FURIA DE REIS - P.2 / George R. R. Martin
FURIA DE REIS - P.2 / George R. R. Martin
Biblio VT
- Ali está o aviso! Admirem o flagelo do Pai! - apontou para a esfiapada ferida vermelha no céu. De onde estava, o castelo distante na Colina de Aegon ficava diretamente por trás dele, com o cometa agourentamente pendurado por cima das suas torres. Uma escolha de palco inteligente, refletiu Tyrion. - Tornamo-nos inchados, intumecidos, impuros. Irmão copula com irmã na cama de reis, e o fruto do seu incesto faz piruetas no seu palácio ao som da flauta de um retorcido macaquinho demoníaco. Senhoras de alto nascimento fornicam com bobos e dão à luz monstros! Até o Alto Septão esqueceu os deuses! Banha-se em águas perfumadas e engorda com cotovias e lampreias, enquanto seu povo passa fome! O orgulho vem antes da oração, vermes governam nossos castelos, e o ouro é tudo... Mas bastai O verão putrefato chegou ao fim, e o Rei Devasso foi derrubado! Quando o javali o abriu, um grande fedor subiu ao céu, e mil serpentes deslizaram da sua barriga, silvando e mordendo! - ele voltou a balançar o dedo ossudo na direção do cometa e do castelo. - Ali vem o Mensageiro! Purifiquem-se a si mesmos, gritam os deuses, para que não tenham de ser purificados! Banhem-se no vinho da probidade, ou serão banhados em fogo! Fogo! - Fogo! - repetiram outras vozes num eco, mas os gritos de zombaria quase os afogaram. Tyrion retirou daquilo consolação. Deu ordem para prosseguir, e a liteira balançou como um navio em mar revolto, enquanto os Homens Queimados abriam caminho. Retorcido macaquinho demoníaco, certo. Mas o desgraçado tinha realmente alguma razão no que dizia do Alto Septão. O que foi que o Rapaz Lua tinha dito dele no outro dia? Um homem devoto que adora tão fervorosamente os Sete que come uma refeição por cada um sempre que se senta à mesa. A memória da piada do bobo fez Tyrion sorrir. Ficou contente por chegar à Fortaleza Vermelha sem mais incidentes. Enquanto subia os degraus que levavam aos seus aposentos, Tyrion sentia-se um pouco mais esperançoso do que de madrugada. Tempo. É tudo aquilo de que realmente preciso, tempo para juntar as peças. Assim que a corrente estiver pronta... Abriu a porta do seu aposento privado. Cersei virou as costas para a janela, fazendo rodopiar as saias em torno das suas ancas esguias. - Como se atreve a ignorar minhas convocatórias? - Quem a deixou entrar na minha torre? - Na sua torre? Este é o castelo real do meu filho. - É o que me dizem - Tyrion não soou divertido. Crawn ficaria ainda menos; eram seus Irmãos da Lua que hoje estavam de guarda. - Acontece que me preparava para ir encontrá-la. - Ah, é? Ele fechou a porta atrás de si. - Duvida de mim? - Sempre, e com bons motivos. - Sinto-me ferido - Tyrion bamboleou-se até o aparador para se servir de uma taça de vinho. Não conhecia melhor maneira de ficar com sede do que conversar com Cersei. - Se a ofendi, gostaria de saber como. 208 - Que vermezinho repugnante você é. Myrcella é minha única filha. Realmente imaginava que eu permitiria que a vendesse como um saco de aveia? Myrcella, Tyrion pensou. Bom, esse ovo eclodiu. Vejamos de que cor é o pinto, - Como um saco de aveia? Nem perto disso. Myrcella é uma princesa. Há quem diga que foi para isto que nasceu. Ou será que planejava casá-la com Tommen? Cersei avançou e arrancou a taça de vinho da mão do irmão, atirando-a ao chão. - Irmão ou não, devia mandar cortar sua língua por isso. Eu sou regente de Joffrey, não você, e eu digo que Myrcella não será enviada para este dornense como eu fui para Robert Baratheon. Tyrion sacudiu vinho dos dedos e suspirou. - Por que não? Estaria bastante mais segura em Dorne do que aqui. - Você é completamente ignorante ou apenas perverso? Sabe tão bem como eu que os Martell não têm motivos para simpatizar conosco, - Os Martell têm todos os motivos para nos odiar. Mesmo assim, espero que concordem. As razões da mágoa do Príncipe Doran em relação à Casa Lannister remontam apenas a uma geração, mas os homens de Dorne vêm guerreando contra Ponta Tempestade e Jardim de Cima há mil anos, e Renly tomou como pressuposto que teria a fidelidade de Dorne. Myrcella tem nove anos, Trystane Martell, onze. Propus que se casassem quando ela atingisse seu décimo quarto ano. Até essa altura, seria hóspede de honra em Lançasolar, sob a proteção do Príncipe Doran. - Uma refém - Cersei o corrigiu, com a boca apertando-se.
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- Uma hóspede de honra - insistiu Tyrion. - E suspeito que Martell tratará Myrcella mais gentilmente do que Joffrey tem tratado Sansa Stark. Pensei em mandar com ela Sor Arys Oakheart. Com um cavaleiro da Guarda Real como escudo juramentado, não é provável que alguém se esqueça de quem ou do que ela é. - De pouco servirá Sor Arys, se Doran Martell decidir que a morte da minha filha compensará a da sua irmã. - Martell é honrado demais para assassinar uma menina de nove anos, especialmente se for tão doce e inocente como Myrcella. Enquanto a tiver em sua posse, pode ficar razoavelmente certo de que do nosso lado honraremos o acordo, cujos termos são ricos demais para recusar. Myrcella é a menor parte do trato. Também lhe ofereci o assassino da irmã, um lugar no conselho, alguns castelos na Marca... - E demais! - Cersei afastou-se dele, irrequieta como uma leoa, com as saias rodopiando. - Ofereceu demais, e sem a minha autorização ou consentimento. - E do Príncipe de Dorne que estamos falando. Se lhe oferecesse menos, o mais certo era que cuspisse na minha cara. - É demais! - Cersei insistiu, rodopiando para olhar o irmão de frente. - O que você lhe teria oferecido? Esse buraco que tem entre as pernas? - Tyrion a desafiou, com sua própria fúria rebentando. Dessa vez ele viu o tabefe chegando. A cabeça oscilou, soltando um crac. - Querida, querida irmã... Garanto-lhe que esta foi a última vez que me bateu na vida. A irmã riu. - Não me ameace, homenzinho. Acredita que a carta de nosso pai o mantém a salvo? Um pedaço de papel. Eddard Stark também tinha um pedaço de papel, e olhe o bem que lhe fez. Eddard Stark não tinha a Patrulha da Cidade, Tyrion pensou, nem os meus homens dos clãs nem os mercenários que Bronn contratou. Eu tenho. Ou assim ele esperava, confiando em Varys, em Sor Jacelyn Bywater, em Bronn. Lorde Stark provavelmente também tivera suas desilusões. 209 Mas nada disse. Um homem sensato não lançava fogovivo num braseiro. Em vez disso, serviu-se de outra taça de vinho. - Em que segurança julga que Myrcella estará se Porto Real cair? Renly e Stannis pendurarão a cabeça dela ao lado da sua. Cersei começou a chorar. Tyrion Lannister não teria ficado mais estupefato se o próprio Aegon, o Conquistador, tivesse entrado de rompante na sala, montado num dragão e fazendo malabarismos com tortas de limão. Não via a irmã chorar desde que eram crianças em Rochedo Casterly. Acanhadamente, deu um passo na sua direção... Mas aquela mulher era Cersei! Estendeu uma mão hesitante para o seu ombro, - Não me toque - ela reagiu, afastando-se. Não devia, mas aquela reação magoou mais do que qualquer tapa. De rosto afogueado, tão zangada como atingida pela dor, Cersei lutou para respirar: - Não me olhe, não... assim, não... você, não. Delicadamente, Tyrion voltou-lhe as costas: - Não pretendia assustá-la. Prometo que nada acontecerá a Myrcella. - Mentiroso - ela disse atrás dele. - Não sou uma criança para ser acalmada com promessas ocas. Também me disse que libertaria Jaime. Pois bem. Onde está ele? - Em Correrrio, eu calculo. A salvo e sob vigilância, até que eu encontre uma maneira de libertá-lo. Cersei fungou: - Eu devia ter nascido homem. Não teria necessidade de nenhum de vocês. Não permitiria que nada disso acontecesse. Como Jaime pôde se deixar capturar por aquele garoto? E meu pai? Confiei nele, como uma idiota, mas onde está agora, justamente quando é necessário aqui? O que ele está fazendo? - A guerra. - De dentro das muralhas de Harrenhal? - Cersei exclamou desdenhosamente. – Curiosa maneira de lutar. A meu ver, parece, de forma suspeita, com se esconder, - Pois veja de novo. - Do que mais chamaria? Nosso pai está num castelo, e Robb Stark em outro, e nenhum deles faz coisa alguma. - Assim deve ser - Tyrion sugeriu. - Cada um espera que o outro se mova, mas o leão está quieto, equilibrado, retorcendo a cauda, enquanto o corço está paralisado pelo medo, com as tripas transformadas em gelatina. Qualquer que seja o lado onde saltar, o leão vai capturá-lo, e ele sabe disso. - E você tem mesmo certeza de que nosso pai é o leão? Tyrion sorriu. - Está em todos os nossos estandartes. Ela ignorou a brincadeira.
- Se tivesse sido nosso pai o capturado, Jaime não estaria parado, garanto-lhe. Jaime estaria desfazendo sua tropa em pedaços sangrentos contra as muralhas de Correrrio, e os Outros teriam sua chance. Nunca teve paciência, tal como você, querida irmã, - Nem todos podemos ser tão ousados como Jaime. Mas há outras maneiras de ganhar guerras. Harrenhal é forte e está bem situado. - E Porto Real não, como ambos sabemos perfeitamente. Enquanto nosso pai brinca de leão 210 e corço com o garoto Stark, Renly marcha pela estrada das rosas. Pode estar junto aos nossos portões a qualquer momento! - A cidade não cairá em um dia. De Harrenhal até aqui é uma marcha rápida e reta pela estrada do rei. Renly quase não terá tempo de preparar suas máquinas de cerco antes que nosso pai o pegue pela retaguarda. A tropa dele será o martelo; as muralhas da cidade, a bigorna. É uma linda imagem. Os olhos verdes de Cersei penetraram-no, desconfiados, mas com fome da confiança com que ele a alimentava. - E se Robb Stark se puser em marcha? - Harrenhal está suficientemente perto dos vaus do Tridente para que Roose Bolton possa atravessá-lo com a infantaria nortenha e ir se juntar à cavalaria do Jovem Lobo. Stark não pode marchar sobre Porto Real sem tomar primeiro Harrenhal, e mesmo com Bolton não tem força suficiente para fazer isso - Tyrion experimentou o mais conquistador dos seus sorrisos. – Nesse meio-tempo, nosso pai se alimenta da gordura das terras fluviais enquanto nosso tio Stafford reúne recrutas frescos no Rochedo. Cersei olhou-o com suspeita. - Como pode saber tudo isso? Nosso pai falou das suas intenções quando o enviou para cá? - Não. Passei os olhos por um mapa. O olhar dela transformou-se em desdém. - Imaginou cada uma dessas palavras nessa sua cabeça grotesca, não foi, Duende? Tyrion deu um pequeno estalo com a língua. - Querida irmã, eu pergunto: se não estivéssemos ganhando, teriam os Stark pedido a paz? - puxou a carta que Sor Cleos Frey trouxera. - O Jovem Lobo enviou-nos condições, entende? Condições inaceitáveis, com certeza, mas é um começo, mesmo assim. Quer vê-las? - Sim - e assim, subitamente, Cersei era de novo uma rainha. - Como é que você as tem? Deviam ter sido entregues a mim. - Para que serve uma Mão se não for para lhe entregar coisas? Tyrion entregou-lhe a carta. A bochecha ainda latejava onde a mão de Cersei havia deixado sua marca. Que me esfole a cara se for esse o pequeno preço a pagar pelo seu consentimento com o casamento de Dorne. Agora iria obtê-lo, podia senti-lo. E também o conhecimento certo a respeito de um informante... Bem, isso era a cereja do bolo. 211
Bran Dançarina estava envolvida em jaezes de lã branca como a neve, adornada com o lobo gigante cinza da Casa Stark, ao passo que Bran usava calções cinza e um gibáo branco, com as mangas e o colarinho debruados de veiros. Sobre o coração estava seu broche de prata e azeviche polido em forma de cabeça de lobo. Preferiria o Verão a um lobo de prata ao peito, mas Sor Rodrik mostrou-se inflexível. Os degraus baixos de pedra detiveram a Dançarina apenas por um momento. Quando Bran a incentivou a avançar, ultrapassou-os com facilidade, Para lá das largas portas de carvalho e ferro, oito longas filas de mesas recém-montadas enchiam o Grande Salão de Winterfell, quatro de cada lado da galeria central. Homens aglomeravam-se nos bancos, ombro contra ombro. - Stark! - gritavam, pondo-se em pé, enquanto Bran passava por eles a trote. - Winterfell! Winterfell! Já tinha idade suficiente para saber que não era realmente por ele que gritavam... Era a colheita que festejavam, Robb e suas vitórias, o senhor seu pai e o avô e todos os Stark desde há oito mil anos que aclamavam. Mas, mesmo assim, aquilo fez com que inchasse de orgulho. Durante o tempo que levou para atravessar a cavalo aquele salão, esqueceu-se de que era aleijado. Mas a realidade se fez presente quando alcançou o estrado, com todos os olhos postos nele, e Osha e Hodor desprenderam as suas correias e presilhas, ergueram-no do dorso da Dançarina e o transportaram para o cadeirão dos seus antepassados. Sor Rodrik estava sentado à esquerda de Bran, com a filha Beth a seu lado, Rickon estava à direita, com o cabelo ruivo, parecendo um esfregão felpudo tão comprido que roçava sua capa de arminho. Recusara-se a deixar que alguém o cortasse desde que a mãe tinha partido. A última moça que tentou, tinha recebido uma dentada em troca dos seus esforços.
- Também queria montar - Rickon disse enquanto Hodor levava a Dançarina. – Monto melhor do que você. - Não monta, por isso cale-se - Bran disse ao irmão. Sor Rodrik soltou um brado, pedindo silêncio. Bran ergueu a voz. Deu a todos as boas-vindas em nome do irmão, o Rei do Norte, e lhes pediu para agradecer aos deuses, antigos e novos, pelas vitórias de Robb e pela dádiva das colheitas. - Que haja mais uma centena - Bran terminou, erguendo a taça de prata do pai. - Mais uma centena! - canecas de estanho, xícaras de cerâmica e cornos de beber com reforços de ferro bateram uns nos outros. O vinho de Bran estava adoçado com mel e aromatizado com canela e cravo, mas era mais forte do que ele estava habituado. Sentia os quentes dedos serpenteantes da bebida contorcendose através do seu peito à medida que ia engolindo. Quando apoiou a taça, sua cabeça parecia boiar em águas calmas. 212 - Esteve bem, Bran - disse-lhe Sor Rodrik. - Lorde Eddard teria se sentido muito orgulhoso - um pouco adiante, na mesa, Meistre Luwin acenou concordando, enquanto os criados começavam a trazer a comida. Comida como Bran nunca vira; pratos e mais pratos, e mais pratos. Tantos, que não conseguia engolir mais do que uma garfada ou duas de cada um. Havia grandes peças de auroque assadas com alho-poró, empadões de veado com pedaços de cenoura, toucinho e cogumelos, costelas de carneiro com molho de mel e cravo, pato com tomilho, javali apimentado, ganso, espetos de pombo e capão, guisado de carne de vaca e cevada, sopa fria de fruta. Lorde Wyman havia trazido de Porto Branco vinte barricas de peixe conservado em sal e algas marinhas; pescadas e caramujos, caranguejos e mexilhões, amêijoas, arenques, bacalhaus, salmões, lagostas e lampreias. Havia pão preto, bolos de mel e biscoitos de aveia; nabos, ervilhas e beterrabas, feijões, abóboras e enormes cebolas vermelhas; maçãs cozidas, tortas de frutos silvestres e peras embebidas em vinho-forte. Havia queijos brancos em todas as mesas, da mais nobre à mais humilde, e jarros de vinho quente com especiarias e cerveja gelada de outono eram passados de um lado para o outro nas mesas. Os músicos de Lorde Wyman tocavam com bravura e bem, mas a harpa, a rabeca e a trompa foram em breve afogadas por uma maré de conversas e risos, o tinir de taças e pratos, e os rosnados de cães que lutavam pelos restos. O cantor cantava boas canções, Lanças de Ferro, 0 Incêndio dos Navios e O Urso e a Bela Donzela, mas só Hodor parecia estar ouvindo. Estava em pé ao lado do tocador de trompa, saltando de um pé para outro. O ruído aumentou até se transformar num rugido trovejante e constante, um grande e entontecedor guisado de som. Sor Rodrik conversava com Meistre Luwin por cima dos cabelos cacheados de Beth, enquanto Rickon gritava alegremente com os Walder. Bran não quisera os Frey na mesa principal, mas o meistre lembrara-lhe que seriam em breve parentes. Robb devia casar com uma das tias deles, e Arya, com um dos tios. - Ela nunca o fará - Bran tinha respondido. - Arya não - mas Meistre Luwin não cedeu, e assim ali estavam ao lado de Rickon. Os criados traziam todos os pratos primeiro a Bran, para que ele pudesse se servir da porção do senhor se assim quisesse. Quando chegaram aos patos, já não conseguia comer mais. Depois disso, acenou positivamente perante cada prato e os mandou embora. Se o prato exalasse um cheiro particularmente apetitoso, mandava-o a um dos senhores sentados no estrado, um gesto de amizade e favor que Meistre Luwin lhe recomendara fazer. Mandou um pouco de salmão à pobre e triste Senhora Hornwood; o javali aos ruidosos Umber; um prato de ganso com frutos do bosque a Cley Cerwyn; e uma enorme lagosta a Joseth, o mestre dos cavalos, que não era senhor nem hóspede, mas tinha se encarregado do treino da Dançarina e tornara possível que Bran a montasse. Mandou doces a Hodor e também à Velha Ama, por nenhum motivo além de gostar deles. Sor Rodrik lembrou-lhe também que mandasse qualquer coisa aos seus irmãos adotivos. Então, enviou ao Pequeno Walder beterrabas cozidas e ao Grande Walder os nabos com manteiga. Nos bancos, lá embaixo, os homens de Winterfell misturavam-se com gente comum da vila de Inverno, amigos vindos de castros próximos e as escoltas dos senhores hóspedes. Alguns dos rostos Bran nunca tinha visto antes, outros, conhecia tão bem como o seu, mas todos lhe pareciam igualmente desconhecidos. Observou-os como se ainda estivesse sentado na janela do seu quarto, a distância, olhando para o pátio, embaixo, vendo tudo, mas não fazendo parte de nada. Osha deslocava-se por entre as mesas, servindo cerveja. Um dos homens de Leobald Tallhart enfiou uma mão pelas suas saias, e ela quebrou o jarro na sua cabeça, por entre o rugido das 213 gargalhadas. Mas Mikken tinha enfiado a mão no corpete de uma mulher qualquer, e ela não parecia se importar. Bran observou Farlen obrigando sua cadela vermelha a implorar ossos, e sorriu ao ver a Velha Ama beliscar a crosta de uma torta quente com dedos enrugados. No estrado, Lorde Wyman atacou um prato fumegante de lampreias como se fossem uma tropa inimiga. O homem era tão gordo, que Sor Rodrik mandara construir uma cadeira especialmente larga para que nela se sentasse, mas ria sonora e freqüentemente, e Bran concluiu que gostava dele. A pobre e abatida Senhora Hornwood estava sentada ao seu lado, com o rosto transformado numa máscara de pedra enquanto bicava a comida com indiferença. Do outro lado da mesa elevada, Hothen e Mors competiam para ver quem bebia mais, batendo com tanta força os berrantes um no outro que pareciam cavaleiros numa justa. Está quente demais aqui, e barulhento demais, e estão todos se embebedando. Bran sentiu comichão debaixo da lã cinza e branca e, de repente, desejou estar em qualquer lugar, menos ali. Agora está fresco no bosque sagrado. O vapor sobe das lagoas quentes, e as folhas vermelhas do represeiro restolham. Os cheiros são mais ricos do que aqui, e em breve a lua vai se erguer, e meu irmão cantará para ela. - Bran? - Sor Rodrik o chamou. - Não come? O sonho acordado tinha sido tão vivo, que por um momento Bran não soube onde se encontrava. - Comerei mais tarde - ele respondeu. - Minha barriga está quase estourando. O bigode branco do velho cavaleiro estava cor-de-rosa devido ao vinho. - Esteve bem, Bran. Aqui e nas audiências. Penso que um dia será um senhor particularmente bom. Quero ser um cavaleiro. Bran bebeu da taça do pai outro gole do vinho com mel e especiarias, grato por ter algo em que se agarrar. Uma cabeça de traço realista de um lobo gigante rosnando estava esculpida em relevo num dos lados da taça. Sentiu o focinho de prata fazendo pressão contra a palma da sua mão, e se lembrou da última vez que tinha visto o senhor seu pai beber daquela taça. Havia sido na noite do banquete de boas-vindas, quando o Rei Robert trouxera a corte a Winterfell. Então, ainda reinava o verão. Seus pais tinham dividido o estrado com Robert e sua rainha, com os irmãos dela a seu lado. Tio Benjen também estivera lá, todo vestido de preto. Bran e os irmãos e irmãs tinham se sentado com os filhos do rei, Joffrey, Tommen e a Princesa Myrcella, que passou a refeição inteira olhando Robb com olhos de adoração. Arya fazia caretas do outro lado da mesa quando ninguém estava olhando; Sansa escutava, em êxtase, as canções de cavalaria que o grande harpista do rei cantava, e Rickon não parava de perguntar por que motivo Jon não estava com eles. - Porque é um bastardo - Bran teve de segredar-lhe por fim. E, agora, todos haviam partido. Era como se algum deus cruel tivesse esticado uma grande mão até aqui embaixo e varrido todos; as meninas para o cativeiro, Jon para a Muralha, Robb e a mãe para a guerra, Rei Robert e seu pai para as respectivas sepulturas, e talvez Tio Benjen também... Mesmo nos bancos havia novos homens às mesas. Jory estava morto, bem como Gordo Tom e Porther, Alyn, Desmond, Hullen, que era mestre dos cavalos, e seu filho, Harwin... Todos os que tinham ido para o sul com seu pai, até Septã Mordane e Vayon Poole. Os outros tinham partido para a guerra com Robb e, até onde Bran sabia, podiam em breve estar mortos também. Gostava bastante de Hayhead, de Poxy Tym, de Skittrick e dos outros novos homens, mas sentia saudades dos seus velhos amigos. 214 Percorreu os bancos com os olhos, para cima e para baixo, para todos os rostos, felizes e tristes, e perguntou-se quem faltaria no ano seguinte e no outro. Sentiu vontade de chorar, mas não podia. Era um Stark em Winterfell, filho do seu pai e herdeiro do irmão e quase um homem-feito. No fundo do salão, as portas abriram-se e um sopro de ar frio deixou a luz dos archotes mais brilhante por um momento. Alebelly introduziu dois novos convidados no banquete. - A Senhora Meera da Casa Reed - berrou o corpulento guarda por sobre o clamor na sala. - Com o irmão, Jojen, da Atalaia da Água Cinzenta. Homens ergueram os olhos das suas taças e tabuleiros para ver os recém-chegados. Bran ouviu o Pequeno Walder murmurar "Papa-rãs" para o Grande Walder. Sor Rodrik levantou-se. - Sejam bem-vindos, amigos, e partilhem esta colheita conosco - criados correram para aumentar a mesa do estrado, indo buscar armações e cadeiras. - Quem são eles! - Rickon quis saber. - Homens da lama - respondeu Pequeno Walder, com desdém. - São ladrões e covardes, e seus dentes são verdes de comer rãs. Meistre Luwin agachou-se junto à cadeira de Bran para lhe segredar conselhos ao ouvido: - Deve saudar estes calorosamente. Não imaginava vê-los aqui, mas... Sabe quem são? Bran confirmou com um aceno, - Cranogmanos. Vindos do Gargalo. - Howland Reed foi um grande amigo do seu pai - disse-lhe Sor Rodrik, - Ao que parece, estes dois são seus filhos. Enquanto os recém-chegados atravessavam o salão, Bran viu que um deles era de fato uma moça, ainda que jamais tivesse percebido isso pelo modo como se vestia. Usava calções de pele de carneiro, amaciados pelo longo uso, e um justilho sem mangas reforçado com escamas de bronze. Embora estivesse perto da idade de Robb, era esguia como um garoto, com um longo cabelo castanho amarrado atrás da cabeça, e só um pequeno sinal de seios. De uma das magras ancas pendia uma rede trançada, e da outra, uma longa faca de bronze; debaixo do braço trazia um velho elmo de ferro salpicado de ferrugem; um tridente e um escudo redondo de couro estavam atados às suas costas.
O irmão era vários anos mais novo e não trazia armas. Todo seu vestuário era verde, até mesmo o couro das botas, e quando se aproximou Bran viu que os olhos eram da cor do musgo, embora os dentes parecessem tão brancos como os de todos os outros. Ambos os Reed eram de constituição leve, esguios como espadas e pouco mais altos do que Bran. Ajoelharam-se em frente ao estrado. - Senhores de Stark - disse a garota. - Os anos se passaram às centenas e aos milhares desde que meu povo jurou lealdade ao Rei do Norte. O senhor meu pai enviou-nos aqui a fim de proferir novamente essas palavras, em nome de todo o nosso povo. Ela está olhando para mim, Bran percebeu. Tinha de responder alguma coisa. - Meu irmão Robb está lutando no sul - ele disse - , mas pode proferir as palavras perante a mim, se quiser. - A Winterfell juramos a fidelidade da Água Cinzenta - disseram os dois em uníssono. - Cedemos-lhe a lareira, o coração e a colheita, senhor. Nossas espadas, lanças e flechas estão às suas ordens. Conceda misericórdia aos nossos fracos, ajude nossos impotentes e faça justiça a todos, e nunca lhe faltaremos. - Juro pela terra e pela água - disse o rapaz vestido de verde. 215 - Juro pelo bronze e pelo ferro - disse a irmã. - Juramos pelo gelo e pelo fogo - os dois terminaram em conjunto. Bran não soube o que dizer. Esperava-se que lhes respondesse jurando algo? Não lhe tinham ensinado a responder àqueles votos. - Que seus invernos sejam curtos, e os verões, fartos - Bran finalmente assim se manifestou. Isso era geralmente uma coisa boa para se dizer. - Ergam-se, Sou Brandon Stark. A moça, Meera, se levantou e ajudou o irmão a fazer o mesmo. O garoto não tirava os olhos de Bran. - Trazemos-lhe peixe, rãs e aves de capoeira de presente, - Agradeço - Bran se perguntou se teria de comer uma rã para ser delicado. - Ofereço-lhes a comida e a bebida de Winterfell - tentou recordar tudo o que lhe tinha sido ensinado a respeito dos cranogmanos, que viviam nos pântanos do Gargalo e raramente saíam das suas terras úmidas. Eram um povo pobre, pescadores e caçadores de rãs que viviam em casas de sapé e junco trançados, em ilhas flutuantes escondidas nas profundezas do pântano. Dizia-se que eram um povo covarde que lutava com armas envenenadas e preferia se esconder dos inimigos a enfrentá-los em batalha aberta. E, no entanto, Howland Reed havia sido um dos mais dedicados companheiros do pai durante a guerra pela coroa do rei Robert, antes de Bran nascer. O rapaz, Jojen, passou com curiosidade os olhos pelo salão enquanto ocupava sua cadeira. - Onde estão os lobos gigantes? - No bosque sagrado - Rickon respondeu. - Felpudo comportou-se mal. - Meu irmão gostaria de vê-los - disse a garota. O Pequeno Walder interveio em voz alta: - Ele que se assegure de que os lobos não o vejam, senão o mordem até arrancar um pedaço. - Eles não mordem se eu estiver lá - Bran sentia-se satisfeito por os cranogmanos quererem ver os lobos. - Pelo menos o Verão não morde, e ele mantém o Cão Felpudo a distância. Estava curioso com aqueles homens da lama. Não se lembrava de alguma vez ter visto um. O pai enviara cartas ao Senhor de Água Cinzenta ao longo dos anos, mas nenhum dos cranogmanos chegara a visitar Winterfell. Teria gostado de falar mais com eles, mas o Grande Salão estava tão barulhento, que era difícil ouvir alguém que não estivesse bem ao lado. Sor Rodrik estava bem ao lado de Bran. - Eles comem rãs mesmo? - perguntou ao velho cavaleiro. - Sim - Sor Rodrik respondeu. - Rãs, peixe e lagartos-leões, e todo o tipo de aves. Talvez não tenham gado, Bran pensou. Ordenou que os criados lhes servissem costelas de carneiro e um bife de auroque, e lhes enchesse os tabuleiros com guisado de carne de vaca e cevada. Pareceram gostar bastante daquilo. A garota o supreendeu quando a olhava, e sorriu. Bran corou e afastou os olhos. Muito mais tarde, depois de todos os doces terem sido servidos e empurrados para baixo com galões de vinho de verão, a comida foi levada e as mesas encostadas às paredes para abrir espaço para a dança, A música tornou-se mais animada, os tambores juntaram-se a ela, e Hother Umber apresentou um enorme corno de guerra encurvado com faixas de prata. Quando o cantor chegou à parte de A Noite que Terminou, em que a Patrulha da Noite avançava ao encontro dos Outros na Batalha da Madrugada, deu um sopro tão forte que fez todos os cães latirem. Dois dos homens dos Glover deram início a uma dança de roda com gaita de foles e harpa. Mors Umber foi o primeiro a se levantar. Agarrou pelo braço uma criada que passava, atirando ao chão o jarro de vinho que ela levava. Por entre as esteiras, ossos e pedaços de pão espalhavam pelo chão, rodopiou com ela, girou-a e a atirou ao ar. A moça guinchou de rir e corou, enquanto suas saias rodavam e se levantavam. Logo outros se juntaram à dança. Hodor começou a dançar sozinho, enquanto Lorde Wyman pediu à pequena Beth Cassei para ser seu par. Apesar de todo seu tamanho, movia-se com graça. Quando se cansou, Cley Cerwyn tomou seu lugar e dançou com a menina. Sor Rodrik abordou i Senhora Hornwood, que se desculpou e retirou-se. Bran ficou vendo durante tempo suficiente para ser educado e depois mandou chamar Hodor. Sentia-se quente e cansado, corado do vinho, e a dança o deixara triste. Era outra coisa que nunca poderia fazer. - Quero ir embora. - Hodor - o gigante gritou em resposta, ajoelhando-se. Meistre Luwin e Hayhead ergueram-no para o seu cesto. As pessoas de Winterfell tinham visto aquilo meia centena de vezes, mas não havia dúvida de que parecia estranho aos visitantes, alguns dos quais eram mais curiosos do que educados. Bran sentiu todos os olhares. Em vez de atravessar o salão, saíram pelos fundos, com Bran abaixando a cabeça quando atravessaram a porta do senhor, Na galeria pouco iluminada, fora do Grande Salão, encontraram Joseth, o mestre dos cavalos, entretido com outro tipo de montaria. Uma mulher qualquer que Bran não conhecia estava encostada na parede, com as saias em volta da cintura, aos risinhos. Até Hodor parar para ver. Então, Bran gritou: - Deixe-os em paz, Hodor. Leve-me para o meu quarto. Hodor o levou pela escada em caracol até a sua torre e ajoelhou-se ao lado de uma das barras de ferro que Mikken tinha prendido à parede. Bran usou as barras para se deslocar até a cama, e Hodor tirou suas botas e seus calções. - Pode voltar para a festa, mas não vá incomodar Joseth e aquela mulher - Bran lhe recomendou. - Hodor - ele respondeu, sacudindo a cabeça. Quando Bran soprou a vela de cabeceira, as trevas o cobriram como uma manta suave e familiar. O tênue som de música penetrava pelas venezianas. De repente, recordou-se de uma coisa que o pai lhe tinha dito um dia, quando ainda era pequeno. Perguntara a Lorde Eddard se os homens da Guarda Real eram realmente os melhores cavaleiros dos Sete Reinos. - Não são mais - seu pai respondera. - Mas, antigamente, foram uma maravilha, uma brilhante lição para o mundo. - Havia algum que fosse o melhor de todos? - O melhor cavaleiro que já vi foi Sor Arthur Dayne, que lutava com uma lâmina chamada Alvorada, forjada do coração de uma estrela caída. Chamavam-no Espada da Manhã, e teria me matado se não fosse Howland Reed. O pai então tinha ficado triste e não quis dizer mais nada. Bran gostaria de ter perguntado o que queria dizer aquilo. Adormeceu com a cabeça cheia de cavaleiros em reluzentes armaduras, lutando com espadas que brilhavam como o fogo das estrelas, mas, quando o sonho chegou, estava de novo no bosque sagrado. Os cheiros da cozinha e do Grande Salão eram tão fortes, que era quase como se não tivesse saído do banquete. Caminhou sob as árvores, com o irmão logo atrás. Aquela noite estava muito viva, cheia com os uivos do grupo de homens que brincava. Os sons deixavam-no inquieto, Queria correr, caçar, queria... 217 O tinir do ferro fez com que seus ouvidos se aguçassem. O irmão também ouviu. Correram através dos arbustos na direção do som. Enquanto saltava sobre as águas paradas que havia na base da velha árvore branca, detectou o odor de um estranho, um cheiro de homem bem misturado com couro, terra e ferro. Os intrusos tinham penetrado alguns metros no bosque quando caíram sobre eles; uma fêmea e um jovem macho, sem sinal de medo, mesmo quando lhes mostrou o branco dos dentes. O irmão soltou um rosnado profundo, mas nem assim fugiram. - Aí vêm eles - disse a fêmea. Meera, sussurrou alguma parte dele, algum resquício do garoto adormecido perdido no sonho de lobo. - Imaginava que fossem tão grandes? - Ainda serão maiores quando forem adultos - disse o jovem macho, observando-os com olhos grandes, verdes e sem medo. - O negro está cheio de medo e raiva, mas o cinza é forte... Mais forte do que imagina... Consegue sentir, irmã? - Não - ela respondeu, levando uma mão ao cabo da longa faca marrom que usava. - Vá com cuidado, Jojen, - Ele não me fará mal. Não é hoje o dia da minha morte. O macho caminhou até eles, sem medo, e estendeu a mão para o seu focinho, um toque tão suave como uma brisa de verão. Mas, ao roçar aqueles dedos, a mata dissolveu-se e o próprio chão se transformou em fumaça por baixo dos seus pés e rodopiou para longe, rindo. E, então, ele estava girando e caindo, caindo, caindo... 218 Cateylin
Enquanto dormia nas pradarias onduladas, Catelyn sonhou que Bran estava de novo inteiro, rya e Sansa andavam de mãos dadas, e Rickon era ainda um bebê no seu peito. Robb, sem coroa, brincava com uma espada de madeira, e quando todos estavam dormindo, a salvo, encontrou Ned na sua cama, sorrindo. Era doce, mas acabou cedo demais. A alvorada chegou cruel, um punhal de luz. Acordou com dores, só e cansada; cansada de montar a cavalo, cansada da dor, do dever. Quero chorar, pensou. Quero ser confortada, estou tão cansada de ser forte. Quero ser tonta e assustada, por uma vez. Só um pouquinho, é tudo... um dia... uma hora... Fora da sua tenda, homens agitavam-se, Ouviu os relinchos de cavalos, Shadd queixando-se da rigidez nas suas costas, Sor Wendel pedindo o arco, Catelyn desejou que todos fossem embora. Eram bons homens, leais, mas estava cansada de todos eles. Era os filhos que desejava. Um dia, prometeu a si mesma enquanto estava deitada na cama, ia se permitir ser menos do que forte. Mas hoje, não. Não podia ser hoje. Os dedos pareciam mais desajeitados do que de costume enquanto lutava com a roupa. Achava que devia se sentir grata por ainda conseguir mexer as mãos. O punhal era feito de aço valiriano, que corta profunda e limpamente. Bastava olhar suas cicatrizes para se lembrar. Lá fora, Shadd mexia aveia numa caldeira, enquanto Sor Wendel Manderly colocava a corda no seu arco. - Senhora - ele disse quando Catelyn saiu da tenda. - Há aves neste mato. Deseja uma codorna assada para o desjejum hoje? - Aveia e pão são suficientes... Para todos nós, penso eu. Temos ainda muitas léguas a percorrer, Sor Wendel. - Como quiser, senhora - a cara de lua do cavaleiro pareceu abatida, as pontas do seu grande bigode de morsa torceram-se de desapontamento. - Aveia e pão, e o que poderia ser melhor? - era um dos homens mais gordos que Catelyn já tinha conhecido, mas, por mais que amasse comida, amava mais sua honra. - Encontrei umas urtigas e fiz um chá - Shadd anunciou. - A senhora deseja uma xícara? - Sim. Agradeço. Aninhou o chá nas mãos cobertas de cicatrizes e soprou para esfriá-lo. Shadd era um dos homens de Winterfell. Robb mandara vinte dos seus melhores homens para levá-la em segurança até Renly. Mandara também cinco fidalgos, cujos nomes e elevado nascimento dariam peso e honra à sua missão. Enquanto abriam caminho para o sul, permanecendo bem longe de vilas e castros, tinham visto, mais de uma vez, bandos de homens vestidos de cota de malha e vislumbraram fumaça no horizonte oriental, mas ninguém se atreveu a molestá-los. Eram fracos 219 demais para constituir uma ameaça, e muitos para ser presa fácil. Depois de atravessarem o Água Negra, o pior tinha ficado para trás. Ao longo dos últimos quatro dias, não tinham visto sinais de guerra. Catelyn nunca quisera aquilo, E tinha dito isso a Robb, em Correrrio. - Da última vez que vi Renly, ele era um garoto da idade de Bran. Não o conheço. Envie outra pessoa. Meu lugar é aqui, com meu pai, pelo tempo que lhe restar. O filho olhara-a pouco satisfeito. - Não há mais ninguém. Não posso ir em pessoa. Seu pai está doente demais. Peixe Negro é os meus olhos e ouvidos, não me atrevo a perdê-lo. Preciso do seu irmão para defender Correrrio quando nos pusermos em marcha... - Em marcha? - ninguém lhe tinha dito uma palavra a respeito de marchas, - Não posso ficar em Correrrio à espera da paz. Faz parecer que tenho medo de voltar ao campo de batalha. Meu pai me disse que, quando não há batalhas para lutar, os homens começam a pensar nas lareiras e nas colheitas. Até meus homens do Norte começam a ficar desassossegados, Meus homens do Norte, ela pensou. Ele até começa a falar como um rei. - Nunca ninguém morreu de desassossego, mas a precipitação é diferente. Plantamos sementes, é preciso deixá-las crescer. Robb sacudiu a cabeça com teimosia: - Atiramos algumas sementes ao vento, é tudo. Se sua irmã Lysa viesse nos ajudar, já teríamos tido notícias. Quantas aves enviamos para o Ninho da Águia? Quatro? Eu também quero a paz, mas por que os Lannister me dariam seja lá o que for se tudo o que fizer for ficar aqui à espera, enquanto meu exército se derrete à minha volta tão depressa como a neve do verão? - Então, em vez de parecer covarde, vai dançar ao som da flauta de Lorde Tywin? - ela atirou em resposta. - Ele quer que marche sobre Harrenhal. Pergunte ao seu tio Brynden se... - Nada disse de Harrenhal - Robb respondeu. - Bem, vai falar por mim com Renly, ou terei de mandar Grande-Jon? A recordação lhe trouxe um sorriso abatido ao rosto. Aquela havia sido uma manobra tão óbvia, porém hábil para um rapaz de quinze anos, Robb sabia como um homem como Grande -Jon Umber era pouco adequado para tratar com um homem como Renly Baratheon, e sabia que ela também reconhecia isso. O que podia fazer a não ser concordar, rezando para que seu pai sobrevivesse até sua volta? Catelyn sabia que, se Lorde Hoster estivesse bem de saúde, teria ido ele próprio. Mas, mesmo assim, aquela partida foi dura, muito dura. Ele nem a reconheceu quando foi lhe dizer adeus. - Minisa - ele a tinha chamado - , onde estão as crianças? Minha pequena Cat, minha querida Lysa... Catelyn o beijou na testa e disse que seus bebês estavam bem. - Espere por mim, senhor - ela dissera, enquanto os olhos dele se fechavam. - Esperei por você... Ah, tantas vezes.... Agora tem de esperar por mim. O destino empurra-me para o sul, e mais para o sul, Catelyn pensou enquanto bebericava o chá adstringente. Quando é para o norte que eu devia ir, para o norte, para casa. Tinha escrito a Bran e Rickon na última noite que passara em Correrrio. Não esqueço de vocês, meus queridos, têm de acreditar nisso. E só que seu irmão precisa mais de mim. - Devemos chegar hoje ao Vago superior, senhora - anunciou Sor Mandei quando Shadd servia o mingau. - Lorde Renly não estará longe, se o que dizem for verdade. 220 E o que lhe direi quando o encontrar? Que meu filho não o considera um verdadeiro rei? Não sentia prazer naquele encontro. Precisavam de amigos, não de mais inimigos, mas Robb nunca dobraria o joelho em homenagem a um homem que sentia não ter pretensão legítima ao trono. Sua tigela estava vazia, embora quase não se lembrasse de saborear o mingau. Deixou-a de lado. - E hora de seguirmos caminho. Quanto mais depressa falasse com Renly, mais depressa poderia voltar para casa. Foi a primeira a montar, e determinou o ritmo da coluna. Hal Mollen cavalgava ao seu lado, transportando o estandarte da Casa Stark, o lobo gigante cinza num campo branco de gelo. Estavam ainda a meio dia de viagem do acampamento de Renly, quando foram capturados. Robin Flint tinha avançado para bater terreno, e regressou a galope com a notícia de um vigia que observava do telhado de um moinho de vento distante. Quando o grupo de Catelyn chegou ao moinho, o homem há muito tinha partido. Seguiram caminho, mas ainda não tinham percorrido uma milha quando os batedores de Renly caíram sobre eles, vinte homens a cavalo com cota de malha, liderados por um envelhecido cavaleiro de barba grisalha com gaios azuis na capa. Quando o cavaleiro viu as bandeiras deles, trotou sozinho até junto de Catelyn. - Senhora - ele se apresentou sou Sor Colen de Lagoas Verdes, ao seu dispor. Estas terras que atravessa são perigosas. - Nosso assunto é urgente - respondeu-lhe Catelyn. - Venho como enviada do meu filho, Robb Stark, Rei do Norte, para tratar com Renly Baratheon, o Rei do Sul. - Rei Renly é o senhor coroado e ungido de todos os Sete Reinos, senhora - respondeu Sor Colen, embora com cortesia suficiente. - Sua Graça está acampada com a sua tropa perto de Ponteamarga, onde a estrada das rosas atravessa o Vago. Será uma grande honra escoltá-la até ele - o cavaleiro levantou uma mão coberta de cota de malha e seus homens formaram uma dupla coluna a flanquear Catelyn e sua guarda. Escolta ou captor?, ela se perguntou. Nada havia a fazer a não ser confiar na honra de Sor Colen e na de Lorde Renly. Viram a fumaça das fogueiras do acampamento quando ainda estavam a uma hora do rio. Então, chegoulhes o som, pairando sobre fazendas, campos e planície ondulada, indistinto como o murmúrio de um mar distante, mas aumentando à medida que se aproximavam. Quando viram as águas barrentas do Vago cintilando ao sol, já conseguiam distinguir as vozes dos homens, o tinir do aço, os relinchos de cavalos. Mas nem o som nem a fumaça os prepararam para a tropa propriamente dita. Milhares de fogueiras enchiam o ar com uma neblina fumacenta. Só as linhas de cavalaria estendiam-se ao longo de léguas. Sem dúvida, uma floresta havia sido abatida para fazer os grandes mastros de onde voavam as bandeiras. Grandes máquinas de cerco delineavam a beira relvada da estrada das rosas, catapultas, trabuquetes e aríetes rolantes montados em rodas que eram mais altas do que um homem a cavalo. As pontas de aço dos piques incendiavam-se, vermelhas, com a luz do sol, como se já estivessem ensangüentadas, ao passo que os pavilhões dos cavaleiros e dos grandes senhores nasciam da grama como cogumelos de seda. Viu homens com lanças, outros com espadas, e outros, ainda, com capacetes de aço e camisas de cota de malha, seguidoras de acampamentos exibindo seus encantos, arqueiros colocando penas em flechas, condutores levando carroças, pastores de suínos guardando porcos, pajens entregando mensagens, escudeiros afiando espadas, cavaleiros montando palafréns, cavalariços conduzindo corcéis de mau temperamento. - Ê uma quantidade assustadora de homens - observou Sor Wendel Manderly enquanto atravessavam a antiga ponte de pedra da qual Ponteamarga retirara o nome. 221 - É verdade - Catelyn concordou. Ao que parecia, quase toda a cavalaria do sul tinha respondido ao chamado de Renly. A rosa dourada de Jardim de Cima era vista por toda parte, cosida do lado direito do peito de homens de armas e criados, batendo e esvoaçando dos estandartes de seda verde que adornavam lanças e piques, pintada nos escudos pendurados à porta dos pavilhões dos filhos, irmãos, primos e tios da Casa Tyrell. Catelyn viu também a raposa e as flores da Casa Florent, as maçãs vermelha e verde dos Fossoway, o caçador andante de Lorde Tarly, folhas de carvalho dos Oakheart, os grous dos Crane, a nuvem de borboletas negras e laranjas dos Mullendore. Na outra margem do Vago, os senhores da tempestade tinham erguido seus estandartes, os vassalos de Renly, juramentados à Casa Baratheon e a Ponta Tempestade. Catelyn reconheceu os rouxinóis de Bryce Caron, as penas dos Penrose e a tartaruga marinha de Lorde Estermont, verde em fundo verde. Mas, para cada escudo que reconhecia, havia uma dúzia que lhe eram estranhos, usados pelos pequenos senhores juramentados aos vassalos e por cavaleiros menores e outros livres que tinham se reunido aos montes para transformar Renly Baratheon num rei de fato, e não apenas de nome, A bandeira do próprio Renly voava bem alto, acima de todas. Do topo da mais alta das suas torres de cerco, uma imensidão de carvalho com rodas cobertas de peles cruas esvoaçava o maior estandarte de guerra que Catelyn já tinha visto - um pano suficientemente grande para cobrir o chão de muitos salões, de um dourado reluzente, com o veado coroado dos Baratheon em negro, empinando-se, orgulhoso e alto. - Senhora, ouve esse barulho? - perguntou Hallis Mollen, aproximando-se a trote. - O que é aquilo? Catelyn pôs-se a escutar. Gritos, cavalos berrando, o tinir do aço e... - Aplausos - ela disse. Tinham subido uma ladeira pouco inclinada na direção de uma fileira de pavilhões de cores brilhantes erguidos no cume. Enquanto passavam entre eles, a multidão tornou-se mais densa, e os sons, mais fortes. E então Catelyn viu. Embaixo, à sombra das ameias de pedra e madeira de um pequeno castelo, desenrolava-se uma luta corpo a corpo. Um campo havia sido limpo, e cercas, galerias e barreiras de torneio tinham sido construídas. Centenas de pessoas, talvez milhares, tinham se reunido para assistir. Pelo aspecto do terreno, rasgado, lamacento e semeado de partes de armadura e lanças quebradas, aquilo durava há um dia, ou mais, mas agora o fim se aproximava. Menos de vinte cavaleiros permaneciam montados, lançando-se uns sobre os outros, golpeando-se, enquanto espectadores e combatentes caídos os incentivavam. Viu dois corcéis de batalha com armadura completa colidir e cair num emaranhado de aço e carne de cavalo, - Um torneio - Hal Mollen declarou. Tinha predileção por anunciar o óbvio em voz alta. -Ah, magnífico - Sor Wendel Manderly exclamou, quando um cavaleiro com um manto de riscas multicoloridas se virou para trás para golpear, com um machado de cabo longo estilhaçando o escudo do homem que o perseguia, deixando-o cambaleando nos estribos. A multidão à frente do grupo tornava difícil avançar. - Senhora Stark - Sor Colen pediu se seus homens tiverem a bondade de esperar aqui, vou apresentá-la ao rei. - Como quiser. Ela deu a ordem, embora tivesse sido obrigada a levantar a voz para ser ouvida por cima do burburinho do torneio, Sor Colen levou o cavalo lentamente pela mão através da multidão, com 222 Catelyn montada logo atrás. Um rugido subiu da multidão quando um homem de barba vermelha, sem capacete e um grifo no escudo, caiu perante um grande cavaleiro revestido de armadura izul. O aço que usava era de um cobalto profundo, assim como a maça de guerra que manejava com efeitos mortíferos, e os arreios da montaria exibiam a heráldica esquartelada do sol e da lua da Casa Tarth. - Malditos sejam os deuses, Ronnet Vermelho caiu - praguejou um homem. - Loras vai tratar desse azul... - respondeu um companheiro, antes que um rugido abafasse o resto das suas palavras. Outro homem estava no chão, preso por baixo do seu cavalo ferido, ambos gritando de dor. Escudeiros apressaram-se para ajudá-los. Isto é uma loucura, Catelyn pensou. Com inimigos verdadeiros por todos os lados e metade do reino em chamas, Renly fica aqui brincando de guerra, como um menino com a sua primeira espada de madeira. Os senhores e senhoras na galeria estavam tão absortos na luta como os homens no terreno. Catelyn observou-os bem. Seu pai tratara com freqüência com os senhores do sul, e não tinham sido poucos os que visitaram Correrrio. Reconheceu Lorde Mathis Rowan, mais corpulento e florido que nunca, com a árvore dourada da sua Casa desenhada no gibão branco. Abaixo dele encontrava-se a Senhora Oakheart, minúscula e delicada, e à sua esquerda Lorde Randyll Tarly, de Monte Chifre, com a espada longa, Veneno do Coração, apoiada no encosto da cadeira. Outros ela conhecia apenas pelos símbolos, e alguns lhe eram quase estranhos. No meio, observando e rindo com sua jovem rainha ao lado, estava um fantasma com uma coroa dourada. Não é de admirar que os senhores se reúnam em volta dele com tanto fervor, pensou, ele é Robert redivivo. Renly era bonito como Robert havia sido; de membros longos e ombros largos, com o mesmo cabelo negro como carvão, fino e liso, os mesmos profundos olhos azuis e o mesmo sorriso fácil. O estreito aro que envolvia sua testa parecia lhe ficar bem. Era de ouro maciço, um anel de rosas magnificamente trabalhadas; na parte da frente erguia-se uma cabeça de veado em jade verde-escuro, adornada com olhos e chifres dourados. O veado coroado também decorava a túnica de veludo do rei, bordado em fios de ouro no peito; o símbolo Baratheon nas cores de Jardim de Cima. A moça que dividia o cadeirão com ele também era de Jardim de Cima, sua jovem rainha, Margaery, filha de Lorde Mace Tyrell. Catelyn sabia que aquele casamento era a argamassa que mantinha unida a grande aliança do sul. Renly tinha vinte e um anos, e a moça não era mais velha do que Robb, muito bonita, com suaves olhos de corça e uma crina de cabelo castanho encaracolado que caía sobre seus ombros em largos anéis. Seu sorriso era tímido e doce. No campo, outro homem foi derrubado pelo cavaleiro do manto de arco-íris listrado, e o rei gritou de satisfação, como todos os outros ."Loras!", Catelyn o ouviu chamar. "Loras! Jardim de Cima!" A rainha bateu palmas de excitação. Catelyn virou-se para ver o fim da luta. Só restavam agora quatro homens, e havia poucas dúvidas quanto a quem era o favorito do rei e dos plebeus. Não conhecera Sor Loras Tyrell, mas, mesmo no longínquo norte, ouviam-se histórias sobre a maestria do jovem Cavaleiro das Flores, que agora montava um garanhão branco e alto revestido de cota de malha prateada e lutava com um machado de cabo longo. Uma crista de rosas douradas corria pelo meio do seu elmo. Dois dos outros sobreviventes tinham se alinhado. Esporearam as montarias na direção do cavaleiro da armadura de cobalto. Enquanto se aproximavam de ambos os lados, o cavaleiro azul 223 puxou as rédeas com força, atingindo um homem em cheio no rosto com seu escudo rachado, enquanto seu cavalo negro de batalha escoiceava o outro com um casco calçado de aço. Num piscar de olhos, um combatente foi derrubado do cavalo e o outro ficou cambaleando no seu. O cavaleiro azul deixou seu escudo partido cair no chão para liberar o braço esquerdo, e, então, o Cavaleiro das Flores caiu sobre ele. O peso do aço que usava parecia quase não diminuir a graça e a rapidez com que Sor Loras se movia, com o manto de arco-íris rodopiando atrás de si. Os cavalos branco e negro giraram como amantes numa dança das colheitas, com os cavaleiros atirando aço um ao outro em vez de beijos. O machado longo cintilou, e a maça de guerra rodopiou. Ambas as armas estavam embotadas, mas, mesmo assim, causavam um terrível estrondo. Sem escudo, o cavaleiro azul estava ficando com a pior parte. Sor Loras fazia chover golpes sobre sua cabeça e seus ombros, aos gritos de "Jardim de Cima!" vindos da multidão. O outro respondia com a maça, mas, onde quer que a bola chegasse, Sor Loras interpunha seu escudo verde entalhado, adornado com três rosas douradas. Quando o machado atingiu a mão do cavaleiro azul na preparação de um golpe e arrancou dele a maça de armas, a multidão berrou como um animal no cio. O Cavaleiro das Flores ergueu o machado para o golpe final. O cavaleiro azul lançou-se sobre ele. Os garanhões esbarraram um no outro, a cabeça embotada do machado esmagou-se contra a placa de peito azul arranhada... Mas, de algum modo, o cavaleiro azul conseguiu agarrar o cabo com dedos enluvados em aço. Arrancou-o das mãos de Sor Loras, e de repente os dois estavam lutando sem armas em cima das montarias e um instante depois caíam. Quando os cavalos se afastaram, estatelaram-se no chão com uma força de sacudir os ossos. Loras Tyrell, que ficou por baixo, sofreu com o maior peso do impacto. O cavaleiro azul desembainhou uma longa adaga e abriu o visor de Tyrell. O bramido da multidão era alto demais para Catelyn ouvir o que Sor Loras dissera, mas ela pôde ver a palavra nos seus lábios rachados e ensangüentados: Rendo-me, O cavaleiro azul ficou em pé, meio cambaleante, e levantou a adaga na direção de Renly Baratheon, a saudação de um campeão ao seu rei. Escudeiros entraram como flechas no campo a fim de ajudar o cavaleiro vencido a erguer-se, Quando tiraram seu elmo, Catelyn ficou surpresa ao ver como ele era novo. Não podia ser dois anos mais velho do que Robb, O rapaz podia ser tão agradável à vista como a irmã, mas o lábio rachado, os olhos desfocados e o sangue pingando através do cabelo emaranhado dificultavam a certeza de tal conclusão. - Aproxime-se - disse o Rei Renly ao campeão. Este coxeou na direção da galeria. De perto, a brilhante armadura azul parecia bem menos magnífica; mostrava marcas por todo lado, os amassados de maças e martelos de guerra, as longas ranhuras deixadas por espadas, lascas no esmalte da placa de peito e do elmo. O manto se pendurava em farrapos. Julgando pela maneira como se movia, o homem lá dentro não estava menos desgastado. Algumas vozes saudavam-no com gritos de "Tarth!" e, estranhamente, "Uma Beleza! Uma Beleza!", mas a maior parte da assistência estava em silêncio, O cavaleiro azul ajoelhou perante o rei. - Graça - disse, com a voz abafada pelo elmo amassado. - És tudo o que o senhor seu pai afirmou que seria - a voz de Renly atravessava o campo. - Vi Sor Loras ser derrubado uma vez ou duas, mas nunca propriamente dessa forma. - Aquilo não foi uma derrubada correta - queixou-se um arqueiro bêbado que estava por perto, com uma rosa Tyrell costurada no justilho. - Um truque vil, isso de puxar o homem para baixo.
A aglomeração começava a se tornar menos compacta. 224 - Sor Colen - disse Catelyn ao seu acompanhante quem é aquele homem e por que gostam tão pouco dele? Sor Colen franziu a testa: - Porque não é homem nenhum, senhora. Aquela é Brienne de Tarth, filha de Lorde Selwyn, a Estrela da Tarde. - Filha? - Catelyn ficou horrorizada. - Chamam-na Brienne, a Beleza... embora não na frente dela, com receio de serem chamados a defender essas palavras com os corpos. Catelyn ouviu Rei Renly declarar a Senhora Brienne de Tarth a vencedora da grande luta em Ponteamarga, a última a permanecer montada entre cento e dezesseis cavaleiros, - Como campeã, pode me pedir qualquer favor que desejar. Se estiver ao meu alcance concedê-lo, o farei certamente. - Vossa Graça - Brienne respondeu - , peço a honra de um lugar na sua Guarda Arco-íris. Desejo ser um dos seus sete, dedicar minha vida à sua, ir aonde for, cavalgar ao seu lado e mantê-lo a salvo de todo o mal. - Concedido - o rei respondeu. - Erga-se e tire o elmo. Ela fez o que lhe foi pedido, E quando o elmo foi erguido, Catelyn compreendeu as palavras de Sor Colen. Chamavam-na de Beleza... mas caçoavam. O cabelo sob o visor era um ninho de esquilo de palha suja, e o rosto... os olhos de Brienne eram grandes e muito azuis, olhos de menininha, confiantes e sem malícia, mas o resto... seus traços eram brutos e grosseiros, os dentes, proeminentes e tortos, a boca grande demais, os lábios tão grossos que pareciam inchados. Um milhar de sardas salpicava suas bochechas e sua testa, e o nariz tinha sido quebrado mais do que uma vez. O coração de Catelyn encheu-se de piedade. Existe na terra alguma criatura mais infeliz do que uma mulher feia? E, no entanto, quando Renly arrancou seu manto rasgado e prendeu um manto arco-íris no seu lugar, Brienne de Tarth não parecia infeliz. O sorriso iluminou seu rosto, e sua voz soou forte e orgulhosa: - Minha vida pela sua, Vossa Graça. Deste dia em diante, sou o seu escudo, juro pelos velhos deuses e pelos novos. Era doloroso ver a maneira como olhava o rei... como o olhava para baixo, pois era um bom palmo mais alta, embora Renly fosse quase tão alto como o irmão tinha sido. - Vossa Graça! - Sor Colen de Lagoas Verdes saltou do cavalo para se dirigir à galeria. - Peço-lhe licença - ajoelhou-se. - Tenho a honra de lhe trazer a Senhora Catelyn Stark, viajando como enviada do seu filho Robb, Senhor de Winterfell. - Senhor de Winterfell e Rei do Norte, sor - Catelyn o corrigiu. Desmontou e pôs-se ao seu lado. Rei Renly pareceu surpreso. - Senhora Catelyn? Estamos muito contentes - virou-se para sua jovem rainha: - Margaery, minha querida, esta é a Senhora Catelyn Stark, de Winterfell. - E muito bem-vinda aqui, Senhora Stark - disse a moça, toda ela suave cortesia. – Lamento a sua perda. - E amável - Catelyn agradeceu. - Senhora, juro-lhe, tratarei de que os Lannister respondam pelo assassinato do seu marido - o rei declarou. - Quando tomar Porto Real, mandarei à senhora a cabeça de Cersei. 225 E será que isso me trará Ned de volta?, Catelyn pensou, - Será suficiente saber que a justiça foi feita, senhor. - Vossa Graça - corrigiu Brienne, a Azul, num tom ríspido. - Devia se ajoelhar ao se dirigir ao rei - ela falou olhando para Catelyn. - A distância entre um senhor e um graça é pequena, senhora - Catelyn respondeu. – Lorde Renly usa uma coroa, tal como meu filho. Se desejar, poderemos ficar aqui, na lama, debatendo que honrarias e títulos são por direito devidos a cada um, mas parece-me que temos assuntos mais prementes a discutir. Alguns dos senhores de Renly irritaram-se com aquilo, mas o rei limitou-se a rir. - Bem-dito, minha senhora. Haverá tempo suficiente para graças quando estas guerras chegarem ao fim. Diga-me, quando seu filho pretende marchar sobre Harrenhal? Até saber se este rei era amigo ou inimigo, Catelyn não revelaria a menor parte das intenções de Robb. - Não participo dos conselhos de guerra do meu filho, senhor. - Desde que deixe alguns Lannister para mim, não me queixarei. O que ele fez ao Regicida? - Jaime Lannister é mantido prisioneiro em Correrrio. - Ainda vivo? - Lorde Mathis Rowan parecia consternado. Assombrado, Renly disse: - Ao que parece, o lobo gigante é mais brando do que o leão.
- Ser mais brando do que os Lannister - murmurou a Senhora Oakheart, com um sorriso amargo - é ser mais seco do que o mar. - A mim, parece que é ser fraco - disse Lorde Randyll Tarly, que tinha uma barba curta, eriçada e cinzenta, e a reputação de não ter papas na língua. - Sem desrespeito para com a senhora, Senhora Stark, mas pareceria mais conveniente que Lorde Robb tivesse vindo em pessoa prestar homenagem ao rei, em vez de se esconder atrás das saias da mãe. - O Rei Robb está fazendo a guerra, senhor - Catelyn respondeu com gélida cortesia - , não brincando em torneios. Renly deu um sorriso. - Vá devagar, Lorde Randyll, pois temo que será vencido - o rei chamou um intendente com a farda de Ponta Tempestade. - Encontre lugar para os companheiros da senhora e assegure-se de que tenham todo o conforto. A Senhora Catelyn ficará com o meu próprio pavilhão. Não me faz falta, uma vez que Lorde Caswell teve a gentileza de me oferecer o seu castelo. Senhora, depois que estiver descansada, ficarei honrado se partilhar a nossa comida e bebida no banquete que Lorde Caswell vai nos dar hoje à noite. Um banquete de despedida. Temo que sua senhoria esteja ansiosa por ver minha faminta horda pelas costas. - Não é verdade, Vossa Graça - protestou um homem novo e delgado, que devia ser Caswell. - O que é meu pertence ao senhor. - Sempre que alguém disse isso ao meu irmão Robert, ele acreditou, palavra por palavra – o rei respondeu. - Tem filhas? - Sim, Vossa Graça. Duas. - Então, agradeça aos deuses por eu não ser Robert. Minha futura rainha é a única mulher que desejo - Renly estendeu a mão para ajudar Margaery a se levantar. - Voltaremos a falar depois de ter a possibilidade de se refrescar, Senhora Catelyn. Renly levou a noiva de volta ao castelo, enquanto seu intendente conduzia Catelyn para o pavilhão de seda verde do rei. 226 - Se tiver necessidade de algo, só precisa pedir, senhora. Catelyn quase não conseguia imaginar o que poderia necessitar que já não tivesse sido providenciado. O pavilhão era maior do que as salas comuns de muitas estalagens e estava provido de todos os confortos: um colchão de penas e peles para dormir, uma banheira de madeira e cobre com tamanho suficiente para duas pessoas, braseiros para manter afastado o frio da noite, cadeiras de acampamento em couro, uma mesa de escrever com penas e um frasco de tinta, tigelas ie pêssegos, ameixas e peras, um jarro de vinho com um conjunto de taças de prata condizente, arcas de cedro cheias com a roupa de Renly, livros, mapas, tabuleiros de jogo, uma harpa, um erande arco e uma aljava de flechas, um par de falcões de caça de cauda vermelha, um verdadeiro depósito de armas de boa qualidade. Este Renly não se põe limites, ela pensou enquanto olhava em volta. Não é à toa que sua tropa se desloque tão devagar. Ao lado da entrada, a armadura do rei mantinha-se de sentinela; uma armadura de aço verde-bandeira, as presilhas entalhadas em ouro, e o elmo coroado por uma grande armação dourada. O aço estava de tal modo polido, que podia ver seu reflexo na placa de peito, olhando-a como que do fundo de uma profunda lagoa verde. O rosto de uma mulher afogada, Catelyn pensou, Podemos •:os afogar em pesar? Virou-se bruscamente, zangada com sua fragilidade. Não tinha tempo para o luxo da autopiedade. Tinha de lavar o cabelo da poeira e envergar um vestido mais adequado a um banquete real. Sor Wendel Manderly, Lucas Blackwood, Sor Perwyn Frey e o resto dos seus companheiros nobres acompanharam-na ao castelo. O grande salão da fortaleza de Lorde Caswell era grande apenas por cortesia, mas encontrou-se espaço nos bancos apinhados para os homens de Catelyn, entre os cavaleiros de Renly. A Catelyn foi atribuído um lugar no estrado entre a cara vermelha de Lorde Mathis Rowan e a simpatia de Sor Jon Fossoway, dos Fossoway da maçã verde. Sor Jon fez gracinhas, enquanto Lorde Mathis inquiriu delicadamente a respeito da saúde do seu pai, irmão e filhos. Brienne de Tarth tinha sido colocada na ponta mais distante da mesa principal. Não se vestia como uma senhora; em vez disso, escolhera os adornos de um cavaleiro, um gibão de veludo esquartelado de rosa e azul, calções e botas e um cinto de espada bem trabalhado, com seu novo manto arco-íris fluindo pelas costas. Mas nenhum traje podia disfarçar sua falta de atrativos; as enormes mãos sardentas, o rosto largo e achatado, a saliência dos seus dentes. Sem armadura, seu corpo parecia desajeitado, com quadris largos e membros grossos, ombros curvados e musculosos, mas sem seios que valessem a pena mencionar. E era claro por tudo o que fazia que Brienne sabia e sofria com isso. Falava apenas em resposta a alguém e raramente levantava os olhos da comida. Comida havia, sim, com fartura. A guerra não tocara a fabulosa fartura de Jardim de Cima. Enquanto cantores cantavam e acrobatas faziam acrobacias, começaram por pêssegos embebidos em vinho e passaram a minúsculos e saborosos peixes passados no sal e assados até ficarem crocantes e capões recheados com cebolas e cogumelos. Havia grandes pães marrons, montes de nabos, milho doce e ervilhas, imensos presuntos, gansos assados e tabuleiros abarrotados de veado guisado com cerveja e cevada. Para a sobremesa, os criados de Lorde Caswell trouxeram bandejas de doces das cozinhas do seu castelo, cisnes de creme e unicórnios de algodão doce, bolos de limão em forma de rosas, biscoitos de mel com especiarias, tortas de amoras silvestres e de maçã e queijos amanteigados. A comida rica deixou Catelyn enjoada, mas não seria bom mostrar fragilidade quando tantas coisas dependiam da sua força. Comeu frugalmente, enquanto observava aquele homem que queria ser rei. Renly tinha a jovem noiva sentada à sua esquerda e o irmão dela à direita. 227 Fora a atadura de linho branco que usava em volta da cabeça, Sor Loras não parecia ter sofrido nada com as desventuras do dia. Era de fato tão bonito como Catelyn suspeitara que poderia ser. Quando não estavam vidrados, seus olhos eram vivos e inteligentes, e o cabelo, um despretensioso emaranhado de caracóis castanhos que muitas donzelas teriam invejado. Tinha trocado o esfarrapado manto do torneio por um novo; a mesma seda brilhantemente listrada da Guarda Arco-íris de Renly, presa com a rosa dourada de Jardim de Cima. De tempos em tempos, Rei Renly dava de comer a Margaery algum pedaço especial, com a ponta da adaga, ou se inclinava para colocar o mais leve dos beijos no seu rosto, mas era com Sor Loras que dividia a maior parte dos gracejos e confidencias. O rei apreciava sua comida e bebida, era evidente, mas não parecia glutão nem bêbado. Ria com freqüência e bastante e falava amigavelmente, quer aos senhores nobres, quer às humildes moças de servir. Alguns dos seus convidados eram menos moderados. Bebiam demais e gabavam-se alto demais para o gosto de Catelyn. Os filhos de Lorde Willum, Josua e Elyas, discutiram calorosamente quem seria o primeiro a ultrapassar as muralhas de Porto Real. Lorde Varner embalou uma criada nos joelhos, enterrando o nariz no seu pescoço enquanto uma mão exploratória invadia o interior do seu corpete. Guyard, o Verde, que se achava cantor, dedilhou uma harpa e mostrou-lhes uns versos acerca de dar nós em caudas de leões, alguns dos quais até rimavam. Sor Mark Mullendore havia trazido um macaco preto e branco e o alimentava com pedaços do seu próprio prato, enquanto Sor Tanton, dos Fossoway da maçã vermelha, saltou para cima da mesa e jurou matar Sandor Clegane em combate singular. O voto poderia ter sido recebido com mais solenidade se Sor Tanton não tivesse enfiado um pé numa molheira enquanto o proferia. O ápice da tolice foi atingido quando um bobo rechonchudo chegou às cambalhotas, revestido de lata pintada de dourado com uma cabeça de leão de pano, e perseguiu um anão ao redor das mesas, batendo na sua cabeça com uma bexiga. Por fim, Rei Renly quis saber por que ele estava batendo no irmão. - Ora, Vossa Graça, sou o Fratricida - o bobo respondeu. - É Regicida, bobo pateta - Renly o corrigiu, e o salão ressoou com gargalhadas. Lorde Rowan, ao lado de Catelyn, não se juntou à folia: - São todos tão novos - ele disse. Era verdade. O Cavaleiro das Flores não devia ter chegado ao segundo dia do seu nome quando Robert matara o Príncipe Rhaegar no Tridente. Poucos dos outros eram muito mais velhos. Eram bebês durante o Saque de Porto Real e não passavam de garotos quando Balon Greyjoy tinha levantado a rebelião nas Ilhas de Ferro. Ainda não derramaram sangue, Catelyn refletiu, enquanto observava Lorde Bryce, que incitava Sor Robar a fazer malabarismo com um par de adagas. Para eles isso ainda é um jogo, um torneio com um grande cenário, e tudo o que veem é uma possibilidade de glória, honra e despojos. São rapazes bêbados de canções e histórias e, como todos os rapazes, julgam-se imortais, - A guerra vai torná-los velhos - Catelyn respondeu. - Como nos tornou - ela era uma garota quando Robert, Ned e Jon Arryn ergueram os estandartes contra Aerys Targaryen e uma mulher quando a luta terminou. - Sinto pena deles. - Por quê? - perguntou-lhe Lorde Rowan. - Olhe para eles. São jovens e fortes, cheios de vida e de risos. E de luxúria, sim, tanta, que não sabem o que fazer dela. Muitos bastardos serão gerados hoje, garanto. Pena por quê? - Porque não durará - Catelyn disse com tristeza. - Porque eles são os cavaleiros do verão, e o inverno está chegando. 17 - Senhora Catelyn, está enganada - Brienne olhava-a com uns olhos tão azuis como sua armadura. - O inverno nunca chegará para gente como nós. Se morrermos em batalha, certamente cantarão sobre nós, e nas canções é sempre verão. Nas canções, todos os cavaleiros são galantes, todas as donzelas são belas, e o sol sempre brilha. O inverno chega para todos nós, Catelyn ponderou. Para mim, chegou quando Ned morreu. Chegará para você também, filha, e mais cedo do que gostaria, Mas não teve coragem de verbalizar seu pensamento. O rei a salvou. - Senhora Catelyn - Renly chamou. - Sinto que preciso tomar um pouco de ar. Vem comigo? Catelyn ficou imediatamente em pé.
- Ficarei honrada. Brienne também se levantou. - Vossa Graça, dê-me apenas um momento para vestir a cota de malha. Não deve andar sem proteção. Rei Renly sorriu. - Se não estiver a salvo no coração do castelo de Lorde Caswell, com minha tropa ao meu redor, uma espada não fará diferença... Nem mesmo a sua espada, Brienne, Sente-se e coma. Se tiver necessidade, mandarei chamá-la. As palavras dele pareceram atingir a moça com mais força do que qualquer golpe que tivesse recebido naquela tarde. - Às suas ordens, Vossa Graça - Brienne sentou-se, com os olhos baixos. Renly tomou o braço de Catelyn e saiu do salão, passando por um guarda desleixado que se endireitou tão apressadamente que quase deixou cair a lança. Renly deu uma palmada no ombro do homem e fez um gracejo com a situação. - Por aqui, senhora - ele a levou por uma porta baixa em direção a uma escada da torre. Ao começarem a subir, disse: - Por acaso Sor Barristan Selmy está com seu filho em Correrrio? - Não - ela respondeu, confusa. - Ele não está mais com Joffrey? Era o Senhor Comandante da Guarda Real. Renly sacudiu a cabeça: - Os Lannister disseram-lhe que era velho demais e deram seu manto ao Cão de Caça. Disseram-me que abandonou Porto Real, jurando entrar para o serviço do verdadeiro rei. Aquele manto que Brienne reclamou hoje era o que eu estava guardando para Selmy, na esperança de que ele me oferecesse sua espada. Quando não apareceu em Jardim de Cima, pensei que talvez tivesse ido para Correrrio. - Nós não o vimos. - Ele era velho, é certo, mas ainda um bom homem. Espero que não lhe tenha acontecido nenhum mal. Os Lannister são grandes idiotas - subiram mais alguns degraus. - Na noite da morte de Robert, ofereci ao seu esposo cem espadas e incentivei-o a colocar Joffrey em seu poder. Se tivesse escutado, seria hoje regente, e eu não teria tido necessidade de reclamar o trono. - Ned recusou - Catelyn não precisava que aquilo lhe fosse dito. - Tinha jurado proteger os filhos de Robert - Renly continuou. - Faltava-me força para agir sozinho e por isso, quando Lorde Eddard me repeliu, não tive escolha e fugi. Se tivesse ficado, sabia que a rainha trataria de que não vivesse muito tempo mais do que meu irmão. Se tivesse ficado e dado seu apoio a Ned, ele podia ainda estar vivo, Catelyn pensou amargamente. 229 - Gostava bastante do seu esposo, senhora. Era um amigo leal de Robert, eu sei... Mas não quis me escutar, nem se dobrar. Venha, quero lhe mostrar algo. Tinham atingido o topo da escadaria. Renly abriu uma porta de madeira e saíram para o telhado. A fortaleza de Lorde Caswell quase não era suficientemente alta para ser chamada de torre, mas a região era baixa e plana, e Catelyn podia ver ao longo de léguas em todas as direções. Para onde quer que olhasse, via fogueiras. Cobriam a terra como estrelas caídas e, como as estrelas, não tinham fim, - Conte-as se quiser, senhora - disse Renly em voz baixa. - Ainda estará contando quando a alvorada surgir a leste. Quantas fogueiras ardem esta noite em volta de Correrrio, eu pergunto? Catelyn ouvia tenuemente a música que saía do Grande Salão, infiltrando-se na noite. Não se atreveu a contar as estrelas. - Disseram-me que seu filho atravessou o Gargalo à frente de vinte mil espadas – prosseguiu Renly. - Agora que os senhores do Tridente estão com ele, talvez comande quarenta mil. Não, ela pensou, nem perto disso, perdemos homens em batalha e outros para as colheitas. - Eu tenho aqui o dobro desse número - Renly continuou. - E isso é apenas parte das minhas forças. Mace Tyrell permanece em Jardim de Cima com mais dez mil homens, tenho uma forte guarnição protegendo Ponta Tempestade, e em breve os homens de Dorne vão se juntar a mim com todo seu poder. E não se esqueça do meu irmão Stannis, que defende Pedra do Dragão e comanda os senhores do mar estreito. - Parece-me que é o senhor quem esqueceu Stannis - Catelyn retrucou, num tom mais duro do que pretendera. - Refere-se à sua pretensão? - Renly soltou uma gargalhada. - Sejamos sinceros, senhora. Stannis daria um rei terrível. E não é provável que chegue a tal. Os homens respeitam Stannis, até o temem, mas os que chegaram a gostar dele eram poucos, e por isso, preciosos. - Ê ainda assim seu irmão mais velho. Se se pode dizer que algum de vocês tem direito ao Trono de Ferro, tem de ser Lorde Stannis. Renly encolheu os ombros. - Diga-me, que direito teve alguma vez meu irmão Robert ao Trono de Ferro? - ele não esperou resposta. - Ah, falou-se em laços de sangue entre os Baratheon e os Targaryen, de casamentos de cem anos atrás, de segundos filhos e filhas mais velhos. Ninguém se interessa por nada disso, a não ser os meistres. Robert conquistou o trono com seu martelo de guerra - indicou com uma mão as fogueiras que ardiam de horizonte a horizonte. - Pois bem, eis a minha pretensão, tão boa como a de Robert sempre foi. Se seu filho me apoiar como o pai dele apoiou Robert, não me achará desprovido de generosidade. Vou confirmá-lo de bom grado em todas as suas terras, títulos e honrarias. Pode governar em Winterfell como bem entender. Até pode continuar a se chamar de Rei do Norte se quiser, desde que dobre o joelho e me preste homenagem como seu suserano. Rei é apenas uma palavra, mas fidelidade, lealdade, serviço... essas coisas tenho de ter. - E se não as der, senhor? - Pretendo ser rei, senhora, e não de um reino amputado. Não posso dizê-lo mais claramente do que isso. Há trezentos anos, um rei Stark ajoelhou-se perante Aegon, o Dragão, quando viu que não tinha esperança de vencer. Foi sensato. Seu filho deve ser sensato também. Uma vez que se juntar a mim, esta guerra estará praticamente acabada. Nós... - Renly calou-se de súbito, distraído. - Que está acontecendo agora? O retinir de correntes anunciava o içar da porta levadiça. Lá embaixo, no pátio, um cavaleiro com um elmo alado esporeou o cavalo coberto de espuma para passar por baixo dos espigões. 230 - Chamem o rei! - gritou. Renly saltou para cima de uma seteira. - Estou aqui, sor. - Vossa Graça - o cavaleiro esporeou mais a montaria para que se aproximasse. – Vim tão depressa como pude. De Ponta Tempestade. Estamos cercados, Vossa Graça. Sor Cortnay enfrenta-os, mas... - Mas... Isso não é possível. Eu teria sido informado se Lorde Tywin tivesse deixado Harrenhal. - Estes não são Lannister, meu suserano. E Lorde Stannis quem está nos seus portões. O Rei Stannis, como chama agora a si mesmo. 231 jon Um sopro de chuva chicoteou o rosto de Jon quando esporeou o cavalo para atravessar o córrego em cheia. Ao seu lado, o Senhor Comandante Mormont deu um puxão no capuz do seu manto, resmungando pragas contra o tempo. Seu corvo empoleirava-se no seu ombro, com as penas eriçadas, tão empapado e rabugento como o próprio Velho Urso. Uma rajada de vento fez folhas molhadas voarem em volta deles como um bando de aves mortas. A floresta assombrada, Jon refletiu lugubremente. A floresta afogada seria um nome mais apropriado. Esperava que Sam estivesse agüentando lá no fim da coluna. Não era um bom cavaleiro mesmo com tempo firme, e seis dias de chuva tinham tornado o terreno traiçoeiro, todo transformado em lama mole e pedras escondidas. Quando o vento soprava, arremessava água diretamente nos olhos. A Muralha devia estar escorrendo para o sul, com o gelo que derretia misturado com a chuva morna, fluindo em rios e riachos. Pyp e Sapo estariam sentados junto ao fogo na sala comum, bebendo taças de vinho condimentado antes do jantar. Jon invejava-os. A lã molhada aderia à sua pele ensopada, provocando-lhe coceira, o pescoço e ombros doíam fortemente devido ao peso da cota de malha e da espada, e estava farto de bacalhau salgado, carne salgada e queijo duro. Adiante, um berrante soltou uma nota trêmula, meio afogada pelo bater constante da chuva. - O berrante de Buckwell - anunciou o Velho Urso. - Os deuses são bons; Craster ainda está ali - o corvo bateu as asas uma vez, crocitou"Milho" e voltou a eriçar as penas. Jon ouvira freqüentemente os irmãos negros contarem histórias sobre Craster e sua fortaleza. Agora, iria vê-la com seus próprios olhos. Depois de sete aldeias vazias, tinham todos começado a temer encontrar a de Craster tão morta e desolada como as outras, mas parecia que seriam poupados disso. O Velho Urso, enfim, talvez consiga algumas respostas, ele pensou. Seja como for, estaremos abrigados da chuva. Thoren Smallwood jurava que Craster era amigo da Patrulha, apesar da sua reputação indecente. - O homem é meio louco, não nego - tinha dito ao Velho Urso - , mas o senhor também seria se passasse a vida nesta floresta amaldiçoada. Seja como for, nunca afastou um patrulheiro da sua fogueira e não tem amizade por Mance Rayder. Ele vai nos dar bons conselhos. Desde que nos dê uma refeição quente e uma oportunidade de secar a roupa, ficarei feliz. Dywen dizia que Craster era um fratricida, mentiroso, estuprador e covarde, e sugeria que traficava com comerciantes de escravos e com demônios. - E, pior - acrescentava o velho guarda da floresta, batendo os seus dentes de madeira - , aquele homem tem um cheiro frio, ah, se tem. 232 - Jon - ordenou Lorde Mormont percorra a coluna e espalhe a notícia. E lembre aos oficiais que não quero caso com as mulheres de Craster. Os homens deverão ter tento nas mãos e falar o mínimo possível com aquelas mulheres.
- Sim, senhor - Jon virou o cavalo e seguiu por onde tinha vindo. Era agradável deixar de ter a chuva na cara, mesmo que por pouco tempo. Todos aqueles por que passava pareciam estar chorando. A fila estendia-se ao longo de meia milha de floresta. No meio da caravana com a bagagem, Jon passou por Samwell Tarly, afundado na sela sob um grande chapéu mole. Montava um cavalo de carga e levava os outros pelas correias. O tamborilar da chuva nas coberturas das gaiolas fazia os corvos crocitarem e baterem as asas. - Pôs uma raposa lá dentro com eles? Escorreu água da aba do chapéu de Sam quando ele ergueu a cabeça. - Ah, olá, Jon. Não, eles só detestam a chuva, assim como nós. - Como é que você está, Sam? - Molhado - o rapaz gordo conseguiu dar um sorriso. - Mas nada me matou ainda. - Ótimo. A Fortaleza de Craster fica logo ali na frente. Se os deuses forem bons, ele vai nos deixar dormir junto à sua lareira. Sam fez uma expressão de dúvida. - Edd Doloroso diz que Craster é um terrível selvagem. Casa com as filhas e não obedece a lei nenhuma além das suas. E Dywen disse a Grenn que ele tinha sangue negro nas veias. A mãe dele era uma selvagem que dormiu com um patrulheiro, e, portanto, ele é um bas... - de repente, o rapaz percebeu o que estava prestes a dizer. - Um bastardo - Jon completou, com uma gargalhada. - Pode falar, Sam. Já tinha ouvido a palavra - esporeou seu pequeno garrano de patas seguras. - Tenho de ir atrás de Sor Ottyn. Tenha cuidado perto das mulheres de Craster - como se Samwell Tarly precisasse ser avisado disso. - Conversamos mais tarde, depois de termos montado o acampamento. Jon levou a notícia a Sor Ottyn Wythers, que avançava penosamente com a retaguarda. Homem pequeno, com cara de ameixa seca e a mesma idade de Mormont, Sor Ottyn parecia sempre cansado, mesmo em Castelo Negro, e a chuva o derrubara sem misericórdia. - Notícias bem-vindas - o velho disse. - Esta umidade empapou meus ossos e até minhas dores de sela queixam-se de dores de sela. No caminho de volta, Jon afastou-se da linha de marcha da coluna e seguiu por um caminho mais curto através da floresta densa. Os sons de homens e cavalos diminuíram, engolidos pela úmida natureza verde, e em pouco tempo tudo o que ouvia era o contínuo bater da chuva contra folhas, madeira e rochas. Era o meio da tarde, mas a floresta parecia tão escura como se fosse o anoitecer. Jon abriu caminho por entre rochedos e poças dagua, passando por grandes carvalhos, árvores-sentinela cinza-esverdeadas e árvores de pau-ferro de casca negra. Em certos lugares, os ramos teciam uma abóbada por cima dele e era-lhe dado um momento de alívio do tamborilar da chuva na sua cabeça. Ao passar por um castanheiro abatido por um relâmpago e coberto de rosas selvagens brancas, ouviu qualquer coisa restolhando na vegetação rasteira. - Fantasma - chamou. - Fantasma, vem. Mas foi Dywen quem emergiu do verde, trazendo pela trela um garrano cinza felpudo, com Grenn montado a seu lado. O Velho Urso dispusera batedores de ambos os lados da coluna principal, a fim de ocultar sua marcha e preveni-los da aproximação de algum inimigo, e mesmo nisso não correra riscos, enviando os homens aos pares. 233 - Ah, é você, Lorde Snow - Dywen sorriu um sorriso de carvalho; seus dentes tinham sido esculpidos em madeira e estavam mal assentados na sua boca, - Pensei que eu e o rapaz teríamos que lidar com um daqueles Outros. Perdeu o lobo? - Saiu para caçar - Fantasma não gostava de viajar com a coluna, mas não devia estar longe. Quando montassem o acampamento para a noite, encontraria o caminho de volta para junto de Jon na tenda do Senhor Comandante. - Nesta umidade, eu chamo isso de pescar - Dywen respondeu. - Minha mãe sempre disse que a chuva era boa para fazer crescer a safra - interveio Grenn com otimismo. - Sim, uma boa safra de bolor - Dywen rebateu. - A melhor coisa de uma chuva como essa é que livra um homem de tomar banho - completou, e fez um estalido com seus dentes de madeira. - Buckwell encontrou Craster - Jon lhes disse. - Tinha-o perdido? - Dywen soltou um risinho. - Vocês, seus cabras novos, vejam se não vão farejar em volta das mulheres de Craster, estão ouvindo? Jon sorriu. - Quer ficar com todas para si, Dywen? Dywen fez mais estalidos com os dentes. - Talvez queira. Craster tem dez dedos e um pau, portanto não sabe contar até mais do que onze. Nunca dará falta de um par delas. - Quantas mulheres ele tem realmente? - Grenn quis saber.
