Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


GAI-JIN - V.2 - P.2 / James Clavell
GAI-JIN - V.2 - P.2 / James Clavell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

IOCOAMA, Terça-feira, 9 de dezembro:

Na claridade que antecedia o amanhecer, o cúter da Struan afastou-se da fragata Pearl e voltou para o cais da companhia. Desenvolvia a velocidade máxima, deixando uma trilha de fumaça em sua esteira. O vento era firme, soprando de terra, com o céu nublado, que prometia se abrir por volta de meio-dia.

O binóculo do contramestre fixava as janelas do prédio da Struan. Havia uma luz acesa, mas não dava para determinar se Struan se encontrava ali ou não. E foi nesse momento que o motor engasgou, parou, e seus colhões pareceram subir, atingindo-o no queixo. Toda a vibração do barco cessou. Poucos segundos depois, o motor pegou de novo, mas tornou a engasgar, pegou mais uma vez, só que agora fazia um barulho estranho.

— Deus Todo-Poderoso! Roper, desça para ver o que aconteceu! — gritou ele para o mecânico. — E vocês outros, tratem de pegar remos, para o caso de enguiçarmos... McFay vai nos esfolar vivos se pararmos... Roper, qual é o problema, pelo amor de Deus? Diga logo o que aconteceu!

 

 

 

 

Outra vez ele fixou o binóculo na janela. Nenhum sinal de ninguém. Mas Struan se encontrava ali, seu binóculo focalizando o cúter. Observava-o desde que alcançara a fragata. Ele praguejou, pois agora podia ver o contramestre com toda clareza, e o homem deveria saber que era observado, poderia facilmente transmitir um sinal, sim ou não.

— A culpa não é dele — murmurou Malcolm. — Foi você quem esqueceu de combinar um sinal. Idiota!

Ora, não tinha importância, pois o tempo era bom, não havia qualquer prenúncio de uma tempestade, e uma pequena chuva não afetaria a Pearl. Ele tornou a focalizar a nave capitânia. Seu cúter voltava de uma visita à Pearl. Devia ter ido até lá para entregar as ordens.

A porta por trás dele foi aberta, e Chen entrou, jovial, trazendo uma xícara de chá fumegante.

— Bom dia, tai-pan. Não está mais dormindo, um bom chá, chop chop?

— Quantas vezes tenho de lhe dizer para falar uma língua civilizada e não pidgin? Seus ouvidos ficaram entupidos com a bosta dos ancestrais e seu cérebro coalhou?

Chen manteve o sorriso no rosto, mas soltou um resmungo interior. Esperava que o gracejo arrancasse uma risada de Struan.

— Ah, sinto muito. — Ele acrescentou a tradicional saudação chinesa, o equivalente a “bom dia”. — Já comeu arroz hoje?

— Obrigado.

Pelo binóculo, Malcolm viu um oficial sair do cúter e subir para a nave capitânia. Nada que indicasse qualquer coisa. Droga!

Ele pegou a xícara.

— Obrigado.

No momento, não sentia qualquer dor especial, apenas a dor constante normal, suportável. Já tomara sua dose matutina. Durante a última semana, conseguira reduzir a quantidade. Agora, tomava uma dose pela manhã e outra à noite, mas jurara que, no futuro, tomaria apenas uma por dia, se tudo corresse bem hoje.

O chá estava ótimo, misturado com leite de verdade, engrossado com açúcar, e por ser o primeiro do dia, continha um pouco de rum, uma tradição iniciada por Dirk Struan, como dissera seu pai.

— Chen, pegue meu culote grosso e uma camisa. Vou usar também um casaco.

Chen ficou surpreso.

— Ouvi dizer que a viagem foi cancelada, tai-pan.

— Em nome de todos os deuses, quando ouviu isso?

— Ontem à noite, tai-pan. Quinto primo na casa do chefe demônio estrangeiro ouviu-o falando com Nariz de Cogumelo Esmagado do grande navio, que disse: “Não viagem.”

Malcolm sentiu um frio no estômago e foi até a janela. Chocado, viu o cúter balançando a duzentos metros da praia. Sem ondas na proa. Pôs-se a praguejar, furioso, e depois avistou a fumaça começando a sair pela chaminé, as ondas na proa aparecerem, enquanto o cúter adquiria velocidade. Esquadrinhou o convés com o binóculo, mas só pôde ver o contramestre gritando, com os remos num lado, para o caso de outro colapso. Àquela velocidade, o cúter alcançaria o cais da companhia em menos de dez minutos.

Ele se vestiu, ajudado por Chen. Uma rápida olhada indicou que o cúter se encontrava quase atracando. Ele abriu a janela, esticou a cabeça para fora enquanto o contramestre subia para o cais e desatava a correr, tão depressa quanto a enorme barriga permitia.

— Ei, contramestre!

O homem grisalho ofegava ao se aproximar da janela.

— O Capitão Marlowe envia seus cumprimentos — balbuciou ele. — Espera senhor e a dama a bordo.

Struan deixou escapar um grito de alegria. Mandou chamar Ah Soh e ordenou-lhe que acordasse e vestisse Angelique, o mais depressa possível. Depois, em loz baixa, acrescentou:

— Preste atenção, Chen, e não me interrompa, ou vou explodir como uma bomba...

Ele deu instruções sobre o que embalar, e o que ordenar que Ah Soh embalasse, para depois despachar os baús para o Prancing Cloud, ao pôr-do-sol.

— A dama e eu jantaremos a bordo, e também dormiremos ali. Vocês dois também ficarão no navio, e voltarão para Hong Kong conosco...

— Hong Kong! Ah, tai-pan...

— ...e ambos ficarão com a boca mais fechada do que o ânus de uma mosca ou pedirei a Chen da Casa Nobre para remover seus nomes do livro da família.

Chen empalideceu. Malcolm nunca usara essa ameaça antes. O livro da família era a ligação de todo chinês do sexo masculino com a imortalidade, com seus ancestrais no passado místico e com os descendentes distantes, quando ele próprio seria considerado um remoto ancestral. Sempre que nascia um chinês no mundo, seu nome era escrito nos registros da aldeia ancestral. Sem isso, ele não existia.

— Pois não, amo. E Ah Tok?

— Falarei com ela. Vá chamá-la.

Chen passou pela porta. Ah Tok esperava ali fora. Ele se afastou apressado. Ela entrou. Struan comunicou que decidira que ela iria no navio seguinte e ponto final.

— Oh ko, meu filho — murmurou Ah Tok, na voz mais suave. — O que decide para sua velha mãe não é o que sua velha mãe decide que é melhor para si mesma e para seu filho. Voltaremos para casa. Manteremos silêncio. Nenhum dos fétidos demônios estrangeiros jamais saberá. Mas é claro que todas as pessoas civilizadas vão se interessar pela trama. Voltaremos para casa juntos. Vai levar sua prostituta com você?

Ela resistiu às invectivas de Malcolm, ordenando-lhe que nunca mais usasse aciuela palavra... ou qualquer outra parecida.

— Ah... — murmurou ela, ao se retirar, a voz definhando a pouco e pouco, — por sua velha mãe não chamará aquela prostituta de sua prostituta outra vez, mas e todos os deuses são testemunhas de que se não é prostituta que devo chamá-la, então prostituta não é o tratamento correto? Meu filho está demente...

Mas a raiva de Malcolm se evaporou quando viu Angelique.

— Ah, mas você está linda!

Ela usava um traje de montaria, botas, saia comprida, justa na cintura, colete, gravata e casaco, um chapéu com uma pluma verde e luvas, mas sem o chicote.

— Achei que seria o melhor para um passeio de barco, querido. —murmurou Angelique, com um sorriso glorioso.

 

— Sejam bem-vindos a bordo.

Marlowe esperava-os no alto da escada, esplêndido em seu uniforme. Antes de passar para o convés, Malcolm, meio desajeitado, apoiou-se com a mão esquerda, Angelique segurando suas muletas, e ergueu a cartola, formal.

— Permissão para ir a bordo?

Marlowe bateu continência, com um sorriso.

— Sejam bem-vindos. Posso?

Ele ofereceu o braço a Angelique, tonto pela intensidade do sorriso dela e pelo corte do casaco, que realçava o corpo. Levou-os para a ponte de comando, à frente da chaminé. Esperou que Malcolm se acomodasse numa cadeira, antes de dizer a seu número um, Davyd Lloyd:

— Vamos zarpar, mister Lloyd. Um quarto à frente e mantenha uma velocidade firme.

A Pearl zarpou, impulsionada pelo motor a vapor.

— Assim que nos afastarmos, vamos aumentar a velocidade — explicou Marlowe. — O almirante ordenou que conduzíssemos os testes à vista da nave capitânia.

A felicidade de Struan se desvaneceu.

— À vista dele? Não vamos sair para alto-mar?

Marlowe riu.

— Acho que ele gosta de manter seus “filhos” sob rédea curta. Mas prometo que será divertido.

Ou seja, estamos a bordo, mas não pelo motivo certo, pensou Struan. O desgraçado é um sádico! E se o almirante estivesse a bordo naquele momento, ele tinha certeza de que o mataria com a maior satisfação. Isto é, não chegaria a esse ponto, mas daria uma boa lição no patife. Ele vai se arrepender de não ter me ajudado. Quando eu voltar, inverterei tudo e criarei um problema que ele nunca mais vai esquecer.

Mas, até lá, o que faço agora?

Havia tanta coisa acontecendo que Marlowe e Angelique não notaram seu desespero, que Struan se esforçou em ocultar. A fragata avançava pelo meio da esquadra, com inúmeros marujos e oficiais dos outros navios admirando Angelique, e alguns também a maneira impecável como a Pearl era manobrada. A bordo da nave capitânia francesa, o vapor de roda de vinte e um canhões, por que passaram bem perto, os marujos assoviaram e acenaram, deixando consternados os oficiais britânicos.

Por Deus, pensou Marlowe, que péssimos modos, e que disciplina ainda pior. Mesmo assim, ele observou com um ar afável, enquanto Angelique acenava em resposta, sob um coro de assovios e gritos. Para distraí-la, Marlowe comentou:

— Vamos realizar testes de velocidade, Angelique, primeiro sob vapor, e depois com as velas. Temos de verificar o novo mastro. Não se lembra, mas perdemos nosso mastro anterior na tempestade. Vai ver...

Ele continuou a falar, explicando isso e aquilo, respondendo as perguntas que Angelique se sentiu na obrigação de fazer.

Ela simulava interesse, mas no fundo queria apenas ficar em silêncio, sentir o vento desmanchar seus cabelos, agora que tirara o chapéu, e se deleitava com a nova liberdade, querendo que o ar marinho dissipasse o mau cheiro sempre presente de locoama, um fato da vida ali, e também em Hong Kong, de tal forma que mal se notava, querendo apenas olhar para o futuro, sonhar com o canal da Mancha, os mares azuis, a bela costa da França, o retorno à sua terra. Nós, franceses, desejamos demais nossa terra, enquanto os ingleses parecem ser capazes de se sentir à vontade em qualquer lugar, não precisam realmente da Inglaterra, não como nós precisamos da França...

— Vamos ancorar ao meio-dia — disse Marlowe, na maior alegria por ser o capitão da Pearl. — Servirei um almoço leve em meu camarote, e há um beliche ali, se quiser fazer uma sesta...

A manhã transcorreu muito agradável. A cada meia hora, o sino do navio anunciava as manobras. Até mesmo Malcolm foi arrancado de seu desespero, enquanto a fragata navegava de uma extremidade a outra da baía, fazia a volta, disparava na direção oposta.

— Daqui a pouco — informou Marlowe — vamos suspender o vapor, e usar apenas as velas.

— Eu prefiro as velas — disse Angelique. — O barulho do motor é horrível. Velejar é mais agradável. Não concorda, Malcolm chéri?

— Claro que sim — respondeu Malcolm, contente, o braço em torno da cintura dela, amparando-a contra a inclinação do convés.

— Também concordo, assim como todos os homens da marinha britânica. Claro que ainda temos de velejar durante a maior parte do tempo... não podemos carregar combustível suficiente e o carvão é imundo! Mas, numa noite de tempestade, quando o porto se encontra logo à frente, com o vento contrário, ou o inimigo tem o dobro de canhões, mas usa as velas, e você não, temos de abençoar o velho Stephenson e os engenheiros britânicos por nos proporcionarem a bênção de ir contra o vento. Eu gostaria de levá-los lá embaixo, mas há poeira de carvão por toda parte, um barulho insuportável.

— Mesmo assim, eu adoraria dar uma espiada. Posso?

— Claro. Malcolm?

— Não, obrigado... podem ir vocês dois.

Ele visitava as casas de máquinas de seus vapores desde que era menino; os motores nunca o haviam interessado, apenas sua eficiência, custo e a quantidade de carvão que consumiam.

Antes de deixar a ponte de comando, Marlowe verificou a posição da fragata e o vento. Estavam a três quartos de milha da praia, bem distantes da esquadra e dos navios mercantes.

— Número Um, assuma o comando. Quando emparelharmos com a nave capitânia, suspenda o vapor e ice as velas, com curso para leste.

— Certo, senhor.

Malcolm observou Marlowe conduzir Angelique para a passagem no meio do navio, com uma pontada de inveja pelos passos ágeis do oficial britânico, ao mesmo tempo divertido com o charme contagioso com que ele envolvia Angelique. Respirando fundo, Malcolm relaxou na cadeira. O mar, o céu, o vento e o espaço haviam dissipado seu desalento. Era ótimo estar no mar, maravilhoso ser parte de um navio de guerra tão eficiente, bem cuidado e orgulhoso, ainda melhor estar confortável e seguro nas ondas. Sua mente projetou planos diferentes para enfrentar o amanhã e os dias subsequentes.

Joss, o destino. Não vou me preocupar com coisa alguma, ele prometeu a si mesmo. Lembre-se de seu juramento e da nova era!

Depois que Gornt chegara a Iocoama, como uma dádiva do céu, Malcolm agradecera a Deus pela perspectiva de salvação, e jurara que, se a informação de Gornt fosse mesmo o que ele alegava, faria sempre o melhor que pudesse, e não se contentaria com menos. Com informações suficientes para destruir os Brocks, ele tinha certeza, acima e além de qualquer dúvida, que a mãe viria para o seu lado. Angelique era tudo o que importava, assim como ser tai-pan, mas não apenas no nome.

Naquela mesma noite, fora impelido a se contemplar no espelho. Tinha de ser feito. Alguma força o obrigara a ver de verdade, pela primeira vez em anos, a se estudar de fato, profundamente, e não apenas o rosto.

Ao final, pensara: É isso o que você é, continua ferido gravemente por dentro, não pode se empertigar direito, suas pernas não funcionam como deveriam, mas pode ficar de pé, pode andar, e vai melhorar. O resto do seu corpo funciona e a mente também. Aceite. Lembre o que a mãe e o pai sempre lhe disseram, desde que era criança: “Aceite seu joss, é o que Dirk Struan sempre dizia. Dirk não tinha a metade de um pé e isso não o impedia de fazer as coisas. Dirk foi baleado e cortado uma dúzia de vezes, quase morreu em Trafalgar como carregador de pólvora, quase foi destruído por Tyler Brock meia dúzia de vezes. Aceite seu joss. Seja chinês, era o conselho de Dirk. Faça o melhor que pode e o resto que se dane.

Seu coração batera forte. Dirk, Dirk, Dirk. Que se dane Dirk Struan! Detesto quando jogam Dirk na minha cara, sempre me apavorei com a possibilidade de não ser capaz de me mostrar à altura de sua imagem impossível. Admita-o!

O reflexo não respondera. Mas ele o fizera.

— Tenho o sangue dele, tenho sua Casa Nobre para dirigir, sou tai-pan, faço o melhor que posso, mas nunca ficarei à sua altura, admita isso, que Deus o amaldiçoe, é essa verdade! É esse meu joss.

Ótimo, seu reflexo parecera dizer. Mas por que odiá-lo? Ele não o odeia. Por que odiá-lo como tem odiado por toda a sua vida... porque o odiou por toda a vida, não é mesmo?

— Isso é verdade, eu o odeio, sempre odiei!

Dizer em voz alta deixara-o chocado. Mas era verdade... todo o amor e respeito não passavam de uma impostura. Sempre o odiara, mas de repente, na frente do espelho, não mais o fazia. Por quê?

Não sei. Talvez seja por causa de Edward Gornt, talvez ele seja o bom espírito que me libertou do passado, assim como quer se libertar do seu. Morgan não envenenou sua vida, a de sua mãe e a de seu pai? Não que Dirk envenenasse a minha, mas seu espectro se interpôs entre a mãe e o pai e envenenou-os... não era esse o joss deles, que o pai morresse odiando-o, e por mais que a mãe o idolatre abertamente... também não o odeia, no fundo de seu coração, por ele não ter casado com ela?

Ali, na ponte de comando da fragata, Malcolm recordou o suor frio que o encharcara, e depois mais tarde, bebendo algum uísque, mas não a outra coisa, rompendo sua obsessão naquele momento, e tomando conhecimento de outra verdade: ansiava pela poção, tornara-se um viciado.

Verdades demais confrontadas. Não era fácil encarar a si mesmo, a missão mais difícil — e mais perigosa — que um homem pode realizar, e deve fazer pelo menos uma vez na vida, para ficar em paz. E foi o que eu fiz, gostando ou não.

— Número Um — disse o jovem sinaleiro ao tenente Lloyd, a luneta focalizada em seu equivalente distante — mensagem da nave capitânia, senhor.

 

Dois conveses abaixo, a casa de máquinas era uma masmorra de calor e barulho vibrando, poeira, escuridão e mau cheiro, iluminada por quadrados de carvões em brasa, quando foguistas seminus abriam as fornalhas sob as enormes caldeiras para jogar mais carvão ou retirar as brasas para a entrada de mais e mais carvão.

Angelique e Marlowe estavam parados numa das grades de ferro por cima, o ar impregnado pelo cheiro de coque, fogo, óleo ardendo, suor e vapor. Os corpos lá embaixo brilhavam de suor, homens barrigudos, com músculos estufados, as pás raspando no convés de ferro para ficarem cheias de carvão, que era lançado com um movimento hábil na fornalha, e espalhado numa camada igual, para pegar fogo no mesmo instante, e logo precisar de reabastecimento.

Na direção da popa, o motor vibrando brilhava de cuidado e óleo, mais homens usando latas com bicos compridos esguichavam óleo nas juntas, enquanto outros limpavam com refugos de algodão, outros cuidavam dos mostradores, bombas e válvulas, o motor girando o hélice contra a pressão do mar. Jatos de vapor das válvulas, mais óleo e limpeza, uma constante atenção dispensada aos êmbolos, alavancas, engrenagens, mais carvão jogado nas fornalhas. Angelique achou tudo muito excitante... os homens lá embaixo pareciam alheios à presença deles.

Orgulhoso, Marlowe apontava e explicava, por cima do barulho, e ela respondia com um aceno de cabeça, um sorriso de vez em quando, segurando em seu braço de leve, para se firmar, sem ouvir nada, nem preocupada em escutar dominada pela casa de máquinas, que lhe parecia um Valhalla masculino, onde máquinas casavam com homens, agora eram parte deles, primitivas, mas ao mesmo tempo futuristas, escravos cuidando de seus amos, e não o contrário.

Sem ser percebido, o sinaleiro aproximou-se por trás e bateu continência. Não sendo visto, ele se adiantou, bateu continência de novo e rompeu o encantamento de Angelique. Entregou a mensagem escrita a Marlowe, que a leu rapidamente depois balançou a cabeça para o sinaleiro e gritou:

— Mensagem recebida! — Ele inclinou-se para Angelique e acrescentou: — Sinto muito, mas temos de subir agora.

Nesse momento, ouviu-se ali embaixo o sino da ponte de comando. O oficial de máquinas apressou-se em cumprir a ordem. Homens correram para fechar válvulas, abriram outras, acionaram alavancas, verificaram os mostradores. À medida que a força do vapor diminuía, o enorme eixo e o motor se tornaram mais lentos, o barulho diminuiu, os foguistas apoiaram-se agradecidos em suas pás, os peitos arfando para aspirar o ar impregnado de poeira de carvão, torceram as toalhas penduradas no pescoço. Um homem virou-se, praguejou, sua voz ainda abafada pelo barulho, abriu a calça e urinou sobre os carvões, num jato que terminou em vapor, sob as risadas dos outros. Marlowe apressou-se em pegar Angelique pelo braço e tirou-a dali. Um foguista a notou, depois outro, e antes que ela desaparecesse, todos olhavam em silêncio para seu vulto se afastando. Assim que ela saiu, um deles fez movimentos obscenos, sob mais risadas, misturadas com um silêncio repentino e triste.

No convés lá em cima, com a súbita falta de barulho, aspirando o ar marinho, ela sentiu-se tonta por um instante, e apoiou-se no braço de Marlowe.

— Você está bem?

— Estou, sim. Obrigada, John. Foi... extraordinário.

— Acha mesmo? — murmurou ele, distraído, sua atenção nos marujos no cordame, içando e ajustando as velas. — Imagino que é a reação de todo mundo, na primeira vez. No mar, durante uma tempestade, as coisas lá embaixo não são fáceis. Foguistas e engenheiros formam uma raça à parte.

Marlowe conduziu-a até Malcolm.

— Lamento, mas tenho de deixá-los por um momento.

Ele desceu para seu camarote, que ficava na popa. O fuzileiro de sentinela bateu continência à sua passagem. O cofre da fragata ficava embaixo de seu beliche. Marlowe abriu-o, nervoso. A mensagem do almirante era curta: “Cumpra as ordens lacradas, l/Al6/12.” Havia no cofre o diário de bordo, códigos, dinheiro para pagamento, livro de pagamento, livro de punições, manuais, manifestos, recibos, os regulamentos navais e vários envelopes lacrados, que recebera dan capitânia naquela manhã.

As mãos tremiam um pouco quando ele encontrou o envelope correto. Seria a ordem de retornar à esquadra ou de se preparar para a guerra? Marlowe sentou à mesa, cercada por cadeiras, tudo aparafusado no convés, e rompeu o lacre.

 

— Foi extraordinário lá embaixo, Malcolm! Terrível, de certa forma, todos aqueles homens, uma coisa espantosa... e se é assim num pequeno navio como este, como seria num grande vapor... como, por exemplo, o Great Eastern?

— É de fato um navio incrível, Angel. Testemunhei seu lançamento no Tamisa, na última vez em que estive em Londres, há quatro anos, quando concluí a escola... e não pode imaginar como me senti contente por terminar os estudos. O navio é todo de ferro, quatro toneladas, o maior do mundo até agora, construído para transportar emigrantes, milhares de cada vez, até a Austrália. O lançamento prolongou-se por semanas... foi efetuado de lado e quase afundou. O pobre Brunel, que projetou e construiu o navio, quebrou muitas vezes, arrastando várias companhias na queda. Era um navio azarado, pegou fogo na viagem inaugural, quase naufragou... e isso o matou. Nunca viajarei nele... azarado como é, desde o início...

Malcolm avistou Marlowe aproximando-se pelo convés e franziu o rosto. Não havia agora qualquer sinal de jovialidade no rosto do oficial. O contramestre badalou o sino oito vezes. Meio-dia.

— Assuma o comando, Número Um — disse Marlowe.

— Pois não, senhor.

— Por que não leva miss Angelique para a proa? Talvez ela goste de examinar de perto os nossos canhões.

— Com prazer. Vamos, miss?

Obediente, Angelique seguiu-o pelo convés. Ele era baixo, sardento, e da sua altura.

— É galês, Sr. Lloyd? — perguntou ela.

Ele riu e respondeu numa voz monótona:

— Tão galês quanto as colinas de Llandridod Wells, onde nasci.

Angelique riu também, inclinou-se contra o convés inclinado e sussurrou:

— Por que estou sendo afastada como uma colegial?

— Não faço a menor idéia, miss. — Ela viu os olhos castanhos de Lloyd se desviarem para trás, e depois se fixarem nela. — O capitão quer falar sobre o almoço, com certeza, ou perguntar a ele, a seu homem, se quer usar o banheiro. Conversa de homem.

Os olhos sorriam enquanto ele falava.

— Gosta dele, não é?

— O capitão é o capitão. E agora os canhões, miss!

A risada de Angelique ressoou, os marujos nas proximidades ficaram encantados. Malcolm e Marlowe, na ponte de comando, também ouviram, e viraram-se para olhar.

— Ela é uma imagem graciosa, Malcolm.

— Também acho. Mas estava me falando do almoço.

— Acha que é satisfatório? O cozinheiro é de primeira classe na torta de maçã.

O cardápio seria guisado de peixe, pastelão e bolinhos fritos de galinha e carne de porco, galinha assada fria, queijo Cheddar e torta de maçã.

— Tenho duas garrafas de Montrachet 55, geladas, que venho guardando para uma ocasião especial, e um Chambertin 52.

— Você vive muito bem — comentou Malcolm, impressionado.

Marlowe sorriu.

— Nem tanto, mas é um dia especial, e para dizer a verdade, surrupiei o Chambertin... era o favorito do meu velho. E ele me deu duas caixas do Montrachet, quando parti.

— Ele é da marinha?

— É, sim. — A maneira como Marlowe falou expressava surpresa pela pergunta. — É comandante-em-chefe em Plymouth.

Ele hesitou, fez menção de falar, parou.

— Qual é o problema? Recebeu ordem para voltarmos?

— Não. — Marlowe fitou-o nos olhos. — Esta manhã me entregaram diversas ordens lacradas, junto com a permissão de trazê-lo para bordo, e voltar ao pôr-do-sol, sem falta. Há poucos minutos, a nave capitânia ordenou-me que abrisse um dos envelopes lacrados. Não havia uma ordem expressa para lhe contar, nem para deixar de contar. Talvez você possa me explicar tudo. A mensagem dizia: “Devo um favor peculiar ao Sr. Struan, e você pode, se assim o desejar, concedê-lo.”

O mundo parou para Malcolm Struan. Não sabia se estava vivo ou morto, a cabeça girava, e com certeza teria caído se não estivesse sentado.

— Deus Todo-Poderoso! — exclamou Marlowe. — Contramestre, vá buscar uma dose de rum, o mais depressa possível!

O contramestre afastou-se, enquanto Malcolm conseguia balbuciar:

— Não, não precisa... estou bem... mas, para ser franco, um trago de rum seria ótimo.

Ele podia ver os lábios de Marlowe se mexendo, e sabia que era sacudido, mas seus ouvidos não escutavam coisa alguma além das batidas do próprio coração. Um momento depois, no entanto, sentiu o vento no rosto e o som do mar retornou.

— Tome aqui, senhor — disse o contramestre, aproximando o copo de seus lábios.

O rum escorreu pela garganta. Em segundos, Struan sentiu-se melhor. Fez menção de se levantar.

— Melhor ir devagar, senhor — murmurou o contramestre, preocupado. — Parece que viu um fantasma.

— Não um fantasma, contramestre, mas vi um anjo... seu capitão! Marlowe ficou aturdido, e Malcolm acrescentou, tropeçando nas palavras.

— Não estou louco. John... desculpe, capitão Marlowe... há algum lugar aqui em que possamos ter uma conversa em particular?

— Claro. Aqui mesmo.

Contrafeito, Marlowe gesticulou para o contramestre, que deixou a ponte de comando. Só o timoneiro e o sinaleiro permaneceram.

— Sinaleiro, vá para a proa. Timoneiro, tape os ouvidos.

Struan disse:

— Meu pedido peculiar é o seguinte: quero que você navegue para alto-mar e celebre meu casamento com Angelique.

— Como?

Foi a vez de Marlowe ficar atordoado. Ouviu Malcolm repetir, e balbuciou:

— Você está mesmo louco!

— Não, não estou. — Malcolm tinha o controle agora, seu futuro em jogo, com as palavras do almirante, e você pode, se assim o desejar, concedê-lo, gravadas em seu cérebro. — Deixe-me explicar.

E ele começou. Poucos minutos mais tarde, o camareiro subiu à ponte de comando e logo se retirou. Voltou mais tarde, para anunciar:

— Com os cumprimentos do cozinheiro, senhor, o almoço está servido em seu camarote.

Marlowe, no entanto, acenou-lhe outra vez para que se retirasse, concentrado, não querendo interromper.

— ...e esse é o motivo — concluiu Malcolm —, o porquê do almirante, meu, seu, de minha mãe. Agora, por favor, vai conceder meu favor peculiar?

— Não posso. — Marlowe sacudiu a cabeça. — Sinto muito, meu velho. Nunca casei ninguém e duvido que os regulamentos permitam.

— O almirante lhe deu permissão para fazer o que eu pedisse.

— Ele teve o maior cuidado: “conceder, se eu assim o desejar”. Por Deus, meu caro, isso é pôr meu pescoço no laço do carrasco. — Marlowe sentia a boca ressequida, enquanto previa todos os tipos de desastres futuros. — Não conhece Ketterer como eu, nem qualquer outro oficial superior, diga-se de passagem! Se eu escolher errado neste caso, ele vai me esfolar vivo, minha carreira estará liquidada...

Ele fez uma pausa para respirar, balançou a cabeça, e acrescentou:

— Não poderia fazer isso de jeito nenhum, não...

— Por que não? Não nos aprova?

— Claro que aprovo vocês dois, mas sua mãe não... isto é, ela diz não ao casamento, Sir William meteu-se na história, a igreja não vai celebrar o casamento, nem os outros capitães, e não posso esquecer que os dois são legalmente menores de idade, e por isso, se eu me envolvesse... afinal, ela é menor, e não pode... não posso assumir o risco... — Marlowe teve uma súbita idéia, olhou na direção da praia — A menos que sinalize para Ketterer. Pedirei permissão.

— Se fizer isso, perderá prestígio para sempre. Se Ketterer quisesse que você fizesse isso, teria dito expressamente.

Marlowe tornou a olhar para ele, irritado. Releu a mensagem do almirante, soltou um grunhido. Seu futuro estava em jogo. Deus Todo-Poderoso, por que os comvidei para um passeio? Lembrou o que o pai sempre dizia: Na marinha, você comanda seu navio pelas normas e regulamentos, exceto se for o maldito Nelson, e só existiu um Nelson!

— Lamento, meu caro, mas não é possível.

— Você é a nossa última esperança... e agora a nossa única esperança.

— Lamento, mas a resposta é não.

Struan suspirou, relaxou um pouco, e jogou seu último trunfo.

— Angel!

Ela ouviu-o na segunda chamada e voltou, com o tenente Lloyd ao seu lado.

— Angel, gostaria de casar hoje, neste momento? — indagou ele, amando-a demais. — John Marlowe pode celebrar a cerimônia, se quiser. O que acha?

Angelique mostrou-se espantada, e não ouviu Marlowe dizer que lamentava muito, mas não podia fazê-lo. Só que ele foi detido pelo ardor do abraço e beijo de Angelique, que depois fez a mesma coisa com Struan, várias vezes.

— Mas claro que eu adoraria! Oh, John, seria maravilhoso... obrigada, muito obrigada... seria maravilhoso... por favor...

Ela suplicou com outro abraço, e Marlowe se ouviu dizer:

— Claro, claro... por que não? Terei o maior prazer.

Ele falou as palavras fatídicas baixinho, embora se sentisse por dentro mais furioso do que nunca, e ainda tivesse a intenção de dizer não. O timoneiro sacramentou a questão com um grito alegre:

— Três vivas para o capitão Marlowe! Teremos um casamento a bordo!

 

O almoço foi um hilariante festim pré-nupcial, apenas dois ou três copos de vinho para testar e saborear a qualidade excepcional, o resto deixado para mais tarde, com todos muitos excitados, e ansiosos em começar logo. Depois de tomar a decisão, Marlowe ordenou que a fragata partisse para alto-mar com todas as velas içadas e tornou-se o mais entusiástico partidário, querendo que a cerimônia fosse memorável e perfeita. Mas antes de propor um brinde pré-nupcial, ao final da refeição, ele disse, solene:

— Só Deus sabe se será mesmo legal, mas nada pude encomtrar nos regulamentos navais para dizer que não será, ou que não pode ser consumado, nada se refere à idade das pessoas, apenas que ambos devem declarar sua concordância formal, diante de testemunhas, que dão seu consentimento por livre e espontânea vontade, e assinarem um depoimento, que incluirei no diário de bordo. Ao desembarcarmos, todo o inferno ficará à solta, além dos parabéns. Talvez devam providenciar uma cerimônia religiosa, pois as duas Igrejas vão protestar com veemência pelo que vamos fazer.

Angelique percebeu uma certa apreensão por trás das palavras.

— Mas está tudo bem, não é, John? Malcolm me falou sobre as oposições e o padre Leo... — Ela torceu o nariz, em repulsa. — Você não vai se meter numa encrenca, não é?

— Nem pense nisso, pois o almirante deu permissão — respondeu Marlowe com mais entusiasmo do que sentia. — Mas chega de falar sobre isso. À saúde de vocês e às futuras gerações!

Angelique começou a se levantar para beber também, mas Struan a deteve.

— Desculpe, querida, mas dá azar beber à própria saúde. É um velho costume. Além disso, a bordo dos navios da marinha real, as pessoas sempre fazem o brinde sentadas.

— Ah, sinto muito!

Sua mão esbarrou num copo, jogando-o contra outro, que começou a retinir. No mesmo instante, Marlowe e Struan se inclinaram para interromper a vibração. Malcolm explicou:

— É outra antiga superstição do mar, querida. Se você deixa o retinido de um copo acabar por si mesmo, um marujo se afoga em algum lugar do mundo.

— Ahn... — O rosto de Angelique perdeu o brilho. — Eu gostaria de saber disso antes. Muitas vezes, no passado...

— Não precisa se preocupar — interrompeu-a Marlowe. — Se você não sabe, então a superstição não conta. Certo, Malcolm?

— É isso mesmo. Eu gostaria de propor um brinde, Angelique, a John Marlowe, capitão da marinha real, cavalheiro, e o melhor amigo que temos!

O pequeno camarote transbordava de conversa animada e risos. Lloyd veio anunciar que estava tudo pronto no convés superior. Um último beijo entre os dois, muito terno, e foram para o convés, onde ficaram de mãos dadas.

A fragata navegava a favor do vento, as velas enfunadas. Os marujos que podiam ser dispensados de suas funções entraram em formação no convés, arrumados e empertigados, virados para o tombadilho superior, onde Malcolm e Angelique postavam-se diante do capitão. Marlowe era ladeado por uma guarda de honra de dois fuzileiros. Abriu o livro dos regulamentos navais na página certa e gesticulou para que o corneteiro dos fuzileiros desse uma clarinada. O contramestre soprou seu apito e os marujos assumiram posição de sentido.

— Estamos aqui reunidos como testemunhas do casamento destas duas pessoas, à vista de Deus...

As ondas encapeladas não os incomodavam, nem o vento, que soprava em rajadas cada vez mais fortes. Havia nuvens nimbos no horizonte, ainda não ameaçadoras, mas potencialmente perigosas. O céu continuava claro, e Marlowe especulou, por um instante, se o tempo não seria um presságio. Ainda não havia motivo para alarme, pensou ele. A cerimônia foi logo concluída, estranhamente rápida para todos, quase um anticlímax para Malcolm. Ele usara o anel de sinete de seu dedo mínimo como o anel de casamento. Era grande demais para Angelique, mas ela o segurou com firmeza, contemplando-o na maior incredulidade.

— Agora, eu os declaro marido e mulher.

Enquanto eles se beijavam, soaram exclamações estrondosas, até que Marlowe ordenou:

— Vamos interromper esse abraço!

Ele ordenou em seguida que fosse servida uma dose de rum a todos os tripulantes, sob mais aclamações.

— Sra. Struan, posso ser o primeiro a lhe dar os parabéns?

Angelique abraçou-o, comovida, lágrimas de alegria escorrendo por suas faces.

— Obrigada, muito obrigada...

— De nada — murmurou Marlowe, embaraçado, e depois apertou a mão de Struan. — Parabéns, meu velho. Por que nós não...

Uma breve rajada fez as velas estalarem.

— Por que vocês dois não descem? — sugeriu ele. — Irei me juntar a vocês daqui a pouco.

Marlowe virou-se, esquecendo-os pelo momento, para cuidar de seu navio.

— Vamos dar a volta, Número Um. Fixe um curso para Iocoama, sob velas até novas ordens. Ligaremos o vapor para ancorar... e talvez enfrentemos alguma chuva. Sinaleiro, dê-me seu bloco. Quando estivermos à vista da nave capitânia, transmita isto.

 

Edward Gornt sentava à vontade junto da janela panorâmica do prédio da Brock, os pés em cima de uma cadeira, contemplando a baía. As nuvens haviam se espalhado e prometiam uma tempestade, embora naquela época do ano se dissipassem tão depressa quanto surgiam. Por trás dele, Norbert Greyforth se encontrava sentado à sua escrivaninha, absorvido no trabalho. Haviam observado a Pearl sumir no horizonte, mas não atribuíram qualquer significado especial a isso.

— Imagino que é parte dos testes que estão realizando, senhor — dissera Gornt. — Ainda não consigo conceber o que há de tão importante a bordo.

Norbert balançara a cabeça, secretamente divertido, e voltara a assinar e conferir documentos e manifestos. Havia um cargueiro da Brock no porto, deveria zarpar dentro de poucos dias, e toda a carga que levaria do Japão tinha de ser contabilizada: vinte quilos de ovos de bicho-da-seda para o mercado francês — trinta a cinquenta mil ovos em cada trinta gramas —, fardos de seda crua e panos de seda para o mercado de Londres, objetos laqueados, barris de saquê que estavam tentando introduzir no mercado inglês, e também para os japoneses nas Filipinas, cerâmicas baratas como lastro, carvão, qualquer coisa e tudo que pudesse encontrar um mercado, junto com o resto da carga trazida antes que não fora vendida e seria agora negociada na volta. Algumas armas de fogo e ópio, em caixotes especiais.

— Charuto? — indagou Gornt.

— Obrigado.

Eles acenderam os charutos finos e compridos, saboreando-os.

— Marquei um encontro com McFay para finalizar os acertos para amanhã, senhor.

— Ótimo.

Norbert soprou para o alto uma nuvem de fumaça, assinou o último documento. Tocou uma sineta. Um momento depois, seu escriturário-chefe e cambista entrou na sala.

— Está tudo pronto, Pereira.

— Certo, senhor. — Aquele homem pequeno e louro, com olhos orientais, era um eurasiano de Macau, como muitos que trabalhavam em todas as grandes companhias. — O que faremos com as cargas especiais, senhor?

— Ficam fora do manifesto e deverão ser entregues aos cuidados especias do capitão.

— Corre um rumor de que a marinha vai subir a bordo e fiscalizar a carga ao acaso.

— Pois que façam isso. Nenhuma de nossas cargas especiais é ilegal, não importa o que os idiotas dos Struans façam.

Norbert dispensou-o e concentrou toda a sua atenção em Gornt. Alguma coisa nele deixava-o desconfiado.

— Edward, talvez eu devesse cancelar o duelo, comunicar a Struan esta noite que aceito seu compromisso, pois ele já mordeu a isca, não é mesmo? Talvez seja melhor deixá-lo ir para Hong Kong, para se afundar ainda mais na merda, pensando que venceu. O que acha?

— Pode fazer isso, mas por que poupá-lo de uma noite de medo? Ele está apavorado, com toda certeza... por que confortá-lo? Struan por acaso o confortaria?

Norbert observou-o com toda atenção, viu o lábio superior se contrair ligeiramente, numa satisfação insidiosa. Riu para si mesmo, pensando no quanto aquela noite poderia ser especial para Struan, se Ketterer fosse um homem diferente, e que a perspectiva do duelo, agora mais do que nunca, tiraria o que restava do sono de Struan.

— Não pensei que se ajustasse a nós, os Brocks. A vingança é doce para você também?

— Para mim, senhor? — Gornt alteou as sobrancelhas. — Eu pensava no senhor... estou aqui para servi-lo, não foi essa a idéia?

— É verdade. — Norbert ocultou seu sorriso. — Muito bem, deixaremos para amanhã. Mas agora...

Seus olhos aguçados divisaram uma mancha no horizonte, através da janela Por trás de Gornt.

— Será a Pearl?

Ele se levantou, foi até janela, focalizou seu binóculo. Era mesmo a fragata.

— Vem firme como foi — murmurou Gornt.

Gornt se perguntou o que isso podia significar. A Pearl se achava no processo de ferrar as velas, com nuvens pretas por trás.

— O vento está aumentando por lá — comentou Gornt, também focalizando seu binóculo.

A fumaça da fragata formava um ângulo ao sair da chaminé. O resto da esquadra e os navios mercantes estavam ancorados na baía. Umas poucas cristas espumantes. Norbert virou seu binóculo para o Prancing Cloud. Nada de estranho acontecendo ali. E depois para a nave capitânia. Também nada. Voltou a observar a fragata. E ficaram esperando. A Pearl aproximava-se depressa. A nave capitânia outra vez. Nada. A fragata. Norbert pôde reconhecer apenas Angelique, de pé ao lado de um homem, que devia ser Struan.

— Olhe ali! — exclamou Gornt de repente, excitado. — Pode ver o sinaleiro?

— Onde? Ah, sim, estou vendo.

— Ele está transmitindo uma mensagem para a nave capitânia, fazendo os primeiros sinais com as bandeiras. “Capitão da Pearl para almirante. A mensagem diz: P-E-D-I-D-O C-O-N-C-E-D-I-D-O” — Perplexo, Gornt olhou para Norbert por um instante. — O que isso significa?

— Observe a nave capitânia, à espera de alguma resposta!

Gornt obedeceu e Norbert acrescentou:

— Onde aprendeu a ler as bandeiras de sinalização da marinha?

— Em Norfolk, Virgínia, senhor. Quando era garoto, gostava de observar os navios, os nossos e os britânicos. Tornou-se uma espécie de passatempo. Depois, meu pai comprou um livro americano e outro britânico, com a maioria das frases padrões e alguns de seus códigos. Costumava ganhar apostas para meu pai quando ele recebia oficiais, em geral para jogar cartas. Minha mãe e ele gostavam de receber, sempre com a maior generosidade, antes do desastre com o algodão, quando perderam a maior parte de seu dinheiro.

— Pode ler todas as bandeiras? Todos os códigos? — perguntou Norbert, especulando como poderia aproveitar esse conhecimento de Gornt. — Seria capaz de ler as bandeiras da Struan, de navio para navio, ou de navio para terra?

— Se usarem os códigos internacionais de sinalização, embora seja provável que eles também tenham, como a Brock, códigos especiais... Espere um instante, uma mensagem da nave capitânia, no código normal. “Para capitão da Pearl de almirante Ketterer: Volte imediatamente a seu ancoradouro.” Em seguida: “Quando ancorado em segurança, apresente-se na nave capitânia.” Em seguida as letras “C-O-M E-L-E”. Última bandeira padrão: “Acuse recebimento.” — Gornt lançou um olhar rápido para trás. — “Com ele”, Sr. Gornt? Seria Struan?

— No alvo!

— Bandeira acusando o recebimento. — Gornt baixou o binóculo, esfregou os olhos, pois a concentração deixara-o com dor de cabeça. — No alvo? Sabe o que tudo isso significa?

— O que havia de tão importante a bordo da Pearl? Capitão desgraçado Marlowe, da marinha real.

Norbert não demorou muito a explicar.

— Casados? — disse Gornt. — Mas é brilhante, senhor!

— Nunca pensei que Ketterer fosse concordar, mas parece que foi isso mesmo. Por quê? Ele não tem nada a ganhar. — Norbert ficou perplexo, mas depois exibiu um sorriso rancoroso. — A menos... a menos que ele tenha chamado os dois para passar uma descompostura em Marlowe e desfazer o casamento de imediato... para espetar a faca ainda mais em Struan, torturá-lo mais um pouco.

— E ele pode fazer isso?

— Aquele patife pode fazer o que bem quiser, verdade seja dita. — Norbert cuspiu na escarradeira e jogou a ponta do charuto ali. — Todos os homens a bordo da esquadra têm o dever de obedecer a ele e nenhum se esquiva!

— Está querendo dizer que ele pode obrigá-los a irem contra a lei?

— Vamos pôr de outra maneira: eles têm de obedecer imediatamente ou sofrer as conseqüências... que variam do açoite à passagem por baixo da quilha, preso por uma corda. Se ele quisesse, poderia enforcar qualquer homem e depois alegar que foi enganado pelos subalternos... escapando de qualquer corte marcial. Enquanto isso, você está morto.

— Então como o senhor pode... se opor a ele com tanta veemência, Sr. Greyforth?

— Porque Ketterer respeita a lei, eles são condicionados assim na marinha real, a obedecer às ordens de quem está por cima, mas acima de tudo porque contamos com Wee Willie... que ocupa uma posição superior. Ele é a nossa proteção contra Ketterer, o general, os japas, e todos os outros inimigos... mas isso não salvará o jovem Struan da fleuma de Ketterer.

 

— Ou seja, capitão Marlowe, o pedido especial que o Sr. Struan lhe fez foi o de navegar para alto-mar... e casá-lo com miss Angelique Richaud?

— Isso mesmo, senhor.

Marlowe se encontrava em posição de sentido, incapaz de ler o rosto do almirante. Ketterer se achava ladeado à mesa, no enorme camarote na popa, pelo capitão da nave capitânia. Por trás deles, seu ajudante-de-ordens também se mantinha imóvel.

— E fez isso, sabendo que ambos eram menores?

— Sim, senhor.

