia nascido para ser quem era, Nova considerou, enterrando o nariz na camiseta dele e aspirando o cheiro da sua própria pele.

         

       O sol queimava do céu e espalhava o calor pela planície. Embora na estação das chuvas as temperaturas não se elevassem tanto quanto no estio, naquela manhã de dezembro, a bola amarela incandescente se mostrava mais hostil que nas últimas semanas. Bem, pelo menos, era assim que Cristiano Bittencourt sentia o seu dia, vindo do Camaro largado a poucos quilômetros dali, entre as fazendas Arco Verde e Coração de Ouro, perto da casinha onde Mendes ― segundo a polícia de Matarana, fora assassinado.

       Ele estava diante de uma cova fechada e recentemente recheada com um corpo. Debaixo de seus sapatos caros, a terra que fora remexida havia pouco mais de um mês. Olhando ao redor, o que via eram arbustos retorcidos com algumas folhas verdes, outras amareladas; o prado quase esverdeado no mato ralo e baixo e uma casinha de madeira abandonada. Era um pedaço de terra entre duas importantes fazendas esquecido após o recolhimento do cadáver de Mendes, o pistoleiro morto por Everaldo Viegas.

       Cris agora sabia quase tudo sobre Everaldo. Observando Franco bem de perto, à espera de descobrir e provar o quanto era nocivo e instável emocionalmente, o destino dera-lhe um presente pondo-o como testemunha de um crime. Era mesmo como se dizia, que para todo o crime Deus arranjava testemunhas.

       Após o casamento de Nova com o pistoleiro, iniciou o que se configuraria como “o processo de exposição de um bandido disfarçado de justiceiro” e passou a seguir e espreitar todas as ações de Franco Dolejal. Todas, até mesmo sua ida ao cinema.

       Voltou ao Camaro e retirou do porta-malas a pá em bico, de aço, o cabo comprido e de madeira ainda no invólucro plástico da agropecuária de Belo Quinto.  Segurou-a longe alguns centímetros de seu corpo, admirando com certo desprezo o objeto tão deslocado do seu estilo de vida; era o bisturi da terra, cortando e separando em linhas. Considerou que também estivesse descendo alguns degraus ao comprar de forma sorrateira um instrumento para cavar a terra e retirar dela um cadáver. Nem sabia ao certo se era aquele tipo de pá para fazer tal trabalho, como se houvesse pás especiais para isso. O que ele sabia sobre cavar e escavar relacionava-se apenas à metáfora relacionada à investigação de possíveis doenças infantis.

       Ajustou o chapéu panamá na cabeça e bebeu uma boa golada de água mineral, antes de se postar diante da terra revolvida, a cova de Everaldo.

         

       Nova se espreguiçou e bocejou ao mesmo tempo. Antes de abrir os olhos já sabia que estava sozinha na cama. Franco não dormira ao seu lado, justamente porque ele não dormira. Ao voltarem da casa dos Malverde, a tônica principal entre ambos fora o silêncio.

       Ele a retirou da picape e a carregou no colo para o quarto, trancou a casa e se pôs a limpar a louça usada no jantar.

       Ela então adormeceu ouvindo o barulho suave da água da torneira e os passos descalços do marido sobre o assoalho de madeira. Como estava exausta após ser tomada por uma enxurrada de emoções e lágrimas, o sono veio fácil, arrebatou-a com sua suave tepidez.

       Foi até a cozinha, aspirando no ambiente o odor característico do café descansando na cafeteira elétrica. A sensação ruim de não encontrar Franco à mesa lendo o jornal ou tostando o pão com manteiga na frigideira ― sua especialidade que tanto se orgulhava, atingia o seu peito em cheio. Fora dura com ele, era verdade. Encostara-o contra a parede exigindo um comportamento que era mais compatível com o seu modo de pensar do que com o tipo de vida que se levava em Matarana. Dera-lhe um ultimato, como quando o fizera com Cris, a fim de que resolvessem a situação afetiva entre ambos. E o que acontecera? O amigo lhe deixara à mão o celular com as mensagens de sua amante para que Nova soubesse que nada mudaria entre eles. Ele não mudaria por ela. Não lutaria por ela. E assim o ultimato se transformara num tiro no próprio pé. Mas aí Franco aparecera do nada, entrando pela porta da cozinha com a sua juventude endiabrada e o seu coração carente de amor. E depois a revolução.

       Ela se sentou na cadeira e teve um déjà vu. Só que não era bem um déjà vu, pois de fato vivera essa mesma cena numa manhã em que saíra da cama e se encaminhara até a cozinha, sentara numa cadeira e olhara para as paredes à procura do sentido. A diferença entre as duas situações era que agora estava grávida. Mas isso não a impediria de se acomodar e aceitar o estabelecido. Queria muito acreditar que era livre.

       Uma cestinha com bolachas salgadas e torradas convidava-a a ser degustada. E sem os enjoos matinais, Nova estava sempre faminta. Pegou uma torrada e a mordeu na ponta enquanto enchia a caneca com café preto para, logo depois, adicionar um pouco de leite integral. Seus olhos pousaram sobre o papel debaixo da cestinha, puxou-o e leu na letra arredondada de Franco o que o seu coração, batendo forte, transformou em código Morse:

       “Quando a gente quer dizer mais do que “eu te amo”, o que a gente diz? Você me perguntou, lembra? Então, minha princesa, jamais esqueça a resposta.

       Trarei o nosso almoço.

       Beijo na boca,

       Franco”.

       Ela suspirou pesadamente, o amor sufocando-a de tristeza. Às vezes era triste amar um homem incondicionalmente porque até mesmo o amor impunha condições: sê-lo verdadeiro, por exemplo. E o verdadeiro amor não era cego ao ponto de ser incondicional; ele era, isso sim, pleno e valente, o militante de uma causa não corrompida.

       As lágrimas começaram a rolar. Hormônios da gravidez, tensão diante da primeira crise conjugal ou o eterno medo de perdê-lo, fosse o que fosse, Nova se abandonou ao choro convulso. E não era porque se despedia de Franco e da sua vida com ele, como acontecera com Cris.

       Chorava por ter lido o bilhete dele, a saudade doía demais.

       Vestiu-se rapidamente decidida a encontrá-lo na Arco Verde. Pôs um vestido curto, o tecido florido e romântico e sandálias de salto baixo. O pé em perfeito estado envolto na atadura.  Borrifou perfume, pegou o bolsão e as chaves do jipe.

       A vontade de abraçar o marido e estar com ele a enchia de energia, pronta a pisar no acelerador e ganhar a estrada direto à fazenda. Ansiava por jogar-se nos braços do seu loiro lindo, o chefe da segurança, o chefe da sua casa.

       Parou assim que abriu a porta dos fundos.

       Um velhote com a idade de Bronson, chapéu de caubói, jeans puído e arma na cintura descansava em uma das cadeiras do pátio. Ele a cumprimentou com um aceno de cabeça, e ela o reconheceu como um dos pistoleiros da Arco Verde. Automaticamente, relançou um olhar para o seu jipe.

       O outro a informou rapidinho sobre a situação:

       ― O patrão mandou a gente proteger a senhora.

       Thales?

       O segurança percebeu a hesitação em seu rosto e completou com gentileza:

       ― O seu Franco.

       Nova sorriu levemente e seguiu em direção ao carro.

       ― A senhora não pode sair de casa sem autorização do patrão.

       Ela parou no meio do caminho como se tivesse levado um tiro na coluna.

       ― O que?

       ― Ordens do patrão.

       ― É mesmo? A minha casa agora virou o meu cativeiro, é? ― irritou-se.

       ― O patrão está ocupado trabalhando e ele precisa manter a cabeça limpa, foi isso mesmo que ele falou.

       ― Como assim? ― indagou, desconfiada.

       O velhote sorriu meio constrangido, apesar de que concordava com as determinações do patrão mais novo. Agora não era hora para se pensar em mulher, e sim de se pintar a cara para a guerra próxima. Ele próprio preferia estar enfiado no galpão quente ouvindo as estratégias do seu Franco, mas Bronson escolhera a dedo os pistoleiros que fariam a proteção armada da senhora Dolejal, e Franco salientara que tinham de ser os mais confiáveis e experientes. Isso era muito bom para Valentino que, no alto dos seus 58 anos, ainda era considerado como um capanga da elite do exército dos Dolejal.

       ― A casa está cercada, senhora Dolejal. ― afirmou o líder do bando.

       O pistoleiro também olhou para o jipe e depois novamente para a mulher que o fitava com os olhos arregalados, imóvel e muda.

         

       Leonardo estava deitado na cama; debaixo dele, a colcha de tergal com figuras geométricas sob o fundo verde musgo. Fumava sem pressa, a cabeça descansando sobre dois travesseiros, o peito nu, o pus escorrendo de algumas feridas decorrentes da última surra. Um líquido grosso, uma água brilhante emergia por sobre riscos abertos que exibiam a carne. Não doíam nem eram ignoradas, as feridas que marcavam o seu corpo jovem e atlético, vestido no jeans e descalço, escondendo-se num quarto de hotel em Belo Quinto, vindo de uma corrida alucinada pela estrada desde a casa dos Malverde.

       O motor da picape ainda fervia no estacionamento fechado do hotel, vaga exclusiva do gerente, que lhe custara o dobro do valor da hospedagem. Pagou em dinheiro; livrou-se do celular e cartões de crédito. Em seguida, voltaria a Matarana de carona, deixando para trás a picape com o GPS. Mas não voltaria para a Coração de Ouro. O delegado ainda estava vivo, e o coronel não o aceitaria antes de terminar o serviço. Se não fosse a quantidade de droga que tinha armazenado na fazenda e o seu compromisso com os bolivianos, Leonardo voltaria para o Acre. Só que agora o Acre era como um caixão aberto esperando a sua chegada. Não podia voltar com as mãos abanando sem o dinheiro dos seus fornecedores. Tinha de pensar num jeito de tirar o carregamento de pasta base de coca do armazém da fazenda do pai antes que fosse descoberta, antes que o cerco se fechasse ainda mais em torno de si, antes que o cartel da Bolívia se irritasse com a demora em receber o pagamento pela droga.

       Então Leonardo entreabriu os lábios cortados e fechou um dos olhos cuja pálpebra inchada e arroxeada pulsava como um coração:

       ― Será que dói quando a gente morre? Já pensou sobre isso? Saca só, não estou falando de uma doença, de uma tunda desgraçada ou tiro, não é se sofremos até a morte. A questão central é: dói morrer? Tipo, a gente fecha os olhos e poft!, essa parte depois do poft será que dói? Acho que é como dormir depois de encher a cara de analgésico, não deve doer porra nenhuma. Acho mesmo que morrer é bom, é natural e até faz bem pra saúde, sabe? ― ele parou e fez uma careta antes de prosseguir. ― Ei, tira esse sorrisinho metido da cara, estou falando do organismo como um todo, entende? A sociedade inteira como um corpo que precisa se regenerar morrendo algumas células para outras nascerem. E é isso que somos, umas células de merda vivendo e morrendo. Por isso até é saudável morrer, entendeu?, além do quê o corpo enfim descansa. De certa forma parece bonito morrer. Mas será que dói? Porra, será que é mesmo natural morrer? Não devia ser considerado um crime essa merda? Ser arrancado da vida sem ao menos te pedirem a opinião. Acho que está aí a dor da morte, não saber o que acontece depois, depois que é intimado a comparecer num lugar para o qual não quer ir porque sabe que não vai voltar. Alguém devia fugir de lá e nos contar, não é mesmo, Virgínia?

       A pistoleira estreitou os olhos, desconfiada, e perguntou sem se mexer do lugar onde estava, perto da janela, longe da cama com ele:

       ― Aonde quer chegar com isso? Está todo esborrachado, mas não vai morrer. Por acaso está cheirando as tuas porcarias, é?

       ― Sabe muito bem que sou um administrador, um executivo do narcotráfico, minha putinha, a parte do consumo deixo a cargo dos meus clientes, nunca fumei nem um cigarrinho de maconha pra relaxar. ― mesmo alquebrado, manchado de hematomas no rosto e corpo, cheio de dor na carne e nos músculos, mesmo assim, ele mantinha a arrogância em alto nível. ― E como estão as coisas na Arco Verde?

       Ela tragou o cigarro sem dar muita importância à pergunta.

       Leonardo então teve de insistir:

       ― Olha só, Virgínia, só posso contar com você agora. De uma hora pra outra fui abandonado pelo meu pessoal que, aliás, era o mesmo pessoal que trabalhava para o coronel. Assim como eles se debandaram pro meu lado logo que cheguei cheio de ideias e dinheiro, agora, depois que o velho descobriu tudo, me deixaram na mão, os covardes. Além disso, não posso voltar pra fazenda sem a cabeça do delegado. Não posso, sacou? É um inferno isso! Não sou pistoleiro, porra!, sou um administrador! Mas o coronel é teimoso e não vai sossegar até eu dar cabo do Malverde... Merda! E ainda por cima, pra foder minha vida de vez, tenho que entrar na Coração de Ouro e pegar as porcarias para passar a adiante... ― ele balançou a cabeça, frustrado.

       ― Ainda não conseguiu se livrar daquilo?

       ― Tentei, mas tive de abater o meu melhor homem antes de ele vacilar diante do coronel... E aí tudo virou de pernas para o ar, aquele Malverde cretino invadindo a fazenda e pondo minhoca na cabeça do velho... ― reclamou, ajeitando-se nos travesseiros. ― Tenho um carregamento monstro num dos galpões e preciso tirar de lá.

        ― Que loucura, Leonardo!, como pôde esconder a droga na fazenda do teu pai?

       ― Agora vai querer me dar conselho, é? Quando uma ex-viciada tem moral para dar pitaco na vida dos outros, hein? Te catei da rua, mulher, dos becos de Brasileia, e a única coisa que tem de fazer é espionar o Dolejal. ― afirmou exasperado. ― Até agora não ouvi nenhuma novidade da Arco Verde. Que tal soltar o verbo, hã?

       ― Já disse tudo o que sei. O patrão dispersou alguns pistoleiros para proteger o delegado de uma nova emboscada, mais nada. O alvo agora é o coronel Rodrigues. ― deu de ombros com indiferença. ― Parece que os índios estão tendo problemas com os capangas do fazendeiro, coisa séria, que inclui espancamentos e tudo o que é tipo de ameaça. Aquela faixa de terra comprada pelo patrão está em clima de guerra.

       ― É? E daí? Isso pouco me interessa. Quero saber se o Dolejal planeja alguma retaliação contra o velho. Afinal, para ele, foi o coronel quem mandou o Vitorino matar o Malverde, e ele sabe a merda que seria a mudança de chefia na polícia de Matarana. ― afirmou com sagacidade.

       Virgínia tragou mais uma vez o cigarro e afirmou com um sorriso confiante:

       ― Na Arco Verde não existe essa coisa de vingança, eles querem é manter o poder econômico que detêm e não planejar uma revanche à altura do que você provocou. Além disso, o novo chefe da segurança é o Franco, e ele detesta desperdiçar munição à toa.

       ― Odeio esse camarada! Odeio esse fingido de merda! ― exclamou o rapaz visivelmente magoado, atingindo no coração de filho renegado por um pai que sempre fizera as suas vontades. ― Por Deus!, antes de me mandar dessa terra de aborígenes, vou pegar o bastardo de jeito, como devia ter feito na época de escola quando ele me encheu de porrada por causa de um franguinho efeminado! E se ninguém tem coragem de confrontar o diabo, Virgínia, eu tenho, tenho coragem e muita gana!

       Ela sabia que ele tinha coragem e gana e conhecia tantos outros caras, mesmo na Arco Verde, que também possuíam coragem e gana para enfrentarem Franco Dolejal. Virgínia tinha certeza absoluta de que se Leonardo se juntasse a eles, ainda assim, cairiam de joelhos, todos. Independente do número de armas que Franco tinha pelo corpo ou da perícia ao manejá-las, contava a seu favor a sua natureza impetuosa e passional. Ele se jogava contra o perigo que o agarrava firmemente com os braços abertos. No final das contas, tudo era muito simples: Franco era superior a todos os demais caubóis, era filho da terra, nascera em Matarana e por isso era o verdadeiro fruto da terra de ninguém.

       ― O dia em que resolver enfrentá-lo, não se esqueça de me chamar.

       ― Claro que sim, vadia.

       ― Pelo menos saberá se dói ou não morrer. Será de bom gosto me contar um pouquinho antes de partir, não? ― ironizou.

       Leonardo não gostou do que ouviu.

       ― Conto, cretina, pode deixar. Agora, presta atenção! Dá um jeito de tirar a minha mercadoria da Coração de Ouro, senão telefono para o Dolejal e conto tudo sobre você, suas putarias no Acre e, principalmente, o seu trabalhinho como espiã na fazenda dele. Acho que do jeito que o camarada é desconfiado e paranoico, vai te esfolar viva. E pensa comigo, acha mesmo que o solo fértil de Matarana é somente das ossadas dos desafetos dos Marau e do Rodrigues, hein, ô Virgínia? Será que você não descobrirá primeiro se dói ou não morrer?

       Ela fitou o fundo dos olhos do outro e não viu vestígio de sentimento que não fosse por si mesmo.

       Então teve certeza de que escolhera o lado certo.

       Assentiu levemente com a cabeça e bateu em retirada sem olhar para trás.

         

       O motor da picape roncou alto ao passar pelo caminho de cascalhos até os fundos da casa, onde aos poucos foi reduzido a um som baixo e grave para depois cessar de vez. A porta do veículo abriu rangendo e o som da voz de Franco soou divertido:

       ― E, aí, pessoal, com fome? Trouxe a boia de vocês, o melhor da comida mataranense, pernil de porco com arroz e feijão!

       Nova sentiu a emoção de sempre e todas as sensações físicas que elas lhe causavam. As pernas tremiam e o suco gástrico jorrava ensandecido no estômago, queimava por dentro. Tinha de lembrar que estava zangada com ele por mantê-la presa com os pistoleiros, precisava urgentemente se impor às suas emoções e à vontade muito louca de jogar longe a vassoura que segurava, correr e pular no seu colo.

       Quando a porta abriu devagar e a ponta da aba do chapéu entrou antes dele, ela segurou o ar nos pulmões, aguentando firme a sensação de plenitude e paixão diante da antecipação de vê-lo, da sensação que quase a fazia levitar, sempre, segundos antes de ser invadida por um par de olhos azuis ― ora verdes, ora cor de caramelo, que imprimia em sua alma o código de barras de sua pertinência.

       Mas ele era jovem demais e precisava ser educado por alguém como ela, que o amava e o queria vivo. Por isso se controlou para não agir impulsivamente e pôr tudo a perder. Afinal, ela era mais velha e mais vivida. Não devia se incomodar tanto com o fato de ele depositar as sacolas do mercado e do restaurante sobre a mesa sem deixar de encará-la. Sem sorrir, sem dureza, apenas deitando os olhos sobre ela, sondando-a, averiguando o terreno à sua frente. O chapéu foi descartado e posto sobre o armário.

       O silêncio somente não era mais gritante em função das risadas no pátio. Os peões se alimentavam felizes com o vagar dos minutos e a tranquilidade de um almoço ao ar livre. Ao passo que dentro da casa, o casal testava a resistência do desejo que os unia, a consistência da saudade que ambos sentiam após horas sem se verem.

       Franco queria se ajoelhar diante dela e rezar, apesar de não saber como se começava uma oração. No peito, um coração desnorteado soqueava suas costelas. O pai dissera que para manter a sua mulher tinha de ter voz de comando. O que o seu pai sabia sobre mulher que não fosse além do domínio e submissão? Será que alguma vez ele se sentira fraco, sem ar, com vontade de carregar a sua mulher no colo para sempre, protegendo-a das pedras, dos insetos e de qualquer perigo que a machucasse, que tocasse sem leveza e carinho a sua pele?

       Mas ele precisava se manter durão para ser respeitado por sua esposa. Ainda que necessitasse beijá-la e apertá-la em seus braços e sussurrar ao seu ouvido que ele estava em suas mãos, que nascera ao conhecê-la, que era ela a sua mãe, amiga, mulher, amante. Era ela a sua estrela da sorte, a constelação. Queria dizer tudo isso. E amá-la a tarde inteira. Tocar em cada parte do seu corpo numa expedição de reconhecimento de uma terra adquirida por direito e por dádiva. Queria ser abençoado pelo seu carinho e amado com a sua força canibal que quase lhe arrancava a pele. Queria, sim, que ela o comesse e o absorvesse dentro de si, bem feliz seria dentro dela.

       O melhor a fazer era parar de pensar e de querer. Ele baixou os olhos e se concentrou em retirar os mantimentos das sacolas, as frutas, chocolates, iogurtes e sucos, as vitaminas para fortalecê-la e a comida para lhe dar prazer, alimentá-la de todas as formas.

       Forçou-se uma naturalidade arrancada a fórceps:

       ― Não quero que faça o trabalho da Maria. Ela não veio hoje?

       Nova percebeu que ele estava sério e interessado em saber por que a mulher que era chamada de princesa varria o assoalho da sala. Franco não permitia que ela voltasse a bancar a dona de casa do castelo encantado, como à época de Cris. Para o marido, Nova tinha de descansar para se apresentar no Gringo ou simplesmente descansar porque estava grávida. Maria Helena limpava a casa e cuidava de todas as atividades domésticas, enquanto ele trazia do restaurante o almoço e o jantar.

       ― Ela telefonou avisando que contraiu uma virose. ― disse apenas, a atenção voltada para ele, que se movia na cozinha abrindo e fechando portas e gavetas, retirando a louça e os talheres para serem usados.