- Mais do que você jamais terá, irmão. Bem, não é assim tão difícil quando se faz criação delas. Ali está o seu bicho, Snow. Fantasma trotava ao lado do cavalo de Jon, com a cauda bem erguida e o pelo branco levantado em tufos espessos contra a chuva. Deslocava-se tão silenciosamente que Jon não saberia dizer quando tinha surgido. A montaria de Grenn recuou ao sentir seu cheiro; mesmo agora, após mais de um ano, os cavalos sentiamse desconfortáveis na presença do lobo gigante. - Vem comigo, Fantasma - Jon esporeou o cavalo e dirigiu-se à Fortaleza de Craster. Nunca pensara encontrar um castelo de pedra do outro lado da Muralha, mas tinha imaginado algum tipo de fosso com uma paliçada de troncos e uma torre fortificada de madeira. Em vez disso, o que encontraram foi uma pilha de estrume, uma pocilga, um curral de ovelhas vazio e um edifício de pau a pique, sem janelas, que quase não merecia aquele nome. Era longo e baixo, com uma estrutura de troncos de árvores e teto de colmo. O complexo erguia-se no topo de uma elevação modesta demais para receber o nome de colina, rodeada por um dique de terra. Riachos marrons corriam pela vertente nos lugares onde a chuva tinha aberto buracos escancarados nas defesas e iam se juntar a um arroio rápido que se curvava para o norte, com as grossas águas transformadas pela chuva numa torrente lamacenta. A sudoeste, encontrou um portão aberto flanqueado por um par de crânios de animais enfiados na ponta de grandes mastros: um urso de um lado e um carneiro do outro. Jon notou que pedaços de carne ainda se prendiam ao crânio de urso quando se juntou à fileira de cavaleiros que passava por ele. Lá dentro, os batedores de Jarmen Buckwell e homens da vanguarda de Thoren Smallwood estavam instalando amarradouros para cavalos e lutando para erguer tendas. Um grande grupo de leitões fuçava em volta de três enormes porcas no chiqueiro. Ali perto, uma menina pequena arrancava cenouras de um jardim, nua sob a chuva, enquanto duas mulheres amarravam um porco para a matança. Os guinchos do animal eram agudos e horríveis, 234 quase humanos na sua aflição. Os cães de Chett desataram a latir desenfreadamente em resposta, rosnando e dando mordidas, apesar das pragas do rapaz, com um par de cães de Craster respondendo aos latidos com mais latidos. Quando viram Fantasma, alguns dos cães calaram-se e fugiram, enquanto outros começaram a ladrar-lhe e a rosnar. O lobo gigante ignorou-os, assim como Jon. Bem, trinta de nós ficarão quentes e secos, pensou Jon depois de dar uma boa olhada no edifício. Talvez cinqüenta. O lugar era pequeno demais para abrigar duzentos homens durante a noite, e a maioria teria de permanecer ali fora. Mas onde colocá-los? A chuva havia transformado metade do pátio do complexo em poças onde a água chegava aos tornozelos, e o resto, em lama movediça. Antevia-se outra noite triste. O Senhor Comandante confiou a montaria a Edd Doloroso, que limpava lama dos cascos do cavalo quando Jon desmontou. - Lorde Mormont está no edifício - Edd anunciou. - Disse para você se juntar a ele. É melhor deixar o lobo aqui fora, ele parece suficientemente faminto para comer um dos filhos de Craster. Bem, para falar a verdade, eu estou suficientemente faminto para comer um dos filhos de Craster, desde que o sirvam quente. Vá lá, eu trato do seu cavalo. Se lá dentro estiver quente e seco, não me diga, não fui convidado a entrar - ele arrancou uma bola de lama úmida de uma ferradura. - Esta lama não parece merda? Será que toda esta colina é feita da merda de Craster? Jon sorriu. - Bem, ouvi dizer que ele está aqui há muito tempo. - Não me anima. Vai lá encontrar o Velho Urso. - Fantasma, fica - Jon ordenou. A porta da Fortaleza de Craster era feita de duas abas de pele de veado. Jon enfiou-se entre elas, abaixando-se para passar sob o batente baixo. Duas dúzias dos principais patrulheiros tinham-no precedido e estavam em pé, em volta da fogueira no centro do chão de terra, enquanto poças cresciam em volta das suas botas. O salão fedia a fuligem, esterco e cães molhados. O ar estava pesado de fumaça, mas de algum modo mantinha-se úmido. Entrava chuva pelo buraco para a saída da fumaça que havia no telhado. Era uma sala única, com um sótão para dormir em cima, ao qual se chegava por um par de escadas lascadas. Jon recordou como se sentira no dia em que tinham partido da Muralha, nervoso como uma donzela, mas ansioso por ver os mistérios e maravilhas que se escondiam para lá de cada novo horizonte. Bem, eis uma das maravilhas, disse a si mesmo, olhando em volta do salão esquálido e malcheiroso. A fumaça acre estava fazendo-o lacrimejar. É uma pena que Pyp e Sapo não possam ver tudo o que estão perdendo. Craster estava sentado na frente da fogueira, o único homem a desfrutar de uma cadeira individual. Até o Senhor Comandante Mormont tinha de se sentar no banco comum, com o corvo resmungando sobre seu ombro. Jarman Buckwell estava em pé, atrás dele, com a cota de malha remendada pingando e o couro molhado e brilhante, ao lado de Thoren Smallwood, que usava a placa de peito e o manto debruado de zibelina do falecido Sor Jaremy. O justilho de pele de ovelha e o manto de peles cosidas de Craster contrastavam pobremente, mas em torno de um dos seus grossos pulsos havia uma pulseira pesada que tinha o brilho do ouro. Aparentava ser um homem poderoso, embora já bem avançado no inverno dos seus dias, com a cabeleira cinza tornando-se branca. Um nariz achatado e uma boca descaída davam-lhe um aspecto cruel, e tinha uma orelha a menos. Então isto é um selvagem. Jon lembrou-se das histórias da Velha Ama sobre o povo selvagem que bebia sangue de crânios humanos. Craster 235 parecia estar bebendo uma cerveja diluída e amarela de uma taça de pedra lascada. Talvez não tivesse ouvido as histórias. - Há três anos que não vejo Benjen Stark - estava dizendo a Mormont. - E para falar a verdade, nunca senti falta dele - meia dúzia de cachorros filhotes pretos e um ou dois porcos ocultavam-se por entre os bancos, enquanto mulheres vestidas com esfarrapadas peles de veado distribuíam cornos de cerveja, avivavam o fogo e cortavam cenouras e cebolas para dentro de uma caldeira. - Devia ter passado por aqui no ano passado - disse Thoren Smallwood. Um cão veio farejar sua perna, e ele lhe deu um chute e o botou em fuga, ganindo. Lorde Mormont disse: - Ben andava à procura de Sor Waymar Royce, que tinha desaparecido com Gared e o jovem Will. - Sim, desses três me lembro. O fidalgo não era mais velho do que um destes cachorros. Orgulhoso demais para dormir debaixo do meu teto, aquele, com seu manto de zibelina e aço negro. Ainda assim, minhas mulheres ficaram de olho grande - olhou de soslaio a mais próxima das mulheres. - Gared disse que iam caçar salteadores. Eu lhe disse que com um comandante assim tão verde era melhor que não os pegassem. Gared não era mau para um corvo. Tinha menos orelhas do que eu. O frio as levou, como à minha - Craster soltou uma gargalhada. - Agora dizem que também não tem cabeça. Foi também o frio que fez isso? Jon recordou um esguicho de sangue vermelho na neve branca e o modo como Theon Greyjoy chutara a cabeça do morto. 0 homem era um desertor, No caminho de volta a Winterfell, Jon e Robb tinham apostado uma corrida e encontraram seis filhotes de lobo gigante na neve. Parecia ter sido há mil anos. - Quando Sor Waymar partiu, para onde se dirigiu? Craster encolheu os ombros: - Acontece que tenho mais que fazer do que tratar das idas e vindas dos corvos - bebeu um trago de cerveja e pôs a taça de lado. - Há uma noite de urso que não tenho aqui bom vinho do sul. Faria bom uso de algum vinho e de um machado novo. O meu perdeu o gume, e assim não pode ser, tenho mulheres para proteger - passou os olhos pelas esposas que corriam por todo o lado. - São poucos aqui, e isolados - disse Mormont. - Se desejar, destacarei alguns homens para os escoltarem para sul até a Muralha. O corvo pareceu gostar da idéia. "Muralha", gritou, abrindo as asas negras como se fossem um colarinho elevado atrás da cabeça de Mormont. O anfitrião deu um sorriso desagradável, mostrando uma boca cheia de dentes quebrados e escuros. - E o que é que nós faríamos lá? Serviríamos o seu jantar? Aqui somos gente livre. Craster não serve a ninguém. - Estes tempos são ruins para viver sozinho em zonas selvagens. Os ventos frios se levantam. - Que se levantem. Minhas raízes são bem fundas - Craster agarrou uma mulher que passava pelo pulso. - Conte-lhe, mulher. Conte ao Lorde Corvo como estamos satisfeitos. A mulher passou a língua por lábios finos. - Este é o nosso lugar. Craster nos mantém a salvo. E melhor morrer livre do que viver como um escravo. "Escravo", o corvo resmungou. 236 Mormont inclinou-se para a frente. - Todas as aldeias por que passamos estão abandonadas. São as primeiras almas vivas que vimos desde que deixamos a Muralha. As pessoas desapareceram... Se estão mortas, fugiram ou foram capturadas, não sei dizer. Os animais também, Não sobrou nada. E, antes de partirmos, encontramos os corpos de dois dos patrulheiros de Ben Stark a apenas algumas léguas da Muralha. Estavam brancos e frios, com mãos e pés pretos, e ferimentos que não sangravam. Mas, quando os levamos para o Castelo Negro, ergueram-se na noite e mataram. Um matou Sor Jaremy Rykker, e o outro me atacou, o que me diz que se lembravam de parte do que sabiam em vida, mas não restava neles nenhuma piedade humana. A boca da mulher escancarou-se, uma gruta úmida e cor-de-rosa, mas Craster limitou-se a bufar. - Aqui não tivemos problemas desses... E agradeceria se não contassem histórias malignas como essa debaixo do meu teto. Sou um homem temente aos deuses, e os deuses me mantêm a salvo. Se mortosvivos vierem até mim, saberei como mandá-los de volta para suas sepulturas. Se bem que não me importaria de ter um machado novo e afiado - ele pôs a mulher para correr com uma palmada na perna e um grito: - Mais cerveja, e rápido. - Não houve problemas com os mortos - disse Jarmen Buckwell - , mas e os vivos, senhor? E o seu rei?
"Rei!", gritou o corvo de Mormont."Rei, rei, rei" - Aquele Mance Rayder? - Craster escarrou na fogueira. - Rei-para-lá-da-Muralha. O que os homens livres querem ter a ver com reis? - virou os olhos para Mormont. - Havia muita coisa que podia lhe dizer sobre Rayder e o que ele anda fazendo, se estivesse disposto, Isso das aldeias vazias é trabalho dele. Teria também encontrado este edifício abandonado, se eu fosse homem de fazer reverências a gente assim. Ele mandou um homem a cavalo, disse-me que tinha de largar minha fortaleza para ir rastejando aos pés dele. Mandei o homem embora, mas fiquei com a sua língua. Está ali, pregada na parede - ele apontou. - Pode ser que pudesse lhe dizer onde procurar Mance Rayder. Se estivesse disposto - de novo o sorriso escuro. - Mas teremos tempo suficiente para isso. Talvez queiram dormir debaixo do meu teto e comer meus porcos todos. - Um teto será muito bem-vindo, senhor - disse Mormont. - A viagem foi dura, e úmida demais. - Então serão hóspedes aqui por uma noite. Mais não, que não sou assim tão amigo de corvos. O sótão é para mim e para os meus, mas podem ficar com todo o chão que quiserem. Tenho carne e cerveja para vinte, não mais que isso. O resto de vocês, seus corvos negros, pode bicar seu próprio milho. - Trouxemos nossos abastecimentos, senhor - disse o Velho Urso. - Ficaríamos felizes por partilhar nossa comida e vinho. Craster limpou sua boca caída com as costas de uma mão peluda. - Eu provo do seu vinho, Lorde Corvo, isso faço. Mais uma coisa. Qualquer homem que puser uma mão nas minhas mulheres fica sem ela. - O teto é seu, a lei é sua - disse Thoren Smallwood, e Lorde Mormont anuiu rigidamente, embora não parecesse lá muito contente. - Então está acertado - Cruster concedeu-lhes um grunhido. - Tem algum homem que saiba desenhar um mapa? - Sam Tarly sabe - Jon avançou. - Ele adora mapas. Mormont mandou Jon se aproximar. 237 - Mande-o aqui depois de comer. Diga-lhe para trazer penas e pergaminho. E procure também Tollett, Diga-lhe para trazer meu machado. Um presente de hóspede para nosso anfitrião. - Quem é este aí? - Craster perguntou, antes que Jon pudesse se afastar. - Tem o ar dos Stark. - É o meu intendente e escudeiro, Jon Snow. - Quer dizer então que é um bastardo? - Craster olhou Jon de cima a baixo. - Se um homem quer se deitar com uma mulher, parece que a devia tomar como esposa. E o que eu faço – enxotou Jon com um gesto. - Bom, corre a cuidar do seu serviço, bastardo, e vê se esse machado está bom e afiado, que não tenho serventia para aço cego. Jon Snow fez uma reverência rígida e se retirou. Sor Ottyn Wythers vinha entrando quando ele ia saindo, e quase se chocaram na porta de pele de veado. Lá fora, a chuva parecia ter abrandado. Tinham surgido tendas por todo o complexo. Jon conseguia ver a parte de cima de mais tendas debaixo das árvores. Edd Doloroso estava alimentando os cavalos: - Dar ao selvagem um machado, e por que não? - indicou com um dedo a arma de Mormont, um machado de batalha de cabo curto com arabescos de ouro incrustados na lâmina de aço negro. - Ele vai devolvê-lo, garanto. Provavelmente enfiado no crânio do Velho Urso. Por que não dar todos os nossos machados e as espadas também? Não gosto do modo como matraqueiam e retinem quando cavalgamos. Viajaríamos mais depressa sem eles, direto para a porta do inferno. Pergunto-me se chove no inferno. Talvez Craster queira um bom chapéu em vez do machado. Jon sorriu. - Ele quer um machado. E vinho também. - Vê? O Velho Urso é esperto. Se deixarmos o selvagem bem bêbado, talvez só corte uma orelha quando tentar nos matar com aquele machado. Tenho duas orelhas, mas só uma cabeça. - Smallwood diz que Craster é amigo da Patrulha. - Sabe qual é a diferença entre um selvagem que é amigo da patrulha e um que não é? – perguntou o severo escudeiro. - Nossos inimigos abandonam nossos corpos aos corvos e aos lobos. Nossos amigos nos enterram em sepulturas secretas. Eu me pergunto há quanto tempo aquele urso está pregado naquele portão, e o que Craster tinha ali antes de virmos dizer olá - Edd olhou com uma expressão de dúvida para o machado, com a chuva correndo pela sua longa cara. – Está seco lá dentro? - Mais seco do que aqui fora. - Se me esgueirar por lá depois, sem chegar muito perto do fogo, talvez não prestem atenção em mim até de manhã. Aqueles que ficarem sob o seu teto serão os primeiros que ele matará, mas pelo menos morreremos secos. Jon teve de rir. - Craster é um homem só. Nós somos duzentos. Duvido que ele assassine alguém. - Alegra-me - Edd disse, com um ar completamente taciturno. - E, além disso, há muito a dizer em favor de um bom machado afiado. Detestaria ser assassinado com uma marreta. Vi uma vez um homem atingido na testa por uma. Quase não arranhou a pele, mas a cabeça dele se tornou mole e inchou até ficar do tamanho de uma abóbora, só que com uma cor vermelho-arroxeada. Um homem bem-apessoado, mas morreu feio. Que bom que não estamos lhe dando marretas - Edd afastou-se balançando a cabeça, com o manto negro encharcado jorrando chuva atrás de si. Jon alimentou os cavalos antes de parar para pensar no seu jantar. Estava se perguntando onde poderia encontrar Sam, quando ouviu um grito de medo. 238 - Lobo! - Jon correu na direção do grito, dando a volta no edifício, com a terra prendendo suas botas. Uma das mulheres de Craster estava encostada na parede salpicada de lama da fortaleza. - Fica aí - estava gritando para Fantasma. - Fica aí! - o lobo gigante tinha um coelho na boca e outro morto e ensangüentado no chão à sua frente. - Leve-o para longe, senhor – suplicou a mulher quando viu Jon. - Ele não lhe fará mal - percebeu imediatamente o que tinha acontecido; uma coelheira de madeira, com as ripas despedaçadas, estava a lado de Fantasma na grama molhada, - Deve ter rido fome. Não encontramos muita caça - Jon assobiou. O lobo gigante devorou o coelho, esmagando os pequenos ossos entre os dentes, e caminhou para junto dele. A mulher os mirou com olhos nervosos. Era mais nova do que Jon pensara a princípio. Uma garota de quinze ou dezesseis anos, parecia, com cabelo escuro que a chuva colava a um rosto magro e pés descalços enlameados até os tornozelos. O corpo sob as peles costuradas mostrava os primeiros sinais da gravidez. - E uma das filhas de Craster? - ele perguntou. Ela pôs a mão na barriga. - Agora sou mulher dele - afastando-se com cuidado do lobo, ajoelhou-se com um ar desolado junto à coelheira quebrada. - Ia criar esses coelhos. Já não há ovelhas. - A Patrulha vai pagá-los - Jon não tinha dinheiro seu, mas, se tivesse, teria lhe dado, embora não soubesse bem de que lhe serviriam alguns cobres, ou até uma peça de prata, para lá da Muralha. - Falarei com Lorde Mormont amanhã. Ela limpou as mãos na saia: - Senhor... - Eu não sou senhor nenhum. Mas outros tinham se juntado ao redor, atraídos pelo grito da mulher e pelo esmagamento da coelheira. - Não acredite nele, moça - gritou Lark, o homem das Irmãs, um patrulheiro maldoso como um cão. - Este é Lorde Snow em pessoa. - Bastardo de Winterfell e irmão de reis - zombou Chett, que tinha deixado seus cães para ver o que se passava. - Esse lobo está olhando para você com cara de fome, moça - Lark voltou a falar. - Pode ser que lhe apeteça o pedacinho tenro que tem na barriga. Jon não estava achando graça. - Estão assustando-a. - Acho que estamos mais é lhe avisando - o sorriso de Chett era tão feio como os furúnculos que cobriam a maior parte do seu rosto. - Não devemos falar com vocês - lembrou-se a moça de repente. - Espere - Jon pediu, tarde demais. Ela já tinha se soltado e fugiu. Lark tentou agarrar o segundo coelho, mas Fantasma foi mais rápido. Quando mostrou os dentes, o homem das Irmãs deslizou na lama e caiu sobre o ossudo traseiro. Os outros gargalharam. O lobo gigante abocanhou o coelho e o levou para Jon. - Não havia necessidade de assustar a moça - ele disse aos outros. - Não ouviremos sermões de você, bastardo - Chett culpava Jon pela perda da sua posição confortável com Meistre Aemon, e não sem justiça. Se não tivesse ido falar com Aemon sobre Sam Tarly, Chett ainda estaria cuidando de um velho cego, em vez de uma matilha de cães de caça de mau temperamento. - Pode ser o animal de estimação do Senhor Comandante, mas não 239 é o Senhor Comandante... e não falaria com todo esse maldito descaramento, se não andasse sempre com esse seu monstro por perto. - Não vou lutar com um irmão enquanto estivermos além da Muralha - Jon respondeu, mantendo mais calma na voz do que sentia. Lark ajoelhou-se. - Ele tem medo de você, Chett. Nas Irmãs, temos um nome para gente assim. - Conheço todos os nomes. Poupe seu fôlego. Jon se afastou com Fantasma a seu lado. A chuva tinha se transformado numa garoinha fina quando ele chegou ao portão. O ocaso chegaria em breve, seguido por outra noite úmida, escura e triste. As nuvens esconderiam a lua, as estrelas e o Archote de Mormont, tornando a floresta negra como breu. Qualquer mijadinha seria uma aventura, ainda que não propriamente do tipo que Jon imaginava antigamente.
Sob as árvores, alguns patrulheiros tinham encontrado húmus e galhos secos suficientes para fazer uma fogueira por baixo de uma saliência de ardósia. Outros tinham erguido tendas ou feito abrigos rudimentares, estendendo os mantos sobre ramos baixos. O Gigante tinha se enfiado num buraco de um carvalho morto. - O que acha do meu castelo, Lorde Snow? - Parece aconchegante. Sabe onde está Sam? - Continue em frente. Se chegar ao pavilhão de Sor Ottyn, já andou demais - o Gigante sorriu. - A não ser que Sam também tenha arranjado uma árvore. E que árvore essa seria. Acabou sendo Fantasma quem encontrou Sam, O lobo gigante saira disparado como um projétil de uma besta. Sob uma saliência de rocha que providenciava algum abrigo da chuva, Sam alimentava os corvos. As botas faziam ruídos úmidos quando se movia. - Meus pés estão completamente ensopados - ele admitiu em tom infeliz. - Quando desmontei, caí num buraco que chegava aos meus joelhos. - Tire as botas e seque as meias. Eu vou à procura de um pouco de madeira seca. Se o chão não estiver molhado por baixo da rocha, talvez sejamos capazes de fazer uma fogueira arder – Jon mostrou a Sam o coelho. - E vamos nos banquetear. - Não vai servir Lorde Mormont no edifício? - Não, mas você, sim. O Velho Urso quer que faça um mapa para ele. Craster diz que encontra Mance Rayder para nós. - Ah... - Sam não parecia ansioso por conhecer Craster, nem mesmo se isso significasse uma lareira quente. - Mas ele disse para comer primeiro. Seque os pés. Jon foi apanhar combustível, esgravatando por baixo de troncos caídos em busca de madeira mais seca e removendo camadas de agulhas de pinheiro encharcadas até encontrar alguma razoável. Mesmo assim, até que uma faísca pegasse pareceu demorar uma eternidade. Pendurou o manto na rocha a fim de manter a chuva afastada da sua pequena fogueira fumacenta, criando assim para os dois um pequeno recanto confortável. Enquanto se ajoelhava para esfolar o coelho, Sam tirou as botas. - Acho que tem musgo crescendo entre os meus dedos - o jovem gordo declarou em tom fúnebre, mexendo os dedos. - O coelho vai ficar bom. Nem me importo com o sangue e tudo o mais - ele afastou os olhos. - Bem, só um pouquinho... Jon enfiou o coelho num espeto, limitou a fogueira com um par de pedras e equilibrou a refeição em cima delas. O coelho era uma tanto descarnado, mas enquanto assava cheirava como 240 um banquete de rei. Outros patrulheiros deram-lhes olhares invejosos. Até Fantasma levantava a cabeça com ar faminto, com as chamas brilhando nos seus olhos vermelhos enquanto farejava. - Já comeu o seu - Jon lembrou-lhe. - Craster é tão selvagem como os patrulheiros dizem? - Sam quis saber. O coelho estava um pouco malpassado, mas tinha um gosto maravilhoso. - Como é o castelo dele? - Um monte de estrume com um telhado e um buraco para a fumaça sair - Jon contou a Sam o que tinha visto e ouvido na Fortaleza de Craster. Quando terminou a história, lá fora estava escuro e Sam lambia os dedos. - Isso estava gostoso, mas agora tenho vontade de uma perna de carneiro. Uma perna inteira, só para mim, com molho de menta, mel e cravo. Viu carneiros? - Havia um curral, mas sem ovelhas. - Como é que ele alimenta todos os seus homens? - Não vi homem nenhum. Só Craster, suas mulheres e algumas meninas pequenas. Espanta-me que ele seja capaz de manter o lugar. As defesas não são nada que valha a pena mencionar, só um dique lamacento. É melhor que vá até a casa e desenhe o mapa. Consegue encontrar o caminho? - Se não cair na lama... Sam voltou a calçar as botas com dificuldade e, munido de pena e pergaminho, penetrou na noite, com a chuva tamborilando no seu manto e no chapéu mole. Fantasma apoiou a cabeça nas patas e adormeceu junto à fogueira. Jon estendeu-se a seu lado, grato pelo calor. Sentia-se frio e molhado, mas não tão frio nem tão molhado como se sentira pouco tempo antes. Talvez esta noite o Velho Urso fique sabendo de alguma coisa que nos leve ao Tio Benjen. A primeira coisa que viu quando acordou foi sua respiração formando névoa no ar frio da manhã. Quando se moveu, seus ossos doeram. Fantasma tinha desaparecido e a fogueira apagara-se. Jon estendeu o braço para afastar o manto que tinha pendurado no rochedo, e o sentiu rígido e congelado. Rastejou por baixo dele e ficou em pé numa floresta transformada em cristal. A pálida luz rosada da alvorada cintilava em galhos, folhas e pedras. Cada folha de mato estava esculpida em esmeralda, cada gota dagua tinha se transformado em diamante. Tanto as flores como os cogumelos usavam casacos de vidro. Mesmo as poças de lama tinham um brilhante reflexo marrom. Por entre o verde cintilante, as tendas negras dos seus irmãos estavam revestidas por um fino esmalte de gelo.
No fim das contas, há magia para lá da Muralha. Deu por si pensando nas irmãs, talvez porque tivesse sonhado com elas na noite anterior. Sansa chamaria aquilo de um encantamento, e lágrimas encheriam seus olhos perante aquela maravilha, mas Arya correria aos risos e aos gritos, querendo tocar em tudo. - Lorde Snow? - Jon ouviu uma voz chamar, suave e submissa, e se virou. A guardadora de coelhos estava acocorada no topo do rochedo que o abrigara durante a noite, enrolada num manto negro tão grande que a submergia. O manto de Sam, Jon percebeu de imediato. Por que ela o está usando? - O gordo disse-me que o encontraria aqui, senhor. - Comemos o coelho, se é isso que veio procurar - admitir aquilo fez Jon sentir-se absurdamente culpado. - O velho Lorde Corvo, aquele que tem o pássaro falante, deu a Craster uma besta que vale cem coelhos - os braços da menina se cruzaram sobre a barriga inchada. - E verdade, senhor? É irmão de um rei? 241 - Meio-irmão - Jon admitiu. - Sou bastardo de Ned Stark. Meu irmão Robb é Rei do Norte. Por que está aqui? - O gordo, o tal do Sam, disse para vir falar com o senhor. Deu-me este manto, para que ninguém dissesse que não pertenço a este lugar, - Craster não vai ficar zangado com você? - Meu pai bebeu demais do vinho do Lorde Corvo na noite passada. Vai passar a maior parte do dia dormindo - a respiração dela congelava no ar em pequenas nuvens nervosas. - Dizem que o rei faz justiça e protege os fracos - ela começou a descer o rochedo, desajeitadamente, mas o gelo tornara-o escorregadio e seu pé deslizou. Jon apanhou-a antes que caísse e a ajudou a descer o resto em segurança. A mulher ajoelhou no chão gelado. - Senhor, suplico-lhe... - Não me suplique nada. Volte para sua casa, não devia estar aqui. Foi-nos ordenado que não falássemos com as mulheres de Craster, - Não tem de falar comigo, senhor. Só me leve com você quando partir, é tudo o que peço. Tudo o que ela pede, Jon pensou. Como se não fosse nada. - Eu... eu serei sua mulher, se quiser, Meu pai agora tem dezenove, uma a menos não lhe fará falta. - Os irmãos negros juram nunca tomar esposas, não sabia? E, além disso, somos hóspedes na casa do seu pai. - O senhor não - ela disse. - Eu vi. Não comeu à mesa dele nem dormiu junto à sua fogueira. Ele nunca lhe ofereceu direito de hóspede, por isso não tem obrigações perante ele. E pelo bebê que tenho de partir. - Nem sequer sei o seu nome. - Ele chamou-me de Goiva. Vem da flor de goivo. - E bonito - Jon se lembrou de Sansa, quando lhe disse, um dia, que devia dizer aquilo sempre que uma senhora revelasse seu nome. Não podia ajudar a moça, mas talvez a cortesia lhe agradasse. - E Craster quem a assusta, Goiva? - E pelo bebê, não por mim. Se for uma menina não é muito ruim, crescerá durante alguns anos e depois ele casa com ela. Mas Nella diz que vai ser um menino, e ela teve seis, e sabe dessas coisas. Ele dá os garotos aos deuses. Quando chega o frio branco, faz isso, e nos últimos tempos tem chegado mais vezes. Foi por isso que começou a dar-lhes ovelhas, apesar de gostar de carne de carneiro. Só que agora já não há ovelhas. A seguir vão ser os cães, até... - abaixou os olhos e afagou a barriga. - Que deuses? - Jon estava se lembrando que não tinham visto meninos na Fortaleza de Craster e também nenhum homem além do próprio Craster. - Os deuses frios - ela respondeu. - Os da noite. As sombras brancas. De repente, Jon imaginou-se de volta à Torre do Senhor Comandante. Uma mão cortada subia pela barriga da sua perna e, quando a afastou com a ponta da espada, ela ficou se contorcendo, com os dedos abrindo e fechando. O homem morto levantou-se, com os olhos azuis brilhando naquela cara talhada e inchada. Cordões de carne rasgada pendiam do grande ferimento que tinha na barriga, mas não havia sangue. - De que cor são os seus olhos? - Jon perguntou à menina. - Azuis. Brilhantes como estrelas azuis, e tão frios como elas. Ela os viu, pensou. Craster mentiu. - Vai me levar? Só até a Muralha... 242 - Não nos dirigimos para a Muralha. Vamos para o norte, atrás de Mance Rayder e desses Outros, dessas sombras brancas e das suas criaturas, Nós os estamos procurando, Goiva. Seu bebê não estaria a salvo conosco. O medo dela era claro em seu rosto. - Mas voltará. Quando a luta terminar, voltará a passar por aqui. - Talvez - se algum de nós sobreviver. - Isso cabe ao Velho Urso decidir, aquele a quem chama de Lorde Corvo. Sou só seu escudeiro. Não escolho o caminho a seguir.
- Não - Jon conseguia ouvir a derrota na voz dela. - Desculpe por tê-lo incomodado, senhor. Eu só... dizem que o rei mantém as pessoas a salvo, e pensei... - desesperada, fugiu, com o manto de Sam pairando atrás dela como grandes asas negras. Jon ficou vendo a menina partir, desaparecida sua alegria com a beleza quebradiça da manhã. Maldita seja, pensou, ressentido, e duplamente maldito seja Sam por mandá-la falar comigo. O que será que pensou que eu poderia fazer por ela? Estamos aqui para lutar contra selvagens, não para salvá-los. Outros homens engatinhavam para fora dos seus abrigos, bocejando e espreguiçando-se. A magia já tinha se desvanecido, com o brilho do gelo transformado em orvalho comum à luz do sol nascente. Alguém tinha acendido uma fogueira; conseguia sentir o cheiro de fumaça que pairava entre as árvores e o odor defumado de toucinho. Jon desprendeu o manto e bateu com ele na rocha, despedaçando a fina crosta de gelo que se formara durante a noite. Depois, pegou Garralonga e enfiou um braço em uma correia de ombro. A alguns metros dali, urinou contra um arbusto gelado, com a urina fumegando no ar frio e derretendo o gelo onde caía. Depois, amarrou os calções de lã negra e seguiu os cheiros. Grenn e Dywen encontravam-se entre os irmãos que tinham se reunido em volta da fogueira. Hake entregou a Jon uma fatia de pão cheia de toucinho queimado e pedaços de peixe salgado aquecido na gordura do toucinho. Devorou-a enquanto ouvia Dywen gabar-se de ter tido três das mulheres de Craster durante a noite. - Não teve nada - Grenn quis desmenti-lo, fechando o cenho. - Se tivesse, eu teria visto. Dywen deu uma pancada na sua orelha com as costas da mão. - Você? Teria visto? Você é tão cego quanto Meistre Aemon. Nem sequer viu aquele urso. - Que urso? Teve um urso? - Sempre tem um urso - Edd Doloroso declarou, no seu tom habitual de melancólica resignação. - Um matou meu irmão quando eu era novo. Depois, usei os dentes dele em volta do pescoço numa tira de couro. E eram bons dentes, melhores do que os meus. Só tive problemas com meus dentes. - Sam dormiu no salão na noite passada? - Jon lhe perguntou. - Não chamaria de dormir. O chão era duro, as esteiras cheiravam mal e meus irmãos ressonavam assustadoramente. Fale de ursos o que quiserem, o certo é que nenhum rosnou de forma tão feroz como Bernarr Castanho. Mas estava quente. Uns cães subiram em cima de mim durante a noite. Meu manto estava quase seco quando um deles mijou em cima. Ou talvez tenha sido Bernarr Castanho. Reparou que a chuva parou no instante em que eu tive um teto por cima da cabeça? Vai recomeçar, agora que estou de novo aqui fora. Tanto os cães como os deuses adoram mijar em cima de mim. - E melhor que eu vá encontrar Lorde Mormont - Jon disse. A chuva podia ter parado, mas o complexo ainda era um atoleiro de lagos rasos e lama escorregadia. Irmãos negros dobravam as tendas, alimentavam os cavalos e mastigavam pedaços de 243 carne salgada. Os batedores de Jarman Buckwell apertavam as correias das selas, preparando-se para partir. - J on - Buckwell o saudou,já montado. - Mantenha um bom fio nessa sua espada bastarda. Vamos precisar dela em breve. O salão de Craster parecia sombrio depois da luz do dia. Lá dentro, as tochas da noite tinham ardido quase por completo e era difícil saber que o sol já tinha nascido. O corvo de Lorde Mormont foi o primeiro a vê-lo entrar. Três batidas preguiçosas das suas grandes asas negras, e empoleirou-se no topo do punho de Garralonga. "Milho?" Deu uma bicada numa madeixa de cabelo de Jon. - Ignore esse desgraçado desse pássaro mendigo, Jon, ele acabou de comer metade do meu toucinho - o Velho Urso estava sentado à mesa de Craster, quebrando o jejum na companhia dos outros oficiais, com pão frito, toucinho e salsichas de carneiro. O novo machado de Craster estava sobre a mesa, com os relevos de ouro brilhando levemente à luz das tochas. Seu dono estava estendido, inconsciente, no sótão para dormir, mas as mulheres estavam todas de pé, movendo-se em volta e servindo. - Como está nosso dia? - Frio, mas a chuva parou. - Muito bem. Certifique-se de que meu cavalo esteja selado e pronto. Pretendo partir dentro de uma hora. Já comeu? Craster serve comida simples, mas que enche. Não comerei da comida de Craster, Jon decidiu de pronto. - Comi com os homens, senhor - ele enxotou o corvo de Garralonga. A ave saltou de volta para o ombro de Mormont, onde prontamente defecou. - Podia ter feito isso no Snow em vez de guardar para mim - resmungou o Velho Urso. O corvo soltou um cuorc. Foi encontrar Sam atrás do salão, em pé, junto a Goiva e à coelheira quebrada. Ela o estava ajudando a vestir o manto de novo, mas, quando viu Jon, esgueirou-se para longe. Sam deu-lhe um olhar de censura ferida. - Pensei que quisesse ajudá-la.
- E como é que eu poderia fazer isso? - Jon perguntou num tom ríspido. - Levá-la conosco, embrulhada no seu manto? Foi-nos ordenado que não... - Eu sei - Sam respondeu com uma expressão culpada - , mas ela tem medo. Eu sei o que é ter medo. Disse a ela... - engoliu em seco. - O quê? Que a levaríamos conosco? A cara gorda de Sam corou, com um tom profundo de vermelho. - No caminho de volta - não era capaz de olhar Jon nos olhos. - Ela vai ter um bebê. - Sam, perdeu todo o bom-senso? Podemos nem sequer voltar por aqui. E se voltarmos, acha que o Velho Urso vai deixá-lo levar embora uma das mulheres de Craster? - Eu pensei que.,, talvez, até lá eu pudesse pensar numa maneira.,. - Não tenho tempo para isso, há cavalos para tratar e selar - Jon se afastou, tão confuso quanto zangado. O coração de Sam era tão grande como o resto, mas, apesar de todas as suas leituras, às vezes conseguia ser tão obtuso como Grenn. Era impossível, e, além disso, desonroso. Então, por que me sinto tão envergonhado? Jon tomou sua posição de costume ao lado de Mormont quando a Patrulha da Noite passou pelos crânios no portão de Craster. Avançaram para norte e oeste ao longo de uma trilha torta de caça. O gelo, derretendo-se, pingava por todo lado, um tipo mais lento de chuva com sua própria música suave. A norte do complexo, o córrego estava em plena cheia, afogado de folhas e pedaços 244 de madeira, mas os batedores tinham encontrado o lugar do vau e a coluna conseguiu chapinhar até o outro lado. A água corria tão alta que tocava a barriga dos cavalos. Fantasma nadou, emergindo na margem com seu pelo branco pingando uma água amarronzada. Quando se sacudiu, espalhando lama e água para todas as direções, Mormont não disse nada, mas no seu ombro o corvo soltou um guincho. - Senhor - Jon falou em voz baixa, enquanto a floresta se fechava em volta deles mais uma vez. - Craster não tem ovelhas. Nem filhos homens. Mormont não respondeu. - Em Winterfell, uma das criadas nos contou histórias. Ela costumava dizer que havia selvagens que dormiam com os Outros para gerar filhos meio humanos. - Histórias para contar em torno da lareira. Craster parecia menos do que humano? De meia centena deformas. - Ele dá os filhos à floresta. Um longo silêncio. E então: - Sim - "Sim", o corvo resmungou, pavoneando-se. "Sim, sim, sim". - O senhor sabia? - Smallwood me disse. Há muito tempo, Todos os patrulheiros sabem, embora poucos falem disso. - Meu tio sabia? - Todos os patrulheiros - Mormont repetiu. - Acha que eu devia impedi-lo. Matá-lo, se necessário? - o Velho Urso suspirou. - Se fosse só o caso de ele querer se livrar de algumas bocas, de bom grado mandaria Yoren ou Conwys recolher os garotos. Poderíamos criá-los para o negro, e a Patrulha teria essa força a mais. Mas os selvagens servem a deuses mais cruéis do que eu ou você. Aqueles garotos são as oferendas de Craster. As suas preces, se preferir, Suas mulheres devem fazer preces diferentes, Jon pensou. - Como foi que ficou sabendo disto? - perguntou-lhe o Velho Urso. - Por uma das mulheres de Craster? - Sim, senhor - Jon confessou. - Preferia não lhe dizer qual. Ela estava assustada e queria ajuda. - Este vasto mundo está cheio de pessoas que querem ajuda, Jon. Seria bom que algumas encontrassem coragem para se ajudar a si próprias. Craster está deitado no seu sótão agora mesmo, fedendo a vinho e inconsciente. Sobre a sua mesa, na parte de baixo, há um machado novo e afiado. Se fosse eu, chamaria isso de "Prece atendida" e daria um fim nele. Sim. Jon pensou em Goiva. Nela e nas suas irmãs. Eram dezenove, e Craster apenas um, mas... - No entanto, seria um dia ruim para nós se Craster morresse. Seu tio poderia lhe contar as vezes em que a Fortaleza de Craster constituiu a diferença entre a vida e a morte para nossos patrulheiros. - Meu pai... - Jon hesitou. - Continue, Jon. Diga o que quer dizer. - Meu pai, uma vez, disse-me que há homens que não valem a pena - ele concluiu. – Um vassalo que é brutal ou injusto desonra tanto seu suserano como a si mesmo. - Craster é somente dele mesmo. Não nos prestou juramento. Nem está sujeito às nossas leis. Seu coração é nobre, Jon, mas aprenda aqui uma lição. Não podemos pôr o mundo nos eixos. Não é esse o nosso propósito. A Patrulha da Noite tem outras guerras a travar. 245 Outras guerras. Sim. Tenho de me lembrar disso. - Jarman Buckwell disse que posso precisar da minha espada em breve.
- Ah, ele disse? - Mormont não parecia contente. - Craster disse muitas coisas, e mais algumas, ontem à noite, e confirmou o suficiente dos meus temores para me condenar a uma noite sem sono no seu piso. Mance Rayder está reunindo seu povo nas Presas de Gelo. E por isso que as aldeias estão vazias. E a mesma história que Sor Denys Mallister obteve da selvagem que seus homens capturaram na Garganta, mas Craster acrescentou o onde, e isso faz toda a diferença. - Está criando uma cidade, ou um exército? - Bem, esta é questão. Quantos selvagens há lá? Quantos homens em idade de lutar? Ninguém sabe com certeza. As Presas de Gelo são cruéis, inóspitas, um deserto de pedra e gelo. Não sustentarão um número grande de pessoas por muito tempo. Só vejo um propósito nesta reunião, Mance Rayder pretende atacar em direção ao sul, para o interior dos Sete Reinos. - Os selvagens já invadiram o reino antes - Jon ouvira histórias tanto da Velha Ama como de Meistre Luwin, em Winterfell. - Raymun Barba-Vermelha os levou ao sul nos tempos do avô do meu avô, e antes dele houve um rei chamado Bael, o Bardo. - Sim, e muito antes deles houve Lorde Chifrudo e os reis irmãos Gendel e Gorne, e nos tempos antigos Joramun, que soprava o Berrante do inverno e evocava gigantes da terra. Cada um desses homens teve sua força quebrada na Muralha, ou foi quebrado pelo poder de Winterfell, do outro lado... Mas a Patrulha da Noite é apenas uma sombra do que foi. E quem resta para se opor aos selvagens além de nós? O Senhor de Winterfell está morto, e seu herdeiro levou suas forças para o sul a fim de lutar contra os Lannister. Os selvagens podem não ter uma chance como esta de novo. Eu conheci Mance Rayder, Jon. Ele é um perjuro, é certo... mas tem olhos para ver, e nenhum homem se atreveu alguma vez a chamá-lo de medroso. - O que faremos? - Jon quis saber, - Vamos encontrá-lo - Mormont respondeu. - Lutaremos com ele. Vamos pará-lo. Trezentos, Jon pensou, contra a fúria dos selvagens. Seus dedos se abriram e se fecharam. 246 Theon Era inegavelmente uma beleza. Mas o primeiro é sempre belo, Theon Greyjoy pensou. Ora, aí está um sorriso bonito - disse uma voz de mulher atrás de si. - O fidalgo gosta do que vê, é isso? Theon virou-se para avaliar. Gostou do que viu. Percebeu, num relance, que era natural das ilhas; esguia, de pernas longas, com cabelo negro cortado curto, pele esfolada pelo vento, mãos fortes e seguras, uma adaga no cinto. O nariz era grande e afilado demais para sua cara magra, mas o sorriso compensava. Estimou que seria alguns anos mais velha do que ele, mas com menos de vinte e cinco anos. Movia-se como se estivesse habituada a ter um convés debaixo dos pés. - Sim, é uma coisa bela - ele disse. - Embora nem de perto tão encantadora como você. - O-ho - ela sorriu. - E melhor eu ter cuidado. Este fidalgo tem mel na língua. - Prove-a, e verá. - Então é assim? - ela perguntou, olhando-o com ousadia. Havia mulheres nas Ilhas de Ferro, não muitas, mas algumas, que tripulavam os dracares com seus homens, e dizia-se que o sal e o mar as modificavam, dando-lhes os apetites de um homem. - O fidalgo passou tanto tempo assim no mar? Ou não havia mulheres no lugar de onde veio? - Havia bastante mulheres, mas nenhuma como você. - E como o fidalgo pode saber como eu sou? - Meus olhos podem ver seu rosto. Meus ouvidos podem escutar seu riso. E minha pica ficou dura como um mastro por você. A mulher se aproximou e empurrou uma mão contra a parte da frente dos calções dele. - Bem, não é mentiroso - ela confirmou, dando um apertão através do pano. - Dói muito? - Violentamente. - Pobre fidalgo - a mulher o largou e deu um passo para trás. - Acontece que sou mulher casada e recém-engravidada. - Os deuses são bons - Theon respondeu. - Assim não há hipótese de lhe dar um bastardo. - Mesmo assim, meu homem não lhe agradeceria. - Não, mas você talvez sim. - E por que faria isso? Já tive senhores antes. São feitos da mesma maneira que os outros homens. - Alguma vez já teve um príncipe? - Theon quis saber. - Quando for enrugada e grisalha, e seus seios caírem para baixo da barriga, poderá contar aos filhos dos seus filhos que um dia amou um rei. - Oh, é de amor que estamos falando agora? E eu que pensava que era só de picas e de bocetas. 247 - É amor o que lhe agrada? - Theon decidiu que gostava daquela mulher, fosse quem fosse; sua perspicácia aguçada era uma pausa bem-vinda na melancolia úmida de Pyke. - Devo dar seu nome ao meu dracar, tocar harpa para você e mantê-la numa sala de torre do meu castelo apenas com jóias para vestir, como uma princesa numa canção?
- O fidalgo devia dar meu nome ao seu navio - ela disse, ignorando todo o resto. - Fui eu quem o construiu. - Quem o construiu foi Sigrin. O carpinteiro do senhor meu pai. - Sou Esgred. Filha de Ambrode e mulher de Sigrin. Theon não sabia que Ambrode tinha uma filha, ou Sigrin uma mulher... Havia se encontrado apenas uma vez com o construtor de navios, o mais novo, e do mais velho quase não se lembrava. - É desperdiçada com Sigrin. - O-ho. Sigrin disse-me que este belo navio é desperdiçado com você. Theon ficou irritado. - Sabe quem eu sou? - Príncipe Theon, da Casa Greyjoy. Quem haveria de ser? Diga-me a verdade, senhor, até que ponto ama esta sua nova donzela? Sigrin vai querer saber. O dracar era tão novo, que ainda cheirava a piche e resina. Tio Aeron iria abençoá-lo na manhã seguinte, mas Theon tinha vindo de Pyke para dar uma olhada nele antes de ser lançado ao mar. Não era tão grande como o Grande Lula Gigante de Lorde Balon, ou o Vitória de Ferro do tio Victarion, mas parecia rápido e manobrável, mesmo parado sobre seu berço de madeira, na praia; um casco negro e esguio com cem pés de comprimento, um único grande mastro, cinqüenta remos longos, um convés com capacidade para cem homens... e, à proa, o grande espigão de ferro em forma de ponta de seta. - Sigrin fez um bom serviço para mim - admitiu. - É tão rápido como parece? - Mais rápido... para um mestre que saiba como manejá-lo, - Já se passaram alguns anos desde que velejei pela última vez - e nunca capitaneei um navio, na verdade. - Em todo caso, sou um Greyjoy, e um homem de ferro. O mar está no meu sangue. - E seu sangue estará no mar, se velejar da maneira como fala - ela retrucou. - Nunca trataria mal uma donzela tão bela. - Bela donzela? - ela soltou uma gargalhada. - Esta beleza é uma cadela do mar, isso sim. - Aí está, acabou de lhe dar o nome. Cadela do Mar. Aquilo divertiu a mulher; ele viu o brilho nos seus olhos escuros. - E o fidalgo que tinha dito que queria batizá-la em minha honra - disse a mulher numa voz de censura magoada. - Foi o que fiz - Theon pegou sua mão. - Ajude-me, senhora. Nas terras verdes, acredita-se que uma mulher à espera de um bebê significa boa fortuna para qualquer homem que se deite com ela. - E o que sabem de navios nas terras verdes? Ou de mulheres, aliás? Seja como for, parece-me que inventou isso. - Se eu confessar, ainda me amará? - Ainda? Quando foi que o amei? - Nunca - Theon admitiu. - Mas estou tentando reparar essa falta, minha querida Esgred. O vento é frio. Venha a bordo do meu navio e deixe-me aquecê-la. De manhã, meu tio Aeron despejará água do mar na sua proa e resmungará uma prece ao Deus Afogado, mas eu preferiria abençoá-lo com o leite da minha virilha, e da sua. 248 - O Deus Afogado pode não ver isso com bons olhos. - Que se lixe o Deus Afogado. Se nos incomodar, afogo-o de novo. Partimos para a guerra dentro de uma quinzena. Quer me enviar para a batalha sem conseguir dormir, cheio de desejo? - De bom grado. - Donzela cruel. Meu navio tem o nome certo. Se conduzi-lo para os rochedos distraído por sua causa, poderá se culpar. - Pretende conduzir com isto? - Esgred voltou a roçar a parte da frente dos calções de Theon e sorriu quando um dedo delineou o contorno de ferro do seu membro. - Volte para Pyke comigo - ele disse de repente, pensando: O que dirá Lorde Balon? E por que devo me importar? Sou um bomem-feito, se quiser trazer uma mulher para a cama é problema meu e de mais ninguém. - E o que eu faria em Pyke? - a mão dela ficou onde estava. - Meu pai vai dar esta noite um banquete aos seus capitães - banqueteava-os todas as noites enquanto esperava a chegada dos retardatários, mas Theon não viu necessidade de lhe dizer isso. - Quer me nomear seu capitão por uma noite, senhor meu príncipe? - ela tinha o sorriso mais malicioso que Theon já vira numa mulher. - Poderia fazê-lo. Se soubesse que me levaria a salvo até o porto. - Bem, sei qual é a ponta do remo que entra no mar, e não há ninguém melhor do que eu com cordas e nós - com uma mão só, desamarrou os cordões dos calções dele, depois sorriu, e afastou-se com um movimento ligeiro. - Pena que seja uma mulher casada e recém-engravidada. Excitado, Theon voltou a se amarrar.
- Tenho de voltar ao castelo. Se não vier comigo, posso me perder por desgosto, e todas estas ilhas ficarão mais pobres, - Isso não pode ser... Mas eu não tenho cavalo, senhor. - Pode levar a montaria do meu escudeiro. - E obrigar seu pobre escudeiro a voltar a Pyke a pé? - Então divida a minha. - O senhor gostaria bastante disso - de novo o sorriso. - Bom... Eu iria atrás de você, ou à sua frente? - Você faria o que quisesse. - Gosto de ficar por cima, Onde esta devassa esteve durante toda a minha vida? - O palácio do meu pai é sombrio e úmido. Precisa de Esgred para fazer o fogo arder. - O fidalgo tem mel na língua. - Não foi assim que começamos? Ela ergueu as mãos: - E é aqui que terminamos. Esgred é sua, querido príncipe. Leve-me para o seu castelo. Deixe-me ver as suas orgulhosas torres que se erguem do mar, - Deixei o cavalo na estalagem. Venha. Caminharam juntos ao longo da margem, e quando Theon tomou seu braço, ela não se afastou. Gostava do modo como ela caminhava; havia naquele andar uma ousadia, em parte passeio, em parte balanço, que sugeria que ela seria igualmente ousada sob os lençóis, Theon nunca vira Fidalporto tão cheio de gente, repleto das tripulações dos dracares que enchiam a costa pedregosa e balançavam, ancorados bem para lá da rebentação. Os homens de ferro não dobravam os joelhos freqüentemente ou com facilidade, mas Theon reparou que tanto rema249 dores como o povo da vila caíam no silêncio quando eles passavam e o cumprimentavam inclinando respeitosamente a cabeça. Finalmente aprenderam quem eu sou, pensou. Ejá era mais que hora. Lorde Goodbrother de Grande Wyk tinha chegado na noite anterior com sua força principal, quase quarenta dracares. Seus homens estavam por toda a parte, ilustres com suas faixas listradas de pelo de cabra. Dizia-se na estalagem que as prostitutas de Otter Gimpknee estavam sendo comidas, até ficarem com as pernas tortas, por rapazes sem barbas com faixas. Theon só desejava que fizessem bom proveito. Pior antro de rameiras esperava nunca ver. A atual companhia era mais do seu agrado. Que fosse casada com o carpinteiro do pai, e além disso estivesse grávida, só lhe despertava mais a curiosidade. - O senhor meu príncipe já começou a escolher sua tripulação? - Esgred perguntou enquanto abriam caminho para os estábulos, - Ei, Bluetooth - ela gritou para um navegador que passou por perto, um homem alto com traje de pele de urso e capacete com asas de corvo. - Como vai sua noiva? - Com uma grande barriga, e falando em gêmeos. - Já? - Esgred deu aquele sorriso malicioso. - Meteu depressa o remo na água. - Sim, e remei, remei e remei - rugiu o homem. - Um homem grande - observou Theon. - Bluetooth, não é? Deveria escolhê-lo para a minha Cadela do Mar? - Só se pretender insultá-lo. Bluetooth tem um belo navio só dele. - Estive longe tempo demais para distinguir um homem dos outros - Theon admitiu. Procurara por alguns dos amigos com quem brincava quando criança, mas tinham partido, morrido ou se transformado em estranhos. - Meu tio Victarion emprestou-me seu timoneiro. - Rymolf Stormdrunk? Um bom homem, desde que esteja sóbrio - a mulher viu mais rostos que conhecia e chamou um trio que passava: - Uller, Qarl. Onde está seu irmão, Skyte? - Temo que o Deus Afogado tenha precisado de um remador forte - respondeu o homem troncudo com veios grisalhos na barba. - O que ele quer dizer é que Eldiss bebeu vinho demais e sua gorda barriga estourou – disse o jovem de bochechas rosadas ao seu lado. - O que está morto não pode morrer - Esgred rebateu. - O que está morto não pode morrer. Theon murmurou as palavras com eles. - Parece conhecer muita gente - ele disse à mulher depois de os homens passarem. - Todos os homens gostam da mulher do construtor de navios. E é bom que gostem, a menos que queiram que seu navio afunde. Se precisa de homens para puxar os seus remos, encontrará piores do que aqueles três. - Fidalporto não tem falta de braços fortes - Theon já pensara bastante no assunto. Era guerreiros que queria, e homens que lhe fossem leais, e não ao senhor seu pai ou aos tios. Por ora representava o papel de um jovem príncipe obediente, enquanto esperava que Lorde Balon revelasse seus planos por inteiro. Mas se por acaso não gostasse desses planos ou da parte que neles desempenhava, bem...
- A força não basta. Os remos de um dracar devem se mover como um só para obter a velocidade máxima. Se for sensato, escolherá homens que já remaram juntos antes, - Sábio conselho. Talvez queira me ajudar a escolhê-los - que ela acredite que quero a sua sabedoria; as mulheres gostam disso. - Talvez. Se me tratar com gentileza. 250 - De que outra forma a trataria? Theon acelerou o passo ao se aproximarem do Myraham, que balançava alto e vazio junto ao cais. O capitão tentara zarpar há uma quinzena, mas Lorde Balon não permitiu. Nenhum dos mercadores que aportaram em Fidalporto tinha sido autorizado a voltar a partir; o pai não queria que nenhuma notícia da reunião das suas forças chegasse ao continente antes de estar pronto para atacar. - Senhora - chamou uma voz suplicante vinda do castelo de proa do navio mercante. A filha do capitão debruçava-se sobre a amurada, olhando-o, O pai a proibira de ir à terra firme, mas sempre que Theon vinha a Fidalporto vislumbrava-a vagando desamparadamente pelo convés. - Senhora, um momento - ela chamou novamente. - Se agradar ao senhor. - Agradou? - Esgred perguntou, enquanto Theon a apressava para passar pelo barco pesqueiro. - Ela agradou ao senhor? Não viu motivo para ser recatado com aquela mulher. - Durante algum tempo. Agora quer ser a minha esposa de sal. - O-ho. Bem, ela sem dúvida precisa de um pouco de sal. Essa é branda e doce demais. Ou será que me engano? - Não - branda e doce. Exatamente. Como foi que ela soube? Tinha dito a Wex para esperar na estalagem, A sala comum estava tão cheia de gente, que Theon precisou abrir caminho até a porta aos empurrões. Não havia nenhum lugar vago nas mesas ou no banco. E também não viu o escudeiro. - Wex - Theon gritou, por cima do burburinho e do tinir de louça. Se eíe estiver lá em cima com uma daquelas vadias sifilíticas, esfolo-o, Theon estava pensando, quando finalmente vislumbrou o rapaz, jogando dados perto da lareira... e ganhando, a julgar pela pilha de moedas que tinha à frente. - E hora de ir - Theon anunciou, Quando o rapaz não prestou atenção, puxou-o por uma das orelhas e o arrancou do jogo. Wex agarrou um punhado de moedas de cobre e seguiu, sem uma palavra. Esta era uma das coisas que Theon mais gostava nele. A maioria dos escudeiros tinha a língua solta, mas Wex nasceu mudo... o que não parecia impedi-lo de ser tão esperto como qualquer rapaz de doze anos tinha direito de ser. Era filho ilegítimo de um dos meios-irmãos de Lorde Botley. Tomá-lo como escudeiro tinha sido parte do preço que Theon pagara pelo cavalo. Quando Wex viu Esgred, seus olhos ficaram redondos. Dá para dizer que nunca viu uma mulher, pensou Theon. - Esgred vai comigo para Pyke. Sele os cavalos, rápido. O rapaz tinha vindo montado num pequeno garrano ossudo dos estábulos de Lorde Balon, mas a montaria de Theon era um tipo de animal bem diferente. - Onde encontrou esse cavalo dos infernos? - perguntou-lhe Esgred quando o viu, mas, pelo modo como riu, Theon soube que tinha ficado impressionada, - Lorde Botley comprou-o em Lanisporto há um ano, mas ele se mostrou cavalo demais, e Botley ficou feliz por vendê-lo - as Ilhas de Ferro eram pobres e rochosas demais para a criação de bons cavalos. A maior parte dos ilhéus não passava de cavaleiros inexpressivos, mais confortáveis no convés de um dracar do que sobre uma sela. Até os senhores montavam garranos ou pôneis peludos de Harlaw, e os carros de bois eram mais comuns do que os puxados a cavalo. Os plebeus que eram pobres demais para possuir uma coisa ou outra puxavam eles próprios as charruas pelo solo raso e pedregoso. 251 Mas Theon passara dez anos em Winterfell e náo pretendia ir para a guerra sem uma boa montaria entre as pernas. O engano de Lorde Botley tinha sido sua boa sorte: um garanhão com um temperamento tão negro como seu pelo, maior do que um corcel, ainda que não tão grande como a maioria dos cavalos de batalha. Como Theon não era tão grande como a maioria dos cavaleiros, servia-lhe admiravelmente bem. O animal tinha fogo nos olhos. Quando conheceu seu novo dono, arreganhou os beiços e tentou arrancar sua cabeça com dentadas. - Ele tem nome? - Esgred perguntou a Theon enquanto ele montava. - Sorridente - o jovem lhe ofereceu a mão e a puxou para a sua frente, onde poderia pôr os braços em volta dela enquanto cavalgavam. - Um dia conheci um homem que me disse que eu sorria das coisas erradas. - E é verdade? - Só à luz daqueles que não sorriem de nada - ele pensou no pai e no tio Aeron.
- Está agora sorrindo, senhor meu príncipe? -Ah, sim - Theon passou os braços em volta dela para pegar as rédeas. A mulher era quase da mesma altura que ele. Seu cabelo precisava ser lavado, e tinha uma leve cicatriz cor-de-rosa no bonito pescoço, mas ele gostou do seu cheiro, de sal, suor e mulher. A cavalgada de volta a Pyke prometia ser bastante mais interessante do que a viagem de vinda. Quando já tinham se afastado bastante de Fidalporto, Theon pôs uma mão no seu seio. Esgred a afastou. - Eu manteria ambas as mãos nas rédeas, senão esta sua fera preta é bem capaz de nos atirar ao chão e de nos escoicear até a morte. - Eu já o domei. Divertido, Theon portou-se bem durante algum tempo, tagarelando amigavelmente acerca do tempo (cinzento e encoberto, como estivera desde a sua chegada, com chuvas freqüentes) e falando-lhe dos homens que tinha matado no Bosque dos Murmúrios. Quando chegou à parte sobre chegar assim tão perto do Regicida em pessoa, deslizou a mão para onde estivera. Os seios dela eram pequenos, mas gostou da sua firmeza. - Não quer fazer isso, senhor meu príncipe. - Ah, se quero - Theon deu um apertão. - Seu escudeiro está observando. - Que observe. Nunca contará nada, juro, Esgred arrancou a mão dele do seu seio. E desta vez a manteve firmemente aprisionada. Ela tinha mãos fortes. - Gosto de uma mulher com uma pegada forte. Ela deu uma fungada: - Nunca teria imaginado, por aquelazinha no cais. - Não deve me julgar por ela. Era a única mulher no navio. - Fale-me do seu pai. Vai me dar boas-vindas gentis ao seu castelo? - Por que haveria de dar? Quase não me deu boas-vindas, sangue do seu sangue, herdeiro de Pyke e das Ilhas de Ferro. - Ah, é? - ela returcou com uma voz branda. - Dizem que o senhor tem tios, irmãos, uma irmã. - Meus irmãos estão há muito mortos, e minha irmã... Bem, dizem que o vestido favorito de Asha é um camisão de cota de malha que cai até abaixo dos joelhos, com roupa íntima de couro 252 fervido por baixo. Mas vestir-se de homem não faz dela um. Farei um bom casamento de aliança para ela depois de ganharmos a guerra, se encontrar algum homem que a queira. Pelo que me lembro, tinha um nariz que mais parecia um bico de abutre, uma colheita madura de espinhas, e não tinha mais peito do que um rapaz. - Pode se ver livre da irmã por casamento - Esgred disse mas não dos tios. - Meus tios... - a pretensão de Theon tinha precedência sobre as dos três irmãos do pai, mas, mesmo assim, a mulher tinha tocado num ponto sensível. Nas ilhas era longe de ser ignorado que um tio forte e ambicioso despojasse um sobrinho fraco dos seus direitos, geralmente asassinando-o no processo. Mas não sou fraco, disse Theon a si próprio, e pretendo ser ainda mais forte quando meu pai morrer. - Meus tios não são ameaça para mim. Aeron está bêbado de água do mar e santidade. Vive apenas para o deus dele... - O deus dele! Não o seu? - Meu também. O que está morto não pode morrer - deu um ligeiro sorriso. - Se eu soltar ruídos piedosos quando me for pedido, Cabelo-Molhado não me dará problemas. E meu tio Victarion... - Senhor Comandante da Frota de Ferro, e um temível guerreiro. Ouvi canções sobre ele nas cervejarias. - Durante a rebelião do senhor meu pai, ele navegou até Lanisporto com meu tio Euron e incendiou a frota Lannister no ancoradouro - Theon recordou. - Mas o plano era de Euron. Victarion é como um grande boi castrado cinza, forte, incansável e obediente, mas pouco capaz de ganhar corridas. Sem dúvida que me servirá tão lealmente como serviu ao senhor meu pai. Não tem nem a inteligência nem a ambição para maquinar traições. - No entanto, a Euron Olho de Corvo não falta astúcia. Ouvi os homens contarem coisas terríveis sobre ele. Theon se mexeu na sela. - Meu tio Euron não é visto nas ilhas há cerca de dois anos. Pode estar morto - se assim fosse, talvez fosse melhor. O irmão mais velho de Lorde Balon nunca abandonou o Costume Antigo, nem sequer por um dia. Dizia-se que seu Silêncio, com suas velas negras e casco vermelho-escuro, era infame em todos os portos entre Ibben e Asshai. - Pode estar morto - concordou Esgred. - Mas, se for vivo, ora, passou tanto tempo no mar que seria quase um estranho aqui. Os homens de ferro nunca poriam um estranho na Cadeira de Pedra do Mar.
- Suponho que não - Theon respondeu, antes de lhe ocorrer que alguns também o chamariam de estranho. A idéia fez com que franzisse a testa. Dez anos é muito tempo, mas agora estou de volta, e meu pai está longe de estar morto. Tenho tempo para provar quanto valho. Pensou em voltar a acariciar o seio de Esgred, mas o mais certo era que ela se limitasse a afastar sua mão, e toda aquela conversa sobre os tios tinha esfriado um pouco seu ardor. Haveria tempo suficiente para aquelas brincadeiras no castelo, na privacidade dos seus aposentos. - Falarei com Helya quando chegarmos a Pyke, e vou me assegurar de que tenha um lugar de honra no banquete - ele disse. - Tenho de me sentar no estrado, à direita do meu pai, mas descerei para junto de você quando ele sair do salão. Ele raramente fica por muito tempo. Hoje em dia, não tem barriga para a bebida. - E coisa penosa quando um grande homem envelhece. - Lorde Balon não é mais do que o pai de um grande homem. 253 - Um fidalgo modesto. - Só um tolo se rebaixa quando o mundo está tão cheio de homens ansiosos por fazer esse serviço por ele - deu um pequeno beijo na parte de trás do seu pescoço. - O que usarei nesse grande banquete? - ela esticou a mão para trás e empurrou seu rosto para longe. - Pedirei a Helya para vesti-la. Um dos vestidos da senhora minha mãe talvez sirva. Ela está em Harlaw, e não se espera que retorne. - Ouvi dizer que os ventos frios a afastaram. Não vai visitá-la? Os navios chegam a Harlaw em um dia, e decerto a Senhora Greyjoy anseia por um último vislumbre do seu filho. - Bem que gostaria de poder. Mantêm-me aqui ocupado demais. Meu pai depende de mim, agora que voltei. Quando chegar a paz, talvez... - Sua chegada poderá trazer paz a ela, - Agora está soando como uma mulher - Theon se lamentou. - Confesso, é o que sou... e recém-engravidada. Sem saber por que, aquilo o excitava. - É o que diz, mas seu corpo não mostra nenhum sinal de estar grávida, Como vai provar? Antes que acredite em você, terei de ver seus seios crescendo e saborear seu leite de mãe. - E o que dirá disso meu marido? Um servo do seu pai e a ele juramentado? - Daremos tantos navios para ele construir que nem notará que foi abandonado. Ela soltou uma gargalhada. - E um fidalgo cruel, este que me raptou. Se lhe prometer que um dia poderá ver meu bebê mamando, vai me contar mais da sua guerra, Theon da Casa Greyjoy? Ainda temos quilômetros e montanhas à nossa frente e gostaria de ouvir falar desse rei lobo a quem tem servido e dos leões dourados que ele combate. Ansioso por agradar, Theon fez sua vontade. O resto da longa cavalgada passou rapidamente, enquanto ele enchia a bonita cabeça dela com histórias sobre Winterfell e a guerra. Algumas das coisas que ela disse o espantaram. É fácil falar com ela, que os deuses a louvem, refletiu. Sinto-me como se a conhecesse há anos. Se as brincadeiras de alcova da moça forem metade da sua esperteza, terei de ficar com ela,,. Pensou em Sigrin, o carpinteiro naval, um homem grosso de corpo e de mente, de cabelo louro como linho já recuando numa testa cheia de espinhas, e balançou a cabeça. Um desperdício. Um trágico desperdício. Pareceu quase não ter passado tempo algum quando a grande muralha exterior de Pyke se avolumou à frente deles. Os portões estavam abertos. Theon esporeou Sorridente e os atravessou a trote rápido. Os cães latiam como loucos enquanto ele ajudava Esgred a desmontar. Vários vieram até eles aos saltos, abanando as caudas. Passaram por ele como se não estivesse ali, e quase atiraram a mulher ao chão, saltando em volta dela, latindo e lambendo. - Fora - Theon gritou, dando um chute ineficiente em uma grande cadela marrom, mas Esgred ria e brincava com eles. Um palafreneiro veio atrás dos cães. - Leve os cavalos - ordenou-lhe Theon - e afaste estes malditos cães... O rústico não prestou atenção nele. Seu rosto abriu-se num enorme sorriso esburacado e disse: - Senhora Asha. Regressou. 254 - Na noite passada - ela disse. - Vim de Grande Wyk com Lorde Goodbrother e passei a noite na estalagem. Meu irmãozinho teve a bondade de me deixar vir de Fidalporto com ele - beijou um dos cães no focinho e sorriu para Theon. Tudo o que ele conseguiu fazer foi ficar ali, congelado, olhando-a de boca aberta. Asha. Não. ela não pode ser Asha. Compreendeu de repente que havia duas Ashas na sua cabeça. Uma era a menininha que conhecera. A outra, imaginada de forma mais vaga, parecia-se um pouco com a mãe. Nenhuma tinha qualquer semelhança com esta... esta... esta...
- As espinhas desapareceram quando os seios surgiram - ela explicou, enquanto lutava com um cão - , mas mantive o bico de abutre. Theon encontrou a voz. - Por que não me contou? Asha largou o cão e se endireitou. - Quis ver primeiro quem você era. E vi - dirigiu-lhe uma meia reverência zombeteira. – E agora, irmãozinho, peço que me desculpe. Tenho de tomar banho e me vestir para o banquete, Será que ainda tenho aquele vestido de cota de malha que gosto de vestir por cima da roupa intima de couro fervido? - deu-lhe seu sorriso perverso e atravessou a ponte com aquele andar que Theon tanto tinha gostado, em parte passeio, em parte balanço. Quando Theon se virou, Wex estava sorrindo. Deu uma pancada na orelha do garoto: - Isto é por estar se divertindo tanto - e outra, com mais força. - E isto é por não me avisar. Da próxima vez, arranje uma língua. Seus aposentos na Fortaleza dos Hóspedes nunca tinham parecido tão gelados, apesar de os servos terem deixado um braseiro ardendo. Theon arrancou as botas, deixou que o manto caísse no chão e serviu-se de uma taça de vinho, recordando uma garota desajeitada com joelhos salientes e espinhas. Ela desamarrou meus calções, pensou, ultrajado, e disse... oh, deuses, e eu disse... Gemeu. Não poderia ter feito maior papel de idiota. Não, ele continuou seu embate. Foi ela quem fez de mim um idiota. A cadela perversa deve ter adorado cada momento. E a maneira como não parava de pôr a mão na minha pica... Pegou a taça e se dirigiu ao banco da janela, onde se sentou, bebendo e observando o mar enquanto o sol escurecia sobre Pyke. Não tenho lugar aqui, pensou, e Asha é o motivo. Que os Outros a levem! A água, lá embaixo, mudou de verde para cinza e de cinza para preto. Àquela altura já ouvia música distante e percebeu que era hora de trocar de roupa para o banquete. Theon escolheu botas simples e roupas ainda mais simples, sóbrios tons de negro e cinza para combinar com seu humor. Nenhum ornamento; nada possuía que tivesse sido comprado com ferro. Devia ter tirado qualquer coisa daquele selvagem que matei para salvar Bran Stark, mas ele não tinha nada que valesse a pena. E a minha maldita sorte, mato os pobres. O longo salão fumacento estava apinhado com os senhores e capitães do pai quando Theon entrou, quase quatrocentos. Dagmer Boca Rachada ainda não tinha voltado de Velha Wyk com os Stonehouse e os Drumm, mas todos os outros se encontravam ali; os Harlaw de Harlaw, os Blacktyde de Pretamare, os Sparr, Merlyn e Goodbrother de Grande Wyk, os Saltcliff e Sunderlie de Salésia, e os Botley e Wynch do outro lado de Pyke. Os servos ofereciam cerveja, e havia música, rabecas, foles e tambores. Três homens corpulentos dançavam a dança dos dedos, atirando uns aos outros machados de cabo curto. O truque era pegar o machado ou saltar sobre ele sem errar um passo. Chamava-se dança dos dedos porque geralmente terminava quando um dos dançarinos perdia um dedo... ou dois, ou cinco. 255 Nem os dançarinos nem os homens que bebiam prestaram grande atenção a Theon Greyjoy quando ele se dirigiu ao estrado. Lorde Balon ocupava a Cadeira de Pedra do Mar, esculpida em forma de uma grande lula gigante a partir de um imenso bloco de pedra negra oleosa. Rezava a lenda que os Primeiros Homens tinham-na encontrado na costa de Velha Wyk quando chegaram às Ilhas de Ferro. A esquerda do cadeirão estavam os tios de Theon. Asha estava aninhada à direita, no lugar de honra. - Chega tarde, Theon - observou Lorde Balon. - Peço-lhe perdão - Theon ocupou o lugar vazio ao lado de Asha, Aproximando-se, sibilou ao seu ouvido: - Está no meu lugar. Ela se virou para ele com olhos inocentes. - Irmão, certamente se engana. Seu lugar é em Winterfell - o sorriso de Asha cortava. – E onde estão todas as roupas bonitas? Ouvi dizer que gostava de sentir seda e veludo contra a pele - ela estava vestida de suave lã verde, com um corte simples que fazia o tecido aderir ao esbelto contorno do seu corpo. - Seu camisão deve ter enferrujado, irmã - Theon atirou em resposta. - Uma grande pena. Gostaria de vê-la toda vestida de ferro. Asha limitou-se a soltar uma gargalhada. -Talvez ainda veja, irmãozinho... Se acha que sua Cadela do Mar consegue acompanhar meu Vento Negro - um dos servos do pai se aproximou, transportando um jarro de vinho, - Hoje bebe cerveja ou vinho, Theon? - ela se aproximou mais. - Ou será que ainda sente sede de um pouco do leite da minha mãe? Theon corou. - Vinho - ele disse ao servo. Asha virou a cabeça e bateu na mesa, gritando por cerveja. Theon partiu um pão ao meio, tirou uma côdea do miolo e chamou um cozinheiro para enchê-la com guisado de peixe. O cheiro do molho espesso o deixou um pouco agoniado, mas forçou-se a comer alguma coisa. Tinha bebido vinho suficiente para continuar flutuando ao longo de duas refeições. Se vomitar, será sobre ela, - O pai sabe que se casou com aquele carpinteiro? - perguntou à irmã.
- Não mais do que Sigrin - ela encolheu os ombros. - Esgred foi o primeiro navio que ele construiu. Deu-lhe o nome da mãe. Dificilmente conseguiria dizer de qual das duas ele gosta mais. - Cada palavra que me disse foi uma mentira. - Cada palavra não. Lembra-se de quando lhe disse que gosto de ficar por cima? - Asha sorriu. Isso só o irritou mais, - Toda aquela conversa sobre ser uma mulher casada e recém-engravidada... - Ah, essa parte é bem verdadeira - Asha pôs-se em pé de um salto. - Rolfe, aqui – gritou para um dos dançarinos dos dedos, erguendo uma mão. Ele a viu, rodopiou, e de repente um machado levantou voo da sua mão, com a lâmina cintilando enquanto rodopiava à luz dos archotes. Theon teve tempo apenas para se sobressaltar antes de Asha roubar o machado do ar e atirá-lo à mesa, quebrando seu tabuleiro ao meio e respingando o conteúdo sobre o manto dele. - Este é o senhor meu esposo - a irmã de Theon enfiou a mão no vestido e puxou um punhal de entre os seios. - E este é o meu querido bebê de peito. Theon Greyjoy não conseguiria imaginar sua cara naquele momento, mas subitamente percebeu que o Grande Salão ressoava com gargalhadas, todas à sua custa. Até o pai sorria, malditos fossem os deuses, e tio Victarion ria em voz alta. A melhor resposta que conseguiu arranjar foi um esgar enjoado. Veremos quem vai rir quando tudo isso chegar ao fim, cachorra. 256 Asha arrancou o machado da mesa e voltou a atirá-lo aos dançarinos, por entre assobios e sonoros vivas. - Faria bem em prestar atenção ao que lhe disse sobre a escolha de uma tripulação - um servo ofereceu-lhes uma bandeja; ela apunhalou um peixe salgado e o comeu diretamente da ponta da adaga. - Se tivesse se incomodado em aprender alguma coisa a respeito de Sigrin, nunca teria se enganado. Um lobo durante dez anos, e desembarca aqui pensando que reina sobre as ilhas, mas não conhece nada nem ninguém. Por que os homens iriam lutar e morrer por você? - Sou seu legítimo príncipe - Theon respondeu rigidamente. - Segundo as leis das terras verdes, pode ser que seja. Mas nós aqui fazemos nossas próprias leis, ou será que se esqueceu? De cara fechada, Theon virou-se para contemplar o tabuleiro que derramava líquido à sua frente. Não tardava, poderia ter guisado caindo no seu colo. Gritou por um servo que limpasse tudo aquilo. Esperei poder voltar para casa durante metade da minha vida, e para quê? Troça e desprezo? Aquela não era a Pyke de que se lembrava. Mas lembraria mesmo? Era tão novo quando o levaram como refém. O banquete foi uma coisa bastante pobre, uma sucessão de guisados de peixe, pão preto e cabra sem tempero, A coisa mais saborosa que Theon encontrou para comer foi uma torta de cebola. Cerveja e vinho continuaram a fluir bem depois do último dos pratos ter sido levado. Lorde Balon Greyjoy levantou-se da Cadeira de Pedra do Mar: - Terminem as suas bebidas e venham até meu aposento privado - ordenou aos que o acompanhavam no estrado. - Temos planos a traçar - deixou-os sem mais uma palavra, flanqueado por dois dos seus guardas. Os irmãos seguiram-no pouco depois. Theon levantou-se para ir atrás deles. - Meu irmãozinho está com pressa de ir embora - Asha ergueu o corno e gesticulou por mais cerveja. - O senhor nosso pai está esperando. - E tem estado, há muitos anos, Não lhe fará mal nenhum esperar um pouco mais... Mas, se teme a sua ira, corra atrás dele, vá. Não deve ter problemas em alcançar nossos tios - ela sorriu. - Afinal, um deles está bêbado de água do mar, e o outro é um grande boi castrado cinza, tão obtuso que provavelmente se perderá. Theon voltou a se sentar, aborrecido. - Não corro atrás de homem nenhum. - De homem nenhum, mas de todas as mulheres? - Não fui eu quem agarrou o seu pau. - Não tenho um, lembra? Mas foi bem rápido em agarrar todas as outras partes de mim. Theon sentiu o sangue subindo ao rosto. - Sou um homem com os apetites de um homem. Que tipo de criatura desnaturada é você? - Apenas uma tímida donzela - a mão de Asha dardejou sob a mesa e deu um apertão no seu sexo. Theon quase saltou da cadeira. - O quê? Não quer que o conduza para o porto, irmão? - O casamento não é para você - decidiu Theon. - Quando eu governar, acho que a mandarei para as irmãs silenciosas - ficou em pé e foi embora, um pouco desequilibrado, em busca do pai. Chovia quando chegou à ponte oscilante que levava à Torre do Mar. Seu estômago estava agitado e batendo como as ondas lá embaixo, e o vinho tinha deixado seus pés pouco firmes. Theon rangeu os dentes e agarrou-se bem à corda ao longo da travessia, fazendo de conta que era o pescoço de Asha que estava apertando. 257
O aposento privado estava muito úmido e cheio de correntes de ar como sempre. Enterrado em seu roupáo de pele de foca, seu pai encontrava-se sentado à frente do braseiro, ladeado pelos irmãos. Victarion falava de ventos e marés quando Theon entrou na sala, mas Lorde Balon fez-lhe sinal para que se calasse. - Já fiz meus planos. É hora que os ouçam. - Eu tenho algumas sugestões,,. - Quando eu precisar do seu conselho, vou pedi-lo - respondeu seu pai, - Chegou-nos uma ave de Velha Wyk. Dagmer está a caminho com os Drumm e os Stonehouse. Se o deus nos der bons ventos, zarparemos quando eles chegarem,., Você zarpará. Quero que dê o primeiro golpe, Theon. Levará oito dracares para norte... - Oito? - seu rosto ficou vermelho. - O que posso esperar conseguir com apenas oito dracares? - Deverá assolar a Costa Rochosa, saqueando as aldeias de pescadores e afundando qualquer navio que possa encontrar. Pode ser que faça com que alguns dos senhores do norte saiam das suas muralhas de pedra. Aeron vai acompanhá-lo, bem como Dagmer Boca Rachada. - Que o Deus Afogado abençoe nossas espadas - o sacerdote se manifestou. Theon sentiu-se como se lhe tivessem dado um tabefe. Estavam mandando que fizesse trabalho de salteador, queimando os casebres dos pescadores e estuprando suas feias filhas, e mesmo assim parecia que Lorde Balon não confiava nele o suficiente até para fazer isso. Já era ruim o bastante ter de agüentar as sobrancelhas franzidas e as reprimendas do Cabelo-Molhado. Com Dagmer Boca Rachada junto, seu comando seria puramente nominal. - Asha, minha filha - prosseguiu Lorde Balon, e Theon virou-se para ver que a irmã tinha entrado em silêncio na sala. - Você leva trinta dracares com homens escolhidos para lá da Ponta do Dragão Marinho. Desembarque nas planícies de maré a norte de Bosque Profundo. Marche rapidamente, e o castelo pode cair antes mesmo que saibam que está atacando. Asha sorriu como um gato diante do leite. - Sempre quis um castelo - ela respondeu, com voz doce. - Então tome um. Theon teve de morder a língua. Bosque Profundo era a fortaleza dos Glover. Com Robett e Galbart guerreando no sul, estaria fracamente defendido, e uma vez tomado o castelo, os homens de ferro teriam uma base segura no coração do norte. Devia ser eu o enviado para tomar Bosque Profundo. Ele conhecia Bosque Profundo, tinha visitado os Glover várias vezes com Eddard Stark. - Victarion - disse Lorde Balon ao irmão o ataque principal caberá a você. Quando meus filhos tiverem dado seus golpes, Winterfell terá de responder. Deverá encontrar pouca oposição enquanto subir a Lança de Sal e o Rio Febre. Na nascente estará a menos de vinte milhas de Fosso Cailin. O Gargalo é a chave do reino. Já dominamos os mares ocidentais. Uma vez que estivermos na posse de Fosso Cailin, o filhote não será capaz de reconquistar o Norte... E, se for suficientemente louco para tentar, seus inimigos selarão a extremidade sul do talude nas suas costas, e Robb, o Rapaz, se verá encurralado como uma ratazana numa garrafa, Theon não conseguiu continuar em silêncio. - Um plano ousado, pai, mas os senhores nos seus castelos... Lorde Balon o interrompeu: - Os senhores foram ao sul com o filhote. Os que ficaram para trás são os covardes, velhos e garotos imaturos. Vão se render, ou cairão um por um. Winterfell pode resistir durante um ano, 258 mas, e daí? O resto será nosso, florestas, campos e palácios, e faremos do povo nossos servos e esposas de sal. Aeron Cabelo-Molhado ergueu as mãos: - E as águas da ira vão se erguer, e o Deus Afogado espalhará seu domínio pelas terras verdes! - O que está morto não pode morrer - Victarion entoou. Lorde Balon e Asha fizeram coro, e Theon não teve escolha a não ser resmungar as palavras com eles. E então acabou-se. Lá fora, a chuva caía com mais força do que nunca. A ponte de corda balançava e torcia-se sob seus pés. Theon Greyjoy parou no meio do caminho e contemplou as rochas lá embaixo. O ruído das ondas era um rugido esmagador, e sentia o sal nos lábios. Uma súbita rajada de vento fez com que perdesse o equilíbrio, e caiu de joelhos. Asha ajudou-o a ficar em pé. - Também não consegue agüentar o vinho, irmão. Theon apoiou-se no ombro dela e a deixou guiá-lo pelas tábuas escorregadias da chuva. - Gostava mais de você quando era Esgred - disse-lhe acusadoramente. Ela riu. - É justo. Eu gostava mais de você quando era um menino de nove anos. 259
Tyrion Osom suave da harpa vertical atravessava a porta, misturado com trinados de flauta, A voz do cantor era abafada pelas paredes espessas, mas Tyrion conhecia os versos. Amei uma donzela bela como o verão, recordou, com a luz do sol nos cabelos... Naquela noite era Sor Meryn Trant quem guardava a porta da rainha. Seu resmungo de "Senhor" pareceu a Tyrion conter alguma má vontade, mas abriu a porta. A canção interrompeu-se abruptamente quando ele entrou no quarto de dormir da irmã. Cersei estava reclinada numa pilha de almofadas. Tinha os pés descalços, os cabelos dourados cuidadosamente desordenados, e vestia um roupão de samito verde e dourado que capturava a luz das velas, e cintilou quando ela ergueu os olhos. - Querida irmã - disse Tyrion - , como está bela esta noite - virou-se para o cantor: - E você também, primo. Não fazia idéia de que tivesse uma voz tão adorável. O elogio deixou Sor Lancei carrancudo; talvez pensasse que estava sendo escarnecido. Parecia a Tyrion que o rapaz tinha crescido sete centímetros desde que fora armado cavaleiro. Lancei tinha cabelos espessos cor de areia, verdes olhos de Lannister e uma suave penugem loura sobre o lábio superior. Aos dezesseis anos, era amaldiçoado por todas as certezas da juventude, sem o tempero do menor traço de humor ou de autocrítica, e estava casado com a arrogância que enchia com tanta naturalidade aqueles que nasciam louros, fortes e bonitos. Sua recente ascensão social só o tinha deixado pior. - Sua Graça mandou chamá-lo? - o rapaz exigiu saber. - Que me lembre, não - Tyrion admitiu. - Dói-me perturbar seu divertimento, Lancei, mas acontece que tenho assuntos de importância a discutir com minha irmã. Cersei o encarou com suspeita: - Se veio aqui por causa daqueles irmãos suplicantes, Tyrion, poupe-me as suas censuras. Não aceitarei que espalhem pelas ruas suas imundas traições. Podem pregar uns aos outros nas masmorras. - E têm sorte por terem uma rainha tão piedosa - Lancei acrescentou. - Eu teria arrancado suas línguas. - Um deles até se atreveu a dizer que os deuses estavam nos punindo porque Jaime assassinou o legítimo rei - Cersei declarou. - Não suportarei mais isto, Tyrion. Dei-lhe ampla oportunidade para tratar destes piolhos, mas você e seu Sor Jacelyn não fizeram nada, portanto, ordenei que Vylarr tratasse do assunto, - E foi o que ele fez - Tyrion ficara aborrecido quando os homens de manto vermelho arrastaram meia dúzia dos escabrosos profetas para as masmorras sem consultá-lo, mas não eram suficientemente importantes para lutar por causa deles. - Sem dúvida ficaremos todos melhor 260 com um pouco de sossego nas ruas. Não foi por isso que vim. Trago novas que sei estará desejosa por ouvir, querida irmã, mas é melhor que sejam dadas em particular. - Muito bem - o harpista e o flautista fizeram reverências e apressaram-se a sair, enquanto Cerí sei beijava castamente o sobrinho na bochecha. - Deixe-nos, Lancei. Meu irmão é inofensivo quando está sozinho. Se tivesse trazido seus animais de estimação, conseguiríamos sentir o fedor deles. O jovem cavaleiro dirigiu um olhar maligno ao primo e bateu com a porta ao sair. - Quero que saiba que obriguei Shagga a tomar banho de quinze em quinze dias - disse Tyrion quando Lancei saiu. - Está muito satisfeito consigo mesmo, não está? Por quê? - E por que não? - Tyrion respondeu. Todos os dias, e todas as noites, ressoavam martelos na Rua do Aço, e a grande corrente crescia. Saltou para cima da grande cama de dossel. – Foi nesta cama que Robert morreu? Surpreende-me que a tenha mantido. - Dá-me sonhos cor-de-rosa. Agora, cuspa o que tem a dizer e se bamboleie daqui para fora, Duende. Tyrion sorriu. - Lorde Stannis zarpou de Pedra do Dragão. Cersei pôs-se em pé como uma mola. - E você fica aí sorrindo como uma abóbora do dia das colheitas? Bywater já chamou a Patrulha da Cidade? Temos que enviar imediatamente uma ave para Harrenhal - Tyrion já estava rindo. Ela o agarrou pelos ombros e o sacudiu. - Pare com isso. Está louco, ou bêbado? Pare com isso! Tyrion quase não conseguiu botar as palavras para fora. - Não posso - arquejou. - E demais... deuses, é engraçado demais... Stannis... - O quê? - Ele não zarpou contra nós - finalmente Tyrion conseguiu dizer. - Montou cerco a Ponta Tempestade. Renly avança contra ele.