— Por favor, apresente-me um relatório, por escrito, até o pôr-do-sol, especificando suas razões, exatamente, e relatando o que ocorreu, exatamente. Dispensado.

Marlowe bateu continência e começou a se retirar, enquanto Ketterer se virava para o capitão, um homem feio e rude, o rosto curtido, conhecido pelo rigor de sua disciplina, e pelo culto aos regulamentos navais.

— Capitão Donavan, poderia fazer o favor de pesquisar a situação legal?

— Pois não, senhor.

Seus olhos azuis tinham uma expressão implacável.

— Obrigado. Isso é tudo... por enquanto.

Foi a última coisa que Marlowe ouviu, antes de fechar a porta, e teve a sennsação de que seu coração recomeçava a bater. Struan esperava na ante-sala. Os fuzileiros montavam guarda, desconfiados.

— Por Deus, você se estrepou?

— Não, absolutamente. — Marlowe esforçava-se para aparentar calma. — O almirante, corretamente, quer um relatório por escrito, isso é tudo. Voltarei para meu navio. Vejo-o mais tarde. Antes que ele pudesse se retirar, a porta do camarote foi aberta e Marlowe morreu mais um pouco. O capitão Donavan passou por ele, mal reconhecendo sua presença ou a sua continência. Da porta, o ajudante-de-ordens anunciou:

— Sr. Struan, o almirante apresenta seus cumprimentos e pede que faça gentileza de entrar, por favor.

Struan entrou claudicando no camarote. O ajudante-de-ordens não o seguiu, mas fechou a porta e ficou esperando ali. Antes de se retirar, Marlowe fitou-o, mas seus olhos nada deixaram transparecer... e é claro que nenhum dos dois diria qualquer coisa na presença dos fuzileiros. Ketterer gesticulou para que Malcolm sentasse.

— Por um lado, posso lhe dar os parabéns — disse ele, com uma formalidade sombria, estendendo a mão.

— Obrigado, senhor. — Malcolm pegou a mão estendida, sentindo que o aperto do almirante era firme, mas a palma macia. — E por outro?

— Por outro, parece que vai ter um trabalho dobrado para cumprir suas promessas.

— Como assim?

— Parece que atiçou uma cova de serpentes malignas entre seus companheiros. Sir William vem sendo assediado por queixas.

— Como eu disse antes, farei o melhor possível.

— Deve fazer mais do que isso, Sr. Struan.

— Desculpe, almirante, mas o que isso significa?

— Significa nada mais ou menos do que já prometeu.

No curto silêncio que se seguiu, Malcolm decidiu que não se deixaria ser sufocado, mas também não esqueceria que aquele homem tornara seu casamento possível... não, não possível, ele se corrigiu no mesmo instante, “permitira” que fosse possível. John Marlowe tivera a coragem de tomar a iniciativa.

— O capitão Marlowe não se meteu em nenhuma encrenca, não é?

— O capitão Marlowe está sujeito aos regulamentos navais.

— Sei disso, mas creio que ele nos casou de acordo com os regulamentos navais, senhor. Li o parágrafo antes e não havia qualquer referência à questão da idade.

— Os regulamentos também declaram que qualquer casamento assim fíca sujeito à revisão imediata para determinar a sua viabilidade. É o que acontece neste caso.

— Ou seja, estou casado, mas ao mesmo tempo não estou. É isso o que está querendo dizer?

— Apenas ressalto, Sr. Struan, que todas as ocorrências fora do normal estão sujeitas a uma revisão, o que é a norma na marinha real.

Malcolm forçou um sorriso.

— Correto, senhor. Minha... — Ele quase usou a palavra “leitura”, mas pensou duas vezes e trocou-a. — ...minha compreensão da ordem, senhor, é de que lhe dava permissão.

Ketterer alteou uma sobrancelha.

— O capitão Marlowe lhe mostrou uma mensagem lacrada que enviei para ele?

— Pelo que compreendi, senhor, a ordem lhe concedia uma permissão qualificada... e confesso que me empenhei em perguntar as palavras exatas e persuadi-lo de que era esse o caso.

— Era o que eu esperava que fizesse — comentou o almirante, secamente. — Portanto, era uma permissão qualificada?

— Minha ordem foi enunciada com clareza: Se você solicitasse um favor peculiar, ele poderia concedê-lo, se assim o desejasse. Ontem à noite, não mencionou que gostaria de ir para alto-mar? Seu pedido peculiar poderia ser apenas isso... as ordens dele eram para realizar os testes à vista da nave capitânia.

Struan se esforçava para manter o controle, sentindo os recifes do desastre sob seus pés.

— Tem razão, senhor, poderia pensar assim. Se houve algum mal-entendido, foi meu, não do capitão Marlowe.

— Anotarei isso, Sr. Struan.

Malcolm observava o homem mais velho com todo cuidado, e escutava com mais atenção ainda, querendo descobrir para onde o almirante ia, agora com receio de que houvesse uma continuação do jogo de gato e rato. Estou outra vez em suas garras... nunca conseguirei escapar?

— Posso perguntar, almirante, por que deu ao capitão Marlowe o que foi talvez uma permissão qualificada, mas que eu certamente interpretaria da maneira errada? — Ele manteve o rosto impassível, não esquecendo que estava casado, até que a cerimônia fosse declarada ilegal. — Nunca pensei que o faria, ontem à noite.

Durante a noite, Ketterer fora assediado pela presença de Consuela. “Dê uma chance a esse rapaz, Charles”, dissera ela, com aquele seu sotaque melodioso e adorável, tão sensual na memória quanto a profundidade de seus olhos castanhos em vida. “Nunca nos deram uma chance. Sendo assim, por que não dar a ele? E não se esqueça de que você não era muito mais velho do que ele na ocasião. Obteve dele um gigantesco passo à frente e pode ter certeza de que o rapaz cumprirá sua promessa. Por que não ser generoso... como os nossos pais e o infame almirantado não o foram? Ele está muito apaixonado, Charles, como acontecia com você, mas ao contrário de você, já sofreu um golpe cruel, pelo capricho de Deus...”

Ele acordara com as palavras de Consuela ressoando em seus ouvidos, a maneira como ela pronunciava seu nome ainda fazendo o coração disparar, mesmo depois de tantos anos. Mas não é a mesma coisa, pensara ele, endurecendo seu coração. Os Struans são contrabandistas de ópio, contrabandistas de armas... não esquecerei meus marujos mortos. Sinto muito, meu amor há tanto tempo perdido, mas o casamento será declarado ilegal imediatamente... Struan não vai se livrar tão fácil. O dever é o dever.

Agora, olhando para Struan, recordando a maneira como ele entrara, determinado a parecer forte, quando Hoag e Babcott haviam confirmado em particular que ele sentia uma dor quase que constante, e era duvidoso que algum dia voltasse a correr, ou que pudesse andar a cavalo sem problemas, recordando as palavras ao contrário de você... pelo capricho de Deus... Ketterer suspirou.

— Um súbito capricho, Sr. Struan — disse ele, resolvendo ser indulgente —, somado à convicção de que vai fazer o que prometeu.

O almirante levantou-se, com um sorriso nos olhos, foi até o aparador sentindo-se curiosamente jovem.

— Aceita um xerez?

— Obrigado.

Struan começou a se levantar, mas balançou, fraco de alívio pela admissão de Ketterer.

— Pode deixar que eu levo até aí. Tio Pepe? Ótimo. Saúde!

Tocaram os copos. Ketterer tomou um gole grande.

— Escute, meu jovem — disse ele, a voz inesperadamente suave e gentil — terei de consultar Sir William, é claro, e vou persuadi-lo a ler os regulamentos navais. É mais do que provável que o relatório do capitão Marlowe seja aceito, depois das devidas considerações... devemos cuidar para que nossos oficiais sempre estejam conscientes das consequências da ação independente, mas ele não se encontra em nenhuma “encrenca”, para repetir seu termo. Só que isso é outro segredo entre nós. Entendido?

— Claro, senhor. Obrigado. Cumprirei o que prometi. — Malcolm respirou fundo. — Então meu casamento é legal?

— Isso depende do seu ponto de vista. No que me diz respeito, no que se refere à marinha, essa é a minha convicção, e portanto deve ser legal. Quanto às duas Igrejas envolvidas, e às inevitáveis objeções jurídicas que terá de enfrentar, sugiro que corra as escotilhas, e se prepare para o pior. Mais uma vez, meus parabéns, por um lado. E transmita meus cumprimentos à Sra. Struan... em particular, é claro.

 

Ao anoitecer, A notícia já se espalhara por toda a colônia, cidade dos bêbados e Yoshiwara.

As especulações foram imediatas, ruidosas, com muitas discussões, teorias contra e a favor do casamento, alguns prevendo que a cerimônia era totalmente ilegal, outros repudiando isso, com a maior veemência, muitos dos mercadores mais belicosos — e todos os moradores da cidade dos bêbados — usando palavras de baixo calão, gestos obscenos e punhos cerrados para defender suas posições, enquanto uns poucos dos mais sensatos diziam:

— Ah, o jovem patife esperto, então foi por isso que ele apoiou o almirante! Foi um acordo! Muito hábil... eu faria a mesma coisa, se estivesse no lugar de Struan. E agora que ele tem a garota, ainda será contra o comércio de ópio, contra o comércio de armamentos? Não há a menor possibilidade...

Por causa da notícia, irromperam várias brigas na cidade dos bêbados e um bar foi destruído pelo fogo. Circulou o rumor de que o padre Leo sofrera um ataque apoplético e agora se encontrava prostrado diante do seu altar, enquanto o reverendo Tweet, naquele exato momento, protestava com veemência num encontro com Sir William. No clube, Lunkchurch e Grimm, inevitavelmente em lados opostos, iniciaram mais uma batalha e foram jogados na rua.

Malcolm e Angelique estavam na cabine da lancha da companhia. Aproximaram-se do cais, de mãos dadas, e avistaram um grupo à espera ali, para lhes dar os Parabéns, com Jamie McFay à frente. A prometida tempestade não se concretizara e apenas caíra um chuvisco no final da tarde. O vento ainda soprava forte, o céu continuava nublado, mas isso não arrefeceu a explosão de boas-vindas. Lá vamos nós, Sra. Struan — disse Malcolm, abraçando-a.

Ela beijou-o e sussurrou:

— É verdade, meu marido querido. Oh, Malcolm, parece tão estranho, tão maravilhoso... Não é um sonho, não é?

— Não, embora eu também sinta a mesma coisa.

O Cúter balançava no mar agitado, jogando-os um contra o outro, aos risos, e que aproximou de lado do cais, entre gritos e aplausos, na atracação mais impecável que o contramestre já efetuara.

— Depressa nos cabos, rapazes! — ordenou ele.

Mas nem havia necessidade, pois mãos ansiosas recolheram os cabos, prenderam nos postos, com vários marujos se adiantando para ajudar.

— Parabéns, tai-pan, Sra. Struan! — gritou Jamie.

Os gritos e aclamações chegaram ao clube, no outro lado da High Street. Todos saíram para a rua, tirando o chapéu, até mesmo a Sra. Lunkchurch e a Sra. Grimm, contagiadas pelo espírito festivo.

Gornt e Norbert Greyforth observavam de janelas do segundo andar do prédio da Brock. Todos os criados chineses agrupavam-se diante das casas, de olhos esbugalhados, enquanto os samurais no portão norte se mostravam aturdidos. Os ministros e suas equipes saíram das respectivas legações: Sir William, com uma expressão severa, acompanhado por um risonho Phillip Tyrer e por Michaelmas Tweet, com um ar sombrio, furioso; Zergeyev radiante, aplaudindo com o maior entusiasmo; Dmitri, gritando parabéns e acenando com uma bandeira americana; e Seratard e André, divididos entre a exultação pelo fato de o casamento ter se consumado e a irritação por não terem sido consultados.

— André, traga-a o mais depressa possível. Jésus, a estúpida gamine deveria ter nos transmitido o segredo... era sua função controlá-la! — Seratard falou pelo canto da boca, enquanto acenava com vigor, em resposta ao aceno de Angelique. — Struan deve fazer um testamento de acordo com o Código Napoleão imediatamente. Cuide disso. Só Deus sabe que truques sujos William vai tentar, a favor ou contra... mas independentemente do que ele disser, nossa posição é de que se trata de um casamento legal, mas devemos exigir que se conforme à lei francesa. Fale com o padre Leo. Ele celebrará um casamento apropriado na semana que vem... Mon Dieu, olhe só para aqueles cretinos!

Angelique e Struan eram assediados por todos os lados. Com crescente dificuldade, tentaram abrir caminho pela multidão. Todos queriam beijar a noiva, como tinham direito, mas eram impedidos por outros, aumentando o tumulto.

Ela começou a entrar em pânico. Isso aumentou a tensão dos que se encontravam mais próximos. A multidão turbilhonava, ameaçava sufocá-la, Struan fazendo um esforço para se manter ao seu lado. Jamie pôs-se a empurrar com vigor as pessoas à frente, alguém desferiu um soco e começou uma briga violenta. Sir William gritou para os fuzileiros de sentinela:

— Vão até lá e abram caminho para os dois! Depressa, pelo amor de Deus, ou eles serão esmagados! — Os quatro homens desataram a correr, enquanto ele acrescentava: — Phillip, trate de supervisioná-los; leve Struan à minha sala o rnais depressa possível.

O sargento berrou:

— Ei, vocês aí!

O demônio da turbulência, que às vezes se manifestava numa multidão sem qualquer razão aparente, desapareceu por completo. Calmo e firme, o sargento forçou a passagem entre as pessoas.

— Comportem-se, dêem espaço à moça!

Todos obedeceram e Struan alcançou Angelique.

— Você está bem, Angel?

— Estou, sim, amor. — Agora que havia mais espaço, o pânico dissipou-se. Ela ajustou o chapéu e constatou que a pluma quebrara. — Olhe só para isso!

— Deixem-me ajudá-los! — disse Tyrer, solene. — Vocês todos, tratem de se afastar! Deixaram a pobre moça assustada. Você está bem, Angelique? Malcolm?

— Claro que estamos — respondeu Malcolm. Agora que ela estava segura, sua felicidade voltou e ele acrescentou: — Obrigado pela recepção! Drinques por conta da Casa Nobre! O bar do clube está franqueado a todos e assim continuará até segunda ordem!

Houve uma debandada geral nessa direção. Um momento depois, só Malcolm, Angelique, McFay e Phillip Tyrer permaneciam ali. E a presença azeda de Michaelmas Tweet, que disse:

— Sr. Struan, a cerimônia não é legal e devo adverti-lo...

— Pode estar certo, reverendo, mas fui informado do contrário — interrompeu-o Malcolm, com firmeza, já tendo formulado um plano para Tweet, outro para o padre Leo, e um terceiro para Sir William. — Não obstante, creio que há uma solução feliz. Não gostaria de ir amanhã ao meu escritório, por volta de meio-dia? Posso lhe assegurar que tudo acabará bem.

Depois, ele sussurrou para Jamie:

— Tire-o daqui.

E acrescentou para os outros:

— Sigam para o escritório, o mais depressa que puderem.

Eles tiveram de passar pelo meio de alguns retardatários, até que Angelique murmurou:

— Phillip, vamos mais depressa!

Ela correu na frente com ele, a fim de evitar o padre Leo, que se aproximava pela rua, o mais depressa que sua corpulência e a batina permitiam. Entrando no saguão, onde quase todo o pessoal esperava em fila, com Vargas à frente, Chen com um sorriso frio, Angelique soltou uma risada nervosa.

— Não queria ter de falar com ele.

— Por que não? — O sorriso de Tyrer era radiante. — Você está casada e Ponto final... pelo menos Sir William vem cuspindo fogo desde que soube, amaldiçoando a marinha, Ketterer, Marlowe... por isso, acho que estão mesmo casados, e tudo o que quero dizer é meus parabéns, e posso beijar a noiva?

Ele não esperou e beijou-a como um irmão. Angelique abraçou-o e deixou escapar outro suspiro de alívio. Struan entrou, junto com McFay.

— Tranquem a porta — ordenou ele.

Ajudado por Vargas, McFay obedeceu, empurrando para fora, polida mas firmernente, uns poucos mercadores mais persistentes. Bateram e trancaram a porta no instante em que o padre Leo ali chegou, tentou a maçaneta, depois martelou-a, como se fosse um portal de catedral.

Mas ninguém prestava a menor atenção, escapando para o escritório, com um bando de crianças levadas, e ali arriaram em cadeiras. Exceto Malcolrn.

— Champanhe, Chen. Obrigado, Vargas. Voltaremos a conversar mais tarde — disse ele, interrompendo as congratulações. E acrescentou em cantonês para Chen: — Traga logo o champanhe, seu fingido.

Jamie McFay fechou a porta depois da saída de Chen e sentou na última cadeira.

— Ah! — exclamou Malcolm, borbulhante como o champanhe.— Nunca imaginei que seria assim. Phillip, mais uma vez obrigado pelos votos de felicidade. Obrigado a você também, Jamie. Você está bem, Angel?

— Estou, sim, Sr. Struan, maravilhosa.

— É uma notícia sensacional, Malcolm — disse Tyrer.—E antes que eu me esqueça, Sir William deseja lhe falar, o mais depressa possível.

A maneira como ele falou, especulativa, como se fosse uma coisa irrelevante quando todos sabiam que recebera a ordem aos berros, causou repentino silêncio rompido quando todos desataram num riso histérico.

— Amanhã de tarde, com o maior prazer — respondeu Malcolm.

Logo os copos ficaram cheios, foram esvaziados ainda mais depressa, enchidos de novo, todos falando em voz alta, sem que ninguém escutasse. A porta foi aberta. Vargas fez um sinal para McFay, lhe sussurrou alguma coisa. Jamie acenou com a cabeça.

— Já estou indo. Tai-pan, pode me dar licença? E há um recado para Ange... para a Sra. Struan: o Sr. Seratard quer dar seus parabéns pessoalmente, na legação, o mais depressa possível, e... o padre gostaria de lhes falar por um momento.

— Jamie, primeiro termine seu drinque. Vargas, mande avisar a Seratard que o poremos no alto da lista, mas antes diga ao padre Leo para me procurar aqui no escritório amanhã, às cinco horas da tarde.

Vargas se retirou. Malcolm percebeu uma apreensão no rosto de Angelique.

— Falarei sozinho com ele, Angel. Não precisa se preocupar com isso. Prometo que a situação estará calma até o domingo. Tenho tudo sob controle. Assim que escurecer, voltaremos ao cúter.

— Ao cúter? Para que, Malcolm?

— Outra surpresa. Vamos jantar no Prancing Cloud e passar a noite ali Haverá mais surpresas amanhã, muitas e muitas, inclusive um plano para a lua-de-mel. Sairemos dentro de uma hora; você nem precisa trocar de roupa. Mandei Ah Soh embalar algumas roupas para você, que já foram levadas para bordo. — Para Jamie, ele acrescentou: — Tem mesmo de sair? Qual é o problema?

— Marquei um encontro com Gornt e esqueci-o por completo, no excitamento. Ele espera na minha ante-sala. Pediu a Vargas para transmitir aos dois seus parabéns e também os de Norbert.

— Agradeça a ele por mim, mas não demore muito.

— Agradeça também por mim, Jamie — disse Angelique.

— Pois não, Sra. Struan.

MacFay tentava se acostumar com as palavras, achando difícil e artificial, as palavras lembrando Tess Struan, e agora ele se sentia bilioso sempre que pensava nela. No momento em que soubera do casamento, o motivo para a carta de Malcolm ao Guardian e do anúncio da noite anterior havia se tornado evidente, até mesmo a ocasião escolhida para o duelo, tudo passara a se encaixar.

Casados! Oh, Deus!

As implicações para Malcolm eram imensas. Para ele próprio, não importava que tivesse feito as pazes com Malcolm e consigo mesmo. Duvidava da possibilidade de algum dia fazer as pazes com Tess Struan. Embora ela fosse uma Struan fanática, ao mesmo tempo herdara a sede e a necessidade implacável de vingança do pai. Ele testemunhara essa vingança em cima do contramestre que comandava o barco que emborcara, afogando os gêmeos e seu segundo filho. Acusara-o de assassinato, exigindo que fosse enforcado. O juiz considerara-o culpado de negligência, causando homicídio involuntário, e lhe aplicara a pena máxima, dez anos de trabalhos forçados na prisão de Hong Kong, a que o homem não sobreviveria. Negligente? Não fora bem assim, McFay e a maioria pensaram na ocasião, a tempestade fora repentina, como costumava acontecer naquela estação, um lamentável acidente. Mas ela era Tess Struan, da Casa Nobre. O verdadeiro erro do contramestre, refletiu ele agora, com tristeza, fora ter sobrevivido e deixado as crianças morrerem.

— Angelique — disse Malcolm —, por que não vai se lavar? Farei a mesma coisa, e partiremos dentro de uma hora... só tenho umas poucas coisas para acertar com Jamie.

Os dois trocaram um beijo e ela se retirou. Malcolm disse a Chen, em cantonês, que providenciasse água quente para ele e sua esposa e acrescentou em seguida:

— Depois, iremos para o Prancing Cloud. Está tudo preparado?

— Está, sim, amo.

— Ótimo, e é melhor vocês três se manterem tão silenciosos quanto morcegos e tão contentes como porcos na bosta, mais do que nunca!

Para Tyrer, ele acrescentou, jovial, em inglês:

— Phillip, pode nos dar licença? A partir de amanhã, iniciaremos as comemorações, com banquete de casamento, e assim por diante, convites formais. Por favor, transmita meus cumprimentos a Sir William e não conte a ninguém que passaremos esta noite no Prancing Cloud... nem mesmo a Sir William. Não quero faceiros bêbados circulando o navio durante toda a noite. Desejamos ter privacidade, entende?

— Claro que entendo, e mais uma vez meus parabéns.

Tyrer sentiu-se satisfeito por sair dali. Ainda precisava se reunir com Hiraga para concluir outro despacho brusco para o tairo Anjo, antes de poder atravessar a ponte ao encontro de Fujiko. Depois do conselho de guerra naquela manhã, entre William e Seratard, com a presença dele e André, na qual haviam sido definidos os detalhes finais para o iminente bombardeio e a campanha punitiva contra Iedo.

André lhe sussurrara:

— Já acertei tudo. Fujiko está ansiosa em vê-lo. Até insiste em lhe servir um banquete japonês. Portanto, chegue lá com fome e com sede, mas não esqueça de bancar o durão.

Depois que os outros saíram, um pouco da fadiga de Malcolm transpareceu.

— Jamie, pode me servir um copo? Obrigado. Tudo foi organizado?

— Para esta noite, sim, e para amanhã também. Ah Tok e Ah Soh já se encontram a bordo, com os baús, Chen irá com você e a Sra. Struan. Até onde posso determinar, só eles, Strongbow, eu e agora Phillip sabem que vocês dormirão no Prancing Cloud.

— Ótimo. Phillip foi um erro, mas não importa. Eu me deixei levar pela exuberância, mas não deve haver problemas. Não creio que ele fale. O que Gornt quer?

— Apenas acertar os detalhes finais. — McFay fitou-o nos olhos. — Seu casamento não deve fazer uma diferença agora?

— Poderia, mas não fará, a menos que Norbert peça desculpas.

— Gornt queria trocar uma palavra com você em particular, se tiver um momento disponível.

— Está certo. Diga a ele para vir me falar agora, e depois acerte os últimos detalhes.

A cordialidade de Gornt povoou a sala. Para Malcolm, ele parecia um velho companheiro.

— Champanhe?

— Obrigado, tai-pan. Posso lhe dar os parabéns?

— Claro que pode. Saúde!

— À sua também, senhor.

— Desculpe, mas precisamos ser rápidos. Teremos bastante tempo amanhã. Qual é o problema?

— Eu queria lhe dizer, em particular, que o Sr. Greyforth vai aceitar um acordo. Não haverá duelo.

Struan sorriu.

— É a melhor notícia que recebi... não, a segunda melhor notícia que tive hoje!

— Tem razão. — Gornt franziu o rosto. — Se ele fala sério.

— Como assim?

— Acho que deve se preparar para uma traição. Lamento ser um balde de água fria num grande dia, mas queria alertá-lo. Sei que ele vai mudar de idéia.

Malcolm observou-o em silêncio por um instante, depois balançou a cabeça, imperturbável.

— Com Norbert e todos os Brocks, esperamos a traição a qualquer momento — Eles bateram seus copos. — Saúde... e riqueza... e felicidade!

A sala parecia cheia de calor para ambos, mas Malcolm notou algo estranho em Gornt, e não pôde determinar o que era.

— Ainda planeja me dar amanhã a informação de que preciso?

— Claro. — Gornt levantou-se. — E meu contrato?

— Já ficou pronto. Minha assinatura pode ser testemunhada amanhã.

— Obrigado. Até amanhã, e mais uma vez meus parabéns.

Outra vez Malcolm sentiu algo mais que um estranho humor nele.

— Aguarda a ocasião com a mesma ansiedade que eu.

Os olhos de Gornt pareceram entrar em foco.

— É isso mesmo. Será outro grande dia, com um final e um começo.

 

Lá em cima, Angelique se postava diante do espelho, virando distraída o anel de sinete em seu dedo. Estava sozinha pela primeira vez naquele dia, na privacidade de seu quarto, com a porta trancada, e o clamor das verdades e paradoxos a dominara abruptamente, assim que sentara: tudo acontecia muito depressa, casada, mas sem esperar por isso, nunca daquela maneira, não a bordo de um navio, esperando e rezando, mas não acreditando que fosse possível, tantos eram os obstáculos entre os dois; casada, mas não aos olhos de Deus, casada com um homem que me empenhei em conquistar, persegui com denodo, e encorajei a me perseguir; o homem a quem adoro, mas que enganei — o estupro não foi culpa minha, o aborto era necessário, os brincos o único recurso, o sigilo a maneira de proteger minha vida, mas ainda assim trapaceei —, esse homem, que me ama até a loucura, arriscando tudo, de quem roubei, a quem enganei e atraí para um leito nupcial maculado, e no entanto...

Por três vezes, ao voltarmos para terra, tentei lhe contar.

Não foi verdade, a parte dos brincos, quis lhe dizer, mas em cada ocasião sua exultação prevaleceu, e me deteve, enquanto ele despejava a verdade sobre sua mãe e as cartas — e Skye, padre Leo, o sacerdote inglês, o almirante, e Sir William —, como fora bloqueado em todos os seus esforços, para só triunfar no final... venci, minha amada esposa, conquistei você, e agora ninguém vai tirá-la de mim...

Os dois abraçados, com lágrimas de êxtase.

Como Deus é testemunha, sei que ele seria destruído se eu começasse a falar, e tenho certeza de que se começasse, o resto sairia. E meu pobre adorado morreria. Pois é isso o que ele é, o homem mais adorado em minha vida. Sei agora que o amo com a mesma força... ninguém seria capaz de tentar com tanto afinco, superando tantas barreiras. E, no entanto...

O que devo fazer?

Ela viu seu próprio rosto a contemplá-la. Não gostando de se ver tão indefesa, tratou de baixar os olhos. Viu seus dedos girando o anel, para um lado e outro, como André fazia com seu anel de sinete. O anel de Malcolm era de ouro, pesado, com o timbre da Struan: o leão da Escócia entrelaçado com o dragão da China. Será o bem com o mal?, ela perguntou a si mesma, com um súbito calafrio.

Para se distrair, começou a escovar os cabelos, com vigor, mas isso não a ajudou. Os pesamentos sinistros voltaram, mais depressa, cada vez mais depressa, todos... e também ele.

Tudo se tornou um vômito fétido, prestes a se despejar. Angelique sentiu-se tonta, comprimiu as mãos contra as têmporas.

— Não... você deve ser forte... deve ser forte... está sozinha... deve...

O murmúrio cessou quando outro pensamento afugentou os doentios e ela acrescentou, em voz alta, mais firme:

— Mas você não está sozinha. Há duas pessoas agora, e Malcolm precisa de você... são os dois, você e Malcolm, e ele precisa de você, Malcolm, seu marido...

A imagem expandiu-se em sua mente, preenchendo-a por completo, e depois ela ouviu-o chamando lá de baixo, a voz jovial:

— Angel, é hora de partirmos... depressa!

Ela continuou a se arrumar, sem qualquer pressa, foi se ajoelhar diante da imagem da Santa Virgem e se entregou por completo: “Mãe de Deus, perdoe esta pecadora. Pequei de forma lamentável e suplico seu perdão. Pequei de forma lamentável, vivo uma mentira, mas juro que serei a melhor esposa que puder, por tanto tempo quanto me for permitido, pois amo esse homem com toda a força do meu coração...”

 

— É um prazer tornar a vê-la, Raiko-san — disse Meikin, com um sorriso, ajoelhada na frente da outra. — Já faz muito tempo.

Ela era a mama-san da casa da Glicínia, que supervisionava Koiko, e as duas se encontravam no santuário mais privado de Raiko.

— É verdade e agradeço pela honra. — Raiko sentia-se feliz por rever sua velha amiga, embora mais do que um pouco surpresa por Meikin ter respondido tão prontamente a seu convite para uma conversa de negócios. — Por favor, Sirva-se da comida. A enguia está ótima. Saquê ou conhaque dos gai-jin?

— Primeiro saquê, por favor.

Meikin recebeu a taça de uma criada atenciosa. Os negócios por aqui devem andar muito bem, pensou ela, notando os ornamentos dispendiosos daquela habitação isolada e segura dentro dos muros da casa das Três Carpas.

— Embora os tempos sejam difíceis, os gai-jin não têm muita noção do valor do dinheiro, e por mais repulsivos que possam ser, os lucros são altos, e pequeno o custo de água quente, toalhas limpas e perfume.

As duas riram, observaram e esperaram. Meikin provou o sushi — delicioso — e pôs-se a comer, em quantidade incrível para uma mulher tão pequena. Seu quimono de viagem era deliberadamente medíocre. Qualquer um que a visse presumiria que era esposa de um pequeno mercador, não uma das mama-sans mais ricas de Iedo, proprietária da mais dispendiosa casa do prazer da cidade, na maior Yoshiwara da terra — recentemente reconstruída e renovada, depois do incendio do ano passado —, a mama-san de dez das mais talentosas gueixas, vinte das mais adoráveis cortesãs, além de dona do contrato de Koiko, o Lírio. Ela correu os olhos pelo santuário interior de Raiko, reservado para ocasiões especiais, admirando a sedas excepcionais, as almofadas, os tatames, conversando enquanto comia especulando sobre os motivos para o encontro.

Depois que as duas comeram, as criadas foram dispensadas e Raiko serviu seu melhor conhaque.

— Saúde e dinheiro!

— Dinheiro e saúde! — A qualidade da bebida era superior a qualquer coisa que Meikin já provara. — Os gai-jin têm seus pontos favoráveis.

— No mundo dos vinhos e bebidas fortes, sim, mas não em seus apêndices — comentou Raiko, com sabedoria. — Por favor, permita que eu lhe dê uma garrafa. Um dos meus clientes é Furansu.

— Obrigada. Fico contente por saber que os negócios vão bem, Raiko-chan.

— Poderiam ser melhores, sempre.

— E Hinodeh? — indagou Meikin, que possuía a metade do contrato. Quando Hinodeh a procurara pela primeira vez, ela a encaminhara para uma prima, a mama-san de outra casa que possuía. Mais tarde, por acaso, soubera do pedido estranho e heterodoxo de Raiko para um tipo especial de moça. Fora fácil acertar tudo, pois Raiko era uma velha amiga, conhecida ao longo dos anos, merecedora de sua confiança, desde o tempo em que eram maiko, em que eram cortesãs. — O arranjo continua a ser satisfatório?

— Tenho outro pagamento para você, embora o homem esteja atrasado.

Meikin riu.

— Não estou surpresa. Você é uma maravilhosa negociadora.

Ela fez uma reverência em agradecimento.

— Ele promete uma quantia maior dentro de poucos dias. Talvez mais brincos.

— Ah! — Meikin vendera os outros, com grande lucro. — Esse negócio tem sido bastante satisfatório.

A entrada que o cliente pagara pelo contrato de Hinodeh fora mais do que suficiente para absorver todos os custos pelo menos por um ano.

— Como ela está?

Raiko relatou o primeiro encontro e os subsequentes, a outra mulher demonstrando o maior interesse.

— Ela tem toda razão em chamá-lo de animal — comentou Meikin.

Ele não é tão mau assim. Acho que a doença o deixa enlouquecido de vez em quando. Pelo menos Hinodeh conhece o pior e aceita que o homem é seu karma.

— Posso perguntar se ainda não há sinais?

— Nenhum, absolutamente nenhum. Mas todos os dias ela me faz examinar partes que não pode ver pessoalmente, nem com um espelho.

— É estranho, Raiko-chan. — Meikin ajeitou uma travessa nos cabelos. — Quando e se aparecer alguma coisa que não possa ser oculta... ela vai procurar a faca?

Raiko deu de ombros.

— Nunca se pode saber com certeza.

— Por acaso ela lhe contou por que aceitou esse karma?

— Não. Gosto dela, e posso ajudar, mas apenas um pouco. Mas é muito estranho ela nada nos contar, neh?

Raiko tomou um gole do conhaque, cativada pelo calor interior, e o prazer excepcional de receber sua amiga mais antiga e de maior confiança. As duas haviam sido inseparáveis quando maiko, amantes na juventude, e sempre trocado confidências... as confidências seguras.

— Esta noite ele a visita. Se desejar, poderá observá-los por algum tempo.

Meikin riu.

— Há muito que já perdi o interesse e excitamento pelas atividades dos outros, vigorosos e ardentes... até mesmo dos bem-dotados gai-jin.

Ela sentia-se feliz demais pela companhia da velha amiga para contar a história triste de Gekko e Shin Komoda, que insistira em saber, antes de mandá-la para Iocoama.

Quando Hinodeh morrer, Raiko-chan, eu lhe direi tudo, e poderemos partilhar uma lágrima pelos pesares que nós, mulheres, temos de suportar. Até lá, o segredo de Hinodeh estará seguro, como combinamos, o nome de seu filho seguro, e também o lugar para onde foi enviado. Ela sentiu um calor percorrer seu corpo, adorando os segredos e o jogo da vida.

— Portanto, Hinodeh está assentada. Ótimo. E agora?

— Agora — disse Raiko, baixando a voz —, posso ter informações importantes sobre os planos de batalha dos gai-jin.

A cor aumentou no rosto de Meikin, que se tornou tão tensa quanto a outra mulher.

— Contra Iedo?

— Isso mesmo.

— Pode ser uma informação valiosa, mas seria um conhecimento perigoso... perigoso demais.

— Concordo, e ainda mais perigoso para aproveitar, embora de valor excepcional para a pessoa correta.

Meikin removeu uma gota de conhaque, que poderia passar por transpiração.

— E depois que tal conhecimento é comprado, provado ser correto ou incorreto, cabeças têm o hábito de rolar.

— É verdade.

Raiko compreendia o perigo, mas sentia-se mais excitada do que em qualquer outra ocasião nos últimos anos. Nunca participara do fluxo da política em Iedo, mas a proximidade de Hiraga, as informações sobre os shishi que obtivera por seu intermédio — e os segredos sobre ele e Ori que o shoya lhe revelara — haviam aguçado seu apetite. Isso e mais seu relacionamento com Furansu-san, sabendo por ele sobre os gai-jin, paradoxalmente a fonte de toda a sua riqueza, e ao mesmo tempo os inimigos de sua sagrada terra dos deuses. E também por causa de sua repulsa ao Bakufu e Anjo, que haviam assassinado outra velha amiga, Yuriko, mama-san da casa dos Quarenta e Sete Ronin, por ter abrigado alguns shishi.

Ela estremeceu ao pensamento de sua própria cabeça adornando um chuço, dominada pelo medo, mas também experimentando um estranho êxtase. Yuriko já fora imortalizada nas gravuras de ukiyo-e do mundo flutuante, seu nome o novo predileto das gueixas, e muito em breve haveria uma peça nô apresentando-a como heroína.

— Você tem razão — sussurrou ela —, mas certas informações podem valer o risco. E se... se eu tivesse um conhecimento secreto do que... do que altas autoridades planejam em segredo contra os gai-jin, poderia também aproveitar, em benefício mútuo.

O suor se acumulara na beira de sua peruca requintada. Ela removeu-o com um papel de seda rosa.

— Está quente, neh?

— Não tão quente quanto o fogo em que poderíamos nos meter.

— Quanto valeria o dia inicial do ataque... e o plano de batalha dos gai-jin?

Furansu-san lhe dera naquela manhã detalhes mais do que suficientes para tentar até o mais cético dos compradores a ser generoso.

Meikin sentiu o coração bater forte. Já esperava que o convite de Raiko seria para tratar de alguma coisa assim. Durante os últimos dois anos, ela insinuara indiretamente o potencial, estimulada pelo sensei Katsumata, para quem qualquer informação sobre os gai-jin era valiosa. E também porque, pouco tempo antes, houvera instruções secretas a todos os espiões do Bakufu, com promessas de ricas recompensas, para se concentrarem em Iocoama, e descobrirem os segredos dos gai-jin, e quem andava fornecendo ao inimigo informações proibidas sobre as coisas japonesas. O fato de Raiko ter feito o primeiro movimento ostensivo era crucial; na verdade, era a única pessoa em quem podia confiar num jogo tão arriscado.

— Quando será o ataque?

— Seria possível obter algum segredo importante para os gai-jin, como parte da troca?

Meikin acomodou-se confortável, pensou por um longo tempo.

Com toda certeza, Raiko merecia toda confiança... até sua vida ser ameaçada. E também não restava a menor dúvida de que um canal para informações, numa base contínua, seria valioso, não apenas pelo dinheiro, mas ainda pela causa — sonno-joi — que ela apoiava com todo entusiasmo. E também porque podia ser usado para abastecer os gai-jin com informações falsas, fabricadas com o maior cuidado.

— Raiko, minha velha amiga, não tenho qualquer dúvida de que o tairo Anjo e até Yoshi pagariam muito bem para conhecer essas datas, entre outros detalhes, mas é muito difícil, infelizmente, encontrar um meio de pôr as informações nas mãos deles, e o dinheiro nas nossas, sem comprometer qualquer das duas.

— Conhaque, Meikin-chan? — Raiko serviu, tonta de excitamento. — Se há alguém que pode resolver esse problema, é você.

As duas avaliaram uma à outra, e sorriram.

— Talvez.

— Tenho certeza. E, agora, talvez já seja o suficiente, por enquanto. Podemos continuar mais tarde, ou amanhã, se assim desejar. Posso planejar sua diversão noturna, se não estiver cansada?

— Obrigada. Não, não estou cansada. A barca que me trouxe de Iedo é confortável e não estava muito cheia, o mar se manteve sereno, e minhas criadas providenciaram para que o capitão atendesse a todos os meus desejos.— Meikin chegara aos cais da aldeia pouco antes do anoitecer. — Posso perguntar o que sugere?

— Temos gueixas, mas não à altura de seus padrões. Há alguns jovens que podem ser adequados. — Os olhos de Raiko faiscaram com seu sorriso, recordando os bons tempos da juventude. — Ou talvez uma maiko?

Meikin riu, tomou outro gole de conhaque.

— Isso seria uma diversão agradável, e me lembraria dos velhos tempos Raiko-chan. Ela me ajudará a pensar, me ajudará a verificar se posso lhe fornecer o que precisamos. Boa idéia. E concordo que já falamos sério o bastante por enquanto. Vamos conversar agora sobre os tempos áureos, como andam os negócios, e como vai seu filho.

— Ele está bem, ainda subindo na escada da Gyokoyama.

— Posso interceder junto a eles... embora sem dúvida isso seja desnecessário. Um excelente banco, o melhor, obtenho os juros mais altos, e meus depósitos são diversificados, como segurança... a fome se aproxima, e por isso tenho investido muito no arroz futuro. Seu filho tem vinte e quatro anos, neh?

— Vinte e seis. E sua filha?

— Graças a todos os deuses ricos e pobres, consegui casá-la com um goshi, e assim seus filhos serão samurais. Ela já tem um menino, mas o marido é muito dispendioso! — Meikin balançou a cabeça de um lado para outro, depois riu. — Mas não devo me queixar. Apenas converto os pingos imprestáveis de uns poucos velhos ricos numa herança que nunca sonhamos possível. Neh?

O som de passos misturou-se ao das risadas. Uma batida na porta de shoji.

— Ama?

— O que é, Tsuki-chan?

A maiko entreabriu a porta, de joelhos, fitou-as com um sorriso inocente.

— Sinto muito, mas shoya Ryoshi, o ancião da aldeia, suplica ser recebido, e ser seu hóspede.

Raiko franziu as sobrancelhas.

— Meu hóspede?

— Isso mesmo, ama.

Meikin também franziu o rosto.

— Ele costuma saudar visitantes?

— Só os mais importantes, e sem dúvida você é importante, e sua presença uma honra para todos nós. Com toda certeza, ele foi informado de sua chegada. Sua rede de informações é ampla, Meikin-chan, e ele merece confiança absoluta... e ainda por cima é o chefe da Gyokoyama em Iocoama. Vamos recebê-lo?

— Está certo, mas apenas por um momento. Fingirei uma dor de cabeça e, depois, poderemos continuar nossa conversa até a refeição noturna.

— Pequena — disse Raiko —, traga o shoya aqui, mas antes avise às criadas para providenciarem chá fresco e saquê quente... e tirarem estes copos, esconderem meu conhaque. Meikin-chan, se ele soubesse que tenho uma garrafa, seria uma presença diária!

Tudo foi feito depressa, a mesa se encontrava limpa e perfeita, os hálitos das duas purificados com ervas, antes do shoya entrar e fazer uma reverência.

— Por favor, damas, peço desculpas — disse ele, com uma ansiedade inconveniente, ajoelhando-se. — Por favor, perdoem meus péssimos modos, chegando sem marcar encontro, mas queria prestar minha homenagem a uma figura tão augusta, e dar as boas-vindas à minha aldeia.

Ambos ficaram surpresas por ele parecer tão solene, já que aquela não era uma ocasião formal. Meikin nunca o encontrara antes, mas seu contato na Gyokoyama o mencionara, garantindo que se tratava de um homem de integridade. Por isso, sua resposta foi tão polida e entusiástica quanto convinha a uma pessoa eminente da maior cidade do mundo, cumprimentando-o pela situação da Yoshiwara, e o pouco que vira da aldeia.

— É um homem de grande reputação, shoya.

— Obrigado, obrigado.

— Chá ou saquê? — perguntou Raiko.

Ele hesitou, fez menção de falar, parou. O clima na sala mudou. Raiko rompeu o silêncio:

— Por favor, shoya, desculpe-me, mas qual é o problema?

— Sinto muito... — Ele olhou para Meikin. — Sinto muito, dama, é uma cliente muito prezada por nossa companhia... Eu...

O shoya enfiou a mão trêmula na manga, tirou um pedaço de papel, estendeu para ela. Meikin contraiu os olhos.

— O que é isto? O que diz aqui? Não consigo ler uma escrita tão pequena.

— É uma men... uma mensagem de pombo-correio.

O shoya tentou falar de novo, não foi capaz, apontou para o papel, atordoado.

Sobressaltada, Raiko pegou-o, aproximou-o da luz. Seus olhos correram pela escrita pequena. Ela empalideceu, ficou tonta, quase desfaleceu, arriou sobre os joelhos.

— Diz aqui: Uma tentativa de assassinato contra lorde Yoshi, ao amanhecer, na aldeia Hamamatsu, fracassou. A assassina shishi solitária foi morta por ele. A dama Koiko também morreu na luta. Comunique nossa grande tristeza à casa a Glicínia. Mais informações assim que for possível. Namu Amida Butsu...

Meikin também empalideceu. Balbuciou “Koiko morta?”, sem que nenhum som saísse.

— Deve ser um engano! — exclamou Raiko, angustiada. — Só pode ser! Koiko morta? Quando aconteceu? Não há data! Shoya, como... Deve ser mentira, só pode ser mentira...

— Sinto muito, mas a data está em código no alto — murmurou ele. Aconteceu ontem, perto do amanhecer. Em Hamamatsu, uma estação de posta na Tokaidô. Não há engano, dama, sinto muito.

— Namu Amida Butsu! Koiko? Koiko morta?

Meikin fitou-a, as lágrimas escorrendo pelas faces, e desmaiou.

— Criadas!

Elas vieram correndo, trouxeram sais de cheiro e toalhas molhadas, cuidaram de Meikin e de Raiko, que tentava recuperar o controle, a fim de determinar como aquilo a afetaria. Pela primeira vez não tinha certeza se devia continuar a confiar em Meikin, ou se a amiga se tornara um risco, e devia ser evitada.

O shoya continuava ajoelhado, imóvel. Fora necessário — e ainda era — que ele fingisse estar assustado e consternado por ser o portador de más notícias, mas no fundo sentia-se contente por estar vivo para testemunhar aqueles acontecimentos espantosos.

Não mostrara a segunda mensagem. Era só para ele, em código, e dizia: Assassina era Sumomo. Acredita-se que Koiko estava implicada na conspiração, foi ferida com shuriken e depois decapitada por Yoshi. Prepare-se para encerrar as contas de Meikin. Evite mencionar Sumomo. Proteja Hiraga como um tesouro nacional, suas informações são de valor inestimável. Pressione-o por mais, sua família está sendo refinanciada, como foi combinado. Solicitamos com urgência os planos de guerra dos gai-jin, a qualquer custo.