       ― Deixa então que eu termino. ― determinou, depositando dois pratos sobre a mesa, circundando-a a seguir e tomando a vassoura de suas mãos: ― Vou trazer alguém da fazenda para organizar as coisas por aqui.

       ― A casa é minha, posso cuidar de tudo, não estou doente...

       ― Eu sei o que você pode e o que não pode fazer. ― afirmou, encarando-a sem desviar.

       Ela aproveitou para chamar uma questão à pauta:

       ― Sair de casa, por exemplo, eu posso ou não? ― perguntou, imprimindo um tom de desafio à voz.

       Ele não fez rodeios ao responder secamente:

       ― Com escolta pode.

       ― Escolta? Pra quê isso agora?

       ― Primeiro, porque eu quero. ― respondeu sem hesitar e, levando a vassoura de volta à lavanderia, continuou: ― E acho que poderia parar nessa resposta mesmo.

       Nova estreitou os olhos tentando entender os motivos de ele usar um tom duro e ríspido para com ela. Não estava acostumada e jamais se acostumaria àquilo.

       Ele tornou a se concentrar nela, no seu rosto pálido, nos lábios que se entreabriram para nada falar.

       ― Em segundo lugar, a escolta é para proteger você. O patrão tem razão, não é certo deixar você sozinha no meio do mato. Tenho inimigos por tudo que é canto dessa terra e da terra dos outros, e se eles quiserem me enfraquecer saberão quem atingir primeiro. Se a dona não quer mais que eu mate bandido, eu não mato, mantenho meu dedo longe do gatilho e os pés na linha reta que seguirei, e só faço isso enquanto os bandidos não esquecerem que eu mato, sim, mato até duas vezes, quem chegar perto da minha mulher. ― afirmou num misto de convicção e altivez; a bem da verdade, como Nova percebeu, era como se ele a desafiasse a contestá-lo, a enfrentá-lo para saber assim o quanto ainda lhe faltava coragem para a empreitada.

       Pela primeira vez sentiu-se pequena diante dele, pequena e impotente. E ela percebeu o quanto ele era grande, não apenas em relação à sua altura. Não era o seu porte físico que se agigantava aos seus olhos, era a firmeza e a liderança de um homem vivido. Franco assumia novamente as rédeas da relação.

       Nova manteve-se irredutível na tarefa de manter os olhos fixos nos dele. O que resultava sempre numa prisão e afogamento. Acabava mergulhando no oceano azul claríssimo e, hipnotizada, aceitando com o coração o que a mente demorava a compreender.

       Foi o marido quem primeiro quebrou o encanto ao desviar a atenção do rosto para o pé da esposa. Apontando, ele perguntou:

       ― Por que tirou a bandagem?

       Ela se obrigou a fitar o próprio pé, entorpecida pela mudança no comportamento dele.

       ― Não foi nada sério, apenas um cortezinho superficial.

       ― Deixa eu ver isso. ― afirmou, puxando-a pela mão e a fazendo sentar-se numa das cadeiras em frente à mesa da cozinha.

       A ordem foi dada, e ela obedeceu-lhe prontamente. Aproveitou para admirar a figura que se curvava e inspecionava o ferimento. Ele havia se agachado e por isso o coldre no cós dianteiro era visível e mostrava uma de suas armas; a outra, no cós traseiro. E Nova sabia sobre o novo canivete, comprado após Mendes roubar o antigo e usá-lo em Karen, enfiado na bota.

       ― Então preciso da sua permissão para sair de casa? ― sondou-o meio que em tom de provocação.

       Os dedos de Franco inspecionavam a pele ao redor do risco quase em forma de um sorriso triste, o corte irregular provocado por um pisão num cascalho pontudo. Ao ouvir a pergunta, franziu o cenho e rebateu sem se abalar:

       ― Pretende fugir de mim?

       ― Não.

       Ele tornou a capturar a sua atenção e, por um minuto ou dois, foi tudo o que fez, encará-la sem expressar a felicidade que quase o arrebentava por dentro. Depois, ergueu-se e se pôs na postura displicente que usava para irritar os pistoleiros que o irritavam.

       ― Vamos almoçar.

       Ela esperava por uma resposta.

       ― Falei pro Gringo que você se machucou e ficará em casa.

       ― Ah, que ótimo!, agora manda no meu trabalho também. ― ironizou.

       Ele arqueou a sobrancelha de forma interrogativa, demonstrando com o gesto a incompreensão diante de um favor feito a ela.

       ― Se quiser trabalhar, peço pro Bronson levar você.

       ― É claro que quero trabalhar, ora.

       ― Mais alguma coisa, dona?

       Ela até pensou em largar uns desaforos sobre a toalha, contentou-se em avisá-lo que logo mais sairia com suas amigas. E acrescentou erguendo o nariz tal qual uma adolescente desafiando a autoridade:

       ― Irei à confeitaria que, por sinal, fica em frente à delegacia de polícia. Acho que não preciso de escolta.

       ― Não, claro que não. ― respondeu com um sorrisinho misterioso. ― Vou deixar você com suas amigas, depois é só telefonar que eu volto e te busco.

       Nova o fuzilou com o olhar.

       ― A adulta aqui nesta casa sou eu, viu, ô moleque!

       Franco apertou os lábios para se manter sério. Afinal, a estratégia sugerida pelo pai estava dando certo. Mas ao ouvir o xingamento de Nova ― e ela sempre tinha um desses na ponta da língua, não resistiu e caiu na gargalhada.

       Definitivamente ele era louco por aquela mulher.

         

       Na confeitaria, sentadas ao redor de uma mesa decoradas por duas fatias de torta, Nova e Valéria comentavam sobre a noite passada, ainda que a última mantivesse segredo sobre os amassos com Thales Dolejal na cozinha.

       A mulher de Franco preparava-se para comentar algo a respeito do sogro não ter aparecido no quarto para levá-la de lá antes de o filho chegar, quando Bronson apareceu à entrada.

       Ela franziu o cenho, contrariada. Franco lhe dissera que ele próprio a buscaria, não Bronson. E antes que perguntasse pelo marido, percebeu que o pistoleiro trazia um pacote grande e retangular nas mãos, embrulhado num papel fino e vermelho, a etiqueta de uma loja sofisticada de Santa Fé.

       O pistoleiro tirou o chapéu e meneou a cabeça num cumprimento discreto às mulheres sentadas à mesa e a Ninita, que lia uma revista diante da caixa registradora. Depois, espichou os braços e caminhando do jeito que os caubóis daquela região caminhavam, meio arrastado, entregou o embrulho para Val, afirmando com bastante economia nas palavras:

       ― O patrão mandou entregar para a senhora.

       Sobre a caixa havia um laço de cetim num tom vermelho mais escuro, quase um bordô, uma cor quente. E Valéria somente o percebeu quando recebeu nas mãos a encomenda que, em seguida, foi posta sobre a mesa.

       Aturdida, ela soltou um agradecimento sem muita energia.

       Nova aproveitou para interpelá-lo:

       ―Veio me buscar também?

       O velho percebeu o tom azedo e respondeu com simpatia:

       ― Não, dona Nova, o Franco está pela cidade e vai passar aqui antes de retornar para a fazenda.

       Ele já não tinha mais o que fazer por ali, deu um breve sorriso que serviu como um “tchauzinho” e saiu.

       Coube às mulheres decifrarem o enigma da caixa.

         

       Valéria estava diante do espelho do banheiro no escritório que dividia com Karen na confeitaria. Ela olhava para o reflexo de si mesma, mas, estranhamente, não se via. Encarava com um semblante surpreso outra mulher e essa mulher estava dentro de um vestido que ela jamais ousaria vestir.

       Era o presente de Thales. A roupa que ele queria que ela usasse para o jantar à noite e como desejava vê-la.

       Ouviu o assobio de Nova.

       ― Caramba, você está incrível! ― ela caminhou ao redor da amiga, admirando o corpo cheio estufando o tecido macio e justo do vestido curto tomara que caia. ― Pura sensualidade, mulher!

       Val recuou um passo sem deixar de perceber que o corte da roupa marcava-lhe a cintura e também se ajustava perfeitamente às suas coxas e traseiro, assim como os seios grandes pareciam simular uma fuga dos bojos. A cor do vestido combinava com o seu cabelo pintado de preto. Mas alguma coisa ali destoava. E por isso ela dera um passo para trás, precisava avaliar o que aquela imagem dizia sobre si mesma.

       ― Estou parecendo uma cantora de tecnobrega. ― afirmou em um tom avaliativo. ― Essa aí não sou eu e nem se parece comigo. O que ele quer de mim? Em quem ele quer me transformar?

       Nova ficou intrigada com a atitude da Val. Para ela, Thales havia apenas enviado um presente para a sua paquera. Era um vestido sensual? Sim, muito sensual. E a mensagem era bem clara: ele acertara o número da roupa porque havia decorado as curvas daquela estrada.

       ― Acho que ele vê uma mulher bonita e gostosa no lugar da moça caseira adoradora dos vestidos floridos de algodão. ― disse Nova com bom humor.

       Incerta, a outra mordeu o lábio inferior:

       ― Viu os sapatos? Saltos altíssimos. Meu Deus, é esse tipo de mulher que ele gosta? Vulgar? ― balançou a cabeça decepcionada ― Não sou assim, não faço o tipo fêmea fatal.

       ― Bom, então não usa essa roupa, ora. Você tem de vestir o que a deixa à vontade. Mas, pra falar a verdade, Val, é esse tipo mesmo de mulher que ele gosta, roupa sexy, saltos, maquiagem e presença... É bem o estilo de quem teve uma mulher como a Karen, tremendamente exuberante e uma noiva ex-modelo. O lance da discrição e sofisticação não vale para as mulheres dele, não. ― completou num tom de divertimento.

       ― Olha só o tamanho da minha bunda! ― exclamou Valéria, apavorada. Em seguida, coçando a cabeça como as pessoas confusas e perdidas o faziam, sentou-se numa cadeira, desolada, as pernas juntas, os joelhos tremendo. ― É uma piada, esse vestido é uma provocação daquela parte monstro da personalidade dele. Só pode! Ele quer me pôr no meu lugar, a hipócrita assexuada como me chama...

       Nova se controlou para não rir. Era evidente que a amiga estava sob efeito da paixão e de todos os hormônios em ebulição que tal sentimento provocava.

       ― Humm, acho que não é bem isso, amigona, vejo mais como um elogio, uma espécie de celebração para a mulher escondida nesse corpo de dona de casa solitária. Seja honesta consigo mesma, você precisa viver algo intenso que não tenha a ver com a promoção de amaciantes de roupa no supermercado.

       ― Nova, acorda! A gente não está falando do farmacêutico queixudo! É sobre Thales Dolejal!, o homem mais importante da cidade, milionário, lindo de morrer e solteirão convicto! O homem, como a Karen mesmo mencionou, sob medida para a Rita. Nós dois somos como a Dama e o Vagabundo às avessas...tipo... tipo, o Cavalheiro e a Vira-lata.

       A amiga pôs as mãos na cintura e fez um trejeito com a boca que revelava impaciência:

       ― O nome dessa crise toda aí é autossabotagem, ok? Agora levanta a bunda da cadeira e vamos tirar esse vestido antes que dê alguma merda. Logo mais você irá jantar com um velho amigo, nada de mais, sem estresse. ― falou com tranquilidade a senhora Dolejal.

       O resto da tarde voou. Franco apareceu para buscar sua mulher e tinha um sorriso enigmático no rosto. Como andava sempre com o pai, Valéria cogitou que ele soubesse sobre algo, talvez sobre os planos para logo mais à noite.

       O filho de Thales cumprimentou-a com um aceno de cabeça e um olhar penetrante, aquele olhar meio que avaliava o grau de periculosidade da sócia de Karen em relação ao homem que ele continuava protegendo.

       Antes de fechar a confeitaria, ela conseguiu quebrar três canecas e levar duas cadeiras vazias ao chão. Sempre se desculpando e se justificando, se sentia à flor da pele, os sentimentos e as sensações se misturando como um milk-shake com pingos de adrenalina.

       Por que lhe dissera que era a mulher da sua vida? Por que o provocara sem bala alguma na agulha?

       Thales agora queria que ela cumprisse a promessa com toda a força de uma ameaça.

       E Valéria suspeitava que fosse se tornar a sua próxima vítima.

         

       Era como se fosse o primeiro encontro com ele. Não sabia bem ao certo quantas vezes esbarrara com o dúbio amigo de seu irmão ao longo de uma década vivendo em Matarana. Quase sempre ele a ignorava, embora tal atitude não ocorresse por questão de esnobá-la ou por considerá-la desimportante. Na verdade, Thales somente percebia a sua frente quem o interessava de fato ou que significasse um confronto direto. Valéria, como apenas a irmã mais nova do delegado, mãe solteira de uma adolescente sem crises e dona de casa que recém iniciara negócio próprio, não representava para o todo poderoso latifundiário qualquer perigo.

       Ainda assim, ele não gostou de vê-la estacionar o próprio automóvel diante da escadaria do alpendre da casa-sede numa atitude explícita de desobediência à sua determinação de ser trazida até ele por Bronson.

       O pistoleiro, ao telefone, avisara-o que “dona Valéria” dissera que seguiria à frente no seu automóvel, mas que aceitava de bom grado a escolta.

       Ao vê-la descer do veículo fabricado no século XX, a porta encobrindo parte do corpo no vestido preto, ele arriscou relançar os olhos para o céu antes de enfiá-los nela. E foi somente por que um raio riscou a escuridão da noite e um trovão esbravejou feio, que ele deixou de olhar para a mulher que tentava se equilibrar sobre os saltos.

       Ela dirigia descalça e, ao chegar, afastou a porta, pôs as pernas para fora e calçou as sandálias. De pé, a primeira gafe. A mão procurou o suporte do capô do carro, pois o pé esquerdo escapou de uma das duas tiras que o mantinha firme no calçado. Tornando a se equilibrar, Valéria empertigou a coluna e incitou os primeiros passos, vacilante, consciente da presença imponente na base da escadaria esperando por ela, o jeans escuro e a camisa social azul, uma ruga funda entre as sobrancelhas.

       O melhor a fazer era se concentrar em caminhar como quando tinha dois anos de idade, um pé de cada vez, com bastante calma. Uma tarefa nada fácil. Calculou que estava a dez centímetros do chão, pouco para lhe causar vertigem; muito para caminhar com naturalidade e, menos ainda, com elegância.

       Bateu um joelho contra o outro e o corpo inteiro pendeu para frente depois para trás, como a Torre de Pisa soprada por um furacão. Ao se voltar para se segurar em algum suporte e não desabar, nada encontrou que não fosse o vazio. Balançou seguidas vezes até recompor o equilíbrio e a dignidade. Praguejando alto, encurvou ligeiramente o corpo e soltou as tiras das sandálias. Pegou-as na mão e continuou a caminhar em direção a Thales Dolejal com a sensualidade de uma mulher descalça vestida numa roupa que mais se parecia com um adesivo.

       Ele desceu os degraus até se aproximar dela, o semblante sério e crítico.

       Valéria balançava as sandálias em uma mão e tinha no rosto um sorriso forçado, já que estava muito puta da cara com a cena que fizera, perdendo o restinho de glamour que poderia usar para impressioná-lo. 

       Cogitou comentar algo espirituoso e sarcástico sobre as sandálias que ele havia-lhe presenteado. Mas ao vê-lo se aproximar e ter a mais completa visão dos olhos azuis destacados pela cor da camisa impecavelmente lisa, o cabelo curto e úmido pelo banho recente e todo o conjunto elegante de um corpo másculo, ela simplesmente esqueceu qualquer frase de efeito e apenas manteve o sorriso grudado nos lábios. Vontade não lhe faltava de dizer à luz da lua, mesmo encoberta pelas nuvens, o quanto ele era bonito, o quanto ele era importante para o seu mundinho simples e cotidiano e o quanto fervia de vida por dentro.

       Mas ele mantinha a cara amarrada e assim que o seu dedo indicador apontou para o calçado, a ordem foi dada:

       ― Calce as sandálias, Valéria.

       Entorpecida pela presença imperiosa aproximando-se dela com a firme intenção de se fazer obedecido, ela não conseguiu esboçar qualquer reação, somente baixou ligeiramente a cabeça para vê-lo com as sandálias na mão, os dedos correndo por sua panturrilha até alcançar o tornozelo. Um toque de seda na ponta dos dedos de um bruto.

       Precisou apoiar-se nele, nos ombros dele, sacudida por espasmos tão delicados quanto arrebatadores, porque os dedos de Thales exploravam a pele macia de seus tornozelos ao calçá-la novamente. E, em vez de ela protestar por ser obrigada a usar um calçado que a poria de cara no chão a qualquer momento, limitou-se a observá-lo em ação.

       Abaixado, o rosto bem perto de suas pernas, admirava-o com um sorriso discreto pronto para se desfazer caso ele olhasse para cima, para ela, para o rosto iluminado de satisfação. Sentir as mãos masculinas e macias escorrer por suas pernas, tocar com intimidade e, mais do que isso, familiaridade, sem formalismo, como se o fato de se conhecerem havia anos o desse total liberdade para vesti-la, calçá-la, tocar nela, enchia o seu peito de amor, de amor por ele.

       Ao se erguer e olhá-la diretamente, afirmou ainda sério:

       ― Aprenda a caminhar direito em vez de temer a queda.

       Falava sobre sandálias de salto alto ou era uma lição de vida?

       Tentou sorrir, a dureza daquele olhar acovardou-a:

       ― O meu estilo é mais chinelos e tênis.

       Ele foi rápido e preciso:

       ― Claro que sim, se dependesse do seu estilo, como disse, estaria vestindo uma cortina com mangas ou um saco de estopa com babados. Sabe muito bem que não gosto do seu estilo. ― ele parou e imprimiu um tom menos arrogante na voz ao constatar: ― Prefiro muito mais o meu estilo, e você está deliciosamente linda nesse vestido, Valéria.

       Ela olhou para si mesma e balançou a cabeça em negativo. A parte da cortina e saco de estopa fora ofuscada pela “deliciosamente linda”. Porém, a verdade dos fatos era que ele não gostava de como ela era. Bom, isso já não era novidade e ele jamais escondera o que pensava a respeito.

       ― Quer então me vestir de vadia? ― provocou-o.

       Thales esboçou o primeiro sorriso da noite.

       ― É essa a relação que tem com o seu corpo? Está sempre punindo com falta de sexo ou trajes típicos de lavadeira uma escultura que não só enche os meus olhos, como também cada espaço de luxúria da minha imaginação. Você é muito má para consigo mesma, minha cara, deixa isso um pouquinho para mim.

       ― Como se você precisasse de permissão para ser cruel. Agora que já se divertiu com a minha fantasia de Halloween de sex shop, posso entrar e me esconder, pelo menos, dos teus seguranças?  ― perguntou irônica, captando de esguelha a movimentação dos pistoleiros.

       Thales não se abalou e tampouco parou de sorrir.

       ― Não.

       Ela o olhou confusa e, baixando bastante o tom de voz, repreendeu-o:

       ― Por favor, Thales, está na cara que eles estão de olho na minha bunda.

       ― Hmm, é isso que estou tentando te dizer, o que é bonito deve ser mostrado, porque a nossa parte feia, Valéria, todo mundo vê por conta própria. ― constatou com deboche; em seguida, pegando seu rosto entre as mãos, afirmou sem deixar de sorrir: ― Mas agora eu preciso bancar o “patrão” e marcar o meu gado. Veja o milagre da invisibilidade. ― ele disse poucos segundos antes de baixar a cabeça e lhe tomar os lábios num beijo profundo.

       Duas mãos desceram pelo tecido findo do vestido, contornando as curvas acentuadas e os declives até se espalmarem ostensivamente no traseiro dela, trazendo-a para si. Afastando-se ligeiramente, a boca entreaberta separando os seus lábios, murmurou:

       ― Agora eles já sabem que essa bunda é minha.

       Valéria percebeu o tom de divertimento da observação. Abriu os olhos e encontrou dois oceanos tragando-a para o seu interior.

       ― Sou a nova vaca louca, Thales?

       Ele riu baixinho e mordiscou seu o pescoço até alcançar o queixo, parando ao prender-lhe o lábio inferior entre os seus lábios. Depois, enquanto as mãos espalmadas acariciavam as costas dela, disse baixinho numa voz rouca:

       ― A expressão marcar o gado é só uma forma de situar os meus homens quanto à sua posição em relação a mim, Valéria. A Karen sabia se impor com esse bando de macho tosco, mas você não se impõe nem diante do espelho, por isso tive de fazer esse teatrinho para eles. ― completou, por fim, com um sorrisinho malicioso: ― Olhe ao redor, agora, senhorita Malverde. Essa é a magia da pertinência, agora você tem a minha marca.

       Ele se afastou dela e a virou pelos ombros, de costas para si. Valéria compreendeu então o que significava ser marcada como uma mulher que interessava a Thales Dolejal. Imediatamente todos os pistoleiros deram as costas e tornaram a fazer a ronda pela fazenda.

       ― É melhor que aceite o meu braço antes que se estatele no chão...donzela.

       Era verdade que havia muito de escárnio no tom de voz que usou. Entretanto, embora recheado de ironia, o gesto de dobrar o braço para o encaixe e apoio de sua mão, oferecendo-lhe o corpo como seu suporte, era uma atitude cavalheiresca para se levar em consideração.

       Ao enganchar o braço no dele, Thales apertou-o contra si e, com isso, Valéria se sentiu segura para continuar a subir os degraus.

       A experiência de subir a escadaria da Arco Verde de braços dados com Thales Dolejal funcionou em sua alma como um passeio pela Paris do século XIX, pois a paisagem que via, a paisagem que o seu espírito enxergava em toda a sua forma, cheiro e cor era a mesma que a sonhada romanticamente durante as tardes de sábado, sozinha, e cheia de um amor para ninguém.