As unhas da irmã enterraram-se dolorosamente em seus braços. Por um momento fitou-o, incrédula, como se ele tivesse começado a tagarelar numa língua desconhecida. - Stannis e Renly estão lutando um contra o outro? - quando Tyrion confirmou com a cabeça, Cersei começou a soltar risadinhas. - Que os deuses sejam bons - suspirou. - Começo a achar que Robert era o inteligente da família. Tyrion jogou a cabeça para trás e desatou a gargalhar. Os dois riram juntos. Cersei arrancou-o da cama e rodopiou com ele, e até o abraçou, por um momento, insensata como uma menina. Quando o largou, Tyrion estava sem fôlego e tonto. Cambaleou até o aparador e estendeu uma mão para se firmar. - Crê que chegarão a travar uma batalha entre si? Se chegarem a algum acordo... - Não chegarão - Tyrion afirmou. - São diferentes demais, e ao mesmo tempo muito parecidos, e nenhum jamais suportou o outro. - E Stannis sempre se sentiu espoliado de Ponta Tempestade - Cersei disse, pensativa. – A sede ancestral da Casa Baratheon, legitimamente sua... Se soubesse quantas vezes foi até Robert para cantar essa canção tediosa naquele tom sombrio e ofendido que tem. Quando Robert deu o lugar a Renly, Stannis apertou tanto os dentes que pensei que fossem se estilhaçar. - Encarou isso como uma desfeita. - Foi pensado como uma desfeita - Cersei afirmou. - Fazemos um brinde ao amor fraternal? - Sim - ela respondeu, sem fôlego. - Oh, deuses, sim. 261 Estava de costas para ela enquanto enchia duas taças com tinto doce da Árvore. Foi a coisa mais fácil do mundo polvilhar a dela com uma pitada de pó fino. - A Stannis! - ele exclamou ao entregar-lhe o vinho. Quer dizer então que sou inofensivo quando estou sozinho? - A Renly! - ela respondeu, rindo. - Que batalhem longa e duramente, e que os Outros carreguem ambos! Será esta a Cersei que Jaime vê? Quando sorria, via-se realmente como era bela. Amei uma donzela bela como o verão, com a luz do sol nos cabelos. Quase teve pena de envenená-la, Foi na manhã seguinte, enquanto Tyrion tomava o desjejum, que o mensageiro dela chegou. A rainha sentia-se indisposta, e não seria capaz de sair de seus aposentos. O mais certo é dizer que não será capaz de sair da latrina, Tyrion soltou os ruídos apropriados de compreensão e mandou dizer a Cersei que ficasse descansada, ele trataria com Sor Cleos conforme tinham planejado. O Trono de Ferro de Aegon, o Conquistador, era um emaranhado de farpas perigosas e dentes irregulares de metal à espera de qualquer tolo que tentasse se sentar com excessivo conforto, e os degraus enchiam suas pernas atrofiadas de cãibras enquanto subia, consciente demais do espetáculo absurdo que aquilo devia constituir. Mas havia uma coisa a dizer em seu favor. Era alto. Guardas Lannister estavam a postos e em silêncio nos seus mantos carmesim e meios elmos encimados por leões. Os homens de manto dourado de Sor Jacelyn defrontavamnos do outro lado do salão. Os degraus até o trono eram flanqueados por Bronn e Sor Preston, da Guarda Real. Os cortesãos enchiam a galeria, ao passo que os suplicantes se aglomeravam perto das grandes portas de carvalho e bronze. Sansa Stark estava particularmente linda naquela manhã, embora seu rosto se mostrasse pálido como leite. Lorde Gyles tossia, enquanto o pobre primo Tyrek vestia sua capa de noivo de pele de esquilo e veludo. Desde seu casamento com a pequena Senhora Ermesande, três dias antes, os outros escudeiros tinham começado a chamá-lo de "Ama de Leite", perguntando-lhe que tipo de cueiros sua noiva usara na noite de núpcias. Tyrion olhou todos de cima, e descobriu que gostava. - Chamem Sor Cleos Frey - sua voz ressoou nas paredes de pedra e ao longo do salão. Também gostou disso. Uma pena que Shae não possa estar aqui para ver isto, refletiu. Ela pedira para vir, mas era impossível. Sor Cleos fez a longa caminhada entre os homens de manto dourado e os de carmim, sem olhar para os lados. Quando se ajoelhou, Tyrion reparou que o primo estava perdendo o cabelo. - Sor Cleos - disse Mindinho, da mesa do conselho tem os nossos agradecimentos por nos trazer esta oferta de paz de Lorde Stark. O Grande Meistre Pycelle pigarreou: - A Rainha Regente, a Mão do Rei e o pequeno conselho refletiram sobre os termos apresentados por este autoproclamado Rei do Norte. Infelizmente, eles não servirão, e você terá de dizer isso a esses nortenhos, sor, - Eis os nossos termos - Tyrion anunciou. - Robb Stark deve baixar a espada, jurar lealdade e retornar a Winterfell. Deve libertar meu irmão, incólume, e colocar sua tropa sob o comando de Jaime, a fim de marchar contra os rebeldes Renly e Stannis Baratheon. Cada um dos vassalos dos Stark deverá nos enviar um filho como refém. Uma filha servirá quando não houver um filho. Serão bem tratados e receberão posições importantes aqui na corte, desde que seus pais não voltem a cometer traição. Cleos Frey fez uma expressão agoniada: - Senhor Mão, Lorde Stark nunca aceitará esses termos.
262 Nunca esperamos que os aceitasse, Cleos. - Diga-lhe que recrutamos outra grande tropa em Rochedo Casterly, que em breve marchará sobre ele, vinda do oeste, enquanto o senhor meu pai avança do leste. Diga-lhe que está só, sem esperança de obter aliados. Stannis e Renly Baratheon guerreiam um contra o outro, e o Príncipe de Dorne consentiu em casar seu filho Trystane com a Princesa Myrcella - murmúrios de satisfação e consternação foram ouvidos na galeria e ao fundo do salão. - E quanto ao assunto dos meus primos - prosseguiu Tyrion - , oferecemos Harrion Karstark e Sor Wylis Manderly por Willem Lannister, e Lorde Cerwyn e Sor Donnal Locke por seu irmão Tion. Diga ao Stark que dois Lannister valem por quatro nortenhos em qualquer época – esperou que o riso morresse. - E receberá os ossos do pai de qualquer modo, em sinal de boa-fé de Joffrey. - Lorde Stark pediu também as irmãs e a espada do pai - recordou-lhe Sor Cleos. Sor Ilyn Payne estava mudo, com o cabo da espada de Eddard Stark espreitando por sobre um ombro. - Gelo - Tyrion confirmou. - Ele a receberá quando fizer a paz conosco, nunca antes. - As suas ordens. E as irmãs? Tyrion olhou Sansa de relance, e sentiu uma ferroada de piedade enquanto falava: - Até que liberte meu irmão Jaime, incólume, permanecerão aqui como reféns. O modo como serão tratadas depende dele - e se os deuses forem bondosos, Bywater encontrará Arya viva, antes que Robb fique sabendo que ela desapareceu. - Levarei sua mensagem até eles, senhor. Tyrion segurou uma das lâminas retorcidas que se projetavam dos braços do trono. E agora, o ataque. - Vylarr - ele chamou. - Senhor. - Os homens que Stark enviou são suficientes para proteger os ossos de Lorde Eddard, mas um Lannister deve ter uma escolta digna do nome - Tyrion declarou. - Sor Cleos é primo da rainha, e também meu. Dormiremos mais tranqüilos se o levasse em segurança até Correrrio. - Às suas ordens. Quantos homens devo levar? - Ora, todos! Vylarr ficou imóvel, como um homem feito de pedra. Foi Grande Meistre Pycelle quem se ergueu, arquejando: - Senhor Mão, isso não pode,.. Seu pai, o próprio Lorde Tywin, enviou esses bons homens para a nossa cidade, a fim de proteger a Rainha Cersei e os seus filhos... - A Guarda Real e a Patrulha da Cidade protegem-nos suficientemente bem. Que os deuses apressem a sua viagem, Vylarr, Na mesa do conselho, Varys sorria, com ar sabedor, Mindinho fingia enfado, e Pycelle abria a boca como um peixe, pálido e confuso. Um arauto avançou, - Se algum homem tem outros assuntos a colocar à Mão do Rei, que fale agora ou mantenha o silêncio. - Eu serei ouvido - um homem esbelto, todo vestido de negro, abriu caminho por entre os gêmeos Redwyne, - Sor Alliser! - Tyrion exclamou. -Ah, não fazia idéia de que tinha vindo à corte. Deveria ter me enviado uma nota. - Foi o que fiz, como o senhor bem sabe - Thorne era tão espinhoso como seu nome, um homem seco, de feições angulosas, com cinqüenta anos, de olhos e mãos duros, com o cabelo 263 preto rajado de cinza. - Fui evitado, ignorado e deixado à espera como se fosse um criado plebeu qualquer. - E verdade? Bronn, isto não está certo. Sor Alliser e eu somos velhos amigos. Percorremos juntos a Muralha. - Querido Sor Alliser - Varys murmurou - , não deve pensar muito mal de nós. Há tantos que procuram a graça do nosso JofFrey nestes tempos conturbados. - Mais conturbados do que imagina, eunuco. - Na frente dele chamamos de Lorde Eunuco - gracejou Mindinho. - Como podemos ajudá-lo, bom irmão? - perguntou Grande Meistre Pycelle num tom de voz apaziguador. - O Senhor Comandante enviou-me à Sua Graça, o rei - Thorne respondeu. - O assunto é grave demais para ser deixado a criados. - O rei está brincando com sua nova besta - Tyrion disse. Ver-se livre de JofFrey tinha custado apenas uma desajeitada besta de Myr que disparava três projéteis de uma só vez, e o rei não quis saber de mais nada até ir experimentá-la de imediato. - Pode falar aos criados ou manter-se em silêncio. - Como quiser - Sor Alliser concordou, mostrando desagrado em cada palavra. - Fui enviado para lhes dizer que encontramos dois patrulheiros, há muito desaparecidos. Estavam mortos, mas quando trouxemos os cadáveres para a Muralha, voltaram a se levantar na noite. Um deles matou Sor Jaremy Rykker, enquanto o segundo tentou assassinar o Senhor Comandante.
A distância, Tyrion ouviu o riso abafado de alguém. Pretende caçoar de mim com esta loucura? Mexeu-se, incomodado, no trono, e lançou um olhar para Varys, para Mindinho e para Pycelle, perguntando a si mesmo se algum deles desempenhara algum papel naquilo. Um anão conseguia, no máximo, segurar a dignidade de forma tênue. Se a corte e o reino começassem a rir dele, estava condenado. E, no entanto... no entanto... Tyrion lembrou-se de uma noite fria sob as estrelas, quando parou com o rapaz Jon Snow e um grande lobo branco no topo da Muralha no fim do mundo, olhando a escuridão sem trilhos que se estendia adiante. Sentira... o quê?... algo, certamente, um pavor que cortava como aquele vento gelado do norte. Um lobo tinha uivado na noite, e o som dera-lhe arrepios. Não seja tonto, disse a si mesmo. Um lobo, um vento, uma floresta escura, não queriam dizer nada. E, no entanto... Tinha simpatizado com o velho Jeor Mormont durante o tempo que passara em Castelo Negro. - Confio que o Velho Urso sobreviveu a esse ataque? - Sobreviveu. - E que seus irmãos mataram estes, ah, mortos? - Matamos. - Estão certos de que desta vez estão mortos? - Tyrion perguntou num tom suave. Quando Bronn engasgou, estrangulando uma gargalhada, compreendeu como devia agir. - Mortos, mortos mesmo? - Estavam mortos da primeira vez - Sor Alliser exclamou. - Pálidos e frios, com mãos e pés negros. Trouxe a mão de Jared, arrancada do seu cadáver pelo lobo do bastardo. Mindinho deu sinal de vida. - E onde está essa encantadora lembrança? Sor Aliser franziu a testa, com desconforto. 264 - Ela... desfez-se em pedaços, podre, enquanto eu esperava sem ser ouvido. Nada resta para mostrar, a não ser ossos. Risos abafados ecoaram pelo salão. - Lorde Baelish - disse Tyrion a Mindinho - , compre para o nosso bravo Sor Alliser uma centena de pás para levar consigo de volta à Muralha. - Pás? - Sor Alliser estreitou os olhos com suspeita. - Se enterrar seus mortos, eles não ficarão andando por aí - disse-lhe Tyrion, e a corte riu abertamente. - Pás, com algumas costas fortes para manejá-las, darão fim aos seus problemas. Sor Jacelyn, deixe o bom irmão escolher os homens que quiser nas masmorras da cidade. Sor Jacelyn Bywater respondeu: - Como quiser, senhor, mas as celas estão quase vazias. Yoren levou todos os homens adequados. - Então prenda mais alguns - disse-lhe Tyrion. - Ou espalhe a notícia de que há pão e nabos na Muralha, e eles irão por vontade própria - a cidade tinha bocas demais para alimentar, e a E itrulha da Noite, uma perpétua necessidade de homens. Ao sinal de Tyrion, o arauto anunciou o fim da audiência, e o salão começou a se esvaziar. Sor Alliser Thorne não era mandado embora com tanta facilidade. Estava à espera, na base do Trono de Ferro, quando Tyrion desceu. - Acha que fiz toda a viagem de Atalaialeste do Mar para ser ridicularizado por gente como você? - esbravejou, bloqueando a passagem. - Isto não é nenhuma brincadeira. Vi-os com meus próprios olhos. E repito: os mortos caminham. - Devia tentar matá-los mais completamente - Tyrion abriu caminho para passar. Sor Alliser fez um gesto para agarrar sua manga, mas Preston Greenfield afastou-o com um empurrão. - Mais perto, não, sor, Thorne tinha suficiente bom-senso para não desafiar um cavaleiro da Guarda Real. - E um tolo, Duende - gritou para as costas de Tyrion. Tyrion virou-se para encará-lo. - Eu? Verdade? Então, por que eles estavam rindo de você? - deu um sorriso triste. – Veio em busca de homens, não foi? - Os ventos frios se levantam. A Muralha tem de ser defendida. - E para defendê-la precisam de homens, que eu lhes dei... Como talvez tivesse notado, se suas orelhas ouvissem algo mais que insultos. Leve-os, agradeça-me, e desapareça antes que eu seja forçado a enfrentálo outra vez com um garfo para caranguejos. Dê meus melhores cumprimentos a Lorde Mormont.,, e também a Jon Snow - Bronn agarrou Sor Alliser pelo cotovelo e o tirou à força do salão. Grande Meistre Pycelle já tinha corrido para fora do salão, mas Varys e Mindinho observaram tudo, do princípio ao fim. - Cada vez o admiro mais, senhor - confessou o eunuco. - Apazigua o rapaz Stark com os ossos do pai e priva sua irmã dos seus protetores de um só golpe rápido. Dá àquele irmão negro os homens de que necessita, livrando a cidade de algumas bocas famintas, e faz com que tudo pareça troça para que ninguém diga que o anão teme os snarks e os gramequins. Oh, muito hábil.
Mindinho afagou a barba, - Pretende mesmo mandar todos os seus guardas embora, Lannister? - Não, pretendo mandar embora todos os guardas da minha irmã, - A rainha nunca permitirá tal coisa. 265 -Ah, penso que talvez permita. Eu sou seu irmão, e quando me conhecer melhor, saberá que sou sempre sincero naquilo que digo. - Mesmo nas mentiras? - Especialmente nas mentiras. Lorde Petyr, sinto que está descontente comigo. - Gosto tanto de você como sempre gostei, senhor. Embora não aprecie que me façam de bobo. Se Myrcella se casar com Trystane Martell, dificilmente poderá se casar com Robert Arryn, não é mesmo? - Não sem causar um grande escândalo - admitiu. - Lamento meu pequeno estratagema, Lorde Petyr, mas, quando conversamos, não tinha como saber que os homens de Dorne aceitariam minha oferta. Aquilo não apaziguou Mindinho. - Não gosto que mintam para mim, senhor, Deixe-me fora do seu próximo logro. Só se você fizer o mesmo comigo, pensou Tyrion, olhando de relance o punhal embainhado junto ao quadril de Mindinho. - Se o ofendi, lamento profundamente. Todos sabem quanto o apreciamos, senhor. E quanto precisamos do senhor. - Tente se lembrar disso - com aquelas palavras, Mindinho os deixou. - Venha comigo, Varys - disse Tyrion. Saíram pela porta do rei, por detrás do trono, com os chinelos do eunuco raspando levemente na pedra. - Lorde Baelish tem razão, sabia? A rainha nunca permitirá que mande embora sua guarda. - Permitirá. O senhor vai cuidar disso. Um sorriso tremeluziu nos lábios fartos de Varys. - Ah, sim? - Oh, com certeza. Dirá que faz parte do meu plano para libertar Jaime. Varys afagou uma bochecha empoada. - Isto envolverá, sem dúvida, os quatro homens que o seu Bronn procurou com tanta diligência em todos os lugares de má fama de Porto Real. Um ladrão, um envenenador, um pantomimeiro e um assassino. - Enfie-os em manto carmesim e elmos com leões, e não parecerão nada diferentes dos outros guardas. Procurei durante algum tempo por um estratagema que pudesse introduzi-los em Correrrio antes de me lembrar de escondê-los à vista de todos. Entrarão pelo portão principal, exibindo estandartes Lannister e escoltando os ossos de Lorde Eddard - Tyrion deu um sorriso torto. - Quatro homens sós seriam bem vigiados. Quatro, no meio de uma centena, podem se perder. Por isso preciso mandar os guardas verdadeiros com os falsos... O que você dirá à minha irmã. - E pelo seu amado irmão, ela consentirá, apesar das desconfianças - os dois caminhavam por uma colunata deserta. - Apesar disso, a perda de seus homens de manto vermelho certamente irá deixá-la inquieta. - Gosto dela inquieta - Tyrion respondeu. Sor Cleos Frey partiu naquela mesma tarde, escoltado por Vylarr e cem guardas Lannister de manto vermelho. Os homens que Robb Stark enviara juntaram-se a eles no Portão do Rei, para a longa viagem rumo ao oeste. Tyrion encontrou Timett na caserna, jogando dados com seus Homens Queimados. - Venha ao meu aposento privado à meia-noite. Timett lançou-lhe um olhar duro e zarolho, e um pequeno aceno com a cabeça. Não era homem de longos discursos. 266 Naquela noite, Tyrion banqueteou-se com os Corvos de Pedra e os Irmãos da Lua no Salão Pequeno, embora por uma vez tenha evitado o vinho. Queria se manter na posse de todas as suas faculdades, - Shagga, em que lua estamos? O franzir da testa de Shagga era uma coisa feroz. - Negra, acho eu. - No oeste, chamam de lua do traidor. Tente não se embebedar muito esta noite, e garanta que seu machado esteja afiado. - O machado de um Corvo de Pedra está sempre afiado, e os machados de Shagga são os mais afiados de todos. Uma vez cortei a cabeça de um homem, mas ele só soube quando tentou escovar o cabelo. Porque, então, a cabeça caiu. - E por isso que nunca escova o seu? - os Corvos de Pedra rugiram gargalhadas e bateram os pés, com Shagga fazendo mais barulho do que todos os outros.
A meia-noite, o castelo estava silencioso e escuro. Certamente alguns homens de manto dourado nas muralhas viram-no saindo da Torre da Mão, mas ninguém ergueu a voz. Ele era a Mão do Rei, e aonde ia era assunto seu. A fina porta de madeira quebrou-se com um crac trovejante sob o salto da bota de Shagga. Pedaços voaram para dentro, e Tyrion ouviu um arquejo feminino de medo. Shagga desfez a porta com três poderosos golpes do seu machado e abriu caminho a chutes por entre as ruínas. Timett o seguiu, e depois entrou Tyrion, caminhando com cuidado por entre as lascas de madeira. A lareira tinha ardido até restarem apenas alguns carvões em brasa, e as sombras no quarto de dormir eram pesadas. Quando Timett arrancou as pesadas cortinas da cama, a criada nua sentou-se com grandes olhos brancos. - Por favor, senhores - suplicou - , não me façam mal - afastou-se de Shagga, corada e temerosa, tentando cobrir seus encantos com as mãos, mas faltando-lhe uma. - Vá - disse-lhe Tyrion. - Não é você que queremos. - Shagga quer esta mulher. - Shagga quer todas as putas desta cidade de putas - queixou-se Timett, filho de Timett. - Sim - disse Shagga, impassível. - Shagga dava-lhe um filho forte. - Se ela quiser um filho forte, saberá quem procurar - Tyrion interveio. - Timett, leve-a lá para fora... com gentileza, por favor. O Homem Queimado puxou a moça da cama e quase a arrastou pelo aposento. Shagga ficou vendo-os partir, desolado como um cachorrinho, A moça tropeçou na porta estilhaçada, e saiu para o átrio, ajudada por um empurrão firme de Timett. Por cima de sua cabeça, os corvos crocitavam. Tyrion arrancou o macio cobertor da cama, descobrindo o Grande Meistre Pycelle, - Diga-me, a Cidadela aprova que se deite com as moças de servir, meistre? O velho estava tão nu como a moça, embora fosse uma visão marcadamente menos atraente. Por uma vez, seus olhos de pálpebras pesadas estavam escancarados. - Q-que significa isto? Sou um velho, seu servo leal... Tyrion içou-se para cima da cama. - Tão leal que enviou apenas uma de minhas cartas a Doran Martell, A outra entregou à minha irmã. - N-não - Pycelle guinchou. - Não, é uma falsidade, juro, não fui eu. Varys, foi Varys, a Aranha, eu avisei... 267 - Será que todos os meistres mentem tão mal assim? Eu disse a Varys que ia dar ao Príncipe Doran meu sobrinho Tommen para criar. Disse a Mindinho que planejava casar Myrcella com Lorde Robert no Ninho da Águia. Não disse a ninguém que tinha oferecido Myrcella aos Dorne... Essa verdade encontrava-se apenas na carta que confiei ao senhor, Pycelle agarrou-se a um canto do cobertor. - As aves se perdem, as mensagens são roubadas ou vendidas... Foi Varys. Há coisas que poderia lhe dizer sobre esse eunuco que gelariam seu sangue... - Minha senhora prefere meu sangue quente. - Não se iluda, para cada segredo que o eunuco murmura ao seu ouvido, retém sete. E Mindinho, esse... - Sei tudo sobre Lorde Petyr. E quase tão indigno de confiança quanto você. Shagga, corte seu membro viril e o dê às cabras. Shagga levantou o enorme machado de lâmina dupla. - Não há cabras, Meio Homem. - Vire-se com o que houver. Rugindo, Shagga saltou. Pycelle soltou um guincho e molhou a cama, fazendo a urina jorrar em todas as direções quando tentou se encolher e ficar fora de alcance. O selvagem o agarrou pela ponta da revolta barba branca e cortou três quartos dela com um único golpe de machado. - Timett, acha que nosso amigo será mais cooperativo sem essa barba atrás da qual se esconde? - Tyrion usou um pedaço do lençol para limpar a urina das botas. - Ele vai contar a verdade em breve - a escuridão enchia o poço vazio do olho queimado de Timett. - Consigo cheirar o fedor do seu medo. Shagga atirou um punhado de cabelo nas esteiras, e agarrou a barba que restava. - Fique quieto, meistre - Tyrion pediu, - Quando Shagga se irrita, suas mãos tremem. - As mãos de Shagga nunca tremem - ecoou o enorme homem num tom indignado, empurrando a grande lâmina em forma de crescente contra o queixo trêmulo de Pycelle e cortando mais um emaranhado de pelos. - Há quanto tempo espiona para minha irmã? - Tyrion perguntou. A respiração de Pycelle era rápida e superficial: - Tudo o que fiz foi pela Casa Lannister - uma película de suor cobria a larga cúpula da cabeça do velho, e madeixas de cabelo branco aderiam à sua pele enrugada. - Sempre... durante anos... o senhor seu pai, pergunte-lhe, fui sempre seu servo fiel... fui eu quem pediu a Aerys para abrir os portões...
Aquilo pegou Tyrion de surpresa. Não era mais do que um menino feio em Rochedo Casterly quando a cidade caiu. - Então o Saque de Porto Real também foi obra sua? - Pelo reino! Uma vez morto Rhaegar, a guerra estava terminada. Aerys era louco; Viserys, novo demais; Príncipe Aegon, um bebê de colo, mas o reino necessitava de um rei... Rezei para que fosse seu pai, mas Robert era forte demais, e Lorde Stark movimentou-se muito depressa... - Pergunto a mim mesmo quantos já traiu. Aerys, Eddard Stark, eu... Rei Robert também? Lorde Arryn, Príncipe Rhaegar? Onde começa, Pycelle? - Tyrion sabia onde acabava. O machado arranhou o pomo de adão de Pycelle e atingiu a suave pele trêmula sob o queixo, raspando os últimos pelos. - Você... não estava aqui - o homem arquejou quando a lâmina subiu até suas bochechas. - Robert... os seus ferimentos... se os tivesse visto e cheirado, não teria nenhuma dúvida... 268 - Ah, eu sei que o javali fez o trabalho por você,., mas se o animal tivesse deixado o trabalho meio feito, sem dúvida você o teria terminado. - Ele era um rei deplorável... fútil, bêbado, libertino... Teria posto sua irmã de lado, sua própria rainha... Por favor... Renly estava conspirando para trazer a donzela de Jardim de Cima para a corte, para seduzir o irmão... É a verdade dos deuses... - E o que conspirava Lorde Arryn? - Ele sabia - Pycelle começou a responder. - Que... que... - Eu sei o que ele sabia - Tyrion o interrompeu, sem muita vontade que Shagga e Timett também descobrissem. - Ele ia enviar a esposa de volta para o Ninho da Águia, e o filho para ser criado em Pedra do Dragão... Pretendia agir... - Portanto, envenenou-o primeiro. - Não. Pycelle debateu-se debilmente. Shagga rosnou e agarrou-o pela cabeça. A mão do homem dos clãs era tão grande que podia ter esmagado o crânio do meistre como uma casca de ovo. Tyrion deu um estalido com a língua. - Eu vi as lágrimas de Lys entre as suas poções. Mandou embora o meistre de Lorde Arryn e cuidou dele em pessoa, para que pudesse se assegurar de que morria. - Uma falsidade! - Barbeie-o melhor - sugeriu Tyrion. - De novo a garganta. O machado voltou a descer, raspando a pele. Uma fina película de cuspe borbulhou nos lábios de Pycelle quando sua boca tremeu. - Tentei salvar Lorde Arryn. Juro... - Cuidado, Shagga, você o cortou. Shagga soltou um rosnado. - Dolf gerou guerreiros, não barbeiros. Quando sentiu o sangue escorrer pelo pescoço e para o peito, o velho estremeceu e as últimas forças o abandonaram. Parecia encolhido, menor e mais frágil do que quando caíram sobre si. - Sim - choramingou - , sim. Colemon o estava purgando, e por isso mandei-o embora. A rainha precisava de Lorde Arryn morto, ela não disse em palavras, não podia, Varys estava ouvindo, sempre ouvindo, mas quando a olhei, compreendi. Mas não fui eu quem lhe deu o veneno, juro - o velho desatou a chorar. - Varys dirá, foi o rapaz, o escudeiro, chamava-se Hugh, deve ter sido ele, certamente, pergunte à sua irmã, pergunte. Tyrion sentiu-se repugnado. - Amarre-o e o leve daqui - ordenou. - Atire-o em uma das celas negras. Arrastaram-no pela porta estilhaçada, - Lannister - gemeu o velho - , tudo o que fiz foi pelos Lannister. Depois que ele saiu, Tyrion calmamente fez uma busca nos aposentos e recolheu mais alguns pequenos frascos das prateleiras. Os corvos resmungavam por cima de sua cabeça enquanto trabalhava, um ruído estranhamente pacífico. Precisaria encontrar alguém para cuidar das aves até que a Cidadela enviasse um homem para substituir Pycelle. Era nele que eu esperava confiar. Suspeitava que Varys e Mindinho não eram mais leais, apenas mais sutis, e por isso mais perigosos, O jeito do pai talvez tivesse sido o melhor: chamar Ilyn Payne, montar três cabeças sobre os portões e encerrar o assunto. E não seria essa uma bela visão?, pensou. 269 Arya
O medo corta mais profundamente do que as espadas, dizia Arya a si mesma, mas aquilo não fazia com que a sensação de temor desaparecesse. Fazia tanto parte dos seus dias como pão bolorento e as bolhas nos pés, depois de um longo dia de caminhada pela estrada dura e sulcada. Achava que sabia o que era estar assustada, mas tinha aprendido melhor naquele armazém junto ao Olho de Deus. Permaneceu lá oito dias antes de a Montanha dar a ordem de marcha, e todos os dias viu alguém morrer. A Montanha chegava ao armazém depois do desjejum e escolhia um dos prisioneiros para interrogatório. As pessoas da aldeia não o olhavam. Talvez pensassem que se não o vissem, ele não as veria... Mas via-as de qualquer jeito, e escolhia quem quisesse. Não havia esconderijos, não havia truques a usar, não havia como estar a salvo. Uma moça dividiu a cama com um soldado durante três noites consecutivas; a Montanha a escolheu no quarto dia, e o soldado nada disse. Um velho sorridente remendava suas roupas e tagarelava a respeito do filho que estaria a serviço dos mantos dourados em Porto Real. - E um homem do rei, ah, pois é - dizia - , um bom homem do rei como eu, todo por JofFrey - dizia isso com tanta freqüência que os outros cativos começaram a chamá-lo de Todo-por-JofFrey sempre que os guardas não estavam ouvindo. Todo-por-JofFrey foi escolhido no quinto dia. Uma jovem mãe com o rosto marcado pela varíola tinha se oferecido para lhes contar voluntariamente tudo o que sabia se prometessem não fazer mal à sua filha. A Montanha a ouviu, e, na manhã seguinte, escolheu a filha, para se assegurar de que a mulher não tinha guardado nada para si. Os escolhidos eram interrogados à vista dos outros prisioneiros, para que estes vissem o destino reservado aos rebeldes e traidores. Um homem a que os outros chamavam Cócegas fazia as perguntas. Tinha um rosto tão comum e trajes tão simples, que Arya podia ter achado que fosse um dos aldeãos antes de vê-lo trabalhando. - O Cócegas os faz uivar tanto que se mijam - falara-lhe o velho corcunda Chiswyck. Era o homem que ela tentara morder, aquele que dissera que ela era feroz, e esmagara um punho revestido de cota de malha na sua cabeça. Às vezes ajudava o Cócegas, As vezes eram outros a fazê-lo. O próprio Sor Gregor Clegane ficava em pé, imóvel, observando e escutando, até a vítima morrer. As perguntas eram sempre as mesmas. Havia ouro escondido na aldeia? Prata, pedras preciosas? Havia mais comida? Onde estava Lorde Beric Dondarrion? Qual dos moradores da aldeia o tinha ajudado? Quando ele partiu, para que lado tinha ido? Quantos homens estavam com ele? Quantos cavaleiros, quantos arqueiros, quantos homens de armas? Como estavam armados? 270 Quantos estavam montados? Quantos estavam feridos? Que outros inimigos tinham visto? Quantos? Quando? Que estandartes hasteavam? Para onde tinham ido? Havia ouro escondido na aldeia? Prata, pedras preciosas? Onde estava Lorde Beric Dondarrion? Quantos homens estavam com ele? Pelo terceiro dia, Arya já poderia ela mesma fazer as perguntas. Encontraram um pouco de ouro, um pouco de prata, uma grande saca de moedas de cobre, e uma taça chanfrada incrustada de granadas, pela qual dois soldados quase chegaram às vias de fato. Ficaram sabendo que Lorde Beric tinha consigo dez mortos de fome, ou então uma centena de cavaleiros montados; que tinha partido para o Oeste, ou para o Norte, ou para o Sul; que tinha atravessado o lago num barco; que estava forte como um auroque, ou fraco por causa do sangue que perdera. Ninguém sobrevivia aos interrogatórios do Cócegas; fossem homens, mulheres ou crianças. Os mais fortes duravam até depois do cair da noite. Seus corpos eram pendurados para lá das fogueiras, para os lobos. Quando se puseram em marcha, Arya sabia que não era nenhuma dançarina de água. Syrio Forel nunca teria permitido que o derrubassem e roubassem sua espada, nem ficaria sem ação enquanto matavam Lommy Mãos-Verdes. Syrio nunca teria ficado sentado, em silêncio, naquele armazém, nem teria se arrastado docilmente por entre os outros cativos. O lobo gigante era o símbolo dos Stark, mas Arya sentia-se mais como uma ovelha, rodeada por uma manada de outras iguais. Odiava os aldeãos por sua falta de coragem, quase tanto quanto odiava a si mesma. Os Lannister tinham lhe roubado tudo: pai, amigos, casa, esperança, coragem. Um roubara-lhe a Agulha, enquanto o outro quebrara sua espada de madeira no joelho. Tinham até lhe tirado o estúpido segredo. O armazém era suficientemente grande para ela se esgueirar até um canto qualquer e urinar quando ninguém estivesse olhando, mas na estrada era diferente. Aguentou-se o máximo que pôde, mas, por fim, teve de se acocorar perto de um arbusto e abaixar as calças na frente de todo mundo. Era isso, ou molhar-se toda. Torta Quente ficou de boca aberta, olhando para ela com grandes olhos de lua, mas ninguém mais se incomodou. Ovelha menina ou ovelha menino, Sor Gregor e seus homens não pareciam se importar. Os captores não autorizavam conversas. Um lábio rachado ensinou Arya a dominar a língua.
Outros não chegaram a aprender. Um garoto de um grupo de três não parava de chamar pelo pai, e esmagaram sua cabeça com uma maça de guerra. Então, a mãe do garoto desatou a gritar, e Raff, o Querido, a matou também. Arya os viu morrer, e não fez nada. De que servia ter coragem? Uma das mulheres escolhidas para o interrogatório tentou ter coragem, mas morreu aos gritos como todos os outros. Não havia gente de coragem naquela marcha, só gente assustada e faminta. A maioria era de mulheres e crianças. Os poucos homens eram muito velhos ou muito novos; o resto tinha sido acorrentado àquele cadafalso e abandonado aos lobos e aos corvos. Gendry só foi poupado porque admitira ter sido ele quem forjou o elmo dos chifres; ferreiros, e até aprendizes de ferreiro, eram valiosos demais para matar. A Montanha disse-lhes que estavam sendo levados para servir a Lorde Tywin Lannister em Harrenhal. - São traidores e rebeldes, por isso agradeçam aos deuses que Lorde Tywin esteja lhes dando essa oportunidade. E mais do que obteriam dos foras da lei. Obedeçam, sirvam, e sobreviverão. - Não é justo, não é - ouviu uma velha mirrada queixar-se a outra depois de se deitarem à noite. - Não cometemos traição nenhuma, os outros vieram e levaram o que quiseram, tal como estes. - Mas Lorde Beric não nos fez mal nenhum - sussurrou a amiga. - E aquele sacerdote vermelho que vinha com ele pagou por tudo o que levaram. 271 - Pagou? Levou duas das minhas galinhas e me deu um pedaço de papel com uma marca nele. Pergunto a você: posso comer um pedaço de papel esfarrapado? Bota ovos, o papel? - olhou em volta para ver se não havia guardas por perto, e cuspiu três vezes: - Isto é para os Tully, isto é para os Lannister, e isto é para os Stark, - E um pecado e uma pena - sibilou um velho. - Quando o velho rei ainda estava vivo, não teria admitido isso. - Rei Robert? - Arya perguntou, quebrando sua reserva. - O Rei Aerys, que os deuses o tenham - o velho respondeu, alto demais. Um guarda se aproximou vagarosamente a fim de calá-los. O velho perdeu ambos os dentes que tinha, e não houve mais conversas naquela noite, Além dos cativos, Sor Gregor levava também uma dúzia de porcos, uma gaiola de galinhas, uma vaca leiteira esquelética e nove carroças de peixe salgado. A Montanha e seus homens tinham cavalos, mas os cativos iam todos a pé, e aqueles fracos demais para caminhar eram imediatamente mortos, assim como quem fosse suficientemente tolo para tentar fugir. Os guardas levavam mulheres para os arbustos, à noite, e a maior parte parecia esperar isso, e os acompanhava com bastante docilidade. Uma moça, mais bonita do que as outras, era obrigada a ir com quatro ou cinco homens diferentes todas as noites, até que acabou batendo num deles com uma pedra. Sor Gregor obrigou todo mundo a assistir enquanto cortava sua cabeça com um golpe da sua imensa espada longa de duas mãos. - Deixe o corpo para os lobos - ele ordenou quando terminou, entregando a espada para o escudeiro limpar. Arya deu uma olhada de canto de olho em Agulha, embainhada no quadril de um homem de armas de barba negra, mas careca, chamado Polliver, É bom que a tenham levado, pensou. De outra forma, teria tentado espetá-la em Sor Gregor, que teria cortado Arya ao meio, e os lobos também a comeriam. Polliver não era tão mau como alguns dos outros, apesar de ter roubado sua Agulha. Na noite em que foi capturada, os homens Lannister tinham sido estranhos sem nome, com rostos tão iguais uns aos outros como sua proteção de nariz, mas Arya acabou por conhecer todos. Era preciso saber quem era preguiçoso e quem era cruel, quem era inteligente e quem era burro. Era preciso saber que, muito embora aquele a quem chamavam Boca de Merda tivesse a língua mais suja que ela já ouvira, lhe dava uma porção extra de pão se lhe pedisse, enquanto o velho brincalhão do Chiswyck e Raff das falinhas mansas só lhe dariam as costas da mão. Arya observava e escutava, e polia seus ódios como Gendry antes polira seu elmo chifrudo. Dunsen agora usava esses cornos de touro, e ela o odiava por isso. Odiava Polliver pela Agulha, e o velho Chiswyck, que se achava engraçado. E odiava ainda mais Raíf, o Querido, que espetara a lança na garganta de Lommy. Odiava Sor Amory Lorch por causa de Yoren, e Sor Meryn Trant por Syrio, o Cão de Caça, por ter matado o filho do açougueiro, Mycah. Sor Ilyn, o Príncipe Joffrey e a rainha por causa do pai, do Gordo Tom, de Desmond e dos outros, e até por Lady, o lobo de Sansa. Cócegas era quase assustador demais para se odiar. Às vezes, quase conseguia se esquecer de que ele ainda os acompanhava; quando não fazia perguntas, era apenas mais um soldado, mais calmo do que a maioria, com um rosto igual ao de mil outros homens, Todas as noites, Arya dizia seus nomes, - Sor Gregor - sussurrava para sua almofada de pedra, - Dunsen, Polliver, Chiswyck, Raff, o Querido, Cócegas e Cão de Caça. Sor Amory, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rei Joffrey, Rainha Cersei - em Winterfell, Arya rezava com a mãe no septo e com o pai no bosque sagrado, mas 272 não havia deuses na estrada para Harrenhal, e os nomes eram a única oração que se importava de lembrar. Marchavam todos os dias, e ela dizia os nomes todas as noites, até que, finalmente, as árvores se tornaram menos densas e deram lugar a uma paisagem colorida de colinas onduladas, meandros de rios e campos de cultivo iluminados pelo sol, onde as cascas de castros queimados se erguiam negras como dentes apodrecidos. Mais um longo dia de marcha, e vislumbraram as torres de Harrenhal a distância, sólidas junto às águas azuis do lago. Os cativos diziam uns aos outros que as coisas seriam melhores quando chegassem a Harrenhal, mas Arya não tinha tanta certeza. Lembrava-se das histórias da Velha Ama sobre o castelo construído sobre medo. Harren, o Negro, misturara sangue humano na argamassa, costumava dizer a Ama, abaixando tanto a voz que as crianças tinham de se inclinar para a frente para ouvir, mas os dragões de Aegon tinham assado Harren e todos os seus filhos dentro de suas grandes muralhas de pedra. Arya mordia o lábio enquanto avançava sobre pés tornados duros pelos calos. Disse a si mesma que não demoraria muito mais tempo; aquelas torres não podiam estar a mais de algumas milhas de distância. Mas caminharam o dia inteiro e a maior parte do seguinte até que, por fim, chegaram às franjas do exército de Lorde Tywin, acampado a oeste do castelo, por entre os restos calcinados de uma vila. Por ser tão enorme, Harrenhal enganava quando visto de longe. Sua colossal muralha exterior erguia-se junto ao lago, a pique e súbita como penhascos de montanha, enquanto no topo de suas ameias as fileiras de balistas de madeira e ferro pareciam pequenas, como escorpiões. O fedor da tropa dos Lannister chegou a Arya bem antes de ela conseguir distinguir os símbolos nos estandartes que germinavam ao longo da margem do lago, no topo dos pavilhões dos homens do oeste. Pelo cheiro, Arya poderia dizer que Lorde Tywin já estava ali havia algum tempo. As latrinas que cercavam o acampamento transbordavam e enchiam-se de moscas, e ela viu uma tênue penugem esverdeada em muitas das estacas que protegiam os perímetros. A guarita de Harrenhal, tão grande quanto a Grande Fortaleza de Winterfell, era tão marcada quanto imensa, com pedras fissuradas e descoloridas. Do lado de fora, só era possível ver o topo de cinco imensas torres do outro lado da muralha. A menor era vez e meia mais alta do que a mais alta torre de Winterfell, mas não se projetavam como uma torre devia se projetar. Arya pensou que pareciam os dedos deformados e nodosos de um velho tentando agarrar uma nuvem passageira. Lembrou da Ama contando como a pedra derretera e fluíra pelos degraus e para centro das janelas, como cera de uma vela, brilhando num vermelho soturno de brasa enquanto procurava Harren no seu esconderijo. Arya conseguia acreditar em cada palavra; cada torre era mais grotesca e deformada do que a anterior, grumosa, escorrida e rachada. - Não quero entrar ali - guinchou Torta Quente quando Harrenhal lhes abriu os portões. - Há fantasmas lá dentro. Chiswyck ouviu, mas, para variar, limitou-se a sorrir. - Pequeno pasteleiro, eis a sua escolha. Junte-se aos fantasmas ou se transformará em um. Torta Quente entrou com todos os outros. Na casa de banhos cheia de ecos, feita de pedra e madeira, os cativos foram despidos e obrigados a escovar-se e raspar-se em banheiras cheias de água escaldante, até ficarem com a pele em carne viva. Duas velhas ferozes supervisionavam o processo, discutindo sem-cerimônia o que fariam com eles, como se fossem burros recém-comprados. Quando chegou a vez de Arya, a Governanta Amabel cacarejou, consternada, ao ver seus pés, ao passo que a Governanta Harra apalpou seus calos nos dedos, conquistados após longas horas de treino com a Agulha, 273 - Arranjou isto batendo manteiga, aposto - disse. - É cachorrinha de algum agricultor? Bem, não importa, menina, tem uma oportunidade de ganhar um lugar mais elevado neste mundo se trabalhar duramente. Se não, levará pancada. E como é que a chamam? Arya não se atrevia a dizer seu nome verdadeiro, mas Arry também não servia, era um nome de garoto, e eles podiam ver que ela não era nenhum garoto. - Doninha - disse, usando o nome da primeira menina em que conseguiu pensar. - Lommy chamava-me de Doninha. - Entendo por quê - fungou a Governanta Amabel. - Esses cabelos são um horror, um ninho de piolhos. Vamos cortá-los, e depois vai para as cozinhas. - Preferia cuidar dos cavalos - Arya gostava de cavalos, e se estivesse nos estábulos talvez conseguisse roubar um e fugir. A Governanta Harra deu-lhe um tabefe com tanta força que seu lábio inchado voltou a se abrir.
- E segure essa língua, ou será pior. Ninguém pediu sua opinião. O sangue na sua boca tinha gosto de sal e metal. Arya abaixou os olhos e nada disse. Se ainda tivesse a Agulha, ela não se atreveria a me bater, pensou, carrancuda. - Lorde Tywin e seus cavaleiros têm palafreneiros e escudeiros para cuidar dos cavalos, não precisam de gente como você - disse a Governanta Amabel. - As cozinhas são confortáveis e limpas, e há sempre um fogo quente perto do qual dormir e muito para comer. Podia ter ficado bem lá, mas estou vendo que não é uma menina esperta. Harra, acho que devíamos dá-la a Weese. - Se acha isso, Amabel - deram-lhe um vestido grosseiro de lã cinza e um par de sapatos que não lhe serviam bem, e mandaram-na embora. Weese era subintendente para a Torre dos Lamentos, um homem atarracado com o nariz que mais parecia um tumor gangrenoso e carnudo, e um ninho de furúnculos irritados e vermelhos perto de um canto de seus lábios grossos. Arya foi uma de seis prisioneiros que lhe foram enviados. Olhou-os com olhos perspicazes. - Os Lannister são generosos para os que lhes servem bem, uma honra que ninguém do seu tipo merece, mas na guerra um homem arranja-se com o que tem à mão. Trabalhem duramente, e ponham-se no seu lugar, e pode ser que um dia subam tão alto como eu. Mas, se pensarem em abusar da bondade de sua senhora, vão me encontrar à sua espera depois de o senhor partir, verão - ele caminhou de um lado para o outro diante deles, dizendo-lhes como nunca podiam olhar os fidalgos nos olhos, nem falar antes que falassem com eles, nem atravessar-se no caminho de sua senhoria. - Meu nariz nunca mente - gabou-se. - Consigo cheirar desafio, consigo cheirar orgulho, consigo cheirar desobediência. Se perceber sinal de algum desses fedores, responderão por ele. Quando os farejar, tudo o que quero cheirar é medo 274 Daenerys Nas muralhas de Qarth, homens tocavam gongos para anunciar sua chegada, enquanto outros tocavam curiosas trompas que rodeavam seus corpos como grandes serpentes de bronze. Uma coluna de homens montados em camelos saiu da cidade como uma guarda de honra. Os cavaleiros usavam armaduras de cobre, feitas de escamas, e elmos com bocal, presas de cobre e longas plumas de seda negra, e sentavam-se bem alto em selas incrustadas de rubis e granadas. Seus camelos estavam cobertos com mantas de uma centena de tons diferentes. - Qarth é a maior cidade que já existiu ou existirá - Pyat Pree disse entre os ossos de Vaes Tolorro, - E o centro do mundo, o portão entre o Norte e o Sul, a ponte entre o Leste e o Oeste, mais antiga do que a memória do homem, e tão magnífica que Saathos, o Sábio, arrancou os olhos depois de vê-la pela primeira vez, porque sabia que tudo o que veria daí para a frente pareceria miserável e feio. Dany aceitou as palavras do mago com certa reserva, mas a magnificência da grande cidade não podia ser negada. Três reforçadas muralhas rodeavam Qarth, elaboradamente esculpidas. A exterior era de arenito vermelho, com nove metros de altura, e estava decorada com animais: serpentes rastejando, gaviões voando, peixes nadando, misturados com lobos do deserto vermelho, cavalos rajados e monstruosos elefantes. A intermediária, com doze metros de altura, era de granito cinza e mostrava-se viva com cenas de guerra: o entrecruzar de espadas, escudos e lanças, flechas em voo, heróis em batalha, bebês sendo massacrados e piras de mortos. A interna era feita de quinze metros de mármore negro, com esculturas que fizeram Dany corar, até dizer a si mesma que estava sendo tola. Não era nenhuma donzela; se podia olhar para as cenas de massacre da muralha cinzenta, por que haveria de desviar os olhos ao ver homens e mulheres dando prazer uns aos outros? Os portões exteriores eram reforçados com cobre; os intermediários, com ferro; e os interiores eram guarnecidos com olhos dourados. Todos se abriram à aproximação de Dany. Enquanto avançava montada na sua prata para o interior da cidade, crianças pequenas correram para espalhar flores no caminho. Usavam sandálias douradas e pinturas de cores vivas, nada mais. Todas as cores que faltavam em Vaes Tolorro tinham encontrado o caminho para chegar a Qarth; edifícios aglomeravam-se ao redor, fantásticos como um sonho febril, em tons de rosa, violeta e ocre. Dany passou sob um arco de bronze esculpido em forma de duas serpentes acasalando, com delicados flocos de jade, obsidiana e lápis-lazúli como escamas. Torres esguias subiam mais alto do que quaisquer outras que ela tivesse visto, e elaborados chafarizes, esculpidos na forma de grifos, dragões e manticoras, enchiam todas as praças. Os qartenos ladeavam as ruas e observavam as delicadas varandas, que pareciam frágeis demais para suportar seu peso. Eram um povo alto e de pele clara, vestido de linho, samito e pele 275 de tigre, cada um deles um senhor ou uma senhora aos olhos de Dany. As mulheres usavam vestidos e deixavam um seio nu, enquanto os homens preferiam saias de seda com contas. Dany sentiu-se esfarrapada e bárbara ao avançar por entre eles, com sua veste de pele de leão e o negro Drogon sobre o ombro. Seus dothrakis chamavam os qartenos de "Homens de Leite" devido à sua brancura. Khal Drogo sonhara com o dia em que poderia saquear as grandes cidades do leste. Olhou de relance seus companheiros de sangue, cujos olhos escuros em forma de amêndoa não mostravam sinal do que estariam pensando. Será só o saque que veem?, interrogou-se, Como devemos parecer selvagens a esses qartenos. Pyat Pree conduziu seu pequeno khalasar pelo centro de uma grande arcada, onde os antigos heróis da cidade se erguiam num tamanho três vezes superior ao de um homem, sobre colunas de mármore branco e verde. Atravessaram uma feira localizada num edifício cavernoso, cujo teto entrançado servia de lar a um milhar de aves de cores alegres. Árvores e flores desabrochavam nos muros em terraços por cima das barracas, enquanto, embaixo, parecia que tudo o que os deuses tinham colocado no mundo estava à venda. Sua prata assustou-se quando o príncipe mercador Xaro Xhoan Daxos se aproximou; Dany tinha descoberto que os cavalos não suportavam a proximidade de camelos. - Se vir aqui algo que deseje, oh, mais bela das mulheres, basta-lhe dizer e será seu - gritou Xaro do alto de sua ornamentada sela com chifres. - A própria Qarth é dela, não tem necessidade de ninharias - entoaram os lábios azuis de Pyat Pree do outro lado. - Será como prometi, Khaleesi. Venha comigo para a Casa dos Imortais, e beberá verdade e sabedoria. - Para que ela precisaria do seu Palácio de Pó, quando posso lhe dar a luz do sol, água doce e sedas em que dormir? - Xaro desafiou o mago. - Os Treze colocarão uma coroa de jade negro e opalas de fogo sobre a sua adorável cabeça. - O único palácio que desejo é o castelo vermelho em Porto Real, senhor Pyat - Dany desconfiava do mago; a maegi Mirri Maz Duur azedara sua relação para com aqueles que lidavam com feitiçaria. - E se os grandes de Qarth quiserem me dar presentes, Xaro, que me deem navios e espadas para reconquistar o que é meu por direito. Os lábios azuis de Pyat encurvaram-se para cima, num sorriso amável: - Será como ordena, Khaleesi - e se afastou, oscilando com os movimentos do camelo, seguido pela longa veste coberta de contas. - A jovem rainha tem uma sabedoria superior à idade - murmurou Xaro Xhoan Daxos de sua grande sela. - Há um ditado em Qarth: a casa de um mago é feita de ossos e mentiras. - Então, por que motivo os homens abaixam a voz quando falam dos magos de Qarth? Por todo o leste seu poder e sabedoria são reverenciados. - Antigamente foram poderosos - Xaro concordou - , mas agora são tão ridículos como aqueles velhos soldados frágeis que se gabam de suas capacidades muito depois que a força e a habilidade os abandonaram. Leem os seus pergaminhos em ruínas, bebem sombra-da-noite até ficar com os lábios azuis e sugerem terríveis poderes, mas são cascas vazias se comparados com os do passado. Os presentes de Pyat Pree vão se transformar em poeira em suas mãos, previno-a - o homem deu uma pequena chicotada no camelo e se afastou. - A gralha chama de preto o corvo - murmurou Sor Jorah no Idioma Comum de Westeros, O cavaleiro exilado seguia ao seu lado direito, como sempre. Para a entrada em Qarth, tinha posto de lado suas vestes dothraki e voltara a vestir a armadura, a cota de malha e a lã dos Sete Reinos, a meio mundo de distância. - Faria bem em evitar ambos esses homens, Vossa Graça. 276 - Esses homens vão me ajudar a recuperar a coroa - Dany respondeu. - Xaro tem uma vasta riqueza, e Pyat Pree... - ... finge ter poder - o cavaleiro disse bruscamente. Em sua capa verde-escura, o urso da Casa Mormont erguia-se nas patas traseiras, negro e feroz. Jorah não parecia menos feroz ao franzir o cenho para a multidão que enchia a feira. - Não quero ficar aqui muito tempo, minha rainha. Nem sequer gosto do cheiro deste lugar. Dany sorriu. - Talvez seja o cheiro dos camelos que sente. O odor dos qartenos propriamente ditos parece-me bastante bom. - Bons cheiros são às vezes usados para encobrir os maus. Meu grande urso, pensou Dany. Eu sou sua rainha, mas serei sempre também sua cria, e ele sempre me protegerá. Fazia-a sentir-se segura, mas também triste. Desejou poder amá-lo mais do que amava, Xaro Xhoan Daxos oferecera a Dany a hospitalidade de sua casa enquanto estivesse na cidade. Ela esperava algo grandioso, mas não um palácio maior do que muitas vilas mercantis. Faz a mansão do Magíster Illyrio em Pentos parecer o casebre de um criador de porcos, ela pensou. Xaro jurara que sua casa podia alojar confortavelmente todo o povo de Dany, e também seus cavalos; na verdade, engolia-os. Foi-lhe oferecida uma ala inteira. Teria seus próprios jardins, uma piscina em mármore para banhos, uma torre de adivinho e um labirinto de mago. Escravos satisfariam todas as suas necessidades. Em seus aposentos privados, o piso era de mármore verde, e as pareres estavam cobertas com coloridos reposteiros de seda que oscilavam a cada brisa, - E muito generoso - Dany disse a Xaro Xhoan Daxos. - Para a Mãe de Dragões nenhum presente é demais - Xaro era um homem lânguido e elegante, com a cabeça calva e um grande nariz em forma de bico incrustado de rubis, opalas e lascas de jade. - Amanhã, vai se banquetear com pavão e língua de cotovia, e ouvir música digna da mais bela das mulheres. Os Treze virão para homenageá-la, bem como todos os grandes de Qarth. Todos os grandes de Qarth virão para ver os meus dragões, Dany pensou, mas agradeceu a Xaro a bondade antes de mandá-lo embora. Pyat Pree também se retirou, prometendo que pediria uma audiência aos Imortais, "Uma honra rara como neves de Verão." Antes de sair, beijou seus pés nus com lábios pálidos e azuis, e insistiu para que aceitasse seu presente, um frasco de unguento que jurou ser capaz de lhe permitir ver os espíritos do ar. A última dos três a partir foi Quaithe, a umbromante. Dela, Dany recebeu apenas um aviso. - Cuidado - disse a mulher da máscara de laca vermelha. - Com quem? - Com todos. Virão dia e noite para ver a maravilha que renasceu para o mundo, e quando a virem, vão desejá-la. Pois dragões são fogo feito carne, e o fogo é poder. Quando todos saíram, Sor Jorah disse: - Ela fala a verdade, minha rainha... embora não goste mais dela do que dos outros. - Não a compreendo, Pyat e Xaro fizeram chover promessas sobre Dany desde o momento em que viram pela primeira vez seus dragões, declarando-se seus fiéis criados em todas as coisas, mas de Quaithe ela obtivera apenas uma rara palavra crítica. E perturbava-a que nunca tivesse visto o rosto da muIher. Lembre-se de Mirri Maz Duur, ela dissera. Lembre-se da traição. Dany se virou para seus companheiros de sangue: 277 - Vamos montar nossa própria guarda enquanto estivermos aqui. Certifiquem-se de que ninguém entre nesta ala do palácio sem o meu consentimento, e tomem especial cuidado para que os dragões estejam sempre bem guardados. - Assim será, Khaleesi - Aggo respondeu. - Só vimos as partes de Qarth que Pyat Pree quis que víssemos - ela prosseguiu. - Rakharo, vá ver o resto e conte-me o que encontrar. Leve junto bons homens... e mulheres, para ir aos lugares proibidos aos homens. - Farei como pede, sangue do meu sangue - Rakharo concordou. - Sor Jorah, procure as docas e veja que tipo de navios lá estão ancorados. Passou-se meio ano desde a última vez que tive notícias dos Sete Reinos. Talvez os deuses tenham soprado até aqui algum bom capitão vindo de Westeros com um navio que nos leve para casa. O cavaleiro franziu a sobrancelha: - Isso não seria nenhuma bondade. O Usurpador iria matá-la, tão certo como o sol nascente - Mormont enfiou os polegares no cinto da espada. - Meu lugar é aqui, ao seu lado. - Jhogo também pode me guardar. Você conhece mais línguas do que meus companheiros de sangue, e os dothraki desconfiam do mar e daqueles que por ele navegam. Só você pode me prestar este serviço. Vá andar por entre os navios e conversar com as tripulações, saiba de onde vêm, para onde vão e que tipo de homens as comandam. Relutante, o exilado anuiu. - Será como diz, minha rainha. Depois de todos os homens terem partido, as aias despiram as sedas manchadas pela viagem que ela usava, e Dany se dirigiu ao lugar onde ficava a piscina de mármore, à sombra de um pórtico. A água estava deliciosamente fresca, e a piscina, abastecida com minúsculos peixes dourados que mordiscavam, curiosos, sua pele, e a faziam rir. Era bom fechar os olhos e flutuar, sabendo que podia descansar durante o tempo que quisesse. Perguntou a si mesma se a Fortaleza Vermelha de Aegon teria uma piscina daquelas, e fragrantes jardins cheios de lavanda e menta. Certamente. Viserys sempre disse que os Sete Reinos eram mais belos do que qualquer outro lugar do mundo. Pensar em sua terra a perturbou. Se o seu sol-e-estrelas tivesse sobrevivido, teria levado o khalasar através da água venenosa e varrido os inimigos dela, mas a força de Drogo abandonara o mundo. Seus companheiros de sangue permaneciam, ligados a Dany para a vida e peritos em matança, mas apenas à maneira dos senhores dos cavalos. Os dothraki saqueavam cidades e pilhavam reinos, não os governavam. Dany não tinha nenhum desejo de reduzir Porto Real a uma ruína enegrecida, cheia de fantasmas inquietos. Já tinha se alimentado de lágrimas o suficiente. Quero tornar meu reino belo, enchê-lo de homens gordos, belas donzelas e crianças sorridentes. Quero que meu povo sorria quando me vir passar, como Viserys dizia que sorriam ao meu pai. Mas, antes de poder fazer isso, teria de conquistar. 0 Usurpador a mataria, tão certo como o sol nascente, dissera Mormont. Robert matara seu galante irmão Rhaegar, e uma de suas criaturas tinha atravessado o mar dothraki para envenená-la e ao seu filho por nascer. Diziam que Robert Baratheon era forte como um touro e destemido em batalha, um homem que não gostava de nada mais do que da guerra. E com ele estavam os grandes senhores que o irmão chamava de cães do Usurpador, Eddard Stark de olhos frios com seu coração gelado, e os dourados Lannister, pai e filho, tão ricos, tão poderosos, tão traiçoeiros. Como podia esperar derrubar tais homens? Quando Khal Drogo vivia, os homens tremiam e faziam-lhe ofertas para apaziguar sua ira. Se não o fizessem, ele tomava suas cidades, riqueza, 278 mulheres e tudo o mais. Mas o khalasar dele tinha sido vasto, ao passo que o dela era escasso. Seu povo seguira-a através do deserto vermelho enquanto perseguia o cometa, e também a serguiria através da água venenosa, mas não seria o suficiente. Mesmo os dragões podiam não ser suficientes. Viserys acreditara que o reino se ergueria em apoio ao rei legítimo... Mas ele era um tolo, e os tolos acreditam em tolices. As dúvidas fizeram-na estremecer. De súbito, a água pareceu-lhe fria e os peixinhos que mordiscavam sua pele, irritantes. Dany ergueu-se e saiu da piscina, - Irri - chamou Jhiqui. Enquanto as aias a enxugavam com uma toalha e a envolviam num roupão de sedareia, os pensamentos de Dany derivaram para os três que a tinham procurado na Cidade dos Ossos. A Estrela Sangrenta trouxe-me a Qarth por um motivo. Aqui encontrarei aquilo de que preciso, se tiver a força para aceitar o que me í oferecido e a sabedoria para evitar as armadilhas e os ardis. Se os deuses quiserem que eu vença, vão me fornecer os meios, enviar um sinal, e se não... se não... Era quase noite, Dany estava alimentando os dragões, quando Irri atravessou as cortinas de seda para lhe dizer que Sor Jorah voltara das docas... e não vinha sozinho. - Mande-o entrar, com quem quer que tenha trazido - ela ordenou, curiosa. Quando entraram, encontraram-na sentada num monte de almofadas, com os dragões ao redor. O homem que o exilado trouxera consigo usava um manto de penas verdes e amarelas e tinha uma pele tão negra como azeviche polido. - Vossa Graça - disse o cavaleiro trago Quhuru Mo, capitão do Vento de Canela, vindo da Vila das Árvores Altas. O negro se ajoelhou. - Sinto-me muito honrado, minha rainha - ele disse; não na língua das Ilhas do Verão, que Dany não conhecia, mas no valiriano líquido das Nove Cidades Livres. - A honra é minha, Quhuru Mo - ela retrucou na mesma língua. - Vem das Ilhas do Verão? - É verdade, Vossa Graça, mas, antes, há menos de meio ano, aportamos em Vilavelha. Daí Ine trago um maravilhoso presente. - Um presente? - Um presente em forma de notícia. Mãe de Dragões, Filha da Tormenta, digo-lhe a verdade, Robert Baratheon está morto. Fora dos muros o ocaso caía sobre Qarth, mas um sol acabava de nascer no coração de Dany. - Morto? - ela repetiu. Sobre as suas coxas o negro Drogon silvou, e uma fumaça branca ergueu-se em frente ao seu rosto como um véu. - Tem certeza? O Usurpador está morto? - É o que se diz em Vilavelha, e em Dorne, e em Lys, e em todos os outros portos a que aportamos. Ele enviou-me vinho envenenado, mas eu vivo, e ele partiu. - De que modo morreu? - sobre seu ombro o branco Viserion bateu as asas da cor do creme, agitando o ar. - Rasgado por um javali monstruoso enquanto caçava em seu bosque do rei, ou pelo menos foi o que me disseram em Vilavelha. Outros dizem que a sua rainha o traiu, ou o irmão, ou Lorde Stark, que era sua Mão. Mas todas as histórias concordam numa coisa: o Rei Robert está morto e sepultado. Dany nunca olhara o rosto do Usurpador, mas raramente se passava um dia em que não pensasse nele. Sua grande sombra pairava sobre ela desde a hora em que tinha nascido, quando 279 chegara entre sangue e tempestade a um mundo que já não tinha lugar para ela. E, agora, este estranho de ébano levantava essa sombra. - O garoto agora ocupa o Trono de Ferro - disse Sor Jorah. - O Rei JofFrey reina - concordou Quhuru Mo - , mas os Lannister governam. Os irmãos de Robert fugiram de Porto Real, Segundo se diz, pretendem reclamar a coroa. E a Mão caiu, Lorde Stark, que era amigo do Rei Robert. Foi preso e acusado de traição. - Ned Stark, um traidor? - Sor Jorah resfolegou. - Pouco provável. O Longo Verão voltará antes que este manche sua preciosa honra. - Que honra poderá ter? - disse Dany. - Era um traidor do seu legítimo rei, tal como esses Lannister - agradava-lhe ouvir dizer que os cães do Usurpador lutavam uns contra os outros, embora não a surpreendesse. O mesmo tinha acontecido quando seu Drogo morreu e seu grande khalasar se partiu em pedaços. - Meu irmão também está morto, Viserys, que era o rei legítimo - disse ao homem das Ilhas do Verão. - Khal Drogo, o senhor meu esposo, o matou com uma coroa de ouro derretido - se seu irmão tivesse sido mais sensato, teria ficado sabendo que a vingança pela qual rezara estava tão próxima? - Então choro pela senhora, Mãe de Dragões, e pelo ensangüentado Westeros, privado do seu legítimo rei. Sob os dedos gentis de Dany, o verde Rhaegal olhou o estranho com olhos de ouro derretido. Quando abriu a boca, os dentes cintilaram como agulhas negras. - Quando seu navio retorna a Westeros, capitão? - Temo que só dentro de um ano, ou mais. Daqui, o Vento de Canela segue para leste, a fim de percorrer a volta do mercador em torno do Mar de Jade, - Compreendo - disse Dany, desapontada. - Nesse caso, desejo-lhe belos ventos e bons negócios. Trouxe-me um presente precioso. - Fui amplamente recompensado, grande rainha. Dany não compreendeu aquilo, - Como? Os olhos dele cintilaram: - Vi dragões. Dany soltou uma gargalhada. - E voltará a vê-los um dia, espero. Venha até mim em Porto Real quando estiver no trono do meu pai, e obterá uma grande recompensa. O homem das Ilhas do Verão prometeu que o faria, e deu um suave beijo em seus dedos quando se retirou. Jhiqui mostrou-lhe o caminho, enquanto Sor Jorah Mormont permaneceu com Daenerys. - Khaleesi - disse o cavaleiro quando ficaram a sós eu não falaria tão livremente de meus planos se estivesse em seu lugar. Este homem espalhará a história onde quer que vá. - Que espalhe - Dany respondeu. - Que o mundo inteiro conheça as minhas intenções. O Usurpador está morto, o que importa? - Nem todas as histórias de marinheiro são verdadeiras - alertou-a Sor Jorah e mesmo se Robert estiver realmente morto, o filho governa em seu lugar. Isso, na verdade, nada muda. - Isso muda tudo - Dany se levantou de repente, guinchando, os dragões desenrolaram-se e abriram as asas. Drogon voou e empoleirou-se na padieira sobre a arcada. Os outros correram pelo chão, com as pontas das asas roçando no mármore. - Antes, os Sete Reinos eram como o 280 khalasar do meu Drogo, cem mil feitos um pela sua força. Agora, voam em pedaços, tal como aconteceu ao kbaiasar depois do meu khal cair morto. - Os grandes senhores sempre lutaram. Diga-me quem ganhou, e direi o que isso significa. Khaleesi, os Sete Reinos não cairão nas suas mãos como outros tantos pêssegos maduros. Precisará de uma frota, de ouro, de exércitos, de alianças... - Sei de tudo isso - Dany tomou as mãos do cavaleiro nas suas e olhou em seus olhos escuros e desconfiados. As vezes pensa em mim como uma criança que tem de proteger, e às vezes como uma mulher com quem gostaria de se deitar. Mas, alguma vez me vê realmente como a sua rainha? - Não sou a menina assustada que conheceu em Pentos. Contei apenas quinze anos do meu nome, é verdade... mas sou tão velha como as velhas no dosh khaleen e tão nova como os meus dragões, Jorah. Dei à luz um filho, queimei um khal e atravessei o deserto vermelho e o mar dothraki. Meu sangue é o sangue do dragão. - Tal como era o do seu irmão - ele retrucou com teimosia. - Eu não sou Viserys. - Não - o cavaleiro admitiu. - Penso que há na senhora mais de Rhaegar, mas mesmo Rhaepr podia ser morto. Robert provou isso no Tridente, apenas com um martelo de guerra. Até os dragões podem morrer.
- Os dragões morrem - ela ficou na ponta dos pés para lhe dar um pequeno beijo no rosto por barbear. - Mas a mesma coisa acontece aos matadores de dragões. 281 Bran eera movia-se num círculo cuidadoso, com a rede pendendo, solta, da mão esquerda, e o esguio tridente equilibrado na direita. Verão seguia-a com seus olhos dourados, mantendo-se virado para ela, com a cauda erguida bem alto, hirta. Observando, observando... - Iai! - gritou a garota, erguendo o tridente. O lobo esquivou-se para a esquerda e saltou antes que ela conseguisse puxar a arma. Meera lançou a rede, fazendo-a desenrolar-se no ar à sua frente. O salto de Verão levou-o para dentro dela. Arrastou a rede consigo quando caiu sobre o peito da menina e a fez cair para trás. O tridente rodopiou para longe. A grama úmida amorteceu a queda, mas o ar saiu de seus pulmões num"uf". O lobo agachou-se sobre ela. Bran aplaudiu: - Perdeu. - Ela ganhou - disse o irmão, Jojen. - Verão está enredado. Bran viu que o garoto tinha razão. Agitando-se e rosnando contra a rede, tentando se libertar, Verão só conseguia se enredar mais. E também não era capaz de morder através das malhas. - Deixe-o sair. Rindo, a menina Reed abraçou o lobo enleado e rolou junto dele. Verão soltou um ganido de dar dó, escoiceando as cordas que prendiam suas patas. Meera ajoelhou-se, desfez uma volta, deu um tranco num canto, puxou habilmente aqui e ali, e de repente o lobo gigante estava aos saltos, livre. - Verão, aqui - Bran abriu os braços. - Olhem - ele disse, um instante antes de o lobo esbarrar nele. Agarrou-se com todas as suas forças enquanto o animal o arrastava aos encontrões pela grama. Lutaram e rolaram, um rosnando e latindo, o outro rindo. No fim, foi Bran quem ficou por cima, com o lobo salpicado de lama por baixo. - Bom lobo - arquejou. Verão lambeu sua orelha. Meera balançou a cabeça. - Ele alguma vez se zanga? - Comigo, não - Bran agarrou o lobo pelas orelhas e Verão lançou-lhe uma mordida feroz, mas era tudo brincadeira. - Às vezes rasga minha roupa, mas nunca derrama sangue. - O seu sangue, você quer dizer. Se tivesse passado pela minha rede... - Não a machucaria. Ele sabe que gosto de você - todos os outros senhores e cavaleiros partiram um ou dois dias após a festa das colheitas, mas os Reed permaneceram e se transformaram em constantes companheiros de Bran. Jojen era tão solene que a Velha Ama o chamava de "pequeno avô", mas Meera lembrava-lhe a irmã, Arya. Não tinha medo de se sujar, e podia correr, lutar e arremessar coisas tão bem como um rapaz. Mas era mais velha do que Arya; tinha quase dezesseis anos, uma mulher-feita. Eram ambos mais velhos do que Bran, embora o nono dia 282 de seu nome já tivesse finalmente chegado e partido, mas nunca o tratavam como uma criança. - Gostaria que fossem vocês os nossos protegidos, em vez dos Walder - pôs-se a caminho da árvore mais próxima. O modo como se arrastava e contorcia era feio de se ver, mas quando Meera foi ajudá-lo a se erguer, ele disse: - Não, não me ajude - rolou desajeitadamente, empurrou e torceu-se para trás, usando a força dos braços, até ficar sentado com as costas apoiadas no tronco de um freixo alto. - Viu, eu disse - Verão deitou-se com a cabeça apoiada nas coxas de Bran. - Nunca conhecera alguém que lutasse com uma rede - disse a Meera enquanto fazia carinho entre as orelhas do lobo gigante. - Foi seu mestre de armas quem lhe ensinou a luta de rede? - Foi meu pai quem me ensinou. Não temos cavaleiros em Água Cinzenta. Nem mestre de armas, e também não temos meistre. - Quem cuida de seus corvos? Ela sorriu: - Os corvos não são mais capazes de encontrar a Atalaia da Água Cinzenta do que os nossos inimigos. - Por que não? - Porque ela se desloca. Bran nunca tinha ouvido falar de um castelo móvel. Olhou-a com incerteza, mas não conseguiu decidir se ela estava caçoando dele ou não. - Gostaria de poder vê-lo. Acha que o senhor seu pai me deixaria ir visitá-los quando a guerra terminar? - Será muito bem-vindo, meu príncipe. Nessa altura, ou agora.
- Agora? - Bran passara a vida inteira em Winterfell. Ansiava por ver lugares distantes. - Podia pedir a Sor Rodrik quando ele voltar. O velho cavaleiro tinha partido para leste, a fim de tentar contornar os problemas que lá existiam. O bastardo de Roose Bolton começara tudo ao capturar a Senhora Hornwood quando regressava da festa das colheitas, casando com ela naquela mesma noite, embora fosse suficientemente novo para ser seu filho. Então, Lorde Manderly tomou o castelo dela e, a fim de proteger os bens dos Hornwood contra os Bolton, tinha escrito, mas Sor Rodrik ficara quase tão zangado com ele como com o bastardo. - Sor Rodrik talvez me deixe ir. Meistre Luwin nunca deixaria. Sentado de pernas cruzadas sob o represeiro, Jojen Reed olhou-o solenemente. - Seria bom se abandonasse Winterfell, Bran. - Seria? - Sim. E quanto mais depressa melhor. - Meu irmão tem a visão verde - disse Meera. - Ele sonha com coisas que não aconteceram, mas que às vezes acontecem. - Não há às vezes nisto, Meera - um olhar passou entre eles; o dele triste, o dela desafiador. - Diga-me o que vai acontecer - Bran pediu. - Direi - o menino falou - , se me contar os seus sonhos. O bosque sagrado caiu no silêncio. Bran conseguia ouvir o restolhar das folhas, e o som distante de Hodor brincando nas lagoas quentes. Pensou no homem dourado e no corvo de três olhos, recordou o esmagar de ossos entre as suas maxilas e o gosto de cobre do sangue. - Não tenho sonhos. Meistre Luwin dá-me poções para dormir. - E ajudam? - Às vezes. 283 Meera interveio: -Winterfell inteira sabe que você acorda à noite gritando e transpirando, Bran. As mulheres falam disso junto ao poço e os guardas também, em suas salas. - Conte-nos o que o assusta tanto - Jojen pediu. - Não quero. Seja como for, são só sonhos. Meistre Luwin diz que os sonhos nem sempre querem dizer alguma coisa. - Meu irmão sonha como os outros garotos, e esses sonhos podem querer dizer qualquer coisa - Meera explicou - , mas os sonhos verdes são diferentes. Os olhos de Jojen eram da cor do musgo, e às vezes, quando se fixavam, pareciam estar vendo alguma outra coisa. Como acontecia agora. - Sonhei com um lobo alado preso à terra por correntes de pedra cinza - ele disse. - Era um sonho verde, por isso soube que era verdade. Um corvo estava tentando quebrar suas correntes com bicadas, mas a pedra era dura demais, e seu bico só conseguia arrancar lascas. - O corvo tinha três olhos? Jojen confirmou com a cabeça. Verão ergueu a cabeça do colo de Bran e olhou o menino da lama com seus escuros olhos dourados. - Quando eu era pequeno, quase morri de febre da água cinzenta. Foi então que o corvo veio até mim. - Ele veio até mim depois de eu cair - disse Bran, muito depressa. - Dormi durante muito tempo. Ele disse que eu tinha de voar ou morreria, e eu acordei, mas estava aleijado, e não podia voar. - Pode, se quiser - pegando a rede, Meera sacudiu os últimos nós e começou a arrumá-la em dobras soltas. - Você é o lobo alado, Bran - disse Jojen. - Não tive essa certeza quando o corvo veio pela primeira vez, mas agora tenho. Ele nos enviou até aqui para quebrar suas correntes. - O corvo está na Água Cinzenta? - Não. Ele está no norte. - Na Muralha? - Bran sempre quis ver a Muralha. O irmão bastardo, Jon, estava lá agora, um homem da Patrulha da Noite. - Para lá da Muralha - Meera Reed pendurou a rede no cinto. - Quando Jojen disse ao senhor nosso pai o que sonhara, ele nos enviou a Winterfell. - Como é que eu vou quebrar as correntes, Jojen? - Bran quis saber. - Abra o olho. - Eles estão abertos. Não vê? - Dois deles estão abertos - Jojen apontou: - Um, dois. - Eu só tenho dois. - Tem três. O corvo lhe deu o terceiro, mas você não quer abri-lo - o rapaz tinha um jeito lento e suave de falar. - Com dois olhos, vê o meu rosto. Com três, poderia ver meu coração. Com dois consegue ver aquele carvalho ali, Com três, conseguiria ver a bolota da qual o carvalho nasceu e o toco em que se transformará um dia. Com dois, não vê para lá de suas muralhas. Com três seria capaz de ver para sul até o Mar do Verão e para norte, para lá da Muralha. Verão pôs-se em pé. - Não preciso ver longe - Bran deu um sorriso nervoso. - Estou farto de falar de corvos. Vamos falar de lobos. Ou de lagartos-leões. Alguma vez já caçou algum, Meera? Aqui não existem. Meera tirou o tridente dos arbustos: 284 - Vivem na água. Em cursos de água lentos e pântanos profundos... - Sonhou com um lobo? O rapaz estava deixando Bran zangado. - Não preciso te contar meus sonhos. Sou o príncipe. Sou o Stark em Winterfell. - Era o Verão? - Cale-se. - Na noite da festa das colheitas, sonhou que era o Verão no bosque sagrado, não foi? - Pare com isso! - Bran gritou. Verão deslizou na direção do represeiro, exibindo os dentes brancos. Jojen não se importou, - Quando toquei no Verão, senti você nele. Tal como está nele agora. - Não podia ter sentido. Eu estava na cama. Estava dormindo. - Estava no bosque sagrado, todo de cinza. - Foi só um pesadelo... Jojen ficou de pé. - Senti-o. Senti-o caindo. E isso o que o assusta, a queda? A queda, pensou Bran, e o homem dourado, o irmão da rainha, ele também me assusta, mas é principalmente a queda. Mas não disse. Como poderia? Não tinha sido capaz de dizer a Sor Rorrik ou ao Meistre Luwin, e também não podia dizer aos Reed. Se não falasse no assunto, talvez o esquecesse. Nunca queria se lembrar. Podia até nem ser uma memória verdadeira. - Você cai todas as noites, Bran? - Jojen perguntou em voz baixa. Um rosnado grave e trovejante ergueu-se da garganta de Verão, e não havia nele nenhuma brincadeira. O lobo avançou, todo dentes e olhos quentes. Meera interpôs-se entre o animal e o imão, com o tridente na mão. - Mantenha-o longe, Bran. - Jojen o está deixando irritado, Meera abanou a rede. - A ira é sua, Bran - disse o irmão. - O medo é seu. - Não é. Eu não sou um lobo - mas uivara com eles na noite, e saboreara o sangue em seus sonhos de lobo. - Parte de você é Verão, e parte do Verão é você. Sabe disso, Bran. Verão correu, mas Meera bloqueou seu avanço, dando uma estocada com o tridente. O lobo torceu-se para o lado, rodeando-a, espreitando. Meera virou-se para enfrentá-lo: - Chame-o para trás, Bran. - Verão! - Bran gritou, - Aqui, Verão! - bateu com a palma da mão aberta em sua coxa, A mão formigou, mas a perna morta nada sentiu. O lobo gigante voltou a saltar, e de novo o tridente de Meera avançou. Verão esquivou-se, e rodeou-a no sentido contrário. Os arbustos restolharam, e um esguio vulto negro saiu de debaixo do represeiro, com os dentes à mostra. O cheiro era forte; o irmão havia cheirado sua ira. Bran sentiu que pelos se eriçavam na parte de trás do pescoço. Meera ficou ao lado do irmão, com lobos de ambos os lados. - Bran, chame-os. - Não consigo! - Jojen, para cima da árvore. 285 - Não é preciso. Hoje não é o dia da minha morte. - Faça o que digo! - ela gritou, e o irmão subiu no tronco do represeiro, usando o rosto como apoio para as mãos. Os lobos gigantes aproximaram-se. Meera abandonou a lança e a rede, saltou e agarrou o galho que se estendia por cima de sua cabeça. As mandíbulas do Felpudo fecharam-se com um estalido por baixo de seu tornozelo quando ela se balançou para cima e subiu para o galho. Verão sentou-se nos quartos traseiros e uivou, enquanto Cão Felpudo mordia a rede, sacudindo-a nos dentes.
Foi só então que Bran se lembrou de que não estavam sozinhos. Pôs as mãos em torno da boca: - Hodor! - ele gritou, - Hodor! Hodor! - estava muito assustado e um pouco envergonhado. - Eles não farão mal a Hodor - Bran garantiu aos amigos na árvore. Passaram-se alguns momentos antes de ouvirem um cantarolar sem melodia. Hodor chegou, meio vestido e salpicado de lama de sua visita às lagoas quentes, mas Bran nunca se sentira tão contente por vê-lo. - Hodor, ajude-me. Afaste os lobos. Afaste-os. Hodor fez o que lhe foi pedido alegremente, abanando os braços e batendo com os seus enormes pés, gritando "Hodor, Hodor", correndo primeiro para um lobo e em seguida para o outro. Cão Felpudo foi o primeiro a fugir, voltando a se enfiar por entre a folhagem com um último rosnado. Quando Verão se fartou, voltou para junto de Bran e deitou-se ao seu lado. Assim que Meera voltou a tocar no chão, pegou a rede e o tridente. Jojen não chegou a tirar os olhos de Verão. - Voltaremos a conversar - ele prometeu a Bran. Foram os lobos, não fui eu, Não compreendia por que tinham ficado tão violentos. Talvez Meistre Luwin tenha tido razão em fechá-los no bosque sagrado. - Hodor - disse - , leve-me ao Meistre Luwin. O torreão do meistre, sob o viveiro dos corvos, era um dos lugares preferidos de Bran. Luwin era irremediavelmente desorganizado, mas sua desordem de livros, rolos e garrafas era tão familiar e reconfortante para Bran como a calva do meistre e as grandes mangas de sua toga larga e cinza. E também gostava dos corvos. Foi encontrar Luwin empoleirado num banco alto, escrevendo. Com Sor Rodrik longe, todo o governo do castelo tinha caído sobre os seus ombros. - Meu príncipe - ele disse quando Hodor entrou - , hoje chegou cedo para as lições - o meistre passava várias horas, todas as tardes dando aulas para Bran, Rickon e aos dois Walder Frey. - Hodor, fica quieto - Bran agarrou um castiçal da parede com ambas as mãos e o usou para se içar para fora do cesto. Ficou um momento pendurado pelos braços até Hodor levá-lo a uma cadeira. - Meera diz que o irmão tem a visão verde. Meistre Luwin coçou o lado do nariz com a pena de escrever. - Ah, diz? Bran confirmou com um meneio. - Você disse que os filhos da floresta tinham a visão verde. Eu me lembro. - Alguns afirmavam ter esse poder. Seus sábios eram chamados videntes verdes. - Era magia? - Se tem de chamar assim, na falta de palavra melhor, chame. No seu âmago, era apenas uma forma diferente de conhecimento. - Era o quê? 286 Luwin apoiou a pena. - Ninguém sabe verdadeiramente, Bran. Os filhos desapareceram do mundo, e sua sabedoria foi com eles. Pensamos que tinha a ver com os rostos nas árvores. Os Primeiros Homens acreditavam que os videntes verdes eram capazes de ver através dos olhos dos represeiros. Foi por isso que abatiam as árvores sempre que faziam guerra com os filhos da floresta. Supostamente, os videntes verdes também possuíam poder sobre os animais da floresta e as aves nas árvores, Até sobre os peixes. O rapaz Reed diz que tem algum desses poderes? - Não, Acho que não. Mas Meera diz ter sonhos que às vezes se transformam em realidade. - Todos nós temos sonhos que às vezes se transformam em realidade. Lembra-se de que sonhou com o senhor seu pai na cripta antes de sabermos que estava morto? - Rickon também. Sonhamos o mesmo sonho. - Chame de visão verde, se quiser... Mas lembre-se também de todas as dezenas de milhares de sonhos que você e Rickon sonharam e que não se tornaram realidade. Lembra-se, por acaso, do que lhe ensinei sobre o colar de elos que todos os meistres usam? Bran pensou por um momento, tentando se lembrar. - Um meistre forja sua corrente na Cidadela de Vilavelha. E uma corrente pela qual jura servir, e é feita de vários metais porque o meistre serve ao reino, e o reino tem vários tipos de gente. Cada vez que aprende algo, obtém um novo elo. O ferro negro representa a criação de corvos; a prata, as artes curativas; o ouro, as somas e os números. Não me lembro de todos. Luwin enfiou um dedo sob o colar e ficou virando-o, milímetro por milímetro. Possuía um pescoço grosso para um homem tão pequeno, e a corrente estava apertada, mas, com alguns puxões, virou-a ao contrário. - Isto é aço valiriano - ele disse quando o elo de metal cinza-escuro tocou seu pomo de adão.