No momento em que recebera a mensagem, ele verificara em seus livros as contas de Meikin, calculando o que sua sucursal lhe devia, embora conhecesse a quantia com precisão. Não precisava se preocupar com essa parte. Quando ela fosse despachada para o outro mundo por lorde Yoshi, ou se conseguisse escapar da armadilha, de qualquer forma o banco lucraria. Se ela morresse, outra mama-san tomaria seu lugar, e usariam o que restasse de sua riqueza para financiar a substituta. A Gyokoyama monopolizava todas as operações bancárias na Yoshiwara, uma imensa e permanente fonte de receita.

Como a vida é irônica, pensou ele, especulando o que aquelas duas pensariam se conhecessem o motivo para o controle indissolúvel da Gyokoyama. Um dos maiores segredos da zaibatsu era o fato de ter sido fundada não apenas por uma mama-san, mas também uma mulher de gênio.

No início do século XVII, com a aprovação entusiástica do xógum Toranaga, ela projetara um distrito murado, onde no futuro todas as casas de prazer de Iedo, altas e baixas, teriam de conduzir seus negócios, exclusivamente — naquele tempo, os bordéis espalhavam-se por toda a cidade —, um lugar chamado Yoshiwara, a área dos juncos, que fora oferecido por Toranaga. Depois, ela criara uma nova classe de cortesãs, as gueixas, treinadas e qualificadas nas artes, que não eram disponíveis para o travesseiro, em caráter rotineiro.

Mais tarde, ela passara a emprestar dinheiro, concentrando-se na Yoshiwara de Iedo, para em seguida estender seus tentáculos a todas as outras, à medida que eram institucionalizadas por todo o país, já que o xógum Toranaga previra, sabiamente, que em tais distritos as prestadoras de serviços e seus clientes seriam controlados e taxados com mais facilidade.

Por último, o que fora incrível naquele tempo, ela persuadira o xógum Toranaga — ninguém sabia ainda como — a fazer de seu filho mais velho um samurai. Em pouco tempo, seus outros filhos prosperaram: na construção de barcos, como mercadores de arroz, fabricantes de saquê e cerveja, e seus descendentes eram hoje proprietários ou silenciosos controladores de uma vasta rede de negócios. Em poucos anos, ela obtivera permissão para que o ramo samurai assumisse o nome de Shimoda. Agora, o Shimoda era daimio hereditário do pequeno, mas próspero feudo do mesmo nome, em Izu. Fora ela quem escolhera a inscrição sobre o portão da Yoshiwara: O desejo não pode esperar, deve ser satisfeito. Morrera aos noventa e dois anos de idade. Seu nome de mama-san era Gyoko, dama sorte.

— Shoya — disse Meikin, entre soluços —, por favor, aconselhe-me sobre o que devo fazer.

— Deve esperar, dama, ser paciente e esperar — respondeu ele, hesitante, ainda exibindo sua máscara de apreensão.

Também notou, de imediato, que os soluços podiam ser mais altos e mais desesperados, mas os olhos se mostravam mais impiedosos do que jamais os vira.

— Esperar? Esperar pelo quê? Esperar, é claro, mas o que mais?

— Ainda não sabemos de tudo, não conhecemos os detalhes, dama, o que de fato aconteceu. Sinto perguntar, mas há alguma possibilidade de que a dama Koiko participasse da conspiração?

Ele cravava e torcia uma faca no ferimento já aberto, pelo puro prazer do tormento. Embora a Gyokoyama não tivesse provas, desconfiava que Meikin dispensava perigoso apoio a sonno-joi, e tinha ligações com o Corvo — contra as advertências indiretas deles —, outro motivo para que fosse aconselhada a comprar arroz futuro, não apenas como um investimento sensato, mas também como uma precaução do banco contra uma possível acusação e condenação.

— Koiko numa conspiração? Minha beleza, meu tesouro? Claro que não! — explodiu Meikin. — De jeito nenhum!

— Meikin-san, pode ter certeza de que lorde Yoshi, ao voltar, mandará procurá-la, como a mama-san de Koiko. E para o caso, sinto muito ter de dizer isso, para o caso de inimigos terem sussurrado contra você, seria sensato ter... ter prontos símbolos de... de seu respeito.

Não havia razão para qualquer das mulheres perguntar que inimigos. O sucesso gerava a inveja e ódios secretos por toda parte — em particular entre os melhores amigos —, e no mundo flutuante, um mundo só de mulheres, mais que em qualquer outro lugar. E as duas eram bem-sucedidas.

Meikin já superara o choque inicial e sua mente se concentrava nos meios de escapar — caso Yoshi desconfiasse, ou Koiko a tivesse denunciado, ou ele tivesse provas de que tanto ela quanto Koiko apoiavam sonno-joi, os shishi, e conheciam Katsumata. Não havia nenhuma maneira real de escapar, nem para outra identidade, nem para outro lugar, pois o Nipão era todo muito bem compartimentado. Por toda a terra, dez chefes de família constituíam a unidade básica responsável por seu próprio comportamento e obediência à lei, dez dessas unidades formavan outro agrupamento, também responsável, dez agrupamentos formavam outro e assim por diante, até o supremo mandante das leis, o daimio. Portanto, ela não podia fugir para parte alguma, não tinha onde se esconder.

— O que eu poderia dar ao grande lorde Yoshi? — indagou Meikin, a voz rouca, sentindo-se mais desesperada do que nunca antes.

— Talvez... talvez informações.

— Que tipo de informações?

— Sinto muito, mas não sei — respondeu o shoya, com uma tristeza simulada.

Amanhã poderia ser diferente, mas naquela noite ele ainda precisava fingir, manter as aparências, independentemente do que pensasse da estupidez das duas! Pois era uma estupidez abraçar a sedição com um pênis, ainda mais quando os possuidores shishi eram poucos, e quase todos estavam sendo dispersados ou mortos, continuando a cometer o mais imperdoável dos pecados: o fracasso.

— Não sei, dama, mas lorde Yoshi deve estar preocupado, bastante preocupado, com o que a infame esquadra dos gai-jin pode fazer. Eles se preparam para a guerra, neh?

No momento em que disse isso, ele percebeu que os olhos de Meikin se tornaram ainda mais frios, fixados em Raiko, que corou um pouco. Ah, pensou ele, exultante, elas já sabem... e não podia deixar de ser assim, já que deitam com os abomináveis gai-jin! Por todos os deuses, se existem deuses, o que elas sabem a Gyokoyama deve saber também, e o mais depressa possível.

— Essa notícia pode... atenuar a dor de lorde Yoshi — acrescentou ele, balançando a cabeça, com o ar sensato de banqueiro. — E também a sua.

 

A meia centena de passos de distância, numa habitação dentro dos muros, no meio dos jardins, Phillip Tyrer sentava de pernas cruzadas, de banho tomado, repleto de comida e saquê, nu sob o yukata, e num estado de êxtase. Fujiko ajoelhava-se por trás, as mãos experientes massageando os músculos de seu pescoço, encontrando os pontos de prazer e dor. Ela usava um yukata de dormir, os cabelos soltos, e agora chegou mais perto, mordeu delicadamente o lóbulo de sua orelha, perto do centro, o ponto mais erótico. Sua língua aumentou o prazer de Tyrer ainda mais.

Os dedos se insinuaram sensuais por seus ombros, em movimentos rápidos, dissipando suas preocupações, as reuniões com Sir William e Seratard, ajudando seu chefe a lidar com aquele francês e suas constantes e insidiosas tentativas de conquistar uma vantagem, por menor que fosse, quando a verdade, pensara ele, que o homem contava apenas com dois navios medíocres, quando nós temos uma esquadra inteira de navios de primeira linha, tripulados por homens, não por sicofantas.

Tomando anotações, e depois ordenando tudo em dois planos de batalha alternativos, em inglês e francês diplomáticos corretos para os respectivos governos, e em ordens mais objetivas mais para o almirante e o general executarem, o tempo passando depressa, e a dor de cabeça aumentando. Mas André fora um trunfo na reunião daquela manhã, bem preparado, durante todo o tempo sugerindo idéias e datas, manobrando os dois participantes principais a concordarem e tomarem decisões, todos os quatro fazendo um juramento de sigilo.

E, finalmente, deixando a legação, atravessando a ponte, batendo na porta, aberta no mesmo instante pela própria Raiko, que fizera uma reverência, atravessando o jardim, tomando um banho, comendo e bebendo, mas antes disso Raiko começara por fim a tratá-lo como uma autoridade importante merecia.

Já não era sem tempo, pensou ele, mais do que um pouco satisfeito, cada nervo sintonizado com os dedos de Fujiko...

A maior parte da mente de Fujiko se concentrava na advertência de Raiko: — Alguma pessoa de baixa classe, vil e faminta, da casa do Lírio, seduziu nosso lorde gai-jin a se afastar de nós. A grande custo, consegui atraí-lo de volta, fazendo muitas concessões aos intermediários. Não falhe esta noite, pois pode ser a sua última chance de prendê-lo a nós com cordões de seda. Use todos os recursos, todas as técnicas... até mesmo a lua por trás da montanha.

Fujiko hesitou. Nunca tentara aquilo antes, nem mesmo no embate mais ardente. Não importa, ela disse a si mesma, estóica, é melhor uns poucos momentos insólitos de comportamento excêntrico... do que não ter nenhum pagamento gai-jin esta noite, nenhum pagamento para um ano de lazer.

Enquanto seus dedos chegavam mais perto, os suaves murmúrios começavam, imagens de devaneio de sua casa de fazenda passaram a se intrometer, as crianças, o marido maravilhoso, os arrozais, tudo lindo, espetacular... Com firmeza, ela relegou as imagens para o fundo da mente. Até o cliente adormecer, ordenou a si mesma.

Esta noite você vai seduzir o cão ingrato para sempre! É uma questão de honra para toda a casa das Três Carpas! Preterida por uma pessoa de baixa classe da casa do Lírio?

De jeito nenhum!

 

O clíper Prancing Cloud deu um puxão na âncora, com a mudança da maré noturna.

— Está bem seguro, senhor — disse o primeiro-piloto.

O capitão Strongbow acenou com a cabeça, e continuou a fumar seu cachimbo. Estavam no tombadilho superior. O vento fazia ranger a mastreação por cima. Strongbow era um corpulento homem de cinquenta anos, perspicaz e experiente.

— Será uma boa noite, mister, fresca, mas não fria. — Ele sorriu, e acrescentou baixinho: — Boa para os nossos hóspedes, hem?

O primeiro-piloto, também alto, duro e curtido, mas com a metade de sua idade, olhou para os dois hóspedes, e sorriu também.

— Tem toda razão, senhor.

Angelique e Malcolm se encontravam no convés principal lá embaixo, apoiados na amurada, contemplando as luzes de Iocoama. Malcolm vestia uma sobrecasaca por cima da camisa e calça informais, com sapatos macios nos pés, e pela primeira vez, sem muito desconforto, usava apenas uma bengala a bordo. Angelique tinha um grosso xale vermelho em torno dos ombros, com um vestido longo e folgado. Estavam perto de um canhão. O navio tinha dez canhões de trinta libras, a bombordo e boreste, com cachorros de proa e popa, e seus artilheiros eram tão competentes quanto os da marinha real. O que era o orgulho de Strongbow. O mesmo não se aplicava a todos os clíperes, outros navios mercantes e vapores.

— Lindo, não é, minha querida esposa? — murmurou Malcolm, genuinamente feliz, uma das poucas ocasiões em sua vida.

— Esta noite tudo no mundo é lindo, mon amour — disse ela, aconchegando-se contra ele.

Haviam acabado de jantar, e esperavam que o camarote que ocupavam fosse devidamente preparado. Era grande, e ocupava toda a extensão da popa. Os alojamentos do capitão, a menos que o tai-pan estivesse a bordo — uma das muítas leis fixadas por Dirk Struan, trinta anos antes, a frota ainda governada por suas determinações, até os mínimos detalhes, a melhor paga, limpeza, treinamento-prontidão para o combate.

Strongbow observava a maré, avaliando-a. Naquelas águas, uma mudança na maré podia anunciar a chegada, horas depois, de uma tsunami, uma onda gigantesca gerada talvez a mil e quinhentos quilômetros de distância, por um terremoto suboceânico, que engolfaria qualquer coisa em seu caminho no mar, e as cidades costeiras, quando encontrasse terra pela frente.

Depois de constatar que a alteração fora normal, ele tornou a olhar para Struan. Sentia-se contente por tê-lo a bordo, e a nova ordem para zarpar amanhã cedo, seguindo a toda velocidade para Hong Kong, sabendo, como todos sabiam, que ela ordenara que o rapaz voltasse para casa, semanas antes. Mas ele sentia-se perturbado por levar também a moça.

Não sei se conseguirei chamá-la de Sra. Struan... afinal, só há uma assim, pensou Strongbow. E o jovem Malcolm casou? Apesar das ordens dela? Apesar de sua oposição? Ele deve ter enlouquecido! O casamento é legal? Pela lei do mar, é, sim, se eles fossem adultos, mas acontece que não são. Será revogado? Um penny partido ao meio contra um guinéu de ouro. Ela terá vinte meios de anulá-lo, sem a menor dificuldade.

E o que será da moça? O que vai lhe acontecer? E o jovem Malcolm? Como ele poderia vencê-la? Fico contente por não ter sido eu quem os casou, graças a Deus. Concordaria em casá-los, se ele me pedisse? Claro que não! Jamais!

Ela vai cuspir fogo, indignada por eles serem menores de idade e pelo fato de a moça ser católica. Será a causa de uma batalha real, desta vez mãe contra filho, um combate até a morte, sem regras, e todos sabemos que ela é uma gata selvagem quando provocada — pior do que a minha Cat —, embora o jovem Malcolm tenha mudado, esteja mais duro do que antes, mais determinado do que nunca. Por quê? Por causa da moça? Só Deus sabe, mas é uma mudança bem-vinda, será ótimo ter outra vez um tai-pan de verdade, um homem.

Não resta a menor dúvida de que o jovem Malcolm está perdidamente apaixonado por ela. Quem pode culpá-lo? Não eu! Casaria com ela, se tivesse a oportunidade, mas desta vez não vou me apressar em apresentar um relatório, prefiro correr para beber, ir para a cama com a minha Cat. Ele riu. Cat era sua amante há anos, uma moça de Xangai cujo temperamento e ciúme eram legendános, mas cujo ardor era incomparável.

— O que acha da mudança de ordens, senhor?

Strongbow deu de ombros. Era certo que não havia necessidade de Malcolm voltar às pressas para terra, antes do amanhecer, para tornar a voltar ao navio em seguida, ainda mais andando tão mal... com uma ou duas bengalas, não fazia diferença. Qualquer problema, coisas a assinar, poderiam ser trazidas para bordo por McFay. Mas, afinal, o que Jamie anda escondendo? Alguma coisa que cheira mal... por que então todo o sigilo, todas as licenças em praia da tripulação canceladas?

Ele ouvira rumores sobre um iminente duelo. Era o tipo de aventura tola a que Struan seria precipitado por seu orgulho, um problema a resolver antes da partida, qualquer coisa para humilhar os Brocks, quando todos sabem que deveríamos fazer as pazes, a rivalidade já foi longe demais, eles estão em ascendência, e nos sufocando por todos os lados. Estaremos hasteando a bandeira deles no Natal? Por Deus, espero que não!

O jovem idiota não saiu ao pai, muito menos ao avô. Ah, que homem aquele! Strongbow navegara diversas vezes com Dirk Struan, negociando ópio ao long da costa chinesa, primeiro como um aprendiz, depois como ajudante do artilheiro e terceiro-piloto, sob o comando de Stride Orlov, o Corcunda... comandante da frota de clíperes abaixo do tai-pan.

Ele viu Malcolm passar o braço em torno da moça, que se aconchegou ainda mais, e seu coração se confrangeu pelos dois. Era difícil crescer, difícil ser o tai-pan da Casa Nobre, ou quase o tai-pan, com um avô assim... e com uma mãe assim. Decidido, ele atravessou o tombadilho superior e olhou na direção do mar. O primeiro-piloto seguiu-o. Ambos levantaram os olhos para as velas recolhidas, onde se empoleiravam umas poucas aves marinhas, gritando. Uma delas mergulhou lá de cima, e eles a acompanharam até que desapareceu na escuridão, para a pescaria noturna. Outra seguiu-a, também silenciosamente.

Malcolm e Angelique não haviam saído do lugar, perdidos em sua serenidade. A ampulheta de meia hora na ponte de comando se esvaziou. No mesmo instante, o oficial de vigia virou-a, e tocou seis badaladas. Onze horas da noite. O som foi repetido por outros navios na baía. Os dois saíram de seu devaneio.

— Já é hora de descer, Angel?

— Daqui a pouco, meu amado. Chen disse que nos avisará quando o camarote ficar pronto.

Ela pensara várias vezes nisso desde que Malcolm indagara se não gostaria de casar hoje... Angelique sorriu, beijou-o no queixo, preparada, em paz.

— Sabe, meu querido marido, prometo que teremos uma vida maravilhosa. Não sentirá mais dor, e vai recuperar toda a sua forma física. Promete?

— Mil vezes... minha esposa querida.

Mais aves marinhas alçaram vôo do cordame. Chen subiu e disse que tudo ja fora arrumado como o tai-pan ordenara. Malcolm declarou, em cantonês:

— Lembre-se de uma coisa: não acorde a tai-tai quando for me chamar. Tai-tai significava suprema do supremo, primeira esposa... que era a suprema lei dentro de qualquer casa chinesa, assim como o marido era supremo lá fora.

— Durma bem, amo, dez mil filhos, miss.

— Tai-tai — corrigiu Malcolm.

— Dez mil filhos, tai-tai.

— O que estavam falando, Malcolm? — indagou ela, sorrindo.

— Ele lhe desejava um feliz casamento.

— Dohjeh, Chen — disse ela. Obrigada.

Chen esperou até que os dois se despedissem dos oficiais do navio e descessem, Malcolm usando apenas uma bengala, apoiando-se em Angelique com a outra mão. Ah, pensou ele, encaminhando-se para a passagem do castelo de proa, que todos os deuses, grandes e pequenos, protejam o amo, e lhe proporcionem uma noite que compense toda a dor, passada e futura, mas primeiro se lembrem de mim e de meus problemas, e expliquem ao ilustre Chen e à tai-tai Tess que nada tive a ver com esse casamento. Do tombadilho superior, Strongbow observou Chen descer.

— Todos os criados já foram deitar?

— Pusemos redes na sala de velas de boreste. Ficarão bem ali, a menos que enfrentemos uma tempestade.

— Ótimo. Não quer tomar seu chá agora, mister?

— Quero, sim, obrigado. Voltarei mais alerta.

O primeiro-piloto tinha naquela noite o turno de vigia de meia-noite às quatro horas da madrugada e desceu do tombadilho superior em passos ágeis. O camarote ficava na extremidade do corredor da popa. A porta estava fechada. Ele ouviu o barulho da tranca sendo empurrada. Sorrindo, assoviando silenciosamente uma jiga, ele seguiu para a cozinha.

 

Malcolm encostou-se na porta, palpitando de expectativa, determinado a andar sem ajuda até o leito nupcial. Angelique parara ao lado do beliche e o fitava. O camarote fora todo arrumado. E aquecido. A enorme mesa de jantar e as cadeiras eram presas no chão. Assim como o beliche espaçoso, também preso no chão, cabendo duas pessoas sem qualquer problema, outra das leis do tai-pan. Era alto, e a cabeceira se situava bem no centro da antepara da popa, com proteções de lona contra o balanço do navio, quando navegassem com todas as velas içadas. Agora, estavam dobradas. Havia a bombordo um pequeno banheiro e vaso sanitário, e a boreste um armário para roupas. De uma viga do teto pendia um lampião a óleo, projetando sombras agradáveis.

Os dois hesitavam, inseguros.

— Angel...

— O que é, chéri?

— Eu amo você.

— Também amo você, Malcolm. E me sinto muito feliz.

Ainda assim, nenhum dos dois se mexeu. O xale de Angelique caíra um pouco, revelando os ombros e o vestido verde-claro, de cintura alta, ao estilo Império, as dobras de seda se acumulando sob o busto, que subia e descia, no ritmo de seu coração. O vestido era a mais avançada haute couture, tirado do último número de L’Illustration enviado por Colette, ainda não em plena voga, ousado na sua simplicidade. Quando ela se apresentara para o jantar, os dois homens — Malcolm e Strongbow, como convidado — não puderam conter um murmúrio de admiração.

Os olhos dela eram espelhos dos olhos de Malcolm, e agora, incapaz de suportar a expectativa e a necessidade dele, que parecia se projetar, envolvê-la e sufocá-la. Angelique correu para seus braços. Ardente. O xale caiu no convés, sem ser notado. Um pouco tonta, ela sussurrou:

— Vamos, chéri...

Pegou-a pela mão e sustentou parte de seu peso. Fez outra prece silenciosa por ajuda, aniquilando o passado e o futuro, para se abandonar por completo ao presente, e conduziu-o para o beliche, determinada a ser tudo o que ele desejava e esperava. Desde a cerimônia súbita e inacreditável hoje, Angelique vinha planejando para aquele momento, para o seu papel, analisando suas próprias idéias e o que Colette contara sobre a maneira como algumas damas da corte se comportavam na primeira noite:

— É importante, Angelique, ser a guia, controlar o garanhão como uma boa amazona deve fazer, com mãos fortes, rédea curta, com firmeza, mas também com gentileza, para remover a violência inicial até mesmo do mais dócil dos maridos, para atenuar a dor. Esteja preparada...

A impaciência de Malcolm era tremenda, as mãos enormes vagueavam por toda parte, os lábios se mostravam fortes e insistentes.

— Deixe-me ajudá-lo — murmurou ela, a voz rouca, também querendo começar logo.

Tirou a sobrecasaca dele, depois a camisa, teve um arrepio ao ver a extensão da cicatriz na cintura.

— Mon Dieu, eu havia esquecido como você foi gravemente ferido...

A paixão de Malcolm murchou, mas não o trovejar de seu coração. Todo instinto o levava a querer se enrolar com a camisa ou o lençol, mas forçou-se a não fazê-lo. A cicatriz era um fato de sua vida.

— Desculpe.

— Não tem de que se desculpar, mon amour — balbuciou ela, com lágrimas nos olhos, apertando-o com força. — Eu é que peço desculpas, por recordar todo aquele horror...

— Não pense mais nisso, minha querida. É joss. Muito em breve, será apenas um pesadelo distante para nós dois. Prometo.

— Sei disso, meu querido. Foi uma tolice da minha parte.

Angelique continuou a abraçá-lo. Depois que a angústia por ele diminuiu, sentiu raiva de si mesma, removeu suas lágrimas — e, com elas, sua tristeza momentânea —, beijou-o às pressas, fingindo que nada acontecera.

— Sinto muito, meu querido, foi uma bobagem minha. E agora sente ali por um instante.

Malcolm obedeceu. Observando-o com os olhos meio fechados, mas brilhantes, ela soltou o cinto de seda, abriu os botões nas costas e deixou o vestido cair, como planejara. Ficou apenas com meia combinação e a pantalona. Ele estendeu os braços, mas Angelique riu, esquivou-se, foi até o baú em que estavam seu espelho, pomadas e perfumes. Sem qualquer pressa, passou perfume atrás das orelhas, nos seios, provocante e sedutora. Mas ele não se importou, fascinado por ela, que lhe explicara várias vezes, em palavras diferentes:

— Os franceses são diferentes de vocês, meu querido Malcolm. Somos francos sobre o amor, recatados, e ao mesmo tempo não recatados, o oposto dos ingleses. Achamos que o amor deve ser como uma refeição maravilhosa, uma emoção para os sentidos, todos os sentidos, e não da maneira como se ensina às nossas pobres irmãs inglesas e seus irmãos... uma coisa que deve ser feita depressa, no escuro, acreditando por algum motivo que o ato é sórdido, e os corpos vergonhosos. Vai ver só, quando casarmos...

E agora eram casados. Ela era sua esposa, e se mostrava coquete, para seu prazer, proporcionando-lhe intensa alegria e vibração. Graças a Deus por isso, pensou Malcolm, com um alívio monumental, pois se preocupara por semanas, recordando a moça da Yoshiwara, quando nada dera certo.

— Angel... — balbuciou ele, a voz rouca.

Tímida, ela tirou a pantalona e a anágua, foi até o lampião, abaixou o pavio, deixando apenas a claridade necessária, mais adorável do que Malcolm imaginara. — a visão de seu corpo nu era como um sonho, e ao mesmo tempo de uma realidade profunda e angustiante. Sem pressa, ela foi para o outro lado do beliche, deitou-se ao seu lado.

Sussurrando palavras de amor, as mãos tocando, explorando, a respiração de Malcolm pesada, seu corpo chegando mais perto, lábios quentes, beijos ardentes. As mãos de Angelique, hesitantes, sob um cuidadoso controle, também explorando, toda a sua mente concentrada na imagem de primeiro amor feliz e inocente que queria transmitir... ansiosa em agradar, mas também um pouco assustada.

— Oh, Malcolm... Malcolm...

Murmurando e beijando-o, amando-o profundamente, rezando para que fosse verdade o que Babcott dissera, em resposta às suas perguntas:

— Não se preocupe. Por algum tempo, ele não será capaz de montar a cavalo direito, nem poderá dançar uma polca da maneira correta, mas isso não importa, pois será capaz de guiar uma charrete, comandar um navio, dirigir a Casa Nobre, gerar muitos filhos... e ser o melhor marido do mundo...

A necessidade que ela sentia era muito forte agora. Mas tratou de abrandá-la, conteve o desejo, apegando-se ao plano, ajudando e guiando, e depois veio um ofego estridente, mas ela não titubeou, apertou-o com força agora, reagindo e reagindo, até que ele gritou, todo o corpo de Angelique abalado pelas contorções do orgasmo dele, com gemidos que se prolongaram, intermináveis, e depois seu corpo desamparado, ofegante, a esmagá-la... mas sem sufocá-la.

Como é estranho que eu possa suportar seu peso com tanta facilidade, tudo se ajustando com perfeição, pensou ela, sua boca sussurrando palavras doces e ternas, Calmando os gemidos arfantes, contente porque a primeira união fora consumada de uma forma tão agradável.

Malcolm se encontrava apenas meio consciente, perdido em algum estranho platô, sem peso, vazio, sem nada sentir, ao mesmo tempo saciado de amor por aquela incrível criatura, que era, nua, tudo o que ele imaginara, e muito mais. Seu cheiro, gosto e essência. Cada parte dele satisfeita. Tudo valera a pena. Em euforia. Agora ela é minha, fui homem, ela se mostrou mulher... oh, Deus, espero não tê-la machucado.

— Você está bem, Angel? — murmurou ele, a voz ainda rouca, o coração quase parando, mal conseguindo falar. — Não a machuquei?

— Oh, não, meu querido... eu o amo demais.

— Também amo você, Angel, e não tenho palavras para expressar o quanto.

Ele beijou-a, começou a erguer o corpo, apoiado nos cotovelos.

— Não, não se mexa, ainda não, por favor, eu gostaria que... O que foi querido?

Subitamente nervosa, Angelique contraiu os braços, que o enlaçavam.

— Nada, nada... — balbuciou ele, tentando resistir à dor repentina, que partira da virilha, e se irradiara até a base do crânio, quando se movimentara.

Cauteloso, ele tentou de novo, e desta vez foi melhor. E conseguiu não gemer.

— Não se mexa, Malcolm — disse ela, com toda ternura. — Fique quieto, descanse, mon amour, gosto de você assim... por favor...

Agradecido, ele obedeceu, começando a sussurrar o quanto a amava, confortável, sereno, tão satisfeito que pôde resvalar para o sono, um sono profundo. O sino do navio badalou uma vez, meia-noite e meia, mas ele não se mexeu Angelique continuou deitada da mesma maneira, tranquila, satisfeita, seu futuro conquistado, desfrutando o sossego do camarote, as madeiras rangendo de vez em quando, as ondas batendo contra o casco, saboreando também a sensação de realização.

Sem despertá-lo, ela saiu de baixo de seu corpo, foi ao banheiro, lavou-se. Suspirou, pediu perdão. Um pequeno talho com a ponta de uma faquinha. André dissera:

— É difícil para um homem, quase impossível, determinar se a mulher é virgem ou não na noite de núpcias, se ele não tem motivos para desconfiar. Um pouco de medo, um gemido no momento certo, um pouco de sangue denunciador, o sinal incontestável, e pela manhã tudo estará como deve ser.

Que cínico terrível é André, pensou ela. Que Deus me proteja dele, e me perdoe por meus pecados. Sinto-me contente por estar casada, a caminho de Hong Kong muito em breve, para nunca mais ter de pensar nele, apenas no meu Malcolm...

Angelique voltou ao beliche quase dançando. Tornou a se deitar, segurou a mão de Malcolm, fechou os olhos, imagens gloriosas do futuro aflorando em sua mente. Eu o amo tanto...

 

Ela despertou subitamente, pensando que experimentara outro terremoto. O camarote se encontrava às escuras, a única claridade era a chama mínima do lampião, balançando um pouco. E depois ela se lembrou de tê-lo diminuído, e compreendeu que o som que a acordara era do sino do navio, e não o da catedral durante o terremoto de seus sonhos. Agora, o terremoto era apenas o balanço do navio, sem nada do pesadelo. E depois, vendo-o estendido ao seu lado, experimentou um amor profundo, diferente de qualquer coisa antes, sabendo que estavam casados, e que isso também não era um sonho.

Quatro badaladas? Duas ou seis horas da manhã? Não, sua tola, não pode ser, pois neste caso haveria claridade além das vigias, e Malcolm dissera que precisava desembarcar antes de poderem levantar âncora, a caminho da civilização, para enfrentar o dragão em seu covil... não, para cumprimentar uma sogra que vou envolver e seduzir, que logo vai me amar, e se tornar a avó perfeita.

Ela observou-o na semi-escuridão. Malcolm dormia de lado, a cabeça aninhada no braço direito, o rosto sem as linhas da preocupação, a respiração suave, o corpo quente, com seu cheiro viril e agradável. Este é meu marido, eu o amo, sou apenas dele, o outro nunca aconteceu. Como sou afortunada!

Sua mão começou a tocá-lo. Ele se mexeu. Também estendeu a mão para ela. Não de todo desperto, ele murmurou:

— Olá, Angel.

— Je t’aime.

— Je t’aime aussi.

A mão de Malcolm procurou-a. Ela reagiu. Apanhado de surpresa, ele virou-se para Angelique, prendeu a respiração, quando uma dor intensa saltou para o fundo de seus olhos. Depois a dor passou, ele exalou.

— Je t’aime, chéri. — Ela inclinou-se para beijá-lo, e sussurrou entre os beijos: — Não, não se mexa, continue deitado assim, fique quieto.

Angelique soltou uma risadinha e acrescentou, a voz rouca de desejo:

— Fique imóvel, mon amour.

Em momentos, a paixão dominou-o. Excitado e vidrando, tudo esquecido, ora a sensualidade partilhada, ora os movimentos bem lentos, ora mais rápidos, outra vez lentos, mais profundos, a voz gutural de Angelique a instá-lo, ele reagindo, e continuando sempre, sem parar, cada vez mais forte, todas as suas glândulas, músculos e anseio se concentrando, até que ela ficou próxima, muito próxima, se afastando, próxima de novo, enlaçando-a, ajudando-a, arremetendo, até sentir o corpo de Angelique se desvanecendo, seu peso desaparecer, tudo sumir, e ela arriou por cima dele, com seus espasmos e gritos, fazendo com que a penetrasse ainda mais fundo, o corpo de Malcolm se comprimindo contra o dela por vontade própria, descarregando por vontade própria, até que passou o último espasmo, frenético, bem-vindo, e todos os movimentos cessaram.

Apenas respirações ofegantes se misturavam, o suor se misturava, os corações se misturavam.

Depois de algum tempo, Malcolm se tornou consciente. O peso adormecido de Angelique em seu peito não era nada. Ele continuou deitado assim, em espanto, vibrante, eufórico, um braço a mantê-la segura na posição, sabendo que ela era tão bela quanto uma esposa podia ser. A respiração de Angelique esfriava suas faces, longa, lenta, profundamente. Ele tinha a cabeça lúcida, uma visão clara do futuro, sem qualquer resquício de dúvida. Com uma segurança absoluta de que acertara ao casar com ela, certo de que agora poderia encerrar o conflito com sua mãe, e juntos destruiriam os Brocks, assim como ele acabaria com Norbert, acabaria com as vendas de ópio e canhões, persuadiria Jamie a permanecer e dirigiria a Struan como devia ser dirigida... como o tai-pan gostaria que fosse dirigida. Até que, com o passar do tempo, cumpriria seu dever, e faria com que a Casa Nobre voltasse a ser a primeira na Ásia, para entregá-la ao próximo tai-pan, o primogênito, a quem dariam o nome de Dirk, o primeiro de muitos filhos e muitas fílhas.

Por quanto tempo ficou assim, ele não sabia, com uma suprema confiança, transbordando de alegria e êxtase, seus braços a envolvê-la, amando-a, aspirando sua respiração, mais feliz do que jamais se sentira, do que jamais poderia se sentir, seus lábios dizendo a ela que a amava, a mente o levando ao sono, em bem-aventurança, para longe da recordação daquela terrível, maravilhosa, angustiante suprema explosão de imortalidade, que parecera dilacerá-lo por completo.

 

Quarta-feira, 1O de dezembro:

Ao amanhecer cinzento, Jamie McFay subiu apressado do cais da cidade dos bêbados, e virou a esquina. Avistou Norbert e Gornt na terra de ninguém, esperando onde deveriam esperar, notando sem interesse a pequena valise na mão de Gornt, que devia conter as pistolas de duelo que haviam combinado. Além dos três — e enxames de moscas —, o vazadouro fétido e cheio de mato se encontrava deserto. Ele não cruzara com ninguém, exceto bêbados encolhidos e roncando nos cantos de barracos, estendidos em bancos, ou no chão. E não reparara neles.

— Desculpem — balbuciou ele, esbaforido. Como os outros dois, também usava uma sobrecasaca e chapéu, contra o ar frio e úmido do amanhecer. — Lamento o atraso, mas...

— Onde está o tai-pan da Casa Maldita? — indagou Norbert, grosseiramente, empinando o queixo. — Ele é covarde ou o quê?

— Vá se foder! — berrou Jamie, o rosto tão branco quanto o céu nublado. — Malcolm morreu! O tai-pan está morto!

Ele viu-os se desmancharem em espanto e também ainda não podia acreditar.

— Acabo de voltar do navio. Fui buscá-lo antes do amanhecer, pois eles... ele passou a noite a bordo do Prancing Cloud. Estava...

As palavras lhe faltaram. As lágrimas afloraram, e ele recordou toda a cena, Strongbow na amurada, pálido e assustado, gritando, antes mesmo que ele subisse a bordo, que o jovem Malcolm morrera, que mandara seu cúter buscar um médico, mas o tai-pan já estava morto.

E depois a subida pelos degraus. Notara Angelique encolhida num canto do tombadilho superior, envolta por cobertores, o primeiro-piloto ao lado, mas passara apressado pelos dois, rezando para que não fosse verdade, para que fosse apenas um pesadelo, antes de descer.

Encontrara o camarote todo iluminado. Malcolm estava deitado de costas no beliche. Os olhos fechados, sereno na morte, sem preocupações, um lençol levantado até o queixo. Ocorrera a Jamie que o amigo parecia como nunca o vira antes, numa paz suprema.

— Foi... foi Chen... — dissera Strongbow, falando num fluxo rápido, transtornado — ...foi o criado Chen quem o encontrou assim, Jamie. Veio acordá-lo há uns dez ou quinze minutos, Jamie, e o descobriu... pode-se destrancar a porta por fora, como acontece na maioria dos camarotes de navios... ele abriu a porta, viu os dois dormindo, como pensou. Ela dormia, mas não Malcolm. Ele sacudiu-o, percebeu que Malcolm estava morto, e quase morreu também. Saiu correndo, foi me chamar, e a esta altura ela já acordara. A pobre coitada não parava de gritar desesperada, gritava tanto que deixava todo mundo nervoso, tirei-a do camarote mandei que o primeiro-piloto cuidasse dela e voltei para cá, mas não havia qualquer equívoco, pobre rapaz, ele estava como você o vê agora, só que fechei seus olhos, mas olhe... olhe isso...

Tremendo, Strongbow puxara o lençol. Malcolm estava nu, a parte inferior do corpo numa poça de sangue, já ressequido agora, formando uma crosta, o colchão encharcado.

— Ele... deve ter sofrido uma hemorragia, só Deus sabe por que, mas suponho...

— Oh.Deus!

Jamie cambaleara para uma cadeira, praguejara, atordoado. Malcolm?

— O que vou fazer agora? — perguntara a si mesmo, desolado.

A voz de Deus ressoara pelo camarote, na resposta:

— Empacote-o em gelo e mande-o para casa!

Assustado, ele se levantara de um pulo. Strongbow o fitava, perplexo, e no mesmo instante Jamie compreendera que fora o capitão que respondera, sem ter percebido que ele próprio fizera a pergunta em voz alta.

— Isso é tudo o que pode dizer, pelo amor de Deus? — gritara ele.

— Desculpe, Jamie, não tive a intenção... não queria... — Strongbow enxugara o suor da testa. — O que você quer que eu faça?

Depois de outro século, os ouvidos ainda ressoando, a cabeça latejando, ele murmurara:

— Não sei.

— Normalmente, nós o sepultaríamos no mar, pois não posso manter... mas você pode sepultá-lo em terra... o que quer que eu faça?

A mente de Jamie parecia funcionar muito devagar. Só então notara Ah Tok, agachada perto do beliche, pequena, uma velha megera agora, balançando sobre os calcanhares, a boca se mexendo, mas sem que qualquer som saísse.

— Ah Tok, pode subir agora, não há nada que possa fazer aqui, está certo?

Ela não lhe prestara qualquer atenção. Continuara a se balançar para a frente e para trás, a boca se mexendo em silêncio. Ele tentara de novo, mas fora em vão. Acrescentara para Strongbow:

— É melhor você esperar aqui, até a chegada de Babcott ou Hoag.

Ele tornara a subir, fora se ajoelhar ao lado de Angelique, ainda no escuro antes do amanhecer. Mas ela também não respondera, por mais ternamente que falasse, dizendo como lamentava, que gostaria de ajudá-la. Por um instante, ela ainda levantara os olhos, sem reconhecimento, enormes olhos azuis na brancura do rosto, depois voltara a se encolher dentro dos cobertores, olhando sem ver para o convés.

— Vou desembarcar, Angelique, desembarcar. Está me entendendo? E... é melhor contar a Sir William, entende?

Ela acenara com a cabeça apática, e Jamie a tocara como um pai faria. Antes de deixar o navio, ainda dissera a Strongbow:

— Ponha a bandeira a meio mastro, todos os tripulantes devem permanecer a bordo, sua ordem de zarpar está cancelada. Voltarei assim que puder. E acho melhor não tocar em cada, até a chegada de Babcott ou Hoag.

Voltando para a praia, ele experimentara uma náusea violenta, e agora se descobria diante de Norbert e Gornt. Gornt estava chocado, e os olhos de Norbert faiscaram. Em meio à sua angústia, ouviu-o dizer:

— Malcolm está morto? Mas como ele morreu?

— Não sei — respondeu Jamie, meio sufocado. — Mandamos chamar Babcott, mas parece que foi uma hemorragia. Agora, tenho de comunicar a Sir William.

Ele se virou para ir embora, mas a risada escarninha de Norbert deteve-o.

— Está querendo dizer que o jovem patife morreu fodendo? Morreu em ação? Vim aqui para matá-lo, mas ele se fodeu ao passar pelos portais de pérola? O velho Brock vai ter um acesso de riso...

Cego de raiva, McFay desferiu um golpe, o punho direito acertando o rosto de Norbert, que cambaleou para trás. McFay errou um violento uppercut com a esquerda, perdeu o equilíbrio, caiu de joelhos. Norbert virou-se com a agilidade de um gato, berrando em fúria, o rosto ensanguentado, o nariz achatado, e deu um chute contra a cabeça de Jamie. Aponta de sua botina atingiu a gola de McFay, o que desviou e amorteceu o impacto, ou teria quebrado o pescoço, em vez de jogá-lo de costas no chão. Norbert limpou o sangue do rosto, enquanto corria para a frente, desferindo outro chute brutal. Mas desta vez Jamie se encontrava preparado e contorceu-se para o lado, antes que Norbert conseguisse alcançá-lo de novo, e levantou-se, os punhos cerrados, o braço esquerdo inútil por um momento.

Por um segundo, os dois se encararam, a dor ofuscada pelo ódio. Gornt tentou detê-los, mas no mesmo instante os dois homens atacaram, desvairados, empurrando-o para o lado, como uma folha. Punhos, pés, todos os golpes sujos, uma briga de rua. Joelhos na virilha, unhas rasgando, arrancando pedaços de roupa e cabelos, qualquer coisa para destruir o outro, a hostilidade de anos irrompendo numa ferocidade incontrolável. Eram da mesma altura, mas Jamie tinha quinze quilos a menos, Norbert era mais duro, mais brutal. Uma faca apareceu em sua mão. Tanto Jamie quanto Gornt gritaram quando ele arremeteu, errou, recuperou o equilíbrio, atacou de novo, e desta vez arrancou sangue, Jamie meio desajeitado, perdendo, prejudicado pelo ombro lesionado. Com um vitorioso grito de guerra, Norbert avançou, para mutilar, não para matar. Só que ao mesmo tempo o punho de Jamie acertou na ponte de seu nariz, esmagando-o desta vez, e Norbert caiu gemendo, ficou no chão, de quatro, sem ver coisa alguma, dominado pela dor, derrotado.

Jamie parou na frente dele, ofegante. Gornt esperou que ele liquidasse o oponente, com um chute na virilha, outro na cabeça, e depois talvez usasse calcanhar para esmagar seu rosto para sempre. Era o que ele faria... afinal, não era atitude de um cavalheiro sacar, ou escarnecer da morte de outro homem, mesmo um inimigo, pensou ele, sentindo uma satisfação intensa pela vitória de McFay.

A morte de Malcolm não o agradara nem um pouco. Era a única opção para a qual não planejara, não hoje. Agora, seu esquema teria de ser revisto, depressa. Em nome de Deus, como? Talvez aquela briga pudesse ser aproveitada, especulou avaliando as possibilidades, enquanto esperava para saber o que Jamie faria em seguida.

Agora que vencera, a raiva de Jamie se dissipou. Seu peito arfava. Bílis e sangue enchiam sua boca. Ele cuspiu. Por anos, tivera vontade de humilhar Norbert, e agora o conseguira, desforrara-se de uma vez por todas... e ainda por cima vingara Malcolm, que fora provocado deliberadamente.

— Norbert, seu filho da puta — balbuciou ele, atônito pelo som de sua voz e por se sentir tão mal —, se disser mais alguma coisa contra o meu tai-pan, qualquer coisa, ou rir dele pelas costas, juro que vou transformá-lo em picadinho.

Atordoado, ele passou cambaleando por Gornt, mal o vendo, a caminho do cais. Dez ou quinze metros depois, seu pé pisou num buraco, e ele caiu, praguejando, e ficou de quatro, alheio aos outros, exausto.

Norbert começava a se recuperar, cuspindo sangue, o nariz quebrado, uma massa de dor, tremendo de raiva por ter sido derrotado. E apavorado. O velho Brock não vai perdoá-lo, seu cérebro bradou, vai perder sua gratificação e o estipêndio que ele prometeu, será alvo de riso em toda a Ásia, vencido, humilhado para sempre pelo filho da puta do Jamie, que nem de longe é do seu tamanho, um lacaio da Struan...

Ele sentiu que alguém o ajudava a levantar. Trôpego, forçou os olhos a se abrirem. Ofegando para respirar, confuso, o rosto e a cabeça em fogo, os olhos inchados, fechados quase que por completo, ele viu McFay se levantando com dificuldade, a poucos passos de distância, de costas, Gornt meio na sua frente, ainda segurando a pistola de duelo de cano duplo.

Meio louco de dor, um emaranhado de pensamentos afloraram: Não posso errar a esta distância, Gornt é a única testemunha, diremos no inquérito que “McFay tentou pegar a arma, Sir William, tivemos uma briga, mas foi ele que me acertou primeiro, Edward, diga a verdade de Deus, e depois foi terrível, estávamos engalfinhados, e não sei como a arma disparou, o pobre Jamie...”

Norbert pegou a pistola, levantou-a.

— Jamie! — gritou Gornt, em advertência.

McFay virou-se, surpreso, entreabriu a boca ao deparar com a arma apontada, enquanto Norbert ria e puxava o gatilho. Mas Gornt estava preparado e, com outro grito de advertência, desviou o tiro para cima. Em seguida, de costas para McFay, encobriu a pistola com seu corpo, segurando-a com as duas mãos, demonstrando uma força surpreendente, e simulou luta momentânea com Norbert pela posse da arma. E durante todo o tempo fixava os olhos de Norbert, que só viu, transtornado, a morte na sua frente. Ele virou o cano para o peito de Norbert e apertou o segundo gatilho. Norbert teve morte instantânea. Depois, fingindo estar transtornado, Gornt deixou o corpo cair. Tudo levara apenas uns poucos segundos.

— Deus Todo-Poderoso! — balbuciou Jamie.

Consternado, ele se adiantou, cambaleando, arriou de joelhos ao lado do corpo.