       E como ela era uma mulher jovem e crédula, o coração arrebatado de paixão por ele, por esse homem que sempre vivera tão perto e tão longe dela, ao alcançarem a entrada da casa, Valéria sentiu uma espécie de angústia. Separar-se dele, deixar de sentir o seu calor e força, o seu amparo, causou-lhe dor, tão fugaz quanto profunda, que se reverteu num suspiro longo de quem se resignava com o fato de ter perdido a vez.

       Voltou o rosto para ele e teve de erguer ligeiramente a cabeça devido à diferença de altura. Thales olhava para ela com a expressão de quem fazia um cálculo mental, um tipo de raciocínio silencioso digno dos ponderados.

       Agora ele via uma mulher com os olhos brilhando com a mesma adoração que já vira nos olhos do garoto que juntara da estrada e aprendera amar.

       Talvez ele fosse um tipo esquisito ou apenas doesse a dor mais forte que nos outros. Talvez afagar um rosto não o levasse à beira do penhasco. Talvez abaixar a cabeça devagar e tocar os seus lábios nos lábios dela, com uma ternura que somente o seu novo estado de espírito impingia-o ― o efeito da incipiente melancolia que o tomava inteiro como um potente anestésico misturado à ternura e à fragilidade, não o matasse aos poucos.

       Não se sentia forte o suficiente para juntar as palavras e afastar Valéria Malverde do monstro que ele era, porque não queria, não queria que Valéria Malverde se afastasse. Queria, sim, que a adoração dos olhos dela também conseguisse afagar a alma do monstro.

       Puxou-a para si e o abraço veio depois do beijo. Enquanto sentia os braços da mulher ao redor do seu pescoço e via os seus olhos fechados, a pele macia das pálpebras pintadas de azul e prata, os cílios longos, as sardas na testa, a entrega na carícia e a dedicação ao beijá-lo com tanto sentimento, Thales cogitou manter a vingança e devolver a Rodrigo a sua irmã ferida, abandonada, rejeitada. Ele também precisava dos sentimentos ruins, senti-los todos, para viver.

       Abraçou-a com força tentando se salvar.

       Sentado sobre a amurada do alpendre, Bronson espalitava os dentes com um sorriso preguiçoso. Ajeitou o chapéu e comentou baixinho com os seus botões: “Sim, a dona Karen se impôs sozinha. E a dona gringa? Ele nunca marcou a dona Mary e ia casar com ela. E agora ele marcava a irmã do delegado, a que menos precisava de proteção, visto que tinha o irmão policial. O patrão, como dizia Franco, era doido”.

         

       A noite explodia em estrelas e a atmosfera úmida de dezembro, no centro-oeste, entrava pelas janelas da picape na estrada que recebia um ou outro caminhão e poucos automóveis.

       Franco optou voltar do Bar do Gringo pela rodovia federal no lugar de cruzar a cidade pela segunda via; era uma espécie de atalho que poucos podiam se dar ao luxo de usufruir. Mas ele era o pistoleiro mais temido do cerrado, dispensava qualquer tipo de escolta, uma vez que a sua proteção era a própria fama.

       Proteção e danação ― como havia descoberto no dia anterior. E foi esse pensamento que o fez olhar de esguelha para a mulher ao seu lado, fitando a paisagem à frente, a traseira de uma caçamba, o semblante circunspecto, o cabelo mantido curto, as mãos pousadas sobre as coxas logo abaixo do ventre.

       Ele queria se virar para contemplá-la, para deixar seus olhos parados nos dela, no seu rosto lindo, no corpo delicado que o recebia para o amor, fosse físico ou como apoio emocional. Uma vontade doida de abraçá-la, de levar a picape para uma clareira e amá-la como já o fizera.

       Acionou o pisca e entrou na estrada de chão batido que levava até a sua casa. Ultrapassou o portão de ferro e estacionou pouco antes de onde estava o jipe. Desligou o motor e voltou-se para ela:

       ― Você canta muito bem, a sua voz é linda, Nova.

       Ela fez um movimento para sair; porém, antes, virou-se para ele e agradeceu o elogio:

       ― Obrigada. Aliás, quero agradecer também por manter o pessoal quieto, nada como a sua presença na primeira mesa.

       ― Gente ignorante tem de ser tratada na ferradura.

       ― Sabe, Franco, eles não vão lá para me ver, o bar do Gringo é um lugar para relaxar, jogar conversa fora e beber. Ninguém é obrigado a prestar atenção no show. Ali não é uma casa noturna, é só a merda de um bar.

       ― De jeito nenhum, eles têm de respeitar os artistas, ora. Que conversem na rua ou depois da apresentação! É uma caipirada trouxa mesmo! ― resmungou, irritado, preparando-se para descer. ― Fica quietinha aí, você tem a mania de não me esperar abrir a sua porta.

       Nova viu-o contornar a picape pela frente e se postar à porta aberta. Estendeu-lhe a mão para usar como apoio, mas ele foi mais ágil e a pegou no colo.

       ― Não estou aleijada, Franco, me põe no chão!

       ― Mas está cansada, ficou quase uma hora de pé no palco com esse pezinho machucado e essa barriguinha gorda. ― brincou.

       ― Sabia que não sou feita de cristal?

       ― Sabia, dona.

       Ele a carregou até a entrada e parou. Tateou os bolsos do jeans para pegar a chave da casa, girá-la na fechadura e destrancar a porta.

       Deitou-a sobre o sofá sem deixar de lhe endereçar um sorriso daqueles. Mas foi apenas isso, não forçou a barra nem tentou puxar conversa. Deu-lhe as costas e se encaminhou para a cozinha, dizendo sobre os ombros:

       ― Vou preparar um sorvete com bastante calda de caramelo. Precisa se alimentar, está leve demais para uma grávida.

       O tom era de brincadeira e, de fato, ele parecia mais descontraído, relaxado, do que pela manhã ao retornar da Arco Verde.

       No bar do Gringo, a cantora enviara-lhe olhares disfarçados durante todo o show. Não queria baixar a guarda tão facilmente, ceder à vontade de um coração louco de saudade e cheio de medo. Medo que não se referia apenas à questão de saber que era casada com um pistoleiro que carregava dois homicídios nas costas; era a constante sensação de perda, de que um dia perderia o direito à dádiva de tê-lo em sua vida que a assombrava sobremaneira.

       Quando terminou de cantar, e eles voltaram juntos para casa, Nova já havia tomado uma decisão. Olhou-o de soslaio, captando numa fração de segundos o seu perfil simétrico e bonito, o cabelo que crescia caído em mechas irregulares e rebeldes, a juventude arrebatadora e fresca. Não veria toda essa beleza sepultada.

       O que decidira fazer com ele incluíam muita coragem e alguém de fora.

       Ela tinha coragem.

       Ao vê-lo de costas em frente ao balcão da pia, concentrado em servir uma taça com a colher cheia de sorvete, ao deter os olhos na camiseta de algodão, os cotovelos à mostra, todo o antebraço, os pelos loiros, a força da musculatura que tantas vezes sustentava o corpo dela, ao deixar os seus sentimentos olhar para ele, por ela, através dele e dela, viu muito mais do que os seus próprios olhos: viu o ser humano que precisava continuar vivo. Porque Franco não pertencia a ela ou ao seu pai. Franco pertencia à vida.

       Então ela falou numa voz rouca:

       ― Acha que é de sorvete que preciso?

       Ele não parou de servir a segunda taça para responder com um falso desinteresse:

       ― Frutas e verduras também, claro. Temos que acatar as ordens da sua médica.

       ― Que inclui sexo.

       ― Acho que isso não está faltando.

       ― Se estou pedindo é por que faz falta, sim.

       Franco se virou para ela, o semblante revelando desconfiança e aturdimento.

       ― Ontem você fugiu de mim, e agora quer transar comigo.

       ― É engraçado que para um homem que já se deitou com quase todas as garotas de Santa Fé, você ainda não compreenda a cabeça de uma mulher. ― ironizou, sem deixar de sorrir com superioridade.

       Ele não gostou do comentário nem do tipo de sorriso e fechou a cara:

       ― Dona, como posso entender a cabeça de uma mulher se eu só dormia com garotas? Como bem sabe, só tive duas mulheres na minha cama, você e a Karen, a sua melhor amiga, não é mesmo? ― devolveu a ironia.

       ― Não tenho ciúme do que aconteceu entre você e a Karen, se quer saber.

       ― Fico satisfeito por ouvir isso.

       Ela piscou meio que perdendo o rebolado. Ele estava com os braços cruzados em frente ao corpo, a cintura descansando na beirada do balcão, as pernas cruzadas displicentemente. Uma atitude de deboche e altivez como se esperasse, com certo divertimento até, os golpes de uma criança malcriada.

       ― E quanto a mim? Pretende ou não me satisfazer?

       ― Quer então dormir com um assassino? Não se importa em sujar os seus lençóis com o suor de um homem pelo qual sente nojo? O que mais me disse ontem, hein? ― ele parou, fingindo vislumbrar ao longe os vestígios da cena vivida e continuou no mesmo tom baixo que usava, ainda que pontuado por sinais de amargura e escárnio: ― Ah, acho que foi algo como eu ser igual ao Everaldo, um criminoso. Então a moça de boa família quer levar o bandidão aqui pra cama, é?

       ― Não seja infantil, Franco! ― ralhou.

       ― Estou falando sério, Nova. Sou um fodido que só serve para te comer, é isso?

       Ela recuou um passo diante da imprevisibilidade daquela sentença.

       ― Você canta músicas de amor e depois não me procura para me abraçar ou beijar, não me agarra por trás e diz que me ama ou pede desculpas por ter me machucado ontem, por ter fugido pra casa do delegado que, por sinal, considera uma “delícia”. Todos os seus bons sentimentos por mim somente aparecem quando você quer enfeitar a sua fantasia romântica de príncipe encantado de merda, como se eu já não tivesse dito que sou o sapo, o sapo gosmento, Nova. Você mesma descobriu afinal. E agora que sabe que se enfiou na lama, que caiu numa emboscada daquelas, percebeu a minha única utilidade, o meu “talento natural” para trepadas de longa duração, é ou não é, minha princesa?

       Ela viu a própria mão voltar e descansar ao longo do corpo, a palma ardendo. E somente depois de notar por entre uma cortina de lágrimas a água brilhante nos olhos de Franco, compreendeu a ação por inteira, o esbofeteara com força.

       As lágrimas deslizaram pelo seu rosto. Tentou correr para o quarto e se trancar, ainda que pusesse abaixo o plano de salvar a vida dele. Entretanto, uma mão fechou-se ao redor do seu antebraço e a puxou para si, ao encontro do tórax rígido preparado para recebê-la como um escudo de proteção. Dois braços apertaram-na, as mãos espalmadas acariciavam suas costas procurando abrandar os espasmos que lhe sacudiam os ombros.

       Ele baixou a cabeça e a beijou perto da orelha, murmurando com aflição:

       ― Tenho medo de ficar sem você. Envelheci dez anos desde ontem.

       Era tudo o que ela precisava ouvir para se entregar ao desespero de amá-lo até o fundo da alma. Rodeou-lhe o pescoço com os braços e ofereceu-lhe os lábios. Precisava beijá-lo, senti-lo a carne, quentura, explosão. Enquanto tinha-o próximo, colado ao seu corpo, o coração batendo rápido e forte, os pulmões expandindo-se e se retraindo, tudo nele vivo, ela também estava viva, conectada a uma energia de um milhão de volts, sem merda nenhuma de fio terra.

       Subiu nas botas dele e abandonou-se num beijo que a arrastou para o paraíso do amor correspondido. Por entre os lábios do marido, ela pediu num sussurro lânguido:

       ― Vamos levar o sorvete para cama.

       Por um momento, ele hesitou. Afastou-se dela e avaliou o teor da declaração. Parecia magoado pelo fato de ela vê-lo como uma espécie de objeto sexual, um homem de segunda linha e pouco valor. Tudo nele, na sua postura em alerta e no calor terno do olhar, pedia para que ela fosse clara e não brincasse com os seus sentimentos. Ele não era só um homem; era um homem em estado de amor, quase tão inocente quanto um menino.

       E como ela era uma mulher feita e sabia das coisas, falou o que ele precisava ouvir, a verdade dos fatos:

       ― Quando a gente ama, o sexo não é só sexo, Franco. Você entra em mim, mesmo que já esteja no meu coração, mas quando me penetra fundo é como se tivesse me tatuando por dentro, com o seu nome e com o seu amor. Por isso sinto vontade de te devorar até o último pedaço. ― completou bem devagar, provocando-o, olhando-o nos olhos.

       Ele sentiu os pelos da nuca se eriçarem. Nova o deixava doido quando falava daquele jeito. Pequeninha, delicada e grávida, a voz mansa e um olhar de canibal. Parava de respirar absorvendo o teor daquelas palavras e a intenção erótica do significado.

       Devorar até o último pedaço, ela dissera.

       Havia algum tempo que ele andava fora de si. Mal sentia as botas pisarem no chão que, em outros tempos, era massacrado pela firmeza de suas pegadas. O diabo loiro estava frito. Febre alta, olhos brilhantes, narinas dilatadas e o corpo. Inflamação aguda nos músculos que ora se estendiam flexíveis, ora se contraíam. Virou-se para trás, sem largar a mão que segurava outra mão, a dela, e pegou as duas taças pelo suporte. Voltou-se para a sua mulher e com um gesto hábil, pegou-a no colo, segurando-a com o braço livre.

       Ela se aconchegou a ele e deitou o nariz no seu pescoço. Depois o beijou no maxilar enquanto os dedos, apenas as pontas, deslizavam por baixo da camiseta no abdômen rijo e magro, sobre o desenho das costelas, os mamilos e voltava. Ouviu-o expirar profundamente ao sentir o seu toque e, em poucos segundos, foi deitada sobre a cama.

       Sentou-se e se livrou do vestido, jogando-o longe. Sem deixar de prestar bastante atenção na expressão ansiosa e congestionada de desejo do marido, apoderou-se de uma das taças de sorvete e o derrubou sobre os seios, lambuzando-os de creme e calda de caramelo.

       Franco gemeu baixinho, hipnotizado pela visão luxuriante. O sangue não chegou rapidamente ao cérebro, visto que se desviara para abaixo do umbigo, e por isso precisou de algum tempo para desmanchar a expressão de deslumbramento e entrar em ação.

       E ele sabia como entrar em ação.

         

       A informação foi dita por cima do ombro, poucas palavras, nenhuma entonação de voz em especial, apenas:

       ― Dei folga às empregadas.

        E depois de informada, Valéria foi conduzida ao mesmo sofá onde uma noite o encontrou bebendo para aceitar o gosto amargo da derrota. Ainda sob o efeito do beijo, sentou-se devagar, de olho no homem que naturalmente se postava ao bar.

       Nada na postura dele demonstrava que sentira o mesmo turbilhão químico pelo corpo como acontecera com ela minutos atrás, longos minutos, deliciosos minutos. E estranhos. O abraço que recebera tivera mais a intenção de trazê-la para perto de si do que a de explorar o seu corpo. Até cogitou que fosse um abraço de carinho e não de luxúria. Valéria queria ser amada como qualquer ser humano, mas também aceitaria de bom grado ver novamente nos olhos de Thales o desejo. Despertar em um homem como ele a vontade sexual de tê-la também alimentava o espírito. Pois bem, ela já sabia o que queria.

       Adiantou-se antes que ele enchesse o seu copo com vodca:

       ― Parei de beber. ― como ele arqueou uma sobrancelha numa expressão entre divertida e incrédula, sentiu-se compelida a se justificar: ― Estou fazendo dieta também e me matriculei numa academia perto da confeitaria. Decidi que preciso cuidar mais de mim, sabe? Afinal, o tempo não costuma andar para trás. ― completou com simplicidade.

       O jeito como a olhou, o jeito de descansar os olhos sobre as suas pernas nuas e quase afagá-las para depois voltar a encará-la, no canto da pálpebra um sorriso malicioso, esse jeito tocou os tecidos sutis da sua alma.

       ― Está em busca de uma vida saudável?

       ― Na verdade, não sou tão profunda, só quero ficar bonita mesmo.

       Ele riu sem esconder o contentamento pela resposta espontânea e tão cheia de verdade.

        Valéria se sentia à vontade com Thales, embora a sua postura de homem poderoso e ogro nas horas vagas a intimidasse. Na maior parte das vezes, havia entre ambos uma camaradagem entre desiguais que nunca haviam sido inimigos ou adversários. Por ser uma mulher madura, sabia que o que se passava entre ela e Thales era bem diferente do que compartilhava com o amigo Cris.

       ― Bom, então...o que prefere beber?

       A tua saliva ― cogitou responder.

       Uma parte do seu corpo respondeu por ela. Talvez tenha sido delatada pelo brilho nos olhos, por um ricto no canto do lábio ou pela leve contração das pernas se fechando, uma cruzada sobre a outra. E, ao perceber o gesto, procurou manter a pose e fingir não vê-lo endereçar um olhar quente para o lugar protegido por suas pernas.

       Thales permitiu-se usufruir do momento. Uma mulher nervosa e possivelmente carente, sentada no sofá de sua sala vazia de sua casa vazia, tentando jogar xadrez com peças de dominó. Por mais que ela usasse as roupas que usava e tivesse o rosto maquiado e o cabelo solto, negro, caindo-lhe pelos ombros, ainda era a mulherzinha que adorava o correto, a verdade, o limpo, o ético. E, provavelmente, desaprovasse o sexo no primeiro encontro. Ele se controlou para não rir.

       Voltou ao sofá e sentou ao seu lado, o uísque já pela metade, a curiosidade espelhada no semblante à espera de uma resposta.

       ― Suco, qualquer suco. Ah, e sem açúcar, por favor. ― antes que ele tornasse a se levantar, instintivamente, ela o puxou pela mão: ― Você não vai fazer o suco! Posso beber água mesmo... ― ou o teu suor mais tarde.

       Jesus, o que estava acontecendo?

       Dois dedos tocaram no seu queixo e ergueram o rosto. À vista daquele olhar toldado por nuvens e amansado por uma terna interrogação, ela ouviu dele:

       ― Parece nervosa, o que está acontecendo, mulher?

       Ela não sabia o que responder.

       ― Me sinto à vontade com você, mas...

       Ele a interrompeu sem deixar de pegar uma de suas mãos e levá-la aos lábios; depois, com o dorso a fez tocar o seu maxilar, acariciando o próprio rosto escanhoado:

       ― No fundo, confia em mim. ― piscou o olho e continuou com um leve sorriso: ― É uma dureza ter de admitir, eu sei. Não tenho motivos para mentir nem disposição para criar uma historinha romântica para ter o prazer de tê-la na minha cama. Todo esse enfeite, as roupas, o jantar, todo esse teatro apenas para protelar por algumas horas o principal. Seja franca, Valéria, admita que faz um tempão danado que a mulher no comando matou e enterrou a garotinha romântica.

       A carícia continuava, a posse de sua mão na dele, no rosto, descendo pelo maxilar até alcançar a linha dos lábios que, entreabertos, firmes, úmidos, beijaram os seus dedos na dobra deles. O tempo inteiro ele mantinha um sorriso suave e os olhos descansados, serenos. Parecia que encontrara a paz na companhia dela.

       A irmã do delegado jamais conhecera um homem tão direto e perturbador como aquele. Estufou os peitos e se impôs sem, contudo, correr o risco de afugentá-lo.

       ― Sou um pouco romântica, sim, Thales, e não pretendo mudar só porque você quer transformar o que é bonito em feio. O que me salvou de me tornar uma amargurada foi esse meu romantismo boboca e acreditar no amor mesmo quando ele não acontecia para mim... ou para você.― alfinetou-o.

       ― Certo, Malverde, catequese em plena noite de sexta-feira eu dispenso. ― debochou, entrelaçando seus dedos nos dela.

       ― Qual é o problema em se abrir o coração, falar sobre os sentimentos?

       ― Qual é o problema de uma cama? ― foi direto ao ponto com um sorrisinho maldoso.

       ― Você precisa se tratar. Está obcecado pela Karen. ― ela parou, controlou o tom da voz e falou sem acusá-lo, sem pô-lo contra a parede, apenas fez uma simples constatação: ― Sei que pretende me usar para atingir a Karen ou, sei lá, atingir o meu irmão. Tudo isso, todo esse interesse não é por mim, não nasci ontem. Pensei em vir aqui e aproveitar. Aproveitar mesmo, entendeu? Aceitar os presentes, beijar e agarrar um homem bonito e desejado como você, meter a mão. Eu também tenho as minhas necessidades, sou um ser humano, além de hipócrita e assexuada como diz. Aliás, assexuada uma ova!

       Ela parou porque ele ria baixinho.

       ― Eu o divirto muito, não é mesmo? ― perguntou, chateada. ― Não leva a sério nada que eu falo.

       Thales respirou fundo, os olhos cheios d’água mirados nela, a expressão de divertimento:

       ― Quer ouvir a verdade, moça ofendida?

       ― Claro que sim.

       O resto do uísque foi sorvido numa golada.

       ― Tem razão, pensei, sim, em dar uma lição no seu irmão. Ele me desafiou no casamento do Franco, merecia uma boa retaliação. Além disso, roubou a minha mulher. ― beijou-a na palma da mão aberta e continuou sempre num tom baixo e sereno: ― Você nunca me interessou, Valéria.

       Ela quase sorriu.

       ― Eu sabia. ― murmurou, a peridural anestesiando a dor mas não evitando a sensação do toque, da faca que ele puxava pelo cabo depois de enterrá-la entre as suas costelas.

       ― Ainda quer se aproveitar de mim? ― perguntou ele, irônico.