- Só um meistre em cem usa um aro desses. Isso significa que estudei aquilo que a Cidadela chama de mistérios superiores... Magia, na falta de palavra melhor. Um estudo fascinante, mas de rouco uso, e esse é o motivo por que tão poucos meistres se importam com ele. Todos os que estudam os mistérios superiores experimentam os feitiços, mais cedo ou mais tarde. Também cedi à tentação, devo confessar. Bem, era um rapaz, e que rapaz não deseja secretamente encontrar poderes escondidos em si? Não obtive mais sucesso com meus esforços do que mil rapazes antes de mim, e outros mil depois. Lamento dizer, a magia não funciona. - Às vezes funciona - Bran protestou. - Eu tive aquele sonho, e Rickon também. E há magos e feiticeiros no leste... - Há homens que se chamam de magos e feiticeiros - Meistre Luwin o interrompeu. - Tive um amigo na Cidadela que conseguia tirar uma rosa de sua orelha, mas não era mais mágico do que eu. Ah, com certeza, há muitas coisas que ainda não compreendemos. Os anos passam às centenas e aos milhares, e o que vê qualquer homem vivo além de alguns Verões e alguns Invernos? Olhamos as montanhas e dizemos que são eternas, e é o que parecem ser... Mas, no correr do tempo, montanhas erguem-se e ruem, rios mudam de curso, estrelas caem do céu, e grandes cidades afundam-se no mar. Pensamos que até os deuses morrem. Tudo muda. Talvez a magia um dia tenha sido uma força poderosa no mundo, mas já não o é. O pouco que resta não é mais do que o fiapo de fumaça que permanece no ar depois de um grande incêndio se extinguir, e até isso está se desvanecendo. Valíria foi a última brasa, e ela desapareceu. Já não há dragões, os gigantes estão mortos, e os filhos da floresta, esquecidos com todo seu saber. Não, meu príncipe. Jojen Reed pode ter tido um sonho ou dois que acredita se tornaram verdade, mas não tem a visão verde. Nenhum homem vivo detém esse poder. 287 Bran disse a Meera Reed exatamente isso quando ela veio visitá-lo ao anoitecer, enquanto ele estava sentado no banco de janela vendo as luzes nascendo, tremulando. - Lamento o que aconteceu com os lobos. Verão não devia ter tentado machucar Jojen, mas Jojen também não devia ter dito tudo aquilo sobre os meus sonhos. O corvo mentiu quando disse que eu podia voar, e seu irmão também mentiu. - Ou talvez seu meistre esteja errado. - Não está. Até meu pai confiava em seus conselhos. - Seu pai o escutava, não tenho dúvidas. Mas, no fim, decidia por si próprio. Bran, você me deixa contar um sonho que Jojen sonhou sobre você e seus irmãos adotivos? - Os Walder não são meus irmãos. Ela não prestou atenção. - Você estava sentado à mesa do jantar, mas, em vez de um criado, foi Meistre Luwin quem lhe trouxe a comida. Serviu-o a porção de rei do assado, com a carne malpassada e sangrando, mas com um saboroso cheiro que deu água na boca de todo mundo. A carne que serviu aos Frey era velha, cinzenta e morta. Mas eles gostaram do seu jantar mais do que você do seu. - Não entendo. - Meu irmão diz que entenderá. Quando entender, voltaremos a conversar. Bran ficou quase com medo de se sentar para jantar naquela noite, mas, quando o fez, o que puseram à sua frente foi empadão de pombo. A todos os outros foi servido o mesmo, e não viu nada de errado na comida que serviram aos Walder. Meistre Luwin tem razão, disse a si mesmo. Nada de mal vinha a caminho de Winterfell, independentemente do que Jojen pudesse dizer. Bran sentiu-se aliviado... mas também desapontado. Enquanto houvesse magia, tudo poderia acontecer. Fantasmas poderiam caminhar, árvores poderiam falar, e garotos aleijados poderiam crescer e se tornar cavaleiros. - Mas não há - ele disse em voz alta na escuridão da sua cama. - Não há magia, e as histórias são só histórias. E ele nunca andaria, nem voaria, nem seria um cavaleiro. 288 Tyrion As esteiras arranhavam as solas de seus pés nus. - Meu primo escolhe uma estranha hora para vir me visitar - disse Tyrion a um Podrick Payne confuso pelo sono, que sem dúvida esperava se queimar por acordá-lo. - Leve-o para o aposento privado e diga-lhe que desço já. Ao ver o negrume na janela, calculou que já passava muito da meia-noite. Será que Lancei acha que vai me encontrar sonolento e com raciocínio devagar a esta hora?, perguntou-se. Não, Lancei quase não pensa, isto é obra de Cersei. A irmã ficaria desapontada. Mesmo deitado, Tyrion trabalhava até bem tarde da madrugada, lendo à luz trêmula de uma vela, estudando os relatórios dos informantes de Varys, e debruçando-se sobre os livros de contas de Mindinho, até que as chamas se desfocassem e os olhos começassem a doer. Lavou o rosto com um pouco de água morna tirada da bacia que estava ao lado da cama e demorou-se, acocorado no sanitário, sentindo o ar frio da noite na pele nua. Sor Lancei tinha dezesseis anos, e não era conhecido pela paciência. Que esperasse e ficasse mais ansioso com a espera. Quando terminou de esvaziar as tripas, Tyrion enfiou-se num roupão e, com a mão, despenteou o cabelo fino e louro, para que parecesse mais ter sido acordado. Lancei passeava em frente às cinzas na lareira, vestido de veludo vermelho cortado com submangas de seda negra, um punhal incrustado de jóias e uma bainha dourada pendendo do cinto. - Primo - Tyrion o saudou. - Suas visitas são demasiado raras. A que devo este imerecido prazer? - Sua Graça, a Rainha Regente enviou-me para lhe ordenar que liberte o Grande Meistre Pycelle - Sor Lancei mostrou a Tyrion uma fita carmesim, com o selo leonino de Cersei impresso em cera dourada. - Aqui está a sua procuração. - Pois bem - Tyrion afastou o objeto com um gesto. - Espero que minha irmã não ande abusando de suas forças tão cedo depois de sua doença. Seria uma grande pena se sofresse uma recaída, - Sua Graça está bem recuperada - Sor Lancei disse secamente. - Música para os meus ouvidos - embora não seja uma melodia que me agrade, devia ter-lhe dado uma dose maior. Tyrion esperava ter mais alguns dias sem interferências de Cersei, mas não ficou muito surpreso por ela ter recuperado a saúde. Afinal de contas, era gêmea de Jaime. Obrigou-se a dar um sorriso agradável. - Pod, acende-nos a lareira, o ar está frio demais para o meu gosto. Toma uma taça comigo, Lancei? Descobri que vinho aquecido me ajuda a dormir. - Não preciso de ajuda para dormir - Sor Lancei respondeu. - Vim por ordem de Sua Graça, não para beber com você, Duende. 289 Tyrion pensou que ser armado cavaleiro tornara o rapaz mais ousado... Isso, e o triste papel que desempenhara no assassinato do Rei Robert. - O vinho realmente tem seus perigos - Tyrion sorria enquanto servia a bebida. - Quanto ao Grande Meistre Pycelle... Se minha querida irmã está assim tão preocupada com ele, eu imaginaria que viesse em pessoa falar comigo. Mas não; manda o senhor. O que acha disso? - Pense disso o que quiser, desde que solte o prisioneiro. O Grande Meistre é um amigo dedicado da Rainha Regente, e encontra-se sob a sua proteção pessoal - uma sugestão de zombaria brincou nos lábios do rapaz; Lancei estava gostando daquilo. Ele aprende suas lições com Cersei, - Sua Graça nunca aceitará esse ultraje. Lembro-lhe de que é ela a regente de JofFrey. - Tal como eu sou Mão de JofFrey. - A Mão serve - inFormou-o com desenvoltura o jovem cavaleiro. - A regente governa, até o rei ser maior de idade. - Talvez devesse escrever isso para que me lembre melhor - a lareira estalava alegremente. - Pode nos deixar, Pod - Tyrion disse ao escudeiro. Só depois de o rapaz sair, voltou-se para Lancei; - Há mais? - Sim. Sua Graça pede-me que lhe informe que Sor Jacelyn Bywater desobedeceu a uma ordem emitida em nome do rei. O que significa que Cersei já ordenou a Bywater que liberte Pycelle e recebeu uma negativa, - Sei. - Insiste que o homem seja destituído do cargo e posto sob prisão por traição. Previno-o... Tyrion pôs a taça de lado: - Não ouvirei avisos vindos de você, rapaz. - Sor - Lancei falou rigidamente. Tocou a espada, talvez para lembrar Tyrion de que a usava. - Tenha cuidado com a maneira como fala comigo, Duende - sem dúvida pretendia parecer ameaçador, mas aquela absurda penugem no lugar do bigode arruinava o efeito. - Oh, puxe a espada. Um grito meu e Shagga entra de rompante e mata você. Com um machado, não com um odre de vinho. Lancei corou; seria tão tonto a ponto de pensar que seu papel na morte de Robert tinha passado despercebido? - Eu sou um cavaleiro... - J á notei. Diga-me... Cersei armou-o cavaleiro antes ou depois de tê-lo levado para a cama? O brilho nos olhos verdes de Lancei era toda a admissão de culpa de que Tyrion necessitava. Portanto, Varys dissera a verdade. Bem, ninguém jamais poderá afirmar que minha irmã não ama a família. - O quê? Nada a dizer? Não há mais avisos para mim, Sor?
- Retire essas imundas acusações, senão... - Faça-me o favor. Por acaso já pensou no que JofFrey Fará quando lhe disser que assassinou o pai dele para dormir com sua mãe? - Não Foi assim! - Lancei protestou, horrorizado. - Não? Então como foi? Diga! - Foi a rainha que me deu o vinho-forte. Seu próprio pai, Lorde Tywin, quando fui nomeado escudeiro do rei, disse-me para obedecer a Cersei em tudo. - Também disse para fodê-la? - olhem para ele. Não é tão alto, não tem feições tão regulares, o cabelo é areia em vez de fio de ouro, mas, mesmo assim... Até uma fraca cópia de Jaime é melhor do que uma cama vazia, suponho. - Não, também me parece que não. 290 - Nunca pretendi... Só fiz o que me foi pedido, eu... - ... detestou cada instante... E nisso que quer que eu acredite? Uma posição elevada na corte, um grau de cavaleiro, as pernas da minha irmã abertas para você à noite, ah, sim, deve ter sido terrível para você - Tyrion ficou de pé. - Espere aqui. Sua Graça vai querer saber disso. Todo o tom desafiador de Lancei desapareceu de uma só vez. O jovem cavaleiro caiu de joelhos como um menino assustado. - Misericórdia, senhor, suplico-lhe. - Guarde isso para Joffrey. Ele gosta de uma boa súplica. - Senhor, foram ordens de sua irmã, a rainha, tal como disse, mas Sua Graça... Ele nunca compreenderá... - Quer que eu esconda a verdade do rei? - Por meu pai! Deixarei a cidade, será como se nunca tivesse acontecido! Juro, acabarei com tudo... Era difícil não rir. - Acho que não. Agora o rapaz parecia perdido. - Senhor? - Você ouviu. Meu pai disse-lhe para obedecer à minha irmã? Muito bem, obedeça. Fique perto dela, ganhe sua confiança, dê-lhe prazer sempre que ela pedir. Ninguém precisa de saber... Desde que trabalhe para mim. Quero saber o que Cersei anda fazendo. Aonde vai, com quem fala e do que fala, que planos anda arquitetando. Tudo. E será você quem vai me contar, não é verdade? - Sim, senhor - Lancei falou sem um momento de hesitação. Tyrion gostou daquilo. - Serei. Juro. Às suas ordens. - Levante-se - Tyrion encheu a segunda taça e enfiou-a na mão dele. - Beba ao nosso acordo. Garanto que não há javalis no castelo, pelo menos que eu saiba - Lancei ergueu a taça e bebeu, ainda que de forma tensa. - Sorria, primo. Minha irmã é uma bela mulher, e é tudo pelo bem do reino. Pode se sair disso bem. Um grau de cavaleiro não é nada. Se for esperto, antes de acabarmos ainda recebe de mim uma senhora - Tyrion fez girar o vinho na sua taça. - Queremos que Cersei tenha toda a confiança em você. Volte e diga-lhe que peço perdão. Diga que me assustou, que não quero conflitos entre nós, que daqui em diante nada farei sem o seu consentimento. - Mas... Ela exige... -Ah, eu lhe dou Pycelle. - Dará? - Lancei pareceu espantado. Tyrion sorriu. - Vou soltá-lo amanhã, Podia jurar que não toquei num fio de cabelo dele, mas não seria completamente verdade. Em todo caso, ele está bastante bem, embora eu não garanta seu vigor. As celas negras não são um lugar saudável para um homem de sua idade. Cersei pode mantê-lo como animal de estimação ou mandá-lo para a Muralha, não me interessa, mas não o aceitarei no conselho. - E Sor Jacelyn? - Diga a minha irmã que crê que conseguirá tirá-lo de mim em breve. Isso deve contentá-la por enquanto. - Às suas ordens - Lancei terminou o vinho. - Só mais uma coisa. Com o Rei Robert morto, seria um grande embaraço se sua inconsolável viúva de repente ficasse prenhe. 291 - Senhor, eu... nós... a rainha ordenou-me que não... - as orelhas do rapaz tinham tomado o tom carmim dos Lannister. - Derramarei minha semente na barriga dela, senhor. - Uma adorável barriga, não tenho dúvida. Umedeça-a tantas vezes quantas desejar... Mas assegure-se de que seu orvalho não caia em nenhum outro lugar. Não quero mais sobrinhos, entendido?
Sor Lancei fez uma reverência rígida e se retirou. Tyrion concedeu a si próprio um momento para sentir pena do rapaz. Outro tolo, e também fraco, mas não merece o que Cersei e eu estamos lhe fazendo. Era bom que seu tio Kevan tivesse mais dois filhos, porque este provavelmente não chegaria ao fim do ano. Cersei mandaria matá-lo imediatamente se soubesse que a andava traindo e, se por alguma graça dos deuses, não o fizesse, Lancei nunca sobreviveria ao dia em que Jaime Lannister voltasse a Porto Real, A única questão que restava era saber se Jaime o abateria num ataque de ciúmes, ou se Cersei o assassinaria primeiro, a fim de evitar que Jaime descobrisse. A prata de Tyrion estava posta em Cersei. Sentia-se desassossegado, e Tyrion sabia perfeitamente que não voltaria a dormir naquela noite. Não aqui, pelo menos. Deparou-se com Podrick Payne dormindo numa cadeira à porta do aposento privado, e sacudiu seu ombro. - Chame Bronn, e depois corra aos estábulos e mande selar dois cavalos. Os olhos do escudeiro estavam enevoados de sono. - Cavalos. - Aqueles grandes animais marrons que gostam de maçãs, com certeza já os viu. Quatro patas e uma cauda. Mas, primeiro, Bronn. O mercenário não demorou a aparecer. - Quem mijou na sua sopa? - o homem quis saber. - Cersei, como sempre. Seria de se esperar que a essa altura já estivesse habituado ao gosto, mas, esqueça. Minha amável irmã parece ter me confundido com Ned Stark. - Ouvi dizer que ele era mais alto. - Depois de JofF ter cortado sua cabeça, não. Devia ter vestido uma roupa mais quente, A noite está fria, - Vamos a algum lugar? - Os mercenários são todos tão espertos como você? As ruas da cidade eram perigosas, mas com Bronn a seu lado Tyrion sentia-se bastante seguro. Os guardas deixaram-nos sair por uma pequena porta na muralha norte, e eles desceram a Alameda da Sombra Negra até o sopé da Grande Colina de Aegon, e daí dirigiram-se ao Beco do Porco Corrido, passando por fileiras de janelas fechadas e altos edifícios de madeira e pedra, cujos andares superiores se estendiam tanto por cima da rua, que quase se beijavam, A lua parecia segui-los enquanto avançavam, brincando de se esconder por entre as chaminés. Não encontraram ninguém além de uma velha que arrastava um gato morto pelo rabo. Lançou-lhes um olhar temeroso, como se receasse que tentassem roubar dela o jantar, e desvaneceu-se nas sombras sem uma palavra. Tyrion refletiu sobre os homens que tinham sido Mão antes dele e que se revelaram incapazes de vencer os ardis da irmã. E como seria de outro modo? Homens assim... Honrosos demais para viver, nobres demais para cagar... Cersei devora tais tolos todas as manhãs no desjejum, A única forma de derrotá-la era jogar o seu jogo, e isso era algo que os Senhores Stark e Arryn nunca fariam. Pouco admirava que ambos estivessem mortos, já Tyrion Lannister nunca se sentira mais vivo. Suas pernas deformadas podiam transformá-lo num grotesco cômico de um baile das colheitas, mas conhecia aquela dança. 292 Apesar da hora, o bordel estava apinhado. Chataya saudou-os agradavelmente e os levou para a sala comum. Bronn subiu com uma moça de olhos escuros, de Dorne, porque Alayaya estava ocupada. - Ficará tão satisfeita por saber que veio - Chataya lhe disse. - Mandarei preparar o quarto da torre. O senhor aceita uma taça de vinho enquanto espera? - Aceito - Tyrion respondeu. O vinho era fraco se comparado com as colheitas da Árvore que a casa servia habitualmente. - Tem de nos perdoar, senhor - Chataya se desculpou. - Ultimamente não consigo encontrar bom vinho por nenhum preço. - Temo que não seja só você. Chataya lamentou-se com ele durante um momento, depois pediu desculpas e afastou-se. Uma mulher bonita, refletiu Tyrion enquanto a via partir. Raramente vira tal elegância e dignidade numa prostituta, embora ela se visse mais como um tipo de sacerdotisa. Talvez seja este o segredo. Não é o que fazemos, mas o motivo por que o fazemos. De algum modo, aquele pensamento o confortou. Alguns dos outros clientes a olhavam de canto de olho. Da última vez que se aventurara a sair, um homem tinha cuspido nele... bem, tentara fazê-lo. Em vez disso, cuspiu em Bronn, e dali em diante passou a cuspir sem o auxílio dos dentes. - O senhor está se sentindo carente? - Dancy tinha deslizado para o seu colo e mordiscava sua orelha. - Tenho cura para isso.
Sorrindo, Tyrion balançou a cabeça: - É tão bela que não tenho palavras, doçura, mas tornei-me amigo do remédio de Alayaya. - Nunca experimentou o meu. O senhor nunca escolhe ninguém a não ser a' Yaya. Ela é boa, mas eu sou melhor, não quer ver? - Talvez da próxima vez - Tyrion não tinha dúvidas de que com Dancy teria um bocado de diversão. Possuía um nariz achatado, com sardas e uma juba de espessos cabelos ruivos que caía até depois da cintura. Mas ele tinha Shae à espera na mansão. Aos risinhos, ela pousou a mão entre as suas coxas e apertou através dos calções. - Acho que ele não quer esperar até a próxima vez - ela anunciou. - Acho que ele quer sair e contar todas as minhas sardas. - Dancy - Alayaya estava na porta, escura e calma em suas sedas verdes e transparentes. - Sua senhoria veio me visitar. Tyrion desembaraçou-se gentilmente da outra garota e pôs-se em pé. Dancy não pareceu se importar. - Da próxima vez - ela disse, enfiando um dedo na boca para chupá-lo. Enquanto subia as escadas à sua frente, a moça de pele negra disse: - Pobre Dancy. Tem uma quinzena para conseguir que o senhor a escolha. Caso contrário, perde as pérolas negras para Marei. Marei era uma garota calma, de pele clara e delicada em que Tyrion reparara uma ou duas vezes. Olhos verdes e pele de porcelana, longos cabelos lisos e prateados, muito encantadora, mas muito mais pomposa do que devia ser, - Detestaria que a pobre moça perdesse as pérolas por minha causa. - Então suba com ela da próxima vez. - Talvez o faça. Ela sorriu: 293 - Creio que não, senhor. Ela tem razão, Tyrion pensou. Não o farei. Shae pode ser apenas uma prostituta, mas à minha maneira lhe sou fiel. No quarto do torreão, enquanto abria a porta do guarda-roupa, olhou com curiosidade para Alayaya: - O que você vai fazer enquanto eu não estiver aqui? Ela ergueu os braços e espreguiçou-se como uma gata negra cheia de saúde: - Dormirei. Tenho descansado muito mais desde que começou a nos visitar, senhor. E Marei anda nos ensinando a ler, talvez em breve seja capaz de passar o tempo com um livro. - Dormir é bom - ele respondeu. - E os livros são melhores - deu-lhe um beijo rápido na face. Depois seguiu pelo alçapão abaixo e pelo túnel afora. Ao sair do estábulo no seu castrado malhado, Tyrion ouviu o som de música pairando sobre os telhados. Era agradável pensar que os homens ainda cantavam, mesmo no meio dos massacres e da fome. Notas recordadas encheram sua cabeça, e por um momento quase conseguiu ouvir Tysha cantando para ele como cantara meia vida antes. Puxou as rédeas para escutar, A melodia estava errada, e as palavras indistintas demais para que as compreendesse. Era então uma canção diferente, e por que não? Sua querida e inocente Tysha tinha sido uma mentira do início ao fim, nada mais do que uma prostituta que o irmão Jaime contratara para fazer dele um homem. Agora estou livre de Tysha, pensou. Ela me assombrou durante metade da minha vida, mas já não preciso dela, não mais do que preciso de Alayaya, Dancy ou Marei, ou das centenas de mulheres iguais a elas com que fui me deitando ao longo dos anos, Agora tenho Shae. Shae. Os portões da mansão estavam fechados e trancados. Tyrion bateu até que o ornamentado olho de bronze se abriu com um estalido. - Sou eu. O homem que o deixou entrar era uma das mais belas descobertas de Varys, um faquista de Bravos com um lábio leporino e um olho vesgo. Tyrion não quis guardas jovens e bonitos passeando em torno de Shae dia após dia. "Arranje-me homens velhos, feios e com cicatrizes, de preferência impotentes", tinha dito ao eunuco."Homens que prefiram rapazes. Ou, melhor ainda, homens que prefiram ovelhas." Varys não conseguira arranjar nenhum amante de ovelhas, mas encontrara um estrangulador eunuco e um par de ibbeneses malcheirosos que gostavam tanto de machados como um do outro. Os outros eram um bando de mercenários de fazer inveja a qualquer masmorra, cada um mais feio do que o outro. Quando Varys os fez desfilar à sua frente, Tyrion temeu que o eunuco tivesse ido longe demais, mas Shae nunca expressou uma palavra de queixa. E por que haveria de expressar? Nunca se queixou de mim, e eu sou mais hediondo do que todos os seus guardas juntos. Talvez nem sequer veja a feiúra.
Mesmo assim, Tyrion teria preferido usar alguns de seus homens dos clãs da montanha para guardar a mansão; talvez os Orelhas Negras de Chella, ou os Irmãos da Lua. Depositava mais fé na férrea lealdade e no sentido de honra deles do que na ganância de mercenários. Mas o risco era elevado demais. Porto Real inteira sabia que os selvagens lhe pertenciam. Se mandasse para ali os Orelhas Negras, seria apenas uma questão de tempo até que toda a cidade soubesse que a Mão do Rei mantinha uma concubina. Entregou o cavalo a um dos ibbeneses. - Acordou-a? - perguntou-lhe Tyrion. - Não, senhor. - Ótimo. 294 O fogo, no quarto, ardera até deixar apenas brasas, mas o aposento ainda estava quente. Shae tinha empurrado as mantas e os lençóis para longe enquanto dormia. Jazia nua sobre seu colchão de penas, com as suaves curvas de seu corpo jovem delineadas pelo tênue brilho vindo da lareira. Tyrion parou à porta e bebeu da visão da moça. Mais jovem do que Marei, mais doce do que Dancy, mais bela do que Alayaya, é tudo de que preciso, e ainda mais. Perguntou a si mesmo como podia uma prostituta parecer tão limpa, doce e inocente. Não pretendia perturbá-la, mas vê-la foi o suficiente para deixá-lo excitado. Deixou que as roupas caíssem ao chão, depois subiu para a cama, afastou suas pernas com gentileza e beijou-a entre as coxas. Shae murmurou no sono. Tyrion voltou a beijá-la, e lambeu sua doçura secreta, uma e outra vez, até que tanto a barba dele como a boceta dela ficaram ensopadas. Quando ela soltou um suave gemido e estremeceu, ele subiu, penetrou-a e explodiu quase de imediato. Os olhos da garota estavam abertos. Ela sorriu, afagou sua cabeça e sussurrou: - Tive agora mesmo o mais doce dos sonhos, senhor. Tyrion mordiscou seu pequeno mamilo túrgido e aninhou a cabeça no seu ombro, Não saiu de dentro dela; gostaria de nunca ter de sair dali. - Isso não é sonho nenhum - garantiu-lhe. É real, tudo isso, pensou, as guerras, as intrigas, o grande jogo sangrento, e eu no centro de tudo... eu, o anão, o monstro, aquele de quem zombavam e riam. Mas agora tenho tudo, o poder, a cidade, a moça. Foi para isso que fui feito e, que os deuses me perdoem, adoro tudo... E a ela. E a ela. 295 Arya Quaisquer que tivessem sido os nomes que Harren, o Negro, quisera dar às suas torres, estavam havia muito esquecidos. Eram chamadas de Torre do Terror, da Viúva, dos Gemidos, dos Fantasmas e da Pira do Rei. Arya dormia num nicho pouco profundo, nas caves por baixo da Torre dos Lamentos, numa cama de palha. Tinha água para se lavar sempre que quisesse e um pedaço de sabão. O trabalho era duro, mas não tanto como caminhar vários quilômetros todos os dias. A Doninha não precisava encontrar minhocas e bichos para comer, como Arry tinha precisado; havia pão todos os dias, e também guisados de cevada com pedacinhos de cenoura e nabo, e de quinze em quinze dias até um pouco de carne. Torta Quente comia ainda melhor; estava no lugar certo para ele, nas cozinhas, um edifício redondo de pedra com um telhado em forma de cúpula que era um mundo próprio. Arya tomava as refeições numa mesa de montar na galeria subterrânea, com Weese e os outros que ele tinha a seu cargo, mas às vezes era escolhida para ajudar a buscar as refeições, e ela e Torta Quente roubavam um momento para conversar. Ele nunca conseguia se lembrar de que ela era agora Doninha, e continuava a chamá-la de Arry, embora soubesse que era uma menina. Uma vez tentara dar-lhe, às escondidas, uma torta quente de maçã, mas tinha sido tão desastrado que dois dos outros cozinheiros viram. Levaram a torta e bateram nele com uma grande colher de pau. Gendry tinha sido mandado para a forja; Arya raramente o via. Quanto àqueles com quem servia, nem sequer queria saber seus nomes. Isso só fazia com que doesse mais quando morriam. Eles eram, na maior parte, mais velhos do que ela, e ficavam satisfeitos por deixá-la em paz. Harrenhal era vasto, e a maior parte havia muito entrara em decadência. A Senhora Whent teve a posse do castelo enquanto vassala da Casa Tully, mas usava apenas os andares inferiores de duas das cinco torres, e deixara o resto cair em ruínas. Agora estava em fuga, e o pouco pessoal que restara não era capaz nem de começar a cuidar das necessidades de todos os cavaleiros, senhores e prisioneiros de nascimento elevado que Lorde Tywin havia trazido, e por isso os Lannister eram obrigados a procurar não só saque e provisões, mas também criados. Segundo se dizia, Lorde Tywin planejava devolver Harrenhal à sua antiga glória, e fazer do castelo sua nova sede depois que a guerra terminasse. Weese usava Arya para entregar mensagens, carregar água e buscar comida, e às vezes para servir as mesas no Salão das Casernas, por cima do arsenal, onde os homens de armas faziam as refeições. Mas a maior parte de seu trabalho era limpar, O piso inferior da Torre dos Gemidos tinha sido transformado em armazéns e celeiros, e os dois pisos imediatamente acima alojavam parte da guarnição, mas os pisos superiores não eram ocupados havia oitenta anos, Agora, Lorde Tywin ordenara que fossem de novo preparados para habitação. Havia chãos a escovar, sujeira a ser lavada de janelas, cadeiras quebradas e camas apodrecidas a ser jogadas fora. O andar de cima 296 estava infestado com ninhos dos enormes morcegos negros que a Casa Whent usara como símbolo, e também havia ratazanas nos porões... e fantasmas, diziam alguns, os espíritos de Harren, o Negro, e de seus filhos. Arya achava que aquilo era estúpido. Harren e os filhos tinham morrido na Torre da Pira do Rei, era por isso que ela tinha aquele nome; portanto, por que haveriam de atravessar o pátio para ir assombrá-la? A Torre dos Gemidos só gemia quando o vento soprava do norte, e isso era apenas o som que o ar fazia ao soprar por entre as fendas das pedras, que tinham se aberto com o calor. Se havia fantasmas em Harrenhal, nunca a incomodaram. Eram os vivos que ela temia, Weese, Sor Gregor Clegane e o próprio Lorde Tywin Lannister, que tinha os aposentos na Torre da Pira do Rei, ainda a mais alta e mais poderosa de todas, embora deformada sob o peso da escória que a tornava parecida com uma gigantesca vela negra meio derretida. Gostaria de saber o que faria Lorde Tywin caso se dirigisse a ele e confessasse ser Arya Stark, mas sabia que nunca conseguiria se aproximar o suficiente para falar com ele e, fosse como fosse, ele nunca acreditaria no que lhe dissesse, e depois Weese bateria nela até deixá-la sangrando. A sua maneira pequena e empertigada, Weese era quase tão assustador quanto Sor Gregor. A Montanha esmagava homens como se fossem moscas, mas durante a maior parte do tempo nem parecia reparar que a mosca estava ali. Weese sabia sempre que todos estavam ali, e o que estavam fazendo, e às vezes o que estavam pensando. Batia à mínima provocação, e tinha um cão que era quase tão mau como ele, uma cadela feia e malhada que cheirava pior do que qualquer cão que Arya tivesse conhecido. Uma vez, viu-o atiçar o cão contra um latrineiro que o aborrecera. A cadela arrancou um grande bocado da barriga da perna do rapaz, enquanto Weese ria. Weese demorou apenas três dias para conquistar o lugar de honra nas preces noturnas de Arya. - Weese - sussurrava, antes de todos Dunsen, Chiswyck, Polliver, RafF, o Querido, Cócegas e Cão de Caça, Sor Gregor, Sor Amory, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rei JofFrey, Rainha Cersei caso se esquecesse de apenas um deles que fosse, como poderia voltar a encontrá-lo para matá-lo? Na estrada, Arya tinha se sentido como uma ovelha, mas Harrenhal a transformou num rato. Era cinza como um roedor em seu vestido áspero de lã e, tal como um desses bichos, mantinha-se junto aos vãos, fendas e buracos escuros do castelo, correndo apressadamente para fora do caminho dos poderosos. Às vezes, pensava que eram todos ratos dentro daquelas grossas muralhas, até os cavaleiros e os grandes senhores. O tamanho do castelo fazia com que até Gregor Clegane parecesse pequeno. Harrenhal cobria o triplo do terreno de Winterfell, e seus edifícios eram de tal modo maiores do que os do castelo do norte, que quase não podiam ser comparados. Suas cocheiras tinham espaço para mil cavalos, seu bosque sagrado estendia-se por vinte acres, suas cozinhas eram tão grandes como o Grande Salão de Winterfell, e seu grande salão, grandiosamente chamado Salão das Cem Lareiras, embora tivesse apenas trinta e tantas (Arya tentou contá-las, duas vezes, mas uma vez chegou a trinta e três e, na outra, a trinta e cinco), era tão cavernoso que Lorde Tywin podia ter lá banqueteado a tropa inteira, embora nunca o fizesse. Muralhas, portas, salões, degraus, tudo era construído em uma escala desumana, que fazia com que Arya recordasse as histórias que a Velha Ama costumava contar a respeito dos gigantes que viviam para lá da Muralha. E, como os senhores e senhoras nunca reparam nos ratinhos cinzentos que correm sob seus pés, Arya ouviu todo tipo de segredo só por manter os ouvidos abertos enquanto desempenhava seus deveres. A bonita Pia, da despensa, era uma devassa que passava pelas mãos de todos os 297 cavaleiros do castelo. A mulher do carcereiro esperava um bebê, mas o verdadeiro pai era ou Sor Alyn Stackspear ou um cantor chamado Wat Sorriso-Branco. Lorde Lefford caçoava dos fantasmas à mesa, mas mantinha sempre uma vela queimando junto à cama. O escudeiro de Sor Dunaver, Jodge, não conseguia segurar a urina quando dormia. Os cozinheiros desprezavam Sor Harys Swyft e cuspiam em sua comida. Uma vez até ouviu a criada do Meistre Tothmure confidenciar ao irmão que tinham recebido uma mensagem qualquer que dizia que Joffrey era um bastardo, e não o legítimo rei, - Lorde Tywin disse-lhe para queimar a carta e nunca mais voltar a proferir tal imundície - sussurrou a moça. Ouviu dizer que os irmãos do Rei Robert, Stannis e Renly, tinham se juntado à luta. - E ambos agora são reis - disse Weese. - O reino tem mais reis do que o castelo tem ratazanas - até os homens dos Lannister se interrogavam sobre quanto tempo Joffrey se manteria no Trono de Ferro. - O rapaz não tem exército, a não ser aqueles homens de manto dourado, e é governado por um eunuco, um anão e uma mulher - Arya ouviu um fidalgo murmurar, ébrio. - De que eles servirão em batalha? - havia sempre conversas sobre Beric Dondarrion. Um arqueiro gordo disse uma vez que os Saltimbancos Sangrentos o tinham matado, mas os outros só riram. - Lorch matou o homem nas Cataratas Impetuosas, e a Montanha já o matou duas vezes. Tenho aqui um veado de prata que diz que dessa vez também não deve ficar morto. Arya não soube quem eram os Saltimbancos Sangrentos até uma quinzena mais tarde, quando o mais estranho grupo de homens que já vira chegou a Harrenhal. Sob um estandarte com uma cabra negra dotada de cornos ensangüentados, cavalgavam homens de cobre com sinetas nas tranças; lanceiros montados em cavalos rajados de preto e branco; arqueiros com as caras empoadas; homens peludos e atarracados, segurando escudos grosseiros; homens de pele marrom com mantos de penas; um bobo delgado vestido de quadriculado verde e rosa; espadachins com fantásticas barbas divididas pintadas de verde, roxo e prateado; lanceiros com cicatrizes coloridas que cobriam suas bochechas; um homem magro vestido de septão, um outro com ar paternal, usando o cinza dos meistres, e um terceiro com um aspecto doentio, cujo manto de couro era debruado com longos cabelos louros. A frente vinha um homem magro como um espeto e muito alto, com uma cara repuxada e sem viço que parecia ainda mais longa devido à barba negra e filamentosa que descia desde seu queixo pontiagudo quase até a cintura. O elmo pendurado no arção da sela era de aço negro, esculpido em forma de cabeça de cabra. Em torno do pescoço usava uma corrente feita de moedas interligadas, de tamanho, forma e metais diversos, e o cavalo era um dos estranhos animais pretos e brancos. - Não quer conhecer aqueles ali, Doninha - disse Weese quando a viu olhando para o homem do elmo de cabra. Tinha consigo dois dos amigos de bebida, homens de armas a serviço de Lorde Lefford. - Quem são eles? - Arya quis saber. Um dos soldados soltou uma gargalhada. - Os Peões, garota. Dedos da Cabra. Os Saltimbancos Sangrentos de Lorde Tywin. - Cabeça de ervilha. Se fizer com que a esfolem, será voei quem vai esfregar o sangue dos degraus - Weese a repreendeu. - São mercenários, Doninha. Chamam a si próprios de Bravos Companheiros. Não use os outros nomes onde eles possam ouvir, senão machucam-na muito. O do elmo de cabra é o capitão, Lorde Vargo Hoat. 298 - Ele não é lorde coisa nenhuma - disse o segundo soldado. - Ouvi Sor Amory dizer. E só um mercenário qualquer com a boca cheia de baba e que se acha mais do que é. - É - Weese resmungou mas é melhor que ela o chame de lorde se quiser se manter inteira. Arya voltou a olhar para Vargo Hoat. Quantos monstros tem Lorde Tywin? Os Bravos Companheiros foram alojados na Torre da Viúva, e Arya não teve de servi-los. Sentiu-se grata por aquilo; na mesma noite em que chegaram, estourou uma luta entre os mercenários e alguns homens dos Lannister. O escudeiro de Sor Harys Swyft foi esfaqueado até a morte, e dois dos Saltimbancos Sangrentos ficaram feridos. Na manhã seguinte, Lorde Tywin enforcou ambos nas muralhas da guarita, na companhia de um dos arqueiros de Lorde Lydden. Weese disse que o arqueiro tinha dado início à discussão por insultar os mercenários em favor de Beric Dondarrion. Depois de os enforcados terem parado de se contorcer, Vargo Hoat e Sor Harys abraçaram-se, beijaram-se e juraram gostar um do outro para sempre, enquanto Lorde Tywin observava. Arya achou engraçado o modo como Vargo Hoat ceceava e se babava, mas não era tão tola a ponto de rir. Os Saltimbancos Sangrentos não ficaram muito tempo em Harrenhal, mas, antes de voltarem a partir, Arya ouviu um deles contar como um exército de nortenhos sob a liderança de Roose Bolton tinha ocupado o vau rubi do Tridente. - Se atravessar, Lorde Tywin vai esmagá-lo de novo, como fez no Ramo Verde - disse um arqueiro Lannister, mas os companheiros zombaram dele. - Bolton nunca atravessará, pelo menos até que o Jovem Lobo se ponha em marcha de Correrrio com seus nortenhos selvagens e os lobos todos.
Arya não sabia que o irmão estava tão perto. Correrrio ficava muito mais próximo do que Winterfell, embora não estivesse certa de sua posição em relação a Harrenhal. Podia arranjar maneira de saber, sei que podia, se ao menos conseguisse sair daqui. Quando pensou em voltar a ver o rosto de Robb, Arya teve de morder o lábio. E também quero ver Jon, e Bran, e Rickon, e a mãe. Até Sansa... iria beijá-la e lhe pedir seu perdão como uma verdadeira senhora, ela iria gostar. Pela conversa no pátio, ficou sabendo que os aposentos superiores da Torre do Terror alojavam três dúzias de cativos capturados durante uma batalha qualquer no Ramo Verde do Tridente. A maioria deles podia circular livremente pelo castelo em troca da garantia de não tentar fugir. Eles juraram não fugir, disse Arya a si mesma, mas nunca juraram que não me ajudariam a fugir. Os cativos comiam numa mesa própria no Salão das Cem Lareiras, e podiam ser vistos com freqüência nos terreiros. Quatro irmãos exercitavam-se juntos todos os dias, lutando com bordões e escudos de madeira no Pátio da Corrente de Pedra. Três eram Frey da Travessia, o quarto, um irmão bastardo. Mas ficaram lá pouco tempo; uma certa manhã, dois outros irmãos chegaram sob uma bandeira de paz com uma arca de ouro, e resgataram-nos dos cavaleiros que os tinham capturado. Os seis Frey saíram juntos. Mas ninguém resgatava os nortenhos. Um fidalgo gordo assombrava as cozinhas, disse-lhe Torta Quente, sempre em busca de um pouco de comida. Tinha um bigode tão cerrado que cobria sua boca, e a fivela que prendia seu manto era um tridente de prata e safiras. Pertencia a Lorde Tywin, mas o jovem feroz e barbudo, que gostava de percorrer sozinho as ameias trajando um manto negro decorado com sóis brancos, tinha sido capturado por um pequeno cavaleiro qualquer, que pretendia enriquecer à sua custa. Sansa saberia quem ele era, e o gordo também, mas Arya nunca tivera muito interesse por títulos e símbolos. Sempre que Septã Mordane começava a falar da história desta ou daquela casa, Arya sentia-se inclinada a divagar, sonhar e perguntar a si mesma quando a aula chegaria ao fim. 299 Mas lembrava-se de Lorde Cerwyn. Suas terras ficavam próximas de Winterfell, e ele e o filho Cley tinham sido visitas freqüentes, Mas o destino determinou que ele fosse o único cativo que nunca era visto; encontrava-se acamado numa cela da torre, recuperando-se de um ferimento. Ao longo de dias e mais dias, Arya tentou planejar um modo de passar pelos guardas da porta, a fim de visitá-lo. Se a reconhecesse, estaria obrigado pela honra a ajudá-la. Um senhor teria certamente ouro, todos eles tinham; e talvez pagasse a algum dos mercenários de Lorde Tywin para levá-la até Correrrio. Seu pai sempre dissera que a maior parte dos mercenários trairia quem quer que fosse a troco de ouro suficiente. Então, uma manhã, Arya vislumbrou três mulheres com o hábito cinza encapuzado das irmãs silenciosas carregando um cadáver em sua carroça. O corpo encontrava-se envolto num manto da melhor seda, decorada com o símbolo de um machado de batalha. Quando Arya perguntou quem era, um dos guardas disse-lhe que Lorde Cerwyn tinha morrido. As palavras foram como um pontapé em sua barriga. Ele nunca teria podido ajudá-la, de qualquer maneira, pensou, enquanto as irmãs conduziam a carroça através do portão. Ele nem sequer conseguiu se ajudar, aquele rato estúpido. Depois daquilo voltou à rotina de esfregar, fugir do caminho dos poderosos e escutar às portas. Ouviu dizer que Lorde Tywin marcharia em breve sobre Correrrio. Ou que avançaria para o sul, em direção a Jardim de Cima, pois ninguém esperaria que o fizesse. Que tinha de defender Porto Real, pois Stannis era a maior ameaça. Que mandara Gregor Clegane e Vargo Hoat destruir Roose Bolton, tirando assim o punhal de suas costas. Que enviara corvos para o Ninho da Águia, pois pretendia casar-se com a Senhora Lysa Arryn e conquistar o Vale. Que comprara uma tonelada de prata, a fim de forjar espadas mágicas que matariam os lobos Stark, Que escrevera à Senhora Stark para fazer a paz, e que o Regicida seria libertado em breve. Embora os corvos partissem e chegassem todos os dias, o próprio Lorde Tywin passava a maior parte de seus dias atrás de portas fechadas com seu conselho de guerra. Arya vislumbrou-o algumas vezes, mas sempre de longe... Uma vez, caminhando pelas muralhas na companhia de três meistres e do gordo cativo com o bigode cerrado; outra, saindo a cavalo com os senhores seus vassalos para visitar os acampamentos; mas, na maior parte das vezes, numa arcada da galeria coberta, observando os treinos dos homens no pátio abaixo. Ficava em pé, com ambas as mãos fechadas sobre o copo de ouro de sua espada longa. Dizia-se que Lorde Tywin amava o ouro acima de tudo; Arya ouviu um escudeiro gracejar que até cagava ouro. Lorde Lannister tinha um aspecto forte para um velho, com rígidas suíças douradas e uma cabeça calva. Havia algo no seu rosto que fazia Arya lembrar-se de seu pai, embora não se parecessem em nada. Tem uma cara de senhor, é só isso, disse a si mesma. Lembrava-se de ouvir a senhora sua mãe dizer ao pai para envergar a cara de senhor e ir tratar de algum assunto. O pai ria daquilo, Arya não conseguia imaginar Lorde Tywin rindo de qualquer coisa. Uma tarde, enquanto esperava sua vez de tirar um balde de água do poço, ouviu os eixos do portão oriental gemendo. Um grupo de homens montados entrou a trote sob a porta levadiça. Quando viu a manticora rastejando no escudo do chefe, sentiu-se trespassada por uma punhalada de ódio. A luz do dia, Sor Amory Lorch parecia menos assustador do que parecera à luz dos archotes, mas ainda possuía os olhos de porco de que recordava. Uma das mulheres disse que seus homens tinham rodeado o lago por completo, perseguindo Beric Dondarrion e matando rebeldes. Nós não éramos rebeldes, Arya pensou. Éramos a Patrulha da Noite; e a Patrulha da Noite não toma partido. Mas Sor Amory tinha menos homens do que ela recordava, e muitos vinham feridos. Espero que os ferimentos gangrenem. Espero que morram todos. 300 Então, viu os três que seguiam perto do fim da coluna. Rorge tinha colocado um meio-elmo negro com uma larga proteção de nariz em ferro que tornava difícil ver que não tinha nariz. Dentadas seguia pesadamente ao seu lado, num corcel de batalha que parecia prestes a cair sob seu peso. Queimaduras meio curadas cobriam seu corpo, tornando-o ainda mais hediondo do que já era. Mas Jaqen Hghar ainda sorria. Seu traje ainda estava esfarrapado e imundo, mas arranjara algum tempo para se lavar e escovar o cabelo, que escorria por seus ombros, vermelho, branco e brilhante, e Arya ouviu as moças soltando risadinhas de admiração umas com as outras. Devia ter deixado que o fogo ficasse com eles, Foi o que Gendry disse para fazer, devia ter dado ouvidos. Se não lhes tivesse atirado aquele machado, estariam todos mortos. Por um momento, ficou com medo, mas eles passaram por ela sem sinal de interesse. Só Jaqen H ghar relanceou o olhar em sua direção, e seus olhos passaram por cima de sua cabeça, Ele não me reconheceu, pensou, Arry era um garotinho feroz com uma espada, e eu sou apenas uma ratinha cinzenta com um balde. Passou o resto do dia esfregando degraus no interior da Torre dos Gemidos. Ao cair da noite, tinha as mãos em carne viva e sangrando, e os braços tão doloridos que tremiam enquanto levava o balde de volta ao porão. Cansada demais até para a comida, Arya pediu desculpa a Weese e enfiou-se na palha para dormir. - Weese - bocejou. - Dunsen, Chiswyck, Polliver, Raff, o Querido, Cócegas e Cão de Caça. Sor Gregor, Sor Amory, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rei JofFrey, Rainha Cersei - pensou em adicionar mais três nomes à sua prece, mas estava cansada demais para decidir naquela noite. Arya sonhava com lobos correndo, livres, pelos bosques, quando uma mão forte caiu sobre sua boca como uma pedra suave e morna, sólida e inflexível. Acordou de imediato, contorcendo-se e lutando. - Uma menina não diz nada - sussurrou uma voz, bem perto de sua orelha, - Uma menina fica com os lábios fechados, ninguém escuta, e amigos podem conversar em segredo. Sim? Com o coração aos saltos, Arya conseguiu fazer o mais minúsculo dos acenos. Jaqen Hghar afastou a mão. A cave estava negra como breu, e ela não conseguia ver seu rosto, mesmo estando a poucos centímetros dele. Mas conseguia cheirá-lo; a pele cheirava a limpa e ensaboada, e o homem tinha perfumado o cabelo. - Um menino transforma-se numa menina - murmurou. - Sempre fui uma menina. Pensava que não tinha me visto. - Um homem vê. Um homem sabe. Arya lembrou-se de que o odiava. - Assustou-me. Agora é um deles, devia tê-lo deixado arder. O que está fazendo aqui? Vá embora, senão grito por Weese. - Um homem paga as suas dívidas. Um homem tem três. - Três? - O Deus Vermelho tem as suas obrigações, querida menina, e só a morte pode pagar pela vida. Esta menina roubou três que eram dele. Esta menina deve dar três para o lugar das que roubou. Diga os nomes, e um homem fará o resto. Ele quer me ajudar, Arya compreendeu, com um afluxo de esperança que a deixou tonta. - Leve-me para Correrrio, não é longe, se roubássemos alguns cavalos podíamos... Ele pôs um dedo sobre seus lábios. - Três vidas terá de mim. Nada mais, nada menos. Três e estamos pagos. Por isso, uma menina tem de refletir - ele beijou suavemente seu cabelo. - Mas não durante muito tempo. 301 Quando Arya acendeu seu toco de vela, dele só restava um tênue odor, uma lufada de gengibre e cravo que pairava no ar. A mulher no nicho seguinte revirou-se na palha, queixando-se da luz, e Arya apagou a vela com um sopro. Quando fechou os olhos, viu rostos nadando na sua frente. Joffrey e a mãe, Ilyn Payne, Meryn Trant e Sandor Clegane... Mas estavam em Porto Real, a centenas de milhas de distância, e Sor Gregor permanecera ali apenas algumas noites antes de partir para mais pilhagem, levando consigo Raff, Chiswyck e Cócegas. Mas Sor Amory Lorch encontrava-se ali, e ela o odiava quase tanto quanto à Montanha. Não odiava? Não estava segura. E havia sempre Weese. Voltou a pensar nele na manhã seguinte, quando a falta de sono a fez bocejar. - Doninha - Weese ronronou - , da próxima vez que vir essa boca abrir, puxo sua língua para fora e a dou para minha cadela comer - ele torceu sua orelha entre os dedos para se certificar de que ela ouvia, e disse-lhe para voltar para os degraus, que os queria limpos até o terceiro patamar quando a noite caísse. Enquanto trabalhava, Arya pensou nas pessoas que queria ver mortas. Fingiu que conseguia ver seus rostos nos degraus, e esfregou com mais força para se ver livre deles. Os Stark estavam em guerra com os Lannister, e ela era uma Stark, portanto, devia matar tantos Lannister quanto pudesse, era isso que se fazia nas guerras. Mas não lhe parecia que pudesse confiar em Jaqen. Devia matá-los eu mesma. Sempre que o pai condenara um homem à morte, era ele próprio quem cumpria a sentença com Gelo, sua espada. "Se tirar a vida de um homem, deve olhá-lo nos olhos e ouvir suas últimas palavras", ouvira-o dizer uma vez a Robb e a Jon. No dia seguinte e no outro evitou Jaqen Hghar. Não era difícil. Era muito pequena e Harrenhal muito grande, cheio de lugares onde um rato podia se esconder. E então Sor Gregor voltou, mais cedo do que o esperado, trazendo dessa vez um rebanho de cabras no lugar de prisioneiros. Arya ouviu dizer que havia perdido quatro homens num dos ataques noturnos de Lorde Beric, mas aqueles que Arya odiava regressaram incólumes e instalaram-se no segundo andar da Torre dos Gemidos, Weese mandou abastecê-los bem de bebida. - Têm sempre muita sede, estes aí - resmungou, - Doninha, sobe e pergunta se têm alguma roupa que precise de remendos, e eu mandarei as mulheres tratarem disso, Arya correu por seus degraus bem escovados. Ninguém prestou qualquer atenção nela quando entrou. Chiswyck estava sentado perto da lareira com um corno de cerveja na mão, contando uma de suas histórias engraçadas. Não se atreveu a interromper, porque não queria um lábio ensangüentado. - Foi depois do Torneio da Mão, antes de a guerra chegar - Chiswyck estava dizendo. - Seguíamos no caminho de volta para o oeste, sete, mais Sor Gregor. Raff ia comigo, e o jovem Joss Stilwood, que tinha servido de escudeiro ao sor nas liças. Bom, chegamos a um mijinho de rio, que corria cheio porque tinha chovido. Não havia maneira de atravessar, mas tinha uma cervejaria ali perto, portanto, nem tudo estava perdido. Sor empurrou o cervejeiro e lhe disse para manter nossos cornos cheios até que as águas baixassem. Deviam ter visto os olhos de porco do homem brilhando ao ver a prata. Então veio nos trazer cerveja, ele e a filha, e era um negócio ralo e aguado, nada mais que mijo marrom, que não me deixou feliz, e ao sor também não. E o cervejeiro o tempo todo dizendo como estava contente por nos ter ali, que a freguesia andava fraca por causa das chuvas. O babaca não fechava a matraca, mesmo com o sor não dizendo uma palavra, pensando no Cavaleiro dos Maricas e naquele truque de velhaco que tinha usado. Dava pra ver como a boca dele se apertava, e então eu e os outros rapazes bem sabíamos que não era boa idéia dirigir-lhe nem que fosse um guincho, mas aquele cervejeiro tinha que falar, e até 302 perguntou como o sor se saíra na justa. O sor só lhe deu aquele olhar - Chiswyck soltou um cacarejo, emborcou a cerveja e limpou a espuma com as costas da mão. - Entretanto, a filha dele andava de um lado para o outro servindo e indo buscar mais cerveja, uma coisinha gorda, com dezoito anos, por aí... - O mais certo é treze - disse Raff, o Querido, com voz arrastada. - Bem, seja como for, ela não era grande coisa de se ver, mas Eggon tinha bebido e ficou pegando nela, e pode ser que eu também tenha lhe dado umas pegadas, e Raff disse ao jovem Stilwood que devia arrastá-la lá pra cima e virar um homem, dando coragem ao rapaz. Por fim, Josse meteu a mão debaixo da saia, e ela guinchou, deixou cair o jarro e fugiu pra cozinha. Bom, devia ter ficado por ali, mas, o que fez o velho idiota? Foi até o sor e lhe pediu para nos obrigar a deixar a moça em paz, porque era um cavaleiro ungido, e isso tudo, Sor Gregor não tava prestando atenção à nossa zoeira, mas, então, olhou, cês sabem como ele faz, e ordenou que a moça fosse trazida à sua presença. E o velho teve de arrastá-la da cozinha, e não pôde se queixar de ninguém a não ser dele mesmo. O sor olhou-a de cima a baixo e disse: "Então é esta a puta com que está tão preocupado", e aquele velho pateta respondeu: "A minha Layna não é puta, sor", bem na cara de Gregor. O sor nem pestanejou, só disse: "Agora é". Atirou ao velho outra prata, arrancou o vestido da mulher e a comeu ali mesmo, na mesa, na frente do pai, com ela saltando e se remexendo como um coelho e fazendo barulho. A expressão na cara do velho,., ri tanto, que saiu cerveja pelo meu nariz. Então, um rapaz ouviu o barulho, o filho, acho eu, saiu correndo da cave, e o Raff teve de espetar uma adaga na sua barriga. Aí o sor já tinha acabado, e voltou pra bebida, e todos tivemos a nossa vez. O Tobbot, sabem como ele é, virou a moça de barriga para baixo e entrou por trás. Quando chegou a minha vez, a menina já tinha parado de lutar, quem sabe tinha achado que, afinal, gostava, ainda que, pra dizer a verdade, eu não tivesse me importado se se remexesse um pouco. Agora vem a melhor parte... quando tudo chegou ao fim, o sor disse ao velho que queria o troco. A moça não valia uma moeda de prata, ele disse... E não é que o velho foi buscar um punhado de cobres, pedindo perdão ao sor e agradecendo pela preferencial Todos os homens estouraram em gargalhadas, nenhum tão alto quanto o próprio Chiswyck, que ria tanto de sua história que deixou escorrer ranho de seu nariz para a áspera barba grisalha. Arya ficou nas sombras da escada observando-o. Deslizou de volta para o porão sem proferir uma palavra. Quando Weese descobriu que não tinha perguntado nada sobre a roupa, puxou seus calções para baixo e bateu nela com um pau até que sangue escorresse por suas coxas, mas Arya fechou os olhos e pensou em todos os ditados que Syrio lhe ensinara, e, assim, não sentiu o corretivo, Duas noites mais tarde, ele a mandou até o Salão das Casernas para servir a mesa. Transportava um jarro de vinho e servia-o, quando vislumbrou Jaqen Hghar à mesa, do outro lado da fila onde estava. Mordendo um lábio, Arya olhou em volta com cautela, a fim de se certificar de que Weese não estava por perto. O medo corta mais profundamente do que as espadas, disse a si mesma. Deu um passo, e outro, e a cada um sentia-se menos como um rato. Abriu caminho até o banco, enchendo taças de vinho. Rorge estava sentado à direita de Jaqen, completamente bêbado, mas não reparou nela. Arya inclinou-se para perto e sussurrou "Chiswyck" bem na orelha de Jaqen. O lorathiano não deu qualquer sinal de ter ouvido. Quando o jarro ficou vazio, Arya correu para as caves a fim de enchê-lo de novo com vinho tirado do barril, e voltou depressa ao serviço. Ninguém tinha morrido de sede enquanto estivera fora do salão, e nem sequer notado sua breve ausência. 303 Nada aconteceu no dia seguinte, nem no outro, mas no terceiro Arya foi às cozinhas com Weese buscar o jantar. - Um dos homens da Montanha caiu de um andaime ontem à noite e partiu seu pescoço de imbecil - ouviu Weese dizer a uma cozinheira. - Bêbado? - a mulher perguntou. - Não mais do que de costume. Há quem diga que foi o fantasma de Harren que o atirou de lá de cima - e bufou para mostrar o que ele pensava de tais idéias. Não foi Harren, Arya quis dizer, fui eu. Matara Chiswyck com um sussurro, e mataria mais dois antes de terminar. Sou o fantasma de Harrenhal, pensou. E, naquela noite, havia um nome a menos para odiar. 304 Catelyn Olocal de reunião era uma extensão coberta de relva e semeada de cogumelos cinza-claros e de tocos recentes de árvores abatidas. - Somos os primeiros a chegar, senhora - disse Hallis Mollen quando refrearam os cavalos por entre os tocos, sós entre os dois exércitos. A bandeira do lobo gigante da Casa Stark ondulava e batia no topo da lança que ele transportava. Dali, Catelyn não via o mar, mas era capaz de sentir sua proximidade. O cheiro de sal era forte no vento que soprava do leste. Os pelotões de abastecimento de Stannis Baratheon tinham derrubado as árvores para as suas torres de cerco e catapultas. Catelyn perguntou a si mesma quanto tempo o bosque teria estado ali, e se Ned teria descansado naquele lugar quando levara sua tropa para o sul, a fim de quebrar o último cerco a Ponta Tempestade. Conquistara uma grande vitória naquele dia, maior ainda por não ter havido derramamento de sangue. Que os deuses permitam que eu faça o mesmo, Catelyn rezou. Seus próprios vassalos julgavam-na louca por ter vindo. - Esta luta não é nossa, senhora - tinha dito Sor Wendel Manderly. - Eu sei que o rei não desejaria que a mãe se pusesse em risco. - Estamos todos em risco - ela lhe respondeu, talvez com rispidez em excesso. - Acredita que desejo estar aqui, sor? - meu lugar é em Correrrio, com meu pai moribundo, e em Winterfell, com meus filhos. - Robb enviou-me ao sul, a fim de falar por ele, e será isso que farei - Catelyn sabia que não seria coisa fácil forjar uma aliança entre aqueles irmãos, mas, pelo bem do reino, era preciso tentar. Atrás de campos encharcados pela chuva e de elevações pedregosas, conseguia-se ver o grande castelo de Ponta Tempestade erguendo-se para o céu, com as costas voltadas para o mar invisível.
Sob aquela massa de pedra cinza-clara, o exército sitiante de Stannis Baratheon parecia tão pequeno e insignificante como ratos com bandeiras. As canções diziam que o castelo de Ponta Tempestade tinha sido erguido nos tempos antigos por Durran, o primeiro Rei da Tempestade, que conquistara o amor da bela Elenei, filha do deus do mar e da deusa do vento. Na noite de seu casamento, Elenei entregara a virgindade a um amor mortal, e assim condenara-se a uma morte de mortal, e os desgostosos pais tinham libertado sua ira e mandado os ventos e as águas para demolir a fortaleza de Durran. Os amigos, irmãos e convidados do casamento foram esmagados sob as muralhas que desmoronavam ou atirados ao mar, mas Elenei abrigou Durran em seus braços, ele não se feriu, e quando por fim a alvorada chegou, ele declarou guerra aos deuses e jurou reconstruir Ponta Tempestade. E construiu mais cinco castelos, cada um maior e mais forte que o anterior, só para vê-los esmagados quando os ventos de temporal subiam, uivando, a Baía dos Naufrágios, conduzindo à sua frente grandes muralhas de água. Seus senhores suplicaram-lhe que construísse no interior; 305 os sacerdotes disseram-lhe que tinha de aplacar os deuses devolvendo Elenei ao mar; até o povo lhe pediu para ceder. Durran não quis escutá-los. E ergueu um sétimo castelo, o mais maciço de todos, Uns diziam que os filhos da floresta o ajudaram a construí-lo, dando forma às pedras com magia; outros afirmavam que um garotinho lhe tinha dito o que fazer, um garoto que cresceria para se tornar Bran, o Construtor. Independentemente de como a história era contada, o fim era igual. Embora os irados deuses atirassem tempestade atrás de tempestade contra o sétimo castelo, ele se manteve firme e desafiador, e Durran Desgosto-Divino e a bela Elenei habitaram-no juntos até o fim de seus dias. Mas os deuses não esquecem, e os ventos de tormenta ainda atravessam em fúria o mar estreito. Mas Ponta Tempestade resistiu, durante séculos e dezenas de séculos, um castelo como nenhum outro. Sua grande muralha exterior possuía trinta metros contínuos de altura, sem seteiras ou poternas, arredondada por todo o lado, em curva, lisa, com as pedras ajustadas com tanta destreza que não havia em parte alguma uma fenda, um ângulo ou uma falha por onde o vento pudesse entrar. Dizia-se que a muralha tinha doze metros de espessura no ponto mais estreito, e quase vinte e cinco no lado virado para o mar, uma dupla fileira de pedras com um núcleo interior de areia e cascalho. Dentro desse poderoso baluarte, as cozinhas, estábulos e pátios estavam abrigados do vento e das ondas. Havia apenas uma torre, colossal e redonda, sem janelas do lado virado para o mar, tão grande que servia de celeiro, caserna, salão de festas e habitação senhorial, tudo ao mesmo tempo, coroada por maciças ameias que a faziam parecer-se de longe com um punho com espigões erguido no topo de um braço atirado para cima. - Senhora - Hal Mollen chamou Catelyn. Dois cavaleiros tinham emergido do pequeno acampamento ordenado sob o castelo e dirigiam-se para eles em passo lento. - Deve ser o Rei Stannis. - Sem dúvida - Catelyn os observou avançando. Deve ser Stannis, mas aquele não é o estandarte dos Baratheon. Era de um amarelo-vivo, não do rico tom de ouro dos estandartes de Renly, e o símbolo que ostentava era vermelho, embora não conseguisse distinguir sua forma. Renly seria o último a chegar. Tinha lhe dito isso quando ela partiu. Não pretendia montar a cavalo antes de ver o irmão bem adiantado no caminho. O primeiro a chegar teria de esperar pelo outro, e Renly não esperaria. E um tipo de jogo que os reis jogam, disse a si mesma. Bem, ela não era um rei, portanto, não necessitava jogar. Catelyn tinha prática em esperar. Enquanto Stannis ia se aproximando, ela viu que ele usava uma coroa esculpida em forma de chamas. Seu cinto era guarnecido de granadas e topázio amarelo, e um grande rubi cortado em forma de quadrado estava incrustado no cabo da espada que usava. Além disso, seu vestuário era simples: justilho de couro com tachas sobre um gibão acolchoado, botas gastas, calções de tecido grosseiro marrom. O símbolo em sua bandeira amarela, como o sol mostrava, era um coração vermelho rodeado por chamas laranjas. O veado coroado estava lá, sim... encolhido e fechado no interior do coração, Ainda mais curiosa era sua porta-estandartes... uma mulher, toda vestida de vermelho, com o rosto escondido pelo grande capuz do manto escarlate. Uma sacerdotisa vermelha, pensou Catelyn, curiosa. A seita era numerosa e poderosa nas Cidades Livres e no longínquo leste, mas tinha poucos adeptos nos Sete Reinos. - Senhora Stark - disse Stannis Baratheon com uma cortesia gelada, quando refreou o cavalo. Inclinou a cabeça, mais calva do que Catelyn se recordava. - Lorde Stannis - ela respondeu. Sob a barba bem aparada, seu pesado maxilar apertou-se com força, mas não a incomodou com títulos. Por esse fato, Catelyn sentiu-se devidamente grata. 306 - Não esperava encontrá-la em Ponta Tempestade,
- Não esperava estar aqui. Seus olhos cavos olharam-na com desconforto. Aquele não era um homem dado a cortesias Êceis. - Lamento a morte de seu senhor - disse - , muito embora Eddard Stark não fosse meu amigo. - Nunca foi seu inimigo, senhor. Quando os senhores Tyrell e Redwyne o tiveram prisioneiro naquele castelo, faminto, foi Eddard Stark quem quebrou o cerco. - Às ordens de meu irmão, não por gostar de mim - Stannis respondeu. - Lorde Eddard cumpriu seu dever, não nego. Terei alguma vez feito menos do que isso? Eu é que devia ter sido Mão de Robert. - Isso foi vontade de seu irmão. Ned nunca quis o cargo. - Mas o aceitou. Aquilo que devia ter sido meu. Mesmo assim, dou-lhe minha palavra, terá justiça por seu assassinato. Como adoram prometer cabeças, esses homens que querem ser reis. - Seu irmão prometeu-me o mesmo. Mas, a bem da verdade, preferia ter minhas filhas de volta, e deixar a justiça para os deuses. Cersei ainda detém minha Sansa, e de Arya não há notícias desde o dia da morte de Robert. - Se suas filhas forem encontradas quando eu tomar a cidade, serão enviadas - vivas ou mortas, era o que vinha implícito naquele tom de voz. - E quando será isso, Lorde Stannis? Porto Real fica perto de sua Pedra do Dragão, mas, em vez disso, encontro-o aqui. - E franca, Senhora Stark. Muito bem, responderei com franqueza. Para tomar a cidade, necessito das forças desses senhores do sul que vejo no campo. E meu irmão que os possui. Tenho, portanto, de tirá-los dele. - Os homens depositam sua lealdade onde desejam, senhor. Esses senhores juraram fidelidade a Robert e à Casa Baratheon, Se o senhor e seu irmão pusessem de lado sua querela... - Não tenho qualquer querela com Renly, se ele se mostrar respeitador. Sou seu irmão mais velho, e seu rei. Desejo apenas o que é meu por direito. Renly deve-me lealdade e obediência, e pretendo conquistá-las. Dele e desses outros senhores - Strannis estudou o rosto de Catelyn. - E que causa a traz até este campo, senhora? A Casa Stark aliou-se ao meu irmão, é isso? Este nunca se vergará, pensou Catelyn, mas tinha de tentar mesmo assim, Havia muita coisa em jogo, - Meu filho reina como Rei no Norte, pela vontade de nossos senhores e do povo. Não dobra o joelho perante nenhum homem, mas estende a mão em amizade a todos. - Os reis não têm amigos - Stannis disse bruscamente só súditos e inimigos. - E irmãos - gritou uma voz alegre atrás de Catelyn. Ela relanceou por cima do ombro e viu o palafrém de Lorde Renly escolhendo caminho por entre os tocos. O Baratheon mais novo estava magnífico em seu gibão de veludo verde e manto de cetim forrado de arminho. A coroa de rosas douradas cingia suas têmporas, com a cabeça de veado em jade erguendo-se sobre a testa e o longo cabelo negro derramando-se por baixo. Pedaços irregulares de diamante negro estavam incrustados em seu cinto, e uma corrente de ouro e esmeraldas enrolava-se em torno de seu pescoço, Renly também havia escolhido uma mulher para transportar seu estandarte, embora Brienne escondesse o rosto e as formas por trás de uma armadura que não mostrava qualquer vislumbre 307 de seu sexo. No topo da lança com três metros e meio, o veado coroado empinava-se, negro sobre ouro, quando o vento vindo do mar enrugava o tecido, A saudação do irmão foi seca. - Lorde Renly. - Rei Renly. É mesmo você, Stannis? Stannis franziu a testa. - Quem mais haveria de ser? Renly encolheu descontraidamente os ombros. - Quando vi esse estandarte, não consegui ter certeza. De quem é a bandeira que usa? - Minha. A sacerdotisa vestida de vermelho interveio. - O rei escolheu para seu símbolo o coração em chamas do Senhor da Luz. Renly pareceu se divertir com aquilo, - Melhor assim. Se usássemos ambos o mesmo estandarte, a batalha seria terrivelmente confusa. Catelyn interveio: - Esperemos que não haja batalha. Nós três partilhamos um inimigo comum que gostaria de destruir a todos. Stannis a estudou, sem sorrir. - O Trono de Ferro é legitimamente meu. Todos os que negam isso são meus inimigos. - É o reino inteiro que nega isso, irmão - Renly rebateu. - Velhos negam-no com os estertores da morte, e crianças por nascer negam-no nos ventres das mães. Negam-no em Dorne e negam-no na Muralha. Ninguém o quer como rei. Lamento. Stannis cerrou o maxilar com uma expressão tensa no rosto. -Jurei que nunca lidaria com você enquanto usasse sua coroa de traidor, Gostaria de ter mantido essa promessa. - Isso é uma loucura - Catelyn se interpôs num tom áspero, - Lorde Tywin espera em Harrenhal com vinte mil espadas. O restante do exército do Regicida reagrupou-se no Dente Dourado, outra tropa Lannister reúne-se à sombra de Rochedo Casterly, e Cersei e seu filho defendem Porto Real e o seu precioso Trono de Ferro. Cada um de vocês se autodenomina rei, mas o reino sangra, e ninguém levanta uma espada para defendê-lo, a não ser meu filho. Renly encolheu os ombros: - Seu filho ganhou algumas batalhas. Eu vencerei a guerra. Os Lannister podem esperar. - Se tem propostas a fazer, faça-as - Stannis os desafiou bruscamente - , senão vou embora. - Muito bem. Proponho que desmonte, dobre o joelho e me jure fidelidade. Stannis abafou a ira. - Não terá isso jamais. - Serviu a Robert, por que não a mim? - Robert era meu irmão mais velho. Você é o mais novo. - Mais novo, mais ousado, e muito mais agradável... - ... E também um ladrão e usurpador. Renly encolheu os ombros: - Os Targaryen chamavam Robert de usurpador. Ele pareceu ser capaz de suportar a vergonha, Eu também serei. Assim não será possível, Catelyn pensou. 308 - Escutem a si mesmos! Se fossem meus filhos, bateria suas cabeças uma na outra e trancaria os dois no quarto até que se lembrassem de que são irmãos. Stannis franziu-lhe o cenho: - Mostra presunção demais, Senhora Stark. Eu sou o rei legítimo, e seu filho não é menos traidor do que meu irmão aqui. Seu dia também chegará. A ameaça clara alimentou sua fúria: - Está muito à vontade para chamar os outros de traidor e usurpador, senhor, mas em que é diferente? Diz que só o senhor é o rei legítimo, mas parece-me que Robert teve dois filhos. Por todas as leis dos Sete Reinos, Príncipe Joffrey é seu legítimo herdeiro, e o dele é Tommen... e nós somos todos traidores, por melhores que sejam nossos motivos. Renly soltou uma gargalhada: - Tem de perdoar a Senhora Catelyn, Stannis. Ela vem de Correrrio, uma longa viagem a cavalo. Temo que nunca tenha visto sua cartinha. - Joffrey não é da semente do meu irmão - Stannis disse sem cerimônia, - Nem Tommen. São bastardos. A menina também. Todos abominações nascidas do incesto. Seria possível que Cersei fosse louca a esse ponto? Catelyn estava sem fala. - Não é uma bela história, senhora? - Renly perguntou. - Estava acampado em Monte Chifre quando Lorde Tarly recebeu sua carta, e devo dizer que me deixou sem fôlego - sorriu para o irmão. - Nunca suspeitei que fosse tão esperto, Stannis. Se ao menos fosse verdade, seria realmente herdeiro de Robert. - Se ao menos fosse verdade? Está me chamando de mentiroso? - Pode provar alguma palavra dessa fábula? Stannis rangeu os dentes. Robert nunca poderia ter sabido, Catelyn pensou, caso contrário Cersei teria perdido a cabeça no mesmo instante, - Lorde Stannis - ela perguntou - , se sabia que a rainha era culpada de crimes tão monstruosos, por que se manteve em silêncio? - Não me mantive em silêncio. Levei minhas suspeitas a Jon Arryn. - Em vez de levá-las a seu irmão? - A consideração que meu irmão tinha por mim nunca passou de dever - Stannis respondeu. - Vindas de mim, tais acusações pareceriam impertinentes e interesseiras, uma maneira de me colocar em primeiro lugar na linha de sucessão. Achei que Robert estaria mais disposto a ouvir se as acusações viessem de Lorde Arryn, de quem ele gostava. - Ah - Renly interveio. - Então, temos a palavra de um morto. - Crê que ele morreu por acaso, seu idiota de vista curta? Cersei mandou envenená-lo, por temer que a desmascarasse. Lorde Jon andava reunindo certas provas... - ... Que sem dúvida morreram com ele. Que inconveniência. Catelyn recordava, encaixando as peças umas nas outras. - Minha irmã Lysa acusou a rainha de matar seu marido numa carta que me enviou - admitiu. - Mais tarde, no Ninho da Águia, atribuiu o homicídio a Tyrion, o irmão da rainha. Stannis fungou: - Se puser o pé num ninho de cobras, será que interessa qual delas morde primeiro? - Toda essa conversa sobre cobras e incesto é divertida, mas nada muda. Pode bem ter a melhor pretensão, Stannis, mas ainda tenho o maior exército - a mão de Renly deslizou para dentro do seu manto. Stannis viu, e pegou de imediato no cabo da espada, mas, antes que conseguisse 309 mostrar o aço, o irmão apresentou-lhe... um pêssego. - Quer um, irmão? - ele sorriu. - De Jardim de Cima. Nunca provou nada tão doce, garanto - deu uma mordida, fazendo escorrer sumo pelo canto da boca. - Não vim até aqui para comer fruta - Stannis estava furioso. - Senhores! - Catelyn se interpôs novamente. - Devíamos estar debatendo os termos de uma aliança, não trocando insultos. - Um homem nunca devia recusar saborear um pêssego - Renly disse, jogando o caroço fora. - Pode não voltar a ter essa possibilidade. A vida é curta, Stannis. Lembre-se do que os Stark dizem. O Inverno está chegando - limpou a boca com as costas da mão. - Também não vim até aqui para ser ameaçado, - E não foi - Renly rebateu. - Quando eu fizer ameaças, saberá. Na verdade, nunca gostei de você, Stannis, mas é do meu sangue, e não tenho nenhum desejo de matá-lo. Portanto, se é o castelo de Ponta Tempestade que deseja, fique com ele... como um presente de irmão. Tal como Robert me deu um dia, dou-o a você. - Não é seu para que me dê. É meu por direito. Suspirando, Renly virou-se na sela: - Que vou fazer com este meu irmão, Brienne? Recusa o pêssego, recusa o castelo, até evitou meu casamento... - Ambos sabemos que seu casamento foi uma farsa. Há um ano conspirava para transformar a moça numa das rameiras de Robert. - Há um ano conspirava para fazer da moça a rainha de Robert - Renly o corrigiu. - Mas, que importa? O javali ficou com Robert e eu fiquei com Margaery, Ficará feliz por saber que chegou às minhas mãos donzela. - Na sua cama é provável que morra donzela. - Oh, espero obter dela um filho antes do fim do ano. Diga-me, quantos filhos você tem, Stannis? Ah, sim... nenhum - Renly sorriu de forma inocente. - Quanto à sua filha, eu compreendo. Se minha esposa se parecesse com a sua, também mandaria meu bobo satisfazê-la. - Bastai - Stannis rugiu. - Não rirá na minha cara, está me ouvindo? Não rirá! - arrancou a espada de dentro da bainha. O aço cintilou com um estranho brilho à luz pálida do sol, ora vermelho, ora amarelo, ora uma brasa branca. O ar ao seu redor parecia estremecer, como que por causa do calor. O cavalo de Catelyn relinchou e recuou um passo, mas Brienne interpôs-se entre os irmãos, de espada na mão, - Guarde seu aço! - ela gritou para Stannis. Cersei Lannister está rindo até ficar sem fôlego, pensou Catelyn, sentindo-se fatigada. Stannis apontou a espada cintilante para o irmão. - Não sou desprovido de misericórdia - trovejou o homem que era notório por ser desprovido de misericórdia. - E não quero macular a Luminífera com o sangue de um irmão. Em nome da mãe que nos deu à luz, darei esta noite para você repensar sua loucura, Renly. Arreie suas bandeiras e venha me encontrar antes da alvorada, e lhe darei Ponta Tempestade e seu antigo lugar no conselho, e até o nomearei meu herdeiro até que eu gere um filho. De outra forma, vou destruí-lo. Renly riu. - Stannis, esta é uma espada muito bonita, concordo, mas acho que o brilho que ela emite estragou seus olhos. Olhe os campos, irmão. Vê todos aqueles estandartes? 310 - Acredita que alguns pedaços de pano farão de você um rei? - As espadas dos Tyrell o farão... Rowan, Tarly e Caron farão de mim rei, com machados, macas e martelos de guerra. Flechas Tarth e lanças Penrose, Fossoway, Cuy, Mullendore, Estermont, Selmy, Hightower. Oakheart, Crane, Caswell, Blackbar, Morrigen, Beesbury, Shermer, Dunn, Footly... Até a Casa Florent, tios e primos de sua esposa. São eles que me farão rei. Toda a cavalaria do sul me acompanha, e esta é a menor parte do meu poder. Minha infantaria vem atrás, cem mil espadas, lanças e piques. E você vai me destruir? Com o que, pergunto? Aquela miserável ralé que ali vejo amontoada sob as muralhas do castelo? Estimo-os em cinco mil, e estou sendo generoso, senhores do bacalhau, cavaleiros da cebola e mercenários. Metade deles é capaz de passar para o meu lado antes que a batalha se inicie. Meus batedores dizem-me que tem menos de quatrocentos homens a cavalo... cavaleiros livres vestidos de couro rervido que não agüentarão um instante contra lanceiros com armadura. Não me interessa o quão experiente você se ache como guerreiro, Stannis, mas aquela sua tropa não sobreviverá à primeira investida da minha vanguarda, - Veremos, irmão - uma pequena luz pareceu ter saído do mundo quando Stannis voltou a enfiar a espada na bainha. - Quando chegar a alvorada, veremos. - Espero que seu novo deus seja misericordioso, irmão. Stannis respondeu com uma fungadela e afastou-se a galope, desdenhoso. A sacerdotisa vermelha ficou um momento para trás. - Olhe seus pecados, Lorde Renly - disse, enquanto virava o cavalo. Catelyn e Lorde Renly voltaram juntos ao acampamento, onde milhares de seus homens e o punhado de homens dela esperavam pelo retorno de ambos. - Aquilo foi divertido, embora não muito útil - ele comentou. - Gostaria de saber onde posso encontrar uma espada como aquela. Bem, sem dúvida Loras a dará a mim após a batalha. Desgosta-me que tenha de acabar assim. - Tem um modo alegre de mostrar desgosto - disse Catelyn, cuja aflição não era fingida. - Tenho? - Renly encolheu os ombros. - Que seja. Stannis nunca foi o mais querido dos irmãos, confesso. Acha que aquela sua história é verdadeira? Se Joffrey for descendente do Regicida... - ... Seu irmão é o legítimo herdeiro. - Enquanto viver - Renly admitiu. - Embora esta seja uma lei tola, não concorda? Por que o filho mais velho, e não o mais adequado? A coroa condiz comigo, como nunca condisse com Robert e não condiz com Stannis. Tenho o que é necessário para ser um grande rei, forte, mas generoso, inteligente, justo, diligente, leal para com os meus amigos, e terrível para os inimigos, mas capaz de perdoar, paciente... - ... Humilde? - Catelyn sugeriu. Renly soltou uma gargalhada: - Tem de permitir a um rei alguns defeitos, senhora. Catelyn sentia-se muito cansada. Tudo fora em vão. Os irmãos Baratheon iriam afogar-se um ao outro em sangue, enquanto seu filho teria de enfrentar os Lannister sozinho, e nada do que pudesse dizer ou fazer mudaria alguma coisa. Já é mais que hora de voltar a Correrrio para fechar os olhos do meu pai, pensou. Pelo menos isso posso fazer. Posso ser uma enviada fraca, mas sou hoa carpideira. Que os deuses me salvem. O acampamento de Renly situava-se no topo de uma pequena cumeada pedregosa que corria do norte para o sul, Era muito mais ordenado do que o grande acampamento junto ao Vago, 311 embora tivesse apenas um quarto do tamanho. Quando soube do assalto do irmão a Ponta Tempestade, Renly dividiu suas forças de forma muito semelhante ao que Robb fizera nas Gêmeas. Deixou a grande massa de infantaria para trás em Ponteamarga, com a jovem rainha, e carroças, carros, animais de carga e toda a pesada maquinaria de cerco, enquanto ele mesmo liderava os cavaleiros e cavaleiros livres numa incursão rápida para o Leste. Como era parecido com o irmão Robert, mesmo nisso... Só que Robert sempre tivera Eddard Stark para temperar sua ousadia com cautela. Ned teria certamente convencido Robert a levar todas as suas forças para rodear Stannis e sitiar seu cerco. Renly negara a si próprio essa possibilidade com sua corrida precipitada para lutar com o irmão. Tinha estendido demais suas linhas de abastecimento, deixou os alimentos para homens e animais a dias de viagem, com todas as suas carroças, mulas e seus bois. Tinha de dar batalha em breve, ou passaria fome. Catelyn mandou Hal Mollen cuidar dos cavalos enquanto acompanhava Renly de volta ao pavilhão real no coração do acampamento. Dentro das paredes de seda verde, os capitães e senhores vassalos do jovem Baratheon esperavam para ouvir notícias da conferência. - Meu irmão não mudou - disse-lhes seu jovem rei, enquanto Brienne desprendia seu manto e tirava sua coroa de ouro e jade da cabeça. - Castelos e honrarias não o apaziguarão, precisa derramar sangue. Bem, tenho a intenção de lhe conceder o desejo. - Vossa Graça, não vejo aqui necessidade de batalha - interveio Lorde Mathis Rowan. - O castelo tem uma guarnição forte e está bem aprovisionado, Sor Cortnay Penrose é um comandante experiente, e ainda não foi construída uma máquina de guerra que consiga abrir uma brecha nas muralhas de Ponta Tempestade. Que Lorde Stannis faça seu cerco. Não encontrará nele alegrias, e enquanto fica aqui, no frio, com fome e sem ganhar nada, nós tomaremos Porto Real. - E ter homens dizendo que temi enfrentar Stannis? - Só tolos dirão tal coisa - Lorde Mathis argumentou. Renly olhou para os outros. - O que vocês dizem? - Digo que Stannis é um perigo para o senhor - declarou Lorde Randyll Tarly. - Deixe-o sem derramar sangue, e só ficará mais forte, enquanto seu poder é diminuído pela batalha. Os Lannister não serão vencidos em um dia. Quando terminar com eles, Lorde Stannis poderá ser tão forte quanto você... ou mais. Outros concordaram em coro. O rei pareceu satisfeito. - Então lutaremos. Falhei a Robb, tal como falhei a Ned, pensou Catelyn. - Senhor - ela anunciou. - Se está decidido a dar batalha, já não tenho motivo para ficar aqui. Peço-lhe licença para regressar a Correrrio. - Não a tem - Renly sentou-se numa cadeira de campanha. Catelyn ficou tensa. - Tive esperança de ajudá-lo a fazer a paz, senhor. Não o ajudarei a fazer a guerra. Renly encolheu os ombros. - Atrevo-me a dizer que triunfaremos sem os seus vinte e cinco homens, senhora. Não pretendo que participe na batalha, apenas que a observe. - Estive no Bosque dos Murmúrios, senhor, Vi matança suficiente. Vim até aqui como embaixadora... - E como embaixadora partirá, mas mais sábia do que quando chegou. Verá com seus próprios olhos o que está reservado aos rebeldes, para que seu filho possa escutá-lo de seus lábios. 312 Nada tema, manteremos a senhora a salvo - Renly virou-lhe as costas para dar suas ordens. - Lorde Mathis, você liderará o centro da batalha principal. Bryce, você ficará com o flanco escuerdo. O direito é meu. Lorde Estermont, você comandará a reserva. - Não falharei ao senhor, Vossa Graça - este último respondeu. Lorde Mathis Rowan interveio: - Quem comandará a vanguarda? - Vossa Graça - Sor Jon Fossoway se fez ouvir. - Suplico essa honra. - Suplique o que quiser - Sor Guyard, o Verde interveio. - O correto é que seja um dos sete a dar o primeiro golpe. - E preciso mais do que um manto bonito para investir sobre uma muralha de escudos Randyll Tarly bradou. - Quando eu já comandava a vanguarda de Mace Tyrell, você ainda mamava na teta da mãe, Guyard. Um clamor encheu o pavilhão quando outros homens avançaram sonoramente com suas reivindicações. Os cavaleiros do Verão, pensou Catelyn. Renly ergueu uma mão: - Basta, senhores. Se eu tivesse uma dúzia de vanguardas, todos deveriam ter uma, mas a maior glória pertence por direito ao maior dos cavaleiros. Sor Loras dará o primeiro golpe. - Com um coração feliz, Vossa Graça - o Cavaleiro das Flores ajoelhou-se perante o rei. - Dê-me a sua bênção, e um cavaleiro para cavalgar a meu lado com o seu estandarte. Deixe que o veado e a rosa partam para a batalha lado a lado. Renly olhou em volta. - Brienne. - Vossa Graça? - ela ainda usava a armadura de aço azul, embora tivesse tirado o elmo. A tenda cheia de gente estava quente, e o suor colava seus cabelos amarelos e sem vigor no rosto largo e simples. - Meu lugar é ao seu lado. Sou sua protetora juramentada... - Uma entre sete - lembrou-lhe o rei. - Nada tema, quatro de seus companheiros estarão comigo durante a luta. Brienne caiu de joelhos. - Se tenho de me separar de Vossa Graça, conceda-me a honra de armá-lo para a batalha. Catelyn ouviu alguém soltar um riso abafado atrás de si. Ela o ama, coitada, pensou com tristeza. Quer se fazer de escudeiro só para poder tocá-lo, e não se importa que os outros a considerem uma tola. - Concedido - Renly respondeu. - Deixem-me agora, todos vocês. Até os reis devem descansar antes de uma batalha. - Senhor - Catelyn se adiantou. - Há um pequeno septo na última aldeia por onde passamos. Se não me permite que parta para Correrrio, dê-me licença para ir até lá e rezar.