— Por Deus, senhor, eu não sabia o que fazer. O Sr. Greyforth ia alvejá-lo pelas costas e tudo o que fiz... oh, Deus, Sr. McFay... viu o que ele ia fazer, não é mesmo, ainda gritei em advertência, mas... ele ia matá-lo...

Era fácil convencer McFay, que se afastou de olhos turvos, trôpego, para buscar ajuda.

Sozinho agora, em segurança, Gornt deixou escapar um suspiro. Satisfeito consigo mesmo. Exultante por ter previsto o que Norbert faria e apostado sua vida nisso.

— Quando está jogando, o tempo e a execução devem ser perfeitos — dizia sempre o seu padrasto, ao lhe ensinar a arte do baralho. — Às vezes surge uma grande chance, jovem Eddie, uma dádiva das Parcas. Elas lhe oferecem alguma coisa especial, você aproveita, e tira a sorte grande, mata o adversário. Ganha tudo, e não pode fracassar, se elas ofereceram de fato, pois sempre escolhem o momento perfeito. Mas não se deixe enganar pelo demônio... ele vai enganá-lo, sua oferta pode parecer com a outra, mas é diferente, reconhecerá a diferença quando surgir em seu caminho...

Gornt sorriu, sarcástico. O padrasto não se referia a matar literalmente, mas fora assim que ocorrera para ele. Sua dádiva das Parcas fora Norbert. O momento perfeito, o assassinato perfeito, o álibi perfeito. Norbert tinha de ser despachado para o outro mundo, por muitos motivos. Um deles era porque Norbert poderia evitar parte do desastre para os Brocks, desviando-o para a Struan. Outro porque o velho Brock ordenara que Norbert matasse de qualquer maneira que pudesse, e um terceiro — o mais importante — porque Norbert era vulgar, não tinha boas maneiras, nenhuma sutileza, nem senso de honra, nunca fora nem seria um cavalheiro.

As moscas já enxameavam ao redor do cadáver. Gornt afastou-se um pouco, acendeu um charuto. Seus olhos vasculharam a terra de ninguém, através da neblina. Ainda não havia olhos estranhos, nenhum movimento. O amanhecer mal rompia o céu nublado. Enquanto esperava, ele retirou os cartuchos da outra pistola, apistola de Malcolm, que Norbert insistira em levar. Sorriu para si mesmo. Teria feito a troca, dando a Norbert as balas de pólvora seca, se ele decidisse lutar mesmo o duelo, em vez de cancelá-lo, como fora combinado.

Norbert era sem dúvida um desgraçado, pensou ele. Boa viagem. Mas lamento por Malcolm. Não importa, agora irei para Hong Kong, e farei o acordo com sua mãe... o que será mais seguro e melhor. Norbert tinha razão, ela é a verdadeira tai-pan. Negociarei o que teria dado a Malcolm, os meios reais e as provas para destruir a Brock and Sons... para esmagar Morgan, o diabo encarnado.

A vingança é minha, disse o Senhor. Mas não para mim, Edward Gornt, o filho de Morgan. Ah, pai, se ao menos soubesse como a vingança será gloriosa, com é correto o parricídio! Em pagamento pelo “casarei com aquela vagabunda se ...”

É irônico, Morgan, você passou a vida tentando arruinar sua única irmã e a família dela — seu pai, a mesma coisa, com sua única filha —, e eu sou seu único filho, e Nêmesis, protegendo a ela para arruiná-lo.

Será mais seguro e melhor negociar com Tess do que com Malcolm. Ela me entregará a Rothwell em Xangai e subscreverá os empréstimos no Victoria Bank que eu precisar, e ainda me conseguirá um assento no conselho de administração. Não, não isso, ela vai me considerar uma ameaça, com toda razão, a vaga só virá mais tarde. Enquanto isso, o próximo na lista, Cooper-Tillman.

Enquanto isso, o que fazer? Partir para Hong Kong o mais depressa possível. É curioso que Norbert tenha morrido e Malcolm também. Muito estranho.

Morte em ação? Que maneira de morrer!

Ao remover Malcolm, as Parcas me concederam outro prêmio. Angelique. Ela é livre e rica agora, tem a riqueza da Casa Nobre. Seis meses é o prazo perfeito, tempo suficiente para o luto, e para que eu possa me organizar. A esta altura, Tess Struan ficará contente em vê-la longe de Hong Kong. E casada. E se ela estiver grávida? Deixarei para me preocupar com isso mais tarde, pois é um se. De qualquer maneira, não faz diferença, assumirei a Casa Nobre mais cedo do que planejava.

Sua risada baixa misturou-se com o zumbido das moscas.

 

— O Dr. Babcott está lá fora, Sir William — anunciou Tyrer.

— Pois mande-o entrar, pelo amor de Deus! George, bom dia... o que aconteceu com o pobre coitado? Uma notícia terrível! E como está Angelique? Já soube de Norbert? O desgraçado tentou atirar em Jamie pelas costas há cerca de duas horas!

— Já soube. — Babcott não fizera a barba e se encontrava visivelmente transtornado. — Hoag levou Angelique para a legação francesa, todos desembarcamos juntos... e ela não queria voltar para o prédio da Struan.

— Posso compreender. Não a culpe por isso. Como ela está?

— Em choque, como não podia deixar de ser. Nós lhe demos sedativos, foi horrível para ela... passou por maus momentos aqui, a Tokaidô, depois aquele maldito ronin, agora isto. É muito azar. Ela ficou bastante abalada.

— E isso vai fazê-la perder o juízo?

— Espero que não, mas nunca se sabe. Ela é jovem e forte, mas... nunca se sabe. Por tudo o que é sagrado, espero que não. — A preocupação dos dois era evidente. — Uma coisa terrível, parece que tudo é inútil.

Sir William balançou a cabeça.

— Devo confessar que fiquei furioso com o casamento, mas quando recebi a notícia, esta manhã, daria qualquer coisa para que não tivesse acontecido. — Seu rosto se endureceu. — Viu o corpo de Norbert?

— Não. Hoag cuidará disso, assim que assentar Angelique. Achei melhor vir direto para cá, e lhe contar tudo.

— Fez bem. O que aconteceu com Malcolm?

Apesar de sua angústia, Babcott tornou-se frio e objetivo:

— Hemorragia. Uma artéria ou veia rompeu-se. Durante a noite, enquanto ele dormia, sem qualquer dor ou contorções, ou ele a teria acordado. A vida simplesmente se esvaiu de seu corpo. Farei uma necropsia, que é indispensável para o atestado de óbito.

— Muito bem, se é isso o que recomenda. — Sir William desligou a mente desse processo macabro, considerando-o desagradável, também não gostando de estar perto do médico, de qualquer médico, com as roupas sempre manchadas de sangue aqui e ali, e sempre com um tênue cheiro de substâncias químicas e ácido carbólico, por mais que se limpassem. — Pobre jovem Struan. Terrível. Ele sangrou até a morte?

— Isso mesmo. Pelo que vale, Malcolm... ele parecia o homem mais sereno que já vi na morte, como se a desejasse.

Sir William mexeu num tinteiro na mesa.

— George, ele poderia estar... terminando... seria essa a causa? Um tremendo excitamento?

— Deve ter sido isso o que aconteceu. Não o orgasmo propriamente dito, mas a tensão incontrolável que gera poderia com a maior facilidade dilacerar tecidos enfraquecidos ou causar um rompimento. Os órgãos genitais se encontravam em perfeitas condições, mas a cavidade estomacal era fraca. Reparei a maior parte do intestino grosso, suturei algumas artérias, pois o ferimento foi bastante grave. Ele não estava se recuperando como eu gostaria e o fígado...

— Não preciso dos detalhes agora — interrompeu-o Sir William, supersensível, já sentindo um pouco de náusea. — Por Deus, o jovem Struan! Parece impossível... e Norbert ainda por cima! Se não fosse por Gornt, teríamos um assassinato em nossas mãos. Aquele sujeito merece uma medalha. Ele disse, antes que eu me esqueça, que Jamie foi provocado, e Norbert fez jus ao castigo. Sabia e Malcolm e Norbert iam se encontrar na cidade dos bêbados para um duelo?

— Não, até um momento atrás. Phillip me contou. Loucos, os dois. E você os advertiu!

— É verdade. Os idiotas, embora Gornt jure que ambos haviam concordado em aceitar as desculpas um do outro. Mas ele também contou que Norbert lhe disse esta manhã que mudara de idéia e pretendia matar Struan. O miserável! — Aflito, Sir William mexeu nas coisas em sua mesa, endireitando papéis, o pequeno retrato com moldura de prata. — O que faremos agora?

— Em relação a Norbert?

— Não, Malcolm. O que faremos com Malcolm?

— Efetuarei a necropsia hoje, ao final da tarde. Tomei a liberdade de providenciar o envio do corpo para Kanagawa... será mais fácil ali. Hoag funcionar como meu assistente e você receberá um relatório pela manhã Assinaremos o atestado de óbito e tudo será normal.

— Estou me referindo ao corpo — explicou Sir William, irritado.

— Pode sepultá-lo como quiser. Com este tempo, não há pressa, pois ficará bem preservado.

— Haverá tempo para enviar o Prancing Cloud a Hong Kong e descobrir que sua... o que a Sra. Struan deseja fazer? Afinal, ela pode querer sepultá-lo lá e...

— Por Deus, eu não gostaria de transmitir essa notícia a ela!

— Nem eu. — Sir William puxou a gola. Como sempre, fazia frio no escritório, o fogo de carvão era mínimo e uma aragem forte entrava pelas janelas mal-ajustadas. — Hoag é o médico da família, ele pode ir. Mas o que eu quero saber, George, é se o corpo ficará preservado por tanto tempo. Levar a notícia para ela, voltar, pegar o corpo... e se for isso o que ela quiser?

— É melhor você tomar a decisão, sepultá-lo aqui ou despachá-lo para Hong Kong imediatamente. Nós o conservaríamos em gelo, cercaríamos o caixão com gelo, sob uma cobertura de lonas, não deve haver maiores problemas.

Sir William acenou com a cabeça, repugnado.

— Phillip! — gritou ele pela porta. — Peça a Jamie para vir até aqui o mais depressa possível! George, acho que a decisão mais sensata, desde que... desde que o corpo fique preservado, é mandá-lo de volta. Qual é a sua opinião?

— Concordo.

— Ótimo. Obrigado. Mantenha-me informado sobre Angelique. Também não esqueça do nosso jantar esta noite. E a nossa partida de bridge?

— É melhor adiar as duas coisas para amanhã.

— Tem razão, será melhor assim. Obrigado outra vez... droga, eu já ia esquecendo. O que faremos com Norbert?

— Um enterro rápido, logo esquecido, e nunca lamentado.

— Terei de realizar um inquérito. Edward Gornt é americano, um cidadão estrangeiro... ele está preparando um depoimento assinado. Ainda bem que Adamnson está de licença, pois ia querer se intrometer. Ele é advogado, não é mesmo. além de chargéd’affaires dos Estados Unidos?

— De qualquer forma, não importa. Hoag e eu podemos dar o testemunho médico. — Babcott levantou-se e acrescentou friamente: — Mas o “tiro pelas costas”? Não é uma boa propaganda para Iocoama.

— É o que estou pensando. — O rosto de Sir William se contraiu. — Não gostaria que isso transpirasse.

— Para os nossos anfitriões?

— Isso mesmo. Eles terão de ser informados, é inevitável. Mas também não posso fazer um relato formal do que aconteceu exatamente. É óbvio que Norbert sofreu uma morte acidental. E Struan?

— Diga-lhes a verdade — respondeu Babcott, consternado com a perda, furioso consigo mesmo por seu trabalho não ter sido bastante bom, e porque desejava, desesperadamente, não como médico, tomar Angelique em seus braços para protegê-la de tudo. — E a verdade é que a morte desnecessária e prematura daquele jovem extraordinário pode ser atribuída aos ferimentos sofridos no ataque sem qualquer provocação na Tokaidô!

Sir William acrescentou, amargurado:

— Por assassinos miseráveis que ainda não foram levados à justiça. Tem toda razão.

Ele deixou Babcott se retirar, acenou para que Tyrer ficasse longe e foi se postar à janela, perturbado por sua atual impotência. Tenho de enquadrar o Bakufu o mais depressa possível ou estaremos liquidados, e nossa idéia de abrir o Japão se perderá. Eles não farão isso por si mesmos; assim, temos de ajudá-los. Mas eles precisam se comportar como pessoas civilizadas, que respeitam as leis... enquanto isso, o relógio continua batendo; sei, lá no íntimo, que uma noite dessas eles nos atacarão, vão nos tacar fogo, e tudo acabará. Tão certo quanto Deus fez as maçãs!

Claro que haveria uma retaliação... com a perda de muitas vidas. Mas terei fracassado em meu dever, todos estaremos mortos, o que é um pensamento dos mais desagradáveis. Se ao menos Ketterer não fosse tão teimoso... Como posso submeter o desgraçado obstinado à minha vontade?

Ele suspirou, conhecendo uma resposta: primeiro, terá de fazer as pazes com ele!

O encontro tempestuoso na noite passada, por causa do ostensivo descaso do almirante ao pedido da Sra. Struan e ao seu próprio conselho, que não suspeitava do verdadeiro motivo, até arrancá-lo pouco antes de Jamie McFay, acabara se deteriorando para uma confrontação aos gritos:

— Foi um erro permitir que Marlowe...

— Achei que era melhor assim! E agora vai me escutar...

— Melhor? Mas que droga! Acabei de saber que você achou melhor interferir estupidamente em questões políticas e comerciais, tentando negociar um acordo não compulsório com o pretendente ao trono Struan, alienando assim a verdadeira chefe para sempre! Não é verdade?

— E o senhor está querendo interferir em questões que são uma prerrogativa exclusiva do Parlamento, como a declaração de guerra, e o verdadeiro motivo para ser tão desavisado, em sua linguagem, para se mostrar tão transtornado, é o fato de que eu não quero iniciar uma guerra que não podemos vencer, que não podemos sustentar com nossas forças atuais, se é que o conseguiríamos sob quaisquer cicunstâncias; na minha opinião qualquer ataque à capital será considerado pelos nativos, com toda razão, como um ato de guerra, e não um incidente. Boa noite!

— Mas concordou em aju...

— Concordei em exibir alguns sabres, disparar alguns tiros de exercício para impressionar os nativos, mas não concordei em bombardear Iedo, e não o farei jamais, a menos que me apresente uma autorização por escrito, aprovada pelo almirantado. Boa noi...

— A marinha e o exército estão sujeitos ao controle civil, e sou eu quem manda aqui!

— É, sim, mas só se eu concordar! — berrara o almirante, o rosto e o pescoço roxos. — Não manda em meus navios, e até eu receber ordens em contrário aprovadas pelo almirantado, comandarei minha esquadra como achar melhor! Boa noite!

Sir William foi sentar à sua escrivaninha. Suspirou, pegou uma pena e escreveu em seu papel timbrado:

 

Prezado almirante Ketterer: Muito do que disse ontem à noite era correto. Por favor, desculpe o uso de algumas palavras desavisadas no calor do momento. Talvez queira fazer a gentileza de me procurar esta tarde. Já deve ter sido informado da triste morte do jovem Struan, que segundo o Dr. Babcott pode ser atribuída aos ferimentos recebidos no ataque sem qualquer provocação na Tokaidô. Apresentarei outro protesto ao Bakufu, mais severo, pelo falecimento desse extraordinário cavalheiro inglês, e ficaria muito satisfeito em ouvir seus conselhos sobre os termos em que deve ser redigido. Com toda sinceridade, meu prezado senhor, permaneço seu servidor obediente.

 

— O que tenho de fazer pela Inglaterra — murmurou ele.

Depois, enquanto assinava a mensagem, e cobria com pó para secar a tinta, Sir William gritou:

— Phillip!

— Pois não, senhor?

— Tire uma cópia e depois despache para Ketterer, por mensageiro especial.

— Jamie acaba de chegar, senhor, e há uma delegação pedindo que decrete um dia de luto.

— Recusado! Mande Jamie entrar.

Jamie estava bastante machucado, o ombro agora enfaixado.

— Sente-se melhor, Jamie? Ótimo. George Babcott já me apresentou um relatório. — Sir William relatou o que se dissera sobre o corpo de Malcolm. — O que acha devemos fazer?

— Devemos mandá-lo para Hong Kong, senhor.

— É o que também penso. Você vai... acompanhá-lo?

— Não, senhor. A Sra. Struan... receio que ela não me aprove mais e, se eu voltar, só vai agravar uma situação que já é terrível para ela, a pobre dama. Aqui entre nós, estarei despedido ao final do mês.

— Mas por quê? — indagou Sir William, chocado.

— Não importa, não agora. Angelique, a nossa Sra. Struan, irá junto, assim o Dr. Hoag... Já sabia que ela mudou de idéia, e decidiu permanecer em seus aposentos, conosco, e não mais na legação francesa?

— Não, não sabia, mas acho que é melhor assim. Como ela está?

— Hoag diz que o melhor que se podia esperar, o que quer que isso signifique. Despacharemos o Prancing Cloud assim que nos autorizarem. Quando poderá ser?

— George disse que efetuaria a necropsia ainda hoje e assinaria o atestado de óbito. Terei providenciado tudo até amanhã. O clíper pode zarpar amanhã. O único problema seria Angelique, quando ela teria condições para viajar. — Sir William fitou-o nos olhos. — Qual é a situação dela?

— Não sei, não realmente. Não a vejo desde... desde que ela foi para bordo. Não falou comigo desde então, nem uma única vez, não demonstra qualquer lucidez. Hoag ainda continua com ela. — Jamie tentou conter sua angústia. — Só nos resta torcer.

— Um azar terrível. Isso mesmo, não há qualquer dúvida a respeito. Agora, vamos falar sobre Norbert. Teremos de realizar um inquérito.

— Sei disso. — Jamie levou a mão ao rosto, afugentando uma mosca impertinente, que procurava o sangue ressequido. — Gornt salvou minha vida.

— É verdade. Ele será elogiado por isso. Jamie, o que fará quando deixar a Struan? Voltará para casa?

— Aqui é a minha casa... aqui ou na China. Encontrarei algum meio de abrir minha própria firma.

— Seria ótimo, pois eu não gostaria de perdê-lo. Não posso imaginar a Casa Nobre aqui sem você.

— Nem eu.

 

À medida que o dia passava, a mortalha sobre Iocoama se adensava. Choque, incredulidade, raiva, medo da guerra, medo em geral — a Tokaidô recordada —, misturando-se com muitos comentários vulgares sussurrados, mas com extrema cautela de quem os dizia, pois Angel tinha defensores violentos, e qualquer comentário rude ou risada escarninha insinuava desrespeito. Malcolm não foi tão afortunado. Tinha inimigos, muitos se mostravam contentes em escarnecer, felizes porque outro desastre se abatera sobre a descendência de Dirk Struan. E os dois sacerdotes, sob vários aspectos, também se sentiam satisfeitos, vendo a retaliação de Deus.

— André — disse Seratard à mesa do almoço, na legação, tendo Vervene como o terceiro homem —, ele deixou um testamento?

— Não sei.

— Tente descobrir. Pergunte a ela ou a Jamie... é provável que ele saiba mais.

André Poncin balançou a cabeça, desolado, na maior preocupação. A morte de Struan acabara com seu plano de arrancar mais dinheiro de Angelique, a fim de pagarRaiko.

— Está certo.

— É muito importante que continuemos a ressaltar sua cidadania francesa fim de protegê-la, quando a sogra tentar anular o casamento.

Vervene interveio:

— O que o faz ter tanta certeza de que ela agirá assim, que vai se mostrar tão antagônica?

— Mon Dieu, isso é óbvio! — respondeu André por Seratard, irritado — A atitude dela será a de que Angelique “assassinou” seu filho. Todos sabemos que ela a odiava antes, quanto mais agora? É inevitável que acuse Angelique só Deus sabe de quantas insídias, por causa do seu deturpado dogma sexual anglo-saxão em particular, se não em público. E não se esqueça de que ela é uma protestante fanática.

Ele virou-se para Seratard e acrescentou:

— Henri, talvez seja melhor eu procurar Angelique.

André já a interceptara e sussurrara que ela deveria voltar para o prédio da Struan, em vez de ficar na legação:

— Pelo amor de Deus, Angelique, seu lugar é com o pessoal de seu marido! Era tão óbvio que ela deveria reforçar sua posição na Struan — a qualquer custo — que André quase lhe gritara, mas a súbita ira se transformara em compaixão ao perceber a profundeza de seu desespero.

— É melhor eu ir agora.

— Por favor, faça isso.

André saiu e fechou a porta.

— O que há com ele? — perguntou Vervene, fungando.

Seratard pensou, antes de responder, e concluiu que já estava na hora.

— É provável que seja a sua doença... a doença inglesa.

Vervene baixou o garfo, chocado.

— Sífilis?

— André me contou há algumas semanas. Você deve saber, o único em toda a equipe, já que essas explosões podem se tornar mais freqüentes. Ele é valioso demais para que o despachemos de volta.

André anunciara que tinha uma nova fonte de informações, muito bem situada:

— O homem diz que lorde Yoshi voltará a Iedo dentro de duas semanas. Por uma quantia relativamente modesta, ele e seus contatos no Bakufu garantem uma reunião particular, a bordo de nossa nave capitânia.

— Quanto?

— O encontro valeria qualquer coisa que custasse.

— Concordo, mas quanto? — insistira Seratard.

— O equivalente a quatro meses do meu salário —, respondera André amargurado —, uma ninharia. Por falar nisso, Henri, preciso de um adiantamento ou a bonificação que me prometeu há vários meses.

— Nada ficou acertado, meu caro André. Na ocasião oportuna, você receberá, mas agora não pode ter nenhum adiantamento, lamento muito. Muito bem, concordo com a quantia pedida, depois do encontro.

— Metade agora, metade depois. Ele também me contou, sem cobrar, que o tairo Anjo está doente e pode não durar um ano.

— Ele tem alguma prova disso?

— Ora, Henri, sabe muito bem que tal prova não é possível!

— Diga a seu contato para fazer esse macaco tairo procurar Babcott para um e... eu lhe darei um aumento de cinqüenta por cento.

— O dobro do salário de hoje, o dobro, e precisarei dar a meu contato um adiantamento substancial.

— Cinqüenta por cento a partir do dia do exame, e trinta mexicanos de ouro, cinco adiantados, e o resto depois. E mais nada.

Seratard percebera a esperança de André aumentar. Pobre André, começa a perder a classe antiga. Claro que compreendo que uma grande parte do dinheiro ficará grudada em seus dedos, mas não importa, tratar com espiões é um negócio sujo, e André é particularmente sujo, embora muito esperto. E infeliz.

Ele estendeu a mão, e pegou a última fatia do único queijo Brie, que chegara no gelo, a um custo fantástico, no último navio de correspondência.

— Seja paciente com o pobre coitado, Vervene, está bem?

Todos os dias ele esperava descobrir sinais da doença, mas nada surgira até agora; todos os dias André parecia um pouco mais jovem, perdendo a expressão atormentada anterior. Só o seu temperamento se deteriorara.

Mon Dieu! Um encontro particular com Yoshi! E se Babcott pudesse examinar aquele cretino do Anjo, talvez até mesmo curá-lo, por iniciativa minha — não importa que Babcott seja inglês, negociarei esse golpe com Sir William por alguma outra vantagem —, teremos dado um tremendo passo à frente. Ele ergueu seu copo.

— Vervene, mon brave, a sífilis para os ingleses, e Vive Ia France!

 

Angelique estava deitada na cama de dossel, apática, recostada em travesseiros empilhados, nunca mais pálida ou mais etérea. Hoag se acomodara numa cadeira ao lado da cama, cochilando. O sol do fim de tarde rompeu as nuvens por um momento, para animar um dia sombrio, de vento constante. Na baía, os navios puxavam os cabos das âncoras. Meia hora antes — para ela, um minuto ou uma hora eram a mesma coisa — o canhão de sinalização anunciara a iminente chegada do navio de correspondência, despertando-a, não que estivesse de fato dormindo, apenas oscilava entre a consciência e a inconsciência, sem qualquer fronteira definida. Seus olhos vaguearam além de Hoag. Viu a porta para os aposentos de Malcolm... não os seus aposentos, nem os aposentos deles, agora apenas aposentos para outro homem, outro tai-pan...

As lágrimas ressurgiram, em dilúvio.

— Não chore, Angelique — murmurou Hoag, com extrema ternura, cada fibra concentrada, atento a sinais indicadores de algum desastre. — Está tudo bem agora, a vida continua, você vai se recuperar.

Ele segurava a mão dela. Com um lenço, Angelique removeu as lágrimas.

— Eu gostaria de tomar um chá.

— Agora mesmo.

O rosto feio de Hoag se encheu de alívio. Era a primeira vez que ela falava desde a manhã, de forma apropriada, coerente, e os primeiros momentos de volta eram sempre indicadores vitais. Quase dando vivas, Hoag abriu a porta pois embora Angelique falasse num fio de voz, não havia histeria, nem por baixo nem por trás, a luz em seus olhos era boa, o rosto não se achava mais inchado das lágrimas, e a pulsação, que ele contara enquanto segurava sua mão, era firme e forte, noventa e oito por minuto, não mais disparada de uma maneira assustadora.

— Ah Soh — disse ele, em cantonês —, traga um chá fresco para sua ama, mas não fale nada e saia logo em seguida.

Hoag voltou a sentar ao lado da cama.

— Sabe onde está, minha cara?

Angelique limitou-se a fitá-lo.

— Posso fazer algumas perguntas? Se estiver cansada, basta me dizer, e não tenha medo. Lamento, mas é importante para você, não para mim.

— Não tenho medo.

— Sabe onde está?

— Em meus aposentos.

A voz era monótona, os olhos vazios. A preocupação de Hoag aumentou.

— Sabe o que aconteceu?

— Malcolm morreu.

— Sabe por que ele morreu?

— Morreu em nossa noite de núpcias, na cama nupcial, e eu sou a responsável.

Sinos de advertência repicaram no fundo da mente de Hoag.

— Está enganada, Angelique. Malcolm foi morto na Tokaidô, há vários meses — disse ele, a voz calma e firme. — Lamento, mas essa é a verdade. Ele vivia de tempo emprestado desde então. Não foi culpa sua, nunca foi culpa sua, mas sim a vontade de Deus, e posso lhe assegurar uma coisa, com todo o meu coração, nós, Babcott e eu, nunca vimos um homem mais sereno, mais em paz na morte, nunca mesmo.

— Sou culpada.

— A única coisa pela qual você é responsável foi a alegria nos últimos meses de sua vida. Ele a amava, não é mesmo?

— Amava, mas morreu, e...

Angelique quase acrescentou e o outro homem também, nem sequer sei seu nome, mas ele também morreu, e me amava também, mas morreu, e agora Malcolm está morto, e...

— Pare com isso!

A voz ríspida arrancou-a da beira do abismo. Hoag recomeçou a respirar, sabia que aquilo tinha de ser feito, e depressa, ou ela estaria perdida, como outros que já vira antes. Precisava livrá-la do demônio que espreitava em algum lugar de sua mente, prestes a irromper, esperando para dar o bote, para transformá-la numa lunática incoerente ou no mínimo para afetá-la de uma forma radical.

— Sinto muito, mas você tem de entender isso da maneira correta. Só é cul... — em pânico, ele se conteve, antes de usar essa palavra, e trocou-a. — ...responsável pela alegria de Malcolm. Repita para mim. Só é res...

— Sou culpada.

— Diga comigo: só sou responsável por sua alegria — disse Hoag, com extremo cuidado, mais uma ordem, notando com alarme as pupilas anormais, revelando que ela retornava para a beira do abismo.

— Sou cul...

— Responsável, que droga! — exclamou ele, com uma ira simulada. — Diga comigo, só sou responsável por sua alegria! Responsável por sua alegria! Diga isso!

Ele viu o suor aflorar na testa, ela disse outra vez a mesma palavra, ele interrompeu-a, repetiu a palavra correta, “responsável, responsável por sua alegria!”, e mais uma vez ela disse a outra palavra, sendo corrigida, e enquanto isso Ah Soh trouxe o chá, mas nenhum dos dois a viu, e ela fugiu em terror, enquanto Hoag continuava a ordenar, Angelique continuava a recusar, até que, de repente, ela gritou em francês, a voz estridente:

— Está bem, está bem, só sou responsável por sua alegria, mas ainda assim ele está morto, morto, morto... meu Malcolm está morto!

Hoag tinha vontade de abraçá-la, murmurar que estava tudo bem, mas não o fez, julgando que era cedo demais. Sua voz era dura, mas não ameaçadora, e ele disse, em seu bom francês:

— Obrigado, Angelique, mas agora falemos em inglês. Lamento muito, todos lamentamos que seu adorável marido tenha morrido, mas a culpa não é sua. Diga isso!

— Deixe-me em paz! Saia daqui!

— Quando você disser que não foi culpa sua.

— Não... não... deixe-me em paz!

— Quando disser que não foi culpa sua!

Angelique fitou-o, odiando seu algoz, mas depois gritou, estridente:

— Não foi culpa minha, não foi culpa minha, não foi culpa minha! E agora que está satisfeito, trate de sair daqui!

— Depois que me disser que compreende que seu Malcolm morreu, mas você não é absolutamente culpada por isso.

— Saia!

— Diga isso! Vamos, diga logo!

Subitamente, a voz de Angelique tornou-se como o uivo de uma besta selvagem:

— Seu Malcolm morreu, seu Malcolm morreu, morreu, morreu, morreu, mas não é cul... você não é culpada... não é culpada... culpa...

Tão abruptamente quanto começara, a voz se transformou numa lamúria:

— ...não é culpada, não sou culpada, não sou mesmo, oh, meu querido sinto muito, sinto muito, não o quero morto, oh, Santa Mãe, ajude-me, ele está morto, e eu me sinto horrível, oh, Malcolm, por que você morreu, eu o amava tanto, tanto, tanto... oh,Malcolm...

Desta vez ele a abraçou, apertou-a com firmeza, absorvendo os tremores e os soluços profundos. Depois de algum tempo, a voz definhou, os soluços diminuiram, e Angelique mergulhou num sono irrequieto. Ainda abraçando-a, gentilmente, mas com firmeza, suas próprias roupas grudadas no corpo pelo suor, Hoag manteve-se imóvel, até que o sono se tornou profundo. Só então a soltou. Sentia uma dor intensa nas costas, e empertigou-se com cuidado, torturado, os músculos em espasmo. Quando conseguiu relaxar os ombros e o pescoço, ele sentou, para recuperar as forças.

Foi por pouco, pensou Hoag, o prazer por ter vencido desta vez eliminando parte da dor, contemplando-a como ela era, jovem, bela e segura.

Sua memória voltou a Kanagawa, à outra moça, a irmã japonesa do homem que ele operara, igualmente jovem e bela, só que japonesa. Qual era mesmo seu nome? Uki alguma coisa. Salvei seu irmão para que atormentasse ainda mais esta pobre criança. Estou contente por ela ter escapado. Mas será mesmo que escapou? Uma linda mulher. Como era minha pobre e querida esposa. Como foi terrível e insensato da minha parte, como foi insano tirá-la da índia, para uma morte prematura em Londres.

Dharma? Destino? Como esta criança e o pobre Malcolm. Coitados dos dois, coitado de mim. Não, não coitado de mim, pois acabei de salvar uma vida. Você pode ser atarracado e feio, meu velho, pensou ele, verificando o pulso de Angelique, mas, por Deus Todo-Poderoso, é um bom médico, e um bom mentiroso... não, não bom, apenas afortunado. Desta vez.

 

Quinta-feira, 11 de dezembro:

— Boa tarde, Jamie — disse Phillip Tyrer, triste. — Com os cumprimentos de Sir William, aqui estão três cópias do atestado de óbito, uma para você, uma para Angelique, e a outra para Strongbow levar com o corpo. Ele achou que o original deve seguir pela mala diplomática para o gabinete do governador, e ser entregue ao juiz principal de Hong Kong, que providenciará o registro, e depois encaminhará a Sra. Struan. Terrível, não é, mas aconteceu.

— Tem razão.

A correspondência que acabara de chegar se achava empilhada na mesa de Jamie, além de vários documentos sobre negócios que tinham de ser acertados. Ele tinha os olhos injetados de cansaço.

— Como está Angelique?

— Ainda não a vi, mas Hoag passou aqui pela manhã. Disse que é melhor deixá-la sossegada, até ela tomar a iniciativa do primeiro contato, mas acho que está melhor do que ele esperava. Angelique dormiu por mais de quinze horas. Em sua opinião, ela deve estar bastante bem para viajar amanhã, e recomendou que Quanto mais cedo partisse, melhor. Ele também irá, como não podia deixar de ser.

— Quando o Prancing Cloud deve zarpar?

Amanhã. Com a maré noturna. Strongbow estará aqui a qualquer momento para receber as novas ordens. Tem alguma correspondência para enviar?

— Claro que sim. Uma mala diplomática. Avisarei a Sir William. Ainda não posso acreditar que Malcolm esteja morto. Ah, por falar nisso, a audiência sobre a morte de Norbert foi marcada para as cinco horas. Gostaria de jantar comigo depois?

— Obrigado, mas esta noite não será possível. Vamos deixar para amanhã, se tudo correr bem. Confirmaremos depois do desjejum.

Jamie especulou se deveria contar a Tyrer as maquinações de seu amigo samurai Nakama e a reunião com o emprestador de dinheiro local... que Nakama não queria que chegasse ao conhecimento de Tyrer e Sir William. A sugestão de Nakama o intrigara, embora acolhesse com satisfação a oportunidade de conversar diretamente com um homem de negócios, mesmo de importância menor.

A reunião marcada para o dia anterior fora cancelada, é claro. Ele considerara o adiamento para a próxima semana, mas decidira se encontrar com o homem naquela noite... poderia distraí-lo por um momento da tragédia.

Não é da conta de Phillip... e não se esqueça que Phillip e Wee Willie andaram ocultando todos os tipos de informações, quando o acordo era para que tudo fosse partilhado.

— Até mais tarde, Phillip. E obrigado por isto.

— Até mais tarde, Jamie.

Os atestados de óbito eram assinados por Babcott e Hoag. A autópsia confirmara o que já se dissera sobre a morte, causada por hemorragia interna de uma artéria rompida, que cessara de funcionar corretamente, a condição de enfraquecimento podendo ser atribuída, de forma direta, aos ferimentos sofridos durante o incidente sem qualquer provocação na Tokaidô.

Jamie acenou com a cabeça para si mesmo. Os médicos haviam contornado a questão do motivo do rompimento. Não havia razão para ser mais específico, a menos que alguém exigisse uma resposta mais específica. Alguém como Tess Struan, pensou ele, sentindo uma pontada de dor no estômago. É inevitável que ela pergunte e o que Hoag dirá então? O mesmo que me disse esta manhã:

— Na condição de Malcolm, Jamie, tal rompimento poderia ser causado por qualquer um de meia dúzia de movimentos bruscos, como dormir de mau jeito, virar-se de repente porque teve um pesadelo, até mesmo a pressão de um intestino com prisão de ventre.

— Ou mais ainda durante o intercurso sexual?

— Essa é uma das várias possibilidades. Por quê?

— Ora, você conhece Tess Struan muito bem.

— Não vou culpar Angelique, se é isso o que quer saber. Afinal, há necessidade de duas pessoas para o ato, e ambos sabemos que ele fez de tudo para casar, estava perdidamente apaixonado.

— Não estou querendo saber de nada, Doc. Tess vai culpá-la de qualquer maneira, independente do que diga o atestado.

— Concordo, Jamie, mas ela não terá nenhuma ajuda da minha parte. Nem de George. É evidente que um intenso orgasmo causou o rompimento e o subseqüente sono eufórico dos dois encobriu o problema. Isso é lógico, mas nada pode ser provado; e mesmo que fosse possível, ela não tem a menor culpa, absolutamente nenhuma...

Pobre Angelique, ela será culpada, como eu também. Mas não importa no meu caso.

— Quem é? Pode entrar. Ah, olá, Edward.

— Tem um segundo? — perguntou Gornt.

— Claro.

Desde ontem, seu relacionamento com Gornt era diferente. Insistira num tratamento pelo primeiro nome. Por Deus, pensou Jamie, como me enganei em relação a ele!

— Sente-se. Já falei uma dúzia de vezes, mas obrigado de novo... você salvou minha vida.

— Não foi nada. Só estava cumprindo meu dever.

— Graças a Deus por isso. Em que posso ajudá-lo?

— Corre o rumor de que vai enviar o corpo de Malcolm para Hong Kong,

onde será sepultado, e eu gostaria de saber se pode me arrumar uma passagem em seu navio.

— Claro. — Jamie hesitou. — Para apresentar seu relatório a Tyler Brock e Morgan?

Gornt sorriu.

— Não podemos evitar a verdade, Jamie. Levarei o resultado do inquérito, mas cabe a mim lhes contar diretamente, de homem para homem.

— Tem razão. — A tristeza tornou a dominar Jamie. — Lamento que Malcolm não esteja vivo para saber o que você fez por mim, e lamento também que agora ele não possa mais ser seu amigo, pois sei que o admirava muito. Lamento ainda que você trabalhe para eles.

— Depois do encontro, é bem provável que deixe de trabalhar. Só fui emprestado pela Rothwell. Portanto, isso não tem muita importância. Voltarei para Xangai, depois de Hong Kong.

— Se eu puder ajudá-lo por qualquer meio, basta me dizer.

— Não me deve nada, Jamie, pois apenas cumpri meu dever. Mas um homem sempre precisa de um amigo de verdade. Obrigado, e se me encontrar perdido, pedirei sua ajuda. Posso contar com um camarote no Prancing Cloud?

— O navio vai zarpar amanhã de noite.

— A Sra. Struan também irá com ele? É difícil pensar em Malcolm como morto, não é?

— É, sim. O Dr. Hoag diz que ela terá condições de viajar até amanhã.

— Tremenda falta de sorte. Terrível. Obrigado, e até mais tarde.

Jamie observou-o sair, com uma estranha inquietação. Nada que pudesse definir. Acho que apenas me sinto tão desorientado que qualquer coisa me parece esquisita. Por Deus, até Hoag se comportou de um modo insólito, mas também sem nada de específico.

Ele se forçou a trabalhar por algum tempo e depois, precisando de alguns docurnentos na mesa de Malcolm, levantou-se, foi andando pelo corredor, até a sala do tai-pan. Ergueu a mão para bater, num gesto automático. Desolado, não o fez, abriu a porta e parou no meio de um passo. Angelique sentava-se na cadeira de Malcolm, por trás da mesa de Malcolm. Heavenly Skye, sentado no outro lado, estava dizendo:

— Pelo que sei...

Ele virou a cabeça.

— Olá, Jamie — disse Angelique, a voz calma. O vestido escuro realçava a textura de alabastro da pele, os cabelos erguidos acima do pescoço longo, os olhos claros, uma tênue cor natural nos lábios. — Como se sente?

— Ahn... estou bem — balbuciou Jamie, perplexo com seu controle e nova beleza... diferente de antes, agora um tanto distante, inacessível, mas ainda mais atraente. — Desculpe, mas eu não esperava... O Dr. Hoag disse para não incomodá-la até que me chamasse. Como se sente agora?

— Pedi a ele para fazer isso. Eu... estou bem, obrigada. Havia algumas coisas que eu queria acertar esta manhã. Fiquei desolada ao saber... do seu encontro fatídico com Norbert Greyforth. Pobre Jamie, saiu todo machucado... não sofreu nada mais grave, não é?

— Não, obrigado. — Jamie sentia-se cada vez mais desconcertado. A voz de Angelique era calma, calma demais, e havia nela uma certa dignidade, que no momento ele não podia definir. — Já soube que Edward Gornt salvou minha vida?

— Já, sim. Ele próprio me contou, há poucos minutos... para ser mais precisa, não foi bem assim. Ele veio apresentar suas condolências e o recebi. Foi o Sr. Skye quem me falou sobre sua bravura. E sobre o duelo.

— Ahn...

Jamie teve vontade de amaldiçoar Skye por sua interferência.

— Pobre Malcolm... — murmurou Angelique. — Fico satisfeita por não ter sabido antes dessa insensatez, pois a teria impedido, de alguma forma. Por sorte, Edward estava lá. Como algumas pessoas podem ser tão horríveis?

— Tem razão, mas o mais importante agora é: como você está realmente?

— Não muito bem, nem muito mal. Sinto-me vazia.

— Essa é a palavra certa. Também me sinto vazio.

Jamie olhou para Heavenly, que sorriu, neutro. O silêncio foi se tornando opressivo. Contrafeito, ele percebeu que ambos queriam que se retirasse.

— Posso ajudá-la em alguma coisa?

— Não no momento, Jamie. Obrigada.

Ele acenou com a cabeça, pensativo.

— Preciso pegar alguns documentos.

— À vontade, por favor.

Angelique recostou-se na cadeira, que a ofuscava, calma, sob controle. Embaraçado, Jamie pôs-se a vasculhar as bandejas de Entrada e Saída, decidiu levar tudo, pôs uma em cima da outra.

— Se precisar de alguma coisa... basta me chamar.

— Depois que o Sr. Skye e eu terminarmos, podemos conversar por alguns minutos, se você estiver livre.

— Quando quiser. Toque aquela sineta.

Skye interveio:

— Jamie, por acaso já recebeu o atestado de óbito?

— Já, sim.

— Posso ver uma cópia, por favor?

Jamie fitou-o nos olhos.

— Com que propósito?

— Para examiná-lo.

Angelique disse:

— Mal... meu marido havia contratado os serviços do Sr. Skye... sabia disso, não é, Jamie?

— Sabia. — Jamie percebera como ela trocara de Malcolm para meu marido, e viu Heavenly balançar a cabeça, em aprovação, o que acionou um sinal de perigo em sua mente. — E daí?

Skye explicou, a voz suave:

— Quando soube da desastrosa notícia, senti-me na obrigação de oferecer meus serviços à viúva... — A palavra foi realçada de forma imperceptível. —...que aceitou. O tai-pan pedira-me para realizar uma certa pesquisa, e achei que a Sra. Struan poderia desejar que eu continuasse.

— Certo.

Jamie acenou com a cabeça, polido, e começou a se retirar.

— E o atestado de óbito, Jamie?

— O que deseja fazer, Angelique... Sra. Struan?

— O Sr. Skye é meu advogado agora, Jamie. Ele compreende essas coisas, o que não acontece comigo, e concordou em me representar. — A voz era incisiva, sem qualquer emoção. — Eu gostaria, por favor, que lhe prestasse toda ajuda que ele precisar.

— Claro. Se quiser me acompanhar, Heavenly...

Jamie saiu, foi para sua sala, ficou de pé atrás da mesa, fingindo procurar entre os papéis que guardara na gaveta, por segurança.

— Pode fechar a porta, por favor? Tem uma aragem entrando.

O homenzinho obedeceu, e Jamie acrescentou, mantendo a voz baixa, mas sem qualquer possibilidade de equívoco no tom ameaçador:

— Escute, se você a enganar, fizer qualquer coisa que não deve, cobrar demais, vou arrebentá-lo todo.

O homenzinho chegou mais perto, os óculos rachados e sujos.

— Nunca fiz isso com nenhum cliente, em toda a minha vida — disse ele, Slbilando como uma cobra. — Umas poucas contas grandes, é verdade, mas nunca mais do que o mercado podia absorver. Aquela mulher precisa de ajuda, e sou eu quem pode dar, não você.

— Posso, e darei, por Deus!

— Não concordo. Malcolm me contou que a outra Sra. Struan, a mulher em Hong Kong, o despediu. Verdade ou mentira? E é verdade ou mentira que você e Malcolm vinham recebendo cartas furiosas dela, até ameaçadoras, há semanas, cartas paranóicas contra minha cliente e o noivado, com todos os tipos de acusações infundadas? É verdade ou mentira, pelo amor de Deus, que aquela moça precisa de amigos?

— Concordo que ela precisa de amigos, e não me oponho a que tenha um advogado, mas quero ter certeza de que você agirá de uma maneira correta.

— Nunca enganei um cliente em toda a minha vida. Posso ser um advogado morto de fome, mas sou muito bom, Jamie, e quero lembrá-lo de que estarmos do mesmo lado. Ela precisa de amigos, Malcolm a amava, e você era amigo de Malcolm... ele me falou sobre as cartas pelas quais você se arriscaria à forca.

— Não importa o que...

— Não quero discutir com você, Jamie. Ela é minha cliente, e jurei que faria o melhor que puder para ajudá-la. O atestado de óbito, por favor.

Irritado, Jamie abriu a gaveta, entregou uma cópia.

— Obrigado... ah, três, hem? Uma para os seus arquivos, outra para acompanhar o corpo, e a terceira para ela. Absolutamente correto, embora eu me sinta surpreso por terem se lembrado dela. O original segue para Hong Kong por mensageiro especial. — Heavenly examinou o documento. — Deus Todo-Pode-roso!

— Qual é o problema?

— Hoag e Babcott. Eles podem ser bons médicos, mas são um desastre como testemunhas de defesa. Merda! Eu deveria ter sido informado antes que eles escrevessem isto... qualquer idiota poderia lhes indicar uma redação melhor.

— Mas do que está falando?

— Assassinato ou, pelo menos, uma acusação de assassinato.

— Ficou louco?

— Não seria a primeira vez para Tess Struan. Lembra do contramestre? Todos em Hong Kong sabiam que foi um acidente, mas ela acusou-o de assassinato, o pobre coitado foi considerado culpado de homicídio involuntário e condenado a dez anos!