       Não gosto do seu estilo, ele dissera. Você não me interessa, ele afirmara.

       Valéria baixou a cabeça e fitou o vestido que usava, a parte que cobria minimamente as pernas, respondeu num fiapo de voz:

       ― Não. Quero ir embora.

       ― Uma fraca, sempre será a sombra do seu irmão. Não luta, não insulta, não esbraveja. Sempre a resignação da vítima do destino, e é por isso que tanto me diverte. ― ele enganchou dois dedos debaixo do queixo dela e a fez encará-lo: ― Está apaixonada por mim, não é mesmo?

       Ela fez que sim com a cabeça.

       ― Conseguiu se vingar. ― afirmou com a voz embargada para, em seguida, completar com tristeza, arrastando as palavras na rouquidão da voz: ― Só não entendo qual é o prazer que sente ao magoar quem nunca pensou em magoar você. Acha mesmo que contarei sobre nós ao Rodrigo? Jamais.

       Fechou os olhos e respirou fundo. Queria que ele fosse diferente, ainda que o amasse por ser como era. Passou a mão pelos cabelos num trejeito nervoso, não conseguia entender o que sentia.

       Voltou-se para ele antevendo um sorrisinho petulante.

       ― Que mais, Valéria? Mandei falar tudo, não mandei?― estava sério e atento.

       Ela balançou a cabeça negando a intenção de lhe obedecer.

       ― Você não tem cacife para substituir a Karen.

       ― Esse nunca foi o meu objetivo de vida.

       Imediatamente ele fechou a cara e se levantou do sofá, puxando-a junto consigo, já que ainda tinha seus dedos entrelaçados nos dela.

       ― Vamos jantar, depois o Bronson a leva para casa.

       ― Dispenso o jantar, vou embora agora mesmo.

       ― Aqui quem dispensa sou eu. ― afirmou, sério. Depois disso, puxou-a pela mão até à porta de saída: ― Quer ir embora, vá, pode ir, mas saiba que não voltará mais à minha fazenda. Não a expulsei de lugar nenhum, apenas fui honesto. Não aguenta? Paciência. ― quando ela fez menção em soltar a sua mão e partir, ele enfatizou: ― Se ficar poderemos aproveitar o nosso jantar e eu tentarei não decepcioná-la... pelo menos por hoje. É pegar ou largar.

       Por mais que estivesse apaixonada e tal fato comprometesse sua capacidade intelectual, Valéria desconfiava que Thales brigasse internamente consigo mesmo, pois suas palavras contradiziam as atitudes. Abria a boca para acertá-la na testa enquanto mantinha sua mão na dele. Talvez ela estivesse errada nessa interpretação e, como sempre, projetasse no comportamento dele a sua própria vontade. Ele havia dito com todas as letras que não estava interessado nela. Não fazia jogos de sedução. Era pegar ou largar, como havia dito.

       Mas o que de tão ruim poderia acontecer se aceitasse o convite para ficar e jantar?

       Puxou discretamente a sua mão da dele e afirmou com um leve sorriso:

       ― Aceito jantar com você, só espero que não me esfaqueie novamente.

       Ele esboçou um sorriso, tornando a pegar sua mão sem chance de deixá-la se afastar.

       ― Tentarei me portar como um legítimo cavalheiro. ― e depois de beijar a mão dela, mantendo os olhos sarcásticos fixos no seu rosto, completou: ― Selecionarei minhas melhores palavras para não ferir seu espírito, senhorita Malverde. Como pode ver, até mesmo um fazendeiro bruto pode se passar por um lorde.

        De mãos dadas, dirigiram-se à sala de jantar.

       A mesa posta sobre uma toalha de linho branca e os castiçais com seis velas. Talheres, pratos e cálices dispostos para um jantar íntimo; apenas dois lugares, próximos o suficiente para que tocassem levemente os joelhos ao se sentarem à mesa.

       Durante o jantar, ele se comportou como um nobre. Ainda que o modo de olhar para ela não refletisse nobreza; eram apenas as palavras ― como lhe havia prometido, bem escolhidas. O tom ligeiramente irônico e irreverente permanecia. Até o momento em que cruzou a fronteira e perguntou à queima-roupa:

       ― Quem é o pai da sua filha?

       Valéria parou de mastigar o salmão, limpou os lábios no guardanapo com as iniciais da Arco Verde e procurou esconder a exasperação.

       ― Sou eu o pai e a mãe dela. ― respondeu num tom contido.

       Thales percebeu que tocara numa ferida. Esboçou a sombra de um sorriso do tipo que dizia: “aha, descobri o seu calcanhar-de-aquiles”. Ele não fazia o tipo diplomático ou apaziguador.

       ― Felizmente ainda não é possível a autofecundação. ― estendeu o sorriso exibindo os dentes e as covinhas de cada lado da boca e continuou incisivo: ― E, com certeza, você não iria optar por essa prática, Valéria.

       ― Pelo contrário, seria um avanço tremendo para a civilização. ― afirmou com azedume e, em seguida, foi direta: ― De qualquer forma, esse assunto não é da sua conta.

       O fogo na ponta das velas oscilou, dançava à mercê do vento frágil e morno que entrava pelas janelas.

       ― Só estou curioso, nada mais. ― defendeu-se com um dar de ombros.

       O segundo cálice de vinho branco desceu com prazer garganta abaixo. Sentia-se frustrada por ter cedido à vontade de beber. Adeus vida saudável, ouviu alguém dizer dentro da sua cabeça.

       ― Ele era casado, e eu não sabia. ― falou com naturalidade, visto que não havia ferida nem cicatriz que tivesse marcado tal evento ― Então não contei que tinha engravidado e peguei a minha filha só para mim; afinal, ele já tinha outros filhos e eu nenhum. Não fui abandonada, Thales, se quer saber. É claro que fui rejeitada e enganada. Afinal, o cara tinha família e me pediu em noivado e a palhaçada toda. ― ela refletiu por um momento e continuou, olhando diretamente para o anfitrião: ― E eu até aceitei. Aceitei casar com um cara que mal conhecia. Eu era uma criança de 18 anos. Não tinha maturidade para separar a realidade dos sonhos, e quando o desconhecido encantador começou a me cercar com palavras bonitas, caí na dele. Na verdade, queria muito ter o mesmo tipo de casamento que os meus pais tiveram. Deus!, eles se amavam demais. Isso sim é uma história de amor, viver com alguém por anos sentindo o mesmo carinho desde o início.

       ― O pai do Rodrigo não morreu cedo? Pelo o que ele me falou uma vez, parece que foi baleado quando vocês eram crianças... Então acredito que o casamento dos seus pais não durou muito, não é mesmo?

       Ela estreitou os olhos captando vestígios de ataque no ambiente.

       ― O que quer dizer com isso?

       ― Que mais uma vez foi enganada, minha querida. ― respondeu com simplicidade para, em seguida, apontar com o garfo a comida no prato: ― Coma, mulher, a Irene e as cozinheiras não se mataram no fogão para que você esnobasse a comida delas.

       Automaticamente, Valéria olhou para o próprio prato. Encheu o garfo e, aturdida, mastigou, sentindo sobre si a atenção satisfeita do outro. Engoliu a comida, mas não a afirmação jogada à mesa, insistiu:

       ― Por que tenta destruir tudo, hein? Você não conheceu os meus pais, nunca os viu juntos. Eu e o Rodrigo somos frutos de uma família que se amava, entendeu? Nem todo mundo é criado num lar disfuncional. Nossos pais cuidavam de nós, participavam de todas as atividades escolares e nós tínhamos orgulho dos dois... E quando aquele desgraçado atirou na cabeça do meu pai destruiu tudo, acabou com os churrascos aos domingos, com as caminhadas no parque, com todos os Natais até o fim da minha vida, da vida da minha família. Não é justo ter alguém arrancado da vida com tamanha brutalidade, isso faz a gente pensar se a vida tem algum sentido, se a gente respira por respirar, se trabalha apenas para manter de pé um sistema econômico asqueroso ou se tem filho só para encher o planeta com mais gente e continuar o ciclo da inutilidade. Porque não existe um pingo de justiça na vida, e só o otário do meu irmão acredita nisso! ― ela se calou abruptamente, assustada com o que acabara de dizer.

       Thales estava sério e concentrado nela ao falar com uma pontada de amargura e tristeza:

       ― O seu pai não merecia morrer. Se fosse em Matarana, o seu assassino já estaria morto e enterrado. Por outro lado, Valéria, boa parte de suas lembranças de família feliz são fantasiosas, fruto da imaginação de uma criança. ― ele fez um sinal com a mão, contendo-a, e depois prosseguiu: ― Mas se podemos tirar algo positivo dessa merda toda, é que o Rodrigo se tornou o profissional que é e você, bem...o que posso dizer sobre você... ― sorriu com charme e completou numa voz arrastada ― É uma pessoa que me faz muito bem. ― antes que ela esboçasse qualquer reação, ele continuou, agora, sério: ― Gosto quando mostra quem verdadeiramente é e isso somente acontece ao se livrar da sua hipocrisia de mulher comum, como se diz, mulher do povão.

       Foi a vez de ela sorrir, embora estivesse sob efeito da enxurrada de emoções que sentira ao tornar a viver o seu passado. Sorriu com simplicidade. Quando ele falava algo bom e depois algo ruim, por amá-lo ou por ser uma doida varrida, escolhia guardar apenas aquilo que a fazia sorrir.

       ― Mesmo quando o irrito faço bem a você? ― brincou.

       Ele não queria que a conversa tomasse o rumo da brincadeira jovial entre conhecidos.

       ― Você não me irrita, Valéria, não tem esse poder sobre mim; no máximo, me entedia.

       ― Cadê o lorde?

       ― O monstro matou.

       ― Claro, durou pouco, não é mesmo?

       ― Desculpa, senhorita Malverde, mas não consigo ser hipócrita, ou melhor, politicamente correto por mais de trinta minutos, minhas têmporas latejam. ― ironizou.

       ― E ser educado, consegue? Que adianta ter dinheiro e tratar mal as pessoas?

       ― Está se sentindo ofendida?

       ― Bom, é quase por aí mesmo. ― resmungou, jogando o guardanapo na mesa e se preparando para levantar: ― Ainda bem que vim de carro, sabia que jantar com você seria uma experiência desagradável e curta.

       ― Quer que eu peça para ficar? É isso?

       ― Sou inexpressiva, não tenho vontade própria. ― debochou, afastando a cadeira e olhando ao redor à procura da sua bolsa.

       ― Tem é pavio curto, isso sim. Vamos, Valéria, para de fazer cena e volta à mesa. ― ordenou, a cara amarrada.

       Ele era inacreditável, pensou a irmã do delegado.

       ― De jeito nenhum! Sente prazer em tripudiar em mim.

       ― Deixa de ser fresca e senta nessa cadeira agora!

       Ela parou e lançou-lhe um olhar duro:

       ― Então é bom começar a me tratar com respeito. ― ela já não havia dito isso antes?, pensou, irritada consigo mesma. ― É como você mesmo disse há pouco, pegar ou largar. ― completou com altivez e disposta a entrar no carro e partir.

       Thales levantou-se da cadeira e, endereçando-lhe um olhar gelado, aproximou-se dela.

       ― Pode ir embora.

       A sentença foi pronunciada com suavidade, cada palavra envolvida em fios de seda. A aspereza estava no significado.

       Agora já era uma questão de honra. Não podia ceder, cogitou Valéria, aceitando a invasão de dois mísseis azuis. Recuou um passo ao tê-lo quase encostado ao seu corpo. Entortou o pé sobre o salto altíssimo da sandália e teve um dos antebraços pego pela mão que a puxou para si. A batida contra o tórax forte serviu somente para despertar sensações que a duras penas tentava reprimir. Espalmou as mãos sobre o peito enxuto dele, os dedos tocaram a textura macia da camisa, o nariz aspirou a colônia refrescante e máscula e o chão cedeu debaixo de seus pés.

       Ele não fez qualquer menção de beijá-la enquanto detinha os braços dela em suas mãos em garra, a determinação velada de ajustá-la ao seu corpo e a intenção de não ceder à vontade de subjugá-la, pô-la de joelhos para, contraditoriamente, afastá-la de si.

       ― Quer ver o meu passado feliz? ― ele indagou, impassível.

       ― Quero ir para minha casa. ― disse num fiapo de voz.

       ― Depois eu a levo para a sua concha. Vou lhe mostrar algo que jamais compartilhei com ninguém, uma parte da minha vida, a parte que começou aqui em Matarana há trinta anos.

       Puxou-a pela mão até o segundo ambiente da sala principal, postando-a entre o sofá e a televisão de 64 polegadas.

       ― Sente-se, que volto em um segundo. ― disse, atravessando a sala até alcançar a escada que levava às suítes e ao seu próprio escritório.

       Voltou com um DVD e o semblante tenso.

       Enquanto ajeitava o DVD no aparelho, mantinha na testa uma ruga profunda e nos lábios um ricto de amargor.

       Ela não sabia o que fazer. Talvez o mais sensato fosse não fazer nada e assistir ao que quer que fosse. Thales era imprevisível.

       ― Esse filme é de 1981, a qualidade é um lixo. ― ele explicou, sem desviar a atenção da imagem que aparecia, um colorido esmaecido, o áudio ruim.

       Vários homens conversando no que parecia ser um acampamento, a terra de chão batido, barracas feitas de lonas pretas ao redor do grupo. Ventava. Os homens riam alto, pareciam animados, comemoravam algo.

       ― O início da colonização quando Matarana ainda pertencia à Santa Fé. ― constatou Valéria, desviando a atenção da tela da TV e encontrando o perfil do homem ao seu lado, envolvido pelas imagens.

       ― Sim. Estão felizes, os desbravadores da terra de ninguém. Nesse dia, o meu avô, aquele velho vestido na camisa vermelha, havia decidido retomar as suas terras invadidas. Juntou uma tropa, um grupinho de gatos e grileiros e se prepararam para a guerra, beberam a noite inteira.

       No momento em que contextualizava a sucessão de imagens ― o velho de camisa vermelha rindo alto, outro enrolando o cigarro de palha e mais um terceiro emborcando a garrafa de pinga do gargalo ― a expressão do rosto de Thales se contraía como se sentisse dor, não uma dor terrível e insuportável, uma dor de sempre, de todos os dias, lancinante e adestrada, presa entre as vértebras da coluna.

       Ele se lembrava daquela noite de guerra. Porque ninguém partiu. Todos ficaram em suas tendas, bêbados.

       Um garoto magro e alto não sorria nem parecia feliz no meio dos outros. Deslocado, tanto na tez clara demais quanto na profundidade do sofrimento que raiava de seus olhos arregalados, assustados, cheios de abandono. Valéria reconheceu-o e se voltou para ele, agora, homem. O mesmo tipo de olhar de infelicidade, sem, no entanto, o medo.

       ― Sim, sou eu. O neto do mal encarnado. ― comentou com um sorriso torto. ― Essa caipirada inventa cada besteira.

       Naquela noite o velho Onório entrou em sua barraca de lona. A primeira vez que recebeu a sua visita.

       O fazendeiro apontou para a televisão, acrescentando a esse gesto a declaração em voz baixa:

       ― Quero que me veja aos 12 anos, Valéria, a minha infância feliz.

       Ela sentiu um nó na garganta ao ver o menino desamparado na tela, no filme caseiro, e o adulto melancólico ao seu lado.

       Quando o velho Onório entrou em sua barraca e tentou tocar na intimidade do seu corpo, o menino já havia se preparado para a sua má sorte. Ninguém jamais o protegeria. Os pais mortos na estrada. A faca que guardava debaixo do travesseiro não foi usada. Ele era um Dolejal, fora o que dissera ao seu avô paterno, “sou um Dolejal, se tocar em mim eu te mato, te mato até duas vezes”.

       Espancadores e assassinos ― dissera isso ao seu próprio filho.

       Thales jamais espancara alguém.

       O velho saiu da barraca e guardou o ressentimento no chicote que usou durante mais de dez anos no neto. Até que o neto o enforcou numa árvore. A figueira sagrada.

       Valéria compreendeu como num insight, uma epifania de mulher louca de amor, que, ao mostrar-lhe o filme que visivelmente o feria, queria mostrar de onde nascera o monstro que coabitava sua alma, a de menino crescido.

       Ele parecia mergulhado dentro de si, a cabeça voltada para a tevê enquanto o resto do corpo imóvel, sem se recostar no sofá, rígido. E era como se sentisse o cheiro da cachaça e do suor do velho Onório Dolejal.

       Mas de repente notou que o cheiro era outro, jasmim e violetas, um campo minado de flores. Era a mão feminina no seu rosto, acariciando com ternura o seu maxilar e o contorno do seu queixo.  Deixou-se ser tocado, vivendo o tempo presente com o coração enterrado debaixo da barraca de lona preta. Fechou os olhos, inclinou ligeiramente a cabeça para a concha da mão que o amparava, o carinho tão doce e necessário que mandou para longe o odor característico daquele tipo de vida que não deveria ser vivida por ninguém, que arrancava da raiz o grito morto na garganta e tornava um homem livre escravo de um pesadelo.

       Por alguns segundos Thales Dolejal foi tomado pela mais profunda sensação de paz. O céu dentro do peito, sem nuvens, azul e belo. Leve. Eucaliptos. Pés descalços sobre a relva úmida. O penhasco debaixo dos olhos. Se ele saltasse não encontraria a mulher pela qual passara 10 anos tentando subjugar. Se ele simplesmente saltasse, sem a proteção de seus traumas, ele não encontraria mais Karen Lisboa.

       Encontraria enfim o amor.

       Virou-se para Valéria e quase sorriu ao comunicar:

       ― Está dispensada.

         

       Nova se postou aos pés da cama, pouco adiante do tapetinho de crochê barbante que a ladeava, entre o criado-mudo e a parede com a janela fechada, a luz do dia cuspida para fora. Segurava a caneca grande de cerâmica, as duas mãos postas e aquecidas pelo seu conteúdo, café com leite. Bem mais café do que leite, visto que o último provocava náusea só de sentir o cheiro.

       Admirou a beleza espichada, todo o corpo comprido e ligeiramente musculoso, entre os lençóis. Apenas uma faixa amarfanhada do tecido de algodão cobria-lhe a linha da cintura, atirada por cima das coxas e do sexo, o umbigo à mostra.

        Franco era tão bonito que deveria ser exposto em uma galeria de arte ― pensou Nova, sorrindo para os olhos azuis que se abriam devagar, o semblante sonolento, o esboço de um sorriso de reconhecimento e satisfação ao vê-la admirando-o com o olhar de amor que o convidava para viver aquele dia, e todos, com ela.

       Ela depositou a caneca sobre a cômoda atrás de si. E preferiu permanecer no espaço reservado para a sua segurança ao ficar apenas parada, observando-o. Esperou que ele, enfim, despertasse e descobrisse a realidade de sua situação. Manteve o sorriso jovial e a postura despreocupada de quem assumia para si a missão de salvar uma vida, que, para ela, era a mais preciosa do universo.

       ― Sabe, moço, acho que essa madrugada o senhor me engravidou de novo. ― brincou, sorrindo como uma garota travessa, os braços para trás balançando.

       Ele sorriu e ameaçou erguer-se sobre os cotovelos. Uma ruga sulcou a testa enquanto os lábios se apertavam, a feição se modificando como se a entidade diabo loiro acabasse de lhe entrar no corpo. Puxou um dos braços, o pulso firmemente envolvido por uma corda atada à cabeceira da cama; o outro braço recebera o mesmo tratamento.

       ― O que significa isso?

       A pergunta saiu num tom seco, a voz ainda rouca devido ao sono pesado provocado pelo sonífero posto no suco que levara para ele, após terem feito amor.

       Nova sorriu com doçura. Franco não gostou do tipo de sorriso que viu.

       ― Por que me amarrou, Nova? Quando? Como fez isso? ― desandou a perguntar, tentando puxar o pulso da corda, a sensação de que ela não o ajudaria a safar-se.

       ― Vou explicar tudinho, Franco, mas quero que se acalme. ― pediu com brandura, aproximando-se da cama, mas não o suficiente para as pernas do marido alcançá-la. Sabia que ele jamais a machucaria, mas poderia retê-la entre elas e forçá-la a libertá-lo.

       ― Espero que seja alguma fantasia sexual sua, dona. ― disse ele, de um jeito ameaçador, os olhos sérios fincados nela.

       ― Já disse que você não é mais um pistoleiro. Se tivesse me escutado, não estaria nessa situação. ― afirmou com bastante calma.

       ― Como me amarrou? ― perguntou, tentando inutilmente arrebentar a corda com sua força muscular.

       Nova recuou até a janela, respirou fundo antes de confessar:

       ― Implorei para a Karen vir aqui e amarrá-lo, eu não tenho força para isso. Pensei no Rodrigo ou na Val, mas acho que os Malverde não aceitam muito bem esse lance de cárcere privado.

       ― Nem eu. ― completou ele com o olhar duro sobre ela. ― Por acaso me dopou?

       A esposa fez que sim.

       ― Que beleza! ― exclamou com amargura. ― Parece que virou moda me doparem, e depois sou eu o bandido, você fez a mesma coisa que o Mendes antes de pegar meu canivete e enterrar na vaca louca. ― falou, irritado.

       ― Franco, a Karen não queria te amarrar, tive de implorar. ― apertou as mãos nervosamente e continuou: ― Expliquei para ela os meus motivos e a firme decisão de mantê-lo na linha. Você é o meu marido, pai do meu bebê e o segurança de uma fazenda, nada mais do que isso...

       ― Não entende, Nova?! O meu pai vai se enfiar na fazenda do coronel mesmo que eu não apareça! ― as palavras saíam com dificuldade, oprimidas pela respiração pesada e tensa: ― Ele não vai desistir só porque eu não apareci na Arco Verde.