- Como quiser. Sor Robar, dê à Senhora Catelyn uma escolta segura até esse septo... Mas certifique-se de que ela volte para junto de nós de madrugada. - Talvez fizesse bem em rezar também - ela acrescentou. - Por uma vitória? - Por sabedoria. Renly soltou uma gargalhada: - Loras, fique e ajude-me a rezar. A última vez foi há tanto tempo que me esqueci de como se faz. Quanto ao resto de vocês, quero todos os homens em seus lugares à primeira luz da aurora, armados, com as armaduras postas e montados. Daremos a Stannis uma alvorada de que não se esquecerá tão cedo. 313 Caía o ocaso quando Catelyn saiu do pavilhão. Sor Robar Royce pôs-se ao seu lado. Conhecia-o um pouco... Um dos filhos de Bronze Yohn, bem-apessoado à sua maneira dura, um guerreiro de torneios de certo renome. Renly presenteara-o com um manto de arco-íris e uma armadura vermelho-sangue, e nomeara-o um de seus sete. - Está muito longe do Vale, sor - disse-lhe. - E você longe de Winterfell, senhora. - Eu sei o que me trouxe aqui, mas por que você veio? Essa batalha não é mais sua do que minha. - Fiz dela minha batalha quando fiz de Renly meu rei. - Os Royce são vassalos da Casa Arryn. - O senhor meu pai deve lealdade à Senhora Lysa, e ao seu herdeiro também. Um segundo filho deve encontrar a glória onde puder - Sor Robar encolheu os ombros. - Um homem se cansa de torneios. Não podia ter mais do que vinte e um anos, pensou Catelyn, a mesma idade do seu rei... Mas o rei dela, o seu Robb, tinha mais sabedoria com quinze anos do que esse jovem conseguira arranjar, Ou pelo menos por isso ela rezava. No pequeno canto do acampamento reservado a Catelyn, Shadd cortava cenouras em rodelas e as colocava em um caldeirão, Hal Mollen jogava dados com três de seus homens de Winterfell, e Lucas Blackwood afiava o punhal. - Senhora Stark - disse Lucas quando a viu - , Mollen diz que haverá uma batalha à alvorada. - Hal tem a verdade - e também uma língua solta, ao que parece. - Lutamos ou fugimos? - Rezamos, Lucas. Rezamos. 314 Sansa Quanto mais tempo o deixar esperando, pior as coisas correrão para você - preveniu-a Sandor Clegane. Sansa tentava se apressar, mas os dedos atrapalhavam-se com os botões e os nós. Cão de Caça falava sempre rudemente, mas havia algo no modo como a olhava que a enchia de pavor. Teria JofFrey descoberto seus encontros com Sor Dontos ? Por favor, não, pensou, enquanto escovava o cabelo. Sor Dontos era sua única esperança. Tenho de ficar bonita. Joff gosta que eu seja bonita, sempre gostou de me ver com este vestido, com esta cor. Alisou o tecido. O pano ficava justo em seu peito. Quando saiu, Sansa caminhou à esquerda do Cão de Caça, longe do lado queimado de seu rosto. - Diga-me o que fiz. - Não foi você. Foi seu real irmão. - Robb é um traidor - Sansa conhecia as palavras de cor. - Não tive nenhum papel no que quer que ele tenha feito - deuses, sejam bons, não permitam que seja o Regicida. Se Robb tivesse feito mal a Jaime Lannister, isso custaria sua vida. Pensou em Sor Ilyn, e no modo como aqueles terríveis olhos claros sem piedade olhavam naquela cara doentia e marcada pelas bexigas. Cão de Caça fungou: - Treinaram-na bem, passarinho. Conduziu-a até junto da muralha interior, onde uma multidão tinha se reunido em torno dos alvos. Homens afastaram-se para deixá-los passar. Conseguia ouvir Lorde Gyles tossindo. Cavalariços indolentes olharam-na com insolência, mas Sor Horas Redwyne desviou o olhar quando ela passou, e o irmão Hobber fingiu não vê-la. Um gato amarelo morria no chão, miando que dava dó, com uma flecha de besta espetada nas costelas. Sansa contornou-o, sentindo-se agoniada. Sor Dontos aproximou-se, montado em sua vassoura como se ela fosse um cavalo; desde que estivera bêbado demais para montar o corcel de batalha no torneio, o rei havia decretado que daí em diante devia andar sempre a cavalo. - Seja corajosa - sussurrou, apertando seu braço. Joffrey estava no centro da multidão, girando a manivela de uma besta ornamentada. Sor Boros e Sor Meryn acompanhavam-no. Vê-los Foi o suficiente para dar nós em suas entranhas. - Vossa Graça - Sansa caiu de joelhos. - Ajoelhar não a salvará agora - disse o rei. - Levante-se. Está aqui para responder pelas últimas traições do seu irmão. - Vossa Graça, seja o que For que o traidor do meu irmão Fez, não participei. Sabe disso, suplico-lhe, por favor... 315
- Ponha-a em pé! Cão de Caça cumpriu a ordem, mas não sem alguma gentileza. - Sor Lancei - Joff falou em tom de ordem, - Conte-lhe esse ultraje. Sansa sempre achara Lancei Lannister agradável e bem falante, mas não havia piedade ou gentileza no olhar que lhe lançou. - Usando alguma vil bruxaria, seu irmão caiu sobre Sor Stafford Lannister com um exército de lobos a menos de três dias de viagem de Lanisporto. Milhares de bons homens foram massacrados enquanto dormiam, sem terem a chance de pegar na espada. Depois do massacre, os nortenhos banquetearam-se com a carne dos mortos. O horror enrolou mãos frias em torno da garganta de Sansa. - Não tem nada a dizer? - Joffrey perguntou. - Vossa Graça, a pobre criança está em choque - Sor Dontos murmurou. - Silêncio, bobo - Joffrey ergueu a besta e apontou-a para o rosto de Sansa. - Vocês, os Stark, são tão desnaturados quanto esses seus lobos, Não me esqueci de como seu monstro me atacou. - Esse foi o lobo de Arya - ela disse. - Minha Lady nunca lhe fez mal, mas matou-a mesmo assim. - Não, foi seu pai quem o fez. Mas eu mandei matar seu pai. Gostaria de ter feito isso eu mesmo. Ontem à noite matei um homem que era maior do que seu pai. Vieram ao portão gritar meu nome e exigir pão, como se eu fosse algum padeiro, mas dei-lhes uma lição. Atingi o mais barulhento bem na garganta. - E ele morreu? - com a feia cabeça de ferro da flecha olhando-a de frente, era difícil pensar em outra coisa a dizer, - Claro que morreu, tinha a minha flecha na garganta. Havia uma mulher atirando pedras, e também a acertei, mas só no braço - franzindo a testa, ele abaixou a besta. - Mataria você também, mas, se o fizer, minha mãe diz que matarão meu tio Jaime. Em vez disso, será punida e mandaremos contar ao seu irmão o que lhe acontecerá se não se render. Cão, bata nela. - Permita que seja eu a bater - Sor Dontos abriu caminho aos empurrões, com a armadura de lata tinindo. Estava armado com uma "maça de armas" cuja cabeça era um melão. Meu Florian. Poderia beijá-lo, mesmo com a pele manchada e as veias estouradas. Ele trotou na vassoura em volta dela, gritando: "Traidora, traidora", batendo na sua cabeça com o melão. Sansa cobriu-se com as mãos, cambaleando cada vez que o fruto a atingia, com o cabelo pegajoso desde o segundo golpe. Havia gente rindo. O melão voou em pedaços. Ria Joffrey, Sansa rezou enquanto o sumo escorria pelo seu rosto e pela parte da frente do vestido de seda azul. Ria e fique satisfeito, Joffrey nem sequer um risinho soltou, - Boros, Meryn, Sor Meryn Trant agarrou Dontos pelo braço e o atirou bruscamente para longe. O bobo de cara vermelha estatelou-se, com vassoura, melão e tudo o mais. Sor Boros pegou Sansa. - Não toque em seu rosto - Joffrey ordenou. - Gosto dela bonita, Boros atirou um punho contra a barriga de Sansa, deixando-a sem ar, Quando se dobrou, o cavaleiro agarrou-a pelo cabelo e puxou a espada, e por um hediondo instante ela teve certeza de que pretendia abrir sua garganta. Quando bateu com a parte lateral da lâmina nas suas coxas, pensou que suas pernas se quebrariam com a força do golpe. E gritou. Lágrimas cobriram seus olhos. Terminará em breve. Mas, depressa perdeu a conta dos golpes. - Basta - Sansa ouviu Cão de Caça rouquejar. 316 - Não, não basta - o rei rebateu. - Boros, tire a roupa dela. Boros enfiou uma mão carnuda na parte da frente do corpete de Sansa e puxou com força. A seda rasgou-se, desnudando-a até a cintura. Sansa cobriu os seios com as mãos. Ouvia risos abafados, distantes e cruéis.
- Bata nela até sangrar -Joífrey esbravejou. - Vamos ver se o irmão gosta... - O que significa isso? A voz do Duende estalou como um chicote, e de repente Sansa ficou livre. Tropeçou e caiu de joelhos, com os braços cruzados sobre o peito e a respiração entrecortada. - E esta a sua idéia de cavalaria, Sor Boros? - quis saber Tyrion Lannister numa voz zangada. Tinha consigo o mercenário de estimação e um dos selvagens, aquele com o olho queimado. - Que tipo de cavaleiro espanca donzelas indefesas? - O tipo de cavaleiro que serve seu rei, Duende - Sor Boros ergueu a espada, e Sor Meryn ficou ao seu lado, com a lâmina raspando na bainha enquanto dela saía. - Cuidado com isso - preveniu o mercenário do anão. - Não vão querer ficar com esses bonitos mantos brancos cheios de sangue. - Que alguém dê à menina alguma coisa para se cobrir - o Duende falou em voz alta. Sandor Clegane desprendeu seu manto e o atirou a ela. Sansa apertou-o contra o peito, com os punhos fechados com força na lã branca. A trama grosseira do pano arranhava seu peito, mas nenhum veludo jamais tinha agradado tanto ao seu tato. - Esta menina está para ser sua rainha - Tyrion disse a Joífrey. - Não tem nenhuma consideração por sua honra? - Estou punindo-a. - Por que crime? Ela não lutou a batalha do irmão. - Tem o sangue de um lobo. - E você tem a inteligência de um ganso. - Não pode falar assim comigo. O rei pode fazer o que quiser. - Aerys Targaryen fez o que quis. Sua mãe já contou o que aconteceu a ele? Sor Boros Blount pigarreou: - Ninguém ameaça o rei na presença da Guarda Real. Tyrion Lannister ergueu uma sobrancelha. - Não estou ameaçando o rei, sor, estou educando meu sobrinho. Bronn, Timett, da próxima vez que Sor Boros abrir a boca, matem-no - o anão sorriu. - Isso foi uma ameaça, sor. Vê a diferença? Sor Boros ficou de um tom vermelho-escuro: - A rainha ouvirá falar disto. - Sem dúvida que sim. E por que esperar? Joífrey, mandamos chamar sua mãe? O rei corou. - Nada a dizer, Vossa Graça? - prosseguiu o tio. - Ótimo. Aprenda a usar mais as orelhas e menos a boca, caso contrário seu reinado será menor do que eu. Brutalidade arbitrária não é maneira de conquistar o amor de seu povo... ou de sua rainha. - Minha mãe diz que o medo é melhor do que o amor - Joífrey apontou para Sansa. - Ela tem medo de mim. O Duende suspirou. - Sim, estou vendo. Uma pena que Stannis e Renly não sejam também meninas de doze anos. Bronn, Timett, tragam-na. 317 Sansa os seguius como que num sonho. Julgou que os homens do Duende a levariam de volta ao seu quarto na Fortaleza de Maegor, mas, em vez disso, conduziram-na à Torre da Mão. Não pusera os pés naquele lugar desde o dia em que o pai caíra em desgraça, e voltar a subir aqueles degraus fez com que se sentisse sem forças. Algumas criadas se encarregaram dela, proferindo palavras reconfortantes sem significado para que parasse de tremer. Uma despiu as ruínas de seu vestido e da roupa de baixo, e outra a banhou e lavou o sumo pegajoso de seu rosto e cabelo. Enquanto a esfregavam com sabão e despejavam água quente em abundância sobre sua cabeça, tudo o que Sansa conseguia ver eram os rostos no pátio. Os cavaleiros juram defender os fracos, proteger as mulheres e lutar pelo que está certo, mas nenhum deles levantou uma mão. Só Sor Dontos havia tentado ajudar, e ele já não era um cavaleiro, não mais do que o Duende ou o Cão de Caça... o Cão de Caça odiava cavaleiros... Também os odeio, pensou Sansa. Não são verdadeiros cavaleiros, nenhum deles é. Depois de ficar limpa, o rechonchudo e ruivo Meistre Frenken veio vê-la. Pediu-lhe para se deitar de barriga para baixo no colchão enquanto espalhava um bálsamo sobre os vergões vermelhos que cobriam a parte de trás de suas pernas. Depois, misturou uma porção de vinho de sonhos com um pouco de mel para que ela bebesse com mais facilidade. - Durma um pouco, filha. Quando acordar, tudo isso parecerá um sonho ruim. Não, não parecerá, seu estúpido, Sansa pensou, mas bebeu mesmo assim o vinho de sonhos e adormeceu. Estava escuro quando acordou, sem saber bem onde estava, num quarto que lhe parecia ao mesmo tempo desconhecido e estranhamente familiar. Quando se levantou, uma punhalada de dor trespassou suas pernas e fez com que se lembrasse de tudo. Lágrimas encheram seus olhos. Alguém lhe arranjara um roupão e o deixara junto da cama. Vestiu-o e abriu a porta. Lá fora estava uma mulher de rosto duro, com uma pele castanha e curtida e três colares enrolados em volta do pescoço magro. Um era de ouro, outro, de prata, e o terceiro, de orelhas humanas. - Onde pensa que vai? - perguntou a mulher, apoiando-se numa grande lança. - Ao bosque sagrado - tinha de encontrar Sor Dontos, suplicar-lhe que a levasse para casa já, antes que fosse tarde demais. - O meio-homem disse que não devia sair. Reze aqui, os deuses ouvirão. Docilmente, Sansa abaixou os olhos e retirou-se para dentro do quarto. Compreendeu subitamente por que é que aquele lugar lhe parecia tão familiar. Puseram-me no antigo quarto de Arya, de quando o pai era Mão do Rei. Todas as suas coisas desapareceram, e a mobília foi movida, mas é o mesmo... Pouco tempo depois, uma criada trouxe uma bandeja com queijo, pão, azeitonas e um jarro de água fria. - Leve tudo - Sansa ordenou, mas a moça deixou a comida sobre uma mesa. De repente, percebeu que tinha sede. Cada passo espetava facas em suas coxas, mas obrigou-se a atravessar o quarto. Bebeu duas taças de água, e estava mordiscando a azeitona quando ouviu um toque na porta. Ansiosa, virou-se e alisou as dobras do roupão. -Sim? A porta abriu-se, e Tyrion Lannister entrou: - Senhora. Espero não estar perturbando. - Sou sua prisioneira? - Minha hóspede - estava usando a corrente de seu cargo, um colar de mãos de ouro interligadas. - Pensei que podíamos conversar. 318 - Como meu senhor ordenar - Sansa descobriu que era difícil não olhá-lo fixamente; suas feições eram tão feias que lhe causavam um estranho fascínio. - A comida e os trajes são do seu agrado? Se houver algo mais que lhe fizer falta, só tem de pedir. - É muito gentil. E esta manhã... foi muito bom de sua parte me ajudar. - Tem o direito de saber por que Joífrey estava tão irado. Há seis noites, seu irmão caiu sobre meu tio Staíford, acampado com sua tropa numa aldeia chamada Cruzaboi, a menos de três dias de viagem de Rochedo Casterly. Seus nortenhos conquistaram uma vitória esmagadora. Só recebemos a notícia hoje de manhã. Robb matará todos vocês, Sansa pensou, exultante. - É... terrível, senhor. Meu irmão é um vil traidor. O anão deu um sorriso triste. - Bem, não é nenhum novato, isso ele já deixou bem claro. - Sor Lancei disse que Robb liderou um exército de lobos... O Duende soltou uma gargalhada desdenhosa. - Sor Lancei é um guerreiro de taberna que seria incapaz de distinguir um lobo de uma verruga. Seu irmão tinha consigo seu lobo gigante, mas suspeito que não passava disso. Os nortenhos penetraram no acampamento do meu tio e cortaram as amarrações de seus cavalos, e Lorde Stark enviou o lobo para o meio deles. Até os corcéis de batalha treinados para a guerra enlouqueceram. Cavaleiros foram pisoteados até a morte em seus pavilhões, e a plebe acordou aterrorizada e fugiu, sem armas para correr mais depressa. Sor Staíford foi morto enquanto perseguia um cavalo. Lorde Rickard Karstark enfiou uma lança em seu peito. Sor Rubert Brax também está morto, bem como Sor Lymund Vikary, Lorde Crakehall e Lorde Jast. Meia centena de outros foram feitos cativos, incluindo os filhos de Jast e meu primo Martyn Lannister. Os que sobreviveram andam espalhando histórias fantásticas, e juram que os antigos deuses do norte marcham com seu irmão. - Então... não houve feitiçaria? Lannister deu uma fungadela. - Feitiçaria é o molho que os tolos espalham sobre o fracasso para esconder o sabor de sua incompetência. Ao que parece, o cabeça de carneiro do meu tio nem sequer tinha se incomodado em colocar sentinelas. Sua tropa estava crua... aprendizes, mineiros, camponeses, pescadores, o lixo de Lanisporto. O único mistério está em como seu irmão chegou até ele. Nossas forças ainda controlam o forte no Dente Dourado, e juram que ele não passou por lá - o anão encolheu os ombros, irritado. - Bem, Robb Stark é o tormento do meu pai. Joífrey é o meu. Diga-me, o que sente por meu real sobrinho? - Amo-o de todo o coração - Sansa respondeu de imediato. - De verdade? - Tyrion não parecia convencido. - Mesmo agora? - Meu amor por Sua Graça é maior do que alguma vez já foi. O Duende riu em voz alta: - Bem, alguém lhe ensinou a mentir bem. Poderá ficar grata por isso um dia, menina. Ainda é menina, não é verdade? Ou já desabrochou? Sansa corou. Era uma pergunta descortês, mas a vergonha de ser despida perante metade do
castelo fez com que parecesse não ser nada. - Não, senhor. 319 - Ainda bem. Se lhe dá algum consolo, não pretendo casá-la com Joffrey. Temo que nenhum casamento reconcilie os Stark e os Lannister depois de tudo o que aconteceu. O noivado teria sido uma das melhores idéias do Rei Robert, se Joffrey não a tivesse emporcalhado. Sansa sabia que devia dizer alguma coisa, mas as palavras ficaram presas em sua garganta. - Ficou muito silenciosa - observou Tyrion Lannister. - Era isso o que queria? Um ponto final em seu noivado? - Eu... - Sansa não sabia o que dizer. Será um truque? Vai me punir se eu disser a verdade? Fitou a testa brutal e proeminente do anão, o duro olho negro e o astuto olho verde, os dentes tortos e a barba áspera. - Eu só quero ser leal. - Ser leal - meditou o anão - , e estar longe de todos os Lannister, Não posso censurá-la por isso. Quando tinha a sua idade, queria a mesma coisa - ele sorriu. - Dizem que visita o bosque sagrado todos os dias. Por que reza, Sansa? Rezo pela vitória de Robb e pela morte de Joffrey... e pelo meu lar. Por Winterfell. - Rezo pelo fim das lutas. - Teremos isso em breve. Haverá outra batalha, entre seu irmão Robb e o senhor meu pai, e isso decidirá o assunto. Robb vai vencê-lo, pensou Sansa. Venceu seu tio e seu irmão Jaime, também vencerá seu pai. O anão leu suas esperanças com tanta facilidade que foi como se seu rosto tivesse se transformado em um livro aberto, - Não tome Cruzaboi muito a sério, senhora - disse-lhe num tom que não era desprovido de gentileza. - Uma batalha não é uma guerra, e o senhor meu pai certamente não é meu tio Stafford, Da próxima vez que visitar o bosque sagrado, reze para que seu irmão tenha a sensatez de dobrar o joelho. Assim que o norte voltar à paz do rei pretendo mandá-la para casa - Tyrion saltou do banco da janela e concluiu: - Pode dormir aqui esta noite. Darei alguns de meus homens como guarda, talvez alguns Corvos de Pedra... - Não - Sansa exclamou, aterrorizada. Se ficasse trancada na Torre da Mão, guardada pelos homens do anão, como conseguiria Sor Dontos levá-la à liberdade? - Prefere os Orelhas Negras? Posso lhe dar Chella, se uma mulher a fizer se sentir mais confortável. - Por favor, não, senhor, os selvagens me assustam. Ele sorriu. - A mim também. Mas, o que é mais importante, assustam Joffrey e aquele ninho de víboras manhosas e cães aduladores que ele chama de Guarda Real. Com Chella ou Timett ao seu lado, ninguém se atreveria a lhe fazer mal. - Preferia voltar à minha cama - Sansa lembrou-se subitamente de uma mentira, mas parecia tão certa que a proferiu de imediato. - Foi nesta torre que os homens do meu pai foram mortos. Seus fantasmas dar-me-iam terríveis sonhos, e veria o sangue deles onde quer que olhasse. Tyrion Lannister estudou seu rosto: - Não desconheço os pesadelos, Sansa. Talvez seja mais sensata do que eu pensava. Permita-me, pelo menos, escoltá-la em segurança de volta aos seus aposentos. 320 Catelyn A noite já tinha caído por completo quando encontraram a aldeia. Catelyn deu por si querendo saber se o lugar teria nome. Se tivesse, seu povo levara consigo esse conhecimento, quando fugiu com todas as suas posses, incluindo até as velas do septo. Sor Wendel acendeu um archote e atravessou com ela a porta baixa. Lá dentro, as sete paredes mostravam-se rachadas e tortas. Deus é uno, ensinara-lhe Septão Osmynd quando era nova, com sete aspectos, tal como o septo é um único edifício com sete paredes. Os septos ricos das cidades possuíam estátuas dos Sete, e um altar a cada um. Em Winterfell, Septão Chayle pendurava máscaras esculpidas nas paredes. Ali, Catelyn encontrou apenas grosseiros desenhos a carvão. Sor Wendel prendeu o archote numa arandela junto à porta, e saiu para esperar lá fora com Robar Royce. Catelyn estudou os desenhos. O Pai tinha barba, como sempre. A Mãe sorria, afetuosa e protetora. O Guerreiro tinha a espada esboçada sob o rosto, e o Ferreiro, o martelo. A Donzela era linda, a Velha, mirrada e sábia. E o sétimo rosto... o Estranho não era nem homem nem mulher, mas ambos, o eterno pária, o vagabundo de lugares distantes, menos e mais que humano, desconhecido e impossível de conhecer. Ali, o rosto era oval e negro, uma sombra com estrelas no lugar dos olhos. Deixava Catelyn inquieta. Pouco conforto conseguiria ali. Ajoelhou-se perante a Mãe, - Senhora, olhe a batalha com os olhos de uma mãe. Todos eles são filhos, todos e cada um deles. Poupe-os se puder, e poupe meus filhos também. Proteja Robb, Bran e Rickon. Bem que eu gostaria de estar com eles. Uma fenda corria através do olho esquerdo da Mãe, fazendo que parecesse estar chorando. Catelyn conseguia ouvir a voz trovejante de Sor Wendel, e de vez em quando as respostas calmas de Sor Robar, enquanto os homens conversavam sobre a batalha que se aproximava. Além deles, a noite estava silenciosa. Nem sequer se ouvia um grilo, e os deuses mantinham o silêncio. Seus deuses antigos alguma vez lhe respondiam, Ned?, perguntou a si mesma. Quando se ajoelhava perante a sua árvore-coração, eles o ouviam? A luz trêmula do archote dançava nas paredes, fazendo com que aqueles rostos parecessem estar semivivos, torcendo-se, alterando-se. As estátuas nos grandes septos das cidades tinham os rostos que os pedreiros lhes tinham dado, mas aqueles rabiscos a carvão eram tão rudimentares que podiam representar qualquer pessoa. O rosto do Pai levou Catelyn a pensar em seu próprio pai, morrendo em sua cama em Correrrio. O Guerreiro era Renly e Stannis, Robb e Robert, Jaime Lannister e Jon Snow. Até vislumbrou Arya naquelas feições, apenas por um instante. Então, 321 uma rajada de vento que penetrou pela porta fez o archote crepitar, e a semelhança desapareceu, lavada num brilho cor de laranja. A fumaça estava fazendo seus olhos arderem. Esfregou-os com as mãos cobertas de cicatrizes. Quando voltou a olhar a Mãe, foi sua mãe que viu. A Senhora Minisa Tully morrera durante o parto, tentando dar a Lorde Hoster um segundo filho. O bebê pereceu com ela, e depois disso o pai perdeu um pouco de sua vida. Ela era sempre tão calma, pensou Catelyn, recordando as mãos suaves da mãe, seu sorriso quente. Se tivesse sobrevivido, nossas vidas poderiam ter sido tão diferentes. Perguntou a si mesma o que a Senhora Minisa teria achado da filha mais velha, ali, ajoelhada na sua frente. Percorri tantos milhares de léguas, e para quê? A quem servi? Perdi minhas filhas, Robb não me quer com ele, e Bran e Rickon devem certamente me achar uma mãe fria e desnaturada. Nem sequer estava com Ned quando ele morreu... Sentiu a cabeça leve, e o septo pareceu mover-se ao seu redor. As sombras oscilaram e alteraram-se, animais furtivos correndo pelas paredes rachadas e brancas. Catelyn não comera durante todo o dia. Talvez não tivesse sido sensato. Tinha dito a si mesma que não tivera tempo, mas a verdade era que a comida perdera o sabor num mundo sem Ned. Quando cortaram sua cabeça, mataram-me também. Atrás dela, o archote cuspiu, e de súbito pareceu-lhe que o rosto na parede era o da irmã, embora os olhos fossem mais duros do que se recordava, não os de Lysa, mas os de Cersei. Cersei também é mãe. Não importa quem é o pai daquelas crianças, ela sentiu-as chutando em seu ventre, deu-lhes à luz com a sua dor e seu sangue, alimentou-as em seu peito. Se forem mesmo de Jaime... - Cersei também ora a você, senhora? - perguntou Catelyn à Mãe. Conseguia ver os traços orgulhosos, frios e belos da rainha Lannister gravados na parede. A fenda ainda estava lá; mesmo Cersei era capaz de chorar pelos filhos. - Cada um dos Sete incorpora todos os Sete - dissera-lhe um dia Septão Osmynd. Havia tanta beleza na Velha como na Donzela, e a Mãe podia ser mais feroz do que o Guerreiro quando seus filhos estivessem em perigo. Sim... Tinha visto o suficiente de Robert Baratheon em Winterfell para saber que o rei não olhava Joffrey com grande calor. Se fosse mesmo da semente de Jaime, Robert teria matado o rapaz, bem como a mãe, e poucos o teriam condenado. Bastardos eram bastante comuns, mas o incesto era um pecado monstruoso, tanto para os velhos deuses como para os novos, e os filhos de tal perversidade eram chamados de abominações tanto no septo como no bosque sagrado. Os reis do dragão tinham casado os irmãos com as irmãs, mas pertenciam ao sangue da antiga Valíria, onde tais práticas tinham sido comuns e, tal como seus dragões, os Targaryen não respondiam nem perante os deuses, nem perante os homens. Ned deve ter sabido, e antes dele Lorde Arryn também. Pouco surpreende que a rainha tenha matado os dois. Faria eu outra coisa por meus filhos? Catelyn fechou as mãos, sentindo a rigidez dos dedos marcados onde o aço do assassino cortara até o osso enquanto ela lutava para salvar o filho. - Bran também sabe - sussurrou, abaixando a cabeça. Que os deuses sejam bons, ele deve ter visto qualquer coisa, ouvido qualquer coisa, foi por isso que tentaram matá-lo em seu leito. Sentindo-se perdida e cansada, Catelyn Stark entregou-se aos seus deuses. Ajoelhou perante o Ferreiro, que consertava as coisas que estavam quebradas, e pediu-lhe para dar proteção ao seu querido Bran. Dirigiu-se à Donzela e suplicou-lhe que emprestasse coragem a Arya e a Sansa, que as guardasse em sua inocência. Ao Pai, rezou por justiça, pela força para procurá-la e pela sabedoria para reconhecê-la, e pediu ao Guerreiro para manter Robb forte e defendê-lo em suas 322 batalhas. Por fim, virou-se para a Velha, cujas estátuas a mostravam freqüentemente com uma lâmpada em uma das mãos. - Guie-me, sábia senhora - rezou. - Mostre-me o caminho que devo percorrer, e não permita que tropece nos lugares escuros que me esperam. Por fim, ela ouviu passos atrás de si, e um som na porta. - Senhora - disse Sor Robar com gentileza - , perdoe-me, mas nosso tempo está chegando ao fim. Temos que voltar antes do romper da aurora. Catelyn pôs-se rigidamente em pé. Seus joelhos doíam, e naquele momento teria dado muito por uma cama de penas e uma almofada. - Obrigada, sor. Estou pronta. Atravessaram em silêncio bosques esparsos em que as árvores se inclinavam ebriamente para longe do mar. Os relinchos nervosos dos cavalos e o tinir do aço guiou-os de volta ao acampamento de Renly. As longas fileiras de homens e cavalos estavam cobertas por uma armadura de escuridão, tão negra que era como se o Ferreiro tivesse martelado a própria noite para fabricar aço. Havia estandartes à sua esquerda e à direita, mas à luz que antecedia a alvorada, nem as cores nem os símbolos eram discerníveis. Um exército cinzento, pensou Catelyn. Homens cinzentos sobre cavalos cinzentos, sob bandeiras cinzentas. Enquanto montavam os cavalos, à espera, os cavaleiros de sombra de Renly apontavam as lanças para cima, e Catelyn cavalgou por uma floresta de altas árvores nuas, despojadas de folhas e de vida. Onde ficava Ponta Tempestade via-se apenas uma escuridão mais profunda, uma muralha de negrume, através da qual nenhuma estrela conseguia brilhar, mas Catelyn via tochas movendo-se pelo campo onde Lorde Stannis montara o acampamento. As velas dentro do pavilhão de Renly faziam que as trêmulas paredes de seda parecessem brilhar, transformando a grande tenda num castelo mágico, insuflado de luz esmeralda. Dois dos membros da Guarda Arco-íris estavam de sentinela à porta do pavilhão real. A luz verde brilhava de forma estranha através das plumas roxas da capa de Sor Parmen, e dava um tom doentio aos girassóis que cobriam cada polegada da armadura amarela esmaltada de Sor Emmon. Longas plumas de seda fluíam de seus elmos, e mantos de arco-íris envolviam seus ombros. Lá dentro, Catelyn encontrou Brienne armando o rei para a batalha, enquanto Lorde Tarly e Rowan conversavam sobre a colocação dos homens no terreno e táticas. Estava um calor agradável lá dentro, proveniente de carvões em brasa numa dúzia de pequenos braseiros de ferro. - Tenho de falar com o senhor, Vossa Graça - disse Catelyn, tratando-o como um rei, pela primeira vez, qualquer coisa para fazer com que prestasse atenção nela. - Dentro de um momento, Senhora Catelyn - respondeu Renly. Brienne ajustou a placa das costas à placa de peito por cima da túnica acolchoada do rei. A armadura era de um verde profundo, o verde das folhas numa floresta estivai, tão escuro que bebia a luz das velas. Realces dourados brilhavam em relevos e presilhas como fogueiras distantes nessa floresta, piscando sempre que ele se movia. - Por favor, prossiga, Lorde Mathis. - Vossa Graça - disse Mathis Rowan, lançando um olhar de canto de olho para Catelyn. - Como estava dizendo, nossas batalhas estão bem delineadas. Por que esperar pelo nascer do dia? Faça soar a partida. - Para dizerem depois que ganhei por meios traiçoeiros, com um ataque pouco cavaleiresco? A hora escolhida foi a alvorada. - Escolhida por Stannis - ressaltou Randyll Tarly. - Quer que avancemos sob o sol nascente. Ficaremos meio cegos. 323 - Só até o primeiro embate - Renly respondeu com confiança. - Sor Loras quebrará suas linhas, e depois disso será o caos - Brienne apertou tiras de couro verde e prendeu fivelas douradas. - Quando meu irmão cair, assegurem-se de que nenhum insulto seja feito ao seu cadáver. Ele pertence ao meu sangue, não quero ver sua cabeça por aí, empalada na ponta de uma lança. - E se ele se render? - Lorde Tarly quis saber. - Render-se? - Lorde Rowan soltou uma gargalhada. - Quando Mace Tyrell montou cerco a Ponta Tempestade, Stannis preferiu comer ratazanas a abrir os portões. - Bem me lembro - Renly ergueu o queixo para deixar que Brienne prendesse seu gorjal no lugar, - Perto do fim, Sor Gawen Wylde e três de seus cavaleiros tentaram se esgueirar por uma porta traseira, a fim de se render. Stannis pegou-os e ordenou que fossem atirados das muralhas com catapultas. Ainda vejo a cara de Gawen enquanto o amarravam. Era o nosso mestre de armas. Lorde Rowan pareceu confuso. - Ninguém foi atirado das muralhas. Eu certamente me lembraria de tal coisa. - Meistre Cressen disse a Stannis que poderíamos ser forçados a comer nossos mortos, e não se ganhava nada em atirar fora boa carne - Renly puxou o cabelo para trás. Brienne atou-o com um fio de veludo e enfiou um capuz almofadado na cabeça dele, para amortecer o peso do elmo. - Graças ao Cavaleiro das Cebolas não acabamos reduzidos a comer cadáveres, mas estivemos perto disso. Perto demais para Sor Gawen, que morreu na cela. - Vossa Graça - Catelyn tinha esperado pacientemente, mas o tempo escasseava. - Prometeu-me uma conversa, Renly fez um aceno.
- Tratem de suas batalhas, senhores... Ah, e se Barristan Selmy estiver ao lado do meu irmão, quero-o poupado. - Não há notícias de Sor Barristan desde que Joffrey o expulsou - retrucou Lorde Rowan. - Eu conheço aquele velho. Precisa de um rei para defender, senão não sabe quem é. Mas nunca veio até mim, e a Senhora Catelyn diz que não está com Robb Stark em Correrrio. Onde mais estará a não ser com Stannis? - Será como diz, Vossa Graça. Nenhum mal lhe acontecerá - os senhores fizeram reverências profundas e se retiraram. - Diga o que tem a dizer, Senhora Stark - disse Renly. Brienne envolveu seus ombros largos com o manto. Era de fios de ouro, pesado, com o veado coroado dos Baratheon realçado por lascas de âmbar negro. - Os Lannister tentaram matar meu filho Bran. Perguntei mil vezes a mim mesma por quê. Seu irmão deu-me a resposta. Houve uma caçada no dia em que caiu. Robert, Ned e a maior parte dos outros homens partiram em busca de javalis, mas Jaime Lannister permaneceu em Winterfell, tal como a rainha. Renly não foi lento em perceber as implicações. - Então acredita que o rapaz os apanhou em incesto... - Suplico-lhe, senhor, dê-me licença para ir até seu irmão Stannis e contar-lhe as minhas suspeitas. - O que objetiva com isso? - Robb porá de lado sua coroa se o senhor e seu irmão fizerem o mesmo - disse, esperando que fosse verdade. Faria com que se tornasse verdade, se fosse preciso; Robb a escutaria, mesmo 324 que os seus senhores não o fizessem. - Permita que vocês três convoquem um Grande Conselho, um conselho como o reino não vê há cem anos. Iremos a Winterfell, para que Bran possa contar sua história e todos fiquem sabendo que os Lannister são os verdadeiros usurpadores. Deixe que os senhores reunidos dos Sete Reinos escolham quem os governará. Renly soltou uma gargalhada. - Diga-me, senhora, os lobos gigantes votam em quem deve liderar a alcateia? - Brienne trouxe as manoplas e o elmo do rei, coroado com chifres dourados que acrescentariam meio metro à sua altura. - O tempo para conversas terminou. Agora veremos quem é mais forte - Renly calçou uma manopla articulada verde e dourada na mão esquerda, enquanto Brienne se ajoelhava para afivelar seu cinto, carregado com o peso da espada e do punhal. - Suplico-lhe em nome da Mãe - começou a dizer Catelyn quando uma súbita rajada de vento abriu a porta da tenda. Pensou vislumbrar movimento, mas quando virou a cabeça viu apenas a sombra do rei movendo-se nas paredes de seda. Ouviu Renly começar um gracejo, com a sombra movendo-se, erguendo a espada, negra sobre verde, com as velas tremeluzindo, estremecendo... Algo estava estranho, errado... E, então, viu a espada de Renly ainda na sua bainha, ainda guardada, mas a espada de sombra... - Frio - disse Renly numa voz fraca e confusa, um instante antes de o aço de seu gorjal se rasgar como um pedaço de queijo sob a sombra de uma lâmina que não estava lá. Teve tempo para um pequeno arquejo antes que o sangue começasse a jorrar de sua garganta. - Vossa Gr... Não! - Brienne, a Azul, gritou quando viu o maligno jorro, parecendo tão assustada como uma garotinha. O rei caiu em seus braços, com um lençol de sangue cobrindo a parte da frente de sua armadura, uma maré vermelho-escura que afogou seu verde e ouro. Mais velas tremeluziram e apagaram-se, Renly tentou falar, mas estava se afogando em seu próprio sangue. Perdeu a força nas pernas, e só os braços de Brienne o mantiveram em pé. A jovem atirou a cabeça para trás e gritou, sem palavras em sua angústia. A sombra. Catelyn sabia que algo escuro e maligno tinha acontecido ali, algo que nem podia começar a compreender. Aquela nunca foi a sombra de Renly. A morte entrou por aquela porta e apagou sua vida tão depressa como o vento extinguiu suas velas. Só se passaram alguns instantes antes de Robar Royce e Emmon Cuy entrarem de rompante, embora parecesse ter durado metade da noite, Um par de homens de armas juntou-se atrás deles com archotes. Quando viram Renly nos braços de Brienne e ela ensopada no sangue do rei, Sor Robar deu um grito de horror. - Maldita mulher! - gritou Sor Emmon, o do aço coberto de girassóis. - Afaste-se dele, vil criatura! - Deuses benignos, Brienne, por quê? - Sor Robar perguntou, Brienne ergueu os olhos do corpo de seu rei. O manto arco-íris que pendia de seus ombros tinha se tornado vermelho onde o sangue do rei o ensopara. - Eu... eu... - Morrerá por isso - Sor Emmon tirou um machado de batalha de cabo longo de entre as armas que estavam empilhadas junto à porta. - Pagará pela vida do rei com a sua! - NÃO! - Catelyn Stark gritou, encontrando por fim a voz, mas era tarde demais, a loucura do sangue tinha se apossado deles, e correram em frente com gritos que se sobrepuseram às suas palavras mais suaves. Brienne moveu-se mais depressa do que Catelyn julgaria possível. Não tinha sua espada à mão; tirou a de Renly da bainha e a ergueu para parar a queda do machado de Emmon. Uma centelha 325 brilhou, azul-esbranquiçada, quando o aço caiu sobre aço com um estrondo dilacerante, e Brienne ficou em pé com um salto, atirando rudemente para o lado o corpo do rei morto. Sor Emmon tropeçou nele quando tentou se aproximar, e a lâmina de Brienne cortou o cabo de madeira e fez saltar a cabeça do machado num rodopio. Outro homem atirou em suas costas um archote em chamas, mas o manto arco-íris estava empapado demais de sangue para arder. Brienne girou e desferiu um golpe, e archote e mão voaram. Chamas espalharam-se pelo tapete. O homem mutilado desatou aos gritos. Sor Emmon deixou cair o machado e tateou em busca da espada. O segundo homem de armas lançou uma estocada em Brienne. A Azul parou, e as espadas dançaram e voltaram a retinir uma contra a outra. Quando Emmon Cuy retomou o ataque, Brienne foi forçada a se retirar, mas de algum modo logrou mantê-los afastados. No chão, a cabeça de Renly rolou repugnantemente para um lado, e uma segunda e terrível boca escancarou-se, com o sangue agora saindo em ondas lentas. Sor Robar tinha ficado para trás, incerto, mas agora estendia a mão até o cabo da espada. - Robar, não, escute - Catelyn o agarrou pelo braço. - Estão cometendo uma injustiça, não foi ela. Ajude-a! Escute-me, foi Stannis - o nome estava em seus lábios antes mesmo de conseguir pensar no modo como lá chegara, mas, quando o proferiu, soube que era verdade. - Juro, você me conhece, foi Stannis quem o matou. O jovem cavaleiro do arco-íris fitou aquela louca com olhos claros e assustados. - Stannis? Como? - Não sei. Feitiçaria, alguma magia negra, havia uma sombra, uma sombra - até para si mesma a voz soava descontrolada e enlouquecida, mas as palavras jorravam descontroladas enquanto as lâminas continuavam retinindo atrás dela. - Uma sombra com uma espada, juro, eu vi. São cegos? A moça o amaval Ajude-a! - olhou de relance para trás, viu o segundo guarda cair, a espada largada por dedos sem força. Lá fora ouviam-se gritos. Sabia que mais homens zangados irromperiam sobre eles a qualquer momento. - Ela é inocente, Robar. Tem a minha palavra, pela tumba do meu esposo e por minha honra como Stark. Aquilo o fez se decidir. - Eu os conterei - Sor Robar respondeu. - Leve-a - então, virou-se e saiu. O fogo tinha chegado à parede e subia pelo lado da tenda. Sor Emmon pressionava duramente Brienne, ele vestido de aço esmaltado amarelo e ela de lã. Esquecera Catelyn, até que o braseiro de ferro se esmagou contra sua nuca. Como estava com o elmo, o golpe não fez nenhum mal duradouro, mas deixou-o de joelhos. - Brienne, comigo - Catelyn ordenou. A moça não foi lenta para ver a oportunidade. Um golpe e a seda verde abriu-se. Saíram para a escuridão e o frio da alvorada. Vozes alteradas vinham do outro lado do pavilhão. - Por aqui - pediu Catelyn - , e devagar. Não devemos correr, senão vão nos perguntar por quê. Caminhe descontraída, como se nada houvesse de errado. Brienne enfiou a espada no cinto e pôs-se ao lado de Catelyn. O ar da noite cheirava a chuva. Atrás delas, o pavilhão do rei ardia, com as chamas erguendo-se, altas, contra a escuridão. Ninguém fez um movimento para pará-las. Homens passavam por elas correndo, gritando sobre fogo, assassinato e feitiçaria. Outros reuniam-se em pequenos grupos e conversavam em voz baixa. Alguns rezavam, e um jovem escudeiro estava de joelhos, soluçando abertamente. As forças de Renly já começavam a se desagregar à medida que os rumores se espalhavam de boca em boca. As fogueiras noturnas estavam quase extintas e, à medida que o leste começava a se iluminar, a imensa massa de Ponta Tempestade ia emergindo como um sonho de pedra, enquanto farrapos de névoa branca corriam pelo campo, fugindo do sol em asas de vento. Catelyn 326 ouvira um dia a Velha Ama chamá-los de fantasmas da manhã, espíritos que regressavam às suas tumbas. E Renly era agora um deles, morto como o irmão Robert, como seu querido Ned, - Nunca o tive nos braços, a não ser quando morreu - disse Brienne em voz baixa enquanto caminhavam por entre o crescente caos. A voz soava como se fosse se quebrar a qualquer instante. - Num momento estava rindo, e de repente havia sangue por todo lado... Senhora, não compreendo. Você viu, você...? - Vi uma sombra. Pensei a princípio que fosse a sombra de Renly, mas era a do irmão. - Lorde Stannis? - Senti-o, Não faz sentido, sei disso. Fazia sentido suficiente para Brienne. - Vou matá-lo - declarou a moça alta e simples. - Com a espada do meu senhor, vou matá-lo. Juro. Juro. Juro, Hal Mollen e o resto de sua escolta esperavam com os cavalos. Sor Wendel Manderly coçava-se para saber o que estava acontecendo. - Senhora, o acampamento enlouqueceu - exclamou ao vê-las. - Lorde Renly, ele está...
- parou de súbito, com os olhos fitos em Brienne e no sangue que a ensopava. - Morto, mas não por nossas mãos. - A batalha... - começou Hal Mollen. - Não haverá batalha - Catelyn montou, e a escolta adotou uma formação ao seu redor, com Sor Wendel à esquerda e Sor Perwyn Frey à direita. - Brienne, trouxemos montarias suficientes para o dobro de nós. Escolha uma e venha conosco. - Eu tenho meu próprio cavalo, senhora. E a minha armadura... - Deixe-os. Temos de estar bem longe antes que pensem em nos procurar. Estávamos ambas com o rei quando ele foi morto. Isso não será esquecido - sem uma palavra, Brienne virou-se e fez o que lhe era pedido. - Vamos - ordenou Catelyn à escolta depois de todos terem montado. - Se alguém tentar nos parar, abatam-no. A medida que os longos dedos da alvorada se abriam em leque pelos campos, a cor voltava ao mundo. Onde havia homens cinzentos, montados em cavalos cinzentos e armados com lanças de sombras, cintilavam agora as pontas de dez mil lanças numa frieza prateada, e na miríade de bandeiras agitando-se Catelyn viu o desabrochar do vermelho, rosa e laranja, a riqueza de azuis e marrons, a chama do dourado e do amarelo, Todo o poderio de Ponta Tempestade e Jardim de Cima, o poderio que tinha sido de Renly uma hora antes. Pertencem agora a Stannis, compreendeu, mesmo que eles próprios ainda não saibam disso. Para onde mais devem se voltar, se não para o último Baratheon? Stannis conquistou a todos com um único golpe maligno. Eu sou o rei legitimo, declarara ele, com o maxilar cerrado, duro como ferro, e seu filho não é menos traidor do que meu irmão aqui. O seu dia também chegará. Um arrepio percorreu sua espinha. 327
JON Omonte projetava-se por cima do denso emaranhado de floresta, erguendo-se solitário, repentinamente deixando ver suas alturas varridas pelo vento de quilômetros ao redor. Os patrulheiros diziam que os selvagens o chamavam de Punho dos Primeiros Homens. Jon pensou que realmente se parecia com um punho, atravessando a terra e a floresta, com as vertentes nuas e marrons encimadas por pedras. Cavalgou até o topo com Lorde Mormont e os oficiais, deixando Fantasma lá embaixo, entre as árvores. O lobo gigante tinha fugido três vezes enquanto subiam, regressando relutantemente em duas delas ao som do assobio de Jon. Na terceira, o Senhor Comandante perdeu a paciência e exclamou: - Deixe-o ir, rapaz. Quero alcançar o cume antes do anoitecer. Procure o lobo mais tarde. O caminho era íngreme e pedregoso, e o cume era coroado por um muro de pedras desprendidas dos rochedos, cuja altura chegava à altura do peito. O grupo foi forçado a dar uma grande volta para oeste até encontrar uma brecha suficientemente larga para que os cavalos passassem. - Esta é uma boa posição, Thoren - proclamou o Velho Urso, quando enfim atingiram o topo. - Dificilmente encontraremos melhor, Faremos aqui o acampamento para esperar pelo Meia-Mão - o Senhor Comandante saltou da sela, desalojando o corvo do ombro. Queixando-se sonoramente, a ave levantou voo. A vista do topo do monte era abrangente, mas o que atraiu os olhos de Jon foi o muro circular, as pedras cinzentas desgastadas, com suas manchas brancas de líquens e suas barbas de musgo verde. Dizia-se que o Punho tinha sido um forte anelar dos Primeiros Homens, na Idade da Alvorada. - Um lugar velho e forte - disse Thoren Smallwood. "Velho", gritou o corvo de Mormont, batendo as asas em círculos ruidosos em volta da cabeça dos homens."Velho, velho, velho." - Cale-se - rosnou Mormont para a ave. O Velho Urso era orgulhoso demais para admitir fraqueza, mas Jon não se deixava enganar. O esforço de acompanhar os homens mais novos estava custando caro. - Esta elevação será fácil de defender se for necessário - notou Thoren enquanto levava o cavalo ao longo do anel de pedras, com o vento agitando seu manto forrado de zibelina. - Sim, este lugar servirá - o Velho Urso ergueu uma mão para o vento, e o corvo aterrissou em seu antebraço, arranhando com as garras a cota de malha negra. - E a água, senhor? - Jon quis saber. - Atravessamos um riacho no sopé do monte. - Uma longa subida para beber água - Jon observou - , e fora do anel de pedra. 328
Thoren rebateu: - E preguiçoso demais para subir um monte, rapaz? Lorde Mormont interveio: - Não é provável que encontremos outro local tão forte como este. Vamos transportar água e nos assegurar de estarmos bem abastecidos, Jon sabia que não devia discutir. E, assim, a ordem foi dada e os irmãos da Patrulha da Noite montaram o acampamento por trás do anel de pedra que os Primeiros Homens tinham construído. Tendas negras nasceram como cogumelos depois da chuva, e cobertores e camas de campanha cobriram o terreno nu. Intendentes amarraram os garranos em longas fileiras, e lhes deram água e alimento. Lenhadores levaram seus machados até as árvores, à luz da tarde que se escoava, a fim de colher madeira suficiente para a noite. Vinte construtores puseram-se a limpar a vegetação rasteira, cavar latrinas e desatar os feixes de estacas endurecidas pelo fogo que tinham trazido. - Quero ver todas as aberturas do muro entrincheiradas e com estacas antes de a noite cair - ordenou o Velho Urso. Depois de armar a tenda do Senhor Comandante e de cuidar dos cavalos, Jon Snow desceu o monte em busca de Fantasma. O lobo gigante veio de imediato, num silêncio total. Num momento, Jon caminhava a passos largos por entre as árvores, assobiando e gritando, sozinho no verde, com pinhas e folhas caídas sob os pés; no seguinte, o grande lobo gigante branco andava a seu lado, alvo como a neblina da manhã. Mas, quando chegaram ao forte anelar, Fantasma voltou a se mostrar renitente. Avançou com cautela para farejar a abertura nas pedras e depois recuou, como se não tivesse gostado do cheiro que sentiu. Jon tentou agarrá-lo pelo cangote e arrastá-lo à força para dentro do anel, o que não era tarefa fácil; o lobo pesava tanto quanto ele, e era muito mais forte. - Fantasma, qual é o seu problema? - o lobo não era de se mostrar tão perturbado. Por fim, Jon teve de desistir: - Faça como quiser. Vai, pode caçar - os olhos vermelhos ficaram observando-o enquanto abria caminho por entre as pedras cobertas de musgo. Deviam estar em segurança ali, O monte tinha uma posição dominante, e as vertentes norte e oeste formavam precipícios e eram apenas um pouco mais suaves para leste. No entanto, à medida que o ocaso se aprofundava e a escuridão deslizava pelos espaços vazios entre as árvores, a sensação de mau agouro cresceu dentro de Jon. Esta é a floresta assombrada, disse a si mesmo. Talvez haja fantasmas aqui, o espírito dos Primeiros Homens. Um dia, este lugar lhes pertenceu. - Pare de agir como um garoto - murmurou consigo mesmo. Subindo nas pedras empilhadas, Jon dirigiu o olhar para o sol poente. Conseguia ver a luz tremeluzindo como ouro martelado na superfície do Guadeleite no ponto em que o rio curvava para sul. Em direção à nascente, o terreno era mais irregular, a floresta densa dava lugar a uma série de montes pedregosos e nus que subiam, altos e bravios, para norte e oeste. No horizonte, as montanhas erguiam-se como uma grande sombra, cordilheira após cordilheira estendendo-se na distância azul-acinzentada, com os picos recortados, perpetuamente revestidos de neve. Mesmo de longe, pareciam vastas, frias e inóspitas. Mais perto dali, eram as árvores que governavam. Para sul e para leste, a floresta estendia-se até o horizonte, um vasto emaranhado de raízes e ramos pintado em diversos tons de verde, com uma mancha de vermelho aqui e ali, onde um represeiro abria caminho por entre os pinheiros e as árvores-sentinela, ou uma gota de amarelo nos locais em que algumas árvores latifoliadas tinham começado a mudar de cor. Quando o vento soprou, Jon conseguiu ouvir o estalar e ranger 329 de galhos mais velhos do que ele. Mil folhas esvoaçaram, e por um momento a floresta pareceu um mar de um verde profundo, tempestuoso e palpitante, eterno e impossível de conhecer. Jon refletiu que não era provável que Fantasma estivesse sozinho lá embaixo. Qualquer coisa podia estar em movimento sob aquele mar, rastejando através da escuridão dos bosques na direção do forte anelar, escondida sob aquelas árvores. Qualquer coisa. Como poderiam chegar a saber? Ficou ali por muito tempo, até o sol desaparecer por trás dos picos serrados das montanhas e a escuridão começar a deslizar pela floresta. - Jon? - Samwell Tarly o chamou. - Bem que achei que fosse você. Está bem? - Suficientemente bem - Jon saltou para baixo. - Como passou o dia hoje? - Bem. Passei bem. De verdade. Jon não dividiria suas inquietações com o amigo, ainda mais no momento em que Samwell Tarly parecia por fim começar a encontrar sua coragem. - O Velho Urso pretende esperar aqui por Qhorin Meia-Mão e pelos homens vindos da Torre Sombria. - Parece um local seguro - Sam respondeu. - Um forte anelar dos Primeiros Homens. Acha que houve batalhas travadas aqui? - Sem dúvida. É melhor que prepare uma ave. Mormont vai querer enviar notícias. - Gostaria de poder enviar todas. Detestam estar engaioladas. - Também detestaria, se pudesse voar.
- Se eu pudesse voar, estaria de volta ao Castelo Negro, comendo um empadão de porco. Com a mão queimada, Jon deu uma palmada no ombro do amigo. Atravessaram juntos o acampamento. Fogueiras para cozinhar eram acesas por todo lado. Em cima, as estrelas iam aparecendo. A longa cauda vermelha do Archote de Mormont ardia, luminosa como a lua. Jon ouviu os corvos antes de vê-los. Alguns chamavam por seu nome. As aves não se acanhavam quando se tratava de fazer barulho. Eles também sentem isso. - E melhor que eu vá atender ao Velho Urso - Jon falou. - Ele também fica barulhento quando não é alimentado. Foi encontrar Mormont conversando com Thoren Smallwood e meia dúzia de outros oficiais, - Aqui está você - disse o velho em tom rabugento. - Traga-nos um pouco de vinho quente, por favor. A noite está gelada. - Sim, senhor. Jon acendeu uma fogueira, requisitou aos homens do abastecimento um pequeno barril do tinto encorpado que Mormont preferia e despejou-o numa chaleira. Pendurou-a sobre as chamas enquanto reunia o resto dos ingredientes. O Velho Urso era exigente com o vinho quente condimentado. Tanto de canela, tanto de noz-moscada e tanto de mel, nem um tiquinho a mais. Passas, nozes e bagas secas sim, mas nada de limão, isso era o mais asqueroso tipo de heresia sulista... O que, para Jon, era estranho, uma vez que sempre punha limão na cerveja matinal. A bebida devia estar quente para aquecer devidamente um homem, insistia o Senhor Comandante, mas nunca se podia permitir que o vinho começasse a ferver, Jon vigiou a chaleira com olhos cuidadosos. Enquanto trabalhava, conseguia ouvir as vozes que vinham de dentro da tenda. Jarman Buckwell disse: - O caminho mais fácil para subir as Presas de Gelo é seguindo o Guadeleite até a nascente. Mas se formos por aí, Rayder saberá da nossa aproximação, tão certo como o nascer do sol. 330 - A Escada do Gigante pode servir - Sor Mallador Locke observou ou o Passo dos Guinchos, se estiver limpo. O vinho fumegava. Jon tirou a chaleira do fogo, encheu oito taças e as levou para a tenda. O Velho Urso espiava o mapa rudimentar que Sam lhe havia desenhado na Fortaleza de Craster. Tirou uma taça do tabuleiro de Jon, experimentou o vinho e fez um aceno brusco de aprovação. O corvo saltou de seu braço. "Grão. Grão. Grão," Sor Ottyn Wythers recusou o vinho com um gesto. - Eu preferia evitar a todo custo a entrada nas montanhas - o homem disse numa voz fraca e fatigada. - As Presas de Gelo mordem cruelmente, mesmo no Verão, e agora,,. Se formos apanhados por uma tempestade... - Não pretendo arriscar as Presas, a menos que tenhamos de fazer isso - Mormont respondeu. - Os selvagens não são mais capazes de viver de neve e pedra do que nós. Irão emergir das alturas em breve, e para qualquer tropa de um tamanho razoável, a única rota possível segue o Guadeleite. Se assim for, temos aqui uma posição forte. Eles não podem esperar escapar de nós. - Podem não querer escapar. São milhares, e nós seremos trezentos quando Meia-Mão nos alcançar - Sor Mallador aceitou a taça que Jon lhe oferecia. - Se chegar a haver batalha, não poderíamos desejar posição melhor do que esta - Mormont voltou a insistir. - Reforçaremos as defesas. Fossos e espigões, estrepes espalhadas pelas vertentes, com todas as brechas fechadas. Jarman, quero seus olhos mais aguçados como vigias. Dispostos em anel, à nossa volta e ao longo do rio, para nos prevenirem de qualquer aproximação. Esconda-os nas árvores. E é melhor começarmos também a trazer água para cima, mais do que precisamos. Escavaremos cisternas. Isso manterá os homens ocupados, e pode se mostrar necessário mais tarde, - Meus patrulheiros... - começou Thoren Smallwood. - Seus patrulheiros limitarão as patrulhas a este lado do rio até que Meia-Mão nos alcance. Depois disso, veremos. Não perderei mais de meus homens. - Mance Ryder pode estar reunindo sua tropa a um dia de viagem daqui, e nunca o saberemos - Smallwood protestou. - Nós sabemos onde os selvagens estão se juntando - Mormont rebateu. - Craster nos disse. Não gosto do homem, mas não me parece que tenha mentido quanto a isso. - Às suas ordens - Smallwood saiu carrancudo. Os outros terminaram o vinho e seguiram-no, com mais cortesia. - Devo trazer seu jantar, senhor? - Jon perguntou. "Grão", gritou o corvo. Mormont não respondeu logo. E, quando o fez, disse apenas: - Seu lobo encontrou caça hoje? - Ainda não voltou. - Seria bom termos carne fresca - Mormont enfiou a mão num saco e ofereceu um punhado de milho ao corvo. - Acha que faço mal em manter os patrulheiros por perto?
- Isso não me cabe dizer, senhor. - Cabe, se eu perguntar. - Se os patrulheiros tiverem de permanecer à vista do Punho, não vejo como podem ter esperança de encontrar meu tio - Jon admitiu. - Não podem - o corvo bicou os grãos na mão do Velho Urso. - Sejam duzentos homens ou dez mil, esta terra é vasta demais - desaparecido o milho, Mormont virou a mão. 331 - Não está pensando em desistir da busca, está? - Meistre Aemon pensa que você é esperto. Mormont deslocou o corvo para o ombro. A ave inclinou a cabeça para um lado, com os olhinhos brilhando. A resposta encontrava-se ali. - E... Parece-me que pode ser mais fácil a um homem encontrar duzentos do que duzentos encontrarem um. O corvo soltou um guincho zombeteiro, mas o Velho Urso sorriu por entre a barba cinza. - Todos esses homens e cavalos deixam um rastro que até Aemon seria capaz de seguir. Neste monte, nossas fogueiras devem estar visíveis até o sopé das Presas de Gelo. Se Ben Stark estiver vivo e livre, virá até nós, não tenho qualquer dúvida. - Sim - Jon respondeu - , mas... e se... - ... estiver morto? - Mormont concluiu, num tom que não era desprovido de gentileza. Jon confirmou, relutante, com a cabeça. "Morto", disse o corvo. "Morto. Morto." - Pode vir mesmo assim até nós - o Velho Urso disse. - Como fez Othor, e Jafer Flowers. Temo isso tanto quanto você, Jon, mas temos de admitir a possibilidade. "Morto," crocitou o corvo, sacudindo as asas. A voz da ave subiu de intensidade e tornou-se mais estridente. "Morto." Mormont afagou as penas negras da ave e abafou um súbito bocejo com as costas da mão. - Creio que vou dispensar o jantar, O descanso vai me servir melhor. Acorde-me à primeira luz da aurora. - Durma bem, senhor. Jon recolheu as taças vazias e saiu. Ouviu risos distantes, e o som lamentoso de uma gaita. Uma grande fogueira crepitava no centro do acampamento, e Jon conseguia sentir o cheiro do guisado sendo cozido. O Velho Urso podia não ter fome, mas ele tinha, e se aproximou calmamente do fogo. Dywen parecia discursar, de colher na mão: - Conheço esta floresta tão bem quanto qualquer homem vivo, e digo-lhes que não gostaria de percorrê-la sozinho esta noite, Não sentem o cheiro? Grenn olhava-o com os olhos muito abertos, mas Edd Doloroso disse: - O cheiro que sinto é o da merda de duzentos cavalos. E deste guisado. Que tem quase o mesmo aroma bem aqui, agora que o cheiro bem. - Tenho seu aroma parecido bem aqui - Hake deu um tapinha na adaga, e, resmungando, encheu a tigela de Jon. O guisado era engrossado com cevada, cenoura, cebola e um fiapo de charque aqui e ali, amaciado pela fervura. - Como é que cheira para você, Dywen? - Green quis saber. O lenhador colocou a colher na boca um momento. Tinha tirado os dentes. Seu rosto era enrugado, semelhante a couro, e suas mãos nodosas, como velhas raízes. - Parece-me que tem cheiro... bem... de frio. - Sua cabeça é tão feita de madeira como seus dentes - disse-lhe Hake. - Não existe cheiro de frio. Existe, Jon respondeu em pensamento, lembrando-se da noite nos aposentos do Senhor Comandante. Tem cheiro de morte. De repente, sua fome desapareceu. Deu o guisado a Grenn, que parecia precisar de um jantar extra para se aquecer contra a noite. 332 O vento soprava fresco quando saiu. De manhã, a geada cobriria o chão e as cordas das tendas estariam rígidas e congeladas. Alguns dedos de vinho condimentado sacolejavam dentro da chaleira. Jon alimentou a fogueira com madeira fresca e pôs a chaleira sobre as chamas, para voltar a aquecê-la. Flexionou os dedos enquanto esperava, fechando-os e esticando-os até a mão começar a formigar. Os vigias do primeiro turno tinham ocupado seus lugares em volta do perímetro do acampamento. Archotes tremeluziam ao longo da muralha anelar. A noite não tinha lua, mas mil estrelas brilhavam por cima de sua cabeça. Um som ergueu-se da escuridão, tênue e distante, mas inconfundível: uivos de lobos. Suas vozes subiam e desciam, uma canção gelada e solitária. Fazia que os pelos na parte de trás do seu pescoço se eriçassem. Do outro lado da fogueira, um par de olhos vermelhos olhou-o das sombras. A luz das chamas fazia-os cintilar. - Fantasma - Jon suspirou, surpreso. - Então finalmente entrou, hã? - era freqüente que o lobo branco ficasse caçando a noite toda; não esperara voltar a vê-lo antes do nascer do dia. - A caça foi assim tão ruim? Vem cá. Aqui, Fantasma. O lobo gigante deu a volta na fogueira, farejando Jon, farejando o vento, sem nunca ficar quieto. Não parecia desejar carne naquele momento. Quando os mortos se levantaram, Fantasma soube. Acordou-me, preveniu-me. Alarmado, pôs-se em pé, - Tem alguma coisa lá fora? Fantasma, pegou um cheiro? - Dywen disse que tinha cheiro de frio. O lobo gigante afastou-se com um salto, parou, olhou para trás. Ele quer que o siga. Puxando o capuz do manto para cima, Jon afastou-se das tendas, do calor da sua fogueira, e passou pelas fileiras de pequenos garranos hirsutos. Um dos cavalos relinchou nervosamente quando Fantasma passou perto dele. Jon acalmou-o com uma palavra e fez uma pausa para afagar seu focinho. Conseguiu ouvir o vento assobiando através das fendas entre as pedras quando se aproximaram do muro circular. Uma voz proferiu um desafio. Jon saiu para a luz do archote. - Tenho de ir buscar água para o Senhor Comandante. - Então vá - disse o guarda. - E rápido - aninhado no interior do manto branco, com o capuz erguido contra o vento, o homem nem o olhou para ver se trazia um balde. Jon deslizou de lado entre duas estacas afiadas, enquanto Fantasma se esgueirava por baixo delas. Uma tocha tinha sido atirada para dentro de uma fenda, e suas chamas flamejavam como bandeiras de um tom laranja claro quando as rajadas de vento sopravam. Jon pegou-a enquanto se encolhia pela fenda entre as pedras. Fantasma desceu o monte correndo. Jon seguiu-o mais devagar, com a tocha erguida à frente enquanto descia. Os sons do acampamento desvaneceram-se às suas costas. A noite estava negra, e a encosta era íngreme, pedregosa e irregular. Uma desatenção momentânea seria o jeito certo de quebrar um tornozelo... ou o pescoço. O que estou fazendo?, perguntou-se enquanto procurava o caminho. As árvores erguiam-se por baixo, guerreiros com armaduras de casca e folha, alinhados em suas fileiras silenciosas à espera da ordem de atacar o monte. Pareciam negras... Era só quando a luz da tocha por elas passava que Jon vislumbrava um clarão de verde, Tenuemente, ouvia o som de água fluindo sobre rochas. Fantasma desapareceu na vegetação rasteira. Jon lutou para segui-lo, escutando o chamado do riacho, os suspiros das folhas ao vento. Raminhos agarraram-se ao seu manto, enquanto por cima de sua cabeça galhos mais grossos se entrelaçavam e escondiam as estrelas. Encontrou Fantasma bebendo do riacho - Fantasma, aqui. Já - quando o lobo gigante levantou a cabeça, seus olhos brilharam, vermelhos e sinistros, e água escorreu de suas mandíbulas como saliva. Naquele instante, havia nele 333 algo de feroz e terrível. E então partiu, passando por Jon aos saltos, correndo através das árvores. - Fantasma, não, fica - ele gritou, mas o lobo não prestou atenção. A esguia silhueta branca foi engolida pela escuridão, e Jon ficou apenas com duas possibilidades... Voltar a subir o monte, sozinho, ou segui-lo. Seguiu-o, zangado, segurando baixo a tocha, para conseguir ver as pedras que ameaçavam fazê-lo tropeçar a cada passo, as espessas raízes que pareciam se agarrar aos seus pés, os buracos onde um homem podia torcer o tornozelo. A cada par de metros voltava a chamar por Fantasma, mas o vento noturno rodopiava por entre as árvores e engolia as palavras. Isso é uma loucura, Jon pensou enquanto mergulhava mais profundamente entre as árvores. Estava quase voltando quando vislumbrou um clarão branco mais à frente e à direita, na direção do monte. Correu atrás dele, praguejando em voz baixa. Perseguiu o lobo por um quarto de hora ao redor do Punho antes de voltar a perdê-lo de vista. Por fim, parou para recuperar o fôlego em meio aos arbustos, espinheiros e pedras tombadas no sopé do monte. Para lá da luz da tocha, a escuridão apertava-se. Um som suave, como o de algo sendo arranhado, fez com que ele se virasse. Andou na direção do som, pondo os pés com cuidado entre pedregulhos e espinheiros. Atrás de uma árvore caída, voltou a encontrar Fantasma. O lobo gigante cavava furiosamente, arremessando terra para todos os lados. - O que encontrou? - Jon abaixou a tocha, e a luz lhe revelou um montículo arredondado de terra mole. Uma sepultura, pensou. Mas de quem? Jon se ajoelhou e espetou a tocha na terra a seu lado. A terra era solta, arenosa. Ele começou a cavar com as mãos. Não havia pedras nem raízes. O que quer que ali estivesse, tinha sido lá colocado recentemente. Meio metro mais abaixo, seus dedos tocaram em tecido. Esperara encontrar um cadáver, temera encontrá-lo, mas aquilo era outra coisa. Fez força contra o tecido e sentiu por baixo formas pequenas e duras, que não cediam, Não havia nenhum cheiro, nenhum sinal de vermes. Fantasma recuou e se sentou, observando. Jon sacudiu a terra solta, revelando uma trouxa arredondada com cerca de meio metro de diâmetro. Enfiou os dedos pelas beiradas e conseguiu soltá-la. Quando a puxou, o que quer que estivesse lá dentro deslocou-se e tiniu. Um tesouro, pensou, mas a forma não correspondia à de moeda, e o som não era o de metal. Um pedaço de corda gasta atava a trouxa. Jon desembainhou o punhal e a cortou, procurou cuidadosamente as extremidades do tecido e puxou. A trouxa se abriu, e seu conteúdo espalhou-se no chão, cintilando, escuro e brilhante. Viu uma dúzia de facas, pontas de lança em forma de folha, numerosas pontas de flecha. Jon pegou uma lâmina de punhal, leve como uma pena e de um negro brilhante, sem cabo. A luz da tocha correu ao longo de seu gume, uma fina linha laranja que indicava algo afiado como uma navalha. Vidro de dragão. Aquilo que os meistres chamam de obsidiana. Teria Fantasma descoberto algum antigo esconderijo dos filhos da floresta, ali enterrado há milhares de anos? O Punho dos Primeiros Homens era um lugar antigo, mas... Por baixo do vidro de dragão estava um velho corno de guerra, feito de chifre de auroque com faixas de bronze. Jon sacudiu-o, e uma torrente de pontas de flecha jorrou lá de dentro. Deixou-as cair, e puxou um canto do pano em que as armas tinham sido envolvidas, esfregando-o entre os dedos. Boa lã, espessa, de malha dupla, úmida, mas não apodrecida. Não podia ter ficado muito tempo no chão. E era escura. Agarrou um pedaço e aproximou-o do archote. Escura não. Negra. Mesmo antes de Jon se levantar e sacudir o que tinha na mão, sabia o que era: o manto negro de um Irmão Juramentado da Patrulha da Noite. 334 Bran Alebelly foi encontrá-lo na forja, trabalhando nos foles para Mikken. - Meistre o quer no torreão, senhor príncipe. Chegou uma ave do rei. - De Robb? Excitado, Bran não esperou por Hodor, e deixou que Alebelly subisse os degraus levando-o no colo. Era um homem grande, embora não tanto quanto Hodor, e nem de longe tão forte. Quando chegaram ao torreão do meistre, o homem tinha o rosto vermelho e arquejava. Rickon chegara antes deles, e ambos os Walder Frey também. Meistre Luwin mandou Alebelly embora e fechou a porta. - Senhores - disse em tom grave - , recebemos uma mensagem de Sua Graça, com boas e más notícias. Conseguiu uma grande vitória no oeste, desbaratando um exército Lannister num lugar chamado Cruzaboi, e tomou também vários castelos. Escreve-nos de Cinzamarca, anteriormente o castro da Casa Marbrand. Rickon puxou a toga do meistre: - Robb vem para casa? - Temo que não. Ainda há batalhas para lutar. - Foi Lorde Tywin que ele derrotou? - Bran perguntou. - Não - o meistre respondeu. - Quem comandava a tropa inimiga era Sor Stafford Lannister. Foi morto na batalha. Bran nunca ouvira falar de Sor Stafford Lannister. Acabou concordando com o Grande Walder quando ele disse: - Lorde Tywin é o único que importa. - Diga a Robb que quero que venha para casa - Rickon pediu. - Também pode trazer o lobo dele, e a mãe e o pai - embora soubesse que Lorde Eddard estava morto, às vezes Rickon se esquecia... e Bran suspeitava que fazia isso de propósito. O irmão mais novo era teimoso como só um garoto de quatro anos sabia ser, Bran sentia-se contente pela vitória de Robb, mas também inquieto. Lembrou-se do que Osha dissera no dia em que o irmão saíra de Winterfell à frente de seu exército. Ele marcha na direção errada, insistira a selvagem, - Infelizmente, não há vitória que não tenha seu preço - Meistre Luwin virou-se para os Walder, - Senhores, seu tio, Sor Stevron Frey, está entre aqueles que perderam a vida em Cruzaboi. Robb escreve que foi ferido na batalha. Não achavam que fosse algo sério, mas três dias mais tarde morreu na tenda enquanto dormia. Grande Walder encolheu os ombros: 335 - Era muito velho. Sessenta e cinco anos, acho eu. Velho demais para batalhas. Andava sempre dizendo que estava cansado. Pequeno Walder soltou um assobio: - Cansado de esperar que o nosso avô morra, você quer dizer. Isso significa que Sor Emmon é agora o herdeiro? - Não seja burro - o primo rebateu. - Os filhos do primogênito vêm antes do segundo filho. O seguinte na linha de sucessão é Sor Ryman, e depois Edwyn, e Walder Negro e Petyr Espinha. E depois Aegon, e todos os filhos dele. - Ryman também é velho - disse o Pequeno Walder. - Já passou dos quarenta, aposto. E tem uma barriga ruim. Acha que ele vai ser o senhor? - Eu serei o senhor. Não me interessa se ele é ou não. Meistre Luwin o interrompeu com intensidade: - Deveriam ter vergonha dessa conversa, senhores. Onde está o pesar de vocês? Seu tio está morto.
- Sim - disse o Pequeno Walder. - Estamos muito tristes. Mas não estavam. Bran teve uma sensação estranha na barriga. Gostam mais do sabor deste prato do que eu. Pediu ao Meistre Luwin licença para se retirar. - Muito bem - o meistre fez soar a sineta para que a ajuda viesse. Hodor devia estar ocupado nos estábulos. Foi Osha quem apareceu. Mas a mulher era mais forte do que Alebelly, e não teve problemas em erguer Bran nos braços e levá-lo degraus abaixo. - Osha - Bran perguntou enquanto atravessavam o pátio. - Você conhece o caminho para o norte? Até a Muralha e... e mesmo para além dela? - O caminho é simples. Procure o Dragão de Gelo e siga a estrela azul no olho do cavaleiro - ela atravessou uma porta de costas e começou a subir os degraus em espiral. - E ainda existem gigantes lá, e... o resto... os Outros, e também os filhos da floresta? - Os Gigantes eu vi, dos filhos ouvi falar em histórias, e os caminhantes brancos... Por que você quer saber? - Alguma vez viu um corvo com três olhos? - Não - ela riu. - E não posso dizer que queira vê-lo - Osha abriu a porta do quarto de Bran com um chute e colocou-o no banco da janela, de onde podia observar o pátio lá embaixo. Pareceu não se passar mais do que alguns instantes antes de a porta voltar a se abrir e Jojen Reed entrar sem ser convidado, com a irmã Meera logo atrás. - Ouviu falar do pássaro? - Bran perguntou. O outro rapaz fez que sim com a cabeça. - Não foi um jantar, como você disse. Foi uma carta de Robb, e não a comemos, mas... - Às vezes, os sonhos verdes tomam estranhas formas - Jojen admitiu. - A verdade que contêm nem sempre é fácil de compreender. - Conte-me a coisa ruim que sonhou - Bran pediu. - A coisa ruim que vem a caminho de Winterfell, - O senhor meu príncipe agora acredita em mim? Vai confiar em minhas palavras, por mais estranhas que pareçam aos seus ouvidos? Bran assentiu com um aceno. - O que vem a caminho é o mar. - O mar? - Sonhei que o mar ondulava ao redor de Winterfell. Vi ondas negras esmagando-se contra os portões e as torres, e depois a água salgada entrou por cima das muralhas e encheu o castelo. 336 Homens afogados boiavam no pátio. Quando sonhei o sonho pela primeira vez, ainda na Água Cinzenta, não conhecia seus rostos, mas agora conheço. Aquele Alebelly é um deles, o guarda que gritou os nossos nomes no banquete. Seu septão é outro. O ferreiro também. - Mikken? - Bran sentia-se tão confuso quanto consternado. - Mas o mar fica a centenas e centenas de milhas daqui, e as muralhas de Winterfell são tão altas que a água não poderia entrar, mesmo se viesse. - Na calada da noite, o mar salgado fluirá sobre essas muralhas - Jojen insistiu. - Vi os mortos, inchados e afogados. - Temos de contar para eles - Bran retrucou. - Para todos, Alebelly, Mikken e Septão Chayle. Contar para que eles não se afoguem. - Isso não os salvará - respondeu o rapaz vestido de verde. Meera veio até o banco da janela e pôs uma mão no ombro de Bran. - Eles não acreditarão, Bran. Não acreditarão mais do que você. Jojen sentou-se na cama. - Conte-me o que você sonhou. Bran sentia-se assustado, mesmo agora, mas tinha jurado confiar neles, e um Stark de Winterfell mantém a palavra dada. - Há vários tipos de sonhos - ele disse lentamente. - Há os sonhos de lobo; esses não são tão ruins quanto os outros. Corro, caço e mato esquilos. E há sonhos em que o corvo vem e me diz para voar. As vezes, a árvore também está nesses sonhos, chamando meu nome. Isso me assusta. Mas os piores sonhos são quando caio - olhou para baixo, para o pátio, sentindo-se infeliz. - Antes nunca caía. Quando escalava. Ia a todos os lados, pelos telhados e ao longo das paredes, costumava dar comida aos corvos na Torre Queimada. Minha mãe tinha medo de que eu caísse, mas eu sabia que nunca cairia. Só que caí, e agora, quando durmo, caio sempre. Meera deu um apertão em seu ombro. - É tudo? - Acho que sim. - Warg - Jojen Reed disse. Bran olhou para ele, com os olhos dilatados. - O quê? - Warg. Transmorfo. Lobisomem. É como o chamarão, se alguma vez ouvirem falar dos sonhos de lobo. Os nomes deixaram-no de novo com medo.
- Quem me chamará disso? - Seu próprio povo. Com medo. Alguns vão odiá-lo se souberem o que é. Alguns tentarão até mesmo matá-lo. A Velha Ama às vezes contava histórias assustadoras sobre lobisomens e transmorfos. Nas histórias, eles eram sempre malignos. - Eu não sou assim - Bran protestou. - Não sou. São só sonhos. - Os sonhos de lobo não são sonhos de verdade. Seu olho está bem fechado sempre que está acordado, mas, quando adormece, ele abre, e sua alma procura sua outra metade. O poder é forte em você. - Não o quero. Quero ser um cavaleiro, - Um cavaleiro é o que você quer ser. Um warg é o que você é. Não pode mudar isso, Bran, não pode negar ou deixar para lá. E o lobo alado, mas nunca voará - Jojen levantou-se e 337 caminhou até a janela. - A não ser que abra o seu olho - juntou dois dedos e bateu na testa de Bran, com força, Quando levou a mão ao local, Bran sentiu apenas a pele lisa e contínua. Não havia nenhum olho, nem mesmo um olho fechado. - Como posso abri-lo se não está aí? - Nunca vai encontrar o olho com os dedos, Bran. Você deve procurá-lo com o coração - Jojen estudou o rosto de Bran com aqueles estranhos olhos verdes, - Ou será que tem medo? - Meistre Luwin diz que não existe nada nos sonhos que um homem deva temer. - Existe, sim - Jojen discordou. - O quê? - O passado. O futuro. A verdade. Os irmãos o deixaram mais desnorteado que nunca. Quando ficou sozinho, Bran tentou abrir o terceiro olho, mas não sabia como. Por mais que enrugasse a testa e nela espetasse os dedos, não via de modo diferente do que antes. Nos dias que se seguiram, tentou prevenir os outros a respeito do que Jojen tinha dito, mas as coisas não correram como pretendia. Mikken achou a história engraçada. - O mar, é? Acontece que sempre quis ver o mar. Mas nunca fui a um lugar onde pudesse fazer isso. Então ele vem até mim, é? Os deuses são bons para se incomodarem tanto com um pobre ferreiro. - Os deuses vão me levar quando acharem adequado - Septão Chayle disse calmamente. - Embora pense ser pouco provável que me afogue, Bran. Cresci nas margens do Faca Branca, sabe? Sou um nadador bastante bom. Alebelly foi o único que prestou alguma atenção ao aviso. Foi falar com Jojen, e depois deixou de tomar banho e recusou-se a se aproximar do poço. Por fim, ficou tão malcheiroso que os outros guardas o atiraram para dentro de uma banheira de água escaldante e o esfregaram até ficar com a pele em carne viva, enquanto gritava que iam afogá-lo como o rapaz-rã tinha dito. Depois daquilo, começou a franzir a testa sempre que via Bran ou Jojen no castelo, e resmungava consigo mesmo. Foi alguns dias depois do banho de Alebelly que Sor Rodrik voltou a Winterfell com o prisioneiro, um jovem grande, com lábios gordos e úmidos e cabelo longo que cheirava como uma latrina, ainda pior do que Alebelly antes do banho. - Chamam-no de Fedor - disse Hayhead quando Bran perguntou quem era. - Nunca ouvi seu nome verdadeiro. Servia o bastardo de Bolton e o ajudou a assassinar a Senhora Hornwood, segundo dizem. Naquela noite, no jantar, Bran soube que o próprio bastardo estava morto. Os homens de Sor Rodrik tinham-no apanhado nas terras dos Hornwood fazendo qualquer coisa de horrível (Bran não tinha bem certeza do que, mas parecia ser algo que se fazia sem roupas) e tinham-no abatido com flechas quando tentara escapar. Mas tinham chegado tarde demais para salvar a pobre Senhora Hornwood. Depois do casamento, o Bastardo trancara-a numa torre e negligenciara sua alimentação. Bran ouviu homens dizendo que, quando Sor Rodrik arrombou a porta, a encontrou com a boca ensangüentada e os dedos arrancados às mordidas. - O monstro deixou-nos um nó cheio de espinhos - disse o velho cavaleiro a Meistre Luwin. - Quisesse ou não, a Senhora Hornwood era sua esposa. Obrigou-a a proferir os votos perante tanto um septão como uma árvore-coração, e deitou-se com ela naquela mesma noite, diante de testemunhas. Ela assinou um testamento nomeando-o herdeiro e nele afixou seu selo. - Votos proferidos sob a ameaça de uma espada não são válidos - contestou o meistre. 338 - Roose Bolton pode não concordar. Em especial quando há terras em questão - Sor Rodrik fez uma expressão infeliz. - Gostaria de também ter cortado a cabeça desse criado, ele é tão mau como seu senhor. Mas temo que tenhamos de mantê-lo vivo até que Robb volte de suas batalhas. É a única testemunha dos piores crimes do Bastardo. Talvez Lorde Bolton abandone a pretensão quando ouvir sua história; entretanto, temos cavaleiros Manderly e homens do Forte do Pavor matando-se uns aos outros nas florestas dos Hornwood, e faltam-me forças para obrigá-los a parar - o velho cavaleiro virou-se na cadeira e lançou a Bran um olhar severo. - E o que tem andado fazendo enquanto eu estive fora, senhor meu príncipe? Ordenando aos nossos guardas que não se lavem? Quer que cheirem como este Fedor, é isso? - O mar está vindo até aqui - Bran insistiu. - Jojen viu isso num sonho verde, Alebelly vai se afogar. Meistre Luwin pegou em sua corrente: - O rapaz Reed crê que vê o futuro nos sonhos, Sor Rodrik. Conversei com Bran sobre a incerteza de tais profecias, mas, a bem da verdade, há problemas ao longo da Costa Pedregosa. Corsários em dracares saqueando aldeias de pescadores. Violando e queimando. Leobald Tallhart enviou o sobrinho Benfred para lidar com eles, mas suponho que embarcarão em seus navios e fugirão assim que virem homens com armaduras. - É... Para atacar em outro lugar qualquer. Que os Outros levem todos esses covardes. Nunca se atreveriam, tal como o bastardo de Bolton, se a nossa força principal não estivesse a mil léguas para sul - Sor Rodrik olhou para Bran. - O que mais o rapaz lhe disse? - Disse que a água fluiria sobre as muralhas. Viu Alebelly afogado, e também Mikken e Septão Chayle. Sor Rodrik franziu o cenho. - Bem, assim sendo, caso tenha de avançar em pessoa contra esses corsários, não levarei Alebelly. Ele não me viu afogado, certo? Não? Ótimo. Ouvir aquilo encorajou Bran. Assim eles talvez não se afoguem, pensou. Se ficarem longe do mar, Meera achou o mesmo, mais tarde, naquela noite, quando, com Jojen, se encontrou com Bran em seu quarto para uma partida a três de jogo de pedras, mas o irmão discordou. - As coisas que vejo nos sonhos verdes não podem ser alteradas. Aquilo irritou a irmã. - Por que os deuses enviariam um aviso se não pudermos prestar atenção nele e mudar o que está por vir? - Não sei - Jojen respondeu com uma voz triste. - Se você fosse Alebelly, provavelmente iria atirá-lo em um poço para resolver o assunto! Deveríamos lutar, e Bran também. - Eu? - Bran sentiu-se de súbito com medo. - Com o que deveria eu lutar? Também vou me afogar? Meera olhou-o com um ar de culpa. - Eu não devia ter dito... Bran percebeu que ela estava escondendo alguma coisa: - Você me viu num sonho verde? - perguntou nervosamente a Jojen. - Estava afogado? - Afogado, não - Jojen falava como se cada palavra lhe doesse. - Sonhei com o homem que chegou hoje, aquele que chamam de Fedor. Você e seu irmão estavam mortos aos seus pés, e ele estava esfolando seus rostos com uma longa lâmina vermelha. 339 Meera pôs-se em pé. - Se eu fosse à masmorra, podia enfiar uma lança no coração dele. Como poderia assassinar Bran se estivesse morto? - Os carcereiros iriam impedi-la - Jojen lembrou-lhe. - E se lhes dissesse o motivo pelo qual o queria morto, nunca acreditariam. - Eu também tenho guardas - lembrou-lhes Bran. - Alebelly, Poxy Tym, Hayhead e os outros. Os olhos de musgo de Jojen estavam cheios de piedade. - Eles não serão capazes de impedi-lo, Bran. Não consegui ver por que, mas vi o fim. Vi você e Rickon em sua cripta, lá embaixo, no escuro, com todos os reis mortos e seus lobos de pedra. Não, Bran pensou. Não. - Se eu fosse embora... para a Água Cinzenta, ou para o corvo, para algum lugar distante onde não consigam me encontrar... - Não fará diferença. O sonho era verde, Bran, e os sonhos verdes não mentem. 340 Tyrion Varys estava em pé junto ao braseiro, aquecendo suas delicadas máos. - Parece que Renly foi assassinado de forma muito terrível no meio de seu exército. Sua garganta foi aberta de orelha a orelha por uma lâmina que passou por aço e osso como se fossem queijo mole. - Assassinado pelas mãos de quem? - Cersei quis saber. - Por acaso já pensou alguma vez que respostas demais são o mesmo que nenhuma resposta? Meus informantes nem sempre estão colocados em posições tão elevadas como se poderia desejar. Quando um rei morre, as fantasias germinam como cogumelos na escuridão, Um palafreneiro diz que Renly foi morto por um cavaleiro de sua própria Guarda Arco-íris. Uma lavadeira afirma que Stannis se esgueirou até o coração do exército do irmão com sua espada mágica. Vários homens de armas creem que foi uma mulher quem cometeu o terrível ato, mas não conseguem concordar quanto a que mulher. Uma donzela que Renly tinha desprezado, afirma um. Uma seguidora de acampamentos trazida para agradá-lo na véspera da batalha, diz um segundo. O terceiro sugere que pode ter sido a Senhora Catelyn Stark. A rainha não ficou contente. - Precisa desperdiçar nosso tempo com todos os rumores que os tolos gostam de contar? - Paga-me bem por esses rumores, minha graciosa rainha. - Pagamos o senhor pela verdade, Lorde Varys. Lembre-se disso, caso contrário este pequeno conselho pode ficar ainda menor. Varys soltou um risinho nervoso. - A senhora e seu nobre irmão acabarão deixando Sua Graça sem conselho algum se continuarem assim. - Atrevo-me a dizer que o reino pode sobreviver com alguns conselheiros a menos - interveio Mindinho com um sorriso. - Meu muito querido Petyr - Varys rebateu, - Não está preocupado com a possibilidade de o seu nome ser o próximo na lis tinha da Mão? - Antes do seu, Varys? Nunca sonharia com tal coisa, - Talvez nos tornemos irmãos na Muralha, os dois juntos, você e eu - Varys voltou a soltar um risinho. - Mais depressa do que você gostaria, se as próximas palavras a sair da sua boca não forem algo de útil, eunuco - pelo seu olhar, Cersei estava prestes a castrar Varys novamente. - Será que isso poderia ser um estratagema? - Mindinho perguntou. - Se for, é um estratagema de suprema esperteza - Varys respondeu. - A mim, ludibriou-me por completo. 341 Tyrion já tinha ouvido o suficiente: - Joff ficará tão desiludido. Estava guardando um espigão tão agradável para a cabeça de Renly. Mas, seja quem for que cometeu o ato, temos de assumir que Stannis esteve por trás. O ganho é claramente dele - não gostava daquela notícia; contara que os irmãos Baratheon se dizimariam numa batalha sangrenta. Sentia o cotovelo latejar no local em que a maça de guerra o abrira, As vezes isso acontecia, quando o tempo estava úmido. Apertou-o inutilmente com a mão e perguntou: - E a tropa de Renly? - A maior parte de sua infantaria permanece em Ponteamarga - Varys abandonou o braseiro para tomar seu lugar à mesa. - A maioria dos senhores que acompanharam o Lorde Renly até Ponta Tempestade passou para o lado de Stannis, com toda sua cavalaria. - Liderados pelos Florent, aposto - disse Mindinho. Varys dirigiu-lhe um sorriso afetado. - Ganharia, senhor. Lorde Alester foi de fato o primeiro a dobrar o joelho. Muitos outros o seguiram. - Muitos - Tyrion repetiu. - Mas não todos? - Não todos - concordou o eunuco. - Nem Loras Tyrell, nem Randyll Tarly, nem Mathis Rowan. E a própria Ponta Tempestade não se rendeu. Sor Cortnay Penrose detém o castelo em nome de Renly, e não quer acreditar que seu suserano está morto. Exige ver os restos mortais antes de abrir os portões, mas parece que o cadáver de Renly desapareceu inexplicavelmente. O mais provável é que tenha sido levado. Um quinto dos cavaleiros de Renly preferiu partir com Sor Loras a dobrar o joelho perante Stannis. Dizem que o Cavaleiro das Flores enlouqueceu quando viu o corpo do rei, e matou três dos guardas de Renly em sua ira, entre eles Emmon Cuy e Robar Royce. Uma pena que tenha parado no terceiro, Tyrion pensou. - Sor Loras está provavelmente a caminho de Ponteamarga - Varys prosseguiu. - A irmã, a rainha de Renly, encontra-se lá, bem como muitos soldados que de repente se viram sem rei. Que lado escolherão agora? Uma questão delicada. Muitos servem aos senhores que permaneceram em Ponta Tempestade, e esses senhores pertencem agora a Stannis. Tyrion inclinou-se para a frente: - Há aqui uma oportunidade, parece-me. Se conquistarmos Loras Tyrell para nossa causa, Lorde Mace Tyrell e seus vassalos poderão se juntar a nós também. Podem ter jurado espadas a Stannis por ora, mas não é possível que gostem do homem, caso contrário teriam sido seus desde o início. - Será o amor deles por nós maior? - Cersei quis saber. - Dificilmente - Tyrion respondeu. - Era claro que amavam Renly, mas Renly está morto. Talvez possamos lhes dar bons e suficientes motivos para preferir Joffrey a Stannis... se jogarmos depressa. - Que tipo de motivos pretende lhes dar? - Motivos de ouro - sugeriu Mindinho de imediato.