— Foi o júri quem o considerou culpado, não Tess, e...

— Mas foi ela quem apresentou a acusação! — retrucou Skye, mantendo a voz baixa. — E também vai apresentar uma acusação neste caso. Se isto for lido no tribunal, num processo criminal ou cível, nosso advogado oponente alegaria que ele morreu fodendo... por favor, perdoe minha vulgaridade... “e a outra metade do ato está sentada ali, no banco dos réus, senhoras e senhores do júri, uma mulher cujo pai é um criminoso fugitivo, cujo tio se encontra numa prisão francesa, uma aventureira sem dinheiro, uma Jezebel que seduziu insidiosamente aquele pobre rapaz, menor de idade, levando-o ao casamento, e depois, senhoras e senhores do júri, com uma perfídia deliberada, seduziu-o a uma morte prematura... com uma perfídia deliberada... sabendo muito bem que os ferimentos do pobre rapaz fariam o trabalho por ela!” Verdade ou mentira?

Jamie sentou, mais pálido do que antes. As palavras de Hoag afloraram e sua mente.

— O que pretende fazer?

— Primeiro, tentarei mudar esta redação. Não creio que eles concordem, mas tentarei. Tem o testamento de Malcolm?

Jamie sacudiu a cabeça.

— Ele nunca me falou num testamento.

— Eu disse a ele que era importante fazer um testamento, quando me procurou pela primeira vez... isso é rotina. Tem certeza?

— Sei que não tenho nenhum testamento, não em nosso cofre.

Jamie franziu o rosto. Malcolm teria feito um testamento? Se eu estivesse para casar trataria de fazê-lo. Espere um pouco, fui noivo de Maureen por anos, e jamais cuidei disso. Por Deus, eu gostaria de saber como ela está, o que pensou ao receber minha carta.

— Ele nunca me mencionou um testamento. Falou alguma coisa a respeito com Angelique?

— Não. Essa foi minha primeira pergunta. Talvez ele tenha feito um testamento sem que vocês soubessem. Ele tinha um cofre particular ou algum lugar para guardar seus documentos pessoais?

— Não. Se tivesse, seria em Hong Kong. Mas há um pequeno cofre em seus aposentos.

— Vamos examiná-lo.

— Não podemos fazer isso.

As palavras saíram ríspidas e formais:

— A Sra. Angelique Struan era sua esposa legal, e agora é sua viúva, a herdeira imediata de todos os seus bens materiais, a menos que seu testamento enuncie o contrário. Se não há testamento, então ela herda tudo, depois da homologação pelo tribunal, e do pagamento dos honorários legais e impostos. Vamos dar uma olhada no cofre.

— Não podemos presu...

— Devemos resolver isso entre nós três, como amigos, ou providenciarei uma ordem judicial formal, através de Sir William, ainda hoje, para o seqüestro de tudo, de todos os seus documentos, de todos os documentos da Struan, em Iocoama e Hong Kong, para a busca de um testamento, a que a minha cliente tem direito. — Seu olhar era inflexível. — Desculpe, meu velho, mas tem de ser assim. Certo?

— Vamos perguntar a Angelique.

Inseguro, sabendo que nunca poderia permitir que alguém de fora examinasse os documentos e registros da Casa Nobre, Jamie seguiu Skye de volta à sala do tai-pan. Por que ainda penso assim? — perguntou-se ele, irritado. Deve ser porque é mesmo a sala do tai-pan. Mas quem é o novo tai-pan? Oh, Deus, que confusão!

Angelique continuava sentada onde a haviam deixado. Impassível, ela escutou Skye.

— Não há necessidade de nos acompanhar, Sra. Struan. Pode ter certeza de que agirei em seu nome.

— Obrigada, mas eu gostaria de estar presente.

Eles seguiram-na pela escada imponente, a primeira vez para Skye, que tentou não se mostrar impressionado demais pelo lustre espetacular e os óleos valiosos. Jamie abriu a porta da suíte do tai-pan. Ardia ali um agradável fogo de carvão. A cama de dossel estava arrumada, à espera. Escrivaninha impecável, sem papéis em cima. Ah Tok agachava-se num canto próximo da porta, murmurando, em desespero, parecendo ainda menor agora, mais feia, uma anciã. Não lhes prestou a menor atenção. Angelique estremeceu, seguiu os dois, foi sentar na cadeira de encosto alto de Malcolm, de frente para eles. Observando-os atentamente.

O pequeno cofre de ferro na parede ficava atrás de um quadro a óleo, outro Aristotle Quance. Skye sorriu. O quadro mostrava uma menina chinesa carregando no colo uma criança loura, de pele clara, com um rabicho, um menino, tendo a fundo uma paisagem de Hong Kong. Ele já ouvira falar do quadro, mas nunca o vira. Quance era o decano dos pintores que haviam feito a crônica de Macau e dos primeiros tempos de Hong Kong, um irlandês que ali vivera por muitos anos e morrera há poucos anos, em Macau, onde fora sepultado. Era também um voraz bêbado, jogador e libertino, mas velho amigo e devotado a Dirk Struan. O rumor era de que a moça era a famosa May-may, a amante chinesa de Dirk, a que morrera com ele no tufão de 1842, em seus braços, e a criança o primogénito dos dois.

Ele olhou para Angelique, que observava Jamie, impassível, procurando num molho de chaves. Especulou se ela sabia dos primos eurasianos de Malcolm e de seu tio, o compradore Gordon Chen — filho de Dirk com outra amante —, que segundo as intrigas de Hong Kong “conhecia mais segredos e tinha mais taéis de ouro do que um boi tinha pêlos”. O relógio no consolo da lareira bateu três horas.

— Quem mais tem chaves, Jamie? — indagou Skye.

— Apenas eu e... e o tai-pan.

— Onde estão as dele?

— Não sei. Presumo que ainda... ainda se encontram a bordo.

A porta do cofre foi aberta. Umas poucas cartas, todas com a letra de Tess Struan, exceto uma com a letra de Malcolm, aparentemente inacabada, uma pequena bolsa de camurça e uma carteira. A carteira continha uns poucos daguerreótipos desbotados de seu pai e mãe, espiando contrafeitos para a câmera, o sinete de Malcolm, uns poucos documentos... promissórias, uma lista de dívidas e devedores. Heavenly folheou tudo.

— Seriam dívidas de jogo que ele tinha, Jamie?

— Não faço a menor idéia.

— Dois mil, quatrocentos e vinte guinéus. Uma quantia considerável para um jovem emprestar ou dever. Reconhece algum destes nomes?

— Apenas este. Jamie fitou-o.

— Madame Emma Richaud? Quinhentos guinéus.

Angelique explicou:

— É minha tia. Ela e tio Michel me criaram, Sr. Skye. Chamava minha tia de mamãe, pois ela sempre foi uma mãe para mim, já que a minha morreu quando eu era pequena. Precisavam de ajuda, e Mal... Malcolm teve a gentileza de lhes enviar esse dinheiro. Pedi a ele.

— Jamie, eu gostaria de ter uma cópia desta lista, por favor. Você é obrigado a manter esses documentos em salvaguarda.

O advogado estendeu a mão para a meia dúzia de cartas, mas Jamie se antecipou.

— Eu diria que estas eram particulares.

— Particulares para quem, Jamie?

— Para ele.

— Obterei uma ordem judicial para vê-las e mandar copiá-las, se considerar que são importantes.

— Pode fazer isso — respondeu Jamie, rangendo os dentes, furioso consigo mesmo por ter concordado em abrir o cofre, antes de pedir o conselho de Sir William.

Angelique interveio:

— Posso vê-las, Jamie, por favor? Creio que são parte dos pertences de meu marido. No momento, parecem bem poucos.

A voz era tão gentil, tão triste, sem qualquer insinuação de súplica, que ele. suspirou, e disse a si mesmo: Rapaz, já está todo encrencado, não faz mais diferença. Sir William decidirá sobre a legalidade. E, de repente, ele voltou ao anoitecer do dia anterior, no cais, os três alegres e descontraídos, rindo, confiantes, as futuras nuvens de tempestade em Hong Kong parecendo muito distantes, e depois os dois no cúter, a caminho da noite de núpcias, com Malcolm dizendo:

— Obrigado, meu bom amigo. Guarde a nossa retaguarda, pois vamos precisar. Promete?

Ele prometera, jurara que faria isso, e também protegeria Angelique, desejando a ambos uma vida longa e feliz, acenara em despedida, o último na praia. Como Malcolm estava certo! Tivera uma premonição?

— Tome aqui — disse ele, gentilmente.

Sem olhar para as cartas, Jamie largou as cartas no colo de Angelique, que cruzou as mãos, tornou a ficar imóvel. Uma brisa agitou uma mecha de cabelos, perto da têmpora. Afora isso, ela parecia uma estátua.

O tinido de moedas atraiu a atenção de Jamie. Skye abrira a bolsinha de camurça. Continha guinéus de ouro e notas do Banco da Inglaterra. Ele contou, em voz alta. Os olhos de Angelique não se desviaram do cofre.

— Duzentos e sessenta e três guinéus. — Skye guardou tudo de volta na bolsinha. — Este dinheiro deve ser entregue imediatamente à Sra. Struan... ela dará um recibo, é claro.

Jamie disse:

— Talvez seja melhor que nós... eu e você, Heavenly... procuremos Sir Willian. Nunca estive envolvido em nada assim antes, estou fora da minha experiência... pode compreender, não é, Angelique?

— Também estou fora da minha experiência, jamie, à deriva. Sei que me Malcolm era seu amigo e que você era amigo dele, e meu também. Foi o que ele me disse, muitas vezes. Por favor, faça o que julgar melhor.

— Vamos falar com ele agora, Jamie — propôs Skye. — Quanto mais cedo, melhor. Ele pode decidir sobre a propriedade do dinheiro. Enquanto isso...

Ele se adiantou para entregar a bolsinha a Angelique, mas ela disse:

— Levem com vocês, levem tudo, isto também. — Ela estendeu as cartas — Basta me deixarem a fotografia. Obrigada, Sr. Skye. E agradeço a você também meu caro Jamie. Tornaremos a falar quando voltarem.

Os dois esperaram que ela se levantasse, mas Angelique não fez qualquer movimento.

— Não vai continuar aqui, não é?—indagou Jamie, perturbado, pois parecia macabro.

— Claro que vou. Passei tanto tempo aqui, nesta sala, que é... é acolhedora para mim. A porta para a minha suíte está aberta, se eu... se eu precisar descansar Mas, por favor, tirem Ah Tok daqui, a pobre coitada, e digam a ela para não voltar A pobre mulher precisa de ajuda. Peçam ao Dr. Hoag para vê-la.

— Quer que fechemos a porta?

— A porta? Não importa... podem fechar, se quiserem.

Eles o fizeram e entregaram Ah Tok aos cuidados de Chen, que ainda se encontrava transtornado, em lágrimas. Saíram para a High Street, os dois aliviados por estarem outra vez ao ar livre, mas absortos em seus pensamentos. Skye planejava, analisava os atoleiros pela frente. Jamie sentia-se incapaz de planejar qualquer coisa, o cérebro consumido pela tragédia e preocupação com o futuro da Casa Nobre, sem saber por quê.

Seria por ela? — perguntou a si mesmo, alheio ao passeio, ao vento forte, as ondas quebrando na praia de seixos, ao cheiro de algas em decomposição. A tristeza lhe convém. Seria possível que...

Ela é uma mulher agora! É essa a diferença, possui uma profundidade e equilíbrio que não existiam antes. É uma mulher, não mais uma moça. É por causa da catástrofe ou porque deixou de ser virgem... a mudança mística que dizem que ocorre ou se supõe que acontece na transmutação? Ou as duas coisas, talvez com o dedo de Deus ajudando-a a se ajustar?

— Por Deus — disse ele, incapaz de se conter, pensando em voz alta — o que acontece se ela tiver um filho?

— Pelo bem dela, rezo para que isso aconteça — arrematou o advogado.

 

Assim que eles se retiraram, Angelique fechou os olhos, respirou fundo. Logo recuperou o controle, levantou-se, foi trancar a porta, e depois abriu a que dava para sua suíte. Sua cama estava feita, havia flores frescas num vaso, na penteadeira. Ela voltou à suíte de Malcolm, trancou sua porta, tornou a sentar na cadeira.

Só então olhou para a fotografia... a primeira dos pais de Malcolm que já vira. No verso, havia a data, 17 de outubro de 1861. No ano passado, Culum Struam parecia muito mais velho que sua idade, quarenta e dois anos, enquanto Tess não parecia velha nem jovem, os olhos claros fixados em Angelique, a linha fina dos lábios dominante.

Tess tinha trinta e sete anos. Como vou parecer quando chegar à sua idade, daqui a dezenove anos, mais do que o dobro da minha idade hoje? Terei a mesma expressão dura, que proclama um casamento sem amor, e opressivos fardos de família.— odiando seu pai e os irmãos, eles também a odiando, os dois lados tentando se arruinar mutuamente —, que no seu caso começaram de maneira tão romântica, fugindo para casar no mar, como nós fizemos... mas, por Deus, que diferença!

Ela olhou pela janela, para a baía e os navios, um vapor mercante deixando o porto... capitão e oficiais na ponte de comando, o navio de correspondência cercado por tênderes, o cúter da Struan junto ao Prancing Cloud. Elegante, ansioso por levantar âncora, içar as velas, enfrentar os ventos mais furiosos. Era o que Malcolm sempre dizia sobre seus clíperes, pensou ela, aqueles clíperes velejam com os ventos mais fortes.

Angelique fechou os olhos, esfregou-os, tornou a olhar. Não havia equívoco. Durante o dia inteiro seus olhos haviam demonstrado inesperada e supreendente lucidez de visão. Percebera-o no momento em que despertara naquela manhã, todos os detalhes do quarto em foco, as cortinas, as flores mortas no vaso, moscas circulando, quatro moscas. Segundo depois, ouvira uma batida na porta, e a voz de Ah Soh:

— Miss? O homem da medicina quer ver a miss.

Sua audição também parecia mais intensa, o som dos passos leves de Ah Soh arrancando-a do sono.

Ainda mais estranho era a lucidez de sua mente, todo o peso parecia ter se dissolvido, não a tristeza, a maneira objetiva com que considerava problema após problema, sem consternação, sem jamais misturá-los, sugerindo soluções, sem o medo habitual, nem mesmo um pouco. A preocupação, sim, mas isso era apenas sensatez, mas não mais o pânico nauseante, a indecisão.

Podia agora recordar aquele dia e aquela noite em todos os detalhes, sem uma pressão opressiva, inumana e insensata. Tornei-me insensível? Para sempre? É correto o que o Dr. Hoag disse esta manhã?

— Não se preocupe, você está curada de qualquer problema. Desde que possa chorar de vez em quando, e não ter medo de voltar no tempo, se é isso o que sua mente deseja, então sua vida correrá bem, melhor a cada dia. Tem juventude e saúde, a vida se estende à sua frente...

Mon Dieu, quantos chavões os médicos dizem! Depois de Hoag, Babcott. Mais da mesma coisa. Ele se mostrara gentil e terno, uma ternura que poderia se transformar em ardor, se ela permitisse. Mas chega de paixão, pensou ela, pelo menos enquanto eu não estiver livre. E segura. Segura e livre.

Seu corpo estava repousado. Não havia dor de cabeça lancinante, nem mesmo pequena, nenhum clamor interior. Sabendo de imediato onde se encontrava, quem era e por que se achava ali, por que sozinha, e o que acontecera. Experimentando de novo, observando a si mesma no pesadelo desperta, consciente de tudo, mas não envolvida, não envolvida de fato: observando a si mesma sendo acordada pelo grito estridente de Chen, arrancada do sono, vendo a si mesma em pânico, sacudindo Malcolm para acordá-lo também, vendo o sangue em suas pernas, horrorizada por um momento, com medo de ter se cortado demais, depois compreendendo que era o sangue dele, que ele estava morto, morto, morto.

Saltando da cama nua, sem percebê-lo, apavorada, gritando, não acreditando no que olhos e ouvidos lhe diziam, rezando para que fosse um sonho, outras pessoas entrando correndo no camarote, Ah Soh, Ah Tok, alguém cobrindo-a, vozes, gritos, perguntas e mais perguntas, até o camarote sufocá-la na escuridão e terror. Depois, na ponte de comando, congelando e ardendo, perguntas sem respostas, sua boca trancada, a cabeça em fogo, o cheiro de sangue, o gosto de sangue, sangue em sua virilha, sangue nas mãos, nos cabelos, o estômago se rebelando.

Ah Soh ajudando-a a entrar num banho, a água fria, nunca bastante quente para limpá-la, até sua morte, mais náusea, e depois o veneno ofuscante a dominá-la, a afogá-la, até que se vira gritando para Hoag, uma imagem de feiúra, feio demais.

Ela estremeceu. Terei essa aparência quando ficar velha? Quão velha é ser velha? Não muito, com certeza. O que exatamente dissera a Hoag não podia recordar, nem mesmo agora, apenas que o veneno fora expelido, e com a torrente viera o sono bom.

Tenho muito que agradecer a Hoag, e muito para detestar em Babcott... pois sua poção para dormir começou a me mergulhar no desespero. Não tenho mais medo, não estou mais desesperada, não compreendo por que, mas é verdade... graças a Malcolm e a Hoag, àquele pequeno advogado fedorento, com um hálito insuportável, e a André. André ainda é sensato, ainda é meu confidente, e assim permanecerá, contanto que eu lhe pague. Ele é um chantagista, sem dúvida. Mas isso não importa. Para ajudar a si mesmo, ele tem de me proteger, e no final das contas há um Deus no céu, e os caminhos de Deus podem ser lentos, mas não falham.

Posso tratar da minha vida agora, eu acho, se for cuidadosa.

Madona, concordamos há muito tempo que eu tinha de ajudar a mim mesma, não podia ser dependente de um homem, ou homens, como o resto das minhas pobres irmãs. Sei que sou uma pecadora. Malcolm foi de fato o único que já conheci que desejei de verdade, amei de verdade, com quem quis casar, amei como só uma adolescente tola pode amar. O primeiro amor é o verdadeiro amor? Ou o amor é uma emoção adulta? Sou adulta agora. Meu amor por Malcolm era adulto. Acho que sim e espero que sim.

Mas meu querido morreu. Aceito isso. E agora?

Tess? Hong Kong? André? Gornt? O lar? Tess?

Uma coisa de cada vez.

Primeiro, meu querido deve ser posto para repousar. De forma apropriada.

Ela olhou para o cofre, a porta fechada, mas não trancada. Levantou-se, abriu toda a porta, estendeu a mão, comprimiu uma pequena e oculta depressão no funo. Parte da parede da esquerda se abriu. Na cavidade, havia alguns papéis, outro sinete pessoal, outra bolsa com moedas e notas. Um vidro do medicamento dele. Uma caixa pequena. Uma semana antes, Malcolm lhe mostrara a cavidade secreta, sorrindo.

— Não há muita coisa para esconder por enquanto, pois todas as coisas importantes ficaram em Hong Kong, com a mãe, os documentos sobre ser o tai-pan, uma cópia do testamento do pai, o testamento da mãe, o sinete do tai-pan, assim por diante. Isto... — Ele dera de ombros, os olhos brilhando. — ...é para miudezas, os presentes secretos que eu possa lhe dar, se for muito boa, e me amar até a loucura...

Angelique abriu a caixa. Um anel de ouro, com rubis. Não muito valioso, mas o suficiente. Os documentos eram dos negócios, listas de números, que ela não entendia.

E nada de testamento.

Droga, pensou ela, sem raiva. Tornaria o futuro mais simples. Fora o que André ressaltara.

Ele fora chamado por Vargas naquela manhã, a seu pedido, da lista de pessoas que haviam comparecido e deixado cartões.

— Monsieur Vargas, primeiro meu alfaiate, preciso de roupas de luto com urgência. Depois, monsieur André e o Sr. Skye... não há necessidade de incomodar o Sr. McFay, até eu mandar chamá-lo. Para qualquer outra pessoa, estou descansando. — Uma pausa, e ela acrescentara, com o maior cuidado: — E, monsieur, cuide disso tudo com a discrição que meu marido disse que possui. Receberei a todos na sala do tai-pan.

Ela percebera um brilho nos olhos de Vargas ao “tai-pan”, mas ele nada dissera, e por isso não houvera necessidade de ser mais firme. A sala fora escolhida com todo cuidado, e quando o velho alfaiate chegara, com Vargas, Angelique dissera:

— Por favor, pergunte quanto tempo levaria para fazer um vestido de luto, preto, como este.

O que ela usava era de mangas compridas, gola alta, azul marinho.

— Ele diz que três dias. Luto, senhora? A cor para o luto na China é branco.

— Eu quero preto. De seda. E amanhã.

— Três dias.

— Se ele levar meu outro vestido, o azul claro que fez para mim, e tingi-lo de preto, quanto tempo?

— Ele diz que dois dias.

— Diga a ele que a viúva do tai-pan da Casa Nobre exige um vestido preto amanhã. Amanhã de manhã.

O velho chinês suspirara, fizera uma reverência e se retirara. Depois, Vargas anunciara André Poncin.

— Olá, André.

— Olá. Nunca a vi mais linda.

Era uma declaração, não um galanteio.

— Preciso de conselho, depressa, e confidencial. Devemos ser rápidos e sensatos. Meu casamento é legal?

— Achamos que sim, segundo a lei naval britânica. Não temos certeza sob a lei francesa. Ambas são áreas meio indefinidas.

— Não entendi.

— Sujeitas a contestações. Se houvesse uma disputa entre advogados franceses e britânicos, a lei britânica prevaleceria. O fato de ele ser um menor, os dois para ser mais preciso, embora neste caso ele seja mais importante, somado à sua desobediência às determinações por escrito da tutora legal, significa que a cerimônia de casamento provavelmente será contestada.

— Onde? Aqui? Por quem?

— Por Tess Struan. Quem mais? — dissera André, zombeteiro.

— A morte de Malcolm não tem o menor significado para você, não é?

— Ao contrário, complicou demais a minha vida, madame — respondera ele, usando o título pela primeira vez. — É uma complicação séria para nós dois.

Angelique resolvera sentar por trás da mesa de Malcolm, na sala de Malcolm, pois seu futuro estava em jogo, e precisava ter cem por cento da astúcia daquele homem, e mais ainda. Em sua suíte, poderia se sentir menos confiante, embora costumasse se apresentar da melhor forma possível em seu boudoir. É por isso que os homens têm escritórios, e as mulheres ficam limitadas à chaise e à feminilidade de um semiquarto?

— E como se pode descomplicar a situação, André?

— Já descomplicou a primeira complicação.

Quando ela fugira em desespero para a legação, André a interceptara, quase a arrastara para seu escritório, critidando-a assim que a porta fora fechada, sacudindo-a, furioso, e dizendo: Sua idiota, você enlouqueceu? Volte para a casa dele e fique lá! Não pode se esconder aqui ou vai se arruinar! Volte para lá, sua tola! Conversaremos mais tarde e, pelo amor de Deus, não assine coisa alguma, não concorde com nada! Vamos, vá logo!

— Você tinha toda razão, André — dissera ela, sem qualquer ressentimento contra sua veemência, compreendendo tudo agora. — Obrigada por me falar de maneira que eu pudesse entender, penetrando minha angústia. Essa foi a primeira complicação. Qual é a seguinte?

As rugas na testa de André se aprofundaram. Aquela era uma nova Angelique, uma quantidade desconhecida, inesperada. Ele testemunhara uma mudança assim duas vezes antes, em homens, nunca em uma mulher. Ambos eram espiões inimigos, libertados após extrema tortura. Os médicos não tinham outra explicação que não dizer que os homens não mais sentiam medo, não mais temiam a tortura nem a morte. Haviam sido arrastados à beira do abismo, sobreviveram, e agora estavam convencidos, acima e além de qualquer dúvida, que sobreviveriam de novo, independente do que lhes fizessem, ou morreriam, e isso já não importaya mais. Os médicos disseram que a própria morte nada significaria, até o dia, semanas, meses ou anos depois, em que o terror tornasse a erguer sua vil cabeça, como era inevitável.

Pobre Angelique, sentada ali, tão confiante, tão pretensiosa... Virá o dia em tudo vai transbordar e destruí-la. Vai conseguir se sobrepor ou acabará num hospício?

Pessoalmente, ele poderia apostar que tantas calamidades seriam demais para uma jovem assim: a fuga do pai, o roubo de seu dote, o estupro e a gravidez, a morte do estuprador, e agora essa nova e terrível morte, cujos detalhes ele e toda a colônia conheciam. André e Seratard haviam esperado que a mente de Angelique se dissolvesse, há meses, ainda esperavam que isso acontecesse, nenhum dos dois acreditando em Hoag, quando o interrrogaram.

Se Hoag pôde realizar esse milagre, pensou ele, irritado, por que os médicos não podem curar a maldita doença inglesa? Não é justo.

— A vida não é justa, não é?

— Não — concordou Angelique —, nem um pouco.

— Ele deixou um testamento, indicando-a como sua herdeira?

— Não sei. Malcolm nunca me falou a respeito.

— Angelique, no futuro, refira-se a ele como seu marido e a si mesma como a viúva.

— Por quê?

— Para ajudar a firmar sua pretensão à herança.

Ele a vira acenar com a cabeça e se impressionara com seu controle. É um ato de Deus que ela possa parecer tão tranqüila?

— Se não houver testamento, isso faz alguma diferença?

— É o que estamos tentando descobrir. Seria melhor se houvesse um testamento designando-a como herdeira. Agora, você deve voltar com... com os restos mortais para Hong Kong. Esteja preparada para a hostilidade da mãe... em público, tente se mostrar amiga. Deve comparecer ao funeral, vestida corretamente, é claro. — Depois, ele acrescentara: — Talvez Henri possa lhe dar uma carta para o nosso embaixador. Já o conhece?

— Já, sim. Monsieur De Geroire. Henri “poderia”? Que tipo de carta ele Poderia escrever para mim?

— Se fosse possível persuadir Henri, com sua recomendação você poderia ficar sob a proteção de De Geroire, como uma tutelada do Estado. Estou convencido de que é legalmente a viúva do falecido tai-pan, Malcolm Struan. Se Henri nos apoiasse com vigor, essa poderia se tornar uma política de Estado.

— Quer dizer que preciso de uma grande proteção?

— Eu tenho certeza disso, o que já não acontece com Henri.

Angelique suspirara. Fora isso também o que ela concluíra. Mas política de Estado? Era uma idéia nova, uma possibilidade em que não pensara. Política de -Estado representaria a proteção da França. Qualquer coisa valeria isso... não, não qualquer coisa.

— O que eu poderia fazer para persuadir Henri?

— Posso fazer isso por você. Ou pelo menos tentar.

— Pois então comece logo. E me avise esta noite o que posso fazer em retribuição. Antes do jantar seria conveniente ou amanhã de manhã... como você preferir.

Não houvera necessidade de dizer mais. Amanhã seria melhor, André informara, retirando-se em seguida. Antes da chegada da pessoa seguinte na lista, Skye, ela se recostara na cadeira, sorrira para o teto, especulando sobre o preço.

Tutelada do Estado francês? Gostava da idéia, pois sabia que precisaria de toda a ajuda que pudesse obter para combater a ogra de Hong Kong...

E agora, enroscada na outra cadeira de Malcolm, na suíte do tai-pan, a porta trancada por dentro, ela apreciou a idéia ainda mais, e outra vez especulou sobre o preço. Seria alto. As moedas de ouro secretas serão o suficiente para começar, depois o anel de rubis, e agora tenho um sinete, o sinete de Malcolm.

Ela guardou tudo de volta, fechou o compartimento secreto.

Contente com o progresso efetuado no primeiro dia de sua nova vida, fechou os olhos e mergulhou num sono sem sonhos, até que uma batida na porta a despertou. Eram quase quatro e meia.

— Quem é, por favor?

— Jamie, Angelique.

Uma corrente de expectativa a percorreu. Mantenha a calma, advertiu a si mesma, enquanto destrancava a porta, o gelo que você atravessa é extremamente fino e as águas por baixo são letais.

— Entre, por favor, meu caro Jamie. — Outra vez Angelique sentou na cadeira do marido, gesticulando para que ele se instalasse na cadeira que ela sempre ocupara antes. A mudança agradou-a. — Você parece muito aflito, triste demais.

— Ainda não consegui me acostumar à idéia... nem com as mudanças, Angelique.

— Posso compreender. É mesmo muito difícil.

— Você também mudou. Posso... posso dizer como parece maravilhosa, tão forte... ora, sabe como é.

— É justamente esse o problema, meu caro Jamie, não sei. Só sei o que aconteceu, e posso aceitar, já aceitei. Minhas lágrimas... creio que devo ter derramado todas as lágrimas da minha vida. Por isso, pelo menos no momento-não há mais lágrimas. Conversaram com Sir William?

— Conversamos. Skye disse que voltaria por volta das seis horas, se for conveniente para você.

Ele a viu balançar a cabeça, distraída.

— Não gosta dele, não é, Jamie?

— Não gosto de nenhum advogado. Eles sempre criam problemas, embora Skye não seja um mau sujeito. E creio que a servirá direito. Mas se ficar preocupada, trate de me avisar. Mal... Malcolm gostava dele, e você precisava de alguém para representá-la.

— Também é difícil para mim dizer o nome dele, Jamie. “Marido” é igualmente difícil. Ainda mais difícil. Não se sinta embaraçado.

Jamie balançou a cabeça, desolado, tirou as cartas do bolso.

— Sir William disse que as cartas fazem parte do espólio, como o dinheiro. Não pode decidir sobre as questões legais... vai enviar uma carta urgente ao procurador-geral em Hong Kong... mas não vê motivo para que você não fique com as cartas, se prometer não destruí-las. Quanto aos soberanos, você deve recebê-los... expliquei a ele que achava que você não tinha qualquer dinheiro seu no momento... mas ele pede, por favor, que lhe dê um recibo.

— Não tem problema. Ele leu as cartas?

— Não, ninguém leu. — Hesitante, Jamie largou-as em cima da mesa. — Há mais algumas coisas... fizemos uns acertos... gostaria que eu lhe dissesse agora, ou... posso voltar mais tarde.

— Não, estou bem. Que acertos, Jamie?

Ele respirou fundo, detestando ter de contar tudo, mas era seu dever.

— Em conferência com Sir William, Babcott e Hoag, acertamos que o corpo será despachado de volta a Hong Kong amanhã, para ser sepultado. Todos concordamos que seria o melhor. Estamos tomando todas as providências para tomar as coisas mais fáceis para você e a viagem tão tolerável quanto possível. O Dr. Hoag irá junto, para cuidar que não haja problemas.

O sorriso de Jamie era vazio, seu rosto um espelho de infelicidade.

— Não posso deixar de dizer como tudo isso me deixa triste. Ah Soh pode arrumar sua bagagem, no momento devido, Chen ajudará, se for necessário, e embalará as coisas que seguirão no navio, que zarpará com a maré noturna. Até lá, se precisar de alguma coisa, basta me avisar.

Jamie viu-a baixar os olhos para as mãos, os dedos virando o anel de sinete de Malcolm no dedo. Pobre Angelique, nem mesmo tem uma aliança de casamento.

— Bom, isso é tudo, no momento... gostaria de companhia no jantar esta noite?

— Obrigada, mas não. Comerei aqui, na sala de jantar, ou em meus aposentos. Mas, por favor, sente-se. Desculpe, mas isso não é tudo no momento. Meu marido não será levado de volta a Hong Kong para sepultamento. Quero que seja sepultado aqui. Nem eu nem meu marido jamais tornaremos a embarcar no Prancing Cloud.

Ela viu a expressão de Jamie, mas não se desviou do que decidira naquela manhã: a confrontação deveria ocorrer à primeira menção dos arranjos deles.

— Gostaria que eu lhe dissesse as disposições para o funeral agora ou prefere deixar para mais tarde?

— Mas já está tudo acertado! Todos achamos que seria melhor assim... sabemos que seria o melhor para você e todo mundo. A Sra. Struan certamente aprovaria, e gostaria que ele fosse sepultado em Hong...

— Sra. Struan? Eu sou a Sra. Struan. Está se referindo à outra Sra. Struan, Tess Struan? — Angelique falava sem qualquer emoção. — Ela não tem precedência neste caso. Sou a viúva e tenho precedência sobre a mãe.

— Por Deus, Angelique, só porque Skye diz que você é...

— Isso nada tem a ver com o Sr. Skye, Jamie. Não foi ele quem sugeriu nem o consultei. Ainda. Mas conheço os meus direitos, e os desejos de meu marido que serão cumpridos.

— Mas... mas... — O choque de Jamie era tão intenso que por um momento ele não conseguiu falar, mas depois as palavras saíram num fluxo rápido.— ...mas não pode prevalecer sobre o que Sir William, Babcott, Hoag e eu achamos que é melhor para você e para ele, o que temos certeza que é melhor para você e para todos. Está nervosa demais neste momento, Angelique. É o melhor, Angelique pode ter certeza de que é o melhor.

— Nervosa? Eu? Não diga bobagem, Jamie. — Ela se permitiu um pequeno sorriso glacial. — Não estou nem um pouco nervosa. Apenas pretendo cumprir os desejos de meu marido.

— Mas já foi tudo acertado, o Prancing Cloud está pronto para zarpar e... já foi tudo combinado.

— Fico contente em saber que o clíper está pronto para partir. Pois despachem-no imediatamente, a mãe deve ser informada da terrível notícia o mais depressa possível... e você mesmo deve cuidar disso, Jamie, siga no Prancing Cloud, é o mais alto funcionário da companhia aqui, tem esse dever. Peço-lhe que não espere até amanhã. Parta esta noite. Pode lhe transmitir a notícia terrível; isso vai atenuar um pouco a dor. Você tem essa obrigação.

— Claro que farei isso, se for necessário — murmurou ele, detestando a idéia. — Mas isso é um absurdo, Angelique, você não pode estar falando sério, deve compreender o que é melhor! Por Deus, Angelique, deve saber que isso é...

— O melhor para você e os outros, talvez, mas não para meu marido, e, portanto, não para mim. Ele tem o direito de ser sepultado como...

— Deve nos permitir fazer o que é o melhor! Seu corpo...

— O corpo de meu marido não vai, de jeito nenhum, embarcar naquele navio, nem eu — declarou ela, a voz calma. — Diga-me, meu amigo, se eu embarcasse no navio, como sugere, onde ficaria? No camarote principal?

Jamie fitou-a, surpreso, pois tal problema não lhe ocorrera.

— Não, claro que não. Poderia escolher qualquer outro camarote, e garanto que tudo...

— Pois eu garanto que tudo, até os mínimos detalhes, será feito de acordo com os desejos de meu marido.

Jamie limpou o suor da testa, a mente funcionando como nunca antes, um pouco nauseado, atordoado, pois era evidente que ela assumira o controle agora. Uma súbita idéia.

— Talvez você tenha razão. O Prancing Cloud seria um equívoco. Fretaremos outro navio... espere, o navio de correspondência deve zarpar depois de amanhã. Providenciaremos espaço a bordo para você, Hoag e... e ele. Além disso, persuadirei o capitão a partir antes. Amanhã... Isso resolveria tudo, não é?

— Não. — Angelique suspirou, cansada. — Desculpe, Jamie, mas não resolveria.

Havia agora uma ligeira irritação em sua voz, que se tornou mais incisiva:

— Por favor, Jamie, compreenda. A resposta é não. Ele será sepultado aqui, como desejava. Depois de amanhã.

— Não pode fazer isso! A Sra. Struan deve... isto é, Tess Struan precisa de mais tempo. Mandaremos o Prancing Cloud buscá-la, ela gostaria de comparecer ao funeral, deve estar presente.

— Você pode fazer o que quiser, mas meu marido será sepultado depois de amanhã, como queria... não creio que haveria tempo para o que você sugere. Mas não vou discutir. Desculpe, velho amigo, mas é você quem está nervoso e posso compreender. Por favor, peça a Sir William e ao Sr. Skye para virem falar comigo, juntos, o mais depressa possível, e acertarei a questão formalmente.

— Pelo amor de Deus! A cripta da família em Happy Valley é o lugar em que estão sepultados o avô, o pai, os irmãos e irmãs!

— Jamie, estou me cansando de repetir. Por favor, peça a Sir William e ao Sr. Skye para virem até aqui o mais depressa possível. Juntos.

Ele não sabia o que fazer, por isso deu de ombros, impotente, e se retirou.

Durante alguns minutos, Angelique permaneceu imóvel na cadeira, respirando fundo. Não fora tão ruim assim, pensou ela, depois esticou-se, levantou-se, foi para seu quarto. Havia um vestido limpo separado, austero, cinza escuro, estendido na cama. O vento sacudia as janelas, mas não lhe provocou nenhum calafrio. O espelho a chamava. Examinou-se. Em termos críticos. Sem sorriso. Ficou satisfeita com o que viu. A nova pessoa em que se transformara também a agradava. Era como se ajustar a um novo vestido... não, a uma nova pele.

— Espero que dure — disse ela a seu reflexo. — Devemos nos empenhar para que dure. Esta minha personalidade é melhor do que a outra.

E ela pegou a primeira das cartas. As cartas de Tess Struan. Queria deixar a de Malcolm para o fim.

 

Sir William mantinha-se impassível. O mesmo acontecia com Jamie. Hoag e Babcott franziam o rosto. Heavenly Skye tinha um brilho divertido nos olhos, Todos sentavam em cadeiras diante da mesa de Malcolm. Angelique fitava-os de sua cadeira alta, pequena, mas segura ali. O vestido mais escuro do que antes, mangas três-quartos, decote quadrado, costas empertigadas, penteado impecável. Sem maquilagem, com uma aparência imponente.

— Depois de amanhã? — disse Sir William.

— Isso mesmo — confirmou Angelique. — Meu marido não deve ficar exposto por tempo demais para as pessoas prestarem sua última homenagem. Três dias não é o prazo normal, doutor?

— É, sim, Angelique, o normal — respondeu Hoag. — Mas já tomamos todas as providências para a preservação do corpo na viagem de volta a Hong Kong Tudo correrá bem, não precisa se preocupar. — Uma pausa, e ele acrescentou gentilmente: — Ele deve ser sepultado lá. Todos concordamos que é o melhor

— Já o embalsamaram?

Os homens se mexeram em suas cadeiras, apreensivos. Hoag disse:

— Não, pois não é o que se costuma fazer. Usamos... ahn... usamos gelo para garantir a preser...

— Gostaria de ser empacotado em gelo e despachado para Hong Kong como uma carcaça de carneiro da Austrália?

A tensão na sala disparou, os homens ainda mais embaraçados do que antes. A voz de Angelique permanecia serena, firme e cordial, o que tendia a enfurecê-los mais ainda. Exceto por Skye, para quem ela adquiria uma nova dimensão.

— Não é essa a questão, madame — disse Sir William. — Achamos que, por ele e pela família, o sepultamento em casa é o mais sensato.

— Ele admirava o avô, o tai-pan, não é mesmo?

— É, sim. — Abruptamente, Sir William relaxou, não mais preocupado, pois agora tinha a solução para o enigma, independente do que ela pudesse dizer. — Todos sabem disso. Por quê?

— Muitas vezes, em várias palavras, Malcolm disse que queria viver como ele, ser lembrado como ele, e sepultado como ele. E é assim que será.

— Correto e muito sensato. — Sir William acrescentou, incisivo: — O avô está sepultado na cripta da família, no cemitério em Happy Valley. Angelique, concordo que deve ser assim com Malcolm. Compreendo agora...

— Mas Dirk Struan não foi sepultado em Hong Kong — declarou ela, surpreendendo a todos. — Sei que seu nome foi esculpido na lápide, mas ele foi sepultado no mar. Meu marido será sepultado no mar, da mesma maneira.

— Desculpe, Angelique, mas você se engana — interveio Jamie. — Eu estava presente, tinha acabado de ingressar na Struan, como um aprendiz de mercador na China, recém-chegado da Inglaterra, e compareci ao funeral. Foi imponente, com a presença de todos em Hong Kong. Houve até uma procissão imensa e separada em Chinatown, organizada por Gordon Chen.

— Desculpe, Jamie, mas é você quem se engana. Puseram um caixão vazio na cripta. Ele foi sepultado no mar, junto com sua amante, May-may, em águas internacionais, ao largo de Hong Kong. — Ela sentiu as lágrimas se aproximarem. Nada de lágrimas, ordenou a si mesma. Ainda não. — Ele foi sepultado no mar. Houve um serviço cristão, celebrado da maneira correta, como ele desejava, e as testemunhas foram Culum e Tess Struan, Gordon Chen e Aristotle Quance.

— Não é possível! — protestou Jamie.

— É, sim, e foi o que aconteceu. A hierarquia de sua Igreja recusou-se a permitir que eles fossem sepultados juntos, recusou-lhes um sepultamento cristão no campo consagrado de Happy Valley.

— Mas eu assisti ao funeral, Angelique! Ele foi sepultado ali. Não sei onde May-may foi sepultada, mas concordo que não estava com ele.

— Você testemunhou uma impostura, Jamie. O caixão estava vazio.

— Isso é bobagem — disse Sir William.

— A hierarquia foi intransigente na proibição a que fossem sepultados juntos — continuou Angelique, como se ele não tivesse falado. — Seria uma coisa sem precedentes. Sentiam-se escandalizados com Dirk Struan por muitas razões, como sabe muito bem, Sir William, e essa idéia era demais para eles. Em seu testamento, a parte que é transmitida de tai-pan para tai-pan, escrevera duas semanas antes de sua morte que se morresse junto com May-may deveriam ser sepultados juntos, já que tinha a intenção de casar com ela, e...

— Ele escreveu mesmo isso? Pretendia casar com ela? — Sir William mostrava-se chocado, tanto quanto os outros, pois mesmo hoje o casamento com uma chinesa era inadmissível... o ostracismo seria permanente, até mesmo para Dirk Struan. — Ele escreveu mesmo isso?

— Escreveu — confirmou Angelique, percebendo que Hoag era o único que não partilhava a consternação de Sir William.

Os ingleses, os britânicos em geral, são pessoas horríveis, pensou ela. Hipócritas, fanáticos, bárbaros, diferentes de nós, sempre manifestando seu antagonismo ao casamento entre protestantes e católicos, detestando ainda mais o casamento inter-racial com povos de seu Império.

Por que considerar o casamento inter-racial um pecado hediondo, ela teve vontade de gritar, já que vocês sempre têm amantes nativas, e filhos com elas, abertamente? Quanta hipocrisia! Nunca foi assim entre nós, em nossas colônias, no império francês. Se um francês casa com uma nativa, ela se torna não apenas sua esposa, mas também francesa, com toda a proteção da lei francesa. Até encorajamos o casamento inter-racial, o que é correto. Um homem é um homem e uma mulher é uma mulher, qualquer que seja a cor de sua pele, mas não para vocês. Deus me guarde de me tornar inglesa. Graças a Deus que nunca poderei renunciar à minha cidadania francesa, não importa com quem case...

Mas o que estou pensando? — ela perguntou a si mesma, com um sobressalto, obrigando-se a retornar à sala, a enfrentar aqueles inimigos de seu marido. — Teria tempo suficiente para tais devaneios mais tarde.

— Acho difícil compreender algumas atitudes britânicas, Sir William, sobre o casamento inter-racial, mas também sou francesa. Entretanto, deixando isso de lado, posso dizer que houve um impasse no funeral do avô de meu marido: sua Igreja ficou indignada, não queria concordar que os dois fossem sepultados juntos. O novo tai-pan, o filho dele, Culum, insistia nisso... qualquer outra coisa que não um sepultamento cristão apropriado para Dirk Struan era inconcebível. Culum Manteve uma posição mais firme do que Tess, perturbada pelos desejos de Dirk, com seu escárnio às convenções, que eram os alicerces de todas as convicções dela. Seu pai, Tyler Brock, agora o mais poderoso mercador na ilha, opunha-se, com veemência, assim como a mãe, e a maioria dos mercadores, publicamente, independentemente do que sentissem em particular. O governador apoiou a Igreja.

— É verdade — murmurou Sir William.

— Se Hong Kong fosse católica, minha Igreja também se mostraria hostil. O escândalo ameaçava a colônia, e era uma ocasião em que a maior parte de Hong Kong se encontrava em ruínas, depois do tufão... e sem gelo.

Todos se remexeram em suas cadeiras, exceto Skye, que arriou ainda mais na sua, com o mesmo tênue sorriso. Babcott disse, gentilmente:

— É a prática médica normal e correta para pessoas importantes, nessas circunstâncias, Angelique. Seu marido era e ainda é importante para nós. Deve acreditar nisso.

— Acredito. — Ela desviou os olhos dele, fitou Sir William, como antes continuando a falar no mesmo tom tranquilo: — Para romper o impasse, chegou-se a um acordo. Foi proposto por Gordon Chen e Aristotle Quance, verbal, nada por escrito. Discretamente... seria melhor falar em segredo, pois foi assim... os corpos foram levados para o China Cloud. A cerimônia da igreja anglicana foi oficiada pelo capelão naval e o capitão Orlov. Foi um sepultamento cristão correto. Dirk Struan e sua amante, May-may Sheng, foram sepultados juntos, como ele desejava.

— Se foi tão secreto assim, como pode saber que isso é verdade?