       Nova não se abalou.

       ― Naquele fatídico jantar, vocês dois se gabaram por terem 40 pistoleiros para invadirem a Coração de Ouro, portanto...

       ― Quarenta homens não são eu!! Sou eu que fico à esquerda do meu pai e protejo ele, Nova! Ele não confia em ninguém e o Bronson está velho e sem reflexo pra atirar.

       ― Tem a Virgínia... ― argumentou sem esmorecer.

       Franco balançou a cabeça, impaciente:

       ― A Virgínia não é confiável!

       ― Como, não? O seu pai a tem como sua segurança particular...

       ― Nova, acredite em mim, nós mantemos ela bem perto para ficar de olho, só isso, como fizemos com você ao ser contratada para escrever sobre a fundação da cidade.

       ― Então a Karen estava certa. ― constatou num fiapo de voz.

       ― A Karen vai me pagar caro! A vagabunda vai se ver comigo! ― esbravejou.

       ― Cala a boca, Franco! Fui eu que planejei tudo, eu, viu!

       O semblante do pistoleiro passou de irritado à beira de uma crise de raiva para a de um pedinte esfarrapado:

       ― Por favor, princesa, me solta e deixa eu proteger o meu pai.

       Ela percebeu o brilho dos seus olhos, a água rasa molhando as órbitas congestionadas. Baixou a cabeça decidida a ignorá-lo e voltar à sala. Somente o soltaria após a tropa de Dolejal retornar a Arco Verde. Karen a avisaria por telefone.

       Antes de sair do quarto ouviu-o implorar numa voz embargada e trêmula:

       ― Por favor! Nasci para proteger o meu pai, preciso dele como preciso de você. Não posso abandonar ele, fui eu quem organizou a ofensiva. É o meu trabalho, tem que confiar em mim, sou bom no que faço e voltarei inteiro! Princesa, me escuta, por favor... Se acontecer alguma coisa ao meu pai, a culpa terá sido minha, porque eu não estou com ele! Você não pode fazer isso comigo! Você me traiu, Nova, me traiu! ― gritou aflito.

       Puxou a porta atrás de si, fechando-a. Levou a mão aos lábios e, ainda assim, não conseguiu conter o primeiro dos vários soluços enquanto chorava.

       Sabia que estava seguindo as ordens do seu coração. O problema era que Franco estava desesperado se debatendo na cama para escapar.

         

       Assim que Thales surgiu no alpendre da casa-sede da Arco Verde, Bronson se chegou até ele, o desalento no semblante antecipava-se à declaração:

       ― Nada, patrão. O celular do Franco está desligado.

       ― Que merda aconteceu agora? ― era uma pergunta retórica, dita de forma brusca e irritada.

       Olhou à sua frente, as picapes com os pistoleiros na cabine e caçamba; alguns apenas ao redor, armas na cintura, olhares atentos. Eles aguardavam o seu subcomandante, exalavam a ansiedade típica que antecedia aos grandes acontecimentos.

       ― A gente vai até a casa do garoto ver o que aconteceu. ― disse o velho, ensaiando descer os degraus e pôr em prática a decisão.

       Foi contido por uma voz forte e determinada:

       ― O Franco sabe sobre as suas responsabilidades, e eu não vou tratá-lo como se tivesse 15 anos de idade. ― em seguida, emendou com menosprezo: ― Não duvido nada que a jornalista o tenha convencido a boicotar a ação contra o coronel.

       ― Não acredito nisso, não, patrão. O Franco estava suando naquele pavilhão para nos mostrar a posição de cada um na fazenda do coronel, inclusive já tinha até combinado com o Elias, que fica na portaria da manhã na Coração de Ouro, a nossa entrada sem chamar a atenção da tropaiada toda do coronel.

       ― O Elias que está na folha de pagamento da Arco Verde?

       ― É, sim, senhor. O camarada já está esperando a nossa chegada. Quando a cambada perceber que entramos na propriedade, não terá muito o que fazer senão nos entregar as armas e se pôr de joelhos. Por isso precisamos do Franco, patrão, ele planejou cada passo, cada manobra, e ele vai pôr o senhor bem na frente do coronel sem dificuldade alguma.

       ― Pois é, mas parece que vai nos deixar na mão. ― comentou, torcendo o canto do lábio com amargura.

       Franco cedera aos caprichos da mulher. Uma hora ou outra, isso aconteceria. E o mais difícil não era invadir a fazenda construída nas terras do velho Onório, as terras roubadas pelo coronel à época do desbravamento do centro-oeste, logo no início da colonização de Matarana. Thales estava decidido a recuperar o que era por direito dos Dolejal. Havia algum tempo que protelava tal ação. Agora, com a chegada de mais um coronel e o ar se tornando deveras poluído, urgia que mostrasse aos latifundiários que o coronelismo tinha os seus dias contados por aquelas bandas.

       ―Vamos então aguardar por vinte minutos. Se ele não aparecer até lá, começamos a nos mexer. ― decidiu, por fim, o latifundiário.

       Bronson também criara o garoto que se tornara o seu chefe, o segundo na hierarquia, o seu guri, o filho que nunca teve. Conhecia a lealdade desmedida entre os Dolejal, pelo menos do filho em relação ao pai, e botava a mão no fogo por Franco, ele jamais abandonaria o patrão. Coçou a cabeça na nuca e, com o gesto, o chapéu desabou para frente, na testa larga e enrugada.

       ― Vou ver o que aconteceu com o garoto e já volto.

       A afirmação não precisava da concordância do seu empregador. Já havia algum tempo que o velho pistoleiro fazia o que lhe dava na telha. Nem olhou para trás antes de entrar na picape e partir.

       Thales quase sorriu, considerando que Bronson agira de acordo. Na Arco Verde, ninguém abandonava os seus.

       Já estava na hora da jornalista aprender essa lição.

         

       Karen saiu detrás do caixa e se postou na calçada em frente a sua confeitaria. Pôs as mãos nos quadris depois de ajeitar a aba do chapéu de modo a permiti-la observar tudo o que tinha para observar logo adiante, do outro lado da rua. E era lá onde se localizava a delegacia e, antes dela, o seu estacionamento com duas viaturas da Polícia Federal, outra da Polícia Rodoviária Federal, três da Polícia Militar de Matarana e a própria viatura da Polícia Civil, ladeando a picape particular do delegado da cidade.

        A movimentação começara cedo. Desde as cinco da matina Rodrigo já estava de prontidão na delegacia para esperar a chegada da força tarefa. Um bom número de agentes compunha a Operação Sentinela de combate ao tráfico de drogas, criada havia pouco tempo e com o firme propósito de fiscalizar as fronteiras brasileiras.

       Ainda naquela manhã, a Vila Zumbi receberia os policiais e os seus mandados de prisão e busca e apreensão, pondo por terra as bocas de fumo franqueadas por Leonardo Marau, cliente de uma família poderosa de traficantes bolivianos.

       Karen ainda não sabia o que Rodrigo já tinha como certo. As investigações sobre o surgimento do óxi em Matarana avançara na velocidade de um raio a partir de um telefonema e uma indicação.

       Agora, enquanto pressentia a chegada da cunhada atrás de si, imaginava o seu homem vestindo o colete à prova de balas, conferindo a munição das pistolas, a ruga funda no meio da testa, sério, mergulhado na missão de livrar de todo o mal a cidade a qual protegia.

       ― Meu Deus, parece que estamos em estado de guerra. ― murmurou Valéria, preocupada.

       Ela percebera a movimentação também na Arco Verde. E, na noite em que Nova se refugiara na sua casa, assustada, havia deixado escapar algo sobre uma ofensiva de Dolejal contra o coronel. Não fora difícil juntar as peças.

       Karen se voltou para ela com um olhar avaliativo.

       ― Acho que foi a senhorita quem voltou ontem de uma zona de guerra. O que aconteceu? Ele quis por trás e você se sentiu ofendida?

       ― Karen! ― Val exclamou num tom esganiçado, não esperava ouvir uma pergunta com tamanha dose de refinamento.

       ― Me poupa, Val! Pela sua cara a noite foi uma droga. Não a vi flutuando com um sorrisinho besta ou cantarolando “Pensa em Mim”. Acho então que o charme do Thales desbotou.

       ― E um grosseirão tem charme?

       ― Percebi um tom irônico e um pouco maldoso na sua vozinha, querida cunhada. ― disse Karen sorrindo. ― Mas, sim, Thales sempre foi um insuportável. Entretanto, isso só acontecia fora da cama.

       ― Karen, não houve “cama”. Ele não me quis.

       A outra desviou os olhos do estacionamento da delegacia e se voltou para a amiga.

       ― Como sabe que ele não a quis? Por acaso ficou esperando ele te pegar no colo, te jogar na cama e te fazer mulher?

       ― Precisava?

       Karen deixou escapar uma risada engraçada.

       ― Claro que não! É só pegar na mão do Thales que ele te come em dois minutos.

       ― Estou falando sério. Não rolou. Ele... meio que me dispensou.

       ― Certo, ele a convidou para jantar pra nada?

       ― Não, ele me convidou para jantar, ora... E também para me seduzir, queria se vingar de você e do Rodrigo.

       ― Para por aí, ô malandra, por acaso essa não é a sinopse daquela antiga novela mexicana? Como é mesmo o nome? Ah, sei lá! ― brincou a cunhada com verdadeiro deboche, divertia-se. ― Que coisa mais ridícula, Valéria Malverde! O Thales está atraído por você e fica inventando merda pra não dar o braço a torcer, ele sempre foi assim, e é por isso que acaba levando guampa! ― em seguida, ela fez um gesto com a cabeça em direção à delegacia e completou: ― Temos de nos preocupar agora é com o que acontecerá quando esse bando de policial armado entrar numa vila com um bando de traficantezinho armado e outro bando de viciados desesperados. Não vai sair coisa boa dessa ação de hoje.

       Val balançou a cabeça devagar em afirmativo.

       ― O Thales vai invadir a Coração de Ouro. ― contou, esperando a reação de uma possível aliada do seu irmão.

       Preferia que Karen contasse a Rodrigo sobre a invasão dos Dolejal e, com isso, contivesse Thales antes de lhe acontecer o pior. Todavia, não ocorreu o pretendido:

       ― É muito bom que o Rodrigo esteja ocupado em cumprir a lei, assim o Thales pode fazer justiça. ― em seguida, aproximando-se do Maverick, disse sem se voltar: ― Aguenta as pontas aí que já volto.

       ― Aonde vai?

       Diante da porta aberta, Karen suspirou contrafeita, ela detestava dar satisfações. Olhou para os lados ao perceber que os agentes começavam a entrar nas viaturas e se voltou para a cunhada, respondendo simplesmente:

       ― Preciso de O.B.

       ― Hã...?

       Valéria perscrutou-lhe a expressão desconfiada. Duas ações da pesada acontecendo na cidade. Rodrigo se enfiando numa vila e Thales na fazenda do seu maior inimigo. Karen Lisboa montando no V8 para comprar absorvente interno...

       ― Fiquei mocinha.

       ― Karen, por favor! ― era quase uma súplica.

       ― O que é agora, Valéria? ― perguntou com impaciência, pondo as mãos nos quadris e fechando a cara: ― Acha que estou feliz com isso? Acha mesmo que eu queria ficar menstruada? Desde que fui morar com seu maninho parei com a pílula e, por acaso, engravidei? Não, claro que não. Queria dar um cauboizinho para o meu macho alfa sentimental, ver aqueles olhos lindos se encherem de lágrimas ao saber que seria pai...Pensa que não vejo a carinha dele pra barriga da Nova? Mas não adianta, fiquei oca do dia pra noite e agora tenho que comprar tampão. ― por fim, deu de ombros e se despediu com um sorriso misterioso: ― Cuida aí para as moscas não comerem todos os macarons.

       Valéria não teve tempo para argumentar. Viu quando a cunhada entrou no carro, bateu a porta e se encurvou para mexer no porta-luvas.

       Que metamorfose o amor podia provocar nas pessoas, refletiu Val. Karen considerando Rodrigo como seu marido e tentando engravidar novamente para tornar realidade o sonho dele. Karen querendo fazer um homem feliz.

       Se ela estava disposta a mudar por amor, isso também poderia acontecer para qualquer pessoa, cogitou a mulher que tinha a cabeça longe, mais precisamente, no interior de uma fazenda.

         

       Todas as saídas da Vila Zumbi foram barradas pelos policiais. O labirinto entre as casas, ruelas estreitas de chão batido debaixo de um emaranhado de fios elétricos clandestinos, auxiliava o rápido deslocamento dos criminosos. Até os ladrões de galinha se enfiaram pelos becos para fugir da lei.

       Mulheres apareciam às portas e gritavam o nome dos filhos; algumas corriam para juntar os menores do chão, carregá-los encaixados nos quadris para dentro de casa. E, supostamente seguros, aguardavam o início do barulho para além dos motores das viaturas, esperavam o estampido seco do primeiro tiro.

       Por aqueles lados, quando a noite escondia as bocas de fumo e o dia revelava a praça povoada por moleques empinando pipa, ainda que houvesse transação de drogas, a violência não os havia alcançado como um todo. Até pouco tempo atrás, o forte na região eram as plantações de maconha. Plantavam nos quintais de casa e vendiam a mercadoria para os filhos dos fazendeiros e empresários; principalmente para os que retornavam a fim de curtirem as férias universitárias junto à família. Eles sentiam falta dos pequenos luxos da cidade grande, como “curtir um barato”.

       Um camarada de cabelo cor de palha, olhos escuros, lábios secos e voz de fumante desde a última encarnação, falou para Rodrigo Malverde:

       ― A gente aqui nunca se meteu com droga pesada. Como dizem, não é da nossa cultura, doutor. Maconha, sim, isso é da nossa cultura.

       Rodrigo olhou ao redor. Aqui e ali, por entre árvores, automóveis e muros a presença dos agentes impunha respeito, abordando transeuntes e invadindo as casas dos suspeitos, lendo os direitos enquanto algemavam traficantes pés de chinelo. A resistência à prisão ocorrera apenas em uma circunstância: o homem corpulento, algemado com os braços para trás, já que fora preso por um policial civil (os federais algemavam os braços para frente), decidiu que um cabo de vassoura empunhado como uma espada o livrasse de ser levado no camburão para detrás das grades.

       Ele plantava maconha e, acreditando que vivesse na Holanda, afirmara que no Brasil já estava arraigada a cultura da Cannabis. Era uma questão de tempo, ele enfatizara, para a droga ser legalizada, assim como para o aborto.

       O delegado percebeu que ele estava pra lá de Marrakesh.

       ― Não acha que está velho demais pra bancar o hippie? ― apontando para o quadro com brincos de metais e penas ladeado pelos saquinhos com erva.

       O delegado conhecia a figurinha de meia-idade, cabelos longos e grisalhos, tatuagem desbotada no alto do braço esquerdo, o rosto de Guevara.

       O outro sorriu um sorriso amarelo. A nicotina de fato fodia os dentes, considerou Rodrigo.

       ― É para consumo próprio, não trafico.

       ―Bom, então você é um filho querido do capitalismo e consome demais, amigo.

       ― Olha só, por que a polícia sempre dá batida nas vilas e deixa os bairros ricos de fora, hein? Vocês querem mostrar serviço pra comunidade, dizer pra eles ‘aqui tá o dinheiro de vocês, dos impostos de merda’, aí entram nos lugares onde só tem maconha e...

       ― E nada, cala a boca, camarada, que já sabemos sobre a pedra de dois rolando por aqui.

       ― Vou te fazer um favor, ô autoridade, e dizer o seguinte: a única boca de fumo que mexia com essas merdas de pedra foi abatida a tiros. A cartomante dominava o pedaço e vendia essa porcaria de óxi. Ninguém mais. Aliás, ninguém mais podia vender, a velha não permitia. O guri, neto dela, meteu no valão uns malandrinhos que tentaram burlar as regras e foram comprar a pasta de coca direto com o Vitorino... Que os quintos dos infernos o tenha, o filho de uma puta bem gasta! ― afirmou com menosprezo antes de juntar a saliva sobre a língua e cuspi-la num jato grosso.

       A cuspida acertou a bota do delegado.

       Lucas aportou ao seu lado.

       ― Os federais querem os peixões. ― queixou-se.

       O delegado sorriu levemente.

       ― Dê o endereço da Coração de Ouro. ― puxando o cidadão maconheiro pelo antebraço, ordenou ao agente: ― Leva junto com os outros. ― virou-se para o pátio com a planta que não seria colhida e acresceu determinado: ― Vamos pôr fogo nessa merda toda, acabar com qualquer vestígio dessa praga na lavoura.

       O policial considerou a ordem do doutor delegado à sua frente, parou entre o homem algemado e o homem pensativo, que olhava para os mais de oitenta vasos de maconha decorando a paisagem no quintal da casa de alvenaria e telhas de zinco.

       ― Não sei se levo fé na nossa fonte.

       ― E o que faremos então, Lucas? Não consigo provar que o desgraçado ou o filho dele tentou me matar duas vezes. Fizemos uma puta diligência na Coração de Ouro e as picapes simplesmente evaporaram. Além disso, ontem fiquei sabendo que uma equipe da Delegacia do Trabalho voltou para a capital com as mãos abanando, porque não encontrou os trabalhadores que supostamente eram mantidos em situação de escravidão. E sabe o que isso significa?

       Lucas foi direto ao ponto:

       ― Que ele sabia com antecedência sobre a ação do Ministério.

       O delegado fez que sim com a cabeça.

       ― O coronel não será posto detrás das grades e tampouco entrará na lista negra do cadastro do Ministério do Trabalho.  ― resumiu com desânimo a condição do latifundiário. ― Para todos os efeitos, os seus funcionários são registrados e pagos em dia, conforme consta no relatório dos fiscais. Mas tenho certeza absoluta de que esses registros são falsos e os coitados foram orientados a não se manifestarem.

       ― E por acaso essa certeza vale outro mandado para entrarmos na Coração de Ouro? ― não era bem uma pergunta, era mais como uma sentença irônica que traduzia o quanto os homens da lei estavam presos às circunstâncias.

       Intuição e dedução lógica, sem provas materiais, não trancafiariam o coronel Emílio Marau e Leonardo no presídio de Santa Fé.

         

       Os pneus massacraram a terra seca e as pedrinhas bateram contra a lataria da Silverado que reluzia à luz do sol, o motor rugia suavemente, os vidros abaixados aceitavam o ar tépido e o som dos pássaros naquela manhã de dezembro.

       O homem à direção estava sério. O meneio com a cabeça ao passar pela porteira e cumprimentar o seu espião em reduto alheio foi mal percebido. Endereçou um rápido olhar para o retrovisor e confirmou a entrada discreta de outras duas picapes com seus pistoleiros. À frente esbarrariam com os seguranças da Coração de Ouro. Até lá seguiriam fazenda adentro como se passeassem discretamente, sem a intenção de pôr fogo no cerrado. A ideia era chegar à casa-sede e, enfim, aceitar o convite para almoçar com a família Marau.

       O primeiro grupo de pistoleiros despontou no horizonte camuflado pela cortina de poeira que suas montarias ergueram no recorte ao fundo do céu azul. Antes que engatilhassem suas . 40, os homens da Arco Verde destravaram as Glocks e esse era o aviso sobre a beligerância da visita.

       Thales estacionou a picape e desligou o motor. Deu uma boa olhada para o paraíso verdejante ao seu redor, para a propriedade que tencionava reconquistar. Desceu, tirou os óculos escuros e sorriu levemente. Revigorado, nas veias o sangue elétrico que aquecia sua pele. Pôs as mãos nos bolsos laterais da calça social enquanto percebia a aproximação de Virgínia ao seu lado, o esquerdo.

       Ela jogou o cabelo para trás e ajeitou o chapéu, gestos rápidos e precisos. A mão tornou a descansar sobre o coldre atado displicentemente nos quadris. Um olhar mau fixo nos seguranças do coronel, o semblante carrancudo e o chiclé mascado bem devagar. Elos de tensão se grudavam à sua pele suada. Era capaz de tocar na fumaça de raiva que exalada pelos corpos dos seguranças. Afastou as pernas enfiadas no jeans colado e mostrou aos rapazes que não estava ali para brincar. Ao seu lado, o poder imanente de um ser digno de ser reverenciado. E então sorriu ao recordar a última noite com o filho do dono daquela fazenda. A vida era dura para algumas mulheres, dura e injusta. E que atirasse a primeira pedra quem nunca traíra uma antiga paixão desbotada.

       Virgínia voltou-se ligeiramente em direção ao patrão e sentenciou:

       ― Falei com o delegado.

       Thales não moveu um músculo, concentrado que estava ao ver a porta da casa se abrir e a governanta surgir com a expressão preocupada e abatida.

       ― Contou para o Rodrigo que traficava com o seu amante?

       A pergunta foi feita com bastante serenidade, o que causou à pistoleira uma forte contração estomacal. Ela engoliu o medo.

       ― O senhor sabia. ― constatou numa voz pálida de energia.

       ― Eu sei de tudo, Virgínia. E você só continua comigo, porque, para a sua sorte, o Franco não sabe.

       ― Me perdoa, patrão...me perdoa, por favor. ― pediu baixinho numa aflição que não combinava com a ocasião.

       Ele pousou os olhos duros nela.

       ― O que contou ao delegado?

       Ela tentou sorrir.

       ― Tudo.