Varys soltou um tsc. - Querido Petyr, certamente não está sugerindo que aqueles poderosos senhores e nobres cavaleiros podem ser comprados como galinhas no mercado? - Tem ido aos nossos mercados nos últimos tempos, Lorde Varys? - perguntou Mindinho. - Atrevo-me a dizer que descobriria que é mais fácil comprar um senhor do que uma galinha. 342 Os senhores cacarejam com mais orgulho do que as galinhas, naturalmente, e levam a mal se lhes oferecer moedas como a um mercador, mas raramente mostram aversão a receber presentes... honrarias, terras, castelos... - Subornos podem trazer até nós alguns dos senhores menores - Tyrion interveio - , mas nunca Jardim de Cima, - É verdade - Mindinho admitiu. - O Cavaleiro das Flores é a chave disso. Mace Tyrell tem dois filhos mais velhos, mas Loras sempre foi seu preferido. Conquiste-o, e Jardim de Cima será seu. Sim, Tyrion concordou em pensamento. - Parece-me que devíamos aprender uma lição com o falecido Lorde Renly. Podemos conquistar a aliança dos Tyrell como ele fez. Com um casamento. Varys foi o primeiro a compreender: - Está pensando em casar Rei Joífrey com Margaery Tyrell. - Estou. Julgava recordar que a jovem rainha de Renly não tinha mais do que quinze ou dezesseis anos... Mais velha do que Joífrey, mas alguns anos não eram nada, o arranjo era tão limpo e doce que era capaz de saboreá-lo, - Joífrey está prometido a Sansa Stark - Cersei objetou. - Contratos de casamento podem ser quebrados. Que vantagem há em casar o rei com a filha de um traidor morto? Mindinho se interpôs: - Pode fazer Sua Graça notar que os Tyrell são muito mais ricos do que os Stark, e que dizem que Margaery é adorável... E, além disso, pronta para se deitar, - Sim - Tyrion concordou. - Joff deverá gostar bastante disso, - Meu filho é novo demais para se interessar por essas coisas. - Acha mesmo? - Tyrion a desafiou. - Tem treze anos, Cersei. A mesma idade que eu tinha quando me casei. - Envergonhou-nos todos com esse lamentável episódio. Joífrey é feito de material de melhor qualidade. - Tão boa que ordenou a Sor Boros que arrancasse o vestido de Sansa. - Estava zangado com a menina. - Também estava zangado com o aprendiz de cozinheiro que derramou a sopa ontem à noite, mas não o deixou nu, - Aquilo não era questão de um pouco de sopa derramada... Não, era questão de umas tetas bonitas. Depois do que acontecera no pátio, Tyrion conversou com Varys acerca de como poderiam arranjar as coisas para que Joífrey visitasse a casa de Chataya. Esperava que provar um pouco de mel pudesse adoçar o rapaz. Até poderia ficar grato, pelo amor dos deuses, e Tyrion não se importaria de receber um tiquinho a mais de gratidão do seu soberano. Teria de ser feito em segredo, naturalmente. A parte mais complicada seria separá-lo do Cão de Caça. - O cão nunca está longe dos calcanhares do dono - ele tinha dito a Varys mas todos os homens dormem, E alguns também jogam, e visitam prostitutas e tabernas. - Cão de Caça faz todas essas coisas, se é esta a sua pergunta. - Não - Tyrion retrucou. - Minha pergunta é quando. 343 Varys pusera um dedo no rosto, sorrindo enigmaticamente. - Senhor, um homem desconfiado poderia pensar que deseja encontrar um momento em que Sandor Clegane não esteja protegendo o Rei Joffrey, a fim de fazer algum mal ao rapaz. - Decerto me conhece melhor do que isso, Lorde Varys. Ora, tudo o que quero é que Joffrey goste de mim. O eunuco prometeu se debruçar sobre o assunto, Mas a guerra tinha suas exigências; a iniciação de Joffrey à condição viril teria de esperar. - Sem dúvida conhece seu filho melhor do que eu - Tyrion obrigou-se a dizer a Cersei - , mas, seja como for, há muitos argumentos a favor de um casamento com os Tyrell. Pode ser a única maneira de Joffrey viver tempo suficiente para chegar à noite de núpcias. Mindinho concordou: - A garota Stark não traz a Joffrey nada a não ser o corpo, por mais agradável que possa ser. Margaery Tyrell traz cinqüenta mil espadas e todo o poderio de Jardim de Cima. - E verdade - Varys apoiou sua mão macia na manga da rainha. - Tem um coração de mãe, e sei que Sua Graça ama sua queridinha. Mas os reis precisam aprender a pôr as necessidades do reino à frente de seus desejos. Afirmo que essa proposta tem de ser feita. A rainha afastou-se do toque do eunuco. - Não falariam assim se fossem mulheres. Digam o que quiserem, senhores, mas Joffrey é demasiado orgulhoso para se contentar com as sobras de Renly. Ele nunca consentirá. Tyrion encolheu os ombros: - Quando o rei chegar à idade adulta, dentro de três anos, pode dar ou retirar seu consentimento ao que bem entender. Até lá, você é sua regente e eu, a sua Mão, e ele se casará com quem quer que lhe dissermos para casar. Seja uma sobra ou não. A aljava de Cersei estava vazia. - Façam então sua proposta. Mas que os deuses os salvem se Joffrey não gostar dessa moça. - Estou tão contente por concordarmos - Tyrion fez-se de feliz. - E agora, qual de nós irá a Ponteamarga? Temos de chegar com a proposta a Sor Loras antes que seu sangue arrefeça. - Pretende mandar um membro do conselho? - Não tenho grande esperança de que o Cavaleiro das Flores lide com Bronn ou Shagga, não é? Os Tyrell são orgulhosos. A irmã não perdeu tempo para tentar virar a situação em seu proveito. - Sor Jacelyn Bywater é de nascimento nobre. Envie-o. Tyrion balançou a cabeça: - Precisamos de alguém que possa fazer algo mais do que repetir nossas palavras e trazer de volta uma resposta. Nosso enviado deve falar pelo rei e pelo conselho, e acertar o assunto rapidamente. - A Mão fala com a voz do rei - a luz das velas brilhava verde como fogovivo nos olhos de Cersei. - Se o enviarmos, Tyrion, seria como se Joffrey fosse em pessoa. E quem poderia ser mais adequado? Brande palavras com tanta habilidade como Jaime brande a espada. Está assim tão ansiosa por me tirar da cidade, Cersei? - E muita bondade sua, irmã, mas parece-me que a mãe de um rapaz está em melhores condições para combinar seu casamento do que um tio qualquer. E você tem um dom para conquistar amigos que nunca poderei ter esperança de igualar. Os olhos dela se estreitaram. 344 - Joff precisa de mim ao seu lado. - Vossa Graça, senhor Mão - Mindinho entrou na conversa. - O rei precisa de ambos aqui. Deixem-me ir. - Você? - Que vantagem ele vê nisto?, Tyrion perguntou a si mesmo. - Pertenço ao conselho do rei, mas não sou de seu sangue, portanto, seria um refém ruim. Conheci Sor Loras razoavelmente bem quando esteve aqui na corte, e não lhe dei motivo para não se simpatizar comigo. Mace Tyrell não tem inimizade por mim, que eu saiba, e gabo-me de possuir certa habilidade para negociação. Ele nos tem na mão, Tyrion não confiava em Petyr Baelish, nem queria que o homem ficasse longe de sua vista, mas, que outra possibilidade restava? Tinha de ser. Ou Mindinho ou ele próprio, e Tyrion sabia perfeitamente bem que se deixasse Porto Real durante algum tempo, tudo o que conseguiu realizar seria desfeito. - Luta-se entre Porto Real e Ponteamarga - ele disse cautelosamente. - E pode ter absoluta certeza de que Lorde Stannis enviará seus próprios pastores a fim de reunir os cordeiros transviados do irmão. - Nunca me assustei com pastores. São as ovelhas que me perturbam. Mesmo assim, suponho que uma escolta talvez seja necessária. - Posso dispensar uma centena de mantos dourados - Tyrion concordou. - Quinhentos. - Trezentos. - E mais quarenta... Vinte cavaleiros com a mesma quantidade de escudeiros. Se chegar sem comitiva de cavaleiros, os Tyrell vão me julgar pouco importante. Era verdade. - De acordo. - Incluirei no grupo Babeiro e Horror, e vou mandá-los depois ao senhor seu pai. Um gesto de boa vontade. Precisamos de Paxter Redwyne, ele é o mais velho amigo de Mace Tyrell, e um grande poder por si só. - E um traidor - rebateu a rainha, contrariada. - A Árvore teria se declarado por Renly como todos os outros se esse Redwyne não soubesse perfeitamente que seus filhos sofreriam por isso. - Renly está morto, Vossa Graça - ressaltou Mindinho. - E nem Stannis nem Lorde Paxter terão esquecido como as galés Redwyne fecharam o mar durante o cerco a Ponta Tempestade. Devolva seus gêmeos, e talvez possamos ganhar a amizade dos Redwyne. Cersei não ficou convencida: - Os Outros podem ficar com a sua amizade, só quero as espadas e velas. Agarrar-nos bem a esses gêmeos é a melhor forma de termos certeza de que as obteremos. Tyrion tinha resposta para aquilo: - Então enviemos Sor Hobber para a Árvore, e fiquemos com Sor Horas aqui. Lorde Paxter deverá ser suficientemente inteligente para desvendar o significado que isso tem, creio eu. A sugestão foi aceita sem protestos, mas Mindinho não tinha terminado: - Vamos precisar de cavalos. Rápidos e fortes. A luta tornará difícil a troca de montarias. Um amplo fornecimento de ouro também será necessário, para aqueles presentes de que falamos antes. - Leve tanto quanto necessário. De qualquer forma, se a cidade cair, Stannis vai roubar tudo. 345 - Vou querer a minha incumbência por escrito. Um documento que não deixe qualquer dúvida a Mace Tyrell quanto à minha autoridade, dando-me plenos poderes para negociar com ele aquilo que diz respeito a esse casamento e a quaisquer outras disposições que possam ser necessárias, e para dar garantias seguras em nome do rei. Deverá ser assinado por Joffrey e por todos os membros deste conselho, e deverá levar todos os nossos selos. Tyrion moveu-se desconfortavelmente na cadeira: - De acordo. E tudo? Lembro-lhe de que a estrada daqui a Ponteamarga é longa. - Estarei cavalgando por ela antes do romperia aurora - Mindinho levantou-se. - Confio que, no meu retorno, o rei tratará de me recompensar adequadamente pelos valentes esforços despendidos em prol de sua causa? Varys soltou um risinho. - Joffrey é um soberano tão cheio de gratidão que estou certo de que não terá do que reclamar, meu bom e bravo senhor. A rainha era mais direta. - O que quer, Petyr? Mindinho olhou de relance para Tyrion com um sorriso astuto. - Terei de pensar sobre o assunto durante algum tempo. Não tenho dúvidas de que pensarei em algo - esboçou uma reverência petulante e retirou-se de uma forma tão casual como se estivesse se dirigindo a um de seus bordéis. Tyrion olhou de relance pela janela. O nevoeiro era tão denso que sequer conseguia ver a muralha exterior do outro lado do pátio. Algumas luzes tênues brilhavam, indistintas, através de todo aquele cinza. Um dia desagradável para viajar, pensou, Não invejava Petyr Baelish. - É melhor que tratemos de providenciar esses documentos. Lorde Varys, mande buscar pergaminho e penas. E alguém terá de acordar Joffrey. Ainda estava cinzento e escuro quando a reunião finalmente chegou ao fim, Varys debandou sozinho, com os chinelos moles apressando-se pelo chão afora. Os Lannister demoraram-se um momento junto à porta. - Como anda sua corrente, irmão? - perguntou a rainha, enquanto Sor Preston prendia aos seus ombros um manto de pano de prata forrado de penas. - Elo a elo, vai crescendo. Deveríamos agradecer aos deuses por Sor Cortnay Penrose ser tão teimoso como é. Stannis nunca marchará para o norte deixando Ponta Tempestade sem ter sua retaguarda tomada, - Tyrion, sei que nem sempre concordamos quanto aos planos de ação, mas parece que me enganei a seu respeito. Não é um tolo tão grande como imaginava, Na verdade, percebo agora que tem sido uma grande ajuda. Por isso agradeço-lhe. Tem de me perdoar se falei de forma desagradável com você no passado. - Ah, tenho? - ele dirigiu um encolher de ombros, e um sorriso à irmã. - Querida irmã, você não disse nada que precise de perdão. - Refere-se a hoje? Ambos riram... e Cersei inclinou-se e plantou um beijo rápido e suave na testa do irmão. Espantado demais para falar, Tyrion só conseguiu vê-la sair da sala a passos largos, com Sor Preston ao seu lado. - Perdi o juízo, ou minha irmã acabou de me dar um beijo? - perguntou a Bronn depois de ela sair. 346 - Foi assim tão bom? - Foi... inesperado - Cersei andava se comportando estranhamente nos últimos tempos. Tyrion achava esse fato muito perturbador. - Estou tentando me lembrar da última vez que me beijou. Não podia ter mais do que seis ou sete anos. Jaime a havia desafiado a fazê-lo. - A mulher reparou finalmente nos seus encantos. - Não - Tyrion discordou. - Não, a mulher está tramando alguma. É melhor descobrir o que, Bronn, Sabe que detesto surpresas. 347
Theon limpou o cuspe do rosto com as costas da mão. - Robb vai arrancar suas tripas, Greyjoy - Benfred Tallhart gritou. - Vai dar seu coração de vira-casaca ao lobo, seu pedaço de estrume de ovelha. A voz de Aeron Cabelo-Molhado cortou através dos insultos como uma espada fatia o queijo. - Agora tem de matá-lo. - Primeiro, tenho perguntas a lhe fazer. - Que se fodam as suas perguntas - Benfred pendia, sangrando e impotente, entre Stygg e Werlag. - Vai se engasgar com elas antes de receber respostas de mim, covarde. Vira-casaca. Aeron, seu tio, mostrou-se inflexível: - Quando cospe em mim, cospe em todos nós. Cospe no Deus Afogado. Tem de morrer. - Meu pai deu a mim o comando aqui, tio. - E enviou-me para aconselhá-lo. E para me vigiar, Theon não se atrevia a levar as coisas longe demais com o tio. O comando era seu, sim, mas os homens tinham uma fé no Deus Afogado que não tinham nele, e Aeron Cabelo-Molhado apavorava-os. Não posso censurá-los por isso. - Vai perder a cabeça por isso, Greyjoy. Os corvos vão comer a geleia de seus olhos - Benfred tentou voltar a cuspir, mas só conseguiu lançar um pouco de sangue. - Que os Outros enrabem seu Deus Molhado, Tallhart, acaba de cuspir sua vida fora, Theon pensou. - Stygg, silencie-o - ele ordenou. Forçaram Benfred a se ajoelhar, Werlag arrancou a pele de coelho do seu cinto e a enfiou entre seus dentes para calar os gritos. Stygg preparou o machado. - Não - Aeron Cabelo-Molhado interveio. - Ele deve ser dado ao deus. Pelo costume antigo. Que importa? Morte é morte. - Então, leve-o. - Você também deve vir. Você comanda aqui. A oferenda deve vir de você. Aquilo era mais do que Theon era capaz de agüentar. - Você é o sacerdote, tio, deixo o deus com você. Faça a mesma delicadeza e deixe as batalhas comigo - fez um gesto com a mão e Werlag e Stygg puseram-se a caminho da costa, arrastando o prisioneiro. Aeron Cabelo-Molhado lançou um olhar de reprovação ao sobrinho, e depois os seguiu. Iriam até a praia de cascalho, a fim de afogar Benfred Tallhart em água salgada. Aquele era o costume antigo. 348 Talvez isso seja uma gentileza, disse Theon a si mesmo enquanto se afastava a passos largos na outra direção. Stygg não era, nem de longe, o mais hábil dos decapitadores, e Benfred tinha um pescoço grosso como o de um touro, cheio de músculo e gordura. Costumava zombar dele por causa disso, só para ver até que ponto conseguia irritá-lo, recordou-se. Isso tinha sido quando? Há três anos? Quando Ned Stark tinha ido à Praça de Torrhen visitar Sor Helman, Theon o acompanhara e passara uma quinzena na companhia de Benfred. Ouvia os rudes sons da vitória, vindos da curva na estrada onde a batalha tinha sido travada... Se é que se podia chamar aquilo de batalha. Para falar a verdade, foi mais uma matança de ovelhas. Ovelhas cobertas de aço, mas, mesmo assim, ovelhas. Subindo um monte de pedras, Theon olhou os homens mortos e cavalos moribundos embaixo. Os cavalos mereciam coisa melhor do que aquilo. Tymor e os irmãos reuniam as montarias que tinham saído incólumes da luta, enquanto Urzen e Lorren Negro silenciavam os animais feridos demais para serem salvos. O resto de seus homens pilhava os cadáveres. Gevin Harlaw ajoelhou sobre o peito de um morto, cortando um dedo dele para obter um anel. Pagando o preço de ferro. O senhor meu pai aprovaria. Theon pensou em vasculhar os bolsos dos dois homens que matara para ver se possuíam alguma joia que valesse a pena levar, mas a idéia lhe deixou um gosto amargo na boca. Era capaz de imaginar o que Eddard Stark teria dito. Mas esse pensamento também o zangou. Stark está morto e apodrecendo, e não é nada para mim, recordou-se. O Velho Botley, a quem chamavam Barbas-de-Peixe, sentava-se de cenho franzido junto à sua pilha de despojos enquanto os três filhos juntavam mais coisas. Um deles estava num jogo de empurra com um gordo chamado Todric, que cambaleava entre os mortos com um corno de cerveja numa mão e um machado na outra, vestido com um manto de pele branca de raposa só ligeiramente manchado pelo sangue de seu dono anterior. Bêbado, declarou Theon, vendo-o berrar. Dizia-se que os homens de ferro de antigamente ficavam com freqüência bêbados de sangue em batalha, tão enlouquecidos que não sentiam dor nem temiam nenhum inimigo, mas aquela era uma bebedeira de cerveja comum.
- Wex, meu arco e a aljava. O rapaz trouxe correndo o que lhe fora pedido. Theon dobrou o arco e enfiou a corda nos entalhes no momento em que Todric atirava o filho de Botley ao chão e jogava cerveja em seus olhos. Barbas-de-Peixe ficou em pé de um salto, praguejando, mas Theon foi mais rápido. Apontou para a mão que segurava o corno, planejando mostrar-lhes um tiro digno de ser comentado, mas Todric estragou seus planos inclinando-se para o lado no momento em que Theon soltava a corda. A flecha atingiu-o na barriga. Os homens pararam a pilhagem e ficaram boquiabertos. Theon abaixou o arco. - Eu disse que não queria bêbados nem querelas por causa do saque - de joelhos, Todric morria ruidosamente, - Botley, silencie-o - Barbas-de-Peixe e os filhos foram rápidos para obedecer, Abriram a garganta de Todric enquanto ele escoiceava debilmente, e começaram a despojá-lo do manto e dos anéis ainda antes de estar morto. Agora sabem que o que digo é a sério. Lorde Balon podia ter lhe dado o comando, mas Theon sabia que alguns de seus homens viam apenas um rapaz mole das terras verdes quando olhavam para ele. - Alguém mais tem sede? - ninguém respondeu. - Ótimo. Deu um pontapé no estandarte caído de Benfred, preso à mão morta do escudeiro que o transportava. Uma pele de coelho tinha sido atada por baixo da bandeira. Por que peles de coelho?, ele quisera perguntar, mas ser cuspido tinha feito com que se esquecesse das perguntas. 349 Jogou o arco para Wex e afastou-se a passos largos, lembrando-se de como se sentira exultante após o Bosque dos Murmúrios, e perguntando a si mesmo por que isso, agora, não tinha um gosto tão bom. Tallhart, seu maldito tolo demasiado orgulhoso, nem sequer enviou um homem para hater o terreno. Vinham trocando piadas e até cantando enquanto se aproximavam, com as três árvores de Tallhart flutuando acima deles, enquanto peles de coelho balançavam estupidamente, presas às pontas das lanças. Os arqueiros escondidos atrás dos tojos tinham estragado a canção com uma chuva de flechas, e o próprio Theon liderara o ataque dos homens de armas para acabar a carnificina com punhais, machados e martelos de guerra. Tinha ordenado que o líder fosse poupado para ser interrogado. Mas não esperara que fosse Benfred Tallhart. Seu corpo sem vida estava sendo arrastado para fora das ondas quando Theon regressou ao Cadela do Mar. Os mastros de seus dracares delineavam-se contra o céu ao longo da praia pedregosa. Da aldeia de pescadores nada restava além de cinzas frias que fediam quando chovia. Os homens tinham sido passados na espada, todos, exceto um punhado que Theon deixara fugir a fim de levar a notícia até Praça de Torrhen. As esposas e filhas, aquelas que eram suficientemente jovens e bonitas, tinham sido mantidas vivas como esposas de sal. As velhas e as feias foram simplesmente violadas e mortas, ou capturadas como servas se possuíssem aptidões úteis e não parecessem dispostas a causar problemas. Theon também havia planejado aquele ataque, trazendo os navios ao longo da costa na escuridão gelada que antecedera a alvorada, e saltando da proa com um machado de cabo longo na mão para liderar seus homens no ataque à aldeia adormecida. Não gostava do sabor de nada daquilo, mas, que escolha tinha? Sua três vezes maldita irmã conduzia o Vento Negro para o norte naquele exato instante, certa de conquistar para si um castelo. Lorde Balon não deixara que nenhuma notícia sobre a reunião da frota escapasse das Ilhas de Ferro, e o trabalho sangrento de Theon ao longo da Costa Pedregosa seria atribuído a piratas em busca de saque. Os nortenhos não perceberiam o verdadeiro perigo em que se encontravam antes que os martelos caíssem sobre Bosque Profundo e Fosso Cailin. E depois de tudo feito e conquistado, farão canções para aquela cadela da Asha, e vão se esquecer de que estive aqui. Isto é, se assim ele permitir. Dagmer Boca Rachada estava ao lado da grande proa esculpida do seu dracar, Bebedor de Espuma. Theon confiara-lhe a tarefa de guardar os navios; de outra forma, os homens teriam dito que aquela era uma vitória de Dagmer, e não sua. Um homem mais suscetível teria tomado aquilo como uma desfeita, mas Boca Rachada apenas riu. - O dia está ganho - gritou Dagmer para baixo. - E, no entanto, não sorri garoto? Os vivos devem sorrir, porque os mortos não podem - e sorriu, para mostrar como se fazia. Era uma visão hedionda. Sob uma cabeleira branca como a neve, Dagmer Boca Rachada tinha a cicatriz mais repugnante que Theon jamais tinha visto, o legado do machado que quase o matara quando criança. O golpe tinha rachado seu maxilar, estilhaçado os dentes da frente e o deixado com quatro lábios onde os outros homens não tinham mais que dois. Uma barba hirsuta cobria seu rosto e seu pescoço, mas os pelos não cresciam sobre a cicatriz, e um veio brilhante de carne pregueada e retorcida dividia seu rosto como uma fenda num campo de neve. - Conseguíamos ouvi-los cantando - disse o velho guerreiro. - Era uma boa canção, e cantaram-na bravamente. - Cantavam melhor do que lutavam. Harpas teriam servido tão bem a eles como as lanças serviram.
350 - Quantos homens foram perdidos? - Dos nossos? - Theon encolheu os ombros. - Todric. Matei-o por se embebedar e lutar pelo saque. - Há homens que nasceram para ser mortos. Um homem menor teria tido receio de mostrar um sorriso tão assustador como o dele, mas Dagmer sorria mais freqüente e largamente do que Lorde Balon alguma vez sorrira. Feio como era, aquele sorriso trazia de volta diversas recordações. Theon via-o freqüentemente quando garoto, quando saltava a cavalo por cima de um muro coberto de musgo, ou atirava um machado e rachava um alvo. Viu-o quando bloqueou um golpe da espada de Dagmer, quando atingiu uma gaivota em voo com uma flecha, quando tomou a cana do leme na mão e guiou um dracar em segurança por entre um emaranhado de rochedos cobertos de espuma. Ele deu-me mais sorrisos do que meu pai e Eddard Stark juntos. Até Robb... Devia ter ganhado um sorriso naquele dia em que salvara Bran daquele selvagem, mas, em vez disso, recebera uma descompostura, como se fosse algum cozinheiro que tivesse deixado queimar o guisado. - Você e eu temos de conversar, tio - disse Theon. Dagmer não era um tio de verdade, só um homem juramentado com talvez uma pitada de sangue Greyjoy de quatro ou cinco vidas atrás, e ainda por cima vindo do lado errado dos lençóis. Apesar disso, Theon sempre o chamara de tio. - Então suba ao meu convés - não havia senhores vindos de Dagmer, em especial quando ele se encontrava em seu convés. Nas Ilhas de Ferro, cada capitão era um rei a bordo de seu navio. Theon subiu a prancha que levava ao convés do Bebedor de Espuma em quatro longas passadas, e Dagmer o levou até a pequena cabine de popa, onde se serviu de um corno de cerveja amarga e ofereceu outro ao jovem, que declinou. - Não capturamos cavalos suficientes. Alguns, mas... Bem, suponho que o que tenho terá de servir. Menos homens significam mais glória, - Que necessidade temos de cavalos? - tal como a maior parte dos homens de ferro, Dagmer preferia lutar a pé ou do convés de um navio. - Os cavalos só irão cagar em nossos conveses e ficar na nossa frente. - Se continuássemos no mar, sim - admitiu Theon. - Tenho um plano diferente - observou o outro com cuidado para ver como encarava aquilo. Sem Boca Rachada não podia ter esperança de ser bem-sucedido. Com ou sem o comando, os homens nunca o seguiriam se tanto Aeron como Dagmer se opusessem a ele, e não tinha esperança de conquistar o sacerdote de cara amarga, - O senhor seu pai ordenou-nos que assolássemos a costa, nada mais. Olhos claros como espuma marinha observaram Theon por baixo daquelas hirsutas sobrancelhas brancas. Seria desaprovação que via ali, ou uma cintilação de interesse? Esta última, pensava... esperava... - É um homem do meu pai. - Seu melhor homem, sempre fui. Orgulho, pensou Theon, Ele é orgulhoso, tenho de usar isso, seu orgulho será a chave. - Não há nenhum homem nas Ilhas de Ferro com metade da habilidade com a lança ou a espada, - Esteve longe por tempo demais, rapaz. Quando partiu, era como você diz, mas envelheci a serviço de Lorde Greyjoy. Os cantores dizem agora que Andrik é o melhor. Andrik, O Que Não Sorri, chamam-no. Um homem gigantesco. Serve ao Lorde Drumm da Velha Wyk. E Lorren Negro e Qarl, o Donzela, são quase igualmente terríveis. - Esse Andrik pode ser um grande guerreiro, mas os homens não o temem como a você. 351 - Sim, é verdade - Dagmer respondeu. Os dedos enrolados em volta do corno estavam pesados de tantos anéis, de ouro, prata e bronze, incrustados com pedaços de safira, granada e vidro de dragão. Theon sabia que ele pagara o preço de ferro a cada um deles. - Se tivesse um homem como você ao meu serviço, não o desperdiçaria nessa criancice de saquear e queimar. Este não é um serviço para o melhor homem de Lorde Balon... O sorriso de Dagmer retorceu seus lábios e os afastou para mostrar as lascas marrons de seus dentes. - Nem para o seu filho legítimo? - soltou. - Conheço-o bem demais, Theon. Vi-o dar seu primeiro passo, ajudei-o a dobrar seu primeiro arco. Não sou eu quem se sente desperdiçado. - Por direito, eu devia ter o comando da minha irmã - admitiu, desconfortavelmente consciente de como aquilo soava como um choramingo. - Leva esse assunto a sério demais, garoto. É só que o senhor seu pai não o conhece. Com seus irmãos mortos e você levado pelos lobos, sua irmã foi seu consolo. Aprendeu a confiar nela, e ela nunca lhe falhou. - Nem eu. Os Stark conhecem meu valor. Fui um dos batedores selecionados por Brynden Peixe Negro, e participei da primeira investida no Bosque dos Murmúrios. Fiquei a esta distância de cruzar espadas com o próprio Regicida - Theon separou as mãos meio metro. - Daryn Hornwood interpôs-se entre nós, e morreu por isso.
- Por que me conta isso? - Dagmer quis saber. - Fui eu quem pôs a primeira espada na sua mão. Sei que não é nenhum covarde. - E meu pai, sabe? O velho e grisalho guerreiro parecia ter mordido alguma coisa cujo sabor não lhe agradava. - É só que... Theon, o Rapaz Lobo é seu amigo, e esses Stark tiveram-no durante dez anos. - Não sou nenhum Stark - Lorde Eddard assegurou-se disso. - Sou um Greyjoy, e pretendo ser herdeiro de meu pai. Como posso fazer isso a menos que prove meu valor com algum grande feito? - É jovem. Outras guerras virão, e terá seus grandes feitos. Por ora, foi-nos ordenado que assolemos a Costa Pedregosa. - Que meu tio Aeron trate disso. Darei seis navios a ele, todos, menos Bebedor de Espuma e Cadela do Mar, e poderá queimar e afogar gente até deixar seu deus empanturrado. - O comando foi dado a você, não a Aeron Cabelo-Molhado. - Desde que a pilhagem aconteça, que importa? Nenhum sacerdote seria capaz de realizar o que pretendo fazer, nem a incumbência que lhe dou. Tenho uma tarefa que só Dagmer Boca Rachada pode realizar. Dagmer bebeu um grande gole de seu corno: - Conte-me. Está tentado, pensou Theon. Não gosta desse trabalho de corsário mais do que eu. - Se minha irmã pode tomar um castelo, eu também posso. - Asha tem quatro ou cinco vezes mais homens do que nós. Theon permitiu-se um sorriso astuto, - Mas nós temos quatro vezes mais inteligência, e cinco vezes mais coragem. - Seu pai... - ... vai me agradecer, quando lhe entregar o seu reino. Pretendo realizar um feito sobre o qual os harpistas cantarão durante mil anos. Sabia que aquilo faria Dagmer hesitar. Um cantor tinha feito uma canção sobre o machado que rachara seu maxilar ao meio, e o velho adorava ouvi-la. Sempre que estava bêbado, gritava 352 por uma canção de saque, algo sonoro e tempestuoso que falasse de heróis mortos e feitos de grande valor. Tem cabelos brancos e dentes podres, mas ainda possui gosto pela glória. - Qual seria o meu papel nesse seu plano, garoto? - Dagmer Boca Rachada falou após um longo silêncio, e Theon soube que tinha ganhado. - Inspirar o terror no coração do inimigo, como só alguém com seu nome será capaz de fazer. Levará a maior parte de nossas forças e marchará sobre Praça de Torrhen. Helman Tallhart levou os melhores homens para o sul, e Benfred morreu aqui com os filhos deles. Tio Leobald ainda estará lá, com uma pequena guarnição - se tivesse tido oportunidade de interrogar Benfred, saberia precisamente quão pequena é, - Não mantenha segredo sobre sua aproximação. Cante todas as bravas canções que quiser. Quero que fechem os portões. - Esta Praça de Torrhen é uma fortaleza forte? - Bastante forte. As muralhas são de pedra, com nove metros de altura, torres quadradas nos cantos e uma fortaleza quadrada lá dentro. - Não é possível incendiar muralhas de pedra. Como poderemos tomá-las? Não temos homens suficientes sequer para assaltar um castelo pequeno. - Montará acampamento junto às muralhas e começará a construir catapultas e máquinas de cerco. - Isso não é o Costume Antigo. Esqueceu? Os homens de ferro lutam com espadas e machados, não com o arremesso de pedras, Não há glória nenhuma em matar um inimigo de fome, - Leobald não saberá disso. Quando o vir erguendo torres de cerco, seu sangue de velha gelará, e ele balirá por ajuda. Segure os arqueiros, tio, e deixe o corvo voar, O castelão em Winterfell é um homem corajoso, mas a idade endureceu sua inteligência tanto quanto seus membros. Quando souber que um dos vassalos de seu rei está sob ataque do temível Dagmer Boca Rachada, reunirá suas forças para ir socorrer Tallhart. É o dever dele. Se tem uma coisa que Sor Rodrik faz bem, é cumprir seu dever. - Qualquer força que ele reúna será maior do que a minha - Dagmer rebateu. - E esses velhos cavaleiros são mais astutos do que você pensa, caso contrário nunca teriam sobrevivido para ver o primeiro cabelo branco. Envia-nos para uma batalha que não podemos esperar vencer, Theon. Essa Praça de Torrhen nunca cairá. Theon sorriu, - Não é Praça de Torrhen que pretendo tomar. 353 Arya A confusão e o ruído dominavam o castelo. Havia homens em pé em carroças, carregando barris de vinho, sacas de farinha e feixes de flechas recém-feitas. Ferreiros endireitavam espadas, removiam amassados de placas de peito e ferravam tanto corcéis como mulas de carga.
Cotas de malha eram atiradas para dentro de barris de areia e roladas pela superfície granulosa do Pátio das Lâminas para ser limpas. As mulheres de Weese tinham vinte mantos para remendar e mais cem para lavar. Os grandes e os humildes aglomeravam-se juntos no septo para rezar. Fora das muralhas, tendas e pavilhões eram desmontados. Escudeiros atiravam baldes de água sobre as fogueiras, enquanto soldados sacavam suas pedras de amolar a fim de dar às suas lâminas uma última e boa afiada. O ruído era como a maré enchendo: cavalos resfolegando e relinchando, senhores gritando ordens, homens de armas trocando pragas, seguidoras de acampamentos discutindo. Lorde Tywin Lannister ia, enfim, pôr-se em marcha. Sor Addam Marbrand foi o primeiro dos capitães a partir, um dia antes dos outros. Fez disso um galante espetáculo, montando um corcel vermelho temperamental, cuja crina tinha a mesma cor acobreada dos cabelos longos que fluíam até abaixo dos ombros de seu montador. O cavalo usava arreios de bronze, tingidos para combinar com o manto do cavaleiro e decorados com a árvore em chamas. Algumas das mulheres do castelo soluçaram ao vê-lo partir. Weese disse que era um grande cavaleiro e espadachim, o mais ousado dos comandantes de Lorde Tywin. Espero que morra, Arya pensou enquanto o via sair pelo portão, com os homens o seguindo numa coluna dupla. Espero que morram todos. Sabia que iam lutar contra Robb. Escutando as conversas enquanto trabalhava, Arya ficou sabendo que Robb tinha conquistado uma grande vitória qualquer no ocidente, Que queimara Lanisporto, diziam alguns, ou que pretendera queimar. Que capturara Rochedo Casterly e passara a espada em todo mundo, ou que estava cercando o Dente Dourado... mas alguma coisa tinha acontecido, pelo menos isso era certo. Weese tinha feito Arya entregar mensagens da alvorada ao crepúsculo. Algumas até a levaram para lá das muralhas do castelo, até o meio da lama e da loucura do acampamento. Podia fugir, pensou quando uma carroça passou por ela com estrondo. Podia saltar para a parte de trás de uma carroça e me esconder, ou juntar-me às seguidoras de acampamentos, ninguém me impediria. Poderia ter feito isso se não fosse Weese. Disse a ela mais de uma vez o que faria a quem quer que tentasse escapar dele. - Não vai ser um espancamento, ah, não. Não vou encostar um dedo em você. Vou só guardá-la para o qohorano, ah, se guardo, guardo-a para o Estropiador. Seu nome é Vargo Hoat e, quando voltar, vai cortar seus pés - talvez, se Weese estivesse morto, pensava Arya... mas não enquanto ele estivesse presente. Era capaz de olhar e cheirar o que qualquer um que estivesse perto pudesse estar pensando, dizia sempre. 354 Mas Weese nunca imaginou que ela soubesse ler, e nunca se incomodou em selar as mensagens que lhe dava. Arya espiava todas, mas nunca eram nada de bom, só coisas bestas, enviar este carro para o celeiro e aquele para o armeiro. Uma era uma exigência de pagamento de uma dívida de jogo, mas o cavaleiro a quem a deu não sabia ler. Quando lhe falou o que dizia, tentou bater nela, mas Arya esquivou-se do golpe, abaixando-se, tirou de sua sela um corno de beber com taixas de prata, e fugiu. O cavaleiro rugiu e veio atrás dela, mas Arya se esgueirou por entre dois carros, abriu caminho pelo meio de um aglomerado de arqueiros e saltou por cima de uma fossa. Com a cota de malha vestida, ele não conseguiu acompanhá-la, Quando deu o corno a Weese, ele lhe disse que uma pequena Doninha esperta como ela merecia uma recompensa: - Estou de olho num capão rechonchudo e estaladiço para o jantar de hoje. Vamos dividi-lo, você e eu. Vai gostar. Onde quer que fosse, Arya procurava por Jaqen Hghar, desejando sussurrar-lhe outro nome antes que aqueles que odiava estivessem todos para lá de seu alcance mas, no meio do caos e confusão, o mercenário de Lorath não se encontrava em lugar nenhum. Ainda lhe devia duas mortes, e ela se preocupava com a hipótese de nunca obtê-las se ele partisse para a batalha com os outros. Por fim, arranjou coragem para perguntar a um dos guardas do portão se ele tinha partido. - É um dos homens de Lorch, não éí - o homem perguntou. - Então não saiu. Sua senhoria nomeou Sor Amory castelão de Harrenhal. Esses todos vão ficar aqui, para defender o castelo. Os Saltimbancos Sangrentos também vão ser deixados aqui, para cuidar dos abastecimentos. Aquele bode do Vargo Hoat é capaz de ir parar no espigao, ele e Lorch sempre se odiaram. Mas a Montanha partiria com Lorde Tywín. Iria comandar a vanguarda na batalha, o que queria dizer que Dunsen, Polliver e Raff escorrerriam todos pelos seus dedos, a menos que conseguisse encontrar Jaqen e o mandasse matar um deles antes de partirem, - Doninha - Weese a chamou nessa mesma tarde. - Vá ao arsenal e diga a Lucan que Sor Lyonel fez um entalhe na espada durante o treino e precisa de uma nova. Está aqui o sinal dele - entregou-lhe um quadrado de papel. - E rápido, que ele deve partir com Sor Kevan Lannister. Arya pegou o papel e correu. O arsenal ficava junto das forjas do castelo, um grande edifício de teto elevado que mais parecia um túnel, com vinte forjas construídas nas paredes e longas cubas de água em pedra para temperar o aço. Metade das forjas estava funcionando quando ela entrou. As paredes ressoavam com o som dos martelos, e homens corpulentos com aventais de couro suavam no calor sombrio enquanto se debruçavam sobre foles e bigornas. Quando vislumbrou Gendry, viu seu peito nu lustroso de suor, mas os olhos azuis sob o pesado cabelo negro tinham a mesma expressão teimosa de que se lembrava. Arya nem se deu conta de que queria falar com ele. Era culpa dele que tivessem sido apanhados. - Qual deles é Lucan? - mostrou-lhe o papel. - Tenho de arranjar uma espada nova para Sor Lyonel. - Deixe Sor Lyonel pra lá - Gendry a puxou para o lado pelo braço, - Na noite passada, Torta Quente me perguntou se tinha ouvido você gritar Winterfell lá no castro, quando estávamos todos lutando na muralha. - Nunca fiz isso. - Fez, sim. Eu também ouvi. - Todo mundo estava gritando coisas - Arya respondeu em tom defensivo. - Torta Quente gritou torta quente. Deve ter gritado isso cem vezes. 355 - O que importa é o que você gritou. Eu disse ao Torta Quente que devia limpar a cera dos ouvidos, e que tudo o que gritou foi Salve a pele! Se ele perguntar, é melhor que responda a mesma coisa, - Respondo - ela concordou, embora pensasse que salve a pele era uma coisa estúpida para se gritar. Não se atrevia a dizer a Torta Quente quem realmente era. Talvez devesse dizer o nome do Torta Quente a Jaqen. - Vou buscar Lucan - Gendry lhe disse. Lucan soltou um grunhido quando olhou o que estava escrito no papel (embora Arya achasse que ele não era capaz de lê-lo), e pegou uma pesada espada longa. - Isto é bom demais para aquele idiota, e você diga a ele que eu falei isso - o homem resmungou enquanto lhe entregava a lâmina. - Eu digo - ela mentiu. Se fizesse tal coisa, Weese a espancaria até deixá-la sangrando. Lucan que entregasse ele próprio seus insultos. A espada longa era muito mais pesada do que Agulha, mas Arya gostou de pegá-la. O peso do aço nas mãos fazia-a sentir-se mais forte. Talvez não seja ainda uma dançarina de água, mas também não sou um rato. Um rato não poderia usar uma espada, mas eu posso. Os portões estavam abertos, com soldados entrando e saindo, carroças que entravam vazias e saíam rangendo e balançando sob o peso de suas cargas. Pensou em ir até os estábulos e dizer-lhes que Sor Lyonel queria um cavalo novo. Tinha o papel, os cavalariços não seriam mais capazes de lê-lo do que Lucan. Podia levar o cavalo e a espada e simplesmente sair. Se os guardas tentassem me parar, mostraria o papel para eles e diria que estava levando tudo a Sor Lyonel. Mas não tinha idéia alguma do aspecto de Sor Lyonel ou de onde poderia ser encontrado. Se a interrogassem, saberiam, e então Weese... Weese... Enquanto mordia o lábio, tentando não pensar no que sentiria se cortassem seus pés, um grupo de arqueiros com justilhos de couro e elmos de ferro passou por ela, com os arcos a tiracolo, Arya ouviu fragmentos das conversas. - ... gigantes, estou te dizendo, ele tem gigantes com seis metros de altura, vindos de lá da Muralha, que o seguem como cães... - ... não é natural, caindo sobre eles tão depressa, de noite e tudo. E mais lobo do que homem, todos aqueles Stark são... - ... caguei nos seus lobos e gigantes, o rapaz ia mijar nas calças se soubesse que estamos a caminho. Não foi homem bastante para marchar sobre Harrenhal, não é? Fugiu pro outro lado, não foi? E melhor que fuja agora, se souber o que é melhor pra ele. - Você diz isso, mas pode ser que o rapaz saiba alguma coisa que nós não sabemos, talvez sejamos nós quem devesse fugir... Sim, Arya pensou. Sim, são vocês que deveriam fugir, vocês e Lorde Tywin, a Montanha, Sor Addam, Sor Amory e o estúpido do Sor Lyonel, seja ele quem for. É melhor que todos vocês fujam ou meu irmão vai matá-los, ele é um Stark, é mais lobo do que homem, e eu também. - Doninha - a voz de Weese estalou como um chicote. Não chegou a ver de onde ele tinha vindo, mas de repente estava bem na sua frente. - Me dê isso. Demorou muito - arrancou a espada de seus dedos, e deu uma forte bofetada nela com as costas da mão. - Da próxima vez, apresse-se mais. Por um momento, tinha Voltado a ser uma loba, mas a bofetada de Weese roubou-lhe tudo e a deixou sem nada, a não ser o sabor do seu próprio sangue na boca. Tinha mordido a língua quando ele bateu. Odiou-o por isso. 356 - Quer outra? - Weese perguntou. - Não quero ver seus olhares insolentes. Vá à cervejaria e áiga a Tuffleberry que tenho duas dúzias de barris para ele, mas é melhor que mande os rapazes buscá-los, senão encontro alguém que os queira mais - Arya pôs-se a caminho, mas não suficientemente depressa para Weese. - E corra, se quiser comer esta noite - ele gritou, já esquecido das promessas do capão rechonchudo e estaladiço. - E não se perca outra vez, ou juro que vou bater em você até sangrar. Não vai, não, pensou Arya. Nunca mais fará isso. Mas correu. Os velhos deuses do norte devem ter guiado seus passos. No meio do caminho para a cervejaria, ao passar sob a ponte de pedra que se arqueava entre a Torre da Viúva e a Pira do Rei, ouviu um riso rude e um rosnado. Rorge dobrou uma esquina com outros três homens, todos eles com o símbolo da manticora de Sor Amory cosido sobre o coração. Quando a viu, ele parou e sorriu, mostrando uma boca cheia de dentes tortos e marrons sob a aba de couro que às vezes usava para tapar o buraco que tinha no rosto. - A xaninha de Yoren - assim ele a chamou. - Parece que já sabemos por que é que aquele bastardo preto queria você na Muralha, não é? - voltou a rir, e os outros riram com ele. - Onde está agora seu pedaço de pau? - quis saber de súbito, desaparecido o sorriso tão depressa como rinha surgido. - Acho que prometi fodê-la com ele - deu um passo na direção dela. Arya recuou. - Agora que não estou a ferros já não é tão corajosa, não é? - Eu salvei você - manteve um bom metro entre ambos, pronta para fugir, rápida como uma serpente, se ele tentasse agarrá-la. - Parece que lhe devo outra foda por causa disso. Yoren encheu sua xaninha, ou gostava mais desse cuzinho apertadinho? - Estou procurando Jaqen - ela disse. - Há uma mensagem. Rorge parou. Algo em seus olhos... seria possível que tivesse medo de Jaqen Hghar? - No balneário. Saia da minha frente. Arya virou-se e correu, ligeira como uma corça, com os pés voando sobre as pedras arredondadas até o balneário. Encontrou Jaqen de molho numa banheira, com vapor erguendo-se à sua volta enquanto uma criada despejava água quente na sua cabeça. Seus longos cabelos, vermelhos de um lado e brancos do outro, caíam sobre seus ombros, molhados e pesados. Arya aproximou-se, silenciosa como uma sombra, mas ele abriu os olhos mesmo assim. - Ela vem furtiva em pequenos pés de rato, mas um homem ouve - ele disse, Como pode ter me ouvido?, Arya se perguntou, e foi como se ele também tivesse ouvido aquilo. - O raspar de couro em pedra canta tão alto como trombetas de guerra para um homem com os ouvidos abertos, Meninas espertas andam descalças. - Trago uma mensagem - Arya olhou a criada com incerteza. Quando lhe pareceu que não era provável que fosse embora, inclinou-se para a frente até quase encostar sua boca na orelha dele, - Weese - ela murmurou. Jaqen Hghar voltou a fechar os olhos, flutuando, lânguido, meio adormecido. - Diga a sua senhoria que um homem irá servi-la a seu tempo - ele moveu subitamente a mão, salpicando-a de água quente, e Arya teve de saltar para trás para evitar ficar ensopada. Quando transmitiu a Tuffleberry o que Weese tinha dito, o cervejeiro praguejou em voz alta: - Diga a Weese que meus moços têm deveres a cumprir, e diga-lhe também que é um bastardo bexiguento, e que os sete infernos hão de congelar antes que ele prove outro corno da minha cerveja. Ou eu tenho esses barris dentro da próxima hora, ou Lorde Tywin vai ouvir do assunto. Ele logo verá se não. 357 Weese também praguejou quando Arya trouxe aquela mensagem de volta, embora tivesse deixado de lado a parte sobre ele ser um bastardo bexiguento. Enfureceu-se e lançou ameaças, mas, por fim, reuniu seis homens e, resmungando, mandou-os levar os barris à cervejaria, O jantar, naquela noite, foi um guisado aguado de cevada, cebola e cenouras, com uma fatia de pão de centeio duro. Uma das mulheres andava dormindo na cama de Weese, e recebeu também um bom pedaço de queijo azul e uma asa do capão de que Weese tinha falado de manhã. Ele comeu o resto sozinho, com a gordura escorrendo numa linha brilhante por entre os furúnculos que ulceravam no canto da boca. A ave estava quase no fim quando ergueu o olhar da travessa e viu que Arya o fitava. - Doninha, venha cá. Ainda havia algumas dentadas de carne escura presas a uma coxa. Ele esqueceu, mas agora lembrou, ela pensou. Sentiu-se mal por ter dito a Jaqen que o matasse. Saiu do banco e dirigiu-se ao topo da mesa. - Vi você olhando para mim - Weese limpou os dedos no peito da camisa dela. Depois agarrou sua garganta com uma mão e esbofeteou-a com a outra. - O que foi que lhe disse? - voltou a esbofeteá-la, com as costas da mão. - Guarde esses olhos para você, senão, da próxima vez arranco um deles com a colher e o dou de comer à minha cadela - um empurrão atirou-a ao chão, aos tropeções. A bainha prendeu-se num prego solto no banco de madeira lascada e rasgou-se quando ela caiu. - E vai remendar isso antes de dormir - anunciou Weese enquanto arrancava o último pedaço de carne do capão. Quando terminou, chupou sonoramente os dedos, e atirou os ossos ao seu feio cão malhado. - Weese - Arya murmurou naquela noite enquanto se debruçava sobre o rasgão na roupa. - Dunsen, Polliver, Raff, o Querido - ela dizia um nome a cada vez que puxava a agulha de osso através da lã crua. - Cócegas e Cão de Caça. Sor Gregor, Sor Amory, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rei Joffrey, Rainha Cersei - perguntou a si mesma por quanto mais tempo teria de incluir Weese na sua prece, e flutuou para o sono, sonhando que, no dia seguinte, quando acordasse, ele estaria morto. Mas foi a biqueira dura da bota de Weese que a acordou, como sempre. A força principal da tropa de Lorde Tywin partiria naquele dia, disse-lhes ele enquanto quebravam o jejum com bolos de aveia. - Que nenhum de vocês esteja pensando que as coisas vão ficar fáceis depois de o senhor de Lannister ir embora - ele os preveniu. - O castelo não vai encolher, prometo, só que agora vai haver menos mãos para cuidar dele. Seu bando de dorminhocos. Vão aprender agora o que é trabalho, ah se vão. Sob o seu comando, não. Arya bicou seu bolo de aveia. Weese franziu a testa para ela, como se farejasse seu segredo. Num movimento rápido, ela abaixou os olhos para a comida e não se atreveu a voltar a erguê-los. Uma luz fraca enchia o pátio quando Lorde Tywin Lannister se retirou de Harrenhal. Arya observou a partida de uma janela arqueada, a meia altura da Torre dos Lamentos. Seu cavalo usava uma manta de escamas esmaltadas carmim, e focinheira, e testeira dourados, enquanto o próprio Lorde Tywin ostentava um espesso manto de arminho. O irmão, Sor Kevan, tinha um aspecto quase igualmente magnífico. Nada menos do que quatro porta-estandartes seguiam à frente dos dois, transportando enormes bandeiras carmins ornamentadas com o leão dourado. Atrás dos Lannister vinham seus grandes senhores e capitães. As bandeiras cintilavam e esvoaçavam, um suntuoso cortejo de cor: boi vermelho e montanha dourada, unicórnio purpúreo e galo 358 bantã, javali e texugo malhados, um furão de prata e um malabarista com roupas multicoloridas, estrelas e esplendores, pavão e pantera, chaveirão e punhal, capuz preto, escaravelho azul e flecha verde. Atrás de todos vinha Sor Gregor Clegane com seu aço cinza, montado num garanhão com um temperamento tão mau como o do cavaleiro. Polliver seguia a seu lado, com o estandarte dos cães pretos na mão e o elmo com chifres de Gendry na cabeça. Era um homem alto, mas não parecia mais do que um rapaz meio crescido quando cavalgava na sombra de seu senhor. Um arrepio subiu pela espinha de Arya quando os viu passar sob a grande porta levadiça de Harrenhal. De repente percebeu que tinha cometido um erro terrível. Sou tão burra, pensou. Weese não importava, não importava mais do que Chiswyck, Aqueles eram os homens que importavam, eram aqueles que devia ter matado. Na noite anterior podia ter sussurrado a morte de qualquer um, se ao menos não tivesse estado tão furiosa com Weese por lhe ter batido e mentido a respeito do capão. Lorde Tywin, por que foi que não disse Lorde Tywin? Talvez não fosse tarde demais para mudar de idéia. Weese ainda não estava morto. Se conseguisse encontrar Jaqen, dizer-lhe... Apressadamente, Arya correu pela escada em espiral, esquecida dos deveres. Ouviu o chocalhar de correntes que a porta levadiça fazia ao ser descida com lentidão, seus espigões afundando-se profundamente no solo... E, então, outro som, um guincho de dor e medo. Uma dúzia de pessoas chegou lá antes dela, embora nenhuma se aproximasse muito. Arya abriu caminho entre elas, contorcendo-se. Weese estava estatelado nas pedras, com a garganta transformada numa ruína vermelha, olhos abertos, sem ver, na direção de uma escarpa de nuvens cinzentas. A feia cadela malhada estava em pé sobre seu peito, bebendo o sangue que saía pulsando do seu pescoço, e de quando em quando arrancando um pedaço de carne da cara do morto. Por fim, alguém trouxe uma besta e matou a cadela enquanto esta se entretinha com uma das orelhas de Weese. - Que coisa maldita - ouviu um homem dizer. - Ele tinha aquela cadela desde filhote. - Este lugar está amaldiçoado - disse o homem com a besta. - E o fantasma de Harren, é o que é - lamentou-se a governanta Amabel. - Não durmo aqui nem mais uma noite, juro. Arya ergueu o olhar do homem e do seu cão, ambos mortos,Jaqen Hghar estava encostado na parede da Torre dos Lamentos. Quando a viu olhando, ergueu uma mão e pousou casualmente dois dedos no rosto. 359 Catelyn A dois dias de viagem de Correrrio, um batedor os viu dando água aos cavalos num riacho lamacento. Catelyn nunca se sentira tão feliz por ver o símbolo da dupla torre da Casa Frey. Quando pediu ao homem para levá-los à presença do tio, ele disse: - Peixe Negro foi para oeste com o rei, senhora. Martyn Rivers comanda os batedores no seu lugar. - Estou vendo - tinha conhecido Rivers nas Gêmeas; um filho ilegítimo de Lorde Walder Frey, meio-irmão de Sor Perwyn. Não a surpreendia ficar sabendo que Robb atacara o coração do poder dos Lannister; era claro que pensava em fazer exatamente isso quando a enviara para conferenciar com Renly. - Onde Rivers está agora? - Seu acampamento fica a duas horas de viagem, senhora. - Leve-nos até ele - ela ordenou. Brienne ajudou-a a subir na sela, e puseram-se imediatamente a caminho. - Vem de Ponteamarga, senhora? - perguntou o batedor. - Não. Não se atrevera. Com Renly morto, Catelyn se sentiu insegura a respeito da recepção que poderia receber da jovem viúva e de seus protetores. Em vez disso, atravessara o coração da guerra, passando pelas férteis terras fluviais transformadas num deserto enegrecido pela fúria dos Lannister, e todas as noites seus batedores traziam histórias que a deixavam mal. - Lorde Renly está morto - ela acrescentou. - Tínhamos esperança de que essa história fosse alguma mentira Lannister, ou... - Bem que eu gostaria que fosse. Meu irmão comanda em Correrrio? - Sim, senhora. Sua Graça deixou a Sor Edmure a defesa de Correrrio e de sua retaguarda. Que os deuses lhe concedam a força para fazer isso, pensou Catelyn. E também a sabedoria. - Há notícias de Robb no ocidente? - Não soube? - o homem parecia surpreso. - Sua Graça conquistou uma grande vitória em Cruzaboi. Sor Stafford Lannister está morto e sua tropa desbaratada. Sor Wendel Manderly soltou um grito de prazer, mas Catelyn limitou-se a acenar com a cabeça. As dificuldades do amanhã interessavam-lhe mais do que os triunfos de ontem. Martyn Rivers tinha montado seu acampamento dentro do esqueleto de um castro despedaçado, ao lado de um estábulo sem telhado e de uma centena de sepulturas frescas. Ele se dobrou sobre um joelho quando Catelyn desmontou. - E bom encontrá-la, senhora. Seu irmão nos encarregou de manter um olho atento ao seu grupo e de escoltá-los de volta para Correrrio com toda pressa, caso os encontrássemos. 360 Catelyn gostou pouco de como aquilo soava. - E o meu pai? - Não, senhora. A condição de Lorde Hoster permanece inalterada - Rivers era um homem corado, com escassa semelhança com seus meios-irmãos. - É só por temermos que pudessem acabar encontrando batedores Lannister. Lorde Tywin deixou Harrenhal e marcha para o oeste com todo o seu poder. - Levante-se - ela disse a Rivers, franzindo a testa. Stannis Baratheon também iria se pôr em marcha em breve, que os deuses os ajudassem a todos. - Temos quanto tempo até que Lorde Tywin caia sobre nós? - Três dias, talvez quatro; é difícil saber. Temos olhos colocados ao longo de todas as estradas, mas seria melhor não nos demorarmos. E não demoraram. Rivers desmontou o acampamento rapidamente, subiu para a sela ao lado de Catelyn, e voltaram a partir, agora com quase cinqüenta homens, voando sob o lobo gigante, a truta saltante e as torres gêmeas. Os homens dela queriam ouvir mais a respeito da vitória de Robb em Cruzaboi, e Rivers lhes fez a vontade. - Há um cantor que veio para Correrrio, chama a si mesmo de Rymund, o Rimante, e fez uma canção sobre a batalha. Sem dúvida que a ouvirá ser cantada esta noite, senhora. Lobo na Noite, é como esse Rymund a chama - e prosseguiu, contando como os restos da tropa de Sor Staíford se retiraram para Lanisporto. Sem máquinas de cerco, não havia como assaltar Rochedo Casterly, e o Jovem Lobo andava pagando aos Lannister na mesma moeda a devastação que eles haviam infligido às terras fluviais. Os Lordes Karstark e Glover faziam investidas ao longo da costa, a Senhora Mormont capturara milhares de cabeças de gado e agora as conduzia de volta para Correrrio, ao passo que Grande-Jon tinha se apossado das minas de ouro em Castamere, Abismo de Nunn e nos Montes Pendric. Sor Wendel soltou uma gargalhada. - Não há nada mais capaz de fazer um Lannister correr do que uma ameaça ao seu ouro. - Como foi que o rei tomou o Dente? - perguntou Sor Perwyn Frey ao irmão bastardo. - Essa fortaleza é dura e forte, e domina a estrada da montanha. - Não chegou a tomá-la. Esgueirou-se em torno dela durante a noite. Dizem que foi o lobo gigante que lhe indicou o caminho, aquele seu Vento Cinzento. O animal farejou uma trilha de cabras que serpenteava por um desfiladeiro e à sombra de uma cumeada, um caminho torto e pedregoso, mas suficientemente largo para uma fila de homens a cavalo. Os Lannister, em suas torres de vigia, nem de relance os viram - Rivers abaixou a voz. - Há quem diga que, depois da batalha, o rei arrancou o coração de Staíford Lannister e o deu para o lobo comer. - Eu não acreditaria nesse tipo de história - Catelyn disse em tom penetrante. - Meu filho não é nenhum selvagem. - E como diz, senhora. Em todo caso, não é mais do que o animal merecia. Aquilo não é um lobo comum, Houve quem ouvisse Grande-Jon dizer que os velhos deuses do norte enviaram aqueles lobos gigantes aos seus filhos. Catelyn lembrou-se do dia em que seus rapazes tinham encontrado os lobinhos nas neves do fim do Verão. Tinham sido cinco, três machos e duas fêmeas, para os cinco filhos legítimos da Casa Stark... e um sexto, de pelo branco e olhos vermelhos, para o filho bastardo de Ned, Jon Snow. Não são lobos comuns, pensou. Deveras que não. Naquela noite, enquanto montavam acampamento, Brienne procurou a tenda de Catelyn. 361 - Senhora, está agora de volta, a salvo entre os seus, a um dia de viagem do castelo de seu irmão. Dê-me licença para partir. Catelyn não devia ter se sentido surpresa. A modesta jovem tinha se mantido fechada em si mesma ao longo de toda a viagem, passando a maior parte do tempo com os cavalos, escovando seus pelos e tirando pedras de suas ferraduras. Também ajudara Shadd a cozinhar e a limpar a caça, e rapidamente provou que era capaz de caçar tão bem como qualquer um dos homens. Qualquer tarefa que Catelyn lhe pedisse para realizar, Brienne tinha cumprido com habilidade e sem queixas, e quando falavam com ela, respondia educadamente, mas nunca tagarelava, nem chorava, nem ria. Cavalgara com eles todos os dias e dormira entre eles todas as noites sem nunca se tornar verdadeiramente parte do grupo. Era a mesma coisa quando estava com Renly, Catelyn pensou. No banquete, no corpo a corpo, até no pavilhão de Renly com os irmãos da Guarda Arco-íris. Há muralhas em volta dessa moça que são mais altas do que as de Winterfell. - Se nos deixar, para onde irá? - perguntou-lhe Catelyn. - Voltarei - disse Brienne. - Para Ponta Tempestade. - Sozinha - não era uma pergunta. A cara larga era uma lagoa de águas paradas, sem revelar nenhum indício do que poderia viver nas profundezas. - Sim. - Pretende matar Stannis. Brienne fechou os dedos grossos e cheios de calos em volta do cabo da espada. A espada que tinha sido dele. - Fiz um juramento. Jurei-o três vezes. A senhora ouviu. - Ouvi - Catelyn assentiu. Sabia que a moça tinha ficado com o manto arco-íris quando se desfizera do resto de suas roupas manchadas de sangue. Os pertences de Brienne tinham sido deixados para trás durante a fuga, e ela fora forçada a se vestir com peças desparelhadas do traje reserva de Sor Wendel, visto que nenhum outro membro do grupo tinha roupas suficientemente grandes para ela. - Os juramentos devem ser mantidos, concordo, mas Stannis tem uma grande tropa ao seu redor, e seus próprios guardas, que juraram mantê-lo a salvo. - Não temo seus guardas. Sou tão boa como qualquer um deles, Nunca devia ter fugido. - E isso o que a perturba, que algum idiota possa chamá-la de covarde? - Catelyn suspirou. - A morte de Renly não foi sua culpa. Serviu-lhe valentemente, mas quando procura segui-lo na morte não serve a ninguém - estendeu uma mão, para dar o conforto que um toque podia dar. - Eu sei como é duro... Brienne afastou sua mão da dela, - Ninguém sabe. - Está enganada - Catelyn respondeu bruscamente. - Todas as manhãs, quando acordo, lembro-me de que Ned partiu. Não tenho habilidade com armas, mas isso não quer dizer que não sonhe em ir a cavalo até Porto Real, enrolar as mãos em volta da garganta branca de Cersei Lannister e apertá-la até que seu rosto fique preto. Brienne levantou os olhos, sua única parte que era realmente bela. - Se sonha com isso, por que procura me segurar? E por causa do que Stannis disse na conferência? Será? Catelyn lançou um olhar ao acampamento. Dois homens patrulhavam, de sentinela, com lanças na mão. 362 - Ensinaram-me que os homens bons devem lutar contra o mal neste mundo, e a morte de Renly foi maligna, para lá de qualquer dúvida. Mas também me ensinaram que os deuses fazem os reis, não as espadas dos homens. Se Stannis for o nosso legítimo rei... - Não é. Robert também nunca foi o rei legítimo, até Renly disse isso. Jaime Lannister assassinou o rei legítimo, depois de Robert ter matado seu legítimo herdeiro no Tridente. Onde estavam então os deuses? Os deuses não se importam mais com os homens do que os reis com os camponeses. - Um bom rei se importa. - Lorde Renly... Sua Graça, ele... ele teria sido o melhor dos reis, senhora, ele era tão bom, ele,., - Ele morreu, Brienne - Catelyn disse, tão gentilmente quanto podia. - Restam Stannis e Joífrey... bem como meu filho. - Ele não... a senhora nunca faria a paz com Stannis, certo? Dobrar o joelho? Não faria isso... - Vou lhe dizer a verdade, Brienne. Não sei. Meu filho pode ser um rei, mas eu não sou nenhuma rainha... Sou apenas uma mãe que quer manter os filhos a salvo de todas as maneiras que puder. - Não fui feita para ser mãe. Tenho de lutar. - Então lute... Mas pelos vivos, não pelos mortos. Os inimigos de Renly são também inimigos de Robb. Brienne fitou o chão e arrastou os pés. - Eu não conheço seu filho, senhora - ela ergueu os olhos. - Podia servi-la. Se me aceitar. Catelyn ficou surpresa. - Por que a mim? A pergunta pareceu perturbar Brienne. - Ajudou-me. No pavilhão... quando eles pensaram que eu tinha... que eu tinha... - Era inocente. - Mesmo assim, não era sua obrigação fazer o que fez. Podia ter deixado que me matassem. Eu não era nada para você. Talvez eu não quisesse ser a única a conhecer a negra verdade do que aconteceu ali, Catelyn pensou. - Brienne, tomei muitas senhoras bem-nascidas ao meu serviço ao longo dos anos, mas nunca nenhuma como você. Não sou comandante de batalha. - Não, mas possui coragem. Talvez não a coragem de batalha, mas.,, não sei... um tipo de coragem de mulher, E eu penso que, quando o momento chegar, não tentará me prender, Faça-me essa promessa. Que não me impedirá de chegar até Stannis. Catelyn ainda era capaz de ouvir Stannis dizer que a vez de Robb também chegaria, a seu tempo, Era como um hálito frio soprando em sua nuca, - Quando a hora chegar, não a impedirei de chegar até Stannis. A moça alta ajoelhou-se desajeitadamente, desembainhou a espada de Renly e depositou-a aos pés de Catelyn. - Então sou sua, minha senhora. Seu vassalo, ou... o que quer que desejar que seja. Guardarei suas costas, aconselharei a senhora e darei minha vida pela sua, se for necessário. Juro pelos deuses, velhos e novos. - E eu juro que terá sempre um lugar à minha lareira e comida e bebida à minha mesa, e prometo não lhe pedir qualquer serviço que possa lhe trazer desonra. Juro pelos deuses, velhos e novos. Levante-se - enquanto apertava as mãos da outra mulher entre as suas, Catelyn não 363 conseguiu evitar sorrir. Quantas vezes assisti Ned aceitando um juramento de fidelidade de um homem? Gostaria de saber o que ele pensaria se pudesse vê-la agora. Cruzaram o Ramo Vermelho ao fim do dia seguinte, rio acima de Correrrio, onde o rio fazia uma ampla curva e as águas se tornavam lamacentas e rasas. A travessia era guardada por uma força mista de arqueiros e piqueiros com o símbolo da águia dos Mallister. Quando viram os estandartes de Catelyn, emergiram de detrás de suas estacas afiadas e mandaram um homem da outra margem mostrar o caminho ao seu grupo. - Devagar e com cuidado, senhora - o homem a preveniu enquanto agarrava o freio de seu cavalo. - Plantamos espigões de ferro debaixo da água, está vendo, e há estrepes espalhados entre aquelas rochas ali. E a mesma coisa em todos os vaus, segundo as ordens do seu irmão. Edmure planeja lutar aqui. Compreender aquele fato deixou-lhe uma sensação de náusea nas entranhas, mas segurou a língua. Entre o Ramo Vermelho e o Pedregoso, juntaram-se a uma corrente de populares que se dirigia à segurança de Correrrio. Alguns conduziam animais à sua frente, outros puxavam carros, mas abriram caminho à passagem de Catelyn, saudando-a com gritos de "Tully!" ou "Stark!". A meia milha do castelo, atravessaram um grande acampamento onde o estandarte escarlate dos Blackwood ondulava sobre a tenda do senhor, Foi então que Lucas se afastou do grupo, a fim de procurar seu pai, Lorde Tytos. Os outros prosseguiram. Catelyn vislumbrou um segundo acampamento, disposto ao longo da margem norte do Pedregoso, com estandartes familiares sacudindo ao vento... A donzela dançante de Marq Piper, o homem com arado de Darry, as serpentes enlaçadas, em vermelho e branco, dos Paege. Eram todos vassalos do pai, senhores do Tridente. A maioria tinha deixado Correrrio antes dela, a fim de defender suas terras. Se estavam de novo ali, isso só podia querer dizer que Edmure os chamara de volta. Que os deuses nos salvem. É verdade, ele pretende dar batalha a Lorde Tywin, Catelyn viu a distância que havia algo escuro oscilando contra as muralhas de Correrrio. Quando se aproximou, viu mortos pendurados nas ameias, presos nas pontas de longas cordas por laços de cânhamo bem apertados em volta do pescoço, com o rosto inchado e preto. Os corvos já tinham se alimentado, mas os mantos carmins ainda se destacavam bem contra as muralhas de arenito. - Enforcaram alguns Lannister - Hal Mollen observou. - Uma bela visão - Sor Wendel Manderly disse alegremente. - Nossos amigos começaram sem nós - brincou Perwyn Frey. Os outros riram, todos, menos Brienne, que fitou sem piscar a fileira de cadáveres, sem falar nem sorrir.
Se mataram o Regicida, então minhas filhas também estão mortas. Catelyn esporeou o cavalo até um trote largo. Hal Mollen e Robin Flint passaram por ela a galope, lançando saudações para a guarita. Os guardas nas muralhas tinham sem dúvida visto as bandeiras havia algum tempo, pois a porta levadiça estava içada quando se aproximaram. Edmure saiu a cavalo do castelo ao seu encontro, rodeado por três dos homens juramentados a seu pai: o muito barrigudo Sor Desmond Grell, o mestre de armas; Utherydes Wayn, o intendente; e Sor Robin Ryger, o grande e calvo capitão da guarda de Correrrio. Todos eram da idade de Lorde Hoster, homens que tinham passado a vida a serviço do pai. Velhos, percebeu Catelyn. Edmure usava um manto azul e vermelho por cima de uma túnica bordada com peixes dourados. Julgando pelo aspecto, não tinha se barbeado desde que ela partira para o sul; a barba era um matagal da cor do fogo. 364 - Cat, é bom tê-la de volta em segurança. Quando ouvimos a notícia da morte de Renly, tememos por sua vida. Lorde Tywin também se pôs em marcha. - J á me disseram. Como passa nosso pai? - Um dia parece mais forte, no seguinte... - ele balançou a cabeça. - Perguntou por você. Não soube o que lhe dizer. - Irei até ele em breve - ela prometeu. - Há alguma notícia de Ponta Tempestade desde a morte de Renly? Ou de Ponteamarga? - os corvos não chegavam aos viajantes, e Catelyn sentia-se ansiosa por saber o que tinha acontecido depois de sua partida. - Nada de Ponteamarga. De Ponta Tempestade, chegaram três corvos do castelão, Sor Cortnay Penrose, todos transportando o mesmo apelo. Stannis cercou-o por terra e mar. Oferece sua fidelidade a qualquer rei que quebre o cerco. Diz que teme pelo rapaz. Sabe que rapaz pode ser esse? - Edric Storm - Brienne respondeu. - O filho bastardo de Robert. Edmure olhou-a com curiosidade. - Stannis jurou que a guarnição poderia partir em liberdade e sem ser molestada, desde que lhe rendesse o castelo dentro de uma quinzena e entregasse o rapaz em suas mãos, mas Sor Cortnay não quer consentir. Arrisca tudo por um rapaz ilegítimo, cujo sangue nem sequer é o seu, pensou Catelyn. - Enviou-lhe alguma resposta? Edmure sacudiu a cabeça. - Para que, se não temos ajuda nem esperança a oferecer? E Stannis não é nosso inimigo. Sor Robin Ryger interveio: - Senhora, pode nos contar como Lorde Renly morreu? As histórias que ouvimos têm sido estranhas. - Cat - o irmão se adiantou. - Alguns dizem que foi você quem matou Renly. Outros afirmam que teria sido alguma mulher do sul - seu olhar deteve-se em Brienne. - Meu rei foi assassinado - disse a mulher em voz baixa - , e não pelas mãos da Senhora Catelyn, Juro-o pela minha espada, pelos deuses, antigos e novos. - Esta é Brienne de Tarth, filha de Lorde Delwyn, a Estrela da Tarde, que servia na Guarda Arco-íris de Renly - Catelyn lhes disse. - Brienne, tenho a honra de apresentá-la ao meu irmão, Sor Edmure Tully, herdeiro de Correrrio. Seu intendente, Utherydes Wayn. Sor Robin Ryger e Sor Desmond Grell. - A honra é minha - Sor Desmond a cumprimentou. Os outros repetiram as mesmas palavras. A menina corou, embaraçada até com aquela cortesia comum. Se Edmure a achara um tipo curioso de senhora, pelo menos teve o cuidado de não dizer isso. - Brienne estava com Renly quando ele foi morto, assim como eu - Catelyn começou - , mas não desempenhamos nenhum papel em sua morte - não queria falar da sombra, ali, ao ar livre, com homens em toda a volta, e indicou os cadáveres com uma mão. - Quem são aqueles homens que enforcou? Edmure lançou um relance desconfortável para cima. - Vieram com Sor Cleos quando trouxe a resposta da rainha à nossa oferta de paz. Catelyn ficou chocada. - Matou enviados? - Falsos enviados - Edmure declarou. - Prometeram-me paz e entregaram as armas. Concedilhes liberdade de castelo, e durante três noites comeram da minha comida e beberam da 365 minha bebida enquanto eu conversava com Sor Cleos. Na quarta noite, tentaram libertar o Regicida - apontou para cima. - Aquele grande brutamontes matou dois guardas apenas com aquelas suas mãos de presunto, agarrou-os pelas gargantas e esmagou seus crânios um de encontro ao outro, enquanto o rapaz magricela que está na estaca ao seu lado abria a cela do Lannister com um pedaço de arame. Que os deuses o amaldiçoem. Aquele da ponta era algum maldito tipo de pantomimeiro. Usou minha voz para ordenar que o Portão do Rio fosse aberto.
E o que os guardas juram, Enger, Delp e Lew Comprido, todos os três. Se quer que lhe diga, o homem não soava nada parecido comigo, e no entanto os palermas estavam içando a porta levadiça mesmo assim. Catelyn suspeitava que aquilo devia ser trabalho do Duende; fedia ao mesmo tipo de astúcia que ele tinha exibido no Ninho da Águia. Antigamente teria indicado Tyrion como o menos perigoso dos Lannister. Agora não tinha tanta certeza. - Como foi que os pegou? - Ah, aconteceu que não estava no castelo. Tinha atravessado o Pedregoso para, ahn... - Tinha ido até as prostitutas ou as meretrizes. Continue a história. O rosto de Edmure ficou vermelho como sua barba. - Foi na hora antes da alvorada, e só então eu voltava. Quando Lew Comprido viu meu barco e me reconheceu, finalmente se perguntou quem estaria lá embaixo ladrando ordens, e deu o alerta. - Diga-me que o Regicida foi recapturado, - Sim, embora não com facilidade. Jaime arranjou uma espada, matou Poul Pemford e o escudeiro de Sor Desmond, Myles, e feriu Delp com tanta gravidade que Meistre Wyman teme que também morra em breve. Foi uma sangrenta confusão. Ao som do aço, alguns dos outros homens de manto vermelho apressaram-se em se juntar a eles, com as mãos vazias ou não. Enforquei esses ao lado dos quatro que o libertaram e atirei o resto nas masmorras. Jaime também. Este não tentará mais fugir. Dessa vez está lá embaixo, no escuro, mãos e pés acorrentados, e preso à parede. - E Cleos Frey? - J u r a que não sabia nada do esquema. Quem poderá saber? O homem é meio Lannister, meio Frey, e completamente mentiroso. Deixei-o na antiga cela de torre de Jaime. - Disse que ele trouxe termos de paz? - Se é que se pode chamá-los assim. Garanto que não lhe agradarão mais do que a mim. - Não podemos esperar ajuda do sul, senhora Stark? - perguntou Utherydes Wayn, intendente do pai. - Essa acusação de incesto... Lorde Tywin não aceita uma desfeita dessas brandamente. Ele irá procurar lavar a mancha do nome da filha com o sangue do acusador, Lorde Stannis deve ver isso. Não tem escolha que não seja fazer causa comum conosco. Stannis fez causa comum com um poder maior e mais obscuro. - Falemos desses assuntos mais tarde. Catelyn passou sobre a ponte levadiça a trote, deixando para trás a macabra fileira de mortos Lannister. Seu irmão a acompanhou. Enquanto penetravam na azáfama do interior da muralha de Correrrio, uma criança pequena e nua correu para a frente dos cavalos. Catelyn puxou as rédeas com força a fim de evitá-la, olhando em volta, consternada. Centenas de plebeus tinham sido admitidos no castelo e tinha-lhes sido permitido erigir rudes abrigos junto às muralhas. Seus filhos andavam por todo lado, e o pátio encontrava-se repleto de vacas, ovelhas e galinhas. - Quem é toda essa gente? 366 - O meu povo - respondeu Edmure. - Estavam com medo. Só meu querido irmão aglomeraria todas aquelas bocas inúteis num castelo que em breve pode estar sob cerco, Catelyn sabia que Edmure possuía um coração mole; às vezes pensava que sua cabeça o era ainda mais. Amava-o por isso, mas, mesmo assim... - Robb pode ser contatado por um corvo? - Encontra-se em campo, senhora - respondeu Sor Desmond. - A ave não teria como encontrá-lo. Utherydes Wayn tossiu: - Antes de nos deixar, o jovem rei deixou-nos instruções para enviá-la para as Gêmeas quando voltasse, Senhora Stark. Pede-lhe que saiba mais sobre as filhas de Lorde Walder, a fim de ajudá-lo a selecionar sua noiva quando chegar a hora. - Forneceremos montarias novas e provisões para você - prometeu o irmão. - Vai querer restaurar as forças antes... - Eu vou ficar - disse Catelyn, desmontando. Não tinha qualquer intenção de abandonar Correrrio e o pai moribundo para escolher a noiva de Robb por ele. Robb quer me ver em segurança, não posso me zangar com ele por isso, mas o pretexto está ficando gasto. - Garoto - ela chamou, e um garoto dos estábulos correu para pegar as rédeas de seu cavalo, Edmure saltou da sela, Era uma cabeça mais alto do que ela, mas seria sempre seu irmão menor. - Cat - ele disse, com um ar infeliz - , Lorde Tywin vem a caminho... - Ele se dirige para o oeste, a fim de defender suas terras. Se fecharmos os portões e nos abrigarmos atrás das muralhas, podemos vê-lo passar em segurança. - Estas são terras Tully - Edmure declarou. - Se Tywin Lannister pensa em cruzá-las sem ter o sangue derramado, pretendo ensinar-lhe uma dura lição, A mesma lição que ensinou ao filho dele? O irmão podia ser teimoso como as pedras do rio quando tocavam no seu orgulho, mas nenhum dos dois se esqueceria do modo como Sor Jaime cortara a tropa de Sor Edmure em pedaços sangrentos da última vez em que oferecera batalha. - Nada temos a ganhar, e tudo temos a perder em enfrentar Lorde Tywin no campo de batalha - Catelyn retrucou, com tato, - O pátio não é lugar para discutir meus planos de batalha, - Como quiser. Para onde vamos? O rosto do irmão escureceu. Por um momento, Catelyn pensou que ele estava prestes a perder a calma com ela, mas por fim exclamou: - O bosque sagrado. Se insiste. Ela o seguiu por uma galeria até o portão do bosque sagrado. A ira de Edmure sempre tinha sido uma coisa carrancuda e rabugenta. Catelyn lamentava tê-lo ferido, mas o assunto era importante demais para se preocupar com seu orgulho, Quando ficaram sós sob as árvores, Edmure virou-se para encará-la. - Não tem força suficiente para enfrentar os Lannister no campo de batalha - ela disse sem rodeios. - Quando todas as minhas forças estiverem reunidas, deverei ter oito mil homens de infantaria e três mil de cavalaria - ele respondeu. - O que quer dizer que Lorde Tywin terá quase o dobro de seus homens. - Robb venceu suas batalhas contra vantagens maiores. E tenho um plano. Esqueceu-se de Roose Bolton. Lorde Tywin o derrotou no Ramo Verde, mas não o perseguiu. Quando Lorde 367 Tywin foi para Harrenhal, Bolton tomou o vau rubi e a encruzilhada. Tem dez mil homens. Mandei uma mensagem a Helman Tallhart para que se junte a ele com a guarnição que Robb deixou nas Gêmeas... - Edmure, Robb deixou esses homens para defender as Gêmeas e assegurar-se de que Lorde Walder permanecesse do nosso lado. - Permaneceu - Edmure disse teimosamente. - Os Frey lutaram bravamente no Bosque dos Murmúrios, e o velho Sor Stevron morreu em Cruzaboi, pelo que ouvimos dizer. Sor Ryman, Walder Negro e os outros estão com Robb no oeste, Martyn tem sido de grande utilidade com os batedores, e Sor Perwyn ajudou-a a chegar a salvo até Renly. Pela bondade dos deuses, o que mais podemos lhes pedir? Robb está prometido a uma das filhas de Lorde Walder, e Roose Bolton casou-se com outra, segundo ouvi dizer. E você não recebeu dois de seus netos para serem criados em Winterfell? - Um protegido pode facilmente ser transformado em refém, se a necessidade surgir - ela não soubera que Sor Stevron estava morto, nem do casamento de Bolton. - Se estamos com vantagem de dois reféns, é motivo ainda maior para que Lorde Walder não nos traia. Bolton necessita dos homens dos Frey e também dos de Sor Helman. Ordenei-lhes que retomassem Harrenhal. - E provável que isso se torne uma coisa sangrenta. - Sim. Mas, uma vez que o castelo caia, Lorde Tywin não terá retirada segura. Meus recrutas defenderão os vaus do Ramo Vermelho contra sua travessia. Se atacar através do rio, acabará como Rhaegar quando tentou atravessar o Tridente. Se não, ficará preso entre Correrrio e Harrenhal, e quando Robb voltar do oeste podemos acabar com ele de uma vez por todas. A voz do irmão estava cheia de uma confiança indelicada, mas Catelyn viu-se desejando que Robb não tivesse levado tio Brynden consigo para o oeste. Peixe Negro era veterano de meia centena de batalhas; Edmure era veterano de uma, e perdida. - O plano é bom - ele concluiu. - Lorde Tytos afirma isso, e Lorde Jonos também, Quando foi que Blackwood e Bracken concordaram com qualquer coisa que não fosse certa, eu pergunto. - Seja como for - Catelyn ficou subitamente cansada. Talvez estivesse errada em se opor ao irmão. Talvez aquele plano fosse magnífico e seus pressentimentos não passassem de temores de uma mulher. Desejou que Ned estivesse ali, ou tio Brynden, ou... - Consultou nosso pai a respeito disso? - Nosso pai não está em estado de pesar estratégias. Há dois dias fazia planos para o seu casamento com Brandon Stark! Vá vê-lo, se não acredita em mim. Este plano vai funcionar, Cat, você verá. - Espero que sim, Edmure. De verdade - beijou-o no rosto para que ele soubesse que falava a sério, e foi até o pai. Lorde Hoster Tully encontrava-se num estado muito semelhante àquele em que Catelyn o deixara; acamado, abatido, com a pele pálida e úmida. O quarto cheirava a doença, um odor nauseante feito de partes iguais de suor e de remédios. Quando abriu as cortinas, o pai soltou um pequeno gemido e entreabriu os olhos. Fitou-a como se não conseguisse compreender quem ela era ou o que queria. - Pai - beijou-o. - Voltei. Então, pareceu reconhecê-la. - Você veio - sussurrou de forma tênue, quase sem mover os lábios. - Sim - ela respondeu. - Robb enviou-me para o sul, mas apressei-me em voltar.
368 - Sul... onde... o Ninho da Águia fica para o sul, querida? Não me lembro... Ah, querido coração, tive medo... Perdoa-me, filha? - lágrimas correram pelo seu rosto. - Não fez nada que necessite de perdão, pai - Catelyn afagou o cabelo branco e sem energia do pai e pôs a mão na sua testa. A febre ainda o queimava por dentro, apesar de todas as poções do meistre. - Foi o melhor - sussurrou seu pai. - Jon é um bom homem, bom... forte, bondoso... tomará conta de você... tomará... e bem-nascido, escute-me, tem de me escutar, sou seu pai... seu pai, casará quando a Cat casar, sim, senhora,,. Ele pensa que sou Lysa, compreendeu Catelyn. Que os deuses sejam bons, elejala como se ainda não estivéssemos casadas. As mãos do pai agarraram-se às dela, tremendo como duas aves brancas e assustadas. - Aquele moleque... maldito rapaz... não pronuncie o nome dele na minha presença, o seu dever... a sua mãe, ela teria... - Lorde Hoster gritou quando um espasmo de dor o subjugou. - Oh, deuses, perdoem-me, perdoem-me,perdoem-me. O meu remédio... E de repente Meistre Vyman estava ali, levando uma taça aos seus lábios. Lorde Hoster sugou a poção espessa e branca com a avidez de um bebê no seio, e Catelyn viu a paz cair de novo sobre ele. - Ele dormirá agora, senhora - disse o meistre quando a taça ficou vazia. O leite da papoula tinha deixado uma espessa película branca em torno da boca do pai. Meistre Vyman limpou-a com a manga. Catelyn não foi capaz de ver mais. Hoster Tully tinha sido um homem forte e orgulhoso. Doía-lhe vê-lo assim, reduzido àquilo. Saiu para a varanda. O pátio, embaixo, estava repleto de refugiados e caótico com o ruído que faziam, mas para lá das muralhas os rios fluíam limpos, puros e sem fim. Estes são os seus rios, e em breve voltará a eles, para a sua última viagem. Meistre Wyman a tinha seguido até o exterior. - Senhora - ele disse em voz baixa - , não posso continuar muito mais tempo a afastar o fim. Devíamos mandar um cavaleiro em busca do irmão. Sor Brynden gostaria de estar aqui. - Sim - Catelyn concordou, com a voz carregada de desgosto. - E a Senhora Lysa também, talvez? - Lysa não virá. - Se escrevesse para ela em pessoa, talvez... - Porei algumas palavras no papel, se isso lhe agrada. Perguntou a si mesma quem teria sido o "maldito moleque" de Lysa, Algum jovem escudeiro ou pequeno cavaleiro, provavelmente... Se bem que, pela veemência com que Lorde Hoster se opusera a ele, pudesse ter sido um filho de um mercador ou um aprendiz bastardo, ou até um cantor. Lysa sempre tinha gostado demais de cantores. Não posso culpá-la. Jon Arryn era vinte anos mais velho do que nosso pai, por mais nobre que fosse. A torre que o irmão tinha separado para seu uso era a mesma que ela e Lysa haviam dividido quando donzelas, Seria bom voltar a dormir numa cama de penas, com um fogo quente na lareira. Quando estivesse descansada, o mundo pareceria menos desolador. Mas, à porta de seus aposentos, encontrou Utherydes Wayn esperando, na companhia de duas mulheres vestidas de cinza, com os rostos escondidos por capuzes, deixando apenas os olhos à vista. Catelyn soube imediatamente por que motivo estavam ali. - Ned? As irmãs abaixaram os olhos. Utherydes respondeu: 369 - Sor Cleos trouxe-o de Porto Real, senhora. - Levem-me até ele - Catelyn ordenou. Tinham-no deitado numa mesa de montar e haviam-no coberto com um estandarte, o estandarte branco da Casa Stark com seu símbolo do lobo gigante cinza. - Quero olhar para ele - ela pediu. - Só restam os ossos, senhora. - Quero olhar para ele - Catelyn repetiu. Uma das irmãs silenciosas puxou o estandarte para baixo. Ossos, pensou Catelyn. Isto não é Ned, não é o homem que amei, o pai de meus filhos. As mãos dele estavam apertadas sobre o peito, com dedos esqueléticos dobrados em torno do cabo de uma espada longa qualquer, mas não eram as mãos de Ned, tão fortes e cheias de vida. Tinham vestido os ossos com a túnica de Ned, o veludo branco e fino com o símbolo do lobo gigante sobre o coração, mas nada restava da carne quente que tinha servido tantas noites de almofada à sua cabeça, dos braços que a tinham abraçado. A cabeça havia sido reunida ao corpo com fino fio de prata, mas um crânio é muito semelhante aos outros, e naquelas órbitas vazias não viu sinal dos olhos cinza-escuros do seu senhor, olhos que podiam ser suaves como nevoeiro ou duros como pedra. Deram seus olhos aos corvos, recordou. Catelyn virou o rosto.