— Ficou registrado no diário de bordo, Sir William, que foi imediatamente levado para o cofre particular do tai-pan. Todas as testemunhas, Culum e Tess Struan, Aristotle Quance, Gordon Chen e a tripulação mínima a bordo prestaram sagrado juramento de segredo. O capelão naval, não sei quem era, foi enviado de volta à Inglaterra logo em seguida. O outro funeral foi realizado com toda a pompa devida ao tai-pan da Casa Nobre.

O silêncio persistiu na sala, rompido apenas pelo barulho do vento contra as janelas, uma tarde de sol lá fora. Sir William perguntou:

— Viu o diário de bordo?

— Não, nem falei... com a mãe dele sobre isso.

Jamie disse:

— Tess Struan poderia confirmar, ou Gordon Chen... se concordassem em violar seu juramento... e se quisessem fazê-lo.

Skye empertigou-se em sua cadeira.

— Esta manhã a Sra. Struan me perguntou se era verdadeira essa história que seu marido lhe contara. Por sorte, pude confirmar alguns detalhes.

— E sabe que é verdade por causa disso?

— Conheci por acaso um dos tripulantes, menos suscetível ao juramento de sigilo do que os outros. Um marujo, Hennery Fairchild... não tenho a menor idéia se continua vivo ou se já morreu... mas assim que cheguei a Hong Kong, Sir William, tratei de descobrir tudo o que pudesse sobre a Casa Nobre, os Brocks, Quance, sobre a fundação de Hong Kong, e... as várias corrupções que ocorreram em altos postos.

Sir William balançou a cabeça, irritado, achando o mau hálito e os dentes podres do pequeno advogado mais repulsivos do que o habitual, a par de alguns dos sórdidos escândalos que haviam sido mantidos longe do conhecimento público, antes de sua vinda para a colônia.

— Tudo isso não passa de boato.

— Não teria muita influência num tribunal, Sir William, mas é verdade.

O que fazer?, pensou Sir William. Tenho de fazer a coisa certa. O julgamento de Páris? Não, tudo isso é apenas um tufão numa taça de vinho.

— Muito bem, madame, vamos respeitar os desejos dele. Jamie, envie o corpo imediatamente para Hong Kong, onde será sepultado no mar.

Ali chegando, pensou ele, Tess Struan pode cuidar do problema e se engalfinhar com Angelique Struan, que não vou mais me envolver. O que deu em Angelique? Nunca vi uma mudança tão grande!

— Posso compreender sua aversão ao Prancing Cloud. Providenciaremos a viagem no navio de correspondência.

— Obrigada, Sir William, mas não será assim — disse Angelique, sempre calma. — Meu marido não será enviado no gelo para Hong Kong, como uma carcaça. De jeito nenhum.

— Por Deus, madame, se eu ordenar, assim será feito.

— Tem razão, se ordenar. Mas, Sir William... — Ela olhou para Skye. — Qual é a situação legal?

— Legalmente, os desejos do marido, apoiados pela viúva, teriam precedência.

— Antes de eu responder a isso, onde há alguma prova? Não existe nenhuma. Quanto à precedência... sobre quem? — Sir William estava irritado agora. — Sobre a Sra. Struan, Tess Struan, é isso o que está querendo dizer? Devemos ignorar qualquer consideração com ela?

Skye fez menção de responder, mas Angelique gesticulou para que ele ficasse calado, e disse:

— Claro que não. Se o Prancing Cloud zarpar agora. Uma viagem rápida até Hong Kong dura dez dias, com outros dez para voltar, o tempo bom. Dr. Hoag, há tempo para o seu... o seu gelo preservar os restos mortais de meu marido de maneira apropriada durante esse período, para que sua mãe venha até aqui... se ela desejar vir?

Hoag pensava em Dirk Struan e sua lendária May-may, sua amada beldade, sobre o casamento inter-racial, como ele próprio desejava não ter matado sua esposa, o grande amor de sua vida.

Muitas vezes sentira que fora o culpado. Seu amor por ela deveria ter sido bastante grande para evitar o casamento, para não tirá-la de sua segura e serena vida indiana, levando-a para o desastre, que sabia ser o fado de ambos. E fora mesmo.

Mais uma vez, seu futuro se encontra na balança, Hoag, meu velho. Vai ajudar esta moça ou Tess Struan? Não se esqueça de que foi culpa sua que o maldito assassino sobrevivesse para assustá-la de novo, quase até a morte.

— Em termos médicos, é possível, mas aconselho contra — disse ele, lançando rápido olhar para Babcott, advertindo-o a não interferir. — A decisão, Sir William, é se ele deve ser enviado para Hong Kong ou não. Se não, acho que deve ser sepultado como... como sua esposa deseja.

Sir William hesitou, irritado porque sua solução não fora aceita.

— Angelique, porque se opõe a ir com o corpo para Hong Kong, se não no Prancing Cloud, então no navio de correspondência?

— Eu me oponho porque neste caso ele não será sepultado da maneira como deseja, como o avô... a mãe nunca admitiria a outra história, nem poderia. Sou a viúva e os desejos de meu marido são os meus desejos, com toda a força do meu coração.

Sir William não tinha certeza de sua base legal para concordar ou discordar e sentia a maior preocupação por Tess Struan, agora no comando de fato da Casa Nobre, por sua oposição por escrito ao casamento, e o que ela faria se o corpo não fosse enviado a Hong Kong.

Ficará furiosa, com toda certeza, pensou ele, sentindo um calafrio. É óbvio que ela haveria de querer que o sepultamento fosse lá, deve ser lá, no mar ou não, qualquer que seja a verdade ou inverdade da história, e cinqüenta libras contra um penny furado como ela tentará de qualquer maneira anular o casamento, com uma boa chance de conseguir. Ou seja, minha pobre dama, você se encontra numa situação crítica, quer goste quer não.

— Receio que esteja convertendo um acontecimento já trágico numa coisa ainda mais complicada do que precisa ser. O pobre coitado pode ser sepultado no mar tanto em Hong Kong quanto aqui. Assim, a melhor coisa...

— Perdoe-me por interrompê-lo, Sir William — disse Skye, para depois acrescentar, como faria um brilhante procurador da rainha —, mas a menos que esteja formalmente contestando a legalidade do casamento de minha cliente, ela possui certos direitos. Sendo assim, devo lhe pedir que aprove que os desejos de seu falecido marido e os dela prevaleçam nesta questão, e permita que ele seja sepultado aqui.

Logo em seguida, com a mesma eloquência de um procurador da rainha concluindo sua peroração, ele arrematou:

— Malcolm Struan era nosso, de Iocoama, tanto quanto deles. Sua tragédia começou aqui, e também deve terminar aqui.

Apesar de sua determinação, Angelique sentiu que as lágrimas começavam a escorrer. Mas não se permitiu qualquer som de choro.

 

Por uma hora depois que Sir William e os outros se retiraram, Skye e jamie argumentaram. Angelique apenas escutava. Nada do que dissessem faria qualquer diferença. Ela perdera. Depois do apelo veemente de Skye, Sir William proclamara:

— Lamento, mas nada do que ouvi aqui esta tarde pôde me fazer mudar de idéia. O corpo deve voltar a Hong Kong, onde será sepultado, no Prancing Cloud ou no navio de correspondência. Como preferir, madame. A reunião está encerrada.

Skye disse depois, amargurado:

— Se estivéssemos em Hong Kong, eu poderia entrar com um recurso judicial, por uma dúzia de motivos. Mas aqui Sir William é o tribunal, juiz e júri. Não há tempo suficiente para ir até lá e voltar, o que quer que resolvamos.

— Então não há mais nada que possamos fazer. — Jamie estava sombrio, abalado pela história que ela contara. — Tem de aceitar, Angelique. Não podemos fazer mais nada.

— Não posso ir para Hong Kong... e devo estar presente no funeral.

— Concordo — murmurou Skye, acenando com a cabeça.

— Por quê? — indagou Jamie. — O que a impede de ir?

— Tess Struan.

— O que ela pode fazer? Não pode impedi-la de comparecer ao funeral e não pode anular o casamento. O editorial desta tarde de Nettlesmith diz que é perfeitamente legal, embora os dois sejam menores. Siga com o navio de correspondência.

— Não, Jamie, sinto muito. O Sr. Skye já disse que o editorial é apenas uma opinião. Sei que Tess Struan não vai sepultá-lo no mar, como ele queria, tenho certeza. E vai me atacar por todos os meios que puder. Tome aqui, leia as cartas que ela escreveu para Malcolm.

Os dois ficaram impressionados com a intensidade do rancor. Skye comentou, contrafeito:

— É uma pena que não haja nada que pudéssemos levar aos tribunais. Ela alegaria que eram cartas particulares, de mãe para filho, alertando-o desesperada contra o casamento, como é seu direito, até proibindo-o... como é seu direito. E as ameaças contra você, como uma pessoa, Sra. Struan, não nos proporcionam uma base para processá-la.

— Isso não é justo — disse Angelique.

— Heavenly, o que me diz de “se essa mulher algum dia puser os pés em Hong Kong, eu providenciarei...” não é alguma coisa?

Não querendo magoar Angelique ainda mais, Jamie não leu tudo o que Tess Struan escrevera: ...providenciarei para que todas as pessoas decentes aqui conheçam sua história, de seu pai, seu tio, e que a tia era uma atriz numa companhia itinerante, de artistas, ciganos e saltimbancos, e sobre suas finanças pessoais.

— Não me envergonho do fato de que minha mãe era atriz — disse ela incisiva —, embora a maioria dos ingleses as considere rameiras. Ela não era, nunca foi. E a companhia não era de saltimbancos. Não sou responsável pelos pecados de meu pai... fiquei na miséria, ele roubou também todo o meu dinheiro não apenas o de outras pessoas.

— Sei disso. — Jamie se arrependeu de ter mencionado a carta. — Heavenly, pode obter alguma prova do sepultamento de Dirk com May-may?

— Claro, do compradore Chen e da própria Tess. Mas nenhum dos dois daria um depoimento voluntário, nem admitiria qualquer coisa, não é mesmo? Seríamos escarnecidos e não conseguiríamos uma ordem judicial para abrir a cripta da família.

Skye tossiu uma vez e depois outra.

— A Sra. Angelique Struan deve seguir com os restos mortais do marido: se não o fizer, vai prejudicar bastante sua posição, tanto em termos legais quanto públicos. Mas ir para Hong Kong? É perigoso.

Ele pedira a Babcott e Hoag que abrandassem a redação do atestado de óbito, mas fora informado, como já esperava, que não seria possível.

— Em minha opinião abalizada, a Sra. Angelique está certa ao não assumir o risco no momento, Jamie. Preocupo-me que ela se torne mais indefesa em Hong Kong do que aqui.

— Você iria também, e poderia proporcionar qualquer defesa necessária.

— É possível, mas o escândalo seria inevitável, e quero evitar isso a qualquer custo, para o bem de todos. Inclusive de Tess Struan. Ela não é tão ruim assim, se considerar sua posição do ponto de vista de uma mãe. Minha opinião abalizada e de que seria inevitável o mau cheiro... como evitá-lo ou atenuá-lo, essa é a questão.

— Talvez possa ser contido — disse Jamie. — Tess não é uma ogra, sempre foi justa, à sua maneira.

— Não será justa agora, não comigo — interveio Angelique. — Posso compreendê-la. Apenas uma mulher pode realmente compreender. Ela vai acreditar que roubei seu filho mais velho e o matei. Malcolm alertou-me contra ela.

— Para contê-la, precisamos de tempo — disse Skye. — Precisamos tempo para negociar e não haverá o suficiente antes de um sepultamento.

Quando os dois a deixaram, nada fora resolvido.

Não importa, pensou Angelique. Sepultarei meu marido como ele deseja, herdarei seus bens materiais, se há algum, vencerei Tess Struan. E serei vingada.

As cartas haviam-na magoado, mas não tanto quanto esperava. Suas lágrimas não eram lágrimas como antes. Não a abalaram como antes. E não sou mais como antes. Não posso entender. Estou realmente muito estranha. Será que vai durar? Espero que sim. Ah, Santa Mãe, como fui estúpida!

Pela janela, ela constatou que o dia logo viraria noite, avistou na baía as luzes dos navios, a bombordo e boreste, no alto dos mastros, piscando com o balanço das ondas. No braseiro, os carvões se ajustaram ruidosamente, as chamas se elevaram por um instante, atraindo sua atenção de volta ao problema. O que fazer?

— Miss?

Ah Soh entrou na sala.

— Tai-tai, Ah Soh! Você é surda?

Malcolm lhe explicara o que significava tai-tai e, em sua última noite, obrigara Ah Tok, Ah Soh e Chen a tratarem-na assim, em sua presença... e Skye também a lembrara de fazer os criados usarem o termo.

— Miss, quer que eu arrume as coisas?

— Tai-tai! Você é surda?

— Quer que eu arrume as coisas... tai-tai?

— Não. Amanhã, se der.

— Como, miss?

Angelique suspirou.

— Tai-tai!

— Miss tai-tai?

— Saia!

— Homem da medicina quer falar.

Ela já ia dizer “saia!” de novo, mas mudou de idéia.

— Que homem da medicina?

— O sapo, miss tai-tai.

Hoag. É verdade, ele parece um sapo, pensou Angelique, e se surpreendeu ao descobrir que estava sorrindo.

— Mande ele entrar.

Quando Hoag entrou, ela disse:

— Boa noite, doutor. Como tem passado? Estou bem agora, graças à sua ajuda.

— Está mesmo? — Ele tinha os olhos injetados de fadiga, o rosto pálido e amassado, como sempre, mas irradiava uma simpatia que era fascinante. Fitou-a nos olhos. — Tem razão, dá para perceber. Mas seja cautelosa, Angelique, não se exija demais, vá com calma. Use o bom senso.

— Prometo que farei isso.

— Foi maravilhosa esta tarde.

— Mas perdi.

— É verdade. George Babcott e eu lamentamos muito por isso, ficamos comovidos com a sua história, e o apelo de Heavenly. George vai jantar com Wee Willie e tentará de novo, mas eu... nós não temos muita esperança.

Ele a viu dar de ombros, apenas um gesto mínimo, e continuar a observá-lo, os olhos enormes na palidez de seu rosto.

— Precisa de alguma coisa? Para dormir ou se acalmar... não, posso ver que não precisa de nenhum calmante. Fico contente por isso, muito contente. Queria conversar um pouco com você... importa-se?

— Claro que não. Sente-se, por favor. Como foi a audiência? Ah, tem uísque e outras bebidas ali, se quiser.

— Obrigado.

No aparador, havia copos Waterford e garrafas de cristal, alinhadas como soldados, em descansos de prata georgiana, com rótulos também em prata pendurados no gargalo: Uísque, Conhaque, Xerez, Porto. Ele escolheu uísque, serviu-se de meio copo.

— A audiência transcorreu como se esperava, Edward Gornt foi absolvido de qualquer culpa e elogiado por sua bravura. O juiz sumariante, Skye, considerou que a morte de Greyforth foi acidental e Gornt perfeitamente correto ao tentar impedir o que poderia ter sido um assassinato brutal. Ficamos surpresos por ele ter usado palavras tão fortes, embora verdadeiras. — Hoag sentou na frente dela, ergueu o copo. — Saúde!

— Salut! Estou contente por Edward. Ele merece muitos louvores.

— E você também. Sua história me deixou profundamente comovido.

— E é verdadeira. Também não acredita em mim?

— Claro que acredito. E é sobre isso que queria conversar. E a compreendo muito bem.

Depois, com eloqüência, Hoag relatou sua própria história, o tempo que passara no exército indiano, como se apaixonara e casara, contra todas as convenções, o ostracismo imediato, terrível, o retorno à Inglaterra. E a situação não melhorara ali.

— Tornou-se até pior. Arjumand morreu, era esse seu nome, o mesmo da amada de Shah Jahan, que construiu o Taj Mahal. — Ele olhava para o fogo contando a história ao fogo também, vendo imagens de seu amor ali, os dois juntos, nos dias felizes antes do casamento. — Fiquei muito triste, mas ao mesmo tempo contente, por ela não sobreviver demais no ódio. Pegou uma gripe e morreu depressa, como uma gloriosa planta de estufa numa aragem gelada... e ela era isso, não pode imaginar como era refinada, assim como não posso acreditar que ela me amava... pois sei como sou feio. Eu a amava loucamente e a matei.

— Seu rosto muda quando fala sobre ela. Não a matou. Foi o destino. Você não foi culpado.

Essa palavra de novo, pensou Angelique.

— Fui, sim, ao casar com ela, levá-la para a Inglaterra. May-may morrido também, desamparada, solitária, desesperada de saudade de sua terra. Nem mesmo o grande Dirk Struan poderia resistir à opinião pública, se não se tivessem casado. Ambos tiveram sorte de morrer daquele jeito. Angelique observava-o, viu seus olhos úmidos.

— Malcolm teve sorte por ter morrido como morreu? Disse que ele estava muito sereno. Morreria de qualquer maneira?

— Receio que sim. Poderia ter morrido a qualquer dia, a qualquer hora. Vivia em tempo emprestado e acho que sabia disso. Isso a deixou arrepiada. — Por que ele não foi informado... por que não o avisou, a nós dois?

— Foi um ato de Deus... não sabíamos, não com certeza, como sabemos agora. Era impossível saber ou teríamos avisado.

— Não estou entendendo. Diga-me a verdade, por favor. Preciso compreender.

Hoag explicou, gentilmente:

— Suas entranhas, por baixo e ao redor do ferimento, se encontravam em pior situação do que imaginávamos. George não podia sondar muito em torno do ferimento, quando o levaram ao hospital, pois isso o teria matado na ocasião. A autópsia revelou que ele estava apodrecendo.

— A operação foi bem-feita?

— Foi, sim, um trabalho de primeira classe. A reparação realizada por George foi admirável, tão boa quanto qualquer outro poderia fazer — declarou ele e Angelique acreditou. — O problema é que não podemos substituir, apenas reparar, e havia bolsas de septice... o motivo de tanta dor, pobre coitado... e lesões graves, que o impediam de se empertigar.

Uma pausa e Hoag acrescentou, desolado:

— Ele estava no final de seu tempo emprestado. Mesmo assim, tenho certeza que você transformou seus últimos dias nos mais felizes que qualquer homem poderia desfrutar.

Um carvão caiu no braseiro. Os olhos de Angelique desviaram-se nessa direção. A chama se elevou, tremeu, extinguiu-se... como meu Malcolm, pobre coitado, pobre amor.

— Triste — murmurou ela para o fogo. — Muito triste.

Hoag a avaliava, avaliava a si mesmo, e à lembrança de Arjumand... que Angelique fizera renascer. Era fácil decidir agora, depois de partilhar Arjumand, Pesou ele. Nervoso, ele terminou o drinque.

— Posso?

— Claro. À vontade.

Hoag tornou a se servir, em quantidade menor.

— Mas eu queria realmente falar sobre o sepultamento. Ainda é possível fazer o que você e Malcolm queriam.

— Como?

Ele voltou a sentar diante de Angelique.

— Sepulte-o no mar, como o avô, como ele queria, como você quer. Posso ajudá-la.

— De que jeito?

Hoag enxugou o suor da testa.

— Procure Sir William, diga que se submete ao inevitável, por mais que deplore sua decisão, vai permitir que o corpo seja enviado para Hong Kong. Amanhã, nós, Babcott e eu, levaremos o caixão para bordo do Prancing Cloud, de Kanagawa, onde se encontra no momento. Você testemunha a partida do caixão oficialmente, alegando que não suportaria acompanhá-lo no Prancing Cloud, mas seguirá no dia seguinte, no navio de correspondência, quando zarpar para Hong Kong. Todos ficam satisfeitos.

— Mas o caixão segue vazio? — indagou Angelique, excitada.

Ele sacudiu a cabeça, a testa e as bochechas brilhando, à luz do fogo.

— Não. Haverá um corpo no caixão, mas não o dele. De um pescador coreano, que morreu em Kanagawa esta manhã, na clínica. Enquanto isso, o corpo de Malcolm fica em outro caixão, ainda em Kanagawa, secretamente. Se Jamie nos apoiar, poderia levar o cúter até lá amanhã, ao final da tarde. Sairemos para o mar, e se conseguirmos Tweet para oficiar a cerimônia, Malcolm poderá ser sepultado como você deseja. No dia seguinte, você embarca no navio de correspondência, sem que mais ninguém saiba... basta todos os envolvidos jurarem segredo.

— Há muitos “ses” — murmurou Angelique, o coração batendo forte.

— E outros ainda, nos quais ainda não pensei — disse Hoag, tornando a enxugar a testa, sentindo um aperto na garganta. — Foi apenas... A idéia me ocorreu há poucos minutos. Ainda não pensei em tudo, pode ser impossível, mas eu queria ajudar. Com ou sem George, posso fazer a primeira parte, trocar os corpos. Você tem de fazer o resto. Talvez eu possa ajudar, não sei. Não sou muito bom em guardar segredos. E temos de decidir agora, se... Eu teria de voltar a Kanagawa esta noite, enquanto George janta aqui. O que você acha?

Angelique levantou-se abruptamente, foi abraçá-lo, envolvendo-o com perfume e gratidão.

— Vamos tentar... e obrigada, muito obrigada.

 

— Queria me falar, madame? — disse Gornt.

— Queria, sim. Entre e sente-se, por favor.

Angelique sentava junto da janela grande do escritório do tai-pan, onde havia cadeiras de braços, uma mesa de carvalho e um aparador. Chen se encontrava de pé ali perto.

— Gostaria de dizer mais uma vez como lamento o que aconteceu. Se houver alguma coisa que eu possa fazer, madame, basta pedir.

— Sei disso, e agradeço, Edward. E pode ajudar. Todos nós precisamos de amigos. Fico contente que a audiência tenha transcorrido sem problemas... deveria ganhar uma medalha. Foi muita bravura sua. Quero lhe agradecer por Jamie, pois não sei o que faria sem ele.

Um bom fogo ardia na lareira, as delicadas cortinas de seda tailandesa excluíam a noite. Chen encaminhou-se para o balde de gelo, onde havia uma garrafa aberta.

— Meu marido disse que gosta de champanhe.

— É verdade, madame, gosto mesmo.

Gornt pensava na audiência e no veredicto que encerrava para sempre o perigoso capítulo de Norbert. O juiz sumariante, Heavenly Skye, fora mesmo uma dádiva celestial, correspondendo a seu nome. Angelique gesticulou para que Chen servisse os dois copos altos.

— Doh jeh — obrigado, disse Gornt, aceitando seu copo.

Chen fitou-o boquiaberto, como se não tivesse entendido, desprezando ainda mais aquele impertinente demônio estrangeiro por ousar falar um dialeto civilizado.

— Espere lá fora, Chen—ordenou Angelique. — Se quiser chamá-lo, usarei o sino.

Ela indicou o sino de prata na mesinha lateral.

— Está bem, miss.

Angelique lançou-lhe um olhar furioso.

— Tai-tai!

— Pois não, miss tai-tai.

Chen retirou-se, satisfeito com as pequenas vitórias. Os criados haviam solicitado uma reunião, que ele presidira. Ah Tok, a mente divagando, queria que usassem um bruxo para pôr o mau olhado naquela “possuidora de um canal da morte”, mas ele dissera:

— Não, não podemos... e não foi isso. A morte do amo não foi culpa dela. O amo casou com ela, e nos obrigou a chamá-la de tai-tai, na sua presença. Nosso acordo é chamá-la primeiro de “miss “ e depois de “miss tai-tai”, até que a questão seja decidida pelo ilustre Chen, para quem meu relatório urgente e detalhado já foi despachado, e se encontra a bordo do Prancing Cloud.

Na sala, Angelique disse:

— Salut, Edward.

— À sua saúde, madame.

Ela tomou um gole mínimo, ele bebeu com satisfação.

— Champanhe é uma fonte de vida para mim — comentou Gornt, desejando mesmo instante não ter dito isso. — Nunca tive condições de beber, a não ser em ocasiões festivas.

— Também gosto de champanhe, só que não esta noite. Mas em breve você terá condições de tomar todo champanhe que quiser, não é mesmo? Meu marido me contou que seus negócios vão melhorar, e muito, e que tinha muitos segredos a partilhar com ele... em benefício mútuo.

— Ele contou? — Gornt foi apanhado desprevenido, pois combinara com Malcolm Struan que não revelariam nada a ninguém. Norbert? Norbert não contava, pois era parte do plano confundir o inimigo, e Norbert sempre fora inimigo. — Segredos, madame?

— Ele me disse que o apreciava e confiava em você, assim como eu, que era um homem capaz de guardar segredos, além de conhecê-los, e que compreendia o valor de velhos amigos... no sentido chinês.

— Essa parte é verdade. Eu também o apreciava, e confiava nele.

— Jamie disse que você reservou passagem no Prancing Cloud.

— É verdade, madame.

— Meu marido contou que você lhe daria informações especiais sobre a maneira de arruinar os Brocks. Falaria tudo ontem de manhã, depois... foi apenas ontem? Parece que tudo aconteceu há uma vida inteira... e para Malcolm foi mesmo, pobre Malcolm.

Gornt suspirou, triste por ela.

— Tem razão. Posso dizer que mudou, madame? Está diferente. Sem querer ser impertinente, ou insensível, permita-me dizer que a mudança lhe foi bastante favorável.

— Eu preferia dez mil vezes ter meu marido vivo e não ter mudado. — A franqueza a surpreendeu, embora sempre achasse fácil conversar com Gomt, como também acontecia com Malcolm. — Ainda não tenho certeza sobre a mudança, se me agrada. Crescer tão depressa é... não sei a palavra certa... angustiante, assustador.

Ela se levantou, serviu mais champanhe no copo de Gornt, pôs o balde com o champanhe na mesa, mais perto dele.

— Obrigado — murmurou Gornt, mais consciente da presença de Angelique do que nunca.

— Decidi não viajar para Hong Kong no clíper.

— Já ouvi um rumor, madame, que não queria ir a bordo daquele navio de novo... nem os restos mortais de seu marido... e seguiria pelo navio de correspondência. — Assim que ouvira isso, por precaução, ele procurara o agente para reservar passagem também no navio de correspondência, mas todos os camarotes já estavam ocupados. Contrariado, tentara falar com Jamie, mas não o encontrara. — Posso compreender que não queira embarcar nunca mais no Cloud.

As mãos de Angelique repousavam tranquilas em seu colo, a voz era suave e controlada.

— Esses segredos que contaria a meu marido... vai revelá-los a mim?

Gornt exibiu seu lindo sorriso, fascinado por ela, sacudiu a cabeça.

— Lamento, madame, mas não... mesmo que tivesse algum. Ela balançou a cabeça, sem se mostrar ofendida.

— Nem esperava que me contasse. Tenho certeza que nunca os entenderia, se me dissesse tudo, e também não teria condições de aproveitá-los, não é mesno?

Gornt sorriu e ela acrescentou:

— Mas Tess Struan pode aproveitá-los, não é?

— Como, madame?

— Meu marido disse que se alguma coisa lhe acontecesse, você partiria no mesmo instante para Hong Kong, a fim de negociar diretamente com sua mãe, e fazer com Tess Struan o mesmo acordo que tinha com ele. E acrescentou que agia assim porque odiava os Brocks... não me explicou por que os odiava. — Angelique estendeu a mão, ficou mexendo na haste de seu copo. — Tess Struan com certeza poderia aproveitar as informações, se o que você alega for verdade, não é? Isso foi na terça-feira, antes de casarmos.

Gornt tornou a avaliá-la, com uma expressão satisfeita em seu rosto bonito.

— Posso compreender por que meu marido gostava de você, Edward, por que seria um inimigo perigoso e um amigo ainda mais perigoso.

Isso o fez rir, e a tensão entre os dois se evaporou.

— Não para você, madame, nunca, eu juro. Nunca mesmo.

— Veremos. Temos muitas pontes a cruzar, você e eu, mas, por Deus, como diria meu marido, estou adotando suas esperanças e sonhos como meus: que você pode ajudar a Struan a destruir os Brocks, de uma vez por todas. Talvez seus sonhos e esperanças também.

— Meus?

Angelique abriu sua bolsa e tirou o papel que encontrara no compartimento secreto do cofre, levantou-o contra a luz e leu em voz alta:

— “Isto é o meu solene acordo com o Sr. Edward Gornt, cavalheiro, da Rothwell, em Xangai: se as informações que ele fornecer ajudarem a Struan a destruir a Brock and Sons, levando-os à ruína nos próximos seis meses, eu garanto, em nome da Struan, que ele receberá, da massa falida, os 50% de participação da Brock na Rothwell, de graça e sem qualquer condição, que o ajudaremos de boa fé, da melhor forma que pudermos, junto ao Victoria Bank, a fim de que levante o empréstimo necessário para a aquisição dos outros 50%, pertencentes a Jefferson Cooper, que a partir desta data, pelo prazo de vinte anos, a Struan lhe concede, ou a qualquer companhia que ele controlar pessoalmente, a posição de nação favorecida, em quaisquer operações comerciais de acordo mútuo.”

Ela estendeu o papel para que Gornt visse, mas não o entregou.

— A data é de anteontem, Edward, está assinado, mas sem testemunhas. Gornt não fizera qualquer menção de pegar o documento. Sua visão era ótima.

Enquanto Angelique lia, já reconhecera a assinatura. Sem as testemunhas, não tem valor real, pensou ele, sua mente se deslocando apressada de um plano para outro, de uma indagação a outra, para as respostas.

— E daí?

— Eu poderia testemunhar a assinatura de meu marido. Sua mente parou de girar, com um solavanco.

— De um modo geral, o testemunho da esposa à assinatura do marido não é válido.

— Digamos que eu testemunhasse no mesmo dia... antes do casamento.

De onde será que ela está tirando tudo isso?, especulou Gornt, frenético. De Jamie? De Heavenly? Ela até parece um dos novos rolos compressores de Stevenson.

— Mesmo assim, mesmo que o documento tivesse uma testemunha, não seria compulsório para a Casa Nobre.

— É verdade, mas teria muito peso com Tess Struan... seria um acordo com seu filho. Não serviria para confirmar que você trabalhava com meu marido clandestinamente, para realizar a maior ambição da vida de Tess Struan?

— É bem possível, madame. — Ele hesitou. — Jamie aprova o documento?

— Ele não sabe nada a respeito. Ninguém mais sabe, só eu.

Angelique acreditava nisso. Por que outro motivo Malcolm o esconderia?

Pensativo, Gornt serviu-se de mais champanhe... e notou que ela não bebera mais nada.

— Imagino que um favor assim exigiria outro em retribuição, madame.

— Gostaria que viajasse no Prancing Cloud, a toda velocidade, como planejava, para se encontrar com Tess Struan. E entregasse uma carta minha.

Os olhos de Gornt se arregalaram em incredulidade.

— Isso é tudo?

— Não exatamente. Quando chegar a Hong Kong... o clíper estará lá muito antes do navio de correspondência... deve procurá-la antes que ela tome conhecimento da trágica notícia da morte de meu marido por intermédio de qualquer outra pessoa. É essencial que você a alcance primeiro, diga que traz uma terrível notícia, mas também informações secretas, informações vitais que garantirão a ruína dos Brocks para sempre, que logo os porão para fora dos negócios para sempre. — Angelique respirou fundo. — É o que vai acontecer, não é?

— É, sim — respondeu ele, pois não havia mais necessidade de negar.

— Depois, diga a ela que os Brocks planejaram assassinar Malcolm, usando Norbert Greyforth. Terceiro, que...

— Eles o quê?

— Não é verdade? Isso não era parte do plano de Tyler Brock? Ou de Morgan? Jamie pensa assim... e seria capaz de jurar. O Sr. Skye me falou sobre o duelo, o resto arranquei de Jamie... por que haveria um duelo. Norbert não era apenas um peão para o assassinato?

— É possível — murmurou Gornt, impressionado. — Mais do que isso, bem provável. E depois?

— Depois... — A voz de Angelique tornou-se mais clara, e estranhamente mais incisiva. — Por favor, diga a ela que é por minha causa que está levando informações para destruírem os Brocks... deve realçar isso.

— Por sua causa?

— Por minha causa. Enfatize isso. É importante para mim, não e pedir demais, e você conseguirá o que quer, de qualquer maneira.

— Tem certeza?

— Tenho. Diga a ela que ia esquecer esse contrato escrito com seu filho achando que não tinha mais valor. Mas como eu pedi, até suplique que a procurasse, no lugar do filho, você decidiu seguir o mais depressa possível para Hong Kong. — Angelique inclinou-se para a frente. — As informações exigem urna ação rápida, não é mesmo?

— É, sim.

— Pois enfatize isso. Mas, acima de tudo, ressalte que fui eu quem o persuadiu a ir procurá-la, que minhas súplicas o convenceram a lhe entregar as informações para destruir os inimigos de Malcolm e dela... que eu lhe assegurei que ela cumpriria o contrato, ou lhe ofereceria outro equivalente. E é o que Tess Struan fará, posso garantir.

— Com sua assinatura?

— É a primeira coisa que ela vai notar, por isso deve mencioná-la antes. Diga que Malcolm me pediu para ser testemunha de sua assinatura, dizendo apenas que era um contrato de negócios entre vocês dois, e que eu assinei na sua presença, sem pensar... na segunda-feira, antes da festa. Por último, diga que tem uma carta urgente minha e entregue-a. — Angelique levantou seu copo. — Se ela ler na sua frente... o que não deve acontecer... mas se ela ler, eu gostaria de saber sua reação.

Angelique tomou agora um segundo gole de champanhe, recostou-se, esperando, os olhos fixados nos dele. Seu rosto nada deixava transparecer.

— O que tem na carta?

— Poderá ler, se assim desejar, antes de eu lacrá-la. — Uma pausa, e ela acrescentou, o tom suave, sem maldade: — Vai lhe poupar o trabalho de abri-la.

A mente de Gornt ponderava sobre o enigma que era aquela mulher à sua frente.

— E a notícia da morte de Malcolm... do casamento e morte... como devo transmitir isso e o resto?

— Não sei, Edward. Você saberá como fazê-lo.

Ele soltou um grunhido, atônito com a desfaçatez, não, não desfaçatez, era mais astúcia. Não restava dúvida de que o objeti vo de Angelique era se insinuar no favor de Tess, superando a hostilidade atual, e prevenindo qualquer ação judicial, cível ou criminal, que uma mãe como Tess Struan, dilacerada pela agonia de sua perda, poderia desencadear contra ela... e as apostas no momento eram de cinco contra um como Tess o faria, e de dois contra um como ganharia.

Mas isso não importava, pois aquela estratégia poderia levar Angelique ao círculo dos vencedores... poderia. Com cuidado, não de todo como Angelique sugeria, mas com muito mais sutileza, ele poderia fazer o que ela propunha sem prejudicar sua própria posição, e fecharia o acordo com Tess Struan, que com certeza lhe daria tudo o que queria... depois que o choque pela morte do filho diminuísse e pudesse avaliar a enormidade do que era oferecido.

É melhor para mim livrar Angelique da ira de Tess Struan, muito melhor. E o que devo pedir em troca? Sua assinatura, é claro, mas o que mais? O que mais desejo dela? Há vários tipos de manobras que eu poderia...

Angelique estendia a mão cara a pena. Sua expressão era solene quando assinou como testemunha, pondo a data de anteontem. Sem dizer nada, ela enxugou a tinta, soprou o excesso de talco e estendeu o documento, ainda com os olhos abaixados.

— Independente do que decida, isto é seu agora, de graça — declarou ela apostando no apregoado senso de honra de Gornt.—Quanto ao resto, se me ajudar Edward...

Ela fez uma pausa, levantou os olhos agora, e alguma coisa no íntimo de Gornt se agitou, cheio de expectativa.

— ...teria também minha gratidão eterna.

 

Na casa do shoya, Jamie sentava sobre o tatame, de pernas cruzadas, sem sapatos, Hiraga à sua frente. O shoya sentava à cabeceira da mesa, onde havia saquê e chá.

Durante uma hora ou mais, Jamie respondera e fizera perguntas, Hiraga traduzindo, hesitando nas palavras estranhas, pedindo explicações adicionais para compreender com clareza. Jamie sentia-se cansado, não por causa do tempo ali consumido, uma trégua fascinante e bem-vinda em todos os seus outros problemas, mas porque parecia não haver solução para eles. Ficara transtornado com a recusa de Sir William em mudar de idéia sobre o sepultamento, embora compreendesse muito bem... ele faria a mesma coisa se estivesse na posição de Sir William. Pobre Angelique, pobre Malcolm, pobre Casa Nobre. Até mesmo pobre Tess.

Algo tem de ceder. Não será Wee Willie. Só pode ser Angelique... não há nada que ela ou qualquer outro possa fazer. Acho que desta vez ela vai quebrar.

Com toda a simplicidade possível, ele expusera sua idéia para um empreendimento conjunto, o shoya e seus contatos fornecendo as mercadorias em consignação que eles combinassem, Jamie entrando com o know-how europeu, um prazo de seis meses para pagamento, o que daria tempo para que os produtos fossem vendidos e o dinheiro voltasse, ou fosse reinvestido em artigos de produção em massa, que aconselhariam o empreendimento conjunto a importar. Isso levou a uma discussão sobre quantidades e depois a métodos de produção em massa que poderiam enriquecer a todos.

— Shoya pergunta: Quanto custa sua máquina de massu produk’shun?

— Depende do que as máquinas vão produzir — respondeu Jamie.

— Jami-sama, ele pedir, por favor, dizer que produtos fazer para vender na Inglaterra? Não agora, em três dias, por favor. Se shoya concordar, talvez fazer sociedade anônima e trazer máquina de massu produk’shun para Nipão.

Jamie sorriu.

— A produção em massa é inicialmente dispendiosa para se instalar, com máquinas e a fábrica. Não é como o empreendimento conjunto que sugeri. Não tenho a menor possibilidade de levantar tanto dinheiro.

— Jami-sama, não se preocupar, não se preocupar com dinheiro. Gyokoyama pode comprar Iedo, se quiser. — Hiraga sorriu, sombrio, e Jamie piscou, aturdido — Shoya agradecer e eu agradecer. Por favor, em três dias, dizer o que fazer e preço. Eu levar em casa.

— Não precisa, obrigado.

Hiraga fez uma reverência, o shoya fez uma reverência, Jamie retribuiu e saiu para o ar noturno.

— Chá, Sire? — indagou o shoya.

Hiraga recusou com a cabeça, preparando-se para sair também, precisando de um banho e massagem, mas satisfeito consigo mesmo, tudo consumado agora, exceto a cobrança dos supostos honorários de três koku pedidos por Jami Mukfey. O shoya pediu chá fresco e disse, depois que a criada se retirou:

— Tenho algumas notícias, que chegaram por pombo-correio, Otami-sama, sobre lorde Yoshi e sobre os shishi. Talvez queira ouvi-las.

— Pare com esse jogo! Claro que quero ouvir. — Agora que se encontrava a sós com o shoya, Hiraga tornou-se autoritário e samurai, sem sequer percebê-lo. — Quais são as notícias?

— Houve outro atentado contra lorde Yoshi.

— Ele morreu? — indagou Hiraga, esperançoso.

— Não, Otami-sama. Tome aqui. Leia você mesmo, por favor.

Com uma subserviência simulada, o shoya estendeu um papel, o mesmo que mostrara antes a Raiko e Meikin: Uma tentativa de assassinato contra lorde Yoshi, ao amanhecer, na aldeia Hamamatsu, fracassou. A assassina shishi solitária foi morta por ele. A dama Koiko também morreu na luta. Comunique nossa grande tristeza à casa da Glicínia. Mais informações assim que for possível. Hiraga ficou atordoado ao ler.

— Quando aconteceu?

— Há cinco dias, Otami-sama.

— E não teve mais notícias?

— Ainda não.

Lendo a mensagem, sua dor de cabeça se tornara ainda maior, os pensamentos confusos. Koiko morta, outra shishi morta! Quem? Se ela morreu, o que aconteceu com Sumomo?

— Já comunicou à casa da Glicínia?

— Já, sim, Otami-sama.

— O que Meikin disse?

Ficou transtornada, Otami-sama, como não podia deixar de ser.

— O que mais sabe, shoya?

— Já disse o que sei que pode afetá-lo e aos shishi.

— O que sabe sobre Katsumata e Takeda?

— A notícia, Sire, é de que eles ainda viajam para cá, assim como, supostamente, lorde Yoshi.

— Quando ele chega de volta? Mudou seus planos agora?

A mente de Hiraga era um turbilhão. Se Koiko morrera na luta, teria sido por acidente ou Yoshi descobrira que ela estendia seus tentáculos até nós, como Meikin?

— Não sei. Talvez em oito dias, Otami-sama.

O shoya percebeu a preocupação de Hiraga, e achou que era normal, pois era óbvio que ele corria um grande perigo... mas como é valioso! Concordo que ele é um tesouro nacional ou deveria ser. Empreendimento conjunto... uma idéia caída do céu! Meu filho trabalhará com esse gai-jin Jami, a partir de amanhã, para aprender as coisas dos bárbaros, depois não precisarei de Hiraga, que nada representa, a não ser problemas para mim, diretamente. Por mais que eu lamente, ele é um homem condenado. Como todos nós, se não tomarmos cuidado.

— Otami-sama, há muitos movimentos de tropas ao nosso redor.

— Hem? Que tipo de movimentos?

— O Bakufu reforçou as três estações de posta mais próximas de nós. E há ainda quinhentos samurais vigiando a estrada, ao norte e ao sul daqui. — Uma gota de suor escorreu pela face do shoya. — Estamos numa emboscada do tairo Anjo?

Hiraga praguejou; também podia sentir a crescente pressão.

— O que soube, shoya? Ele está planejando nos atacar aqui?

— Eu bem que gostaria de saber, Otami-sama. Talvez falar a Taira sobre as tropas possa ajudar a descobrir qual é o plano dos gai-jin.

— Eles vão bombardear Iedo, qualquer idiota sabe disso. — Hiraga sentiu intensa angústia ao pensamento da inevitável vitória dos gai-jin, embora isso fosse servir a sonno-joi mais do que qualquer outra coisa. — Não há nada que o tairo possa fazer para evitar...

Seu coração saltou uma batida, ele parou de falar.

— Exceto o quê, Otami-sama?

— Exceto a resposta da história, a solução habitual: um ataque de surpresa, súbito e brutal, para destruir a base da esquadra.

Hiraga espantou-se por ter partilhado seu pensamento tão francamente com uma pessoa inferior, embora o shoya fosse inteligente, um aliado valioso, e muito em breve um parceiro nos negócios.

E ele pensou, em meio às vibrações da cabeça latejando, há muita coisa que não compreendo, o mundo está virando pelo avesso, tudo é diferente, eu me tornei diferente, não sou mais samurai, não totalmente samurai. É culpa desses repulsivos gai-jin, com suas idéias sórdidas, gananciosas... e tentadoras. Eles devem ser expulsos — sonno-joi, sonno-joi, sonno-joi — mas ainda não. Antes, massu produk’shun e, primeiro, fabricar fuzis.

— Shoya, mande espiões espreitarem, caso seja esse o plano de Anjo.

— Espiões, Otami-sama?

— Já é tempo de parar com os jogos, shoya. Está me entendendo? Nada mais de jogos!

— Obedeço em tudo, Otami-sama. Como sempre, como...

— Saiu-se muito bem esta noite, shoya. Assim que tiver mais notícias sobre Yoshi ou os shishi, mande me avisar, por favor.

Hiraga acrescentou o “por favor” como uma grande concessão.

— Tão depressa quanto uma ave marinha pescadora, Sire.

— Boa noite então... Ah, desculpe, já ia me esquecendo dos honorários do gai-jin. Ele me pediu para lembrar-lhe.

O shoya sentiu o estômago embrulhado. Tirou da manga uma pequena bolsa... teria sido uma grosseria a entrega direta a Jami-sama.

— Aqui tem o equivalente em oban de ouro a um koku e meio, Otami-sama, O resto dentro de dez dias.

Hiraga deu de ombros, guardou a bolsa em sua manga, como se fosse uma coisa irrelevante, mas se espantou com o peso e alegria que lhe proporcionou.

— Avisarei a ele e o trarei aqui dentro de três dias.

— Obrigado, Otami-sama. Esses movimentos de tropas me deixam muito preocupado. A guerra é iminente. Meus superiores dizem que se pudessem ter um aviso antecipado sobre os planos dos gai-jin... ficariam profundamente agradecidos por qualquer ajuda. Talvez o seu Taira-sama...

Esperançoso, o shoya deixou o nome ressoando no ar. Ele recebera hoje outra mensagem do escritório central em Osaca, mais urgente do que a anterior. Como se eu não soubesse ler?, pensou o shoya, irritado, como se fosse negligente e desleal. Faço tudo o que posso. O problema é daquelas mama-sans desgraçadas. Dois dias, e ainda não tive nenhuma notícia delas!

Antes de deixar Raiko e Meikin, ele ressaltara a necessidade urgente de saber tudo o que elas sabiam, ou pudessem descobrir, o mais depressa possível. Sua raiva começou a aumentar, não apenas porque as duas mulheres haviam fingido que não sabiam de nada, por mais que as adulasse, muito embora tivesse certeza de que elas estavam a par de alguma coisa, mas também porque seus preciosos oban de ouro se encontravam na manga daquele ganancioso samurai, para pagamento a um ganancioso gai-jin, mesmo que os honorários fossem bem merecidos. E onde vão terminar todos os meus adoráveis oban? Com toda certeza, na ravina de ouro de alguma prostituta.

— Muito obrigado, Otami-sama — disse o shoya, untuoso, enquanto Hiraga se retirava.