       Com muita tranquilidade e autoconfiança, características típicas de quem nascera de posse de uma bússola e uma carta de navegação, Thales foi direto:

       ― Contou sobre nós? Sobre essa conversinha com o coronel? Ou sobre o fato de você dormir com o Leonardo Marau e ser uma espiã na Arco Verde? Me diz, Virgínia, está me espionando para me entregar a quem, ao coronel, ao seu amante ou ao delegado? ― e sorrindo com todos os dentes afirmou: ― Acha mesmo que me enganou esse tempo inteiro? Você é só mais uma mulherzinha iludida por um canalha, nem levo em consideração a sua deslealdade, pois o pior ainda está por vir.

       ― Patrão... não fui desleal...

       O coronel apareceu à porta e tinha uma ruga funda entre os olhos ao ver o seu inimigo e uma dezena de camaradas armados sem nenhuma discrição.

       ― Sorria, Virgínia, você está sendo vigiada. ― Thales apontou discretamente para o coronel e encerrou a conversa: ― Torça para que o Franco nunca descubra sobre o seu caráter.

       O velho gritou do alpendre:

       ― Obrigado, Virgínia, por trazer o meu amigo até mim, já estava mais do que na hora de nós dois acertarmos os nossos ponteiros, Dolejal. Vamos, entra, vem beber um trago comigo!

       Thales ignorou a pistoleira que tentou em vão se aproximar para dizer que entregara Leonardo Marau para o delegado, ele e a sua droga armazenada na fazenda. Mas Thales a conteve com um gesto de mão antes que ela pudesse se inocentar do crime.

       Ele subiu devagar os degraus até a entrada da casa, sabendo de antemão que a facilidade em adentrar a fazenda do coronel, erguida sobre as terras dos Dolejal, devia-se à espionagem de Virgínia. Ela contara tudo a Marau. A partir de agora ele teria um árduo caminho de negociação para readquirir a sua propriedade.

       ― Está dispensada, Virgínia. ― afirmou secamente, sem olhá-la.

       Ela parou no meio da escada, constrangida. Sabia que a única atitude a tomar era obedecer à exigência do patrão. Estava chocada, aturdida e frustrada. Observou os latifundiários apertarem as mãos.

         

       Todas as janelas da casa estavam fechadas. O jardim florido e bem cuidado, cercado por pequenas estacas de madeira branca, decorava a construção moderna e jovial, típica moradia para um jovem casal começar a vida.

       Bronson entortou a boca num ricto de desagrado diante do que viu, a picape vermelha estacionada na garagem, na parte lateral da casa. E foi para lá que ele se dirigiu, parando um pouco antes do para-choque do cavalo de metal de Franco.

       Desligou o motor e relançou um olhar divertido para Valentino, que voltava à casa do patrão pela segunda vez naquela semana.

       ― Será que o Franco não ouviu o barulho do despertador?  ― era mais uma brincadeira largada no calor da estação do que uma pergunta séria.

       O passageiro do banco ao lado, falou:

       ― Duvido, o patrãozinho mal comia de tanta ansiedade. ― ele riu pelo nariz. ― É mais fácil ele ter trepado até desmaiar.

       E foi dessa forma despreocupada que bateram à porta dos fundos, a da cozinha.

       Valentino ficou um pouco atrás de Bronson, pois terminava o seu cigarro e não queria que a fumaça entrasse na casa de uma grávida. Ele se importava com essas coisas, fumaça em pulmões alheios, por exemplo. Ninguém era obrigado a fumar com ele; principalmente a mulher do patrão e o herdeiro dos Dolejal.

       Ninguém veio à porta. Os camaradas se entreolharam, intrigados. Valentino bateu mais forte contra a madeira, e o silêncio foi a resposta.

       Bronson fez um sinal com a cabeça em direção à parte lateral da casa, onde se localizavam duas janelas, a do quarto do bebê e a do banheiro. Fez o contorno e espiou pelo vidro fechado, toldou os olhos para não dar de cara com a própria imagem, agora, esculpida por linhas tensas ao redor dos olhos e na testa. Bateu no vidro e gritou com severidade:

       ― Franco! Nós vamos pôr abaixo essa porta, guri!

       Os pardais sobre as cerquinhas se assustaram e se bandearam para um lugar sossegado, o alto de uma árvore.

       Valentino nascera de sete meses e por isso não esperou e meteu o pé contra a porta, soltando a estrutura de madeira das dobradiças; um segundo depois, a bota direita se arremeteu contra a porta solta, que não quebrou, mas cedeu espaço suficiente para que com os braços ele forçasse a sua entrada.  Atrás de si, Bronson com a Glock em punho e a outra mão forçando a passagem para ambos entrarem na cozinha mal iluminada, as venezianas e cortinas fechadas.

       Ouviram um barulho em um dos quartos. Uma batida forte e seca, constante.

       Valentino sacou a pistola e arregalou os olhos, a casa estava às escuras, sem sinal de vivalma.

       Bronson encostou-se à soleira da porta entre a cozinha e a sala e avistou uma poltrona posicionada de forma estranha. Fez um sinal para o outro, indicando-a com a cabeça e levando um dedo aos lábios num gesto que exigia silêncio absoluto. A poltrona, um modelo antigo, deveria estar virada de frente para a estante com a televisão e não o contrário. Alguém se escondia sentada nela.

       Valentino apontou e engatilhou a automática.

       Uma voz irrompeu feito um trovão dos infernos:

       ― Fica frio, Valentino! É a minha mulher!

       O pistoleiro sentiu um fio de suor escorrer pelo seu rego, gelou, e lançou um olhar assustado a Bronson.

       ― Mas que bosta é essa!

       ― Franco, o que está acontecendo, cacete! ― Bronson apertou os olhos tentando compreender o que acontecia por ali.

       ― Como ele sabe que sou eu? ― insistiu, o velhote encafifado.

       Franco gritou de volta:

       ― Está tudo bem, fiquem com o meu pai que eu seguirei direto para a Coração de Ouro. Vamos! Se mandem, porra!

       Bronson percebeu nuances de aflição na rispidez do timbre de voz do filho de Thales. Sem tirar os olhos da poltrona, perguntou curioso:

       ― O que está acontecendo? Fala que a gente vai embora!

       Valentino ainda estava pasmo. Como Franco sabia que ele estava dentro da sua casa? O garoto tinha um pacto com o diabo mesmo!

       ― Não interessa! Vão embora!

       E então o motivo da aflição do pistoleiro se revelou. Nova saiu detrás da poltrona, o rosto vermelho e inchado, as lágrimas molhando a face e o .38 numa mão, na outra a Glock. Duas armas engatilhadas e apontadas para quem ousasse livrar o seu homem do cativeiro.

       Bronson quase sorriu ao reconhecê-la. Ela era uma bonequinha bem corajosa e meio doida, pensou bem-humorado. Notou então que Valentino coçava a cabeça tentando entender a situação, achou por bem tirá-lo da escuridão da ignorância:

       ― O Franco descobriu que era você, porque o piso é de assoalho e você arrasta uma perna, só isso. Agora vê se sossega, porra! ― e, voltando-se para a esposa do diabo loiro disse com bastante calma, quase didaticamente: ― Quando a gente aponta uma arma para alguém é porque estamos assumindo a responsabilidade por uma morte.

       Ela fechou ainda mais a cara.

       ― E quando apontamos duas?

       Valentino manteve a pistola apontada para a mulher, a mente tentava encaixar as peças: Franco no quarto. Dona Nova armada.

       ― Vai atirar na gente, dona Nova? ― perguntou Bronson numa voz macia, se aproximando devagar.

       ― Quer apostar?

       Ela atirou.

       Franco quase teve um enfarte no quarto.

       ― Vão embora, seus merdas! Ela não pode se estressar! Não incomodem ela, caralho! É uma ordem! Vou pôr os dois na rua se não se mandarem agora!!! Desgraça de gente burra!

       Nova atirou contra a televisão.

       Valentino estremeceu os ombros, jamais cogitaria que a mocinha tão feminina fosse atirar de verdade. E por que, diabos?

       ― Por que atirou em nós, dona Nova? ― ele perguntou, mais curioso do que assustado.

       Bronson respondeu por ela, sem deixar de manter o olhar cravado nas armas da atiradora:

       ― Ela está segurando o Franco em casa.

       Nova não baixou as armas ao ver os homens guardarem as suas.

       ― Ouviram o que o patrão disse? Caiam fora! Agora! Não me façam cometer uma loucura, por favor.

       ― Eles vão embora, princesa! Não fica nervosa, vai dar tudo certo, ok? Respira fundo...vai dar tudo certinho, eu prometo...Não faz bem para você, amor lindo, e a bebê vai ficar nervosa também... tudo o que você sente ela também sente...

       Nova tentou sorrir. A situação estava sob controle. Os homens voltariam para junto de Thales e Franco aceitaria a sua condição.

       O chão faltou debaixo dos seus pés descalços e ela viu a porta do quarto se abrir. A figura alta saiu vestido no jeans, abotoando a camisa, os braços arranhados, filetes de sangue na superfície das tiras da pele queimada, no atrito contra a corda fina presa à cama.

       O barulho das botas chegou aos ouvidos dela antes mesmo de Franco se aproximar e se deter à sua frente, o olhar sério e compenetrado nela, dentro dela, revirando-a.

       Ele a desarmou com um sorriso gentil e tomou-a nos braços com carinho e proteção. Balançou-a devagar.

       ― Precisa pensar na nossa filha, Nova. Não me decepcione, por favor. Se não puser a nossa filha em primeiro lugar, antes de mim e de você, me deixará muito triste.

       Nova compreendeu a extensão daquela verdade, deslizando a mão sobre o ventre inchado.

       Franco se afastou depois de beijá-la na testa. Seguiu com os pistoleiros, seus subordinados, para fora da casa.

       E voltou.

       ― Vou deixá-la com sua amiga Valéria. Não quero que fique sozinha pensando besteira. ― decidiu, um sorriso travesso debaixo do olhar terno. ― E à tarde vamos comprar outra televisão.

       Pegou-a no colo e a levou consigo.

         

        Thales fumava após beber dois copos de uísque ao estilo cowboy. Com apenas quatro goles ele derrubara a bebida amarga pela goela, sem fazer careta, sem queimar por dentro. Do seu esqueleto emanavam ondas frias, a era glacial entre ossos e cartilagens. E era sempre assim que se sentia em um ambiente hostil, preparado para o confronto, a frieza azulada que engatilhava cada pensamento, cada linha de raciocínio na perfeita ordem de ataque. Eram apenas as mulheres que o tiravam do sério e quebravam o gelo, trazendo à superfície de sua alma os sentimentos mais cáusticos.

       Ele procurava não pensar na falta que Franco fazia ao seu lado, a frieza que também revestia o seu melhor homem, o seu subcomandante com gatilho rápido e inteligência afiada. Precisava manter-se concentrado no adversário e também esquecer a ausência de Virgínia e a lerdeza de Bronson, que, não chegando no prazo estipulado de vinte minutos, fora deixado para trás. Mas, ainda assim, Thales Dolejal tinha Paulo, o sardento transferido para a Lagosta do Brejo e que retornara tão-somente a fim de fazer parte daquele momento glorioso de retomar as terras do primeiro Dolejal no cerrado, o verme.

       O coronel comportava-se como uma cascavel de fraque; parte formal, comedido, escolhendo as palavras; parte, de acordo com a sua natureza peçonhenta. E se a analogia entre os dois fazendeiros se mantivesse relacionada à fauna, o caso era de se pensar que aquele ambiente arejado ― escrivaninha de cedro, paredes claras, duas portas fechadas e pesados tapetes que não combinavam com a região bucólica ― assemelhava-se a um aquário com um par de Betta Splendens dispostos a defenderem o seu território até a morte. 

       Sentado na poltrona, as pernas cruzadas como as mulheres o faziam, a postura calma e autoconfiante e o olhar vazio. Thales ouvia o barulho dos pássaros, da arrumação da mesa para o almoço na sala contígua ao escritório, onde estavam a sós, já que o coronel dispensara os seus seguranças, e Dolejal nem fizera questão de chamar o garoto Paulo para assegurar a sua integridade física.

       O coronel zanzava de um lado para outro, com vagar, arrastando as alpargatas abaixo da bombacha. E começou a dizer:

       ― Quando cheguei aqui, nesse povoado dos bugres, junto com o teu avô e uma porrada de esganados, tratei de me certificar de que todos teriam o seu pedaço de terra, todos, os pequenos e os grandes. E sabe por quê? Todos nós tínhamos deixado muito para trás. A gente tinha vendido terreno, casa, auto e se enchido de empréstimo pra pagar. O governo disse: pega a terra, vem povoar esse fim de mundo, a terra é de vocês. ― ele deu de ombros num gesto de indiferença tristonha: ― E foi o que a gente fez, ora. Quase perdi meus dedos escavando essa terra seca e ainda precisei criar olhos na nuca. Índios, garimpeiros e a bandidagem toda que trouxemos com a gente que, lá no sul, nem eram tão bandidos assim, andavam com a faca entre os dentes prontos para nos furar e se apossar do que conseguíamos. Ah, o que estou falando? Há trinta anos, você era um piá de bosta, não sabia merda nenhuma sobre a vida...Tiro o meu chapéu pra você, Dolejal, comeu terra e cuspiu ouro. ― ele riu alto e completou num tom debochado: ― Temos as nossas diferenças, claro, mas o nosso passado nos liga. O teu avô foi meu amigo, é isso mesmo, o velho pervertido era o meu faixa.

       ― E desde quando se rouba um amigo, coronel?

       Emílio Marau quase sorriu, ameaçou um ricto facial parecido com um sorriso, apenas isso. Surpreendeu-se com a rapidez de ataque do outro, esperava que conversassem mais sobre trivialidades ou sobre o fato do diabo loiro tê-lo abandonado. Sim, ele tocaria no assunto. Mas não agora, não quando olhava diretamente para o homem vestido como um executivo e empertigado como se fosse um faraó. Diabos!,  desprezava o almofadinha, a vontade de cagá-lo a pau até desfigurar o rosto! O rosto. Não era à-toa que o velho Onório tentava coisa com o neto...

       ― Como é mesmo o ditado?, ah, sei... é mais ou menos algo como: ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Estou errado? ― rapidamente emendou num tom de troça: ― Acho que não, compadre. As terras do teu avô, na verdade, eram do governo. Aliás, boa parte das suas terras também é do governo, porque o Onório... que Deus, pobre diabo, o tenha!, expulsou um bando de bugre e matou um punhado de garimpeiro para se apossar dessas terras que tanto prazer te dão. O teu avô expulsou também os primeiros colonos, os sulistas mais fraquinhos que não tinham armas nem pistoleiros para se protegerem... E agora você vem aqui cagar moral pra cima de mim, é? ― gargalhou, feliz da vida.

       Thales sorriu, depois de tragar o cigarro e exalar a fumaça pelas narinas.

       ― Não, a última coisa que pode me chamar é de moralista. ― ele se ajeitou na poltrona, curvando ligeiramente metade do corpo para frente, como se fosse contar um segredo para o velho: ― Mas é como você mesmo falou, há trinta anos eu era um “piá de bosta”, completamente inocente das sujeiradas dos primeiros desbravadores dessas terras. Herdei uma fazenda caindo aos pedaços e um pouco de terra no Pará, só isso. Imagino que o meu avô enchesse a cara por vê-lo, coronel, enriquecer com a rapidez de um foguete enfiado no rabo. Sabia que ele forçou meus pais a venderem o sítio, único teto que eles tinham, e mandar o dinheiro para ele poder se manter no jogo?,  para pagar um maldito empréstimo e um trator de segunda mão. O velho era tão sortudo que você sabe muito bem o que aconteceu com a minha família, não é mesmo?

       Marau captou a nota amarga no final da sentença. Balançou a cabeça como se de fato lamentasse a morte dos pais do seu oponente. Não lamentava.

       ― Tiveram sorte de não caírem nas mãos imundas do teu avô, Dolejal. Cá entre nós, foi uma dureza se safar delas, ainda mais com essa aparência e no meio de tanto homem sem mulher.

       Thales retesou os maxilares e encostou-se contra a poltrona, avaliando a beligerância da questão posta de forma maliciosa e nojenta.

       ― Os acampamentos sempre foram bem servidos de putas.

       ― É verdade, bons tempos aqueles, a gente pagava as vadias com comida requentada. Acho que era por isso, pelas vadias serem de alto nível, que o Onório te protegia dos outros camaradas... Ou não te protegia? Parece que ele às vezes leiloava um tempinho com você, é verdade? Bem, esse era um dos rumores que rolavam pelas tendas. Os caras diziam que você ficava quietinho enquanto eles passavam a mão no teu corpo branquinho e virgem estendido na cama, coitado. Isso vem de longe, né?,  essa tua bichice. ― ele se aproximou o suficiente para poder ser pego pelo pescoço e disse devagar com visível menosprezo: ― Olha bem pra mim, ô bicha cosmopolita, aprenda de uma vez por todas que quem dá as cartas por aqui sou eu, não nasci ontem nem serei enganado por viado que aperta as bolas pra sentar, entendeu? ― fez um sinal com a cabeça em direção à janela aberta e completou com raiva: ― Meus homens estão desarmando a tua cambada. Sei que veio preparado para a matança, acabar comigo, com a minha família de merda e se adonar das minhas terras e sei também que fará o mesmo com o Rodrigues, armando os índios para ficarem do teu lado. Ganancioso cretino! Acredita mesmo que um dia será o único dono de Matarana? Acha mesmo que pode comprar uma cidade e expulsar os inconvenientes? Então vou te dar uma excelente notícia, meu caro: vou acabar com o teu delegado, depois pego o psicopata e, por último, para que você possa apreciar todo o espetáculo, do começo ao fim, acabarei com a Arco Verde. E quer saber como? Ah, que coisa, acho que vou contar, eu não me aguento, não guardo segredo nem de mim mesmo... Lembra o tal incêndio no armazém de grãos daquela associação de merda?,  aqueles chacreiros metidos a fazendeiros? Lembra, Dolejal? Um incêndio na Arco Verde também poderia começar a partir do curto-circuito de uma lâmpada, ― ele parou, avaliou o semblante impassível do outro e completou muito satisfeito consigo mesmo:  ― que foi posta já queimada no meio do fogo. É claro que sendo a Arco Verde, o Rodrigo...Opa!, o novo delegado, o “meu” delegado, por sinal, investigará por cima, e não como o Malverde, quer dizer, o “seu” delegado fez com o incêndio na associação e ainda assim não descobriu a fraude dos bombeiros. Velhas amizades, sabe? Agora, me diz, ô empresário do agronegócio, o que vai fazer para me impedir de você sair daqui direto para o hospital? ― em seguida, ele pôs dois dedos entre os lábios e assobiou. Uma das portas abriu e dois roupeiros musculosos saíram do esconderijo: ― Sempre tive nojo do teu avô, nojo pelas coisas que ouvia sobre ele, e que ninguém nunca provou ser verdade. Mas, convenhamos, Thales Dolejal, uma coisa é inegável, você nasceu para apanhar. ― riu com vontade, a barriga balançando.

        

        Quando ela tirou a automática do porta-luvas, em frente à confeitaria, e verificou o carregador, já sabia o que tinha de fazer.

       Karen considerou as suas alternativas. Podia fingir que não se importava com o ex-amante, com o cara que lhe havia estendido a mão no momento mais crítico de sua vida, ao voltar do hospital lotado com Johnny doente nos braços e encontrar o bangalô onde morava vazio, os móveis postos num caminhão, a conta bancária no vermelho. O marido roubara tudo o que pudera antes de se mandar com uma cabrita de 18 anos, enquanto Karen envelhecia na fila do SUS, o filho de cinco anos com suspeita de pneumonia e o médico, um grosseirão na faixa dos cinquenta anos, insistindo em afirmar que era uma virose. 

       Naquela época os dois clínicos do hospital público, único da cidade, diagnosticavam como virose qualquer quadro febril e como estresse quando o paciente não apresentava febre; às vezes, chutavam “alergia”, “bronquite” ou “mal-estar de verão” e também às vezes as pessoas diagnosticadas com estresse retornavam ao hospital público e acabavam presas a uma cama na UTI, um compartimento três por quatro, espécie de antessala do necrotério.

       Havia dez anos que ela parara diante da bifurcação daquela estrada. À esquerda o caminho para a Arco Verde e à direita, a Coração de Ouro. Àquela época vó Ninita, sentada ao seu lado no Fusca, amenizou a angústia da escolha:

       ― Pensa bem, o coronel apadrinha quem pede ajuda para ele, “apadrinha”, viu!, e espera algo em troca por esse apadrinhamento ― ela olhou para o pequeno em seus braços, quente, respirando pesado, as pálpebras tremendo e completou: ― Se tem de entregar a alma ao diabo, que seja para o Dolejal. Ele é ganancioso como o Marau, mas protege os mais fracos, defende os injustiçados e já meteu muito dinheiro onde a prefeitura desviou. Escolha a estrada certa, minha filha, porque o Johnny precisa ser salvo.

       Karen pisou fundo no acelerador. E agora ela não tinha mais um Fusca nem um filho doente que foi salvo pela proteção do homem que, meses depois, se tornou o seu amante por dez anos.

       Quando subiu as escadas e chegou até o escritório do fazendeiro, dono da Arco Verde, trazia o filho nos braços e o desespero nos olhos. Thales se levantou detrás da escrivaninha e se aproximou com o semblante sério, ainda que tivesse sido avisado pela governanta, parecia assustado e tenso. Ele sabia que a vida daquela criança estava por um fio.

       Karen não precisou contar sobre todo o seu infortúnio. Thales os levou de volta ao centro da cidade dirigindo a Silverado velozmente. No caminho, telefonou para o diretor do hospital e exigiu uma equipe de médicos a postos. E assim Johnny foi salvo, recuperando-se nas semanas seguintes num quarto particular. A partir desse evento, Thales doou dinheiro para a construção da ala pediátrica do hospital de Matarana e para a contratação de pediatras. Por causa de Johnny.