- Aquela não é a espada dele. - Gelo não nos foi devolvida, senhora - disse Utherydes. - Só os ossos de Lorde Eddard. - Suponho que deva agradecer à rainha até por isso. - Agradeça ao Duende, senhora. Foi obra dele. Um dia vou agradecer a todos eles. - Estou grata por seus serviços, irmãs - Catelyn agradeceu - , mas devo atribuir-lhes outra tarefa. Lorde Eddard era um Stark, e seus ossos devem ser postos em repouso sob Winterfell - fiarão uma estátua dele, um retrato de pedra que se sentará no escuro com um lobo gigante aos pés e uma espada pousada nos joelhos. - Assegurem-se de que as irmãs tenham cavalos descansados, e qualquer outra coisa de que necessitem para a viagem - ela disse a Utherydes Wayn. - Hal Mollen vai escoltá-las de volta a Winterfell, é tarefa dele como capitão dos guardas - ela desceu os olhos para os ossos que eram tudo o que restava do seu senhor e amor. - Deixem-me agora, todos vocês. Desejo ficar a sós com Ned esta noite. As mulheres de cinza inclinaram a cabeça. As irmãs silenciosas não falam com os vivos, recordou-se Catelyn, entorpecida, mas há quem diga que são capazes de falar com os mortos. E como invejava esse poder... 370 Daenerys As cortinas mantinham afastados a poeira e o calor das ruas, mas não conseguiam afastar o desapontamento. Dany subiu para o palanquim cansada, grata por aquele refúgio contra o mar de olhos qartenos. - Abram alas - gritou Jhogo à multidão, de cima do cavalo, estalando o chicote. - Abram alas, abram alas para a Mãe de Dragões, Reclinado em frescas almofadas de cetim, Xaro Xhoan Daxos despejou vinho da cor de rubi em cálices iguais de jade e ouro, com mãos seguras e firmes, apesar do balanço do palanquim. - Vejo uma profunda tristeza escrita em seu rosto, minha luz do amor - ofereceu-lhe um cálice. - Seria a tristeza de um sonho perdido? - De um sonho adiado, não mais do que isso. O apertado colar de prata de Dany estava irritando sua garganta. Soltou-o e atirou-o para o lado. O colar tinha incrustada uma ametista encantada que Xaro jurava que a protegeria contra todos os venenos. Os Puronatos eram conhecidos por oferecer vinho envenenado àqueles que consideravam perigosos, mas não tinham dado a Dany sequer uma taça de água. Nunca viram em mim uma rainha, pensou amargamente. Fui apenas o divertimento de uma tarde, uma moça a cavalo com um curioso animal de estimação. Rhaegal silvou e enterrou garras negras e afiadas em seu ombro nu quando Dany estendeu uma mão para aceitar o vinho. Retraindo-se, ela o transferiu para o outro ombro, onde ele podia espetar as garras no vestido em vez de na pele. Dany vestia-se à moda qartena. Xaro prevenira-a de que os Entronizados nunca escutariam uma dothraki, e ela teve o cuidado de ir à sua presença vestida de samito verde solto com um seio de fora, de sandálias prateadas nos pés, com um cinto de pérolas pretas e brancas em volta da cintura. Por toda a ajuda que me ofereceram, bem podia ter ido nua. Talvez devesse ter feito isso. Bebeu um profundo trago de vinho. Descendentes dos antigos reis e rainhas de Qarth, os Puronatos comandavam a Guarda Cívica e a frota de ornamentadas galés que dominavam os estreitos entre os mares. Daenerys Targaryen desejara aquela frota, ou parte dela, e também alguns de seus soldados. Tinha feito o tradicional sacrifício no Templo da Memória, oferecido o tradicional suborno ao Guardião da Longa Lista, enviado o tradicional caqui ao Abridor da Porta, e por fim recebido os tradicionais chinelos de seda azul, convocando-a para comparecer ao Salão dos Mil Tronos. Os Puronatos ouviram seus apelos de cima dos grandes tronos de madeira de seus ancestrais, que se erguiam em fileiras curvas do chão de mármore ao teto em cúpula alta pintado com cenas da glória desaparecida de Qarth. Os cadeirões eram imensos, fantasticamente esculpidos, brilhando com trabalhos em ouro e guarnecidos de âmbar, ônix, lápis-lazúli e jade, cada um diferente de todos os outros, e cada um tentando ser mais fabuloso que os demais. Mas os homens que 371 neles se sentavam estavam tão apáticos e cansados do mundo que mais pareciam estar dormindo. Ouviram, mas não escutaram, nem se importaram, ela pensou. São mesmo Homens de Leite. Nunca tiveram a intenção de me ajudar. Vieram porque estavam curiosos. Vieram porque estavam entediados, e o dragão no meu ombro interessou-lhes mais do que eu. - Conte-me as palavras dos Puronatos - sugeriu Xaro Xhoan Daxos, - Conte-me o que eles disseram para entristecer a rainha do meu coração. - Disseram que não - o vinho tinha o sabor de romãs e dos dias quentes do Verão. - Disseram com grande cortesia, com certeza, mas por baixo de todas as palavras amáveis, foi mesmo assim um não. - Bajulou-os?
- Desavergonhadamente. - Chorou? - O sangue do dragão não chora - Dany disse, já irritada. Xaro suspirou. - Devia ter chorado - os qartenos choravam com freqüência e facilidade; isso era visto como uma marca do homem civilizado. - E os homens que compramos, o que disseram? - Mathos não disse nada. Wendello elogiou meu modo de falar. O Requintado recusou-me como os outros, mas depois chorou. - É uma infelicidade que esses qartenos sejam tão pouco confiáveis - o próprio Xaro não pertencia aos Puronatos, mas tinha lhe dito quem subornar e quanto oferecer. - Chore, chore, pela deslealdade dos homens. Mais depressa Dany choraria por seu ouro. Os subornos que oferecera a Mathos Mallarawan, Wendello Qar Deeth e Egon Emeros, o Requintado, podiam ter servido para comprar um navio ou para contratar vinte mercenários. - Suponhamos que eu mande Sor Jorah exigir a devolução de meus presentes? - ela perguntou. - Suponhamos que um Homem Pesaroso venha ao meu palácio uma noite e a mate enquanto dorme - Xaro respondeu. Os Homens Pesarosos eram uma antiga e sagrada guilda de assassinos, assim chamados porque sempre sussurravam"lamento tanto" às vítimas antes de matá-las. Os qartenos não podiam ser acusados de não serem educados. - Há quem diga, sabiamente, que é mais fácil ordenhar a Vaca de Pedra de Faros do que espremer ouro dos Puronatos. Dany não sabia onde ficava Faros, mas parecia-lhe que Qarth estava cheia de vacas de pedra. Os príncipes mercadores, extremamente enriquecidos pelo comércio entre os mares, encontravam-se divididos em três facções rivais: a Antiga Guilda das Especiarias, a Irmandade Turmalina e os Treze, aos quais Xaro pertencia. Todas rivalizavam entre si pelo domínio, e todas lutavam incessantemente com os Puronatos. E acima de todos havia os magos, com seus lábios azuis e terríveis poderes, raramente vistos, mas muito temidos. Estaria perdida sem Xaro. O ouro que tinha esbanjado para abrir as portas do Salão dos Mil Tronos era, em boa medida, produto da generosidade e esperteza rápida do mercador. Enquanto o rumor sobre dragões vivos ia se espalhando pelo leste, cada vez mais curiosos tinham vindo saber se a história era verdadeira... e Xaro Xhoan Daxos assegurou-se de que tanto os grandes como os humildes oferecessem alguma lembrança à Mãe de Dragões. O riacho que ele tinha começado rapidamente inchou e se transformou numa inundação. Capitães mercantes traziam renda de Myr, arcas de açafrão de Yi Ti, âmbar e vidro de dragão de Asshai. Os mercadores ofereciam sacos de moedas, os ourives, anéis e colares. Tocadores de 372 flauta tocavam para ela, acrobatas faziam acrobacias, e malabaristas, malabarismos, enquanto tintureiros envolviam-na em cores que nunca soubera existir. Um par vindo de Jogos Nhai presenteou-a com um de seus zebralos listados, pretos e brancos, e ferozes. Uma viúva trouxe o cadáver do marido, coberto com uma crosta de folhas prateadas; acreditava-se que tais restos detinham grande poder, especialmente se o falecido tivesse sido um feiticeiro, como aquele, E a Irmandade Turmalina empurrou-lhe uma coroa trabalhada na forma de um dragão de três cabeças; os anéis eram de ouro amarelo, as asas, de prata, as cabeças, esculpidas em jade, marfim e ônix. A coroa era a única oferenda que tinha guardado. O resto vendera, a fim de reunir a riqueza que desperdiçou nos Puronatos. Xaro quis também vender a coroa, os Treze iriam se assegurar que tivesse outra muito melhor, ele jurara, mas Dany proibira-o. - Viserys vendeu a coroa da minha mãe, e os homens chamaram-no de pedinte. Eu guardarei esta, para que os homens me chamem de rainha - e foi o que fez, embora o peso fizesse seu pescoço doer. Mesmo coroada, ainda sou uma pedinte, Dany pensou. Tornei-me a mais esplêndida pedinte do mundo, mas uma pedinte mesmo assim. Detestava isso, tal como o irmão devia ter detestado. Todos aqueles anos correndo de cidade em cidade um passo à frente das facas do Usurpador, suplicando a ajuda de arcontes, príncipes e magísteres, comprando a nossa comida com lisonjas. Deve ter sabido como zombavam dele. Não é de se admirar que tivesse ficado tão zangado e amargo, No fim, aquilo o deixou louco. E vai fazer o mesmo comigo, se eu deixar. Parte de si gostaria de levar seu povo de volta a Vaes Tolorro e fazer a cidade morta florescer mais do que qualquer outra coisa. Não, isso é derrota. Tenho algo que Viserys nunca teve. Tenho os dragões. Os dragões fazem toda a diferença. Afagou Rhaegal. O dragão verde fechou os dentes em torno da base do polegar e mordeu-a com força. Lá fora, a grande cidade murmurava, tamborilava e fervilhava, com toda a sua miríade de vozes fundindo-se num som grave como a arrebentação do mar. - Abram alas, Homens de Leite, abram alas para a Mãe de Dragões - gritava Jhogo, e os qartenos afastavam-se, embora os bois talvez tivessem mais a ver com isso do que a voz dele. Através das cortinas oscilantes, Dany capturava vislumbres do dothraki escarranchado no seu garanhão cinza. De tempos em tempos, dava em um dos bois um golpe com o chicote de cabo de prata que Dany lhe dera. Aggo montava guarda do outro lado, enquanto Rakharo cavalgava atrás da procissão, observando os rostos da multidão em busca de qualquer sinal de perigo. Naquele dia, deixara Sor Jorah para trás, a fim de guardar os outros dragões; o cavaleiro exilado opusera-se àquela loucura desde o início. Ele desconfia de todo mundo, refletiu, e talvez com bons motivos. Quando Dany ergueu o cálice para beber, Rhaegal farejou o vinho e atirou a cabeça para trás, silvando. - Seu dragão tem um bom nariz - Xaro limpou os lábios. - O vinho é simples. Dizem que para lá do Mar de Jade fazem um vinho dourado tão bom que um gole faz com que todos os outros vinhos tenham gosto de vinagre. Embarquemos na minha barca de prazer e partamos em busca dele, você e eu. - A Árvore faz o melhor vinho do mundo - Dany afirmou. Lembrava-se que Lorde Redwyne tinha lutado pelo pai contra o Usurpador, um dos poucos a permanecer fiéis até o último momento. Lutará também por mim? Não havia como ter certeza depois de tantos anos. - Venha comigo para a Árvore, Xaro, e provará as melhores colheitas da sua vida. Mas teremos de ir num navio de guerra, não numa barca de prazer. - Não possuo navios de guerra. A guerra é ruim para o comércio. Já lhe disse isso muitas vezes, Xaro Xhoan Daxos é um homem de paz. 373 Xaro Xhoan Daxos é um homem do ouro, ela pensou, e o ouro vai me servir para comprar todos os navios e as espadas de que necessito. - Não lhe pedi que pegue numa espada, apenas que me empreste seus navios. Ele sorriu com modéstia. - Navios mercantes tenho alguns, é verdade. Quem saberá dizer quantos? Um pode estar se afundando, neste exato momento, em algum canto tempestuoso do Mar do Verão. Amanhã, outro cairá nas garras de corsários. No dia seguinte, um de meus capitães poderá olhar as riquezas que transporta e pensar: Tudo isso devia me pertencer, São esses os perigos do comércio. Ora, quanto mais tempo conversarmos, menos navios eu devo ter, Fico mais pobre a cada instante. - Dê-me navios, e vou torná-lo rico novamente. - Case-se comigo, brilhante luz, e zarpe no navio do meu coração. Não consigo dormir à noite pensando em sua beleza. Dany sorriu. As floridas afirmações de paixão de Xaro divertiam-na, mas seus modos não coincidiam com suas palavras. Enquanto Sor Jorah quase não conseguira afastar os olhos de seu seio nu quando a ajudara a subir ao palanquim, Xaro mal se dignou em reparar nele, mesmo naquele confinamento apertado. E ela tinha visto os lindos rapazes que rodeavam o príncipe mercador, esvoaçando pelos salões de seu palácio enfiados em tufos de seda. - Fala docemente, Xaro, mas sob as suas palavras ouço mais um não. - Esse Trono de Ferro de que fala parece horrivelmente frio e duro. Não consigo suportar a idéia de farpas irregulares cortando sua doce pele - as jóias no nariz de Xaro davam-lhe o aspecto de uma estranha ave cintilante. Seus longos dedos elegantes fizeram um gesto de rejeição. - Deixe que seja este o seu reino, oh, mais requintada das rainhas, e deixe que seja eu o seu rei. Dar-lhe-ei um trono de ouro, se quiser. Quando Qarth começar a cansá-la, podemos viajar em torno de Yi Ti, em busca da fantástica cidade dos poetas, a fim de beber o vinho da sabedoria do crânio de um homem morto. - Pretendo viajar para Westeros e beber o vinho da vingança do crânio do Usurpador - ela coçou Rhaegal por baixo de um olho, e suas asas verde-jade abriram-se por um momento, agitando o ar parado do palanquim. Uma única lágrima perfeita correu pelo rosto de Xaro Xhoran Daxos. - Não há nada que a afaste dessa loucura? - Nada - Dany respondeu, desejando ter tanta certeza como aparentava, - Se cada um dos Treze me emprestasse dez navios... - Teria cento e trinta navios sem tripulação que os manobrasse. A justiça de sua causa nada significa para os homens comuns de Qarth. Por que meus marinheiros se preocupariam com quem se senta no trono de um reino qualquer nos limites do mundo? - Pagarei para que se preocupem. - Com que moedas, querida estrela do meu céu? - Com o ouro que trazem os que me procuram. - Pode fazer isso - Xaro reconheceu - , mas tanta preocupação custará caro. Terá de lhes pagar muito mais do que eu pago, e toda a Qarth ri da minha ruinosa generosidade. - Se os Treze não quiserem ajudar, talvez deva pedir à Guilda das Especiarias ou à Irmandade Turmalina? Xaro encolheu os ombros desinteressadamente. - Não lhe darão nada além de lisonjas e mentiras. Os da Guilda são hipócritas e arrogantes, e a Irmandade está cheia de piratas. 374 - Então terei de escutar Pyat Pree e ir até os magos. O príncipe mercador ergueu o corpo repentinamente. - Pyat Pree tem lábios azuis, e, com verdade, falam que lábios azuis dizem apenas mentiras.
Escute a sabedoria daquele que a ama. Os magos são criaturas amargas que comem poeira e bebem das sombras. Nada lhe darão. Nada têm para dar. - Não precisaria procurar a ajuda de feiticeiros se meu amigo Xaro Xhoan Daxos me desse o que peço. - Dei-lhe minha casa e meu coração, será que nada significam para a senhora? Dei-lhe perfume e romãs, macacos acrobáticos e cobras cuspidoras, pergaminhos da perdida Valíria, a cabeça de um ídolo e um pé de serpente. Dei-lhe este palanquim de ébano e ouro, e um conjunto de bois castrados para carregá-lo, um deles branco como marfim, e o outro negro como azeviche, com chifres incrustados de jóias. - Sim - Dany admitiu. - Mas o que eu queria eram navios e soldados. - E não lhe dei um exército, mais doce das mulheres? Mil cavaleiros, cada um com uma armadura reluzente. As armaduras tinham sido feitas de prata e ouro; os cavaleiros, de jade, berílio, ônix e turmalina, de âmbar, opala e ametista, todos do tamanho do seu mindinho. - Mil adoráveis cavaleiros - ela retrucou - , mas não do tipo que meus inimigos tenham de temer. E meus bois castrados não me podem transportar através das águas. Eu... Por que estamos parando? - os bois tinham desacelerado notavelmente. - Khaleesi - Aggo chamou por entre as cortinas enquanto o palanquim parava com uma sacudida súbita. Dany rolou sobre um cotovelo para se inclinar para fora. Encontravam-se nos limites da feira, com o caminho em frente bloqueado por uma muralha sólida de pessoas. - Para onde eles estão olhando? Jhogo voltou para junto dela. - Um mago de fogo, Khaleesi. - Quero ver. - Então tem de ver. O dothraki ofereceu-lhe uma mão. Quando ela a agarrou, ele a puxou para cima do cavalo e sentou-a à sua frente, onde podia ver por cima das cabeças da multidão. O mago de fogo tinha conjurado uma escada no ar, uma crepitante escada laranja, feita de chamas rodopiantes, que se erguia, sem suporte, do chão da feira ao alto telhado engradado. Dany notou que a maior parte dos espectadores não era da cidade. Viu marinheiros saídos de navios mercantes, mercadores vindos em caravanas, homens poeirentos chegados do deserto vermelho, soldados errantes, artesãos, comerciantes de escravos. Jhogo deslizou uma mão em torno de sua cintura e inclinou-se para ela. - Os Homens de Leite evitam-no. Khaleesi, vê a moça com o chapéu de feltro? Ali, atrás do sacerdote gordo. E uma... - ... batedora de carteira - Dany concluiu. Não era nenhuma senhora mimada, cega para tais coisas. Tinha visto batedoras com fartura nas ruas das Cidades Livres, durante os anos que passara fugindo, com o irmão, das lâminas contratadas pelo Usurpador. O mago gesticulava, instigando as chamas a subir cada vez mais com largos gestos de braço. Enquanto a assistência estendia o pescoço para cima, os batedores contorciam-se através da multidão, com pequenas lâminas escondidas nas palmas das mãos. Tiravam as moedas dos prósperos com uma mão enquanto apontavam com a outra para cima. 375 Quando a escada de fogo chegou aos doze metros de altura, o mago saltou para ela e começou a subi-la, escalando com as mãos tão depressa como um macaco. Cada degrau que tocava dissolvia-se sem deixar mais que um fiapo de fumaça prateada. Quando chegou ao topo, a escada desapareceu, e ele também. - Um belo truque - Jhogo afirmou com admiração. - Não é um truque - disse uma mulher no Idioma Comum. Dany não reparara em Quaithe entre a multidão, mas ali estava ela, com olhos úmidos e reluzentes por trás da implacável máscara de laca vermelha. - Que quer dizer, senhora? - Há meio ano, aquele homem mal conseguia despertar fogo em vidro de dragão. Possuía uma pequena habilidade com pós e fogovivo, o suficiente para fascinar a multidão enquanto seus batedores de carteira faziam seu trabalho. Conseguia caminhar sobre carvão quente e fazer com que rosas ardentes desabrochassem no ar, mas não podia aspirar a subir a escada de fogo mais do que um comum pescador podia ter esperança de pegar uma lula gigante em sua rede. Dany olhou para onde estivera a escada, sentindo-se desconfortável. Até a fumaça tinha desaparecido agora, e a multidão dispersava-se, com cada homem indo tratar de seus assuntos. Dentro de mais um momento, alguns iriam encontrar as bolsas moles e vazias. - E agora? - E agora seus poderes crescem, Khaleesi. E você é a causa disso. - Eu? - Dany riu. - Como assim? A mulher se aproximou e encostou dois dedos no pulso de Dany. - E a Mãe de Dragões, não é?
- E, e nenhum descendente das sombras pode tocá-la - Jhogo afastou seus dedos com o cabo do chicote. A mulher deu um passo para trás. - Deve deixar a cidade em breve, Daenerys Targaryen, senão, nunca lhe será permitido partir. Dany ainda sentia um formigamento no pulso, no local onde Quaithe a tinha tocado. - Para onde sugere que eu vá? - ela quis saber. - Para ir ao norte, deve viajar para o sul. Para alcançar o oeste, tem de ir para o leste. Para ir em frente, deve voltar para trás, e para tocar a luz, tem de passar sob a sombra. Asshai, pensou Dany. Ela quer que eu vá para Assbai. - Os asshafi vão me dar um exército? - quis saber. - Haverá ouro para mim em Asshai? Haverá navios? O que há em Asshai que não posso encontrar em Qarth? - A verdade - disse a mulher da máscara. E, com uma reverência, voltou a desaparecer na multidão. Rakharo fungou de desprezo por trás de seus bigodes negros e pendentes. - Khaleesi, um homem faria melhor se engolisse escorpiões do que se confiasse em descendentes das sombras que não se atrevem a mostrar a face à luz do sol, E sabido. - E sabido - Aggo concordou. Xaro Xhoan Daxos tinha observado toda a conversa de cima de suas almofadas. Quando Dany voltou a subir para o palanquim a seu lado, disse: - Seus selvagens são mais sábios do que julgam. Verdades como as que os asshai'i escondem não são do tipo que a fariam sorrir - então, obrigou-a a aceitar outra taça de vinho e tornou a falar de amor, luxúria e outras ninharias ao longo de toda a viagem de volta à mansão. 376 No sossego de seus aposentos, Dany despiu os adornos e envergou uma veste solta de seda púrpura. Os dragões estavam com fome, por isso cortou uma serpente e esturricou as fatias num braseiro. Eles estão crescendo, ela reparou enquanto os observava lançando mordidas uns aos outros, na disputa pela carne enegrecida. Devem pesar o dobro do que pesavam em Vaes Tolorro. Mesmo assim, ainda levaria anos até que fossem suficientemente grandes para ser levados para a guerra. E também devem ser treinados, caso contrário arrasarão meu reino, Apesar de todo o seu sangue Targaryen, Dany não fazia a menor idéia de como se treinava um dragão. Sor Jorah Mormont veio encontrá-la ao pôr do sol. - Os Puronatos disseram-lhe que não? - Tal como você disse que fariam. Venha, sente-se, dê-me seu conselho - Dany puxou-o para as almofadas a seu lado, e Jhiqui trouxe-lhes uma tigela de azeitonas roxas e cebolas marinadas em vinho. - Não conseguirá ajuda nesta cidade, khaleesi - Sor Jorah pegou uma cebola entre o indicador e o polegar. - Cada dia que passa, mais me convenço disso. Os Puronatos não veem além das muralhas de Qarth, e Xaro... - Xaro pediu-me de novo para casar com ele. - Sim, e eu sei por quê - quando o cavaleiro franzia a testa, suas pesadas sobrancelhas juntavam-se por cima de seus olhos encovados. - Ele sonha comigo, de dia e de noite - ela riu. - Perdoe-me, minha rainha, mas é com os seus dragões que ele sonha. - Xaro garante-me que em Qarth os homens e as mulheres mantêm suas propriedades depois de se casar. Os dragões são meus - Dany sorriu quando Drogon veio saltando e batendo as asas pelo chão de mármore para se aninhar na almofada ao seu lado. - Ele fala a verdade até onde disse, mas há uma coisa que se esqueceu de mencionar. Os qartenos têm um curioso costume nupcial, minha rainha. No dia da união, a esposa pode pedir um penhor de amor ao marido. Qualquer coisa que ela deseje de seus bens terrenos, ele tem de lhe conceder. E pode pedir-lhe a mesma coisa. Só uma coisa pode ser pedida, mas, seja o que for, não pode ser negado. - Uma coisa - ela repetiu. - E não pode ser negada? - Com um dragão, Xaro Xhoan Daxos governaria esta cidade, mas um navio pouco adianta à nossa causa. Dany mordiscou uma cebola e refletiu tristemente sobre a deslealdade dos homens. - Passamos pela feira no caminho de volta do Salão dos Mil Tronos - disse a Sor Jorah. - Quaithe estava lá - contou-lhe o que tinha visto o mago fazer com a escada de fogo, e o que a mulher da máscara vermelha lhe dissera, - Para falar a verdade, ficaria contente por deixar esta cidade - disse o cavaleiro quando ela se calou. - Mas não na direção de Asshai. - Então, para onde? - Para leste. - Mesmo aqui estou a meio mundo de distância do meu reino. Se for ainda mais para leste, posso nunca encontrar o caminho de volta a Westeros.
- Se for para oeste, arriscará a vida. - A Casa Targaryen tem amigos nas Cidades Livres - relembrou-lhe Dany. - Amigos mais verdadeiros do que Xaro ou os Puronatos. 377 - Se pensa em Illyrio Mopatis, tenho dúvidas. Em troca de ouro suficiente, Illyrio venderia a senhora tão depressa como a um escravo, - Meu irmão e eu fomos hóspedes na mansão de Illyrio durante meio ano, Se pretendesse nos vender, poderia ter feito isso na época. - Ele vendeu a senhora - Sor Jorah retrucou. - A Khal Drogo. Dany corou. O cavaleiro dizia a verdade, mas não gostou do tom duro que empregou na afirmação. - Illyrio protegeu-nos das facas do Usurpador, e acreditava na causa do meu irmão. - Illyrio não acredita em nenhuma causa a não ser na dele mesmo. Como regra, os glutões são homens gananciosos, e os magísteres, tortuosos. Illyrio Mopatis é ambas as coisas. O que sabe realmente sobre ele? - Sei que me deu os ovos de dragão. O cavaleiro fungou. - Se soubesse que os ovos podiam eclodir, teria se sentado pessoalmente sobre eles. Aquilo fez com que ela sorrisse a contragosto, -Ah, não tenho qualquer dúvida disso, sor. Conheço Illyrio melhor do que você pensa. Era uma criança quando deixei sua mansão em Pentos para desposar meu sol-e-estrelas, mas não era nem surda nem cega. E agora não sou criança, - Mesmo se Illyrio for o amigo que pensa que é - o cavaleiro disse teimosamente - , não é suficientemente poderoso para entronizá-la sozinho, tal como não pôde fazer ao seu irmão. - Ele é rico. Não tão rico como Xaro, talvez, mas suficientemente rico para contratar navios para mim, e também homens. - Mercenários têm suas utilidades - Sor Jorah admitiu - , mas não conquistará o trono do seu pai com o refugo das Cidades Livres. Nada une um reino fracionado tão depressa como um exército invasor em seu solo, - Eu sou sua legítima rainha - Dany protestou, - E uma estranha que pretende desembarcar em sua costa com um exército de forasteiros que sequer sabem falar o Idioma Comum. Os senhores de Westeros não a conhecem, e têm todos os motivos para temê-la e desconfiar da senhora. Precisa ganhá-los antes de zarpar. Pelo menos alguns. - E como é que posso fazer isso se for para leste como aconselha? Ele comeu uma azeitona e cuspiu o caroço na palma da mão. - Não sei, Vossa Graça, mas sei que quanto mais tempo permanecer num local, mais fácil será para seus inimigos a encontrarem. O nome Targaryen ainda os assusta. Tanto, que enviaram um homem para assassiná-la quando ouviram dizer que esperava um bebê. O que farão quando souberem de seus dragões? Drogon estava enrolado debaixo do seu braço, tão quente como uma pedra que tivesse passado o dia inteiro sob o sol escaldante. Rhaegal e Viserion lutavam por um naco de carne, estapeando-se mutuamente com as asas enquanto fumaça saía assobiando de suas narinas. Meus filhos furiosos, pensou Dany. Nada pode lhes acontecer. - O cometa trouxe-me a Qarth por um motivo. Tive esperança de encontrar aqui meu exército, mas parece que não será assim. Pergunto a mim mesma o que resta - tenho medo, compreendeu, mas devo ser corajosa, - Quando chegar a manhã, iremos encontrar Pyat Pree. 378 Tyrion A menina não chegou a chorar. Por mais nova que fosse, Myrcella Baratheon era uma princesa nata, E uma Lannister, apesar do nome, recordou-se Tyrion, tanto do sangue de Jaime como do de Cersei. Era certo que o sorriso da garota estava um tanto trêmulo quando os irmãos se despediram dela no convés do Mar Ligeiro, mas ela conhecia as palavras adequadas, e as proferiu com coragem e dignidade. Quando chegou a hora de se separarem, foi Príncipe Tommen quem chorou, e Myrcella quem o confortou. Tyrion observou as despedidas de cima do elevado convés do Martelo do Rei Robert, uma grande galé de guerra de quatrocentos remos. O Martelo de Rob, como os remadores o chamavam, constituiria a força principal da escolta de Myrcella. Estrela Leonina, Vento Ousado e Senhora Lyanna também viajariam com ela. Tyrion sentia-se mais do que um pouco incomodado ao destacar uma parte tão grande da sua já inadequada frota, amputada que estava de todos os navios que tinham partido com Lorde Stannis para Pedra do Dragão e nunca tinham voltado, mas Cersei não queria ouvir falar de nada menos. Talvez tivesse razão. Se a garota fosse capturada antes de alcançar Lançassolar, a aliança com Dorne ficaria em frangalhos. Até agora, Doran Martell não tinha feito nada além de chamar os vassalos. Depois de Myrcella estar a salvo em Bravos, prometera deslocar suas forças para os desfiladeiros elevados, onde a ameaça poderia levar alguns dos senhores da Marca a repensar suas lealdades, e Lorde Stannis a hesitar quanto à marchar para o Norte. Mas era apenas uma simulação. Os Martell não se entregariam realmente à batalha, a menos que o próprio Dorne fosse atacado, e Stannis não era assim tão tolo. Se bem que alguns de seus vassalos podem ser, Tyrion refletiu. Devia pensar nisso. Limpou a garganta: - Conhece as suas ordens, capitão. - Sim, senhor. Devemos seguir a costa, permanecendo sempre à vista da terra, até atingirmos a Ponta da Garra Rachada. Daí, devemos avançar através do mar estreito na direção de Bravos. Sob nenhuma circunstância deveremos velejar à vista de Pedra do Dragão. - E se nossos inimigos por acaso os avistarem mesmo assim? - Se for um navio isolado, deveremos fazê-lo fugir ou destrui-lo. Se houver mais, o Vento Ousado deverá se juntar ao Mar Ligeiro a fim de protegê-lo, enquanto o resto da frota dá batalha. Tyrion acenou. Se o pior acontecesse, o pequeno Mar Ligeiro deveria ser capaz de escapar de uma perseguição. Um navio pequeno com grandes velas era mais rápido do que qualquer navio de guerra, ou pelo menos era o que o capitão afirmara. Depois de Myrcella chegar a Bravos, devia estar a salvo. Tyrion enviava com ela Sor Arys Oakheart, a fim de servir como protetor 379 juramentado, e contratara os bravosianos para que a levassem pelo resto do caminho até Lançassolar. Até Lorde Stannis hesitaria em despertar a ira da maior e mais poderosa das Cidades Livres. Viajar de Porto Real a Dorne via Bravos dificilmente seria a mais direta das rotas, mas era a mais segura... ou pelo menos era essa a sua esperança. Se Lorde Stannis soubesse dessa viagem, não poderia escolher melhor momento para mandar sua frota contra nós. Tyrion olhou de relance para onde a Torrente se esvaziava na Baía da Água Negra, e ficou aliviado por não ver sinal de velas no amplo horizonte verde. Segundo o último relatório, a frota Baratheon permanecia ao largo de Ponta Tempestade, onde Sor Cortnay Penrose continuava a desafiar o cerco em nome do falecido Renly. Entretanto, estavam concluídos três quartos da construção das torres de guincho de Tyrion. Naquele exato momento, homens içavam pesados blocos de pedra para os seus lugares, enquanto decerto o xingavam por obrigá-los a trabalhar durante as festividades. Que xingassem. Mais uma quinzena, Stannis, é tudo de que preciso. Mais uma quinzena e ficará pronto, Tyrion observou a sobrinha, que se ajoelhava perante o Alto Septão, a fim de receber a bênção para a viagem. A luz do sol incidiu na coroa de cristal do homem e derramou arcos-íris sobre o rosto erguido de Myrcella. O ruído vindo da margem do rio tornava impossível ouvir as preces. Tyrion esperava que os deuses tivessem ouvidos mais aguçados do que ele. O Alto Septão era tão gordo como uma bola, e conseguia ser ainda mais pomposo e loquaz do que Pycelle. Basta, velho, ponha um ponto final nisso, Tyrion pensou, irritado. Os deuses têm coisas melhores afazer do que ouvir o que você diz, e eu também, Quando enfim terminaram os zumbidos e murmúrios, Tyrion despediu-se do capitão do Martelo de Rob, - Entregue minha sobrinha em segurança em Bravos, e haverá um grau de cavaleiro à sua espera quando regressar - ele prometeu. Enquanto abria caminho pela íngreme prancha até o cais, Tyrion sentia olhares pouco amistosos sobre ele. A galé oscilava suavemente, e o movimento sob seus pés fazia-o balançar mais do que nunca. Aposto que adorariam troçar. Ninguém se atrevia, pelo menos abertamente, se bem que tivesse ouvido resmungos misturados com os rangidos da madeira e das cordas e com o ruído que a corrente do rio fazia em torno das estacas. Eles não gostam de mim. Bem, pouco admira, Estou bem alimentado e sou feio, enquanto eles passam fome, Bronn o escoltou através da multidão para se juntar à irmã e aos filhos dela. Cersei o ignorou, preferindo derramar sorrisos sobre o primo. Observou-a encantando Lancei com olhos tão verdes como o cordão de esmeraldas que rodeava sua esguia garganta branca, e deu um pequeno sorriso dissimulado para si próprio. Conheço seu segredo, Cersei, pensou. A irmã visitara freqüentemente o Alto Septão nos últimos tempos, a fim de procurar as bênçãos dos deuses para a luta que se avizinhava com Lorde Stannis... Ou pelo menos era nisso que queria que ele acreditasse, Na verdade, após uma breve visita ao Grande Septo de Baelor, Cersei vestia um manto marrom comum de viajante e esgueirava-se para ir encontrar um certo pequeno cavaleiro que ostentava o improvável nome de Sor Osmund Kettleblack e seus irmãos, igualmente duvidosos, Osney e Osfryd. Lancei tinha lhe contado tudo a respeito deles. Cersei pretendia usar os Kettleblack para comprar sua própria força de mercenários. Bem, que desfrute de seus planos. Era muito mais amável quando pensava que o estava passando na frente. Os Kettleblack iriam encantá-la, receberiam seu dinheiro e prometeriam tudo o que ela pedisse. E por que não haveriam de fazer isso, se Bronn igualava cada centavo de cobre, moeda por moeda? Patifes amigáveis, todos os três, os irmãos eram na verdade muito mais 380 habilidosos na fraude do que algum dia tinham sido no derramamento de sangue. Cersei tinha conseguido comprar três tambores vazios; eles fariam todos os ferozes sons trovejantes que ela pedisse, mas não tinham nada por dentro. Aquilo divertia Tyrion infinitamente. Trombetas tocaram fanfarras quando o Estrela Leonina e o Senhora Lyanna se afastaram da costa, deslocando-se para jusante, a fim de abrir caminho ao Mar Ligeiro. Ouviram-se algumas aclamações vindas da multidão que se apertava nas margens, tão tênues e esfarrapadas como as nuvens que corriam no céu. Myrcella sorriu e acenou do convés. Atrás dela encontrava-se Arys Oakheart, com o manto branco ondulando ao vento, O capitão ordenou que as amarras fossem soltas, e os remos empurraram o Mar Ligeiro para a vigorosa correnteza da Torrente da Água Negra, onde suas velas desabrocharam ao vento... simples velas brancas, conforme Tyrion insistira, e não panos do carmim Lannister, O Príncipe Tommen soluçou. - Você mia como um bebê de peito - silvou-lhe o irmão. - Príncipes não devem chorar. - O Príncipe Aemon, Cavaleiro do Dragão, chorou no dia em que a Princesa Naerys se casou com o irmão Aegon - Sansa Stark interveio - , e os gêmeos Sor Arryk e Sor Erryk morreram com lágrimas no rosto depois de cada um deles ter dado ao outro um ferimento mortal, - Cale-se, senão ordeno que Sor Meryn dê a você um ferimento mortal - Joífrey disse à sua prometida. Tyrion olhou de relance para a irmã, mas Cersei estava absorta por alguma coisa que Sor Balon Swann lhe dizia. Será ela realmente tão cega para não ver o que ele é?, perguntou a si mesmo. No rio, o Vento Ousado desarmou os remos e deslizou corrente abaixo na esteira do Mar Ligeiro. Por fim, foi a vez do Martelo do Rei Robert, o poderio da frota real... ou pelo menos da porção que não tinha fugido com Stannis para Pedra do Dragão no ano anterior. Tyrion escolhera os navios com cuidado, evitando todos aqueles cujos capitães pudessem ser de lealdade duvidosa, de acordo com Varys... Mas, como o próprio Varys era de lealdade duvidosa, restava certo grau de apreensão. Dependo de Varys em excesso, refletiu. Preciso de meus próprios informantes. Não que fosse confiar neles. A confiança pode nos matar. Voltou a se interrogar a respeito de Mindinho, Não havia chegado quaisquer notícias de Petyr Baelish desde que partira para Ponteamarga. Isso podia não querer dizer nada... ou tudo. Nem mesmo Varys sabia. O eunuco sugerira que talvez Mindinho tivesse encontrado algum infortúnio nas estradas. Podia até estar morto, Tyrion fungara com ironia. - Se Mindinho está morto, eu sou um gigante. O mais provável era que os Tyrell estivessem recusando o casamento proposto. Tyrion dificilmente podia culpá-los por isso. Se eu fosse Mace Tyrell, mais depressa quereria ver a cabeça de Joffrey num espigão do que seu pau na minha filha. A pequena frota estava bem adiante na baía quando Cersei indicou que era hora de partir. Bronn trouxe o cavalo de Tyrion e o ajudou a montar. Aquela tarefa era de Podrick Payne, mas o tinham deixado na Fortaleza Vermelha. O magro mercenário tinha uma presença mais tranquilizadora do que o rapaz. As estreitas ruas eram defendidas por homens da Patrulha da Cidade, mantendo a multidão afastada com os cabos das lanças. Sor Jacelyn Bywater seguia à frente, encabeçando uma cunha de lanceiros a cavalo com cota de malha preta e manto dourado. Atrás dele vinham Sor Aron Santagar e Sor Balon Swann, transportando os estandartes do rei, o leão dos Lannister e o veado coroado dos Baratheon, Rei Joífrey seguia-os num alto palafrém cinza, com uma coroa dourada pousada em seus caracóis dourados. Sansa Stark montava uma égua alazã a seu lado, sem olhar nem para a esquerda 381 nem para a direita, com o espesso cabelo ruivo fluindo até os ombros em uma rede de selenitas. Dois dos membros da Guarda Real flanqueavam o casal, Cão de Caça à direita do rei e Sor Mandon Moore à esquerda da menina Stark. A seguir vinha Tommen, fungando, com Sor Preston Greenfield em sua armadura e manto brancos, e depois Cersei, acompanhada por Sor Lancei e protegida por Meryn Trant e Boros Blount. Tyrion ficou ao lado da irmã. Atrás deles seguia o Alto Septão em sua liteira, e uma longa comitiva de outros cortesãos: Sor Horas Redwyne, Senhora Tanda e a filha, Jalabhar Xho, Lorde Gyles Rosby e os outros. Uma dupla coluna de guardas fechava a retaguarda. Os barbados e sujos fitavam os cavaleiros com um ressentimento embotado, do outro lado da linha de lanças. Não gosto disso nem um pouquinho, Tyrion pensou. Bronn tinha um grupo de vinte mercenários espalhados pela multidão com ordens de acabar com qualquer problema antes de ele começar. Talvez Cersei tivesse colocado seus Kettleblack de forma semelhante. De algum modo, Tyrion achava que isso não ajudaria muito. Se o fogo estivesse quente demais, era difícil impedir que a sobremesa se queimasse atirando um punhado de passas para dentro da panela. Atravessaram a Praça dos Peixeiros e avançaram ao longo da Via Lamacenta antes de virar para o estreito e curvo Gancho e dar início à subida da Colina de Aegon. Algumas vozes começaram a gritar "Joffrey! Viva, viva!" enquanto o jovem rei passava, mas a cada homem que gritava, uma centena mantinha-se em silêncio. Os Lannister deslocavam-se através de um mar de homens esfarrapados e mulheres esfomeadas, enfrentando uma maré de olhos carrancudos. Bem à sua frente, Cersei ria de alguma coisa que Lancei tinha dito, embora Tyrion suspeitasse de que sua alegria era fingida. Não podia estar alheia à agitação que os rodeava, mas a irmã sempre acreditava em dar um espetáculo de bravura. Com metade da viagem percorrida, uma mulher em prantos forçou a passagem por entre dois guardas e correu para a rua, à frente do rei e de seus companheiros, segurando o cadáver do bebê morto acima da cabeça. Estava azul e inchado, grotesco, mas o verdadeiro horror eram os olhos da mãe. Joffrey olhou-a por um momento como se quisesse atropelá-la, mas Sansa Stark debruçou-se e lhe disse qualquer coisa. O rei atrapalhou-se com a bolsa e atirou à mulher um veado de prata. A moeda quicou na criança e afastou-se rolando, passando por baixo das pernas dos homens de manto dourado, para o meio da multidão, onde uma dúzia de homens começou a lutar por ela. A mulher nem sequer piscou. Seus braços muito magros tremiam com o peso morto do filho. - Deixe-a, Vossa Graça - Cersei gritou ao filho ela está para lá da nossa ajuda, coitada. A mãe ouviu. De algum modo a voz da rainha abriu caminho através da inteligência devastada da mulher. Seu rosto descuidado contorceu-se com repugnância. - Puta! - ela guinchou. - Puta do Regicida! Fode-irmãos! - seu filho morto caiu de seus braços como uma saca de farinha quando apontou para Cersei. - Fode-irmãos, fode-irmãos, fode-irmãos, Tyrion não chegou a ver quem atirou o esterco. Só ouviu o arquejo de Sansa e a praga berrada por Joffrey, e, quando virou a cabeça, o rei limpava sujeira marrom do rosto. Havia mais no seu cabelo dourado e salpicos pelas pernas de Sansa. - Quem atirou isso? - Joffrey gritou. Levou os dedos ao cabelo, fez uma cara furiosa e atirou ao chão mais um punhado de bosta. - Quero o homem que atirou isso! - gritou. - Cem dragões de ouro para o homem que o denunciar, - Ele estava ali em cima! - gritou alguém da multidão. O rei obrigou o cavalo a descrever um círculo a fim de inspecionar os telhados e as varandas abertas acima deles. Na multidão havia pessoas apontando, empurrando, amaldiçoando-se umas às outras e ao rei. 382 - Por favor, Vossa Graça, deixe-o ir - Sansa suplicou. O rei não prestou atenção. - Tragam o homem que atirou aquela imundície! - Joífrey ordenou. - Há de lambê-la de cima de mim, caso contrário corto sua cabeça. Cão, traga-o aqui! Obediente, Sandor Clegane saltou da sela, mas não havia maneira de passar através daquela muralha de carne, muito menos de subir ao telhado. Aqueles que estavam mais próximos começaram a se contorcer e a empurrar para se afastar, enquanto outros faziam pressão para a frente, queriam ver. Tyrion sentiu o cheiro do desastre. - Clegane, deixe-o, o homem já fugiu há muito tempo. - Eu quero esse homem! - Joífrey apontou para o telhado. - Ele estava ali em cima! Cão, abra caminho com a espada através deles e traga-me... Um tumulto de som afogou suas últimas palavras, um trovão rolante de raiva, medo e ódio que os submergiu por todos os lados. "Bastardo!", alguém gritou para Joífrey, "monstro bastardo." Outras vozes lançavam nomes como "Puta" e"Fode-irmãos" à rainha, enquanto Tyrion era crivado com gritos de"Aborto" e"Meio-Homem". Misturados com os insultos, ouviu alguns gritos por"Justiça" e "Robb, Rei Robb, o Jovem Lobo", por "Stannis!" e até por "Renly!". De ambos os lados da rua, a multidão encapelou-se contra os cabos das lanças enquanto os homens de mantos dourados lutavam para manter a fileira. Pedras, bosta e coisas piores zumbiam por cima das cabeças."Dê-nos comida!", guinchou uma mulher."Pão!" trovejou um homem atrás dela."Queremos pão, bastardo!" Num instante, mil vozes juntaram-se ao cântico. Rei Joífrey, Rei Robb e Rei Stannis foram esquecidos, e o Rei Pão governou sozinho. "Pão!", gritaram. "Pão, pão!" Tyrion esporeou o cavalo para o lado da irmã, gritando: - De volta ao castelo. Agora. Cersei fez um aceno brusco, e Sor Lancei desembainhou a espada. A frente da coluna, Jacelyn Bywater rugia ordens. Seus homens a cavalo baixaram as lanças e avançaram em cunha. O rei fazia o palafrém rodopiar em círculos ansiosos enquanto mãos atravessavam a fileira de mantos dourados, tentando agarrá-lo. Uma conseguiu pegar sua perna, mas só por um instante. A espada de Sor Mandon desceu, separando a mão do pulso. - Cavalga! - Tyrion gritou ao sobrinho, dando uma forte palmada na garupa do cavalo. O animal empinou-se, relinchando, e mergulhou à frente, obrigando a multidão a dispersar. Tyrion conduziu o cavalo para a abertura, na cola dos cascos do rei. Bronn acompanhou-o, de espada na mão. Uma pedra irregular passou voando perto de sua cabeça enquanto cavalgava, e uma couve podre explodiu contra o escudo de Sor Mandon. A esquerda do grupo, três homens de manto dourado caíram sob a força da multidão, que correu em frente, pisoteando os homens derrubados. Cão de Caça tinha desaparecido, embora seu cavalo cavalgasse sem cavaleiro ao lado deles. Tyrion viu Aron Santagar ser puxado de cima da sela, enquanto o veado dourado e negro dos Baratheon era arrancado de suas mãos. Sor Balon Swann deixou o leão dos Lannister cair para pegar a espada. Lançou golpes à direita e à esquerda, enquanto o estandarte caído era rasgado e mil pedaços esfarrapados rodopiavam para longe, como folhas carmesins num vento de tempestade, e, num instante, desapareceram. Alguém cambaleou para a frente do cavalo de Joífrey e berrou quando o rei o atropelou. Tyrion não seria capaz de dizer se tinha sido homem, mulher ou criança. Joífrey galopava ao seu lado, pálido como leite coalhado, com Sor Mandon Moore à sua esquerda como uma sombra branca. De repente, a loucura ficou para trás e ressoou pela praça pavimentada que se abria diante da barbacã do castelo. Uma fileira de lanceiros defendia os portões. Sor Jacelyn fazia seus lanceiros 383 descreverem meia-volta para outra investida. As lanças abriram-se para deixar o grupo do rei passar sob a porta levadiça. Muralhas vermelho-claras erguiam-se em volta deles, tranqüilizado ramente altas e repletas de besteiros. Tyrion não se lembrava de ter desmontado. Sor Mandon ajudava o abalado rei a descer do cavalo, enquanto Cersei, Tommen e Lancei atravessavam os portões com Sor Meryn e Sor Boros logo atrás. A lâmina de Boros estava coberta de sangue, e o manto branco de Meryn tinha sido arrancado de seus ombros. Sor Balon Swann entrou sem elmo, com a montaria espumando e a boca sangrando. Horas Redwyne trouxe a Senhora Tanda, meio enlouquecida de medo pela filha Lollys, que tinha sido derrubada da sela e deixada para trás. Lorde Gyles, com o rosto mais cinzento do que nunca, gaguejou uma história sobre ter visto o Alto Septão sendo derrubado da liteira, gritando preces enquanto a multidão o arrastava, Jalabhar Xho disse que pensava ter visto Sor Preston Greenfield da Guarda Real cavalgar na direção da liteira virada do Alto Septão, mas não tinha certeza. Tyrion ouviu vagamente um meistre perguntando se ele estava ferido. Abriu caminho pelo pátio aos empurrões até onde estava o sobrinho, com a coroa suja de esterco acomodada de lado na cabeça, - Traidores - Joffrey balbuciava, nervoso vou cortar as cabeças de todos, vou,.. O anão deu um tapa tão forte em sua cabeça coroada que a coroa voou. Depois, empurrou-o com ambas as mãos e o derrubou, fazendo-o estatelar-se no chão. - Seu maldito e cego idiota. - Eles eram traidores - do chão, Joffrey guinchou. - Chamaram-me de nomes e atacaram-me! - Você atiçou seu cão sobre elesl Que imaginava que fizessem, que dobrassem docilmente o joelho enquanto Cão de Caça cortava alguns braços e pernas? Seu garotinho mimado e imbecil, matou Clegane, e só os deuses sabem quantos mais, e, no entanto, você escapou sem um arranhão. Maldito seja! - Tyrion o chutou. A sensação era tão boa que poderia tê-lo feito mais vezes, mas Sor Mandon Moore o puxou para trás enquanto Joffrey uivava, e rapidamente Bronn estava ali para contê-lo. Cersei ajoelhou junto ao filho, enquanto Sor Balon Swann continha Sor Lancei. Tyrion libertou-se de Bronn com uma sacudida, - Quantos ainda estão lá fora? - gritou para ninguém e para todos. - Minha filha - chorou a Senhora Tanda. - Por favor, alguém tem de voltar à procura de Lollys... - Sor Preston não regressou - relatou Sor Boros Blount - , nem Aron Santagar. - Nem a Ama de Leite - disse Sor Horas Redwyne. Era o apelido jocoso que os outros escudeiros tinham atribuído a Tyrek Lannister. Tyrion passou os olhos pelo pátio. - Onde está a menina Stark? Por um momento, ninguém respondeu. Finalmente Joffrey falou: - Ela cavalgava a meu lado. Não sei para onde foi. Tyrion apertou as têmporas latejantes com dedos ásperos. Se algo tivesse acontecido a Sansa Stark, Jaime era um homem morto. - Sor Mandon, você era o escudo dela. O homem permaneceu impassível: - Quando atacaram Cão de Caça, pensei primeiro no rei. - E com razão - Cersei interveio. - Boros, Meryn, voltem e encontrem a menina. - E a minha filha? - soluçou a Senhora Tanda. - Por favor, sores... 384 Sor Boros não pareceu contente com a perspectiva de abandonar a segurança do castelo. - Vossa Graça - disse à rainha ver nossos mantos brancos pode enfurecer o povo. Tyrion tinha engolido o máximo que conseguia. - Que os Outros levem a porra de seus mantos! Tire-o, se tem medo de usá-lo, maldito imbecil... Mas encontre Sansa Stark ou, juro, mandarei que Shagga abra essa sua cabeça feia para ver se há alguma coisa aí dentro além de chouriços. Sor Boros ficou roxo de raiva, - Você está me chamando de feio? Você? - começou a erguer a espada ensangüentada que ainda agarrava com o punho coberto de cota de malha. Bronn empurrou Tyrion sem-cerimônia para trás de seu corpo. - Parem! - Cersei exclamou. - Boros, vá fazer o que lhe é pedido, ou encontraremos outra pessoa para usar esse manto. Seu voto... - Ali está ela! - Joífrey gritou, apontando. Sandor Clegane entrou pelos portões a um meio-galope, vivo, montado no corcel castanho de Sansa. A garota vinha sentada atrás, apertando o peito do Cão de Caça com ambos os braços. Tyrion gritou: - Está ferida, Senhora Sansa? Escorria sangue pela testa de Sansa, vindo de um golpe profundo em seu couro cabeludo. - Eles... Eles estavam atirando coisas... Pedras e sujeira, ovos.,. Tentei lhes dizer, não tinha pão para lhes dar. Um homem tentou me puxar da sela. Acho que Cão de Caça o matou... o braço dele... - seus olhos esbugalharam-se e ela colocou uma mão sobre a boca. - Ele cortou seu braço fora, Clegane pôs Sansa no chão. Seu manto branco estava rasgado e manchado, e saía sangue de um rasgo irregular na manga esquerda. - O passarinho está sangrando. Alguém tem que levá-lo de volta à gaiola e tratar daquele golpe - Meistre Franken aproximou-se rapidamente para obedecer. - Despacharam Santagar - prosseguiu Cão de Caça. - Quatro homens seguraram-no no chão e revezaram-se para bater em sua cabeça com uma pedra de pavimentação. Estripei um deles, não que isso tenha feito algum bem a Sor Aron. Senhora Tanda dirigiu-se a ele: - A minha filha... - Não cheguei a vê-la - Cão de Caça passou os olhos pelo pátio, de cenho carregado. - Onde está o meu cavalo? Se aconteceu alguma coisa àquele cavalo, alguém vai ter de pagar. - Ele veio correndo conosco durante algum tempo - Tyrion respondeu mas não sei o que houve depois disso, - Fogo! - gritou uma voz de cima da barbacã. - Senhores, há fumaça na cidade. A Baixada das Pulgas está ardendo. Tyrion estava indizivelmente cansado, mas não havia tempo para desespero. - Bronn, leve tantos homens quanto precisar e assegure-se de que os carros de água não sejam molestados - que os deuses sejam bons, ofogovivo, se alguma chama chegar até ele... - Podemos perder toda a Baixada das Pulgas se for preciso, mas em hipótese alguma o fogo poderá atingir o Palácio dos Alquimistas, está entendido? Clegane, você vai com ele. Durante meio segundo, Tyrion pensou vislumbrar medo nos olhos escuros do Cão de Caça. Fogo, compreendeu. Que os Outros me levem, claro que ele odeia fogo, já o experimentou bem demais. A expressão desapareceu num instante, substituída pela carranca familiar de Clegane. 385 - Irei - ele concordou mas náo por sua ordem. Tenho de encontrar aquele cavalo. Tyrion virou-se para os três cavaleiros restantes da Guarda Real. - Cada um de vocês irá escoltar um arauto. Ordenem a todos que retornem às suas casas. Qualquer homem que for encontrado nas ruas depois do último repique do toque de anoitecer será morto. - Nosso lugar é ao lado do rei - disse Sor Meryn com complacência. Cersei empinou-se como uma víbora: - Seu lugar é onde o meu irmão disser que é - ela cuspiu. - A Mão fala com a voz do rei, e desobediência é traição. Boros e Meryn trocaram um olhar. - Devemos usar nossos mantos, Vossa Graça? - Sor Boros perguntou. - Por mim podem até ir nus. Isso talvez lembre à multidão que são homens. E provável que tenham se esquecido disso depois de verem o modo como se comportaram lá fora. Tyrion deixou a irmã enfurecer-se. Sentia a cabeça latejando. Achava que conseguia sentir o cheiro de fumaça, embora talvez fosse apenas o odor de seus nervos desgastados. Dois dos Corvos de Pedra guardavam a porta da Torre da Mão. - Vão atrás de Timett, filho de Timett. - Os Corvos de Pedra não correm gritando atrás de Homens Queimados - informou-o um dos selvagens com altivez. Por um momento, Tyrion tinha se esquecido de com quem lidava. - Então vão atrás de Shagga. - Shagga dorme. Não gritar era um esforço. - Acorde-o. Vá. - Não é nada fácil acordar Shagga, filho de Dolf - o homem protestou. - Sua ira é temível - e foi embora resmungando. O homem dos clãs entrou calmamente, bocejando e se coçando.
- Metade da cidade está amotinada, a outra metade está ardendo, e Shagga ronca - Tyrion o recebeu. - Shagga não gosta da água lamacenta que aqui tem, por isso tem de beber da sua cerveja fraca e do seu vinho azedo, e depois a cabeça dói. - Tenho Shae numa mansão perto do Portão de Ferro. Quero que vá até lá e a mantenha a salvo, aconteça o que acontecer. O enorme homem sorriu, com os dentes transformados numa fenda amarela no território selvagem e peludo de sua barba. - Shagga vai trazê-la para cá. - Somente assegure-se de que nenhum mal lhe aconteça. Diga-lhe que irei encontrá-la assim que puder. Talvez ainda esta noite, ou com certeza amanhã. Mas, ao cair da noite, a cidade continuava em tumulto, embora Bronn relatasse que os incêndios tinham sido apagados e que a maior parte dos grupos errantes tinha se dispersado. Por mais que Tyrion ansiasse pelo conforto dos braços de Shae, compreendeu que naquela noite não iria a lugar nenhum, Sor Jacelyn Bywater entregou a fatura do carniceiro enquanto Tyrion jantava capão frio e pão de centeio entre as sombras de seu aposento privado. Àquela altura, o ocaso já havia se transfor386 mado em trevas, mas quando os criados vieram acender suas velas e um fogo na lareira, Tyrion rugira e os pusera para correr. Seu humor estava tão negro como o aposento, e Bywater não disse nada que o iluminasse. A lista dos mortos era encabeçada pelo Alto Septão, destroçado enquanto gritava aos seus deuses por misericórdia. Homens famintos olham com olhos duros para sacerdotes gordos demais para andar, Tyrion refletiu. O cadáver de Sor Preston, a princípio, não tinha sido notado; os homens de manto dourado tinham andado à procura de um cavaleiro em armadura branca, mas ele havia sido tão cruelmente apunhalado e golpeado que estava vermelho-amarronzado da cabeça aos pés. Sor Aron Santagar tinha sido encontrado numa sarjeta, com a cabeça transformada numa polpa vermelha dentro de um elmo esmagado, A filha da Senhora Tanda cedera sua virgindade a meia centena de homens aos gritos atrás de uma tanoaria. Os homens de manto dourado tinham-na encontrado vagueando, nua, pelo Quarteirão do Porco Salgado. Tyrek continuava desaparecido, tal como a coroa de cristais do Alto Septão. Nove homens de manto dourado tinham sido mortos, e havia quarenta feridos. Ninguém se incomodara em contar quantos haviam morrido entre a multidão. - Quero Tyrek, vivo ou morto - Tyrion disse secamente quando Bywater se calou. - Ele não passa de um garoto. Filho do meu falecido tio Tygett. O pai sempre foi bom para mim. - Vamos encontrá-lo. E a coroa do septão também. - Por mim, os Outros bem podem enrabar-se uns aos outros com a coroa do septão. - Quando me nomeou para comandar a Patrulha, disse que queria a verdade pura, sempre, - Por algum motivo, tenho a sensação de que não vou gostar do que quer que tenha a dizer - Tyrion disse sombriamente. - Hoje seguramos a cidade, senhor, mas não faço promessas para amanhã, A chaleira está perto da fervura. Há lá fora tantos ladrões e assassinos que nenhuma casa está em segurança, o fluxo sangrento espalha-se pelos refeitórios ao longo da Curva da Urina, e não há comida que se compre por cobre ou prata. Onde antes só se ouviam resmungos vindos da sarjeta, agora fala-se abertamente de traição em palácios de guildas e mercados. - Precisa de mais homens? - Não confio em metade dos homens que tenho agora. Slynt triplicou o tamanho da Patrulha, mas é preciso mais do que um manto dourado para fazer um vigia. Há homens bons e leais entre os novos recrutas, mas também há mais brutos, bêbados, covardes e traidores do que gostaria de saber. Estão meio treinados, mas são indisciplinados, e a lealdade que têm é para com a própria pele. Caso se chegue à batalha, temo que não resistam. - Nunca esperei que resistissem - Tyrion respondeu. - Desde o início sei que assim que nossas muralhas abrirem uma brecha, estaremos perdidos. - Meus homens vêm, na sua maioria, do povo. Caminham pelas mesmas ruas, bebem nas mesmas tabernas, servem-se das mesmas tigelas de castanho dos mesmos refeitórios. Seu eunuco já lhe deve ter dito que há pouco amor pelos Lannister em Porto Real. Muitos ainda se lembram de como o senhor seu pai saqueou a cidade, quando Aerys lhe abriu os portões. Sussurram que os deuses estão nos punindo pelos pecados de sua Casa... pelo assassinato do Rei Aerys por seu irmão, pelo massacre dos filhos de Rhaegar, pela execução de Eddard Stark e pela selvageria da justiça de Joífrey. Alguns falam abertamente de como as coisas eram melhores quando Robert era rei, e sugerem que os tempos voltariam a melhorar com Stannis no trono. 387 Ouvem-se essas coisas em refeitórios, tabernas e bordéis... e temo que também se ouçam em casernas e salões de guardas.
- Odeiam minha família, é isso que está me dizendo? - Sim... E vão se virar contra ela, se houver uma oportunidade. - Também me odeiam? - Pergunte ao seu eunuco. - Estou perguntando a você. Os olhos encovados de Bywater enfrentaram os desiguais do anão e não pestanejaram. - Acima de tudo, senhor. - Acima de tudo? - a injustiça o sufocava. - Foi Joffrey quem lhes disse para comer seus mortos, foi Joffrey quem atiçou seu cão sobre eles. Como podem me culpar? - Sua Graça não passa de um rapaz. Nas ruas, dizem que tem conselheiros malignos. A rainha nunca foi conhecida como uma amiga da plebe, nem chamam Lorde Varys de Aranha por amor... Mas é você quem mais culpam. Sua irmã e o eunuco estavam aqui quando os tempos eram melhores sob o reinado do Rei Robert, mas você não. Dizem que encheu a cidade de mercenários arrogantes e selvagens que não tomam banho, brutos que roubam o que desejam e não seguem nenhuma lei, a não ser a deles próprios. Dizem que exilou Janos Slynt porque o achou direto e honesto demais para o seu gosto. Dizem que atirou o sábio e gentil Pycelle na masmorra quando se atreveu a levantar a voz contra você. Alguns até dizem que planeja tomar o Trono de Ferro para si. - Sim, e além de tudo sou um monstro, hediondo e deformado, nunca se esquecça disso - a mão de Tyrion enrolou-se num punho. - Já ouvi o suficiente. Ambos temos trabalho a fazer. Deixe-me. Talvez o senhor meu pai tivesse razão em me desprezar ao longo de todos esses anos, se isto é o melhor que consigo realizar, Tyrion pensou depois de ficar sozinho. Fitou os restos do jantar, sentindo um incômodo na barriga ao ver o capão frio e gorduroso, Repugnado, afastou-o para longe de si, gritou por Pod, e enviou o rapaz para chamar, correndo, Varys e Bronn. Meus conselheiros de maior confiança são um eunuco e um mercenário, e minha senhora é uma prostituta. O que isso diz de mim? Bronn queixou-se da escuridão quando chegou, e insistiu em acender a lareira, que já ardia bem quando Varys surgiu. - Onde esteve? - Tyrion quis saber. - Tratando de assuntos do rei, meu querido senhor. - Ah, sim, o rei... Meu sobrinho não é capaz de se sentar numa latrina, quanto mais no Trono de Ferro. Varys encolheu os ombros: - Deve-se ensinar o ofício a um aprendiz. - Metade dos aprendizes da Alameda dos Vapores conseguiriam governar melhor do que esse seu rei - Bronn sentou-se do outro lado da mesa e arrancou uma asa do capão. Tyrion tinha desenvolvido o hábito de ignorar as freqüentes insolências do mercenário, mas naquela noite achava-as vexatórias. - Não me lembro de lhe dar licença para acabar meu jantar. - Não parecia estar comendo - Bronn respondeu com a boca cheia de carne. - A cidade passa fome, desperdiçar comida é um crime. Tem vinho? A seguir vai querer que o sirva, pensou Tyrion sombriamente. 388 - Você vai longe demais - preveniu-o. - E você nunca vai longe o suficiente - Bronn atirou, com fúria, o osso da asa. - Já pensou em como a vida seria fácil se o outro tivesse nascido primeiro? - enfiou os dedos no capão e arrancou um pedaço de peito. - O chorão, Tommen. Parece que faria tudo o que lhe dissessem, como um bom rei devia fazer. Um arrepio desceu pela espinha de Tyrion quando compreendeu o que o mercenário estava sugerindo. Se Tommen fosse rei... Só havia uma maneira de Tommen se tornar rei. Não, nem podia pensar nisso. Joífrey pertencia ao seu sangue, e era tanto filho de Jaime como de Cersei. - Podia mandar decapitá-lo por dizer isso - disse a Bronn, mas o mercenário limitou-se a rir. - Amigos - disse Varys discussões de nada nos servem. Peço a ambos, ponham o coração nas mãos. - O coração de quem? - Tyrion perguntou com amargura. Conseguia pensar em várias hipóteses tentadoras. 389 Davos Sor Cortnay Penrose náo usava armadura. Montava um garanhão alazão, e seu porta-estandartes, um cinza sarapintado. Por cima deles esvoaçavam o veado coroado de Baratheon e as penas cruzadas de Penrose, brancas em fundo ferrugem. A barba de Sor Cortnay, em forma de pá, era também cor de ferrugem, embora ele tivesse se tornado completamente calvo. Se o tamanho e esplendor do grupo do rei o impressionava, não o demonstrava naquele rosto desgastado. Aproximaram-se a trote, com muito tinir de cotas de malha e chocalhar de placas de armadura. Até Davos usava cota de malha, embora não pudesse explicar por quê; seus ombros e o lombo doíam devido ao peso pouco habitual. Fazia-o sentir-se oprimido e tolo, e perguntou uma vez mais a si mesmo por que motivo estava ali. Não me cabe questionar as ordens do rei, e, no entanto... Todos os membros do grupo eram de melhor nascimento e posição mais elevada do que Davos Seaworth, e os grandes senhores cintilavam ao sol da manhã. Aço prateado e relevos de ouro abrilhantavam suas armaduras, e seus elmos de guerra eram ornamentados com uma profusão de plumas de seda, penas e animais heráldicos destramente trabalhados com olhos de pedras preciosas. O próprio Stannis parecia deslocado naquela companhia rica e régia. Tal como Davos, o rei vinha simplesmente vestido de lã e couro fervido, embora o diadema de ouro vermelho que emoldurava suas têmporas lhe emprestasse uma certa grandeza. A luz do sol relampejava nas pontas em forma de chama sempre que ele movia a cabeça. Aquilo era o mais perto que Davos havia chegado de Sua Graça nos oito dias que se passaram desde que o Betha Negra tinha se juntado ao resto da frota ao largo de Ponta Tempestade. Pedira audiência menos de uma hora depois de ter chegado, mas foi informado de que o rei estava ocupado. Ele estava freqüentemente ocupado, soube Davos pelo filho Devan, um dos escudeiros reais. Agora que Stannis Baratheon tinha assumido o poder, os fidalgos zumbiam ao seu redor como moscas em torno de um cadáver. E ele também parece meio cadavérico, anos mais velho do que quando parti de Pedra do Dragão. Devan dizia que nos últimos tempos o rei quase não dormia. - Desde que Lorde Renly morreu, tem sido perturbado por pesadelos terríveis - o rapaz tinha confidenciado ao pai, - As poções do meistre não lhe afetam. Só a Senhora Melisandre consegue acalmá-lo o suficiente para voltar ao sono. Será por isso que ela divide agora seu pavilhão?, perguntou-se Davos. Para rezar com ele? Ou será que tem outra maneira de acalmá-lo o suficiente para voltar ao sono? Era uma pergunta indigna, que não se atrevia a fazer, mesmo ao seu próprio filho. Devan era um bom rapaz, mas usava orgulhosamente o coração flamejante no gibão, e o pai vira-o junto às fogueiras ao pôr do sol, implorando 390 ao Senhor da Luz que trouxesse a alvorada. Ele é o escudeiro do rei, disse a si mesmo, era de esperar que adotasse o deus do rei. Davos quase tinha se esquecido de como as muralhas de Ponta Tempestade se erguiam altas e espessas quando vistas de perto. Rei Stannis parou à sombra delas, a pouco mais de um metro de Sor Cortnay e de seu porta-estandarte. - Sor - ele disse com rígida cortesia. Mas não fez nenhum movimento para desmontar. - Senhor - aquilo era menos cortês, mas não inesperado. - E costume tratar um rei por Vossa Graça - anunciou Lorde Florent. Uma raposa vermelha de ouro projetava o focinho brilhante da sua placa de peito através de um círculo de flores em lápis-lazúli. Muito alto, muito palaciano e muito rico, o Senhor da Fortaleza de Águas Claras tinha sido o primeiro dos vassalos de Renly a declarar apoio a Stannis, e o primeiro a renunciar aos seus antigos deuses e a adotar o Senhor da Luz. Stannis deixara sua rainha em Pedra do Dragão com o tio Axell, mas os homens da rainha eram mais numerosos e poderosos do que nunca, e Alester Florent era o que mais se destacava entre eles. Sor Cortnay Penrose ignorou-o, preferindo se dirigir a Stannis. - Esta é uma notável companhia. Os grandes senhores Estermont, Errol e Varner. Sor Jon dos Fossoway da maçã verde e Sor Bryan da vermelha. Lorde Caron e Sor Guyard da Guarda Arco-íris do Rei Renly... e o poderoso Lorde Alester Florent de Águas Claras, é claro. Aquele é o seu Cavaleiro das Cebolas que vejo lá atrás? É bom vê-lo, Sor Davos. Receio não conhecer a senhora. - Meu nome é Melisandre, sor - só ela tinha vindo sem outra armadura além de suas soltas vestes vermelhas. Na garganta, o rubi vermelho bebia a luz do dia. - Sirvo ao seu rei e ao Senhor da Luz. - Desejo-lhe felicidades com eles, senhora - Sor Cortnay respondeu. - Mas curvo-me perante outros deuses e um rei diferente. - Não há mais do que um rei verdadeiro e um deus verdadeiro - anunciou Lorde Florent. - Estamos aqui para discutir teologia, senhor? Se soubesse, teria trazido um septão. - Sabe perfeitamente bem por que motivo estamos aqui - Stannis finalmente falou. - Teve uma quinzena para refletir sobre a minha proposta. Enviou seus corvos. Nenhuma ajuda veio. Nem virá. Ponta Tempestade está sozinha, e já não tenho paciência. Pela última vez, sor, ordeno-lhe que abra os portões, e me entregue o que é legitimamente meu. - E as condições? - Sor Cortnay quis saber, - Permanecem as mesmas. Vou perdoá-lo por sua traição, assim como perdoei estes senhores que vê atrás de mim. Os homens de sua guarnição serão livres para entrar ao meu serviço ou para voltar às suas casas sem ser incomodados. Pode conservar suas armas e tanta propriedade quanto um homem for capaz de transportar. No entanto, necessitarei de seus cavalos e animais de carga. - E quanto a Edric Storm? - O bastardo do meu irmão deve ser entregue a mim. - Neste caso, minha resposta continua a ser não, senhor. O rei apertou o maxilar. E nada disse. Em seu lugar, foi Melisandre quem falou: - Que o Senhor da Luz o proteja na escuridão, Sor Cortnay. - Que os Outros comam o cu do seu Senhor da Luz - cuspiu Penrose de volta - , e limpem-no com esse trapo que você transporta. 391 Lorde Alester Florent pigarreou: - Sor Cortnay, tenha tento na língua. Sua Graça não deseja nenhum mal ao rapaz. O garoto é do seu sangue, e também do meu. A mãe foi minha sobrinha Delena, como todos sabem. Se não confia no rei, confie em mim. Conhece-me como um homem de honra... - Conheço-o como um homem de ambição - Sor Cortnay o interrompeu. - Um homem que troca de reis e de deuses como eu troco de botas. Tal como esses outros vira-casacas que vejo à minha frente. Um clamor irado ergueu-se entre os homens do rei. Ele não se engana muito, Davos pensou. Pouco tempo antes, os Fossoway, Guyard Morrigen e os Lordes Caron, Varner, Errol e Estermont tinham pertencido a Renly. Tinham se sentado em seu pavilhão, ajudado-o a fazer seus planos de batalha, e planejado o modo de subjugar Stannis. E Lorde Florent estivera com eles... Podia ser tio da Rainha Selyse, mas isso não havia impedido o Senhor de Águas Claras de dobrar o joelho a Renly quando a estrela deste subia. Bryce Caron fez o cavalo avançar alguns passos, com o longo manto listrado de arco-íris retorcendo-se sob o vento vindo da baía. - Nenhum homem aqui é um vira-casaca, sor. Minha lealdade pertence a Ponta Tempestade, e Rei Stannis é o seu senhor legítimo... e o nosso verdadeiro rei. É o último da Casa Baratheon, herdeiro de Robert e de Renly. - Se é assim, por que o Cavaleiro das Flores não está entre vocês? E onde está Matthis Rowan? Randyll Tarly? A Senhora Oakheart? Por que eles não se encontram aqui em sua companhia, aqueles que mais amavam Renly? Onde está Brienne de Tarth, pergunto-lhes? - Essa? - Sor Guyard Morrigen soltou uma gargalhada dura. - Fugiu, E foi o que lhe valeu. Foi dela a mão que matou o rei. - Mentira - Sor Cortnay reagiu. - Conheci Brienne quando não passava de uma menina que brincava aos pés do pai no Solar do Entardecer, e conheci-a ainda melhor quando o Estrela da Tarde a mandou para cá, para Ponta Tempestade, Ela amou Renly desde o momento em que pôs os olhos sobre ele, qualquer cego podia ver. - Com certeza - declarou Lorde Florent com desenvoltura e estaria longe de ser a primeira donzela enlouquecida e levada ao assassinato pela rejeição de um homem, Se bem que, a meu ver, creio que quem matou o rei foi a Senhora Stark. Ela tinha vindo de Correrrio para apelar por uma aliança, e Renly recusara. Não há dúvida de que viu nele um perigo para o filho e o removeu, - Foi Brienne - insistiu Lorde Caron. - Sor Emmon Cuy jurou que assim era antes de morrer, Você tem a minha palavra, Sor Cortnay. O desprezo engrossou a voz de Sor Cortnay. - E de que vale isso? Usa seu manto de muitas cores, pelo que vejo. Aquele que Renly lhe deu quando jurou com sua palavra protegê-lo. Se ele está morto, como é que você permanece vivo? - voltou seu desdém para Guyard Morrigen. - Podia perguntar-lhe o mesmo, Sor Guyard, o Verde, não é? Da Guarda Arco-íris? Que jurou dar a vida pela do rei? Se eu tivesse um manto desses, teria vergonha de usá-lo, Morrigen irritou-se: - Fique feliz por isso ser uma conferência, Penrose, caso contrário arrancaria sua língua por conta dessas palavras. - E iria atirá-la na mesma fogueira onde deixou seu membro viril? - Basta! - Stannis retrucou. - Foi vontade do Senhor da Luz que meu irmão morresse pela sua traição. Quem cometeu o ato não importa. 392 - Talvez não importe ao senhor - Sor Cortnay revidou, - Escutei sua proposta, Lorde Stannis, Eis agora a minha - tirou a luva e a acertou em cheio no rosto do rei. - Combate singular. Espada, lança ou qualquer arma que quiser mencionar. Ou, se temer arriscar sua espada mágica e real pele contra um velho, nomeie um campeão, e eu farei o mesmo - deu a Guyard Morrigen e a Bryce Caron um olhar contundente. - Qualquer um desses cachorros servirá muito bem, creio eu.
Sor Guyard Morrigen escureceu de fúria: - Eu aceito o desafio, se agradar ao rei. - E eu também - Bryce Caron olhou para Stannis. O rei rangeu os dentes: - Não. Sor Cortnay não pareceu surpreso. - E da justiça de sua causa que duvida, senhor, ou da força de seu braço? Tem medo que eu mije em sua espada flamejante e a apague? - Considera-me um completo idiota, sor? - Stannis perguntou, - Tenho vinte mil homens. Está cercado por terra e por mar. Por que escolheria um combate singular quando minha vitória é certa? - o rei apontou-lhe um dedo. - Ofereço-lhe um aviso leal. Se me forçar a tomar meu castelo de assalto, não poderá esperar misericórdia. Vou enforcá-lo por traição, e a cada um dos seus. - Como os deuses queiram. Traga aí o seu assalto, senhor.., e recorde, por obséquio, a história deste castelo - Sor Cortnay deu um puxão nas rédeas e regressou na direção ao portão. Stannis não proferiu palavra, mas virou o cavalo e dirigiu-se ao seu acampamento. Os outros o seguiram. - Se assaltarmos estas muralhas, milhares de homens morrerão - inquietou-se o velho Lorde Estermont, avô do rei pelo lado da mãe. - Não seria melhor arriscar uma única vida? Nossa causa é justa, e os deuses certamente abençoariam as armas do nosso campeão com a vitória. É deus, velho, Davos pensou. Esqueceu-se, agora temos só um, o Senhor da Luz de Melisandre. Sor Jon Fossoway disse: - De bom grado aceitaria eu mesmo o desafio dele, ainda que esteja longe de ser um espadachim tão bom quanto Lorde Caron ou Sor Guyard. Renly não deixou cavaleiros hábeis em Ponta Tempestade. O serviço na guarnição é para velhos e rapazes inexperientes. Lorde Caron concordou: - Uma vitória fácil, com certeza. E que glória, conquistar Ponta Tempestade com um único golpe! Stannis varreu-os com um olhar: - Tagarelam como gralhas, e com menos esperteza. Quero silêncio - os olhos do rei caíram sobre Davos. - Sor. Acompanhe-me - esporeou o cavalo, afastando-o dos demais seguidores. Só Melisandre o acompanhou, transportando o grande estandarte do coração flamejante com o veado coroado no interior. Como se tivesse sido engolido inteiro. Davos viu os olhares dos fidalgos sobre si enquanto passava por eles para ir se juntar ao rei. Aqueles não eram cavaleiros das cebolas, mas homens orgulhosos com casas cujos nomes carregavam honras antigas. De algum modo soube que Renly nunca os tinha censurado daquela forma. O mais novo dos Baratheon nascera com um dom para a cortesia fácil que infelizmente faltava ao irmão. Reduziu o passo para um trote lento quando seu cavalo emparelhou-se ao do rei. 393 - Vossa Graça - visto de perto, Stannis parecia pior do que Davos julgara de longe. Seu rosto tinha se tornado macilento, e possuía círculos escuros sob os olhos. - Um contrabandista deve ser bom em julgar os homens - disse o rei. - O que pensa desse Sor Cortnay Penrose? - E um homem teimoso - Davos respondeu com cautela. - Com fome de morte, diria eu. Jogou meu perdão na minha cara. Sim, e joga a vida fora ao mesmo tempo, com as vidas de todos os homens que estão dentro daquelas muralhas. Combate singular? - o rei soltou uma fungadela de escárnio. - Certamente confundiu-me com Robert. - É mais provável que estivesse desesperado. Que outra esperança tem? - Nenhuma. O castelo cairá. Mas, como fazê-lo rapidamente? - Stannis cismou com aquilo por um momento. Sob o ritmado clac-clac dos cascos, Davos conseguia ouvir o tênue som do rei rangendo os dentes. - Lorde Alester insiste para que traga aqui o velho Lorde Penrose. Pai de Sor Cortnay. Conhece o homem, creio? - Quando vim como seu enviado, Lorde Penrose recebeu-me mais cortesmente do que a maioria. É um homem velho e acabado, senhor. Enfermiço e abatido. - Florent gostaria de abatê-lo mais visivelmente. A vista do filho, com uma corda em volta do pescoço. Era perigoso opor-se aos homens da rainha, mas Davos tinha jurado dizer sempre a verdade ao rei. - Penso que seria ruim fazer isso, meu suserano. Sor Cortnay ficará vendo o pai morrer antes de pensar em trair sua confiança. Nada nos acrescentaria, e traria desonra à nossa causa. - Que desonra? - Stannis se irritou. - Será que quer que poupe a vida de traidores? - Poupou a vida daqueles que vêm atrás de nós. - Censura-me por isso, contrabandista? - Não cabe a mim fazer tal coisa - Davos temeu ter dito demais.