Ele manteve a cabeça no tatame para esconder o rilhar dos poucos dentes quebrados restantes, querendo humilhar Hiraga, fazê-lo suar, contando tudo, sem o menor remorso: Ah, sinto muito, sua falecida prostituta Koiko estava implicada na conspiração, assim como sua assassina treinada e ex-futura esposa, Sumomo, que também teve a cabeça cortada, e sua partidária dos shishi, Meikin, mama-san dos homens mais importantes de Iedo — até mesmo líderes da Gyokoyama — não continuará neste mundo por muito mais tempo, pois presumimos que Yoshi também sabe de tudo a seu respeito.

E apesar de você ser o mais esperto entre todos os samurais que já conheci, também está condenado... e ainda assim meus ilustres superiores esperam que eu o trate como um tesouro nacional e o mantenha vivo. Oh ko!

Esta noite vou me embriagar, mas não antes de me dar os parabéns pela eminente formação da Ryoshi Joint-u Vem’shur Stoku Kompeni! Ah, uma idéia digna dos deuses!

 

Voltando para casa, Jamie McFay abriu a sobrecasaca, embora o ar da noite fosse frio. Sentia bastante calor. O conhecimento adquirido era substancial e sua concentração relegara todas as preocupações a segundo plano. Era tudo muito interessante, refletiu ele, mas nenhum daqueles dois tem a menor idéia dos custos iniciais da produção em massa. E, no entanto, a maneira como Nakama disse que a Gyokoyama podia comprar e vender Iedo, se assim quisesse, por um momento acreditei realmente nisso. O shoya entrará num empreendimento conjunto, uma joint venture, tenho certeza.

Seus passos eram rápidos e cumprimentava as pessoas por que passava na High Street. Subiu os degraus do prédio da Struan, entrando em seu domínio. É meu de novo, pensou, com orgulho. Talvez Tess mude de idéia agora... ela não é nenhuma tola e fiz um bom trabalho.

Vargas estava esperando.

— Boa noite, Vargas. Hora de fechar?

— Isso mesmo. Antes, senhor, queria lhe entregar estas cartas que chegaram pela correspondência de ontem e que, de alguma forma, foram parar na minha bandeja de entrada.

As duas cartas tinham a indicação de Pessoal e Confidencial, e eram endereçadas a ele. A primeira tinha a letra de Tess Struan. Jamie sentiu um frio no estômago. A outra era de Maureen Ross, sua ex-noiva. Sua apreensão dobrou.

— Obrigado — murmurou ele.

Apesar de sua determinação em esperar, não pôde se conter e abriu a carta de Tess. Esta é para lhe comunicar formalmente que o Sr. Albert MacStruan foi transferido de Xangai e chegará pelo vapor Wayfong, no dia 17. Por favor, ponha-o a par de todas as operações japonesas. Na dependência de seu não-atendimento às cartas anteriores, ele assume o controle ao final de dezembro.

Sua dispensa da Casa Nobre, agora que fora consumada, não o enfureceu como esperava. Na verdade, sentiu-se aliviado. Estranho, há poucos momentos pensei que era meu... Ele levantou os olhos para deparar com Vargas a observá-lo atentamente.

— O que mais, Vargas?

Jamie dobrou a carta, largou-a na mesa, junto com a outra.

— A Sra. Angelique está no gabinete do tai-pan. Perguntou se o senhor poderia ir vê-la por um momento.

— Qual é o problema agora?

— Nenhum, ao que eu saiba, senhor. A noite foi tranqüila. Chegou uma mensagem de sua Nemi, indagando se a visitaria mais tarde. Mais um outro assunto, o capitão Strongbow tornou a pedir suas ordens para zarpar. Eu lhe disse para ser paciente. Será na maré noturna?

— Acho que sim. Mande um aviso para Nemi: Talvez.

— Pois não, senhor. Então está decidido? O corpo do tai-pan seguira no Cloud? E a senhora também?

— Ou no clíper ou no navio de correspondência, um ou outro.

Jamie afastou-se pelo corredor, foi bater na porta. Angelique sentava na cadeira de Malcolm, que Jamie já começava a pensar como dela, lendo o Guardian, à luz de um lampião a óleo.

— Olá, Jamie.

— Boa noite. Decidi acompanhá-la no navio de correspondência. — Ele fez um esforço para não parecer muito brusco. — É obrigação minha explicar tudo a Tess Struan. — Tendo falado, Jamie sentiu-se melhor, e acrescentou: — É meu dever e acho que Mal... acho que ele gostaria que eu fizesse isso e a poupasse um pouco.

— Sei disso. — Angelique exibiu um doce sorriso. — Tenho certeza de que ele gostaria mesmo. Feche a porta, Jamie, e sente-se por um momento.

Depois que ele obedeceu, Angelique baixou a voz, e relatou o plano de Hoag.

— Pode levar o cúter até Kanagawa amanhã, com o resto de nós, ao final da tarde?

Ele a fitava atordoado. Fora apanhado de surpresa.

— Você está louca. Esse plano é absurdo.

— Não é, não. O Dr. Hoag acha...

— Ele também enlouqueceu... nunca escapariam impunes.

— Por quê? — indagou ela, calmamente.

— Por cinqüenta razões... tantas razões que nem vou mencionar nenhuma. Toda a idéia é ridícula, insana, Willie vai prender todo mundo.

— O Sr. Skye diz que não há nenhuma lei contra o que faríamos. O sepultamento seria legal, ele garante.

— O Sr. Sabe-Tudo diz isso, hem? E o que mais Heavenly vai fazer... levantar a gola e oficiar o serviço religioso?

— O Sr. Skye acha que podemos persuadir o reverendo Tweet a fazer isso — disse Angelique, como se ele fosse uma criança num acesso de raiva.

Jamie ergueu as mãos.

— Vocês dois estão loucos, e Hoag é um diabo, perdeu o juízo ao sugerir isso. Partiremos no navio de correspondência, você, eu e ele.

Ele encaminhou-se para a porta.

— Jamie, você pode manobrar o cúter sozinho ou precisaremos de uma tripulação?

Ele virou-se, espantado. Angelique sorriu, determinada, mas insinuante.

— Precisaríamos de uma tripulação?

— Dois homens no mínimo. O contramestre e o engenheiro, pelo menos.

— Obrigada. Se você não quiser ajudar, posso pedir ao contramestre?

— Parece que não consegui fazê-la entender. A idéia é temerária, absolutamente temerária.

Angelique acenou com a cabeça, tristemente.

— É bem provável que você esteja certo, e não consigamos nada, mas vou tentar e tentar de novo. Parece que também não consigo fazer com que você entenda, meu querido Jamie. Prometi amar, respeitar e obedecer a meu marido e seu amigo, pois ele era seu amigo, e sinto que não me separei dele, ainda não nem você. Tess Struan não vai cumprir o desejo dele, não é mesmo?

Durante todo o tempo, Jamie estivera fitando-a, sem vê-la, e ao mesmo tempo vendo cada detalhe, recordando todos os anos de Tess Struan, e o que ela e Culum haviam significado para ele, o que Malcolm significara, o que Dirk Struam significara, o que a Casa Nobre significara. E tudo acabara, tudo definhara, tudo se desperdiçara, nossa Casa Nobre não é mais nobre, não é mais a primeira na Ásia. Isto é, nem tudo desperdiçado, nem tudo acabado, mas a glória passou, meu amigo morreu, e isso é um fato. Eu era seu amigo, mas ele era meu? Deus Lá em Cima, o que não fazemos em nome da amizade!

— Tess não o sepultaria como ele queria. Suponho que é o mínimo que um amigo pode fazer. Providenciarei o cúter.

Jamie saiu. No silêncio cada vez mais denso da sala, Angelique suspirou, pegou o jornal e recomeçou a ler.

 

 

Naquela noite, quando o Dr. Hoag chegou à legação em Kanagawa, parte do templo budista, foi recebido por Towery, sargento no comando, elegante em seu uniforme da guarda, túnica escarlate, calça branca, botinas pretas.

— Não o esperava até de manhã, doutor.

— Precisava verificar se estava tudo pronto. Queremos partir cedo.

Escoltando-o até a parte do templo usada como necrotério, Towery riu.

— Se o deixou pronto, doutor, ele continua pronto, porque não saiu para dar uma voltinha.

Ele abriu a porta. A sala era grande, o chão sujo, com um acesso ao jardim por portas de veneziana. Towery farejou o ar.

— Eles ainda não fedem. Nunca gostei de cadáveres. Quer uma ajuda?

— Não, obrigado.

Os dois caixões estavam sobre cavaletes, as tampas ao lado, havia outros, encostados na parede. Os corpos se encontravam estendidos em mesas de mármore, cobertos por lençóis. Havia enormes barricas no outro lado, contendo gelo. A água vazava das barricas para o chão de terra batida.

— O que me diz do nativo? Por quanto tempo vamos mantê-lo aqui?

— Até amanhã.

Hoag sentiu uma súbita vertigem, lembrando que, pelo costume, o corpo seria reivindicado para cremação, segundo o ritual xintoísta, mas agora não haveria corpo...

— Qual é o problema, doutor?

— Nada, apenas um... obrigado, Sargento.

Seu coração recomeçou a bater ao recordar que o homem era coreano, um dos pescadores de um barco naufragado, levando uma existência patética, sem meios de voltar para sua terra, indesejado e desprezado pelos locais. Babcott concordara cremar o corpo no crematório budista.

— Na verdade, sargento, poderia me dar uma ajuda.

O cadáver de Malcolm fora limpado e vestido, depois da necropsia, pelos assistentes japoneses. Com a ajuda do sargento, que pegou os pés, eles o puseram no caixão.

— Ele parece muito bonito para um cadáver — comentou o sargento, pois o rosto de Malcolm era sereno na morte. — Vamos fazer a mesma coisa com o outro, doutor. Não vai querer ficar com uma hérnia, não é? É verdade que este sujeito não deve pesar muito.

— É melhor envolvê-lo com o lençol.

O coreano era só pele e ossos. A disenteria o matara. Juntos, levaram-no para o caixão.

— Obrigado. Vou terminar de arrumar tudo aqui, e depois irei me deitar.

— Certo, doutor. Cuidarei para que seu quarto esteja arrumado.

Assim que ficou sozinho, Hoag trancou a porta. Com a concordância de Angelique, haviam decidido que não haveria a tradicional exposição, com o caixão aberto, para que as pessoas prestassem a última homenagem ao falecido. Com todo cuidado, ele ajustou a tampa no lugar. Não demorou muito para pregá-la.

Agora, o outro. Haveria uma grande diferença no peso. O que usar para compensar? Terra. Havia uma pá que pertencia aos coveiros num lado... nem todos os corpos eram cremados. Lá fora, a terra era mole, a noite fria, com um vento ameno, que fazia a vegetação sussurrar. Ele cavou depressa, entrando com a pá cheia, espalhando aterra por cima e em torno do cadáver, compactando-a. Uns poucos galhos preencheram os espaços vazios. Satisfeito, ele baixou a tampa, martelou os pregos. Encostou-se no caixão, ofegante, suado e sujo, ainda mais preocupado do que no momento em que começara. Heavenly tem razão, pensou ele, enquanto lavava as mãos num balde, nunca escaparemos impunes a uma coisa assim.

— Perdeu o juízo por completo, doutor — dissera Skye, com sua tosse seca. — Ela também, e até eu, porque vou entrar nessa. Wee Willie vai subir pelas paredes, mas não importa, cuidaremos de tudo amanhã de noite.

Haviam conversado no clube, poucas horas antes, o ambiente enfumaçado e barulhento, como sempre.

— Toma outro uísque, doutor?

— Não, obrigado. Prefiro um café e depois acho melhor ir embora.

— A história dela me lembrou da minha Nellie, doutor. Casei quando era um aprendiz, tinha dezesseis anos, ela quinze, pelo menos fingíamos que éramos casados, vivíamos numa mansarda perto da Fleet Street, não muito longe do Old Cheshire Cheese Pub, o lugar de Sam Johnson. Ela morreu no parto, a criança teria sido um menino, morreu também.

Ele oferecera um charuto, acendera outro para si mesmo, antes de continuar:

— Cova rasa, umas moedas para o coveiro noturno, traga logo seus mortos, e foi o fim dos dois. O cólera foi terrível naquele ano, a disenteria também, os cemitérios transbordavam. — Heavenly cuspira na escarradeira. — Há anos que não pensava na pequena Nellie. Já foi casado, doutor?

— Uma vez. Ela morreu em Londres também.

— Outra coincidência, hem? Nunca mais tive vontade de casar depois de Nellie... jurei que nunca mais seria tão pobre assim de novo, não importava o que tivesse de fazer... sempre andando, viajando demais. Tive uma porção de mulheres mas nunca peguei a sífilis. Pegou, doutor?

— Não. — Hoag cruzara os dedos. — Ainda não.

— Ei, também é supersticioso, como eu?

— Sou, sim. Tem certeza de nossa posição legal neste caso?

— Tanta certeza quanto se pode ter, tanto quanto merda... mas se Wee Willje quiser, pode inventar uma dúzia de acusações, não se preocupe. Mas o que quer que aconteça, Tess Struan vai ter um ataque, cortará seu estipêndio, e vai se descobrir no meio do rio sem um remo.

— Nada disso. Voltarei à índia...

É estranho como o mal leva ao bem, ou o bem ao mal. Tudo isso realmente me decidiu. Voltarei desta vez, para Cooch Behar, em Bengala, onde servia, e de onde ela saiu. Procurarei sua família, e... veremos o que acontece depois. Tenho dinheiro suficiente para isso, e me restam uns poucos anos, nosso filho e nossa filha estão crescidos agora, parte da vida de Londres, educados da melhor forma que eu podia, minha irmã e seu marido são os verdadeiros pais... ambos o que de melhor existe na Inglaterra.

Sou um bom médico, e Deus sabe como precisam de médicos na índia, até os ruins. Assim, quem sabe, talvez eu possa encontrar um pouco de felicidade... Nem sequer espero isso, apenas um pouco de paz, do horror de tê-la matado.

Exausto agora, ele examinou os dois caixões. Um último olhar para confirmar que tudo estava como deveria. Pegando o lampião a óleo, Hoag saiu e trancou a porta.

Uma lua fúnebre projetava uma sombra pelas janelas abertas. Em silêncio, outra sombra se moveu. O sargento Towery deu uma espiada no necrotério. Estava perplexo. Por que Doc Hoag chegaria no meio da noite, e depois por que escavaria no jardim, como um ladrão de sepulturas, para encher de terra o caixão do nativo?

A curiosidade matou o gato, meu caro, mas não no meu caso, não quando estou no comando. Amanhã você vai verificar tudo direitinho, antes de o bom doutor acordar, e antes do senhor-deus-todo-poderoso Pallidar chegar para a inspeção. Ele pode encontrar a resposta.

 

KANAGAWA, Sexta-feira, 12 de dezembro:

Pallidar disse, a voz fria:

— E então, doutor?

Hoag acabara de ser chamado. Sentava na beira da cadeira, contrafeito e pálido. Empertigado, de uniforme, Pallidar era imponente, embora estivesse com um forte resfriado. Na mesa estava seu chapéu emplumado, a espada ao lado. A primeira claridade da manhã refletia-se nos alamares. Por trás dele se postava o sargento Towery. Os sinos do templo ressoaram, ominosos. Hoag deu de ombros.

— Lastro.

— Pelo amor de Deus, doutor, isto não é uma corte marcial, e pessoalmente não me importo se enche os caixões com bosta de vaca. Por favor, diga-me por que fez o que fez na noite passada.

— Eu... achei que era uma boa idéia.

— Quero saber, agora...

Um acesso de tosse interrompeu-o. Exasperado, Pallidar assoou o nariz, tossiu, limpou a garganta, tossiu de novo. Hoag disse, animado:

— Eu... nós temos uma mistura nova e especial para a tosse na clínica. Vai livrá-lo desse resfriado num instante. Tem quinino e ópio também. — Ele começou a se levantar. — Vou buscar...

— Sente-se! O caixão, pelo amor de Deus, não meu resfriado! O sargento viu e me contou, como era seu dever. E agora me diga: por quê?

Hoag se contorceu todo, mas sabia que se encontrava acuado. Amaldiçoando o sargento no íntimo, ele murmurou:

— Posso... posso lhe falar a sós, Settry, por favor?

Pailidar lançou-lhe um olhar furioso.

— Está certo. Sargento!

Towery bateu continência e se retirou.

— E então?

— É que... entende...

Hoag decidira lhe dizer que não se metesse no que não era da sua conta, que não estava mais sujeito à disciplina militar, graças a Deus, vocês, oficiais, já me intimidaram antes, e agora não vão fazê-lo outra vez... mas descobriu-se de repente a contar toda a história, em detalhes, e concluiu:

— Como pode compreender, Settry, havia o problema do peso, a diferença no peso, e a terra era perfeita... Escute, George Babcott deve chegar a qualquer momento, ele não deve saber, ninguém deve saber... você não sabe de nada apenas enviamos o caixão errado... o caixão certo... a bordo do clíper, e esta noite quando o cúter chegar, se Deus quiser, nós o sepultamos como ele queria, como Angel quer.

Hoag abanou-se, sentindo-se melhor, ao mesmo tempo com uma vertigem de culpa.

— Você não sabe de nada. Agora, vou pegar aquele xarope para a tosse.

— Vai continuar sentado aí! — disse Pailidar, ríspido. — Você não passa de um idiota. Primeiro: já olhou pela janela?

— Como? — Hoag obedeceu. As janelas davam para o mar, que estava cinzento, encapelado, nuvens escuras cobrindo o sol, dominando o céu. — Oh!

— Isso mesmo, oh! Haverá uma tremenda tempestade antes do anoitecer; assim não teremos nenhum sepultamento no cúter, mesmo que isso fosse possível. Como sabe, Sir William ordenou o sepultamento em Hong Kong e é lá que terá de ser.

— Mas, Settry, não...

— Nem por você, nem por Angelique, nem por qualquer pessoa... — Pailidar parou de falar, dominado por um novo acesso de tosse, depois acrescentou, a voz rouca: — Sir William está no comando, tomou uma decisão, e ponto final. Entendido?

— Entendido, mas...

— Não tem nenhum mas! Por favor, vá buscar o xarope para a tosse e fique longe do necrotério. Sargento!

Towery estendeu a cabeça pela porta.

— Pois não, senhor?

— Ponha uma sentinela no necrotério. Ninguém entra sem a minha aprovação. Não quero que os caixões sejam tocados.

Hoag saiu, praguejando contra si mesmo por ter revelado a decisão de Sir William, contra Pallidar, contra o sargento intrometido, mas acima de tudo contra si mesmo. Merda, pensou ele. Meti os pés pelas mãos. Na clínica, encontrou o xarope, sentiu-se tentado a acrescentar um pouco de óleo de rícino, mas não o fez.

— Tome aqui, Settry. Isto vai resolver seu problema.

Pallidar tomou um pouco, engasgou.

— Mas que porcaria horrível! Tem certeza que não deu uma mijada nisto só por maldade?

— Bem que me senti tentado. — Hoag sorriu. — Desculpe por ter bancado o idiota rematado. Mas você ainda pode fechar os olhos e sabe disso. Foi o que Nelson fez.

— Acontece que Nelson era da marinha e nós, os outros, temos de cumprir os regulamentos.

— Por favor, Settry...

Pensativo, Pallidar tomou outro gole do xarope.

— Devem se submeter à ordem de Sir William, é o melhor, a longo prazo. Seriam apanhados, inevitavelmente. E as coisas estão engrossando.

— É mesmo? — A atenção de Hoag focalizou as linhas de preocupação no rosto bonito. — Qual é o problema?

— Comigo, nenhum, exceto este maldito resfriado e a tosse. Mas tem muita coisa acontecendo na colônia.

— O que houve agora?

— Nos últimos dias, muita movimentação do inimigo ao nosso redor, patrulhas de samurais, a maioria disfarçada... só por precaução, estamos patrulhando até a Tokaidô e os limites da colônia, e por onde os avistamos. Vindo para cá, encontrei em alguns pontos grandes concentrações de samurais. Não interferiram conosco, a não ser pelo palavrório habitual. Contei quase quatrocentos miseráveis armados.

— O tairo Anjo tenta nos assustar?

— É bem provável. — Pallidar tossiu, tomou outro gole do xarope. — Isto é horrível, já me sinto pior. Vou recomendar a retirada de todo o pessoal daqui por algum tempo.

Hoag assoviou.

— Não gostaríamos de fechar a clínica.

— E eu não gostaria de vê-los mortos sem um caixão. Esses desgraçados adoram ataques de surpresa. Como o que aconteceu com o pobre Malcolm. Alguém terá de pagar por ele.

Hoag balançou a cabeça.

— Concordo.

Ele olhou na direção de Iocoama, os campos planos e desinteressantes no inverno — detesto o frio, sempre detestei, e sempre vou detestar. Seus olhos o levaram até o Prancing Cloud, o navio de correspondência a vapor, os navios mercantes, navios de guerra, tênderes, todos movimentados, preparando-se para a tempestade iminente, ou preparando-se para zarpar. Os navios de guerra tinham filetes de fumaça saindo pela chaminé — ordens do comando da esquadra, bem divuladas, para que o Bakufu e seus espiões soubessem que todos os navios podiam zarpar em condições de combate no prazo de uma hora.

Era uma estupidez, toda aquela perspectiva de matança, mas também o que podemos fazer? Os responsáveis devem pagar. Depois ele avistou a fumaça do cúter a vapor da Struan, avançando pelas ondas, os borrifos levantados pela proa molhando o vidro da ponte de comando e a cabine principal. Sua ansiedade atingiu o ponto máximo.

— Settry, não acha...

Ele suspendeu a súplica fervorosa, compreendendo de repente que mesmo que fosse impossível o sepultamento naquela noite, com um pouco de sorte ainda poderia cumprir a primeira parte do plano, e despachar o caixão errado para o Prancing Cloud.

Sou o único que sabe que caixão é de quem, com exceção talvez do sargento e tenho a impressão de que ele não vai perceber a diferença. Ninguém pode, à menos que um caixão seja aberto.

— Não acha que a vida em Iocoama é mais esquisita do que em outros lugares, já que vivemos num barril de pólvora?

— É a mesma coisa por toda parte, exatamente a mesma coisa — disse Pallidar, pensativo, observando-o.

 

IOCOAMA

Jamie, Angelique e Skye se agrupavam diante da janela grande no escritório do tai-pan. A chuva batia no vidro. Era quase meio-dia.

— Esta noite será perigoso demais.

— Quer dizer que teremos uma tempestade, Jamie?

— Isso mesmo, Angelique. O suficiente para nos deter.

— O Cloud ainda partirá esta noite, conforme o planejado?

— Claro. Nenhuma tempestade pode detê-lo aqui. O cúter já seguiu para Kanagawa, a fim de buscar o outro caixão. Ainda quer que seja embarcado no Cloud, e não no navio de correspondência?

— A ordem é de Sir William, não minha — disse ela, a voz firme. — Ele quer despachar meu marido contra os desejos dele e os meus, diz que deve ir o mais depressa possível, e assim tem de ser pelo clíper. E um caixão partirá como ele quer. Jamie, nosso ardil... acho que nosso ardil é justo. Quanto à tempestade, será pequena. Se não pudermos sepultar meu marido esta noite, tentaremos amanha. Ou no dia seguinte.

— O navio de correspondência partirá amanhã, por volta de meio-dia.

— Não pode retardar um pouco?

— Acho que sim. Pelo menos tentarei. — Jamie pensou por um momento — Falarei com o capitão. O que mais?

Angelique sorriu, triste. _

— Primeiro, temos de verificar se o Dr. Hoag foi bem-sucedido. Se não talvez eu deva seguir no clíper, no final das contas.

— É mais do que provável que Hoag volte com o cúter, então poderemos decidir. — Jamie fez uma pausa e acrescentou, sem acreditar: — De alguma forma, tudo acabará dando certo. Não se preocupe.

— O que acha de pedir a Edward Gornt para se juntar a nós? — indagou Angelique.

— Não — respondeu Jamie. — Nós três somos suficientes, junto com Hoag. Arrumei lugares no navio de correspondência para Hoag, você e eu.

Skye interveio:

— Angelique, é muito mais sensato para você permanecer aqui. Todos aqui sabem que Wee Willie tomou a decisão contra os seus desejos e isso alivia um pouco a pressão sobre você.

— Se não pudermos sepultar Malcolm, então eu irei. Não posso deixar de estar presente em seu funeral. — Ela suspirou. — Precisamos ter um capitão em nossa empreitada. Jamie, deve ser você.

— Concordo — declarou Skye. — Enquanto isso, esperamos por Hoag.

Jamie fez menção de falar, mudou de idéia, acenou com a cabeça, e foi para sua sala. Havia uma pilha grande de correspondência à espera de ação. Começou a despachá-la, trabalhando com diligência, mas sua concentração era perturbada pela gaveta. Fora ali que guardara a carta de Maureen. Por fim, largou a pena, pegou a carta e releu-a. Não havia necessidade, pois já a lera vinte vezes antes.

A parte fundamental era a seguinte: Como não houve resposta aos meus fervorosos pedidos e orações para que você voltasse, e retomasse uma vida normal em casa, decidi depositar minha confiança no Criador, e me arriscar em uma viagem a Hong Kong, ou até o Japão, onde quer que você esteja. Meu amado pai nos adiantou o dinheiro, que tomou emprestaao contra uma hipoteca de nossa casa em Glasgow — por favor, deixe uma mensagem para mim com a Cook‘s, em Hong Kong, pois parto amanhã, na segunda classe, no Eastern Mail, da Cunard...

A data era de dois meses e meio atrás.

Jamie soltou um grunhido. Ela estará em Hong Kong a qualquer dia agora. Minha carta chegou tarde demais. O que vou fazer agora? Sorrir? Esconder-me? Fugir para Macau, como o velho Aristotle Quance? De jeito nenhum. É a minha vida, e não posso de jeito nenhum sustentar uma esposa, não quero uma esposa... mas não posso escrever a mesma carta de novo, e enviá-la para Hong Kong. Terei...

Uma batida na porta interrompeu seus pensamentos.

— O que é? — berrou ele.

Hesitante, Vargas esticou a cabeça pela porta.

— Posso lhe falar por um momento, senhor?

— Claro. O que é?

Vargas informou, com uma repulsa evidente:

Há um homem aqui que deseja vê-lo, um certo Sr. Corniman... ou algo parecido.

O nome nada significava para Jamie. Vargas entreabriu a porta. O homem era baixo, parecia um furão, vestia-se de maneira estranha, parte em roupas europeias, parte japonesas. Camisa, calça e um casaco grosso, rosto raspado, cabelos limpos amarrados num rabo-de-cavalo, uma faca no cinto, botinas bastante gastas. Jamie não o reconheceu, mas aqui os estranhos não eram muitas vezes o que pareciam. Num súbito impulso, ele disse:

— Entre e sente, por favor. — Depois, ele recordou o navio de correspondência. — Vargas, peça ao capitão Biddy para me procurar, está bem? Ele deve estar no clube. Sente-se, Sr. Corniman... é esse o seu nome?

— Está grogue, companheiro?

— Quem é você e o que quer?

— Johnny Cornishman, lembra? Estive aqui com você e o tai-pan, eu e meu companheiro, Charlie Yank. Somos garimpeiros, lembra?

— Garimpeiros? Ah, sim, lembro dos dois agora.

O homem estava limpo e arrumado, quando antes era um vagabundo cabeludo, sujo e fedorento. Os olhinhos malignos e furtivos não haviam mudado.

— Fizemos um acordo, mas vocês preferiram acertar tudo com a Brock, nos traindo.

— É verdade, foi o que fizemos. Mas somos homens de negócios. Norbert ofereceu mais dinheiro, não é? Mas esqueça, ele está morto. Primeiro, tem um trago? Conversamos em seguida.

Jamie não deixou transparecer seu interesse. Um homem como aquele não o procuraria sem ter alguma coisa para negociar. Ele abriu o armário, serviu meio copo de rum.

— Descobriram alguma coisa?

O homenzinho tomou a metade do rum, engasgou, exibiu as gengivas, desdentadas, a não ser por dois dentes marrons e tortos.

— Rum é melhor do que saquê, mas não importa, porque as tais gueixas compensaram a falta de um trago de verdade. — Ele arrotou, sorriu. — Desde que você vomite. Jesus, como elas são esquisitas com água e limpeza, mais do que na nossa Yoshiwara. Mas depois que você está limpo, elas sacodem o rabo até a chegada ao reino dos céus!

Ele caiu na gargalhada de sua própria piada e depois acrescentou, a voz mais dura:

— Temos o carvão de melhor qualidade para vapor, companheiro, o suficiente para abastecer toda a porra da sua frota. Pela metade do preço de Hong Kong, na tonelada.

— Onde? Entregue onde? — indagou Jamie, animando-se. — O carvão para as máquinas a vapor era extremamente valioso, mas escasso, ainda mais para frota. Um fornecedor local seria uma dádiva divina, além de uma constante fonte de receita. Mesmo ao dobro do preço de Hong Kong ele poderia vender tudo que obtivesse, e ainda mais pela metade. — Entregue onde?

— Aqui mesmo, em Yokopoko. Mas seis pence por tonelada você deposita no banco em nome de Johnny Cornishman. — Ele tomou o resto do rum. — Tem de pagar em mex de ouro ou prata, e fará o pagamento a este sujeito.

O garimpeiro entregou um pedaço de papel. A escrita péssima dizia: Aldeia Iocoama, Shoya Ryoshi, mercador da Gyokoyama.

— Esse sujeito sabe o que fazer, já conhece tudo. Sabe quem é ele?

— Sei, sim. É o chefe da aldeia.

— Ainda bem. Meu chefe disse que você devia conhecê-lo.

— Quem é o seu chefe?

Cornishman sorriu.

— Lorde Mandachuva em pessoa. Você não precisa de nomes. E não vamos perder tempo. O negócio está fechado, sim ou não?

Depois de um momento, Jamie perguntou:

— Onde fica a mina?

— Fui eu quem descobriu, companheiro, não você. — O homenzinho riu, impertinente. — Fica perto, mas em terras inimigas. Escute, o primeiro veio que encontrei era numa montanha de carvão aqui perto, com mil desses amarelos para escavar, o suficiente para vinte frotas, durante vinte anos.

— E por que me procurou? Por que me pede para fazer o negócio com você?

— Porque Norbert morreu e porque você é quem manda aqui, agora que o tai-pan morreu. As coisas aqui por Yokopoko andam meio perigosas, hem? — Cornishman estendeu o copo. — Eu gostaria de tomar mais um trago, se não se incomoda, mister todo-poderoso da Struan.

Jamie tornou a servi-lo e voltou à cadeira. Cornishman notou que a dose era pela metade e resmungou:

— Só isto?

— Pagaremos um quinto do preço de Hong Kong, menos as taxas, o carvão entregue aqui, a primeira entrega dentro de trinta dias. Nenhum acordo por fora.

Os olhos do homenzinho esquadrinharam a sala, como os de um rato.

— Qualquer taxa você é quem paga, companheiro. E meu acordo por fora continua. Vamos fazer uma coisa: depois de amanhã, você me manda uma barcaça para as proximidades de Iedo, o lugar que eu indicar. Depois de amanhã. Vamos encher a porra da barcaça, você paga apenas um quinto, traz aqui para Yoko, paga o resto a esse sujeito, o que está aí no papel. Seis pence por tonelada no banco em meu nome, Johnny Cornishman. Não podia ser mais justo, hem? Recebe o carvão antes de pagar, e pela metade do preço em Hong Kong.

— Um quinto do preço total de Hong Kong.

O rosto do homenzinho se contorceu em raiva.

— Pela metade do preço de Hong Kong você já estará tendo um tremendo lucro, pelo amor de Deus! E o carvão aqui não é como a porra do carvão de lá. Poupa o custo do transporte, o seguro e só Deus sabe o que mais... não somos uns merdas, isso é um negócio respeitável!

Jamie riu.

— Já sei o que vamos fazer: na primeira barcaça, pago um terço do preço de Hong Kong. Se a qualidade for mesmo o que você diz, e garantir a entrega de uma barcaça por semana, ou qualquer coisa parecida que conseguir, aumentarei ao longo do ano para a metade do preço de Hong Kong, menos quinze por cento. Três pence por tonelada para você por fora. E o que me diz de seu sócio... como é mesmo o nome dele? Charles Yank?

— Seis pence ou nada. — Outra vez os olhos correram pela sala e voltaram a se fixar em Jamie, faiscando. — Ele está morto, como seu tai-pan, mas não morreu como aquele sujeito de sorte.

— É melhor tomar cuidado com o que diz sobre o nosso tai-pan.

— Não enche, companheiro. Não houve desrespeito. Todos nós gostaríamos de ir ao encontro do sujeito lá em cima com uma xoxota na ponta do nosso pau — Ele terminou de tomar o rum e levantou-se. — Daqui a dois dias, ao meio-dia Pegue o carvão aqui.

Ele estendeu um pequeno mapa. O X era na costa, alguns quilômetros ao norte de Kanagawa, ao sul de Iedo.

— Leve seus tênderes e a gente entra com a mão-de-obra.

— Não pode ser daqui a dois dias, pois cai num domingo. Vamos passar para a segunda-feira.

— Está certo. O dia do Senhor é o dia do Senhor. Três dias.

Jamie estudou o mapa. Uma barcaça de carvão desprotegida, com tênderes e tripulantes, podia ser um alvo tentador.

— Como a barcaça poderia ser naval e o carvão para a marinha, imagino que eles vão mandar uma fragata para montar guarda ao largo.

— Podem mandar toda a porra da esquadra, pelo que me importo. — Cornishman tentou parecer distinto. — Fiz uma grande descoberta, e estamos num negócio honesto.

— Fico contente em saber disso.

— Seis pence por tonelada ou nada feito!

— Quatro.

Cornishman cuspiu.

— Seis pence, por Deus! Conheço o valor do carvão, sei o quanto vale para a porra da esquadra, e o lucro que você pode conseguir. Talvez eu faça um acordo direto.

— Pode tentar — disse Jamie, arriscando. — Vamos fazer o seguinte: quatro pence nas primeiras dez barcaças, seis no resto.

O homenzinho ficou ainda mais furioso.

— Agora sei por que vocês são a porra da Casa Nobre! — Ele estendeu a mão calosa. — Sua palavra como um cavalheiro da Struan.

Trocaram um aperto de mão e depois Cornishman perguntou:

— Por acaso você tem algum mercúrio?

Isso despertou no mesmo instante o interesse de Jamie. O mercúrio era usado na extração de ouro.

— Tenho, sim. Quanto vai precisar?

— Não muito, para começar. Pode pôr na conta?

— Claro. Vai ficar no Yokohama Arms?

— Nada disso... não quero saber da cidade dos bêbados — respondeu Cornishman, desdenhoso. — Vou voltar com classe e você vai manter tudo em segredo, mnguém deve saber do nosso negócio... não quero nenhum filho da puta me atacando pelas costas para me roubar.

Ele começou a se retirar.

— Espere um pouco! Para onde vai? Como posso entrar em contato com você?

— Voltarei para pegar o que é meu, companheiro. — O garimpeiro tornou a mostrar as gengivas, em seu sorriso insidioso. — Meus samurais e meu palanquim estão esperando lá fora, junto ao portão norte. Vim para cá sozinho, na maior discrição. Mas na próxima vez que voltar, será como um cavalheiro, e não quero mais saber da porra da cidade dos bêbados. Não terá mais nenhum contato comigo, acertará tudo com esse sujeito do papel. Sou agora um mercador respeitável, caso tenha esquecido. Não deixe de mandar o mercúrio na barcaça.

Ele saiu. Por um longo tempo, Jamie ficou olhando para as paredes, analisando a conversa. Um suprimento confíável de carvão seria maravilhoso, mas acabaria quando a esquadra bombardeasse Iedo. E por que o mercúrio? Será que o patife acertou na sorte grande? E quem é o verdadeiro chefe? Por falar nisso, quem é o meu chefe?

A chuva tamborilava na janela. Ele se levantou, correu os olhos pela baía, numa avaliação crítica. O mar exibia um cinza mais sujo do que antes, as nuvens estavam mais baixas. Não restava a menor dúvida de que a tempestade seria ruim para o cúter, mas não para um navio. Ah, lá está ele!

O cúter da companhia se encontrava a cerca de duzentos metros do cais, avançando contra as ondas, alguma água passando por cima das amuradas, mas não muito, os borrifos levantados pela proa substanciais, a bandeira da Struan a meio mastro... como estivera a bandeira por cima do prédio desde a morte do tai-pan. Ele deixara o binóculo no peitoril da janela. Pegou-o, focalizou o cúter, avistou Hoag e Pallidar na cabine, o caixão coberto por uma bandeira, preso a um dos bancos, como ordenara. Experimentou uma pontada de angústia ao ver o leão e o dragão entrelaçados em torno do caixão de Malcolm... uma cena que nunca imaginara que contemplaria. E depois se lembrou de que não era o caixão de seu amigo, mas sim de algum nativo desconhecido ou, pelo menos, era o que esperava.

— Vargas!

— Pois não, senhor?

— Leve esta correspondência, copie e lacre... despacharei o resto esta tarde.

— O capitão Biddy não estava no clube, senhor, mas era esperado. Deixei um recado.

— Obrigado.

Sem pressa, Jamie pôs o casaco e o chapéu e saiu para a rua, inclinando-se inclinando-se contra o tangido pela chuva. Era praticamente a única pessoa na High Street. Não avistou Cornishman na área do portão norte. Uns poucos guardas samurais se agrupavam ao abrigo do prédio da alfândega. Alguns mercadores seguiam apressados para o clube e um almoço tardio. Uns poucos acenaram. Um deles parou, urinou na sarjeta. Ao sul, a cidade dos bêbados parecia ainda mais miserável sob o céu nublado. Este não é um lugar para uma mulher, pensou ele.

— Ei, Jamie! — gritou Hoag, do cúter.

— Olá, doutor, olá, Settry.

Eles subiram para as tábuas alcatroadas, as estacas cravadas no leito do mar rangendo ao impacto das ondas. Um olhar para Hoag foi o suficiente para saber que a troca fora consumada, por mais que o atarracado médico simulasse indiferença. Portanto, estamos agora comprometidos. Pallidar teve um acesso de tosse.

— Settry, é melhor você dar um jeito nisso, antes que se transforme em coisa pior.

— Já tentei. Esse suposto médico me deu uma poção que deve me matar. — Pallidar teve outro acesso de tosse. — Doutor, se eu piorar, você vai se danar.

Hoag soltou uma risada.

— Uma dose dupla de grogue quente hoje, e amanhã você estará tão bom quanto a chuva. Tudo bem por aqui, Jamie?

— Tudo.

— Estou lhe entregando a responsabilidade sobre o caixão, Jamie — disse Pallidar. — Vai seguir logo para bordo do Cloud?

— Dentro de meia hora. Angelique queria... se despedir. O reverendo Tweet acrescentará algumas palavras.

— Quer dizer que ela não vai mesmo viajar no clíper?

— Não sei, Settry, não com certeza. Pela última informação, ela partiria no navio de correspondência, mas sabe como são as mulheres.

— Não a culpo. Voltar para aquele clíper também me deixaria arrepiado. — Pallidar assoou o nariz, aconchegou-se ainda mais no sobretudo. — Se quiser, posso pedir a Sir William para enviar o caixão pelo navio de correspondência, e assim chegariam juntos.

— Não! — exclamou Hoag, com veemência demais, na opinião de Jamie, mas logo recuperou o controle. — Não, meu caro Settry, eu não recomendaria isso, por razões médicas. É melhor manter os arranjos atuais, o caixão no Prancing Cloud. Angelique está bem agora, mas um choque súbito poderia empurrá-la de volta a um pesadelo. É melhor ela seguir no navio de correspondência e o caixão no clíper.

— Como quiser. Jamie, vou recomendar a William para fecharmos Kanagawa imediatamente. Foi por isso que voltei.

— Mas por quê?

Pallidar falou sobre as patrulhas e os numerosos samurais ao redor.

— Não há motivo para preocupação. Podemos liquidar todos eles. Se permitissem que o cúter me levasse de volta, pouparia um bom tempo.

— Por que não vai também na ida até o Prancing Cloud? Depois, o cúter levaria direto. Vai passar a noite em Kanagawa?

— Não. Já vi o suficiente e quero apenas buscar meus homens — informou Pallidar, para alívio dos dois. — Os escriturários e demais guardas podem sair de fános próximos dias. Até mais tarde.

Ele se afastou, tossindo. Mal deixara a distância de ouvir quando Hoag anunciou:

— Tudo transcorreu sem problemas, Jamie.

— Não agora, pelo amor de Deus!

Apesar do frio e umidade, Jamie suava bastante. Seguiu na frente pela High Street, parou ao abrigo de um bangalô, a salvo de outros ouvidos.

— O que aconteceu?

— Saiu tudo perfeito. Esta manhã, assim que o cúter chegou, nós fomos para o necrotério e...

— Nós quem?

— Settry, o sargento Towery, o contramestre, e dois tripulantes. Estendemos e prendemos a bandeira no caixão e eles o levaram para o cúter. O outro nos espera esta noite ou mais tarde... supostamente à espera para a cremação. — Hoag olhou para o mar, contra a chuva. — Não há a menor possibilidade esta noite, não é mesmo?

— Não. Mas acho que a tempestade já terá passado pela manhã.

— Ainda bem. — Hoag esfregou as mãos, contra o frio. — Tudo correu como um sonho. Só houve um problema, o nativo era pequeno, pele e ossos, por isso enchi o caixão de terra, para compensar a diferença no peso.

— Oh, Deus, eu tinha esquecido isso! Agiu muito bem.

— Fiz isso na noite passada, sem problemas... ninguém disse nada quando levaram o caixão para o cúter.

— Essa história toda é muito arriscada — murmurou Jamie, apreensivo. — Como vamos tirar o outro caixão da legação, com os funcionários e os guardas ainda ali?

— Já cuidei disso. — Hoag soltou uma risada. — Mandei nossos assistentes japoneses levarem o caixão para o barracão ao lado do nosso cais em Kanagawa. Não fica muito longe do crematório. Eles podem fazer isso sem despertar suspeitas. George me disse que põe os caixões e cadáveres ali, quando tem um excesso. É rotina.

— Ótimo! Fica muito longe do cais?

— Uns cinqüenta metros. Três homens podem carregar o caixão sem maiores dificuldades, e contamos com a ajuda do contramestre, não é?

— É, sim. Trabalhou muito bem. — Jamie olhou para a chuva, os olhos contraídos. — É uma pena que não possamos ir esta noite, e acabar logo com isso.

— Não tem importância. Amanhã tudo será resolvido.

Hoag sentia-se muito confiante e satisfeito com o elogio de Jamie. Não havia ecessidade de contar que fora visto, nem relatar a conversa com Pallidar. Esta manhã, ao comerem o desjejum juntos, ele dissera:

— Settry, sobre ontem à noite...

Pallidar não o deixara continuar:

— Esqueça, doutor, esqueça. É o melhor que pode fazer.

É mesmo melhor, refletiu ele, radiante, esquecer que jamais aconteceu.

— Vamos buscar Angelique? Como ela está?

 

Uma hora depois, todos se encontravam reunidos ao lado do cúter. A chuva mais forte, o vento aumentara. Os borrifos caíam sobre parte do cais. O cúter havia atracado, subia e descia com as ondas, os cabos rangendo. Angelique vestia-se de preto, uma capa preta sobre o vestido tingido de preto, chapéu preto, com um véu preto, e guarda-chuva. O guarda-chuva era azul celeste, um contraste surpreendente.

Era cercada por Jamie, Skye, Dmitri, Tyrer, Sir William e os outros ministros o capitão Strongbow, Gornt, Marlowe, Pallidar, Vargas, André, Seratard, o reverendo Tweet e muitos outros, todos agasalhados contra a chuva. O padre Leo postava-se mais atrás, desolado, as mãos enfiadas nas mangas, espiando por baixo do capuz. Jamie chamara Tweet para dizer uma bênção, explicando:

— Pareceria estranho se não fizéssemos isso, Angelique. Cuidarei para que não haja um serviço de verdade, nem discursos, o que não seria correto. Apenas uma bênção.

O tempo inclemente ajudou a tornar a bênção breve. Por uma vez, Tweet mostrou-se inesperadamente eloqüente. Quando ele terminou, todos olharam para Angelique, constrangidos. Lá em cima, as gaivotas gritavam, empurradas pelo vento, flutuando nas correntes de ar com a maior alegria. Sir William disse:

— Mais uma vez, madame, minhas profundas condolências.

— Obrigada. — Ela empertigou-se, a chuva respingando do guarda-chuva. — Protesto por não me permitirem realizar o sepultamento de meu marido como ele e eu desejávamos.

— Seu protesto está registrado, madame.

Sir William levantou o chapéu. Os outros desfilaram diante de Angelique, apresentando suas condolências, erguendo o chapéu ou batendo continência, os que vestiam uniforme. Strongbow bateu continência e embarcou no cúter, seguido por Pallidar. Marlowe parou diante de Angelique, ainda transtornado.

— Lamento profundamente — murmurou ele, bateu continência e se afastou. O padre Leo foi o último. Sombrio, fez o sinal-da-cruz, murmurou as palavras latinas, a maior parte do rosto oculta.

— Mas ele não é católico, padre — comentou Angelique, gentil.

— Creio que era um dos nossos, senhora, no fundo de seu coração, sotaque do padre Leo era acentuado pelo pesar, a noite passada em orações; indagando o que deveria fazer, se comparecia ou não. — Teria visto a luz e você o ajudaria. Tenho certeza. In nomine Patri...