       Franco estava atado a uma cama. E Karen o substituiria. Ela não acreditava no exército de 40 homens sem o diabo loiro, pois era ele quem pensava por todos. Então seria Karen a pensar por ela e tentar esquecer que essa sua decisão, de entrar na Coração de Ouro e se postar do lado esquerdo de Thales, acabaria com a paz no seu lar. Rodrigo jamais perdoaria tal atitude que, possivelmente, para ele, seria considerada uma traição. Ele a queria longe do antigo amante.

       Movida pela lealdade e com os olhos toldados pelas lágrimas, ela teve de abandonar o seu amor na estrada. E no acostamento Rodrigo ficou.

         

       ― Isso verdadeiramente sempre me deixou maravilhado. ― disse o coronel, as mãos na cintura, o sorriso zombeteiro, os olhos brilhando. ― O modo como aceita a porrada, Dolejal, é quase como aquelas merdas de sabedoria chinesa e o escambau, é com resignação e silêncio respeitoso. Quando era moleque apanhava até desmaiar, o teu avô te deixava em carne viva, mas ninguém ouvia um pio, um gemido, um soluço ou um pedido de clemência, um gesto de humilhação sequer. E ainda mantém a mesma técnica, fantástico! ― e, virando-se para os pistoleiros que aprisionavam Thales pelos dois braços, ordenou com ar divertido: ― Chama o ruivo, o tal do Paulo, ele disse que queria ser o primeiro a meter a mão no patrão. Não me custa nada fazer a vontade da gentalha.

       Thales estreitou os olhos, desconfiado. Ao que o coronel percebeu o rumo dos seus pensamentos e aceitou confidenciar:

       ― Achou mesmo que a piranha tinha delatado o teu esqueminha de ataque a minha fazenda, é? Quem está puto contigo e já faz tempo é o Paulo. Parece que mandar o garoto, o teu ex-futuro braço direito, para onde o Gilberto perdeu as cuecas não foi uma boa ideia. Ele voltou, Dolejal, e voltou vingativo, o galinho de briga. ― ele tornou a sentar na beirada da escrivaninha e comentou como quem não queria nada: ― Como é que é mesmo aquele lance sobre a lealdade na Arco Verde? Ah, certo, só não serve para a nova geração. Até agora não vi o tal diabo encarnado...

       ― Por que nós dois não resolvemos isso como homens? Vamos para rua e podemos duelar ao ar livre. O que acha?

       ― Ai, ai, que vontade de negociar contigo. ― ele parou de falar abruptamente e, olhando para o tapete grosso e caro, determinou: ― Leva ele para aquela área coberta lá nos fundos. ― em seguida, acrescentou num tom mais discreto: ― Pra esse aí não dá para ser numa cova. Arruma as pedras que te falei e joga no rio. Quero ver drenarem o Rio Verde. Olha só a trabalheira que você me dá, Dolejal, coisa séria!

       Thales endureceu o corpo e, com isso, obrigou os pistoleiros a pararem.

       ― Tenho pena de você, coronel, muita pena. Eu sou apenas um administrador de terras, quase um burocrata engravatado, mas o meu herdeiro, o meu sangue que herdará tudo o que tenho, transformará a sua vida num pesadelo e a Coração de Ouro no seu cemitério particular, para você e os seus pistoleiros. ― ele encarou com um sorriso os camaradas que o faziam de refém e sentenciou com genuíno prazer, um prazer mau: ― Inclusive vocês dois. Sugiro que me matem e fujam em seguida. O Franco vai buscá-los no fosso do inferno para ter o prazer de matá-los várias vezes.

       ― Sei, o teu filho bastardo, por acaso, está dentro do bolso da tua calça? Ééé, até agora não vi o destrambelhado, não.

       ― O seu está aonde, coronel? ― Thales enfiou a agulha quente na ferida.

       O coronel parou de sorrir. Sim, onde estava aquele filho da puta?

       ― Ele está no escritório de advocacia dele. O teu vira-lata também é doutor? ― debochou.

       Thales nem tentou se desvencilhar para responder serenamente quase enlevado:

       ― Não, ele é o dono da Coração de Ouro.

       O coronel tomou a vez de Paulo e desferiu o primeiro soco no nariz do seu rival, pouco se importando com o respingo do sangue grosso e vermelho no tapete caríssimo. A beleza de um golpe bem dado valia a perda de um objeto de decoração, o modo como a cabeça de Thales foi para trás e depois para frente, impagável.

       Os homens seguraram-no firme, a massa encorpada que, por um segundo ou dois, pesou ainda mais com a pancada.

       Ele assimilou a dor em silêncio, sem gemer ou alterar a respiração, e foi como se aquele primeiro soco após trinta anos sem ser tocado com violência, engatilhasse em sua mente um revólver contra a própria têmpora. Por isso, morto por dentro, ele sorriu.

       Quem sempre lutara para sobreviver tinha outro nome.

       O coronel se irritou ao perceber o sorriso debaixo dos veios de sangue que desciam das narinas e tingiam de vermelho os dentes de Thales.

       ― Levem o cretino para os fundos!

       Os camaradas puxaram-no com força, embora ele seguisse sem se rebelar. O reinado de Franco na Arco Verde preparava-o para partir. Anos treinando o seu guerreiro e sucessor para manter os Dolejal no poder. Era certo que Franco enterraria cada um dos Marau até se vingar por completo. Conhecia a natureza do seu filho e sempre a instigara a se desenvolver em todo o seu potencial. As interferências de Rodrigo e Nova jamais aniquilariam a sua essência superior.

       Ao saírem da casa-sede em direção ao galpão aberto, Thales verificou de esguelha os pistoleiros da Arco Verde ajoelhados, ladeados pelos homens do coronel armados com suas pistolas calibre .40, prontos para atirar nos invasores e depois enterrá-los, adubando as plantações.

       Ele queria dizer aos seus homens que a viagem não fora perdida e que ninguém morreria por morrer. Então apenas sorriu, verificando que Bronson não estava entre os prisioneiros.

       O galpão aberto, com telhas de zinco e alvenaria na única parede ao fundo, era usado como estacionamento para os visitantes da fazenda, com um vão livre capaz de comportar seis ou sete picapes. O piso de concreto bruto tinha manchas de óleo.

       Thales foi levado para um canto onde se localizavam a pia e a churrasqueira que tomava boa parte da parede.

       O coronel apontou para a entrada do galpão e disse para o roupeiro com uma tatuagem de caveira na bochecha:

       ― Quero três caras aqui na entrada. ― voltando-se para o roupeiro com a cabeça raspada debaixo do chapéu, o que lhe dava uma aparência no mínimo bizarra, acrescentou: ― Prende o filho da puta naqueles ganchos e pode começar a sova!

       Assim que o coronel determinou a ordem, Paulo surgiu à entrada do galpão e, incerto, ficou por ali mesmo. A ideia de enfrentar o antigo patrão, agora, amedrontava-o. Antes fora fácil entregar toda a ação ao coronel. Fizera-o por ressentimento e, tinha de admitir pelo menos para si mesmo, por inveja. O retorno de Franco a Arco Verde e, mais do que isso, à posição de chefe da segurança no lugar de Bronson e, futuramente, no lugar que poderia vir a ser o seu, pusera por terra qualquer motivação de se manter fiel a Dolejal. Sabia que contrariava a educação recebida em casa e a devoção dos seus pais ao patrão. Entretanto, quando a empresa não vestia a camiseta dos funcionários...

       Ao encarar o homem que sangrava ainda que se mantivesse altivo, de pé, fitando-o com dureza, Paulo se acovardou. Deu meia-volta e evitou o confronto.

       Duas correntes presas ao teto, constatou Thales, sem fazer ideia da utilidade da engenhoca, com ganchos em suas extremidades como algemas que, logo depois, como constatou, prenderam seus pulsos.

       Suspenso pelas correntes, os pés ainda sentiam o concreto debaixo de si, enquanto a camisa de seda italiana era rasgada pelo pistoleiro tatuado.

       ― O que pretende fazer?, me chicotear? ― perguntou com um meio sorriso sarcástico.

       O tatuado entortou o lábio num esgar de desprezo e respondeu sem hesitar:

       ― Chicote só serve para tortura, e nós não queremos arrancar nenhum segredo do senhor.

       ― Não falo com serviçais. ― disse com menosprezo e, inclinando a cabeça para encontrar a carranca gorducha do coronel, Thales repetiu a pergunta, acrescentando: ― Sou resistente a chicotes, bem sabe. Sugiro um tiro na cabeça, acho que não sou resistente à bala.

       O pistoleiro se voltou para o seu patrão, os punhos fechados e os maxilares tesos. Esperava apenas o sinal, um simples e maldito sinal para fazer valer a viagem. Ele não era do cerrado, viera do Rio Grande do Sul, era parente distante do coronel. Por isso se sentira ofendido ao ser considerado, pelo outro fazendeiro, como alguém de casta inferior.

       O coronel pôs as mãos nos quadris, contemplando o sorriso arrogante e tingido de vermelho.

       ― Você é muito egoísta, Dolejal, nunca pensa no prazer alheio. Quero te ver morrer devagar, perdendo essa pose de merda. ― endereçou a atenção ao tatuado, percebendo a chegada de mais dois de seus capangas, e falou: ― Usa a soqueira. Quero essa cara bem marcada.

       Imediatamente quatro dedos entraram nos anéis de metal. O pistoleiro ajustou a soqueira, estendeu os dedos e fechou a mão. As cicatrizes de uma briga de rua estriava a pele sensível do dorso.

       ― Não economize na força, meu amigo, tenho placas de metal debaixo da pele e meus músculos foram trabalhados nas trepadas com a senhora sua mãe. ― provocou-o Thales.

       O coronel riu alto e fez o sinal o qual o tatuado tanto esperava.

       Ele não sentiu os ossos do rosto do fazendeiro nas juntas dos seus dedos, apenas a sensação do impacto, a cabeça pender para trás e voltar, a marca no maxilar esquerdo, no direito; a sequência de socos que o acertavam na pele que se abria em cortes vertendo fios de sangue, inchando, escurecendo a tez dourada da epiderme.

       Marau orientava o pistoleiro:

       ― Evita o queixo para ele não perder a consciência tão cedo. Acerta uma bordoada no estômago, talvez ele desfaça esse sorrisinho cretino da cara.

       Ao que Thales falou, mal descolando os lábios:

       ― Sou o Homem de Ferro, seus merdas! ― e riu, engolindo uma pasta grossa de sangue. ― Acho que quebraram meu nariz; não é interessante?

       ― Ele já está delirando, vai sucumbir em minutos. Segura aí a força, meu chapa, e acerta só nos flancos, vai com tudo. ― recomendou o coronel, tirando um cigarro da carteira e se preparando para fumar.

       O barulho dos punhos golpeando o abdômen de Thales e o balanços das correntes que sustentavam seu corpo misturavam-se aos passos das botas dos camaradas fora do galpão e ao ronco das picapes que se aproximavam.

       Um segundo pistoleiro da Coração de Ouro, que se postara ao lado do patrão para observar o serviço do colega de trabalho, resolveu meter a mão na massa, pegou um pedaço de pau e bateu com tudo nos joelhos do dono da Arco Verde.

       Thales dobrou as pernas, apertou os olhos fechados, aceitando a dor física que acalmava a da sua alma. Rasgavam-no. Queimavam cada parte do seu corpo numa sucessão de pancadas que parecia não ter mais fim. A dor, a dor de antes, dos espancamentos da adolescência, era outra, diferente; agora era a dor da libertação. No passado fora a dor da injustiça e da infelicidade.

       Os joelhos enfim cederam e ele baixou a cabeça, o sangue pingava no chão, naquela parte o concreto era liso e agora com manchas vermelhas. Sorriu ao perceber que se não fossem as algemas segurando-o às correntes, estaria no chão. Esgotado, a visão turva. Tentou abrir os olhos, estava escuro, mas ele não sabia se estava com os olhos fechados, se enxergava para dentro, se já estava morto, a dor se fora, o concreto debaixo dos pés também, o suor que escorria do cabelo e coluna não era água morna...

       Ao longe a voz do coronel.

       ― O filho da mãe está apagando. Joga água na cara dele e põe força nos punhos, cacete!

       “Você vai trabalhar com seu avô. Ele está no garimpo, vai ficar rico e nos tirar dessa desgraça toda. Contamos com você, filho! Um dia será rico, um dia seremos ricos e poderemos até adoecer em paz”.

       Thales entrou no túnel onde os trens eram proibidos trafegar. Os trilhos eletrificados queimaram seus pés e por isso ele teve de flutuar. Uma luz muito forte contornou a silhueta da mulher que tinha cabelos longos e pretos, e ele sorriu ao vê-la. Tentou erguer a cabeça para sussurrar que se lembrava dela, tanta coisa para dizer e só balbuciou uma sentença desconexa enquanto se atirava do penhasco:

       ― Eu consegui.

       O tatuado e o careca com chapéu de vaqueiro cessaram os golpes e aguardaram a decisão do coronel, que fumava tranquilamente, avaliando a quantidade de sangue no piso e o tempo que tinha até se desfazer do corpo antes de darem falta do fazendeiro e dos seus homens mais chegados.

       ― Já está fora de si. ― considerou, desanimado. ― Preparem a camionete, forrem tudo, e avisem o pessoal para começar o abate. Esse aí ― balançou a cabeça num gesto de lamento ― desmaia fácil, mas é duro de matar.

       ― E a piranha do Leonardo?

       ― Mata, ela sabe demais. Aliás, quero que encontrem o Leonardo. ― ele deu uma boa olhada no homem desmaiado, pendurado como um pedaço de carne no açougue, e falou: ― O meu maior erro foi deixar tanto esse canalha quanto o meu filho crescerem. Bem, fazer o quê, né? Limpem tudo imediatamente, não quero dar cabo do delegado nas minhas terras. Mas de hoje o Malverde também não passa! ― decidiu, tragando mais uma vez o cigarro mentolado.

         

       Karen meteu o pé no freio, levantando uma poeira grossa ao redor do Maverick, o que lhe serviu de escudo. Avaliou a situação. A alguns metros a porteira da Coração de Ouro e a possibilidade de arrancá-la do chão como já fizera com a da Arco Verde. Mas não seria recebida pelo bom e velho Bronson, e sim por um bando de mal-encarados que certamente revidariam a invasão à bala.

       Ajeitou os óculos escuros que escorregaram do nariz, transpirava por todos os poros, o calor infernal e a adrenalina fervendo na corrente sanguínea. Tragou fundo o cigarro, jogou-o para fora da janela aberta e atacou a marcha, dando uma ré feroz, os pneus arrastando a aridez barulhenta do chão de terra.

       Girou o volante e entrou na primeira vicinal à esquerda da portaria da fazenda. Seguiu-a elevando o ponteiro do velocímetro para a marca dos 100 km/h com a facilidade que somente a potência do motor e a aderência perfeita daquele V8 podiam oferecer. Os solavancos, provocados pelos buracos na estradinha, desafiavam os amortecedores.

       Pelo retrovisor, ela avistou uma máquina vermelha vindo direto do inferno, pois quem a dirigia era o diabo e trazia consigo um rastro alto de poeira, a picape velha se balançava toda e parecia tomada pelo fogo da fúria.

       Cogitou que Franco fosse passar por cima do Maverick, em momento algum ele desacelerou a rotação do motor, o chapéu na cabeça e a cara amarrada, a atenção na estrada.

       Karen ligou o pisca e reduziu a velocidade, cedendo espaço para ultrapassá-la. Viu quando a camionete barulhenta passou deixando pedaços do assoalho enferrujado pelo caminho, uma língua de fumaça saindo pelo escapamento. O estado do veículo era deplorável, exigido ao máximo no seu limite. Os solavancos levantavam a traseira e jogavam a caçamba para os lados, o que favoreceu o desencaixe do para-choque da lataria e ele também ficou pelo caminho.

       Entretanto, mais rápido que os veículos estava o coração de Karen, que parecia bater forte na goela, entupindo a traqueia de tensão. Isso porque o rosto de Franco não era o do garoto loiro irreverente; era a máscara de cera de uma expressão tão concentrada quanto malévola. O diabo estava solto, considerou ela, tornando a voltar para a estrada pisando fundo no acelerador para alcançar a picape. Sinceramente, não queria estar na pele do coronel ou de qualquer um de seus capangas.

       Até que a máquina vermelha deu pau e pegou fogo.

       Franco pulou porta afora e começou a chutar a lataria feito um louco possuído. Jogou o chapéu longe e esmurrou o ar, tomado pelo ódio.

       Ela freou o Maverick e abriu a porta do passageiro para ele.

       Franco riu um riso estranho.

       ― Cai fora, eu dirijo!

       Cogitou mandá-lo à merda. Até preparou a frase dentro da boca, mas, ao erguer os olhos, viu nos dele um brilho perverso. Sim, ele estava pronto para acabar com tudo. E, pela primeira vez, ela acatou uma determinação sua e pulou para o banco do passageiro.

       Ficou em silêncio enquanto apenas acompanhava discretamente ele arrancar do motor todos os cavalos enlouquecidos e rasgar a estrada num risco de poeira, deixando para trás a picape em chamas. Até que o fogo atingiu o tanque e ela explodiu.

       Olhou para o motorista que nem se abalou.

       Ele apontou para a bolsa preta sobre as coxas e falou numa voz baixa e rouca:

       ― Sirva-se.

       Ela puxou o zíper que fechava a lona e um arsenal de guerra jazia à sua espera.

       ― Não sai ninguém vivo.

       Karen sentiu como se tivesse levado um soco no estômago.

       ― Nada disso, vamos apenas intimidar os homens do coronel.

       Ele repetiu sem tirar os olhos da estrada:

       ― Ninguém.

       ― Não, Franco, nada de matança! ― exclamou, nervosa.

       ― Se não fosse por você, eu estaria ao lado do meu pai. Só não acabo com a tua raça, porque a minha mulher me pediu. ― ele estendeu o celular para ela e falou: ― A Virgínia mandou essa mensagem, leia, vamos! E vê se eu não tenho motivos para fazer uma boa faxina.

        

       Seu pai me dispensou. Vi o Paulo de conchavo com o coronel. É uma emboscada!

       ― Meu Deus do céu! ― ela levou a mão à testa, preocupada. ― Cadê o Bronson?

       ― Vai tentar entrar pela frente para distrair eles.

       ― O Thales está sozinho? Merda! Os homens da Arco Verde foram rendidos, só pode!

       ― Ou mortos.

       Franco reduziu a velocidade até parar o automóvel, se voltou para ela e afirmou numa expressão que sugeria o escárnio e camuflava o instinto de predador:

       ― Serei justo, para cada arranhão na pele do meu pai uma vida a menos.

       Karen segurou-o pelo antebraço antes que ele saísse:

       ― Foi por isso que a Nova quase te deixou.

       Ele não hesitou ao responder com secura:

       ― Então terei que deixar a moça partir.

       Não era Franco, Karen sentiu um arrepio pela coluna, cada vértebra gelando diante da constatação de que talvez a lenda sobre o “diabo encarnado” fosse verdade.

       Ele prendeu o coldre à coxa, além do outro no cós traseiro e dianteiro da cintura. Levou também consigo uma submetralhadora Taurus que retirara da coleção pessoal do pai, no escritório da fazenda. Incitou os primeiros passos em direção à cerca de arame farpado que foi demolida por uma saraivada de balas.

       A poucos metros da casa-sede, ele correu como nunca correra na vida. E não demorou a ser visto pelos seguranças que detinham os rapazes da Arco Verde ajoelhados, cabisbaixos e com as mãos cruzadas atrás do pescoço.

       Karen destravou a automática que escolhera, respirou fundo, e correu para tentar alcançar Franco.

       Viu-o quando parou, ajustou a mira e disparou uma sucessão de tiros. Os estampidos secos reverberaram pelo prado e não demorou muito para que começasse o revide.

       Ele se postou detrás do tronco nodoso de uma mangueira e na sua mente o jogo já havia começado antes mesmo do primeiro disparo, detectando a posição de cada alvo em seu espaço de atuação, não mais de dez homens, ao redor dos grupos de prisioneiros prostrados de joelhos. Franco sabia que para os seus homens a vergonha pesava mais que as porradas no lombo que levavam ao tentarem erguer a cabeça.

       Respirou fundo e desencostou-se da árvore. O corpo exposto a céu aberto, o azul caía vertiginosamente e se espalhava por sobre os pistoleiros. Uma manhã quente e abafada como no estio.

       Leopoldo foi o primeiro a receber um tiro e, ao seu lado, o parceiro de jogo de truco nas noites mornas e carregadas de pernilongo. E enquanto caíam e perdiam suas armas, antes de deitarem os crânios na grama seca, olhavam para os homens cativos e os olhos deles refletiam os raios do sol. As linhas de expressão nos rostos curtidos pelo sol e cansados de uma vida dura no cerrado, as rugas foram preenchidas pela força que emanava de almas que só precisavam aguardar a chegada do líder para se libertarem. E ele havia chegado. E já não mais atirava em joelhos.

       O coronel relançou um olhar pesado para o tatuado e falou com brusquidão:

       ― Carreguem esse merda para fora daqui! E é pra agora! ― voltando-se para o careca e já de posse da própria arma, perguntou com rispidez: ―É o filho da puta do Bronson, né? Vamos pegar esse velho e dar para os cachorros comerem. Essa corja toda da Arco Verde me dá nojo!

       Thales foi solto das algemas e o seu corpo pendeu por sobre o ombro do seu agressor, dobrou ao meio, o rosto coberto por uma máscara de sangue sujou a camisa do outro.