O rei estava implacável. - Estima este Penrose mais do que os senhores meus vassalos. Por quê? - Ele é fiel. - Uma fidelidade mal dirigida a um usurpador morto. - Sim. Mas, apesar disso, é fiel. - E aqueles que vêm atrás de nós, não? Davos tinha chegado longe demais com Stannis para se acanhar agora. - No ano passado eram homens de Robert. Há uma lua eram de Renly. Hoje são nossos. De quem serão amanhã? Stannis riu. Uma súbita gargalhada, rouca e cheia de desdém. - Eu lhe disse, Melisandre - falou à mulher vermelha, - Meu Cavaleiro das Cebolas diz a verdade para mim. - Vejo que o conhece bem, Vossa Graça - a mulher vermelha retrucou. - Davos, senti imensamente a sua falta - o rei disse. - Sim, tenho um séquito de traidores, seu nariz não o engana. Os senhores meus vassalos são inconstantes até em suas traições. Necessito deles, mas deve saber como me enoja perdoar gente assim quando puni homens melhores por crimes menores. Tem todo o direito de me censurar, Sor Davos, - Censura-se a si mesmo mais do que eu alguma vez seria capaz de fazer, Vossa Graça. Precisa desses grandes senhores para conquistar seu trono... - Com os dedos e tudo, ao que parece - Stannis deu um sorriso sombrio. 394 Sem pensar, Davos levou a mão mutilada à bolsa pendurada ao pescoço e sentiu os ossos dos dedos lá dentro. Sorte. O rei viu o movimento. - Ainda estão aí, Cavaleiro das Cebolas? Não os perdeu? - Não. - Por que motivo os guarda? Questiono-me sobre isso com freqüência. - Lembram-me daquilo que eu era. De onde vim. Lembram-me da sua justiça, meu suserano. - E foi justiça - Stannis afirmou. - Um bom ato não lava os maus, e um mau não lava os bons. Cada um deve ter sua recompensa. Você foi um herói e um contrabandista - olhou de relance para trás, para Lorde Florent e os outros, cavaleiros do arco-íris e vira-casacas, que o seguiam a distância. - Aqueles senhores perdoados fariam bem em refletir sobre isso. Homens bons e leais lutarão por Joffrey, considerando-o erroneamente o legítimo rei. Um nortenho até pode dizer o mesmo de Robb Stark. Mas estes senhores que se reuniram aos estandartes do meu irmão sabiam que ele era um usurpador. Viraram as costas ao seu legítimo rei por nenhum motivo melhor do que sonhos de poder e glória, e eu tomei nota do que eles são. Perdoei-lhes, sim. Estão desculpados. Mas não esqueci - caiu no silêncio por um momento, meditando sobre seus planos de justiça. E então, abruptamente, disse: - O que o povo diz da morte de Renly? - Sofre. Seu irmão era muito querido. - Os tolos amam um tolo, mas eu também sofro por ele. Pelo garoto que foi, não pelo homem que se tornou - o rei ficou em silêncio durante algum tempo, e depois disse: - Como os plebeus receberam a notícia sobre o incesto de Cersei? - Enquanto estávamos entre eles, gritaram pelo Rei Stannis. Não posso falar do que disseram depois de termos zarpado. - Então acha que eles não acreditaram? - Em meus tempos de contrabando, aprendi que alguns homens acreditam em tudo, e outros em nada. Encontramos dos dois tipos. E também há outra história sendo disseminada. - Sim - Stannis cortou a palavra com uma mordida. - Selyse deu-me chifres e amarrou campainhas de bobo nas pontas deles. Minha filha gerada por um bobo retardado! Uma história tão torpe como absurda. Renly atirou-a na minha cara quando nos encontramos para conferenciar. É preciso ser tão louco como o Cara-Malhada para acreditar em uma coisa dessas. - Pode ser que sim, meu suserano... Mas, quer acreditem na história, quer não, adoram contála - os boatos tinham chegado a muitos lugares antes deles, envenenando o poço para a história verdadeira que transportavam. - Robert podia encher uma taça de urina e os homens iriam chamá-la de vinho, mas eu lhes ofereço água pura e fresca e olham-na de viés, suspeitosos, enquanto murmuram uns com os outros sobre o estranho sabor que tem - Stannis rangeu os dentes. - Se alguém dissesse que eu tinha me transformado num javali para matar Robert, provavelmente acreditariam nisso também. - Não pode impedi-los de falar, meu suserano, mas quando levar a vingança aos verdadeiros assassinos de seu irmão, o reino saberá que tais histórias são mentiras. Stannis só pareceu ouvir metade do que ele disse. - Não tenho qualquer dúvida de que Cersei teve um dedo na morte de Robert, Obterei justiça por ele. Sim, e por Ned Stark e Jon Arryn também. - E por Renly? - as palavras saíram antes que Davos conseguisse parar para pesá-las. Durante um tempo longo o rei não falou. Então, muito baixo, disse:
395 - Às vezes sonho com isso. Com a morte de Renly. Uma tenda verde, velas, uma mulher gritando. E sangue - Stannis baixou os olhos para as mãos. - Eu ainda estava na cama quando ele morreu. Seu Devan vai lhe contar. Tentou me acordar. A alvorada se aproximava e os meus senhores estavam à espera, preocupados. Devia estar a cavalo, de armadura posta. Sabia que Renly atacaria ao nascer do dia. Devan diz que me sacudi com violência e gritei, mas, que importa? Era um sonho. Estava na minha tenda quando Renly morreu, e quando acordei tinha as mãos limpas. Sor Davos Seaworth sentiu uma comichão surgindo nas pontas fantasmas de seus dedos. Há algo errado aqui, pensou o antigo contrabandista, mas acenou com a cabeça e disse: - Estou vendo. - Renly ofereceu-me um pêssego. Em nossa conferência. Caçoou de mim, desafiou-me, ameaçou-me e me ofereceu um pêssego. Pensei que estivesse puxando uma espada e levei as mãos à minha. Qual era o seu objetivo, fazer com que eu mostrasse medo? Ou seria uma de suas brincadeiras fora de propósito? Quando falou de como o pêssego era doce, teriam suas palavras algum significado oculto? - o rei balançou a cabeça, como um cão que sacudisse um coelho para quebrar seu pescoço. - Só Renly conseguiria me irritar tanto com um pedaço de fruta. Ele condenou-se a si próprio com a traição que cometeu, mas eu gostava dele, Davos. Sei disso agora. Juro, irei para a cova pensando no pêssego do meu irmão. Nesse momento, já se encontravam no interior do acampamento, avançando por entre as fileiras ordenadas de tendas, as bandeiras enfunadas e as pilhas de escudos e lanças. Um fedor de estrume de cavalo pairava, pesado, no ar, misturado com a fumaça de lenha e o cheiro de carne cozinhando. Stannis parou tempo suficiente para ladrar uma brusca despedida a Lorde Florent e aos outros, ordenando-lhes que estivessem presentes em seu pavilhão dali a uma hora para um conselho de guerra. Os homens inclinaram a cabeça e se dispersaram, enquanto Davos e Melisandre se dirigiam ao pavilhão do rei. A tenda tinha de ser grande, visto ser ali que os senhores seus vassalos vinham para os conselhos. No entanto, nada havia de grandioso nela. Era de tecido grosseiro, pintado de amarelo-escuro que às vezes passava por dourado. Só a bandeira real que esvoaçava no topo do mastro central a identificava como a tenda de um rei. Isso, e os guardas à porta; homens da rainha apoiados em longas lanças, com o símbolo do coração flamejante cosido sobre os próprios corações. Cavalariços aproximaram-se para ajudá-los a desmontar. Um dos guardas aliviou Melisandre do pesado estandarte, espetando profundamente o mastro na terra mole. Devan estava de um lado da porta, esperando o momento de levantar a aba para o rei passar. Um escudeiro mais velho aguardava ao seu lado. Stannis tirou a coroa e a entregou a Devan. - Água fria, taças para dois. Davos, fique ao meu serviço. Senhora, mandarei chamá-la quando necessitar. - Às ordens do rei - Melisandre fez uma reverência. Após o brilho da manhã, o interior do pavilhão parecia frio e sombrio. Stannis sentou-se num simples banco de acampar e indicou outro a Davos com um gesto. - Um dia talvez faça de você um senhor, contrabandista. Nem que seja para atormentar os Celtigar e os Florent. Mas não me agradecerá. Significará que terá de agüentar esses conselhos e fingir interesse no zurrar de mulas. - Por que motivo os reúne, se não servem a nenhum propósito? - As mulas adoram o som de seus zurros, por que outro motivo? E eu preciso delas para puxarem minha carroça. Ah, com certeza, muito de vez em quando é sugerida uma idéia útil. Mas não hoje, parece ... Ah, eis o seu filho com a nossa água. 396 Devan apoiou o tabuleiro na mesa e encheu duas taças de barro. O rei borrifou uma pitada de sal na sua antes de beber; Davos tomou a sua água pura, desejando que fosse vinho. - Falava do seu conselho... - Permita-me que lhe diga como se desenrolará. Lorde Velaryon insistirá para que eu assalte as muralhas do castelo à primeira luz da aurora, opondo pequenos arpões e escadas a flechas e azeite fervente. As mulas jovens acharão essa idéia magnífica. Estermont preferirá que nos instalemos para vencê-los pela fome, como os Tyrell e os Redwyne um dia tentaram fazer comigo. Isso pode levar um ano, mas as mulas velhas são pacientes. E Lorde Caron e os outros que gostam de escoicear vão querer aceitar o desafio de Sor Cortnay e arriscar tudo num combate singular. Cada um deles imaginando que seria ele o meu campeão e conquistaria uma fama imortal - o rei terminou a água. - O que você me aconselharia a fazer, contrabandista? Davos pensou por um momento antes de responder. - Avançar de imediato contra Porto Real. O rei bufou, - E deixar Ponta Tempestade sem tomá-la? - Sor Cortnay não possui poder suficiente para lhe causar dano. Os Lannister sim. Um cerco levaria tempo demais, o combate singular é muito arriscado, e um assalto custaria milhares de vidas sem certeza de sucesso. E não há necessidade. Uma vez Joffrey destronado, esse castelo deve passar para o seu controle com todo o resto. Dizem, no acampamento, que Lorde Tywin Lannister corre para o oeste, a fim de salvar Lanisporto da vingança dos nortenhos,,. - Tem um pai bastante esperto, Devan - disse o rei ao rapaz que se encontrava em pé ao seu lado. - Faz com que eu deseje ter mais contrabandistas a meu serviço. E menos senhores. Apesar de se enganar num aspecto, Davos. Existe necessidade. Se deixar Ponta Tempestade por tomar na minha retaguarda, vão dizer que fui derrotado aqui. E isso não posso permitir. Os homens não me adoram como adoraram meus irmãos. Seguem-me porque me temem... e a derrota é a morte para o medo. O castelo tem que cair - sua mandíbula moveu-se de um lado para o outro. - Sim, e depressa. Doran Martell convocou os vassalos e fortificou os passos de montanha. Seus homens de Dorne estão em posição para cair sobre a Marca. E Jardim de Cima está longe de esgotado. Meu irmão deixou a maior parte de seu poderio em Ponteamarga, cerca de seis mil homens a pé. Enviei o irmão da minha esposa, Sor Errol, com Sor Parmen Crane, para colocar essa força sob o meu comando, mas não retornaram. Temo que Sor Loras Tyrell tenha chegado a Ponteamarga antes de meus enviados e tomado essa tropa para si. - Mais um motivo para tomar Porto Real tão depressa quanto possível. Salladhor Saan disse... - Salladhor Saan só pensa em ouro! - Stannis explodiu. - Tem a cabeça cheia de sonhos a respeito do tesouro que imagina haver por baixo da Fortaleza Vermelha, portanto, não falemos mais de Salladhor Saan. O dia em que precisar de aconselhamento militar vindo de um salteador liseno será quando porei de lado minha coroa e passarei a usar o negro - o rei fechou um punho. - Está aqui para me servir, contrabandista? Ou para me aborrecer com discussões? - Sou seu - Davos respondeu. - Então escute. O tenente de Sor Cortnay é primo dos Fossoway. Lorde Meadows, um rapaz inexperiente de vinte anos. Se algum azar abater Penrose, o comando de Ponta Tempestade passará para esse jovem, e seus primos creem que ele aceitaria minhas condições e entregaria o castelo. - Lembro-me de outro jovem a quem foi dado o comando de Ponta Tempestade. Não podia ter muito mais do que vinte anos. - Lorde Meadows não é tão obstinadamente cabeça-dura como eu era. 397 - Cabeça-dura ou covarde, que importa? Sor Cortnay Penrose pareceu-me forte e vigoroso. - Assim como meu irmão era no dia anterior à sua morte. A noite é escura e cheia de terrores, Davos. Davos Seaworth sentiu os pelos de sua nuca ficarem em pé. - Senhor, não o entendo. - Não exijo seu entendimento. Só seu serviço. Sor Cortnay estará morto antes de amanhecer. Melisandre viu nas chamas do futuro. Sua morte, e como ela se deu. Não é necessário dizer que não morrerá num combate de cavaleiro - Stannis estendeu a taça e Devan voltou a enchê-la. - As chamas dela não mentem. Viu também o destino de Renly. Viu-o em Pedra do Dragão, e contou a Selyse. Lorde Velaryon e seu amigo Salladhor Saan queriam que eu avançasse contra Joífrey, mas Melisandre disse-me que, se me dirigisse a Ponta Tempestade, poderia conquistar a maior parte do poderio do meu irmão, e teve razão. - M-mas - Davos gaguejou Lorde Renly só veio até aqui porque o senhor tinha montado cerco ao castelo. Antes marchava contra Porto Real, contra os Lannister, teria... Stannis mexeu-se no banco, franzindo a sobrancelha. - Marchava, teria, o que é isso? Ele fez o que fez. Veio até aqui com seus estandartes e seus pêssegos, para o seu destino,,. E foi bom para mim que tenha feito isso. Melisandre também viu outro dia em suas chamas. Um amanhã em que Renly chegava do sul em sua armadura verde para esmagar minha tropa sob as muralhas de Porto Real. Se tivesse encontrado meu irmão lá, podia ter sido eu a morrer em seu lugar. - Ou podia ter juntado suas forças às dele para derrubar os Lannister - Davos argumentou. - E por que não? Se ela viu dois futuros, bem... não podem ser ambos verdadeiros. Rei Stannis apontou um dedo para ele: - Ê aí que erra, Cavaleiro das Cebolas. Há luzes que lançam mais do que uma sombra. Ponha-se em frente da fogueira da noite e verá por si próprio. As chamas mudam e dançam, nunca estão quietas. As sombras crescem e encolhem, e cada homem lança uma dúzia. Algumas são mais tênues do que outras, é tudo. Pois bem, os homens lançam também as suas sombras sobre o futuro. Uma sombra ou muitas. Melisandre vê todas. Não gosta da mulher. Sei disso, Davos, não sou cego. Meus senhores tampouco simpatizam com ela. Estermont pensa que o coração flamejante foi mal escolhido e pede para lutar sob o veado coroado como antigamente. Sor Guyard diz que uma mulher não devia ser meu porta-estandarte. Outros sussurram que ela não tem lugar em meus conselhos de guerra, que devia mandá-la de volta para Asshai, que é pecaminoso mantê-la em minha tenda durante a noite. Sim, eles sussurram... enquanto ela serve. - Serve como? - Davos perguntou, temendo a resposta. - Como é necessário - o rei o encarou. - E você? - Eu... - Davos lambeu os lábios. - Estou às suas ordens. O que quer que faça? - Nada que não tenha feito antes. Basta que acoste um barco sob o castelo, sem ser visto, na calada da noite. Pode fazer isso? - Sim. Esta noite? O rei confirmou com um brusco meneio. - Vai precisar de um barco pequeno. O Betha Negra não. Ninguém pode saber o que faz. Davos quis protestar. Era agora um cavaleiro, não mais um contrabandista, e nunca tinha sido um assassino. Mas, quando abriu a boca, as palavras não quiseram vir. Aquele era Stannis, seu senhor justo, ao qual devia tudo o que era. E também tinha de pensar nos filhos. Que os deuses sejam bons, o que ela lhe fez? 398 - Está quieto - Stannis observou. E assim devia ficar, disse Davos a si mesmo, mas falou: - Meu suserano, tem que tomar o castelo, compreendo isso agora, mas certamente deve haver outras maneiras. Maneiras mais limpas. Deixe que Sor Cortnay fique com o bastardo, e ele provavelmente cederá. - Eu preciso ter o rapaz, Davos. Preciso ter. Melisandre também viu isso nas chamas. Davos procurou outra resposta. - Ponta Tempestade não tem nenhum cavaleiro que seja capaz de se opor a Sor Guyard ou a Lorde Caron, ou a qualquer outro de uma centena de cavaleiros que tem ao seu lado. Esse combate singular... Será possível que Sor Cortnay procure uma maneira de se render com honra? Mesmo que isso signifique sua vida? Uma expressão perturbada cruzou o rosto do rei como uma nuvem passageira. - O mais provável é que planeje alguma traição. Não haverá nenhum combate de campeões. Sor Cortnay estava morto antes mesmo de arremessar aquela luva. As chamas não mentem, Davos. E no entanto precisam de mim para que se tornem verdadeiras, pensou. Há muito tempo Davos Seaworth não se sentia tão triste. E foi assim que deu por si atravessando mais uma vez a Baía dos Naufrágios na noite cerrada, manobrando um barco minúsculo com uma vela negra. O céu era o mesmo, e o mar também. Havia o mesmo cheiro salgado no ar, e os risinhos da água contra o casco eram tal e qual se lembrava, Mil fogueiras oscilantes ardiam em torno do castelo, tal como as fogueiras que os Tyrell e os Redwyne tinham dezesseis anos antes. Mas todo o resto era diferente. Da última vez foi vida o que trouxe a Ponta Tempestade, moldada para se parecer com cebolas. Dessa vez é morte, sob a forma de Melisandre de Asshai, Dezesseis anos antes, as velas tinham rangido e batido a cada mudança de vento, até que ele as recolheu e prosseguiu com remos envoltos em panos. Mesmo assim, avançara com o coração na garganta. Mas os homens nas galés Redwyne tinham relaxado depois de tanto tempo, e ele deslizara através da guarda com a suavidade de cetim negro. Daquela vez, os únicos navios à vista pertenciam a Stannis, e o único perigo viria dos vigias nas muralhas do castelo. Mesmo assim, Davos sentia-se tenso como a corda de um arco. Melisandre aconchegou-se em uma bancada, perdida nas dobras de um manto vermelho- escuro que a cobria da cabeça aos pés, com a face pálida sob o capuz. Davos adorava a água. Dormia melhor quando tinha um convés balançando por baixo do corpo, e o suspiro do vento no cordame era para ele um som mais doce do que qualquer coisa que um cantor conseguisse tirar das cordas de sua harpa. Mas nem mesmo o mar lhe trazia conforto naquela noite. - Consigo cheirar o medo em você, sor cavaleiro - disse a mulher vermelha em voz baixa. - Alguém me disse uma vez que a noite é escura e cheia de terrores. E esta noite não sou nenhum cavaleiro. Esta noite sou de novo Davos, o contrabandista. Bem que gostaria que a senhora fosse uma cebola. Ela riu. - E de mim que tem medo? Ou daquilo que fazemos? - Daquilo que você faz. Eu não terei nenhum papel nisso. - Sua mão içou a vela. Sua mão segura a cana do leme. Em silêncio, Davos prestou atenção à rota. A costa era um emaranhado de rochedos, e por isso levava-os para bem longe, do outro lado da baía. Esperaria até que a maré virasse antes de dar a volta. Ponta Tempestade ficava menor atrás deles, mas a mulher vermelha não parecia preocupada. 399 - Você é um bom homem, Davos Seaworth? Um bom homem estaria fazendo isto? - Sou um homem. Sou gentil para minha mulher, mas conheci outras mulheres. Tentei ser um pai para os meus filhos, ajudar a criar para eles um lugar neste mundo. Sim, quebrei leis, mas nunca me senti mau até esta noite. Diria que meus papéis estão misturados, senhora. Bons e maus. - Um homem cinza. Nem branco nem preto, mas com um pouco de ambos. E isso o que é, Sor Davos? - E se for? Parece-me que a maioria dos homens é cinza. - Se metade de uma cebola estiver preta de podridão, é uma cebola podre. Um homem ou é bom ou é mau. As fogueiras atrás deles tinham se fundido num vago brilho contra o céu negro, e a terra estava quase fora de vista. Era hora de dar a volta. - Cuidado com a cabeça, senhora - Davos empurrou a cana do leme, e o pequeno barco vomitou uma onda de água negra enquanto virava. Melisandre curvou-se sob a verga oscilante, com uma mão na amurada, tão calma como sempre. Madeira rangeu, pano estalou e água jorrou, tão alto que daria para jurar que o castelo certamente tinha ouvido. Davos sabia que não. O interminável esmagar das ondas nas rochas era o único som que penetrava as sólidas muralhas viradas para o mar de Ponta Tempestade, e apenas vagamente, Um rastro ondulante estendeu-se atrás do barco quando viraram em direção à costa. - Fala de homens e cebolas - Davos disse a Melisandre. - E as mulheres? Não acontece o mesmo com elas? E boa ou má, senhora? Aquilo fez Melisandre soltar um risinho: - Ah, muito bem. Sou uma espécie de cavaleiro, querido sor. Um campeão da luz e da vida. - E no entanto planeja matar um homem esta noite. Tal como matou Meistre Cressen. - Seu meistre envenenou-se a si mesmo. Pretendia me envenenar, mas eu estava protegida por um poder superior, e ele não. - E Renly Baratheon? Quem foi que o matou? Ela virou a cabeça, A sombra do capuz, seus olhos ardiam como chamas de vela vermelho-claras. - Eu não fui. - Mentirosa - Davos, agora, tinha certeza. Melisandre voltou a soltar uma gargalhada: - Está perdido no escuro e na confusão, Sor Davos. - E ainda bem - Davos indicou com um gesto as distantes luzes que tremeluziam ao longo das muralhas de Ponta Tempestade. - Sente como o vento sopra frio? Os guardas vão se aninhar perto de seus archotes. Um pouco de calor, um pouco de luz, são um conforto numa noite como esta. Mas isso irá cegá-los, de modo que não nos verão passar - assim espero. - Agora é o deus da escuridão que nos protege, senhora. Até a você. As chamas em seus olhos pareceram arder com um pouco mais de força ao ouvir aquilo. - Não mencione esse nome, sor. Para não atrair o olho negro dele sobre nós. Ele não protege ninguém, garanto. E inimigo de tudo o que vive. São os archotes que nos escondem, você mesmo disse. O fogo. A brilhante oferta do Senhor da Luz. - Seja como quiser. - Como ele quer, na verdade. 400 O vento estava mudando. Davos podia senti-lo, podia vê-lo no modo como o pano negro ondulava. Estendeu a mão para as adriças. - Ajude-me a arriar a vela. Vou nos levar a remo pelo resto do caminho. Juntos, prenderam a vela enquanto o barco oscilava por baixo de seus pés. Enquanto Davos estendia os remos e os deslizava pelas agitadas águas negras, disse: - Quem a levou até Renly? - Não foi necessário. Ele estava desprotegido. Mas aqui... esta Ponta Tempestade é um lugar antigo. Há feitiços entretecidos nas pedras. Muralhas escuras que nenhuma sombra consegue penetrar... antigas, esquecidas, mas ainda no lugar. - Sombra? - Davos sentiu a pele formigando. - Uma sombra é uma coisa que pertence à escuridão, - E mais ignorante do que uma criança, sor cavaleiro. Não há sombras na escuridão. As sombras são as servas da luz, as filhas do fogo. A mais brilhante das chamas lança as mais escuras das sombras. Franzindo a testa, Davos mandou-a se calar. Estavam de novo se aproximando da costa, e as vozes chegavam longe por sobre a água. Remou, fazendo com que o tênue som dos remos se perdesse no ritmo das ondas. O lado virado para o mar de Ponta Tempestade empoleirava-se num pálido penhasco branco, cuja pedra calcária se erguia abruptamente até vez e meia a altura da maciça muralha exterior do castelo. Uma abertura bocejava na falésia, e era para lá que Davos levava o barco, como tinha levado dezesseis anos antes. O túnel abria-se numa caverna sob o castelo, onde os antigos senhores da tempestade tinham construído seu cais. A passagem só era navegável durante a maré cheia, e nunca era menos que traiçoeira, mas sua perícia de contrabandista não o abandonara. Davos abriu caminho com habilidade por entre os rochedos recortados até que a abertura do túnel se ergueu na frente deles. Deixou que as ondas os levassem para dentro. Esmagavam-se ao redor deles, atirando o barco para um lado e para o outro e ensopando-os até os ossos. Uma ponta de rocha entrevista surgiu de repente da escuridão, rosnando de espuma, e Davos só por pouco conseguiu mantê-los afastados dela com um remo, E então tinham passado, submersos em escuridão, e as águas se acalmaram, O pequeno barco desacelerou e rodopiou. O som de suas respirações ecoou até parecer rodeá-los. Davos não esperava aquele negrume. Da última vez, ardiam tochas ao longo de todo o túnel, e os olhos de homens esfomeados espreitavam através dos alçapões do teto. Sabia que a porta levadiça estava em algum lugar mais à frente. Ele usou os remos para segurar o barco e deslizaram contra a porta quase com suavidade, - Não podemos avançar mais, a menos que tenha um homem lá dentro que ice o portão para nós - seus sussurros correram pelas águas que batiam contra o casco como uma fileira de ratos com patas suaves e cor-de-rosa. - Passamos para dentro das muralhas? - Sim. Por baixo. Mas não podemos avançar mais, A porta levadiça desce até o fundo. E as barras são tão pouco espaçadas que nem uma criança consegue se esgueirar entre elas. A única resposta foi um pequeno ruído. E então uma luz germinou nas trevas. Davos levantou uma mão para proteger os olhos, e ficou com a respiração presa na garganta. Melisandre tinha jogado o capuz para trás e saía de dentro da sufocante veste. Por baixo estava nua, e enormemente grávida. Seios inchados pendiam pesadamente sobre o peito, e a barriga projetava-se como se estivesse prestes a estourar. 401 - Que os deuses nos protejam - Davos sussurrou, e ouviu a gargalhada que ela soltou em resposta, profunda e gutural. Os olhos eram carvões quentes, e o suor que manchava sua pele parecia cintilar com uma luz própria. Melisandre brilhava, Ofegando, a mulher agachou e abriu as pernas. Sangue escorreu por suas coxas, negro como tinta. Seu grito podia ter sido de agonia, de êxtase ou de ambas as coisas. E Davos viu o topo da cabeça da criança abrindo caminho para fora dela. Dois braços libertaram-se, agarrando-se, com dedos negros que se enrolavam em volta das coxas retesadas de Melisandre, empurrando, até que a sombra deslizou por completo para o mundo e se ergueu, mais alta do que Davos, tão alta como o túnel, pairando por cima do barco. Teve apenas um instante para olhar para ela antes que desaparecesse, contorcendo-se por entre as barras da porta levadiça e correndo pela superfície da água, mas esse instante foi mais do que o suficiente. Ele conhecia aquela sombra. E conhecia o homem que a lançava. 402 Jon Otoque chegou, arrastado pelo vento, no escuro da noite. Jon apoiou-se num cotovelo, estendendo a mão até Garralonga por força do hábito enquanto o acampamento começava a se agitar. A trombeta que acorda 05 adormecidos, pensou. A longa nota grave demorou-se no limiar da audição. As sentinelas no muro circular imobilizaram-se como estavam, com a respiração congelando e a cabeça virada para oeste. A medida que o som da trombeta se desvanecia, até o vento parou de soprar. Homens saíram de debaixo de suas mantas e alcançaram suas lanças e cintos de espadas, movendo-se em silêncio, escutando. Um cavalo relinchou e foi aquietado. Durante um instante pareceu que a floresta inteira estava segurando a respiração. Os irmãos da Patrulha da Noite esperaram um segundo sopro, rezando para que não o ouvissem, temendo ouvi-lo. Quando o silêncio se prolongou por um tempo insuportavelmente longo e os homens souberam enfim que a trombeta não soaria de novo, sorriram uns para os outros de forma tímida, como que para negar que tivessem se sentido ansiosos. Jon Snow alimentou a fogueira com alguns gravetos, afivelou o cinto da espada, calçou as botas, sacudiu a terra e o orvalho do manto e o apertou em volta dos ombros. As chamas ardiam ao seu lado, trazendo um calor bem-vindo ao seu rosto enquanto se vestia. Ouvia o Senhor Comandante movendo-se dentro da tenda. Um momento mais tarde, Mormont ergueu a aba: - Um sopro? - o corvo equilibrava-se em seu ombro, com as penas em desordem e silencioso, parecendo infeliz. - Um, senhor - Jon concordou. - Irmãos que retornam. Mormont aproximou-se da fogueira. - Meia-Mão. E já era mais que tempo - ficara mais inquieto a cada dia de espera; muito mais tempo, e estaria a ponto de parir filhotes caninos. - Assegure-se de que haja comida quente para os homens e forragem para os cavalos. Quero ver Qhorin assim que chegar, - Irei trazê-lo, senhor. Os homens da Torre Sombria eram esperados havia dias. Quando não tinham aparecido no tempo devido, os irmãos começaram a especular. Jon ouvira resmungos sombrios em volta das fogueiras, e não provinham todos de Edd Doloroso. Sor Ottyn Wythers era a favor da retirada tão rápida quanto possível para Castelo Negro. Sor Mallador Locke queria se dirigir para a Torre Sombria, esperando pegar o rastro de Qhorin e investigar o que lhe teria acontecido. E Thoren Smallwood queria avançar para as montanhas. - Mance Rayder sabe que tem de batalhar com a Patrulha - declarara Thoren - , mas nunca esperará nos encontrar tão a norte. Se subirmos o Guadeleite, podemos pegá-lo desprevenido e cortar sua tropa em fatias antes que ele saiba que estamos lá. 403 - Os números estariam grandemente contra nós - refutara Sor Ottyn. - Craster disse que ele estava reunindo uma grande tropa. Muitos milhares de homens. Sem Qhorin, somos só duzentos. - Envie duzentos lobos contra dez mil ovelhas, sor, e veja o que acontece - disse Smallwood em tom confiante, - Há cabras entre essas ovelhas, Thoren - prevenira Jarman Buckwell. - Sim, e talvez alguns leões. Camisa de Chocalho, Harma Cabeça de Cão, Alfyn Mata-Corvos... - Conheço-os tão bem como você, Buckwell - retorquira Thoren Smallwood. - E pretendo cortar a cabeça deles, uma por uma. Esses homens são selvagens. Não são soldados. Algumas centenas de heróis, provavelmente bêbados, no meio de uma grande horda de mulheres, crianças e servos. Cairemos sobre eles e mandaremos todos, aos uivos, de volta para os seus casebres. Tinham discutido durante muitas horas sem chegar a um acordo. O Velho Urso era demasiado teimoso para se retirar, mas também não se precipitaria pelo Guadeleite acima em busca de uma batalha. No fim, nada tinha sido decidido, além de esperar mais alguns dias pelos homens da Torre Sombria, e voltar a conversar sobre o assunto se eles não aparecessem, E agora tinham aparecido, o que significava que a decisão já não podia mais ser adiada, Jon sentia-se contente pelo menos por isso. Se tinham de lutar contra Mance Rayder, que fosse logo. Foi encontrar Edd Doloroso junto à fogueira, queixando-se de como era difícil para ele dormir quando as pessoas insistiam em soprar trombetas na floresta. Jon lhe deu algo novo de que se queixar. Os dois foram acordar Hake, que recebeu as ordens do Senhor Comandante com uma saraivada de pragas, mas levantou-se mesmo assim, e em pouco tempo tinha uma dúzia de irmãos cortando raízes para fazer sopa. Sam aproximou-se, esbaforido, quando Jon atravessava o acampamento. Sob o capuz negro, seu rosto estava tão pálido e redondo como a lua. - Ouvi a trombeta. Seu tio voltou? - São só os homens da Torre Sombria - estava ficando cada vez mais difícil agarrar-se à esperança de que Benjen Stark regressaria são e salvo. O manto que tinha encontrado aos pés do Punho podia perfeitamente ter pertencido ao tio ou a um de seus homens, até o Velho Urso admitia, embora o motivo de o terem enterrado ali, enrolado em volta do vidro de dragão escondido, ninguém soubesse dizer. - Sam, tenho de ir. Na muralha circular, encontrou os guardas tirando espigões da terra meio congelada, a fim de criar uma abertura, Não demorou muito até que os primeiros dos irmãos da Torre Sombria começassem a subir a encosta. Vinham todos vestidos de couro e peles, com um pouco de aço ou bronze aqui e ali; pesadas barbas cobriam rostos duros e magros, e faziam-nos parecer tão hirsutos como seus garranos. Jon ficou surpreso por ver que alguns deles vinham montados aos pares nos cavalos, Quando observou com mais atenção, ficou claro que muitos estavam feridos. Houve problemas no caminho. Jon reconheceu Qhorin Meia-Mão no instante em que o viu, embora nunca tivessem se encontrado. O grande patrulheiro era quase lendário na Patrulha; um homem solene, de palavras lentas e ação rápida, alto e reto como uma lança, de membros longos. Ao contrário de seus homens, vinha barbeado, O cabelo caía sob seu elmo numa trança pesada salpicada de geada, e os panos negros que usava estavam tão desbotados que podiam ter sido cinza. Só restavam o polegar e o indicador na mão que segurava as rédeas; os outros dedos tinham sido cortados ao segurar o machado de um selvagem que, de outra forma, teria rachado seu crânio. Dizia-se que tinha atirado o punho estropiado na cara do homem do machado para que o sangue jorrasse em 404 seus olhos, e que o matara enquanto estava cego. Desde esse dia, os selvagens para lá da Muralha não conheceram inimigo mais implacável. Jon o saudou. - O Senhor Comandante Mormont quer vê-lo imediatamente. Eu o levo até a sua tenda. Qhorin saltou da sela. - Meus homens têm fome, e nossos cavalos precisam de atenção. - Eles vão receber cuidados. O patrulheiro entregou o cavalo aos cuidados de um de seus homens e o seguiu. - Você é Jon Snow. Tem a cara do seu pai. - Conhecia meu pai, senhor? - Não sou nenhum fidalgo. Sou só um irmão da Patrulha da Noite. Sim, conheci Lorde Eddard. E antes conheci o pai dele. Jon teve de apressar o passo para conseguir acompanhar as longas passadas de Qhorin. - Lorde Rickard morreu antes de eu nascer.
- Era amigo da Patrulha - Qhorin olhou de relance para trás. - Dizem que um lobo gigante o acompanha, - Fantasma deve estar de volta ao amanhecer. Ele caça de noite. Foram encontrar Edd Doloroso fritando uma fatia de bacon e cozendo uma dúzia de ovos numa caldeira colocada sobre a fogueira do Velho Urso. Mormont estava sentado em sua cadeira de campanha de madeira e couro. - Tinha começado a temer por você. Encontrou problemas? - Encontramos Alfyn Mata-Corvos. Mance o tinha enviado para bater o terreno ao longo da Muralha, e por sorte encontramos o homem quando voltava - Qhorin tirou o elmo. - Alfyn não causará mais problemas ao reino, mas alguns dos homens de sua companhia conseguiram escapar. Perseguimos tantos quanto pudemos, talvez alguns consigam retornar às montanhas. - E o preço? - Quatro irmãos mortos. Uma dúzia de feridos. Um terço das baixas do inimigo. E fizemos cativos. Um morreu rapidamente devido aos ferimentos, mas o outro viveu o suficiente para ser interrogado. - E melhor conversarmos sobre isso lá dentro. Jon vai lhe buscar um corno de cerveja. Ou será que prefere vinho quente condimentado? - Água fervida será suficiente. Um ovo e um pedaço de bacon. - Como quiser - Mormont ergueu a aba da tenda, Qhorin Meia-Mão curvou-se e entrou. Edd estava junto à caldeira, mexendo os ovos com uma colher: - Invejo estes ovos. Eu ficaria melhor com um pouco de fervura agora. Se a caldeira fosse maior, talvez saltasse lá para dentro. Se bem que gostaria mais se fosse vinho do que água. Há maneiras piores de morrer do que quente e bêbado. Certa vez, conheci um irmão que se afogou em vinho. Mas a colheita era ruim, e o cadáver dele não a melhorou. - Beberam o vinho? - Encontrar um irmão morto é uma coisa horrível. Também precisaria de uma bebida, Lorde Snow - Edd mexeu a caldeira e acrescentou mais uma pitada de noz-moscada. Inquieto, Jon acocorou-se junto à fogueira e remexeu-a com um pau. Conseguia ouvir a voz do Velho Urso dentro da tenda, interrompida pelos grasnidos do corvo e pelo tom mais calmo de Qhorin Meia-Mão, mas não conseguia distinguir as palavras. Alfyn Mata-Corvos está morto, isso é bom, Era um dos mais sanguinários entre os guerreiros selvagens, cujo nome tinha origem 405 na matança de irmãos negros que empreendera. Então, por que é que Qhorin soa tão sério, depois de uma vitória dessas? Jon tinha esperado que a chegada dos homens da Torre Sombria melhorasse o moral no acampamento. Na noite anterior, estava voltando de uma saída para urinar, no meio da escuridão, quando ouviu cinco ou seis homens conversando junto às brasas de uma fogueira. Quando ouviu Chett resmungar que já era mais que hora de voltar, parou para escutar. - Esta patrulha é a loucura de um velho. Não vamos encontrar nada naquelas montanhas, a não ser as nossas tumbas. - Há gigantes nas Presas de Gelo, e wargs, e coisas piores - Lark, o homem das Irmãs, respondeu. - Eu não entro lá, garanto. - Não me parece que o Velho Urso vá lhe dar opção. - Pode ser que a gente não lhe dê opção - dissera Chett. Nessa altura, um dos cães tinha erguido a cabeça e rosnado, e Jon tivera de se afastar rapidamente, antes de ser visto. Eu não devia ter ouvido aquilo, pensou. Cogitou levar a história a Mormont, mas não conseguiu se convencer a denunciar os irmãos, mesmo irmãos como Chett e o homem das Irmãs. Foi só conversa furada, disse a si mesmo. Têm frio e medo; todos temos. Era difícil esperar ali, empoleirados no cume rochoso por cima da floresta, sem saber o que o amanhã lhes traria. O inimigo invisível é sempre o mais temível. Jon tirou seu novo punhal da bainha e estudou as chamas que brincavam no brilhante vidro negro. Ele próprio havia esculpido o cabo de madeira, e tinha enrolado barbante de cânhamo à sua volta para fazer um punho. Era feio, mas servia. Edd Doloroso opinara que as facas de vidro tinham a mesma utilidade de mamilos na placa de peito de um cavaleiro, mas Jon não tinha tanta certeza. A lâmina de vidro de dragão era mais afiada do que aço, apesar de muito mais quebradiça. Isso deve ter sido enterrado por um motivo. Também tinha feito um punhal para Grenn, e outro para o Senhor Comandante, A Sam dera o corno de guerra. Sob um exame mais cuidadoso, o corno mostrou-se rachado, e mesmo depois de ter sacudido toda a terra que tinha dentro, Jon fora incapaz de arrancar algum som dele. A borda também estava lascada, mas Sam gostava de coisas velhas, mesmo que sem utilidade. - Faça dele um corno para beber - Jon lhe dissera. - E toda vez que tomar uma bebida, vai se lembrar de como saiu em patrulha para lá da Muralha e visitou o Punho dos Primeiros Homens - também dera a Sam uma ponta de lança e uma dúzia de pontas de flecha, e distribuíra o resto entre os outros amigos, para lhes dar sorte. O Velho Urso pareceu ter ficado contente com o punhal, mas Jon reparou que ele preferia ter uma faca de aço ao cinto. Mormont não conseguia sugerir respostas quanto a quem poderia ter enterrado o manto, ou o que isso poderia significar. Talvez Qhorin saiba. Meia-Mão aventurara-se a penetrar mais profundamente na floresta do que qualquer outro homem vivo. - Quer servir, ou sirvo eu? Jon embainhou o punhal. - Eu cuido disso - queria ouvir o que eles estavam dizendo. Edd cortou três grossas fatias de um pão de aveia duro, empilhou-as numa bandeja de madeira, cobriu-as com bacon e sua gordura derretida, e encheu uma tigela com ovos cozidos. Jon pegou a tigela com uma mão e a bandeja com a outra e entrou de ré na tenda do Senhor Comandante. 406 Qhorin estava sentado no chão, de pernas cruzadas, com a coluna reta como uma lança. A luz das velas tremeluzia nas superfícies duras e planas de seu rosto quando falava. - ... Camisa de Chocalho, Homem Choroso, e todos os outros chefes, grandes e pequenos - ele estava dizendo. - Também têm wargs, e mamutes, e mais forças do que sonhamos. Pelo menos foi o que ele alegou, Não vou pôr a mão no fogo pela veracidade da história. Ebben acha que o homem estava nos contando fábulas para fazer com que a vida durasse um pouco mais, - Verdade ou mentira, a Muralha tem de ser avisada - disse o Velho Urso enquanto Jon colocava a bandeja entre os dois. - E o rei. - Qual rei? - Todos. Tanto o verdadeiro como os falsos. Se querem reclamar o reino, que o defendam, Meia-Mão serviu-se de um ovo e quebrou sua casca na borda da tigela. - Esses reis farão o que quiserem - ele respondeu, descascando o ovo. - O mais provável é que não seja grande coisa. A melhor esperança é Winterfell. Os Stark têm de convocar o Norte. - Sim. Com certeza - o Velho Urso desenrolou um mapa, olhou-o de testa franzida, colocou-o de lado, e abriu outro. Jon percebeu que ele estava avaliando onde o martelo cairia. Antigamente, a Patrulha havia guarnecido dezessete castelos ao longo das cem léguas da Muralha, mas tinham sido abandonados, um por um, à medida que a irmandade minguava. Só três possuíam guarnições agora, um fato que Mance Rayder conhecia tão bem como eles. - Podemos ter esperança de que Sor Alliser Thorne traga recrutas frescos de Porto Real. Se levarmos a Guardagris homens da Torre Sombria, e a Monte Longo o pessoal de Atalaialeste... - Guardagris ruiu em grande parte. Portapedra servirá melhor, se conseguirmos arranjar homens suficientes. Talvez também Marcagelo e Lago Profundo. Com patrulhas diárias ao longo das ameias entre eles, - Sim, patrulhas. Duas vezes por dia, se for possível. A Muralha propriamente dita é um obstáculo formidável. Sem defesa, não pode pará-los, mas pode atrasá-los. Quanto maior for a tropa, de mais tempo precisarão. Julgando pelo vazio que deixaram para trás, devem ter a intenção de levar as mulheres consigo. E também os jovens, e os animais... Alguma vez viu uma cabra subir uma escada de mão? Ou uma corda? Vão ter de construir uma escada com degraus, ou uma grande rampa... Vai lhes tomar pelo menos uma volta de lua, talvez mais tempo. Mance deve saber que sua melhor chance é passar por baixo da Muralha. Por um portão, ou... - Uma brecha. A cabeça de Mormont ergueu-se num movimento vivo. - O quê? - Eles não pretendem escalar a Muralha nem escavar por baixo dela, senhor. Planejam quebrála. - A Muralha tem duzentos metros de altura e é tão espessa na base, que seriam necessários cem homens durante um ano para abrir caminho com picaretas e machados, - Mesmo assim. Mormont afagou a barba, franzindo a testa: - Como? - Como haveria de ser? Feitiçaria - Qhorin arrancou metade do ovo com uma mordida. Por qual outro motivo Mance teria decidido reunir suas forças nas Presas de Gelo? E um lugar ermo e duro, e é uma longa e cansativa marcha de lá até a Muralha. - Eu tinha esperança de que ele tivesse escolhido as montanhas para esconder sua reunião dos olhos de meus patrulheiros. 407 - Talvez - Qhorin respondeu, acabando de comer o ovo. - Mas parece-me que há mais. Ele procura algo nos lugares elevados e frios. Anda atrás de alguma coisa que lhe faz falta. - Alguma coisa? - o corvo de Mormont ergueu a cabeça e soltou um guincho. O som soou aguçado como uma faca no acanhamento da tenda. - Algum poder. O que será, nosso prisioneiro não soube nos dizer. Talvez tenha sido interrogado com demasiada intensidade, e morreu deixando muito por contar. De qualquer forma, duvido que soubesse. Jon conseguia ouvir o vento lá fora. Fazia um som agudo enquanto tremia por entre as pedras da muralha circular e puxava com força as cordas da tenda. Mormont esfregou pensativamente a boca. - Algum poder - repetiu. - Tenho de saber o que é. - Então deve enviar batedores para as montanhas. - Estou relutante em arriscar mais homens. - Só podemos morrer. Por que motivo vestimos estes mantos negros, se não for para morrer em defesa do reino? Eu enviaria quinze homens, em três grupos de cinco. Um para sondar o Guadeleite, outro ao Passo dos Guinchos, e outro para subir a Escada do Gigante. Jarman Buckell, Thoren Smallwood e eu ao comando, Para investigar o que espera naquelas montanhas. "Espera", gritou o corvo ."Espera" O Senhor Comandante Mormont soltou um suspiro profundo: - Não vejo outra escolha - concedeu - , mas se não retornar... - Alguém descerá das Presas de Gelo, senhor - disse o patrulheiro. - Se formos nós, tudo estará ótimo, Se não, será Mance Rayder, e o senhor está bem no caminho dele. Ele não pode marchar para sul deixando-o para trás, para que o siga e atormente sua retaguarda. Tem de atacar. E este é um lugar forte. - Não é tão forte assim - Mormont observou. - Então é possível que morramos todos. Nossa morte irá ganhar tempo para os nossos irmãos na Muralha. Tempo para guarnecer os castelos vazios e congelar os portões, a fim de convocar senhores e reis para virem em seu auxílio, tempo para afiarem os machados e repararem as catapultas. Nossas vidas serão moedas bem gastas. "Morre", resmungou o corvo, percorrendo os ombros de Mormont. "Morre, morre, morre, morre" O Velho Urso ficou sentado, dobrado e silencioso, como se o fardo de falar tivesse se tornado pesado demais para que o suportasse. Mas, por fim, disse: - Que os deuses me perdoem. Escolha os seus homens. Qhorin Meia-Mão virou a cabeça. Seus olhos encontraram os de Jon e prenderam-se neles durante um longo momento. - Muito bem. Escolho Jon Snow. Mormont pestanejou: - Ele é pouco mais do que um rapaz. E, além disso, é meu intendente. Nem sequer é patrulheiro. - Tollett também pode cuidar do senhor - Qhorin ergueu sua mão mutilada, com apenas dois dedos. - Os deuses antigos ainda são fortes para lá da Muralha. Os deuses dos Primeiros Homens... e dos Stark. Mormont olhou para Jon: - Qual é a sua vontade nisto? 408 - Ir - Jon respondeu de imediato. O velho deu um sorriso triste: - Foi o que achei que seria. A alvorada já tinha rompido quando Jon saiu da tenda ao lado de Qhorin Meia-Mão. O vento rodopiava em volta deles, agitando os mantos negros e fazendo voar da fogueira uma chuva de fagulhas vermelhas. - Partimos ao meio-dia - disse-lhe o patrulheiro. - E melhor que encontre esse seu lobo. 409 Tyrion -A rainha pretende mandar o Príncipe Tommen para longe - estavam ajoelhados, sozinhos, na escuridão calma do septo, rodeados por sombras e velas tremeluzentes, mas mesmo assim Lancei mantinha a voz baixa. - Lorde Gyles irá levá-lo para Rosby e escondê-lo lá, disfarçado de pajem. Planejam escurecer seu cabelo e dizer a todo mundo que é filho de um pequeno cavaleiro. - Ela tem medo do povo? Ou de mim? - De ambos - Lancei respondeu. - Ah... - Tyrion nada soubera daqueles planos. Pela primeira vez, teriam os passarinhos de Varys falhado? Imaginava que até as aranhas tinham de se distrair... ou será que o eunuco estaria jogando um jogo mais profundo e sutil do que imaginara? - Tem os meus agradecimentos, sor, - Vai me conceder o favor que lhe pedi? - Talvez - Lancei queria um comando na batalha seguinte. Uma maneira magnífica de morrer antes de acabar de cultivar aquele bigode, mas os jovens cavaleiros sempre se julgavam invencíveis. Tyrion permaneceu lá depois de o primo ir sorrateiramente embora. No altar do Guerreiro, usou uma vela para acender outra. Proteja meu irmão, seu bastardo sangrento, ele é um dos seus.
Acendeu uma segunda vela ao Estranho, esta para si mesmo. Nessa noite, quando a Fortaleza Vermelha estava escura, Bronn chegou e o encontrou selando uma carta. - Leve isto a Sor Jacelyn Bywater - o anão derramou cera dourada e quente sobre o pergaminho. - O que é que diz? - Bronn não sabia ler, por isso fazia perguntas impertinentes. - Diz para ele levar cinqüenta de seus melhores espadachins e bater a estrada das rosas Tyrion pressionou seu selo contra a cera mole. - É mais provável que Stannis chegue pela estrada do rei, - Ah, eu sei. Diga a Bywater para desconsiderar o que a carta diz e levar seus homens para o norte. Deverá montar uma armadilha na estrada de Rosby. Lorde Gyles vai partir para o seu castelo dentro de um ou dois dias, com uma dúzia de homens de armas, alguns criados e meu sobrinho. Príncipe Tommen pode estar vestido de pajem. - Quer o garoto trazido de volta, é isso? - Não. Quero que o levem para o castelo - Tyrion chegou à conclusão de que tirar o rapaz da cidade havia sido uma das melhores idéias da irmã. Em Rosby, Tommen estaria a salvo do povo, 410 e mantê-lo afastado do irmão também tornava as coisas mais difíceis para Stannis; mesmo se tomasse Porto Real e executasse Joffrey, ainda teria um pretendente Lannister com quem lutar. - Lorde Gyles é doente demais para fugir, e covarde demais para lutar. Ele ordenará ao castelão que abra os portões. Uma vez dentro do castelo, Bywater deverá expulsar a guarnição e manter Tommen a salvo lá dentro. Pergunte-lhe como soa Lorde Bywater. - Lorde Bronn soaria melhor. Eu podia apanhar o garoto tão bem como ele. Embalaria-o no joelho e lhe cantaria canções de ninar se nisso estivesse envolvido um título. - Preciso de você aqui - Tyrion respondeu. E não confio em você com meu sobrinho. Se algo acontecesse a Joffrey, a pretensão Lannister ao Trono de Ferro cairia sobre os jovens ombros de Tommen, Os homens de manto dourado de Sor Jacelyn defenderiam o garoto; os mercenários de Bronn eram mais capazes de vendê-lo aos seus inimigos. - O que deve o novo senhor fazer com o antigo? - O que bem entender, desde que se lembre de alimentá-lo. Não o quero morrendo - Tyrion afastou-se da mesa. - Minha irmã enviará um membro da Guarda Real com o príncipe. Bronn não se mostrou preocupado. - Cão de Caça é cão de Joffrey, não o abandonará, Os mantos dourados do Mão de Ferro devem ser capazes de lidar com os outros com bastante facilidade. - Se as coisas chegarem ao ponto de matar, diga a Sor Jacelyn que não quero isso feito na frente de Tommen - Tyrion pôs um pesado manto de lã marrom-escura. - Meu sobrinho tem bom coração. - Tem certeza de que é um Lannister? - Não tenho certeza de nada, além do Inverno e da batalha. Venha. Vou com você até uma parte do caminho. - Chataya? - Conhece-me bem demais. Saíram por uma porta falsa na muralha norte. Tyrion encostou os calcanhares no cavalo e desceu ruidosamente a Alameda da Sombra Negra. Alguns vultos furtivos precipitaram-se para vielas ao ouvir os cascos nas pedras do pavimento, mas ninguém se atreveu a abordá-los. O conselho tinha estendido o toque de recolher; ser pego nas ruas depois do toque do anoitecer significava a morte. A medida restaurara certa paz em Porto Real e diminuíra para um quarto o número de cadáveres encontrados nas vielas de manhã, mas Varys dizia que as pessoas o amaldiçoavam por isso. Deviam se sentir agradecidas por terem vida para poder lançar maldições. Um par de homens de manto dourado confrontou-os na Ruela dos Caldeireiros, mas quando compreenderam quem tinham intimado, pediram perdão à Mão e mandaram-nos seguir com um gesto. Bronn virou para sul em direção ao Portão da Lama e os dois se separaram. Tyrion prosseguiu na direção da casa de Chataya, mas de repente a resignação o abandonou. Virou-se na sela, perscrutando a rua atrás de si. Não havia sinal de perseguidores. Todas as janelas estavam escuras ou com as venezianas bem fechadas. Nada ouviu além do vento que passava pelas vielas. Se Cersei tiver alguém me seguindo hoje, deve estar disfarçado de ratazana. - Que se dane tudo isso - resmungou. Estava farto de cuidados. Obrigando o cavalo a se virar, esporeou-o com força, Se alguém vier atrás de mim, vamos ver se monta bem. Voou pelas ruas iluminadas pelo luar, estrondeando sobre o pavimento, precipitando-se por vielas estreitas e ruelas sinuosas, correndo para o seu amor. Ao bater com força no portão, ouviu a música que pairava, tênue, sobre os espigões que coroavam os muros de pedra. Um dos ibbeneses o conduziu pela propriedade. 411 - Quem é aquele? - as vidraças em forma de diamante das janelas do salão brilhavam com a luz amarela, e Tyrion ouvia um homem cantando. O ibbenês encolheu os ombros.
- Cantor barrigudo. O som foi se intensificando à medida que Tyrion se afastava do estábulo onde deixara o cavalo e se aproximava da casa. Nunca gostara de cantores, e, mesmo antes de vê-lo, gostava daquele ainda menos do que da raça como um todo. Quando empurrou a porta, o homem interrompeu-se. - Senhor Mão - ajoelhou, mostrando a careca incipiente e a barriga de tacho, murmurando: - Uma honra, uma honra. - Senhor - Shae sorriu ao vê-lo. Gostava daquele sorriso, e da forma rápida e irrefletida com que vinha ao seu lindo rosto. A garota usava o roupão de seda roxa, preso com um cinturão de fio de prata. As cores favoreciam seu cabelo escuro e a cor creme da pele lisa. - Querida - disse-lhe. - E quem é este? O cantor levantou os olhos. - Chamam-me de Symon Língua de Prata, senhor. Ator, cantor, contador de histórias... - E um grande idiota - Tyrion terminou. - Como foi que me chamou, quando entrei? - Chamar? Eu só... - a prata na língua de Symon parecia ter se transformado em chumbo. - Senhor Mão, eu disse, uma honra... - Um homem mais sensato teria fingido não me reconhecer. Não que eu tivesse me deixado enganar, mas você devia ter tentado. Que vou fazer agora com você? Sabe da minha querida Shae, sabe onde ela mora, sabe que a visito à noite sozinho. -Juro, não direi a ninguém... - Pelo menos nisso concordamos. Boa noite - Tyrion subiu as escadas com Shae. - Meu cantor pode agora nunca mais cantar - ela brincou. - Tirou a voz dele com o susto. - Um pouco de medo pode ajudá-lo a atingir aquelas notas agudas. Ela fechou a porta do quarto. - Não vai lhe fazer mal, não é? - Shae acendeu uma vela perfumada e ajoelhou-se para tirar suas botas. - Suas canções alegram-me nas noites em que você não vem. - Bem que gostaria de poder vir todas as noites - ele disse enquanto ela esfregava seus pés nus. - Ele canta bem? - Melhor do que alguns. Não tão bem quanto outros. Tyrion abriu seu roupão e enterrou o rosto entre seus seios. Ela sempre cheirava limpa, mesmo naquela pocilga fedorenta de cidade. - Fique com ele, se quiser, mas mantenha-o por perto. Não o quero vagueando pela cidade e espalhando histórias pelas casas de pasto. - Ele não... - ela começou. Tyrion cobriu sua boca com um beijo. Estava farto de conversas; precisava da doce simplicidade do prazer que encontrava entre as coxas de Shae. Ali, pelo menos, era bem-vindo, desejado. Mais tarde, puxou o braço de debaixo da cabeça dela, enfiou-se na túnica e desceu ao jardim. Uma meia-lua prateava as folhas das árvores frutíferas e brilhava na superfície da piscina para banhos esculpida em pedra, Tyrion sentou-se junto à água. Em algum lugar, à sua direita, um grilo cantava, um som curiosamente acolhedor. Este lugar é pacífico, pensou, mas, por quanto tempo? Uma lufada de alguma coisa malcheirosa fez Tyrion virar a cabeça. Shae estava à porta, por trás dele, vestida com o roupão prateado que lhe dera. Amei uma donzela branca como o Inverno, 412 com o luar nos cabelos. Atrás dela encontrava-se um dos irmãos mendicantes, um homem corpulento com trajes imundos e remendados, os pés descalços cobertos com uma crosta de sujeira e uma tigela pendurada por uma correia de couro que trazia ao pescoço, na posição em que um septão usaria um cristal. O cheiro que exalava teria dado náuseas a uma ratazana. - Lorde Varys veio vê-lo - Shae anunciou. O irmão mendicante a olhou, piscando os olhos, espantado. Tyrion soltou uma gargalhada. - Com certeza. Como foi que o reconheceu e eu não? Shae encolheu os ombros. - E ele mesmo assim. Só que vestido de outra forma. - Um visual diferente, um cheiro diferente, uma maneira diferente de caminhar - Tyrion observou. - A maior parte dos homens se enganaria. - E a maior parte das mulheres também, provavelmente. Mas não as prostitutas, Uma prostituta aprende a ver o homem, não seu traje, caso contrário acaba morta numa viela. Varys fez uma expressão de dor, que não era devida às falsas feridas que tinha nos pés. Tyrion soltou um risinho. - Shae, traga-nos um pouco de vinho? - podia precisar de uma bebida. O que quer que tivesse trazido o eunuco ali na calada da noite não devia ser boa coisa. - Quase temo contar o motivo por que vim, senhor - Varys disse, quando Shae saiu. - Trago notícias terríveis. - Devia se vestir de penas negras, Varys, é de tão mau agouro como um corvo - desajeitadamente, Tyrion ficou de pé, meio receoso de fazer a pergunta seguinte. - É Jaime? - se lhe fizeram mal, nada os salvará.
- Não, senhor. Ê outro assunto. Sor Cortnay Penrose está morto. Ponta Tempestade abriu os portões a Stannis Baratheon, A consternação varreu todos os outros pensamentos da mente de Tyrion. Quando Shae retornou com o vinho, ele bebeu um gole e arremessou a taça contra a parede da casa, fazendo-a explodir. Shae levantou uma mão para se proteger dos cacos enquanto o vinho escorria pelas pedras em longos dedos, negros à luz do luar. - Maldito seja! - Tyrion esbravejou. Varys sorriu, mostrando uma boca cheia de dentes podres. - Quem, senhor? Sor Cortnay ou Lorde Stannis? - Os dois - Ponta Tempestade era forte, devia ter sido capaz de resistir durante meio ano ou mais... Tempo suficiente para seu pai acabar com Robb Stark. - Como foi que isso aconteceu? Varys olhou de relance para Shae. - Senhor, temos de perturbar o sono de sua doce senhora com uma conversa tão sombria e sangrenta? - Uma senhora poderia ter medo - disse Shae - , mas eu não tenho. - Deveria ter - disse-lhe Tyrion. - Com a queda de Ponta Tempestade, Stannis virará em breve a atenção para Porto Real - agora lamentava ter atirado longe aquele vinho. - Lorde Varys, dê-nos um momento, e eu voltarei com o senhor ao castelo. - Esperarei nos estábulos - fez uma reverência e afastou-se com passos pesados. Tyrion puxou Shae para o seu lado. - Aqui não está segura. - Tenho meus muros, e os guardas que me deu. 413 - Mercenários - disse Tyrion. - Gostam bastante do meu ouro, mas morrerão por ele? Quanto a estes muros, um homem podia subir nos ombros de outro e saltá-los num instante. Uma mansão muito parecida com esta foi queimada durante os tumultos. Mataram o ourives que a possuía pelo crime de ter uma despensa cheia, tal como deixaram o Alto Septão em pedaços, estupraram Lollys meia centena de vezes, e esmagaram o crânio de Sor Aron. O que acha que farão se puserem as mãos na senhora da Mão? - Refere-se à prostituta da Mão? - ela o olhou com aqueles seus grandes olhos corajosos. - Mas gostaria de ser sua senhora, senhor. Vestiria todas as coisas bonitas que me deu, cetim, samito e pano de ouro, e usaria suas jóias, pegaria na sua mão e sentaria ao seu lado nos banquetes. Poderia dar-lhe filhos, sei que poderia... ejuro que nunca o envergonharia. Meu amor por você já me envergonha o suficiente. - Um sonho lindo, Shae. Mas, agora, coloque-o de lado, estou pedindo. Nunca poderá acontecer, - Por causa da rainha? Também não tenho medo dela. - Eu tenho. - Então mate-a e resolva o assunto. Não é como se houvesse algum amor entre vocês, Tyrion suspirou. - Ela é minha irmã. O homem que mata seu próprio sangue é para sempre maldito aos olhos dos deuses e dos homens. Além disso, seja o que for que eu e você possamos pensar de Cersei, meu pai e meu irmão gostam dela. Posso conspirar contra qualquer homem nos Sete Reinos, mas os deuses não me equiparam para enfrentar Jaime de espada na mão. - O Jovem Lobo e Lorde Stannis têm espadas, e não o assustam. Como você sabe pouco, querida. - Contra eles tenho todo o poder da Casa Lannister. Contra Jaime ou meu pai, não tenho mais do que umas costas tortas e um par de pernas atrofiadas. - Tem a mim - Shae o beijou, deslizando os braços em volta de seu pescoço enquanto pressionava o corpo contra o dele. O beijo o excitou, como sempre acontecia com os beijos dela, mas daquela vez Tyrion libertou-se gentilmente. - Agora não. Querida, eu tenho... bem, chame de semente de um plano. Acho que posso ser capaz de levá-la para as cozinhas do castelo. O rosto de Shae ficou imóvel: - As cozinhas? - Sim. Se agir através de Varys, ninguém saberá de nada. Ela soltou um risinho: - Senhor, eu o envenenaria. Todos os homens que provaram minha comida disseram-me que sou uma excelente prostituta. - A Fortaleza Vermelha tem cozinheiros suficientes. E açougueiros e padeiros também. Teria de se fazer de ajudante de cozinha. - Uma lavadora de pratos, vestida de ráfia áspera e marrom. E assim que o senhor quer me ver? - O senhor quer vê-la viva - Tyrion respondeu. - Dificilmente pode lavar pratos vestida de seda e veludo. - O senhor se cansou de mim? - ela enfiou uma mão por baixo da túnica dele e encontrou seu membro. Em duas rápidas batidas deixou-o duro. - Ele ainda me quer - ela riu. - Gostaria 414 de foder sua ajudante de cozinha, senhor? Pode me encher de farinha e chupar molho de carne das minhas maminhas, se... - Pare com isso - o modo como ela estava agindo lembrava-lhe Dancy, que tentara tão intensamente ganhar sua aposta. Afastou sua mão com força, a fim de impedir mais travessuras. - Não é hora para brincadeiras de cama, Shae. Sua vida pode estar em risco. O sorriso dela desapareceu: - Se desagradei ao senhor, não tive intenção, só que... não podia apenas me dar mais guardas? Tyrion soltou um profundo suspiro. Lembre-se de como ela é nova, disse a si mesmo, e pegou sua mão: - Suas pedras preciosas podem ser substituídas, e novos vestidos podem ser cosidos, duas vezes mais bonitos do que os velhos. Para mim, você é a coisa mais preciosa que está dentro destes muros. A Fortaleza Vermelha também não é segura, mas é bastante mais segura do que aqui. Quero você lá. - Nas cozinhas - a voz dela não tinha expressão, - Lavando pratos. - Por pouco tempo, - Meu pai fez de mim a ajudante de cozinha dele - ela disse, com a boca se contorcendo. - Foi por isso que fugi. - Tinha me dito que fugiu porque seu pai fez de você a prostituta dele - lembrou-lhe Tyrion. - Isso também. Não gostava mais de lavar seus pratos do que da pica dele em mim - sacudiu a cabeça para trás. - Por que é que não pode ficar comigo na sua torre? Metade dos senhores da corte tem quem aqueça suas camas. - Fui expressamente proibido de levá-la para a corte. - Pelo seu pai estúpido - Shae fez um muxoxo. - Tem idade para manter todas as prostitutas que quiser. Será que ele o considera um garotinho imberbe? O que ele poderia fazer, espancá-lo? Tyrion a estapeou. Não com força, mas com suficiente vigor. - Maldita. Sua maldita. Nunca caçoe de mim. Você não. Por um momento Shae não falou. O único som que se ouvia era o do grilo, que cantava, cantava. - Peço perdão, senhor - ela disse por fim, numa voz pesada e sem vida. - Não queria ser insolente. E eu não queria bater em você. Que os deuses sejam bons, estarei me transformando em Cersei? - Isso foi errado. De nós dois. Shae, você não compreende - palavras que nunca pretendera dizer saíram dele às cambalhotas, como saltimbancos de um cavalo oco. - Quando tinha treze anos, casei com a filha de um artesão. Pelo menos era o que pensava que ela era. Estava cego de amor, e pensava que ela sentia o mesmo por mim, mas meu pai esfregou a verdade na minha cara. Minha noiva era uma prostituta que Jaime tinha contratado para me dar a primeira experiência como homem - e eu acreditei em tudo, como o tolo que era. - Para que a lição ficasse bem dada, Lorde Tywin deu minha esposa a uma caserna de guardas para que a usassem como bem entendessem, e ordenou-me que assistisse - e que a possuísse uma última vez, depois de os outros terminarem. Uma última vez, sem que nenhum sinal de amor ou ternura restasse. "Para que se recorde dela como realmente é", dissera, e eu devia tê-lo desafiado, mas meu pau me traiu efiz o que me era pedido. - Depois de ficar satisfeito com ela, meu pai obteve a anulação do casamento. Era como se nunca nos tivéssemos casado, disseram os septões - apertou sua mão. - Por favor, não falemos mais da 415 Torre da Mão. Ficará nas cozinhas só por pouco tempo. Depois de terminarmos com Stannis, terá outra mansão, e sedas tão suaves como as suas mãos. Os olhos de Shae tinham-se aberto muito, mas Tyrion não conseguiu ler o que havia por trás. - Minhas mãos não serão suaves se passar o dia todo limpando fornos e raspando panelas. Será que ainda vai querê-las tocando-o quando estiverem vermelhas, ásperas e rachadas da água quente e da lixívia? - Mais do que nunca. Quando olhar para elas, vão me lembrar de como foi corajosa. Não saberia dizer se ela acreditava nele. A moça abaixou os olhos, - Estou às suas ordens, senhor. Tyrion via com clareza que aquilo era a máxima aceitação que alcançaria naquela noite. Beijou seu rosto no lugar onde tinha batido, para tirar alguma dor do golpe. - Mandarei buscá-la. Varys estava à espera nos estábulos, como havia prometido. O cavalo do eunuco parecia esparavonado e meio morto. Tyrion montou; um dos mercenários abriu os portões. Saíram em silêncio.
Que os deuses me ajudem, por que lhe contei a respeito de Tysha?, perguntou a si mesmo, com um medo súbito. Havia alguns segredos que nunca deviam ser verbalizados, algumas vergonhas que um homem devia levar para o túmulo. O que queria dela, perdão? A maneira como o olhara, o que queria dizer? Odiaria tanto assim a idéia de limpar panelas, ou teria sido a sua confissão? Como é que posso lhe contar aquilo e ainda pensar que ela me ama?, disse parte dele, enquanto a outra parte caçoou, dizendo; Anão estúpido, a única coisa que a rameira ama são o ouro e as jóias. Seu cotovelo cicatrizado latejava, rangendo sempre que o cavalo punha um casco no chão. Às vezes, quase conseguia imaginar que ouvia os ossos roçando um no outro lá dentro. Talvez devesse consultar um meistre, obter alguma poção para as dores... Mas, desde que Pycelle tinha revelado o que era, Tyrion desconfiava dos meistres. Só os deuses sabiam com quem andariam conspirando, ou o que teriam misturado naquelas poções que ministravam. - Varys. Tenho de trazer Shae para o castelo sem que Cersei perceba - fez um esboço rápido de seu plano envolvendo as cozinhas. Quando terminou, o eunuco soltou um pequeno cacarejo: - Farei o que o senhor ordenar, naturalmente... Mas devo preveni-lo de que as cozinhas estão cheias de olhos e ouvidos. Mesmo se a garota não cair sob nenhuma suspeita propriamente dita, será alvo de mil perguntas. Onde nasceu? Quem eram seus pais? Como veio para Porto Real? A verdade não servirá, então ela terá de mentir... e mentir, e mentir - olhou de relance para Tyrion. - E uma jovem moça de cozinha tão bonita instigará tanto desejo como curiosidade. Será tocada, beliscada, acariciada e levará tapinhas. Ajudantes de cozinha vão se enfiar sob as suas mantas de noite. Algum cozinheiro solitário pode tentar se casar com ela. Padeiros vão amassar seus seios com mãos cheias de farinha. - Prefiro que ela seja acariciada a que seja apunhalada - Tyrion respondeu. Varys avançou mais alguns passos, e disse; - Pode haver outra maneira. Acontece que a aia que serve a filha da Senhora Tanda tem andado surrupiando suas jóias. Se eu informasse a Senhora Tanda disso, ela seria forçada a despedir imediatamente a moça. E a filha precisaria de uma nova aia. - Entendo - Tyrion compreendeu de imediato que aquilo abria possibilidades. Uma criada de quarto de uma senhora usava roupas melhores do que uma ajudante de cozinha, e freqüentemente até exibia uma ou duas jóias, Shae devia ficar contente com isso. E Cersei achava a Senhora 416 Tanda entediante e histérica, e Lollys, uma bovina imbecil. Não era provável que lhes fizesse visitas de cortesia. - Lollys é tímida e confia nas pessoas - Varys acrescentou. - Acreditará em qualquer história que lhe seja contada. Desde que sua virgindade foi roubada pelos populares, ela tem medo de sair de seus aposentos, portanto, Shae permanecerá fora de vista... mas convenientemente próxima, caso você tenha necessidade de consolo, - Sabe tão bem como eu que a Torre da Mão está vigiada. Cersei certamente ficaria curiosa se a aia de Lollys começasse a me visitar. - Eu talvez consiga introduzir a moça em seu quarto sem ser vista. A casa de Chataya não é a única a ter uma porta escondida, - Um acesso secreto? Aos meus aposentos? - Tyrion sentia-se mais aborrecido do que surpreso. Por que motivo teria Maegor, o Cruel, ordenado a morte de todos os construtores que tinham trabalhado em seu castelo, se não fosse para proteger tais segredos? - Sim, suponho que teria de existir. Onde posso encontrar a porta? No aposento privado? No quarto de dormir? - Meu amigo, não quer me obrigar a revelar todos os meus pequenos segredos, não é? - De hoje em diante, pense neles como os nossos pequenos segredos, Varys - Tyrion olhou de soslaio o eunuco em seu fedido traje de saltimbanco. - Partindo do princípio de que você está do meu lado... - Consegue duvidar disso? - Ora, não, confio tacitamente em você - uma gargalhada amarga ecoou das janelas fechadas, - Na verdade, confio em você como se fosse do meu sangue. Agora conte-me como morreu Cortnay Penrose. - Dizem que se atirou de uma torre, - Que se atirou? Não, não vou acreditar nisso. - Os guardas não viram ninguém entrando em seus aposentos, nem encontraram ninguém lá dentro depois da queda, - Então o assassino entrou mais cedo e se escondeu debaixo da cama - sugeriu Tyrion. - Ou desceu do telhado por uma corda. Talvez os guardas estejam mentindo, Quem poderá dizer que não cometeram eles mesmos o ato? - Sem dúvida, tem razão, senhor. O tom cheio de si do eunuco dizia outra coisa. - Mas você tem outra opinião? Como teria acontecido então? Durante um longo momento Varys nada disse. O único som que se ouvia era o solene clac que os cascos faziam no pavimento. Por fim, o eunuco pigarreou:
- Senhor, acredita nos antigos poderes? - Fala de magia? - Tyrion perguntou com impaciência, fungando. - Feitiços de sangue, maldições, metamorfismo, esse tipo de coisa? Quer sugerir que Sor Cortnay foi enfeitiçado até a morte? - Sor Cortnay tinha desafiado Lorde Stannis para um combate singular na manhã do dia em que morreu. Pergunto: será este o ato de um homem perdido em desespero? Depois, há a questão do assassinato misterioso e muito fortuito de Lorde Renly, precisamente no momento em que suas linhas de batalha estavam se formando para varrer o irmão do campo - o eunuco fez uma pausa momentânea. - Senhor, uma vez perguntou-me de que modo fui cortado, - Lembro-me disso, Não quis falar do assunto. 417 - E continuo a não querer, mas... - aquela pausa foi mais longa do que a anterior, e quando Varys voltou a falar sua voz estava de algum modo diferente. - Era um órfão, aprendiz numa trupe errante. Nosso mestre possuía um barco pesqueiro pequeno e largo, e viajávamos de um lado para o outro ao longo do mar estreito, atuando em todas as Cidades Livres e, de tempos em tempos, em Vilavelha e Porto Real. Um dia, em Myr, um certo homem foi ao nosso espetáculo. Quando terminou, fez uma oferta por mim que meu mestre achou tentadora demais para recusar. Fiquei aterrorizado. Temi que o homem pretendesse me usar como ouvira dizer que os homens usavam garotinhos, mas, na verdade, a única parte de mim que ele queria era meu órgão viril. Deu-me uma poção que me deixou incapaz de me movimentar ou de falar, mas nada fez para adormecer meus sentidos. Com uma longa lâmina em forma de gancho cortou-me raiz e caule, sem parar de entoar cânticos. Vi-o queimar meus órgãos masculinos num braseiro. As chamas ficaram azuis, e ouvi uma voz responder ao seu chamado, embora não compreendesse as palavras que foram ditas. Quando ele acabou de fazer o que queria comigo, os pantomimeiros tinham zarpado. Depois de servir aos seus propósitos, o homem já não tinha interesse em mim, e botou-me na rua. Quando lhe perguntei o que devia fazer então, ele respondeu que achava que devia morrer. Para contrariá-lo, decidi viver. Mendiguei, roubei e vendi as partes do corpo que ainda me restavam. Em pouco tempo tornei-me um ladrão tão bom como qualquer outro de Myr, e quando cresci aprendi que muitas vezes o conteúdo das cartas de um homem é mais valioso do que o conteúdo de sua bolsa, Mas ainda sonho com aquela noite, senhor. Não com o feiticeiro, nem com a lâmina, nem mesmo com o modo como meu membro viril contraiu-se enquanto ardia. Sonho com a voz. A voz saída das chamas. Seria um deus, um demônio, um truque qualquer de ilusionista? Não sei lhe dizer, e olhe que conheço todos os truques. Tudo o que sei com toda certeza é que o homem chamou a coisa, e ela respondeu, e desde esse dia odiei a magia e todos aqueles que a praticam. Se Lorde Stannis for um desses homens, desejo vê-lo morto. Quando terminou de falar, cavalgaram em silêncio durante algum tempo. Por fim, Tyrion disse: - Uma história pungente. Lamento. O eunuco suspirou. - Lamenta, mas não acredita em mim. Não, senhor, não é necessário pedir perdão. Eu estava drogado e com dores, e tudo se passou há muito tempo e num lugar distante, do outro lado do mar. Sem dúvida que sonhei aquela voz. Disse isso a mim mesmo mil vezes. - Eu acredito em espadas de aço, moedas de ouro e na inteligência dos homens - Tyrion respondeu. - E acredito que um dia existiram dragões. Afinal de contas, vi seus crânios. - Esperemos que essa seja a pior coisa que veja, senhor. - Nisso concordamos - Tyrion sorriu. - E quanto à morte de Sor Cortnay, bem, sabemos que Stannis contratou mercenários das Cidades Livres. Talvez também tenha comprado um assassino habilidoso. - Um assassino muito habilidoso. - Há homens assim. Costumava sonhar que um dia seria suficientemente rico para enviar um Homem Sem Rosto contra minha querida irmã. - Independentemente do modo como Sor Cortnay morreu, está morto, e o castelo caiu. Stannis está livre para marchar. - Temos alguma chance de convencer os homens de Dorne a cair sobre a Marca? - Nenhuma. - E uma pena. Bem, a ameaça pode pelo menos servir para manter os senhores da Marca perto de seus castelos. Que novidades há de meu pai? 418 - Se Lorde Tywin conseguiu atravessar o Ramo Vermelho, nenhuma notícia nesse sentido me chegou ainda. Se não se apressar, pode ficar encurralado entre os inimigos. A folha dos Oakheart e a árvore dos Rowan foram vistas a norte do Vago. - Não há notícias de Mindinho? - Talvez não tenha chegado a Ponteamarga. Ou talvez tenha morrido lá. Lorde Tarly tornou-se senhor das reservas de Renly e passou muitos pela espada; em especial gente dos Florent. Lorde Caswell trancou-se em seu castelo. Tyrion atirou a cabeça para trás e estourou em gargalhadas. Varys puxou as rédeas do cavalo, perplexo.
- Senhor? - Não vê a piada, Lorde Varys? - Tyrion indicou com um gesto de mão as janelas trancadas, toda a cidade adormecida. - Ponta Tempestade caiu e Stannis vem a caminho com fogo e aço, e só os deuses sabem que escuros poderes, e o bom povo não tem Jaime para protegê-lo, nem Robert, nem Renly, nem Rhaegar, nem seu precioso Cavaleiro das Flores. Só têm a mim, aquele que odeiam - voltou a rir. - O anão, o maligno conselheiro, o pequeno demônio simiesco e deformado. Sou tudo o que têm entre eles e o caos. 419 Catelyn -Diga ao pai que parti para deixá-lo orgulhoso. O irmão saltou para a sela, senhor da cabeça aos pés, em sua brilhante cota de malha e manto solto em cores de lama e água. Uma truta prateada ornamentava seu elmo, gêmea da que levava pintada no escudo. - Ele sempre se orgulhou de você, Edmure. E ama-o ferozmente. Acredite nisso. - Pretendo dar-lhe mais motivos para isso do que meu mero nascimento - fez o cavalo de guerra dar meia-volta e ergueu uma mão. Soaram trombetas, um tambor começou a ressoar, a ponte levadiça desceu aos trancos, e Sor Edmure Tully levou seus homens para fora de Correrrio com lanças erguidas e estandartes ao vento. Tenho uma hoste maior do que a sua, irmão, pensou Catelyn enquanto os via partir. Uma hoste de dúvidas e medos. Ao seu lado, a infelicidade de Brienne era quase palpável. Catelyn mandara costurar trajes para as suas medidas, belos vestidos adequados ao seu nascimento e sexo, mas ela ainda preferia vestir peças avulsas de cota de malha e couro fervido, com um cinto de espada cingido à cintura. Teria se sentido mais feliz partindo para a guerra com Edmure, sem dúvida, mas mesmo muralhas tão fortes como as de Correrrio necessitavam de espadas para defendê-las. O irmão tinha levado todos os homens capazes para os vaus, deixando Sor Desmond Grell no comando de uma guarnição composta por feridos, velhos e doentes, juntamente com alguns escudeiros e outros tantos filhos de camponeses não treinados, ainda longe da idade viril. E isso para defender um castelo atulhado de mulheres e crianças. Quando o último dos homens de Edmure passou arrastando os pés sob a ponte levadiça, Brienne perguntou: - Que faremos agora, senhora? - O nosso dever - o rosto de Catelyn estava tenso quando começou a atravessar o pátio. Sempre cumpri meu dever, pensou. Talvez fosse por isso que o senhor seu pai sempre lhe dera mais carinho do que aos outros filhos. Os dois irmãos mais velhos tinham morrido na infância, e ela havia sido filho e filha para Lorde Hoster até Edmure nascer. Então, a mãe morrera e o pai dissera-lhe que teria de passar a ser a senhora de Correrrio, e Catelyn também tinha feito isso. E quando Lorde Hoster a prometera a Brandon Stark, ela lhe agradeceu por lhe ter arranjado um casamento tão magnífico. Dei a Brandon meu favor para que o usasse, e nunca confortei Petyr depois de ter sido ferido, nem lhe disse adeus quando meu pai o mandou embora. E quando Brandon foi assassinado e meu pai me disse que devia casar com o irmão dele, fiz isso de boa vontade, embora nunca tivesse visto Ned até 420 o dia do nosso casamento. Entreguei minha virgindade a esse solene estranho, e o mandei para a sua guerra, o seu rei e a mulher que lhe deu o seu bastardo, porque sempre cumpri meu dever. Os pés levaram-na para o septo, um templo de arenito com sete lados, construído no interior dos jardins de sua mãe, cheio de arcos-íris coloridos. Estava lotado quando entrou; Catelyn não estava só em sua necessidade de rezar. Ajoelhou perante a imagem de mármore pintado do Guerreiro e acendeu uma vela perfumada por Edmure e outra por Robb, que estava bem para lá dos montes. Mantenha-os a salvo e ajude-os a chegar à vitória, orou, e traga paz às almas dos mortos e conforto aos que deixam para trás. O septão entrou com seu incensório de cristal enquanto Catelyn rezava, então ela ficou para a celebração. Não conhecia aquele septão, um jovem zeloso com idade próxima à de Edmure. Desempenhava seu cargo bastante bem, e quando cantava os louvores aos Sete exibia uma voz rica e agradável, mas Catelyn deu por si ansiando pelo tom frágil e trêmulo do Septão Osmynd, morto havia muito tempo. Osmynd teria escutado pacientemente a história do que ela tinha visto e sentido no pavilhão de Renly, e também poderia ter sabido o que aquilo significara, e o que ela tinha de fazer para enterrar as sombras que assombravam seus sonhos. Osmynd, meu pai, tio Brynden, o velho Meistre Kym, sempre pareceram saber tudo, mas agora estou só, e parece que não sei nada, nem sequer qual é o meu dever. Como posso cumprir meu dever se não sei qual e ele?
Os joelhos de Catelyn estavam duros quando se levantou, embora não se sentisse mais sábia. Talvez fosse ao bosque sagrado à noite, e rezasse também aos deuses de Ned. Eram mais velhos do que os Sete. Lá fora, se deparou com uma canção de um tipo diferente. Rymund, o Rimante, estava sentado junto à cervejaria no centro de uma roda de ouvintes, fazendo ressoar a voz profunda enquanto cantava sobre Lorde Deremond no Prado Sangrento. E ali estava, de espada na mão, o último dos dez de Darry... Brienne parou para ouvir por um momento, com os largos ombros curvados e os grossos braços cruzados sobre o peito. Um bando de garotos esfarrapados passou correndo, berrando e batendo uns nos outros com paus. Por que os garotos gostam tanto de brincar de guerra? Catelyn perguntou a si mesma se Rymund seria a resposta. A voz do cantor cresceu ao aproximar-se do fim da canção. E rubra a relva sob seus pés rubra a bandeira que conduz e rubro o brilho do sol poente que o banhou em sua luz "Venham, venham", grita o grande senhor "inda há fome em minha espada" e com um grito de fúria selvagem foi à ribeira cruzada... - Lutar é melhor do que essa espera - disse Brienne. - Não nos sentimos tão impotentes quando lutamos. Temos uma espada e um cavalo, às vezes um machado. Quando vestimos armadura, é difícil que alguém nos machuque. - Os cavaleiros morrem em batalha - Catelyn lembrou-lhe. 421 Brienne olhou-a com aqueles belos olhos azuis. - Tal como as senhoras morrem ao dar à luz. Ninguém canta canções sobre elas. - Os filhos são um tipo diferente de batalha - Catelyn começou a atravessar o pátio. - Uma batalha sem estandartes nem cornos de guerra, mas não menos feroz por isso. Carregar uma criança no ventre, trazê-la ao mundo... sua mãe deve ter lhe falado da dor... - Nunca conheci minha mãe. Meu pai teve senhoras... uma senhora diferente a cada ano, mas... - Essas não eram senhoras. Por mais difícil que o nascimento seja, Brienne, o que vem a seguir é ainda mais difícil. As vezes, sinto-me como se estivesse sendo rasgada ao meio. Bem gostaria que houvesse cinco de mim, uma para cada filho, para que pudesse mantê-los todos a salvo. - E quem a manteria a salvo, senhora? O sorriso que deu saiu pálido e cansado. - Ora, os homens de minha Casa. Pelo menos foi o que minha mãe me ensinou. O senhor meu pai, meu irmão, meu tio, meu esposo, eles vão me manter a salvo... Mas, enquanto estiverem longe, suponho que você terá de ocupar o lugar deles, Brienne. Brienne inclinou a cabeça: - Tentarei, senhora. Mais tarde nesse dia, Meistre Vyman trouxe uma carta. Catelyn o recebeu de imediato, esperando que fosse alguma notícia de Robb, ou de Sor Rodrik em Winterfell, mas descobriu que a mensagem vinha de um tal Lorde Meadows, que se autodenominava castelão de Ponta Tempestade. Estava endereçada ao pai, ao irmão, ao filho "ou a quem quer que tenha a posse de Correrrio". Sor Cortnay Penrose estava morto, escrevia o homem, e Ponta Tempestade tinha aberto os portões a Stannis Baratheon, o herdeiro legítimo e de direito. A guarnição do castelo jurara as espadas à sua causa, todos e cada um dos homens, e nenhum deles havia sofrido nenhum mal. - Exceto Cortnay Penrose - murmurou Catelyn. Não conhecera o homem, mas doía-lhe saber de sua morte. - Robb tem de saber disso imediatamente - ela disse. - Sabemos onde ele se encontra? - Segundo as últimas notícias, marchava para o Despenhadeiro, sede da Casa Westerling - Meistre Vyman respondeu. - Se enviasse um corvo para Cinzamarca, talvez pudessem enviar um correio atrás dele. - Trate disso. Catelyn voltou a ler a carta depois de o meistre ter ido embora. - Lorde Meadows nada diz sobre o bastardo de Robert - confidenciou a Brienne. - Suponho que tenha entregado o garoto com o resto, embora eu deva confessar que não compreendo por que motivo Stannis o deseja tanto.
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- Talvez tema a pretensão do garoto, - A pretensão de um bastardo? Não, é outra coisa... Como é a aparência dessa criança? - Tem sete ou oito anos e traços agradáveis, com cabelos negros e olhos azuis-claros. Os visitantes achavam freqüentemente que fosse filho de Lorde Renly. - E Renly assemelhava-se a Robert - Catelyn teve um vislumbre de compreensão. - Stannis pretende exibir o bastardo do irmão perante o reino, para que os homens possam ver Robert no seu rosto e interrogar-se por que motivo não existe tal semelhança em Joffrey. - Isso teria tanta importância assim? - Aqueles que são favoráveis a Stannis vão chamar isso de uma prova. Aqueles que apoiam Joffrey dirão que não quer dizer nada - seus próprios filhos tinham neles mais Tully do que Stark, Arya era a única a mostrar muito de Ned nas feições. E Jon Snow, mas ele nunca foi meu. 422 Viu-se pensando na mãe de Jon, aquele sombrio amor secreto de que o marido nunca queria falar. Será que ela chora por Ned como eu? Ou será que o odiava por abandonar sua cama em favor da minha? Rezará pelo filho como rezo pelos meus? Eram pensamentos desconfortáveis e fúteis. Se Jon tivesse sido dado à luz por Ashara Dayne, de Tombastela, como alguns especulavam, a senhora estava havia muito morta; se não, Catelyn não tinha nenhuma pista quanto a quem poderia ser sua mãe ou onde estaria. E não fazia diferença. Ned agora estava morto, e seus amores e segredos tinham morrido com ele. Mesmo assim, sentiu-se uma vez mais impressionada pelo modo estranho como os homens se comportavam com seus bastardos. Ned sempre tinha protegido Jon ferozmente, e Sor Cortnay Penrose deu a vida por aquele Edric Storm, mas o bastardo de Roose Bolton significara menos para ele do que um de seus cães, julgando pelo tom estranhamente frio da carta que Edmure recebera dele ainda há menos de três dias. Escrevia que tinha atravessado o Tridente e marchava sobre Harrenhal conforme ordenado. "Um castelo forte, e com uma boa guarnição, mas Sua Graça irá possuí-lo, nem que para isso eu tenha de matar todas as almas que tem dentro.
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" Esperava que Sua Graça contrabalançasse com isso os crimes de seu filho bastardo que Sor Rodrik Cassei havia sentenciado à morte. "Um destino que ele sem dúvida mereceu" escrevera Bolton. "O sangue conspurcado é sempre traiçoeiro, e a natureza de Ramsay era dissimulada, ambiciosa e cruel. Considero-me aliviado por me ver livre dele. Os filhos legítimos que minha jovem esposa me prometeu nunca estariam a salvo enquanto ele vivesse." O som de passos apressados afastou os pensamentos mórbidos de sua cabeça. O escudeiro de Sor Desmond entrou apressado no aposento e se ajoelhou, ofegante. - Senhora... Lannister... do outro lado do rio. - Respire fundo, rapaz, e conte a história devagar. Ele fez o que lhe foi pedido. - Uma coluna de homens armados. Na outra margem do Ramo Vermelho. Levam um unicórnio roxo sob o leão de Lannister. Algum filho de Lorde Brax, Brax tinha vindo a Correrrio uma vez quando ela era jovem, a fim de propor o casamento de um de seus filhos com ela ou com Lysa, Perguntou a si mesma se seria esse mesmo filho quem estava ali agora, liderando o ataque. Sor Desmond contou-lhe, quando se juntou a ela nas ameias, que os Lannister tinham surgido do sudeste sob um esplendor de estandartes. - Alguns batedores, nada mais - assegurou-lhe. - A força principal da tropa de Lorde Tywin está muito para sul. Não corremos qualquer perigo aqui. Para sul do Ramo Vermelho, o terreno estendia-se aberto e plano. Da torre de vigia, Catelyn via quilômetros nessa direção. Mesmo assim, só o vau mais próximo se encontrava visível. Edmure tinha confiado a Lorde Jason Mallister sua defesa, bem como a dos três seguintes, em direção à nascente. Os cavaleiros Lannister andavam em círculos incertos perto da água, com estandartes carmins e prateados esvoaçando ao vento. - Não são mais de cinqüenta, senhora - estimou Sor Desmond. Catelyn viu os cavaleiros espalharem-se numa longa linha. Os homens de Lorde Jason esperaram por eles atrás de rochedos, tufos de mato e colinas. Um toque de trombeta fez os cavaleiros avançarem a passo lento, chapinhando na corrente. Por um momento fizeram um belo espetáculo, todos eles reluzentes armaduras e bandeiras tremulantes, com o sol relampejando nas pontas de suas lanças, - Agora - ela ouviu Brienne murmurar. 423 Era difícil distinguir o que estava se passando, mas os gritos dos cavalos pareciam altos mesmo aquela distância, e, sob o ruído dos animais, Catelyn ouviu o estrondo mais tênue de aço batendo em aço. Um estandarte desapareceu de repente quando seu portador foi derrubado, e pouco tempo depois o primeiro morto passava boiando pelas muralhas, trazido pela corrente, A essa altura, os Lannister tinham se retirado de modo desorganizado. Observou-os enquanto se reagrupavam, conferenciavam rapidamente e galopavam na direção de onde tinham vindo. Os homens nas muralhas gritaram-lhes provocações, embora já estivessem longe demais para ouvir. Sor Desmond deu uma palmada na barriga. - Gostaria que Lorde Hoster pudesse ter visto isso. Teria feito o senhor dançar. - Receio que os tempos de dança tenham terminado para o meu pai - disse Catelyn - , e esta luta está apenas começando. Os Lannister voltarão. Lorde Tywin tem duas vezes mais homens do que meu irmão. - Podia ter dez vezes mais que não importaria - Sor Desmond respondeu. - A margem ocidental do Ramo Vermelho é mais elevada do que a oriental, senhora, e bem arborizada, Nossos arqueiros têm boa cobertura, e campo aberto para as suas flechas... e se ocorrer alguma brecha, Edmure terá seus melhores cavaleiros na reserva, prontos para avançar para onde quer que sejam mais necessários. O rio vai retê-los. - Rezo para que tenha razão - Catelyn disse gravemente. Voltaram naquela noite. Catelyn tinha ordenado que a acordassem de imediato se o inimigo regressasse, e bem depois da meia-noite uma criada tocou suavemente em seu ombro, Catelyn sentou-se na hora: - O que foi? - E de novo o vau, senhora. Enrolada num roupão, Catelyn subiu ao telhado da fortaleza. Dali conseguia ver por cima das muralhas e o rio iluminado pela lua até o local onde a batalha se desenrolava com fúria. Os defensores tinham acendido fogueiras de vigia ao longo da margem, e os Lannister talvez tivessem julgado que os encontrariam cegos pela noite ou descuidados. Se tinham pensado assim, fora uma insanidade. A escuridão era, na melhor das hipóteses, um aliado incerto. Enquanto avançavam com água pelo peito, os homens enfiavam os pés em poços escondidos e...
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