       O careca engatilhou a pistola e, apertando-se contra uma coluna, espreitou para fora. Apurou quatro dos seus no chão; um se mexia. Voltou-se encostando a cabeça contra a alvenaria e trancou a respiração, um filete de suor descia do couro cabeludo sem a proteção do chapéu.

       O camarada que batera com um pedaço de pau nas pernas de Dolejal, apareceu ao lado do careca e fez um sinal com a cabeça em direção à entrada do galpão. O atirador estava próximo, os tiros ressoavam perto e os gemidos de quem era alvejado também.

       A picape de Bronson irrompeu no meio dos tiros, vindo da portaria. Antes de pular para fora do veículo ainda em movimento, ele já se movia de modo a acobertar o filho do patrão, que acabava de acertar mais um.

       Franco abria caminho atirando e, à medida que derrubava um após o outro, os obstáculos para chegar até o seu pai, libertava seus próprios homens, que distribuíam socos nos inimigos mais próximos.

       Bronson se achegou até o filho do fazendeiro, soltava os bofes para fora, suava todo o líquido do corpo:

       ― Cadê o patrão?

       ― Ainda não vi ele.

       ― Acho que está na casa do coronel, vou entrar lá.

       Antes que ele pudesse dar o segundo passo em direção à casa-sede, Franco falou:

       ― Estou sentindo cheiro de sangue morno.

       Bronson parou em estado de choque:

       ― Sangue morno ou sangue parado?

       Franco retesou os maxilares.

       ― Sangue meu. ― em seguida, ordenou: ―Entra na casa e traz para fora todos os Marau que encontrar.

       O velho de olhar amarelado e duro assentiu sem hesitar. E se foi.

       O pau comia ao seu redor. Por isso ele nem precisou se preocupar com os cinco ou seis homens que faltavam para ser aniquilados. Seus soldados faziam a festa à base da porrada. Descarregavam a humilhação sofrida horas atrás, humilhação e medo de zarparem rumo ao desconhecido.

       Franco seguiu para o galpão, tivera a impressão de ver um idiota correr para o seu interior, e se o coronel tivesse levado a termo a pior ideia de sua vida, ele não iria fazê-lo dentro da casa onde vivia. Nada melhor e mais prático que o galpão à frente.

       Assim que entrou, foi surpreendido por um golpe forte e preciso. Sentiu os pulmões na boca, o ar faltou. Num átimo arremessaram-no contra a parede e mais uma vez um pedaço de pau foi arremetido, agora, contra o seu tronco. Mas Franco se esquivou agachando-se, flexionando os joelhos e, ao se levantar novamente, já tinha tirado da bota o canivete. Enterrou-o na linha de gordura ao redor dos quadris do camarada.

       Ao trazer o braço de volta, o canivete ensanguentado, o outro dobrou o corpo e levou as mãos ao ferimento numa atitude instintiva de conter o próprio sangue enquanto via o amigo careca disparando para fora do galpão.

       Franco apenas o observou segurando o colchão de gordura de onde brotava o líquido viscoso. E, por cima do ombro do cara, avistou Thales Dolejal no chão, imóvel, sobre uma poça de sangue.

       ― Cadê o seu pai, garoto?

       Ele olhou para os olhos do homem que tinham a mesma cor que a dos seus.

       ― Eu não sei.

       ― E a sua mãe?

       Franco desviou atenção do rosto sério do motorista da picape para o asfalto, para a mancha disforme de um sangue secado pelo sol, balançou a cabeça para os lados devagar.

       ― Depois que vender essas laranjas, vai para aonde?

       ― Não vou, fico aqui.

       O homem contraiu o canto dos lábios num esgar de ressentimento.

       ― Conhece Thales Dolejal?

       O garoto de doze anos fez que sim.

       ― Tem lugar para você na minha fazenda.

        Entre o seu pai e ele havia um muro, com um carimbo de caveira na cara, um metro e noventa de altura e bem mais de cem quilos. Um alemão criado com chucrute, carne gorda e linguiça. Exalava de sua pele cor-de-rosa um mau cheiro repugnante de suor morno. Os punhos cerrados e os dedos nas soqueiras. Entre as sobrancelhas amarelas quase brancas acima do par de olhos verdes cujas órbitas estavam avermelhadas, um sulco profundo que revelava a raiva reprimida. Por isso ele cheirava mal.

       Assim que ele se afastou do corpo estendido no chão e cruzou mais da metade do espaço que o separava do outro de pé, com o canivete, bateu os nós dos dedos envolvidos pelos anéis de metal contra a palma da sua outra mão, numa atitude explícita a qual dizia que no lugar da sua mão que apanhava seria ele, o filho da mãe que tinha furado o seu colega de profissão.

       Franco queria pegar o seu pai e se mandar. Para usar o canivete teria de ter paciência a fim de esperar o gigante chegar até ele, todo o teatrinho dos punhos de pugilista amador pronto para a luta, o tédio das trocas de jabs, ganchos, diretos e talvez um ou outro malabarismo com as pernas, era uma merda as tevês exibirem as lutas profissionais. Ele realmente só queria tirar o seu pai dali e foi o que disse para o tatuado:

       ― Caralho!, só quero tirar o meu pai daqui!

       ― Teu pai? ― o outro riu e gritou: ― Coronel, acho que é esse aqui o tal psico...

       Não terminou de falar.

       Um tiro no joelho o fez ficar de quatro urrando de dor e procurando a arma que se materializara na mão do atirador. Era mesmo o que contavam: o gatilho mais rápido do cerrado, pensou o tatuado, olhando para a maldita soqueira com manchas do sangue do pai do gatilho mais rápido do cerrado. Logo depois de pensar na sua condição fodida, uma bota alcançou seu queixo e o corpo grande pendeu para trás. Como era forte, evitou a queda e ficou a meio caminho de deitar de costas no concreto, a força na espinha dorsal o segurou.

       Franco atirou na outra perna do homem. E, em seguida, sentou sobre a sua barriga com o cano da pistola apontado para a caveira.

       O coronel ouviu o que o seu capanga disse e retrucou, aparecendo do outro lado do galpão:

       ― Você tem uma arma. Eu tenho uma arma.

       Franco ergueu a cabeça e, por entre as mechas de cabelo que lhe caíam sobre a face, ouviu-o completar com arrogância:

       ― Mais do que uma arma, eu também tenho a cabeça do teu pai, bastardo! Joga todas as tuas armas no chão, com muita calma e amor no coração. ― depois, virou-se para trás e gritou para o comparsa: ― Paulo, pega o filho da puta e mostra para os homens dele que a casa caiu... Não é como se diz por aí, a casa caiu? É isso aí! Nunca pensei que conseguiria abater pai e filho no mesmo dia. ― disse exultante. ― Acaba aqui o clã Dolejal.

       Paulo entrou com a postura de um herdeiro de extensas faixas de terra. Ele nada tinha na vida, tampouco caráter. Juntou do chão as armas de Franco com um sorriso que dizia tudo o que ele sentia ao perceber a expressão de seu sofrimento. O coronel conseguira desarmá-lo simplesmente porque a qualquer momento ele iria atirar com uma .40 contra o crânio do seu pai e patrão, quem sabe até, Paulo quase riu ao pensar isto, o seu deus para o qual rezava à noite. Maluco como era, por que não?

       ― Covarde estúpido! ― exclamou Franco com o rosto desfigurado pelo ódio e impotência.

       O coronel fez uma careta de nojo.

       ―Tudo se encaminhava para esse fim, guri. É melhor aceitar.

       Então o coronel fixou os olhos arregalados para além do filho de Dolejal, e um ponto escuro e delicado marcou sua testa. No instante seguinte, o corpo pendeu para o lado lentamente. A arma caiu e bateu contra o chão fazendo barulho, ao seu lado, as bombachas tombaram.

       Franco correu para o pai e agachou-se ao seu lado, verificando a pulsação. Ele estava vivo. E só depois de constatar o seu estado de saúde, compreendeu o que ocorrera durante aqueles poucos minutos. Eles estavam vivos.

       Tocou na camisa rasgada e ensanguentada, no cabelo molhado de suor e sangue grudado nas têmporas, no jeans sujo, no farrapo humano que acabava de se tornar o homem mais rico do cerrado e dono absoluto de Matarana.

       O coronel estava morto. Um único tiro.

       ― Não sei como te agradecer. ― foi só o que conseguiu falar, olhando em direção à entrada do galpão.

         

       Assim que Rodrigo entrou no Vaca Louca, como quem não queria nada e olhando ao redor à procura da namorada, Valéria fechou a gaveta da registradora e quase deixou os dedos no lado de dentro. De forma irrefletida, relançou um olhar significativo para Nova, que fora deixada na confeitaria pelo marido havia pouco mais de quarenta minutos, e talvez fora esse tipo de olhar que chamara a atenção do delegado para as duas.

       Ele quase gemeu ao perceber a troca de olhares. Conhecia aquelas duas o suficiente para captar os códigos que enviavam entre si, e como faltava uma das três mosqueteiras tresloucadas, coincidentemente, a sua mulher (sem dúvida, a mais encrenqueira), considerou que elas escondiam algo dele e era algo sobre Karen.

       Parou diante da mesa de Nova, encurvou-se e a beijou no topo da cabeça:

       ― E, aí, mamãe, como está?

       Nova sorriu de um jeito pálido, mas disfarçou:

       ― Sofrendo com esse calor.

       ― É mesmo? ― retrucou o delegado, olhando para ela enquanto afastava a cadeira à sua frente e se sentava com toda a calma do mundo. ― Imagina como se sentirá no final da gravidez em plena estação do estio. ― virando-se para irmã, perguntou interessado: ― A vó está de folga?

       Valéria circundou o balcão onde estava e se aproximou da mesa servida com apenas uma garrafinha de água mineral e um copo.

       ― Decidimos que a vó e a Veridiana trabalharão apenas três horas por dia. Elas têm outras coisas para fazer e, pra falar a verdade, detestam ficar presas aqui.

       ― Assim como a Karen. ― completou Rodrigo com um sorriso que, logo depois, foi substituído por uma indagação: ― Por falar na moça, não era para ela estar por aqui?

       Mais uma vez a troca de olhares entre as duas, e Rodrigo considerou que ou elas eram muito ingênuas ou queriam realmente ser notadas por ele. Cogitou a segunda hipótese:

       ― O que a Karen está aprontando agora?

       Ele olhou para Nova, pois ela estava à sua frente. Porém, a amiga baixou os olhos para o seu copo quase cheio e sinalizou que nada falaria sobre. Então ele se virou para a mais fácil de arrancar informações:

       ― Olha só, não quero fazer o sermão da Montanha, como a Karen costuma se referir às minhas observações sobre conduta moral, por isso espero que me digam por que estão nervosas e se olhando como quando um pai pega as filhas fazendo arte. O que aconteceu, Val?

       ― Acho que nada. É que ela falou que ia à farmácia comprar absorventes e não voltou. Por isso tive de ficar no seu lugar. ― falou, simulando uma indiferença que estava longe de sentir.

       Quando ela viu o irmão entrar, pensou se não era um sinal de Deus para que contasse tudo a respeito da entrada de Thales na Coração de Ouro. Antes, ao ver Franco com os pulsos com frisos de queimadura carregando Nova no colo da picape até a entrada da confeitaria, considerou que Thales houvesse desistido do que parecia planejado fazer, embora ela não soubesse exatamente o quê, mas havia sim um movimento estranho na Arco Verde. Depois, Nova contou a respeito da ofensiva e da tentativa de segurar o marido em casa, com a ajuda de Karen e a sua habilidade de prender homens na cama. Foi nesse ponto, após o relato completo da amiga, que Val percebeu o motivo da angústia afundando o seu peito. Temia por Thales.

       E, agora, diante de si um delegado de polícia. O homem que poderia prender Thales por invasão de propriedade privada e talvez outras contravenções ou protegê-lo contra uma ação criminosa por parte do coronel.

       Ela não sabia o que fazer. E pelo visto Nova também não. Elas não sabiam até onde podiam contar com Rodrigo. Porém, havia nisso tudo uma questão a se considerar: Karen.

       ― Você pode olhar para o chão, Val, e tentar organizar o seu raciocínio a fim de tentar me ludibriar e talvez até consiga, mas será por pouco tempo. Nem sei quantos estelionatários e assassinos interroguei, gente preparada para mentir e que mentiam bem, e sabe o que aconteceu com eles?

       ― Você descobriu a mentira. ― ela respondeu baixinho.

       ― Não, eles me disseram a verdade. Pode demorar um pouco ou até terei de usar de alguns subterfúgios, se é que me entende, mas a verdade sempre aparece.

       ― Vai nos torturar, delegado? ― era a mulher de Franco cravando a pergunta e o olhar duro sobre a autoridade.

       Rodrigo sorriu com charme e espichou as pernas debaixo da mesa numa posição displicente:

       ― Ok, a Nova já confirmou a minha primeira suspeita, vocês estão escondendo algo. Agora, maninha, solta o verbo. Não tenho muito tempo, os federais só estão esperando o mandado de Santa Fé para a diligência até a fazenda do coronel. É uma questão de horas, dessa vez o juiz não está no Chile. ― brincou, ajeitando o chapéu para frente como se preparando para ouvir uma historinha antes de cochilar.

       A postura era de alguém despreocupado, mas tanto Nova quanto Val sabiam que era só uma encenação, Rodrigo estava totalmente atento a qualquer movimento ou palavra que viesse delas, captando no ar as intenções e os atos falhos.

       Foi Nova quem começou:

       ― O Thales decidiu visitar o coronel e levou consigo os seus pistoleiros. Tentei impedir que o Franco liderasse a ação e pedi para a Karen amarrá-lo na cama, depois que eu o dopei. Acontece que o Bronson e o Valentino foram buscá-lo, porque o meu sogro resolveu ir de qualquer jeito para a Coração de Ouro... Bem, o Franco conseguiu se soltar... Ele me disse no caminho para cá que a Karen deixou o canivete dele debaixo do despertador no criado-mudo e foi assim que ele se soltou... E foi atrás do pai dele. ― concluiu, apertando as mãos nervosamente.

       Rodrigo estava sentado ereto e a expressão do seu rosto revelava bastante atenção. Antes que esboçasse qualquer reação ou fizesse outra pergunta, Val prosseguiu:

       ― Ontem percebi certa agitação na Arco Verde e um número anormal de seguranças...

       ― Ontem? Você foi à Arco Verde ontem? Não foi jantar com aquele tal farmacêutico que a Sabrina debocha? ― perguntou desconfiado. ― Mentiu para mim, é?

       Valéria mordeu o lábio e tentou sorrir, envergonhada.

       ― Jantei com o Thales.

       Rodrigo suspirou fundo tentando se controlar.

       ― Certo, depois me explica direito porque um simples jantar com o Thales a faria mentir para mim. Agora, não. O que vocês querem, hã? O Thales é um cidadão livre que pode tirar satisfações do coronel a hora que quiser. Acham que vou usar recursos da polícia para assegurar a segurança de um fazendeiro? Sinto muito, Nova, sei que é o seu sogro e o seu marido, mas eles estão agindo errado e contra a lei. Prefiro pensar que estamos jogando conversa fora e que nada disso está acontecendo, visto que se o coronel quiser registrar queixa de invasão ou qualquer outra merda que acontecer, terei de algemar o Dolejal pai e o Dolejal filho, entendeu?

       Ela fez que sim.

       ― Eu ainda não acabei. ― ele falou, irritado. ― Além disso, a qualquer momento os federais entrarão na Coração de Ouro e encontrarão um bando de homens armados, sem porte de armas, inclusive o Franco que só falta carregar um míssil consigo...

       ― Por que os federais vão para lá?

       ― É assunto da polícia, Val. Isso basta. ― levantou-se da cadeira e cercou a irmã, os olhos duros postos nela: ― O que quer? Que eu finja que não sei que o Thales e o Franco arregimentaram um bando de pistoleiros para dar fim no coronel e nos seus homens? Que de fato não é através do voto que se muda uma sociedade, e sim por meio da luta armada? O que eu estou fazendo na Vila Zumbi, acabando com as bocas de fumo e caçando os traficantes e seus fornecedores, não estou mudando a sociedade? Então, Valéria Malverde, é melhor que eu não saiba o que o seu novo amiguinho está fazendo, porque assim não terei de agir e, se eu tiver de agir, se me sentir compelido a intervir nas coisas dos Dolejal, agirei como policial.

       ― Ninguém está pedindo para acobertar nada, Rodrigo. ― afirmou Nova com a voz embargada.

       Ele retesou os maxilares.

       ― Mas parece que sempre esperam que eu limpe a barra do seu sogro.

       ― Não penso assim, só estou preocupada com o Franco.

       Valéria havia decidido que já estava na hora do seu irmão sair de cima do muro.

       ― E se fosse uma questão pessoal?

       O delegado se voltou com o semblante carregado:

       ― Não me venha com rodeios.

       Ela ergueu a cabeça e mirou bem nos olhos ao desferir:

       ― A Karen ficou dez minutos na confeitaria e, em seguida, inventou uma desculpa qualquer para sumir. Depois que a Nova chegou e contou sobre o Franco e a ofensiva, não precisei de muito para concluir que ela está na Coração de Ouro também. Ela não é policial e pode se comprometer com os Dolejal, e como o filho estava preso na cama, foi ajudar o pai.

       O irmão empalideceu.

       ― É só uma suposição. ― enfatizou Nova.

       ― Sim, claro. ― reafirmou Valéria, observando a metamorfose no rosto do irmão; da impaciência e raiva para algo perto do tormento, e completou, ajeitando a informação com cuidado: ― A Karen escolheu um lado, sempre disse isso para você. Mas, além dessa escolha, os últimos dois atentados que quase te mataram, Rodrigo, a tornou inimiga do coronel. Mas e daí, né? Isso também não é assunto da polícia.

       Só havia uma coisa a fazer.

       ― Não tenho como entrar na Coração de Ouro sem um mandado. ― ele disse.

       ― Então entra sem um mandado.

       Rodrigo olhou para Nova, para os seus olhos cheios de esperança.

       E saiu.

         

       Bronson entrou no galpão e, por um tempo, ficou olhando para o conjunto da cena. Esperou o cérebro assimilar todos os dados dispostos à sua frente. E lentamente compreendeu que a pessoa deitada no chão, de costas, aparentemente inconsciente era o seu patrão, a altivez jazia sobre o piso de cimento vagabundo. Ao lado, Franco agachado e olhando fixamente para a mulher que ainda segurava a arma apontada para frente, em linha reta, na direção do corpo que antes estava de pé, agora, deitado morto.

       Guardou a sua própria arma no coldre da cintura e virou-se para a atiradora, que estava em estado de choque, imóvel.

       ― Me dá sua arma, dona Karen. ― pediu com cautela.

       Ela não se mexeu, olhava fixamente para frente, sem, no entanto, nada ver.

       Franco ergueu-se e falou para Bronson:

       ― Traz a picape até aqui e depois junte os homens.

       Bronson estava pensativo e contou para o filho do patrão a respeito de sua preocupação:

       ― Não é fácil encobrir o assassinato de um cara importante como o coronel.

       ― Pois é, mas ele ia encobrir o meu assassinato e o do meu pai.

       ― Franco, admita que a coisa destrambelhou de vez. Os homens do coronel nos viram entrar aqui e nem todos morreram.

       ― É só matar os que escaparam.

       ― Pelo amor de Deus, guri! O teu pai jamais cogitou matar desse jeito.

       ― Por que acha que ele me chamou para planejar essa operação? Por que, Bronson? Para que eu negociasse à mesa com coquetéis? Não seja besta e traz a porra da picape.

       Franco se aproximou de Karen e pegou a Glock da sua mão.

       ― Salvou a minha vida e a do meu pai. Nossa dívida para com você é imensa, Karen. ― afirmou, limpando as digitais dela na arma e pegando-a para imprimir as suas: ― Isso ficará entre nós. Ouviu você também, Bronson? Para todos os efeitos, eu matei o desgraçado.

       Ela ouvia a voz dele de longe, como se tivesse entrado água nos seus ouvidos. Abriu a boca e falou numa voz pastosa e baixa:

       ― Então é assim que se mata?

       Franco estalou a língua no palato, incomodado por ela se sentir daquele jeito, sentindo algo sem nome, um sentimento sem sentido.

       ― Às vezes é assim que se salvam vidas: matando. Agora, você vai pegar o seu carro e ir para um lugar onde possa ficar sozinha e limpar a mente, entendeu? Depois voltará para a confeitaria e dirá que me viu na estrada indo para Coração de Ouro e mais nada. Não sabe de mais nada, ok? Karen, olha para mim. ― pediu com brandura. ― Esse homem estava determinado a matar o Rodrigo.

       ― Eu sei.

       ― Ótimo. Agora, te manda daqui. ― falou, ajeitando uma mecha do cabelo dela para detrás da orelha.

       Antes que ela saísse do lugar, ouviu Bronson dizer:

       ― Os outros Marau se mandaram quando ouviram os tiros, não encontrei ninguém dentro da casa.

       ― É possível que já tivessem considerado que um dia isso poderia acontecer e simplesmente deixaram o coronel para trás. Não duvido que não tenham transferido dinheiro da fazenda para suas contas particulares. ― em seguida, ele pôs as mãos na cintura e perguntou com impaciência: ― O que eu preciso fazer para o senhor trazer a maldita picape para cá, hein?

       Bronson endereçou um longo olhar ao patrão, ao mais velho, e perguntou:

       ― Como ele está?     

       ― Todo fodido, mas vai sobreviver.

 

Karen não queria sair do galpão antes de confirmar o estado de saúde de Thales. Deu uma olhada crítica no pistoleiro com os tiros nos joelhos, mas evitou olhar para o corpo grande do coronel. Parou ao lado de quem a interessava no momento e...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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