Desolado, ele se afastou. Agora, apenas Jamie, Hoag e Skye continuavam com ela, no cais.

— E agora, Jamie? — indagou Angelique, dominada por uma profunda melancolia.

— Esperemos um minuto.

Como os outros, ele sentia que era parte de uma trapaça, mas ao mesmo tempo experimentava uma profunda emoção, dizendo a si mesmo que não era uma trapaça. Estou apenas ajudando um amigo, pensou ele. Prometi que guardaria sua retaguarda, e é o que estou fazendo. Mas também estou trapaceando, e detesto isso. Esqueça, você é o líder, tem de agir como tal.

— Capitão Strongbow, pode partir. Deus o acompanhe.

— Obrigado, senhor.

O cúter afastou-se, mergulhando entre as ondas, adquiriu velocidade. As gaivotas gritavam em sua esteira. Os quatro ficaram observando.

— Parece tão estranho — murmurou Angelique, chorando silenciosamente.

— É e não é. Não estamos errados, não é?

Mais uma vez, Jamie tomou a decisão por todos:

— Não, não estamos.

Ele pegou o braço de Angelique e levou-a para casa.

 

Pouco antes do anoitecer, Vargas bateu na porta da sala do tai-pan.

— O Sr. Gornt deseja vê-la, senhora. Monsieur André deixou um recado, avisando que monsieur Seratard se sentiria honrado se jantasse com ele.

— Agradeça, mas diga que não posso, talvez amanhã. Olá, Edward. Entre. Angelique foi sentar de novo numa das cadeiras de braço ao lado da janela, o dia lá fora escuro e chuvoso. Havia um vinho branco aberto, esperando no gelo, com um copo virado ao contrário no balde, gelando.

— Por favor, Sirva-se. Vai embarcar agora?

— Vou, sim. O tênder já está esperando. À sua saúde, madame.

— E à sua. É o único passageiro?

— Não sei, — Ele hesitou. — Tem uma aparência maravilhosa, madame, etérea e inacessível.

— Lamentarei a sua partida. Talvez tudo esteja melhor quando voltar — murmurou Angelique, apreciando-o como antes. — Pretende retornar logo ou irá antes a Xangai?

— Saberei quando chegar a Hong Kong. Onde vai se hospedar lá? No Peak ou na Casa Grande dos Struans?

— Ainda não decidi... nem mesmo se irei.

— Mas... não vai ao funeral? — perguntou ele, confuso.

— Decidirei amanhã. — Ela queria deixá-lo em suspense, assim como a todos os outros, até mesmo Jamie. — O Sr. Skye me aconselha a permanecer aqui e não me sinto bem.

Angelique deu de ombros e reiterou:

— Decidirei amanhã. Tenho uma passagem reservada. Gostaria muito de estar com ele, preciso acompanhá-lo, mas se não for sepultado como desejava, como eu queria, então... então fracassei.

— Não fracassou para ele, madame. Todos sabem disso.

— E você também não vai me falhar, não é, Edward? Entregará minha carta a ela, fará tudo o que combinamos?

— Claro. Uma promessa é uma promessa. Uma questão de honra, madame.

Ele fítou-a nos olhos.

— E eu também fiz uma promessa, não é? Uma questão de honra. Amizade eterna.

A maneira como ela pronunciou as duas palavras era uma promessa e ao mesmo tempo, não era. Nem por sua própria vida, Gornt era capaz de interpretá-la agora, como fazia antes. No passado, saberia até que ponto aquela promessa o levaria. Agora, no entanto, havia uma barreira. Fico contente, pensou ele, pois se há uma barreira para mim, haverá também para todos os outros homens. Seis meses não constituem muito tempo para esperar e o momento será perfeito. Mas talvez ela não vá para Hong Kong. Como isso me afeta?

— Meus planos, madame? Vão depender de Tess Struan. — Ele tinha vontade de contar a Angelique seu verdadeiro plano, mas era astuto demais para revelá-lo mesmo que de forma indireta. — Espero que ela aja com base nas minhas informações. O que levaria um mês, no mínimo. Se ela assim desejar, esperarei por esse mês, e ajudarei... pois ela vai precisar de ajuda, madame. Tudo depende dela. Se viajar no navio de correspondência, poderemos conversar mais em Hong Kong. Se não, posso lhe escrever?

— Claro que sim, por favor. Eu bem que gostaria. Em todas as correspondências. Prometo que o manterei a par de meus planos.

Angelique abriu uma gaveta, tirou um envelope, endereçado à Sra. Tess Struan. Não estava lacrado.

— Pode ler.

— Obrigado, madame, mas não é necessário.

Ela pegou o envelope de volta, mas não o lacrou, apenas enfiou a aba para dentro.

— Isso lhe poupará o trabalho de pôr no vapor para abrir, Edward.

Gornt riu.

— O que a leva a ter tanta certeza de que eu faria isso?

— Eu faria. Seria uma tentação grande demais. Mas, por favor, lacre o envelope antes de entregá-lo.

Ele acenou com a cabeça.

— Disse uma ocasião que sabia por que seu marido gostava de mim, porque eu seria um inimigo perigoso e um amigo ainda mais perigoso. Talvez isso se aplique também a você, Angelique.

— É possível. Estou tateando meu caminho neste novo mundo, Edward. Está repleto de dificuldades, de areia movediça. Mas vai me descobrir muito confiave depois que eu der minha palavra, como fiz neste caso. Não esqueça que sou francesa. — Um rápido sorriso. — Leia.

A carta dizia:

 

Prezada Sra. Struan:

A esta altura já tomou conhecimento da terrível notícia sobre Malcolm... lamento não poder lhe contar pessoalmente, mas fui aconselhada pelo Dr. Hoag a não viajar no Prancing Cloud, nem no navio de correspondência.

Não tenho palavras para lhe descrever como me sinto transtornada. Deixe-me dizer apenas que eu o amava, com toda a força do meu coração, e tentei fazer o melhor que podia, enquanto ele era vivo, e também depois de sua morte, tentando desesperadamente sepultá-lo como desejava, no mar, assim como seu adorado avô. Mas isso me foi proibido. Por favor, eu lhe suplico, por favor, faça por ele o que eu não consegui fazer.

Mas não lhe falhei num outro dever. O portador desta carta era amigo de seu filho. Leva informações da maior importância... que ele prometera transmitir a Malcolm, no dia de sua morte. O próprio Malcolm tencionava partir às pressas no Prancing Cloud, para lhe contar: os meios para destruir seus eternos inimigos, Tyler e Morgan Brock. O Sr. Gornt me jurou que lhe revelará tudo, até os últimos detalhes. Eu lhe suplico que aja de acordo, se for verdade o que ele alega. A conclusão vitoriosa dessa rivalidade, com a eliminação dessa agonia de sua cabeça, como sei muito bem, é todo o epitáfio que Malcolm desejaria.

 

Ela datara e assinara, Angelique Struan, Iocoama. Havia um P.S.: Estranho, não é, que tenhamos tanta coisa em comum — também odeio meu pai, ele também tentou me destruir — e estejamos tão apartadas, desnecessariamente.

Edward Gornt lacrou o envelope, pensativo. Guardou-o no bolso, levantou seu copo.

— Uma vida longa... e quero dizer que é uma mulher extraordinária, mas muito extraordinária.

— Como assim?

— Não pede nada, dá tudo — comentou ele, com genuína admiração.

Mas não acrescentou: E não menciona os trinta dias, o prazo em que as duas, como mulheres, pensarão acima de tudo... pois se estiver esperando uma criança de Malcolm, o império Struan se tornará em grande parte seu, quer seja menino ou menina, embora um filho seria perfeito! E mesmo que não esteja esperando uma criança, uma reivindicação imodesta à fortuna dos Struans também seria procedente e incontestável. Seja como for, você ainda vai casar comigo!

— É uma grande mulher — acrescentou ele, calmamente. — Espero que me permita partilhar uma amizade eterna.

Ele se levantou, beijou a mão de Angelique, num gesto galante, que não se prolongou além do necessário.

Sozinha outra vez, Angelique balançou a cabeça para si mesma, contente, depois serviu vinho no copo de Gornt... havia outros copos ao seu fácil alcance mas ela escolheu o dele de propósito, tomou um gole, com um prazer adicional. Ergueu o copo na direção do mar e murmurou:

— Vá com Deus, Prancing Cloud.

Outro gole. E ela sorriu.

 

— Phillip!

— Pois não, Sir William?

— Leve isto. Já aprontou o resto dos nossos despachos?

— Já, sim, senhor. Tirei cópias extras das duas audiências, dos atestados de óbito etcetera. Pegarei no cofre o seu “particular e confidencial” para o governador, e isso é tudo. Será melhor eu levá-los pessoalmente para o Cloud.

— Tem razão, é o mais sensato. Tenho mais uma carta. Dê-me alguns minutos.

Cansado de tanto escrever e da tensão dos últimos dias, consciente do perigo a que Iocoama se achava exposta, Sir William ignorou a dor de cabeça, pensou por um momento, certificou-se de que a pena estava limpa, escolheu o papel com o cabeçalho mais oficial, e escreveu:

 

Prezada Sra. Struan:

Estou enviando esta por despacho especial, através do Prancing Cloud, por motivos especiais, tanto formais quanto pessoais.

Primeiro, gostaria de apresentar minhas mais profundas condolências pelo lamentável falecimento de seu filho, a quem incluía entre os meus amigos, além de colega. Segundo, as circunstâncias e fatos de seu casamento e morte foram determinados sob juramento num inquérito oficial e, em anexo, envio uma cópia das conclusões da audiência.

Pela melhor da minha convicção, o casamento a bordo é legal, mas pedi uma decisão formal ao procurador-geral.

Pela melhor da minha convicção, a Sra. Angelique Struan nada teve a ver com a morte de seu marido, e não foi sob nenhum aspecto responsável — fato confirmado pelos depoimentos médicos dos doutores Hoag e Babcott (parte dos documentos do inquérito), que sem dúvida lhe serão também encaminhados.

Pela melhor da minha convicção, seu filho morreu em decorrência dos ferimentos recebidos durante o injustificado ataque na Tokaidô, e foi, para todos os efeitos, assassinado nessa ocasião. O rei, ou daimio, que ordenou esses ataques ainda não foi levado à justiça. Posso lhe garantir que ainda o será.

Pela melhor da minha convicção, e observação pessoal, seu filho estava apaixonado por mademoiselle Richaud, ao ponto da obsessão, e pressionou-a ao casamento por todos os meios que podia conceber. Ela retribuía às suas afeições de maneira exemplar, como uma dama. É uma jovem admirável e qualquer coisa em contrário são mentiras espalhadas por canalhas.

Por último, pela melhor da minha convicção, seu filho queria ser sepultado no mar, como o avô. Seu...

 

Sir William hesitou por um instante, sabendo que devia tomar todo cuidado na escolha das palavras. Organizou seus pensamentos e continuou, com a mão firme e forte: Sua viúva suplicou com veemência que isso fosse realizado aqui, querendo atender a seu desejo (ainda não encontramos nenhum testamento, nem uma carta formal nesse sentido), e estou convencido de que era isso mesmo o que ele queria. Indeferi o pedido da viúva e decidi que o corpo deve ser enviado a Hong Kong, aos seus cuidados. Ele tornou a hesitar, enquanto variações se apresentavam, e depois escreveu: Recomendo com empenho que esse pedido seja atendido. Seu servidor obediente, madame.

Ele refletiu por um momento, depois foi até o aparador, serviu-se de um conhaque, bebeu, tornou a sentar. Leu a carta de novo, com o máximo de atenção. Duas vezes.

Fez uns poucos cortes e alterações, reescreveu tudo, assinando como o ministro de sua majestade britânica para o Japão. Releu mais uma vez. E agora ficou satisfeito. As principais mudanças haviam sido as seguintes: depois de É uma jovem admirável, ele cortara e qualquer coisa em contrário são mentiras espalhadas por canalhas, pois isso convidaria à indagação “que mentiras?” Acrescentara em seu lugar e a recomendo com vigor à sua benevolência. Depois de sepultado no mar, eliminara o como o avô, sem saber a verdade de tal alegação.

— Muito melhor — disse ele, em voz alta. — Tira toda a mordacidade.

Prefiro assim, eu a recomendo à sua benevolência, pensou ele, embora só Deus saiba o que essas duas acabarão fazendo uma à outra. Uma semana atrás eu teria apostado que Angelique não daria nem para a saída, mas agora não tenho certeza.

Satisfeito, ele abriu seu diário, e acrescentou o nome de Tess Struan à longa lista de cartas despachadas naquele dia pelo Prancing Cloud. Um registro na terça-feira, dia 9, atraiu sua atenção: “Malcolm Struan casou com Angelique Richaud a bordo da Pearl com a conivência de Ketterer.” Estava escrito em russo, assim como todo o diário — hábito de uma vida inteira, exigido por sua mãe russa — para mantê-lo desconhecido da maioria dos olhos, mas também para não perder a fluência. Isso o lembrou de uma coisa. Abriu o novo diário, para 1863, e fez um ponto de interrogação em 11 de janeiro, acrescentando uma anotação: Já devemos saber a esta altura se A está esperando ou não. Uma criança de Malcolm facilitaria bastante a vida de Angelique, pensou ele.

Decidira fazer o que pudesse para ajudá-la, por causa da dignidade que demonstrara no dia anterior, e no cais hoje, e também por causa do prazer que lhe proporcionara com todas as danças, risadas e jovialidade que trouxera para Iocoama, e porque era francesa, com a exuberância latente que as francesas possuíam, acima de todas as outras mulheres.

Sir William sorriu. Você é mesmo francesa, Angelique. E nós somos brirtânicos, mas não somos tolos... e é por isso que somos nós que dominamos o mundo, não os franceses.

— Phillip!

 

Seratard e André se encontravam na janela. O Prancing Cloud desfraldara os traquetes, as velas de mezena, os joanetes e os sobrejoanetes, e agora, com o vento de popa, disparava pelo estreito. Muitos outros também observavam, invejando o clíper, com ciúme, querendo navegar, possuir ou comandar um navio assim. Muitos especulavam sobre sua carga, sobre a moça que partiria no dia seguinte. Angel, um verdadeiro anjo, como a vida seria sem ela, e sobre o destino das cartas a bordo.

— O embaixador De Geroire vai concordar, Henri? — perguntou André.

— Vai, sim. Ele me deve muitos favores, nossa missão aqui se torna mais eficaz a cada dia, e o encontro particular com Yoshi, que você prometeu, e eu garanti a ele, está acertado. Ou não está?

— Deram-me a garantia — respondeu André, sentindo de repente a garganta ressequida. Raiko jurara que podia contar com isso, que os planos de batalha secretos que ele entregara já se encontravam nas cabeças de intermediários de confiança em Iedo, para negociação e recompensas. — Primeiro, Yoshi tem de voltar, Henri, depois podemos marcar uma data. Prometeram-me que ele fará uma visita à nave capitânia. Tenho uma reunião esta noite e o pagamento inicial acertará tudo.

— Mudei de idéia sobre o adiantamento do dinheiro. É melhor... — Seratard alteou a voz, pois André fez menção de protestar. — ...é melhor esperar. Já decidi que é melhor esperar!

Ele foi sentar à sua mesa, e gesticulou para que André sentasse no outro lado, não com raiva, mas com uma suavidade que não admitia oposição.

— Assim que eu tiver certeza que ele voltou, você pode pagar a esses... esses intermediários.

— Mas prometi que levaria o dinheiro esta noite e você concordou!

— Explique que não confio neles — disse Seratard, com um sorriso desdenhoso. — Deixe que provem sua boa fé. Eu estava falando que De Geroire a fará uma tutelada do Estado, André, assim o seu problema se torna uma questão de política de Estado.

Naquela noite André odiava Seratard, odiava-o porque era um homem perigoso, insidioso, sabia demais, recordava demais, e não tinha qualquer sentimento. Percebera que Seratard o observava atentamente, naquela manhã, ao desjejum.

— O que é, Henri?

— Nada. Há uma mancha em seu pescoço que não existia antes e me pergunto... Como se sente, André?

Isso o levara em pânico ao espelho de seu quarto, apavorado com a possibilidade de o primeiro sinal da doença ter se manifestado. Desde que iniciara a acão com Hinodeh, tornara-se sensível demais à menor marca, pontada de dor e febre. Quase todas as noites ela o despia na luz, comentando o quanto gostava de contemplá-lo, tocando-o, massageando-o ou acariciando-o, os dedos e as mãos sempre sensuais, mas ainda assim tinha certeza de que ela procurava por sinais denunciadores.

— Nada ainda, nenhum sinal, graças a Deus! — murmurara ele para seu reflexo, os olhos úmidos de alívio ao constatar que a marca era apenas a picada de um inseto.

— André — acrescentou Seratard agora —, esta noite, ao jantar, devemos fazer planos com ela. Recomendei que ela, depois de se tornar tutelada do Estado, deve ficar na embaixada, e...

Uma batida na porta interrompeu-o.

— O que é?

Vervene abriu a porta.

— Uma mensagem de Vargas. Madame Struan lamenta, mas não se sente bastante bem para vir ao jantar.

Seratard disse, em tom ríspido:

— Se ela estava bastante bem para se despedir de um caixão, poderia pelo menos nos poupar o tempo. Obrigado, Vervene. — Para André, ele acrescentou: — Precisamos conversar com ela antes de sua partida.

— Eu a procurarei pela manhã. Não se preocupe. Mas há rumores de que ela pode adiar a partida. Hoag teria aconselhado a não fazer uma viagem marítima, por motivos médicos, e Heavenly Skye não esconde de ninguém sua oposição.

Seratard contraiu os lábios.

— Detesto aquele homem. Ele é vulgar, grosseiro e repulsivo, um típico britânico.

 

Angelique observava a partida do clíper da suíte do tai-pan, no segundo andar. Uns poucos transeuntes avistaram-na na janela, e seguiram adiante, apressados, molhados, gelados, especulando sobre o que lhe aconteceria. Um deles era Tyrer, que voltara ao cais, depois de entregar os despachos. Ela parecia muito solitária ali, fúnebre em seu vestido preto, nunca tendo usado preto antes, apenas as cores da primavera. Ele parou por um instante, tentado a procurá-la, a indagar se podia ajudar de alguma forma, mas decidiu não fazê-lo, ainda tinha muito trabalho pela frente, antes de seu encontro com Fujiko, um pagamento mensal a Raiko por “serviços passados na dependência da conclusão do contrato”, e ainda sua aula com Nakama, que tivera de ser adiada por causa de suas obrigações com Sir William.

Tyrer soltou um grunhido ao pensamento de todas aquelas frases e palavras que ainda queria traduzir, e a nova mensagem para Anjo, que Sir William deliberadamente mandara Nakama verter, não por confiar nele, mas para avaliar a reação de um japonês ao comunicado anglo-saxão, brusco, sem nada de diplomático. Ainda pior, estava atrasado em seu diário, e não tivera tempo de escrever a carta semanal para a família. Tinha de despachá-la pelo navio de correspondência, não importava o que acontecesse.

Na última correspondência, recebera uma carta da mãe, informando que o pai estava doente:

 

...nada grave, Phillip querido, apenas um fluxo no peito, que o doutor Feld trata da maneira habitual, com sangrias e purgativos. Lamento dizer que, como sempre, essas coisas só parecem enfraquecê-lo ainda mais. Seu pai sempre detestou camomila e sanguessugas.

Ah, os médicos! Doença e agonia parecem seguir na esteira deles. Sua prima Charlotte foi para a cama dar á luz há quatro dias, tão saudável quanto jamais poderia estar. Já arrumáramos a parteira, mas o marido insistiu em chamar o médico para fazer o parto, e agora ela tem febre puerperal e não se espera que sobreviva. O bebê também está doente. É muito triste, uma moça tão simpática, ainda nem completou dezoito anos...

Notícias de Londres: A nova ferrovia subterrânea, outra coisa que é a primeira no mundo, será inaugurada dentro de quatro ou cinco meses! Os bondes puxados por cavalos são a sensação por aqui e a temporada do Natal promete ser a melhor de todas, embora tenham ocorrido distúrbios em algumas cidades industriais. O Parlamento está debatendo e vai aprovar uma lei proibindo que as carruagens sem cavalos andem a mais de três quilômetros por hora e devem ter um sinaleiro andando na frente!

O sarampo está em toda parte, com muitas mortes, mas o tifo não é tão terrível este ano. O Times informa que o cólera está grassando de novo em Wapping e nas áreas do porto, trazido por um navio mercante da índia.

Phillip, espero que você esteja se agasalhando direito, usando roupas de baixo de algodão, mantendo as janelas fechadas, contra os fluxos que abundam no ar da noite. Seu pai e eu gostaríamos que voltasse para a sensata Inglaterra, embora por suas cartas pareça estar satisfeito com seu progresso na língua do Japão. O correio (que alegria!) também funciona para vocês do Japão, assim como para nós daqui?

Seu pai diz que este governo está arruinando nosso país, nosso moral e nosso glorioso império. Já lhe contei que há agora mais de dezoito mil quilômetros de linhas de trem na Grã-Bretanha? Em apenas quinze anos, as diligências desapareceram...

 

A carta continuava assim por páginas, com todos os tipos de notícias que ela achava interessantes, e eram mesmo. O que era maravilhoso para Phillip, permindo-lhe manter-se em contato com as coisas de sua terra. Nas entrelinhas, porém, ele lera que a doença do pai não era tão fácil assim. E sua ansiedade aumentara. Por tudo o que sei, ele pode já estar morto, pensou Phillip, na maior preocupação.

Parado ali, no passeio, sob a chuva, ele sentiu repentina pontada de dor se irradiar do estômago. O suor molhou sua testa, mas talvez fosse a chuva, não sabia com certeza, só tinha certeza de que estava febril. Talvez eu tenha contraído alguma coisa... a sífilis ou algo parecido! Oh, Deus, talvez Babcott esteja enganado, e não seja apenas o fardo do homem branco... alguma doença corriqueira, um pouco de catarro. Oh, Deus, embora André tenha jurado por tudo o que é sagrado, e Raiko também, que Fujiko era mais pura do que pura, talvez ela não seja!

— Ora, Phillip, pelo amor de Deus, pare com isso! — dissera Babcott naquela manhã. — Você não tem sífilis, apenas comeu ou bebeu alguma coisa ruim. Tome um pouco da tintura do Dr. Collis. Isso vai curá-lo até amanhã... e se não curar, não precisa se preocupar, nós lhe providenciaremos um bom enterro. Quantas vezes tenho de lhe dizer para só beber água fervida ou chá?

Ele enxugou a testa, a claridade se desvanecendo, mas o vento sem amainar. Sentia-se melhor, sem dúvida, do que durante a noite, quando evacuara sem parar. Se não fosse por Babcott, ou pela magia de Collis, eu teria perdido o funeral... não, não o funeral, a partida do corpo de Malcolm. Que coisa terrível! Pobre coitado! Pobre Angelique! O que acontecerá agora?, especulou ele, perturbado, desviando os olhos de Angelique e se encaminhando apressado para a legação.

Angelique o vira. Quando o clíper foi tragado pela escuridão, ela fechou as cortinas e foi sentar à mesa. Seu diário estava aberto ali. Havia três cartas lacradas, prontas para seguirem pelo navio de correspondência: para a tia, tendo em anexo uma ordem de pagamento à vista, contra o Banco da Inglaterra, no valor de cinqüenta guinéus, a segunda para Colette, com uma ordem de pagamento de dez guinéus, as duas ordens providenciadas por Jamie, usando parte do dinheiro que Sir William lhe permitira manter. Pensara em usar uma das promissórias de Malcolm que encontrara na escrivaninha, pondo uma data anterior, e aproveitando O sinete no cofre, mas julgou que seria uma insensatez, pelo menos por enquanto. O dinheiro para a tia era apenas para ajudá-la e o de Colette serviria para comprar os melhores medicamentos para o momento do parto.

Posso ou não chegar lá a tempo, refletiu ela. Espero que sim.

A última carta deveria ser entregue em mãos. Dizia: Prezado almirante Ketterer: Sei que nos casamos graças à sua bondade. Agradeço do fundo do meu coração e juro que, qualquer que seja o poder que esta pobre mulher venha a ter no futuro, será usado para acabar com o comércio de ópio por parte da Struan e também para suspender a infame venda de armas para os nativos, como meu marido jurara fazer. Mais uma vez, agradeço, com toda a minha afeição sincera, Angelique Struan.

Assinar Angelique Struan muito a agradara. Os dois nomes harmonizavam-se com perfeição. Foi ótimo praticar a assinatura, a curva do “S” ajudando-a de certa forma a pensar.

Meu esquema com Edward... de onde saíram todas aquelas idéias sensacionais? É excelente... se ele fizer como eu quero. Deve convencer Tess de que não sou uma inimiga. Mas seu filho era seu filho, e eu não perdoaria, não se fosse meu filho, acho que não perdoaria.

O caminho à sua frente estaria coalhado de infortúnios, tanta coisa errada, tanta coisa podendo sair errada, André ainda é um cão subserviente, esperando para ser amordaçado ou repelido — na verdade, também há muitas coisas que podem sair certas —, o caixão correto se encontra a caminho, o de Malcolm pronto e à espera de amanhã, ainda posso viajar para Hong Kong pelo navio de correspondência, se quiser, tenho certeza que Edward quer casar comigo, pois ele, entre todas as pessoas, compreende que uma esposa rica é melhor que uma pobre, tenho as promissórias em branco de Malcolm, e o sinete de que ninguém mais sabe... e vinte e oito dias para esperar, não como da última vez, Santa Mãe, graças a Deus misericordioso... e como rezo por essa criança.

Ah, Malcolm, Malcolm, que vida boa teríamos, e eu cresceria sem precisar de momentos tão horríveis, juro que conseguiria.

Fazendo um esforço, ela se desvencilhou da melancolia e tocou a sineta em cima da mesa. A porta foi aberta sem uma batida polida, sem qualquer batida.

— Miss?

— Tai-tai, Ah Soh!

— Miss tai-tai?

— Mande Chen vir até aqui, depressa.

— Comer aqui, lá embaixo, miss... miss tai-tai?

Angelique suspirou pelas manobras a que Ah Soh podia recorrer para não chamá-la diretamente de tai-tai.

— Escute, seu monte de bosta de burro — disse ela, suavemente —, sou mais forte do que você, em breve estarei pagando as contas, e vai sofrer então.

Ela sentiu-se feliz por ver a irritação nos olhos escuros. Como Malcolm explicara, falar com Ah Soh em inglês correto, que ela não entendia, em vez de pidgin, levava a criada a perder a pose. Ah, que lógica distorcida a dos chineses, pensou Angelique.

— Chen, depressa!

Ah Soh retirou-se, mal-humorada. Quando Chen entrou, Angelique comunicou que tinha uma carta para ser entregue na embaixada britânica. Ele acenou com a cabeça, sem comentários.

— Chen, Ah Tok doente, não doente, hem?

— Ah Tok doente, Ah Tok ir Hong Kong. — Chen apontou na direção do mar. — Junto com amo.

— Ahn...

Angelique experimentou um profundo alívio, desejou ter pensado nisso antes. Por várias vezes vira Ah Tok espreitando das sombras, os olhos escuros transbordando de ódio, a saliva escorrendo pelos cantos da boca. Ela entregou a carta para Ketterer.

— Vá Casa Grande, agora.

Ele olhou para o nome, fingindo ser capaz de ler a escrita dos bárbaros.

— Comer este lugar mesmo, hem?

— Tai-tai comer este lugar mesmo, hem? Tai-tai!

Os olhos de Chen faiscaram. A boca sorriu.

— Tai-tai, comer este lugar mesmo, hem? Tai-tai miss?

— Você também é um monte de bosta de burro. Talvez eu o dispense... não, isso seria gentileza demais. Pensarei a seu respeito mais tarde. — Ela sorriu. — Comer lá embaixo. Que comida ter?

— O que querer, tai-tai miss, miss tai-tai!

Isso a fez rir, e ela sentiu-se melhor.

— Miss tai-tai, tai-tai miss, tudo mesma coisa. Que comida? Sua comida, comida chinesa — disse Angelique subitamente, sem saber por quê. — Mesmo que você, Chen. Comida da China, comida número um. A melhor, hem?

Chen ficou aturdido. Aquilo era bastante inesperado. No passado, ela apenas comia os patos que o amo apreciava, para agradá-lo, e preferia os pratos europeus, carnes, batatas, tortas, pão, os alimentos que ele e todos os chineses consideravam apropriados apenas para animais.

— Comida do amo, hem? — disse ele, especulativo.

— Comida do tai-pan para tai-tai do amo!

Autoritária, imitando Malcolm, ela acenou para que Chen se retirasse e virou as costas. Inquieto, Chen saiu, murmurando:

— Mesma coisa tai-pan, miss tai-tai.

Devo desenvolver o gosto pela comida chinesa, compreendê-la melhor, pensou Angelique, absorvendo uma nova idéia. Caso eu fique parte do ano. Jamie disse que gosta da comida chinesa de vez em quando, Phillip é entusiasmado, e Edward sempre a come...

Ah, Edward, Edward de tantas caras, de tantas possibilidades. Não tenho certeza a seu respeito. Se...

Se eu gerar um filho, ficarei feliz por ter uma parte de Malcolm para sempre. Voltarei a Paris, pois até lá já terei muito dinheiro, mas muito mesmo. Tess Struan se sentirá contente por nos ver partir, e nosso filho será criado em parte como francês, em parte como britânico, e será digno de seu pai. Se for uma filha, eu partirei também, com menos, mas será mais do que suficiente. Até encontrar um título que valha a pena, um homem que valha a pena.

Se não tiver sorte, e não houver nenhuma criança dentro de mim, então posso considerar Edward, ao mesmo tempo em que negocio com aquela mulher por minha migalha de viúva, tudo isso dependendo de Heavenly Skye estar enganado.

Enganado sobre o quão vingativa e implacável é aquela mulher.

 

Sábado, 13 de dezembro:

No dia seguinte o mar continuava do mesma cinza, o céu também, mas a tempestade já passara. A chuva cessara. Angelique, Skye e Hoag esperavam na cabine do cúter, ainda atracado no cais da Struan, e há muito atrasado na partida para Kanagawa. Além da baía, podiam avistar as ondas com as cristas brancas. A semi-escuridão, agravada pelo vento forte e úmido, tornava a espera mais difícil. Jamie e o reverendo Tweet já deviam ter chegado há meia hora.

— Eu gostaria que eles se apressassem — murmurou Angelique, o nervosismo começando a abalar sua determinação. — O que os está retardando?

— Não teremos de ir muito longe, assim não deverá haver problemas — comentou Skye, inquieto.

O cúter balançava gentilmente. Os homens usavam cartola, suéter e sobrecasaca, Angelique o seu traje de montaria verde-escuro e botas, o mais apropriado para uma viagem de barco.

Por cima da cabine ficava a pequena e envidraçada casa do leme. O contramestre apoiava-se no peitoril de uma das janelas abertas, fumando um cachimbo, um homem com bastante experiência no mar para não fazer perguntas. Jamie McFay limitara-se a lhe dizer:

— Quero o cúter no cais bem cedo, com uma carga completa de carvão, apenas você e um foguista de confiança.

Era o suficiente para ele. O resto saberia em breve, por que pessoas sensatas queriam sair ao mar num dia como aquele, quando os marujos sensatos preferiam ficar em terra.

— Lá está ele! — gritou Skye, soltando uma imprecação, sem perceber que o fazia.

Jamie estava sozinho, aproximava-se apressado pela High Street. Os transeuntes o cumprimentavam, franziam o rosto, seguiam adiante. Ele entrou no cúter. Fechou a porta da cabine.

— Tweet mudou de idéia — anunciou ele, o peito arfando.

— Mas que desgraçado! Ele não havia concordado?

Skye estava revoltado. Junto com Jamie, haviam concluído que a melhor história a contar era a de que um pescador cristão morrera em Kanagawa, depois de pedir para ser sepultado no mar, numa cerimônia que ele oficiaria. O resto poderia ser revelado mais tarde. E haveria uma contribuição por seus transtornos.

— Ele disse que não com este tempo — explicou Jamie, ofegante da pressa e frustração. — Tentei por todos os meios convencê-lo, mas ele se manteve intransigente: “O sujeito está morto, amanhã ou depois não será problema para ele, faz um tempo horrível, provavelmente não conseguiríamos voltar antes do escurecer... e eu tinha esquecido o jantar de Lunkchurch. Amanhã, depois do serviço, ou ainda melhor, na segunda-feira.” Que desgraçado!

Jamie respirou fundo outra vez.

— E nós já tínhamos combinado tudo! Angelique sentiu uma vertigem de desapontamento.

— Padre Leo! Vou pedir a ele. Tenho certeza que me atenderá.

— Não há tempo, Angelique, não agora. Além do mais, Malcolm não era católico, não seria apropriado.

— Maldito Tweet! — disse Hoag, furioso. — Teremos de adiar. O mar está perigoso, talvez seja melhor assim. Não podemos tentar amanhã?

Todos olharam para Angelique. Jamie disse:

— Tweet não é confiável, pode querer adiar até segunda-feira... e de qualquer maneira há o problema do navio de correspondência, que não esperará além de meio-dia.

Ele pedira ao comandante para protelar a partida, mas o navio já tinha algum atraso, e Biddy dissera que era o máximo que podia fazer.

— Temos de embarcar, não pode haver a menor dúvida quanto a isso — declarou Hoag. — Angelique deve comparecer ao funeral em Hong Kong.

— Eu me oponho — interveio Heavenly. — Mas se ela for, irei também.

— Padre Leo — insistiu Angelique. — Falarei com ele.

— Não seria conveniente — protestou Jamie. — Há uma outra solução, Angelique. Um sepultamento no mar não exige um capelão. Um capitão de navio pode celebrar o serviço, assim como Marlowe oficiou seu casa...

Ela recuperou a esperança.

— Pediremos a John! Depressa, vamos...

— Não será possível. Já verifiquei. Ele está na nave capitânia, reunido com Ketterer. Angelique, sou o capitão desta embarcação, tenho uma carta de navegador, embora antiga, e já testemunhei inúmeros sepultamentos no mar para saber o que fazer. Nunca fiz isso antes, mas não importa. Temos testemunhas. Se você quiser, posso oficiar... seria legal.

Ele viu a confusão de Angelique e olhou para Skye.

— Heavenly, não é legal? Pelo amor de Deus, é ou não é?

— Seria legal.

O nervosismo de Skye aumentou, quando uma onda, maior do que as outras, bateu no lado da embarcação. Hoag também estava assustado. Jamie tornou a respirar fundo.

— Angelique, toda essa idéia do sepultamento é bizarra, para dizer o mínimo e um pouco mais não fará mal nenhum a Malcolm. Trouxe uma Bíblia e o exemplar dos regulamentos navais. Tive de ir buscá-los, foi por isso que me atrasei. O que diz?

Em resposta, ela abraçou-o, as lágrimas escorrendo pelas faces.

— Vamos começar. Por favor, Jamie, depressa.

Jamie McFay apertou-a, achando muito agradável a proximidade. Skye indagou:

— E o contramestre e o foguista?

Jamie respondeu rispidamente:

— Já disse que cuidarei deles!

Ele desvencilhou-se, com toda gentileza, abriu a porta da cabine e gritou:

— Contramestre, vamos zarpar! Siga para Kanagawa!

— Pois não, senhor.

Contente por uma decisão ter sido tomada, o contramestre levou a embarcação para o mar, seguindo para o norte, a caminho da praia no outro lado. As ondas balançavam o cúter, desviavam-no do curso, mas não muito, o vento ainda dentro dos limites razoáveis, o céu prometendo não se tornar pior do que antes. Cantarolar uma canção do mar fê-lo se sentir melhor. Jamie logo foi ao seu encontro.

— Siga para o cais da legação. Vamos trazer um caixão para bordo... — Ele viu o contramestre morder com força o cachimbo. — Um caixão. Depois, sairemos pelo mar por uma légua, até águas profundas, e o sepultaremos. Teremos uma cerimônia, e você vai participar, junto com seu foguista. Alguma pergunta?

— Eu, senhor? Nenhuma.

Jamie acenou com a cabeça, tenso, e tornou a descer. Os outros não disseram nada, observando a linha da costa, com Kanagawa bem na frente.

Na casa do leme, o contramestre pegou o tubo de comunicação de metal, ao lado do timão, e berrou para o foguista lá embaixo, na casa de máquinas:

— Toda força à frente, Percy!

 

O barracão ficava no lugar que Hoag indicara, a fácil alcance do cais. O caixão fora deixado num banco de madeira. Skye, Hoag, o contramestre e o foguista levantaram-no com facilidade, cada um pegando num canto. Depois que eles saíram, Jamie fechou a porta e seguiu-os. Achara que era melhor para Angelique permanecer na cabine. Uns poucos pescadores e aldeões passaram por eles, fizeram reverências e se afastaram apressados, não querendo qualquer proximidade com os gai-jin. Foi mais difícil manobrar o caixão para bordo. O convés subindo e descendo, escorregadio da água do mar, era perigoso.

— Esperem um pouco — balbuciou o foguista. — Deixem-me embarcar primeiro.

Ele era baixo, usava um gorro de lã esfiapado, ombros largos, antebraços enormes. Passando para o convés, firmou-se com os pés bem abertos, agarrou o caixão pelo meio, puxou-o para bordo, em parte por dentro da cabine, quase que sozinho. O esforço, dilatando as veias, levou-o a soltar um peido, involuntário e estrondoso.

— Peço perdão a todos — resmungou ele, depois puxou o caixão para um ponto ainda mais seguro.

Uma extremidade entrava na cabine, a outra se projetava para a popa.

— Vamos amarrá-lo assim — disse Jamie.

— Certo, senhor.

— Boa tarde, Dr. Hoag.

A voz era severa. Surpresos, todos se viraram. O sargento Towery e outro soldado observavam-nos, ameaçadores.

— Ahn... boa tar... olá, sargento — disse Hoag, a voz estrangulada.

Ele ficou imóvel, assim como os outros. Towery adiantou-se, examinou o caixão.

— Mas o que temos aqui? Levando o sacana... peço perdão, madame... levando o caixão para Iocoama, hem?

— Nós... ele pediu para ser sepultado no mar, sargento — disse Hoag. — O Sr. McFay gentilmente emprestou o cúter e aqui estamos.

— No mar, hem? — O sargento Towery fitou-os, um de cada vez, como se quisesse gravar seus rostos na memória. — Muito louvável, eu diria.

Outra espera, enquanto eles morriam mais um pouco. Depois, o sargento acrescentou:

— No mar, hem? Melhor não perderem tempo ou também servirão de comida para os peixes. Madame...

Polidamente, ele bateu continência e se afastou, acompanhado pelo soldado. Ninguém se mexeu por um momento.

— Oh, Deus! — murmurou Hoag.

— O que acha disso? — perguntou Jamie.

— Encrenca, senhor.

Trêmulo, o contramestre tomou um trago de rum do frasco que levava na cintura, passou para Jamie, que também bebeu, Hoag sacudiu a cabeça, assim como Angelique. O foguista foi o último. Para desgosto do contramestre, ele tomou quase tudo e arrotou em seguida.

— Desculpem.

O estômago de Jamie estava embrulhado.

— O homem surgiu do nada, como se estivesse nos esperando. Alguém viu-o se aproximar? — Todos sacudiram a cabeça e ele acrescentou: — É melhor partirmos logo.

Enquanto amarravam o caixão, o contramestre levou o cúter para o mar. O arco deslizava muito bem sobre as ondas, apenas os borrifos se lançando para bordo, mas o suficiente para incomodar as pessoas no convés. Lá embaixo, a cabine era barulhenta, mas aconchegante, o ar puro e bem ventilado, mantendo fora o cheiro da fumaça do motor alimentado por carvão. À frente, para leste, na direção das águas mais profundas, o céu parecia mais ameaçador... e nada mais havia entre aquele ponto e a América.

— Melhor nos apressarmos, senhor — disse o contramestre a Jamie, na casa do leme. — Não nos resta mais que uma ou duas horas de claridade.

— Sente alguma coisa, contramestre?

— Melhor nos apressarmos, senhor.

Jamie tornou a olhar para leste. O céu parecia ainda mais escuro.

— Concordo. Mantenha o curso. Ele virou-se para sair.

— Senhor, o sargento vai nos delatar, certo?

— Vai, sim.

— Vamos fazer um funeral, certo?

— Isso mesmo.

— O que há de tão importante ali... — O contramestre sacudiu o polegar caloso na direção do caixão. — ...para nos arriscarmos a tudo o que tem ali?

Ele apontou para o tempo.

— Vamos sepultar o tai-pan, Malcolm Struan.

O velho soltou uma risada.

— O caixão está a bordo do Prancing Cloud, senhor, ambos sabemos disso.

— Tem razão, ambos sabemos disso. Mas é... um sepultamento simbólico, uma simulação, para atender aos desejos dele... e aos desejos da viúva... de ser sepultado no mar. Ela acha que isso não acontecerá em Hong Kong.

Jamie sabia do risco que estava assumindo, mas não havia outro jeito. Até agora, fora capaz de dizer a verdade.

— Uma simulação, senhor?

— Isso mesmo. Mais nada. Não temos o que esconder, não há o que recear. O contramestre balançou a cabeça, sem estar convencido, e pensou: Há um corpo lá dentro, tem de haver, com tanto peso. Mas não comece a fazer perguntas idiotas, pois pode não gostar das respostas. Quanto menos souber, melhor, e vamos torcer para que o tempo continue nos ajudando, e não se transforme na merda como cheira.

— Obrigado, senhor,

Jamie olhou para a baía, agora bem atrás.

— Basta sair da vista de terra, contramestre.

Uma última olhada na bússola e ele retornou à cabine para anunciar:

— Não falta muito agora. Angelique inclinou-se em sua direção.

— O que aquele soldado vai fazer?

— Denunciar-nos, é inevitável. Mas não importa.

— Não podem fazer nada conosco, não é, Sr. Skye?

— Não tenho como prever o que Sir William pode ou não fazer — respondeu Skye, com um frio no estômago, sentindo o convés subir e descer.

Jamie abriu um dos armários, tirou a bandeira inglesa que guardara ali, junto com a bandeira do leão e dragão. Ajudado por Hoag, prendeu as duas em torno do caixão. O cúter subia e mergulhava ainda mais do que antes, e todos tinham de se segurar para não cair. Angelique sentou perto da porta aberta. O ar era úmido e frio. Ela sentiu as lágrimas começarem a escorrer, deixou o véu cair, e fingiu olhar para a terra.

— Não falta muito agora — repetiu Jamie.

Quando a terra era apenas uma linha no horizonte, ainda havia alguma claridade, o mar se tornara mais encapelado, as ondas com cristas brancas, o vento mais intenso, mas tudo dentro de limites suportáveis. Sem chuva. Jamie gritou:

— Contramestre, pode diminuir a velocidade, apenas pelo tempo suficiente para nos permitir fazer o que temos de fazer!

— Certo, senhor.

A redução dos motores criou uma súbita poça de quase silêncio, agradável a seus espíritos, um alívio bem-vindo ao ruído ensurdecedor e à apreensão de se encontrarem tão longe... embora Hoag e Skye se sentissem cada vez mais nauseados. Só havia agora o zunido do vento, o barulho do mar e o ronco baixo e confortador do motor, sentido através do convés mais do que ouvido, só o suficiente para manter a proa contra o vento. E o vento era firme, soprando de leste, do oceano, mais forte que antes. Jamie respirou fundo.

— É melhor começarmos.

— Tem razão — disse Angelique. — O que faremos?

— Vamos para a popa, mas segurem-se firmes. Contramestre venha até a popa, o foguista também.

— Melhor eu ficar no leme, senhor, com a sua permissão. — Ele berrou pelo tubo de comunicação: — Percy, para a popa!

O frio aumentara. Eles se agruparam da melhor forma possível, apoiando-se onde podiam. Jamie postou-se de costas para a popa, os outros de frente para ele.

— Tirem os chapéus — ordenou ele, tirando o seu primeiro.

Skye, Hoag, o foguista e o contramestre obedeceram. Ele abriu o livro dos regulamentos navais, na página marcada. Lendo e improvisando, Jamie disse:

— Estamos aqui reunidos à vista de Deus para lançar os restos mortais de nosso amigo Malcolm Struan, marido de Angelique Struan, tai-pan da Casa Nobre, nas profundezas, concedendo-lhe o sepultamento no mar que ele desejava, assim como sua esposa, agindo como amigos devem agir...

A menção do nome, os olhos do foguista se arregalaram e ele lançou um olhar para o contramestre, que sacudiu a cabeça, advertindo-o a ficar calado. Murmurando para si mesmo, detestando funerais, ele se aconchegou ainda mais em seu casaco, contra o frio do vento, querendo descer para sua quente casa de máquinas. O vento aumentou um nó. Todos perceberam a mudança. Jamie hesitou, e depois continuou:

— Agora, digamos a oração do Senhor. Pai nosso...

Cada um orou à sua maneira, murmurando as palavras, o movimento aumentado do convés predominando em suas mentes. Concluída a oração, Jamie olhou para o livro por um momento, não que precisasse, pois lera o serviço antes na casa do leme, mas necessitando de tempo para acalmar seu coração, e afastar seus pensamentos do mar. Enquanto os outros fechavam os olhos, ele mantinha os seus abertos. Assim como o contramestre, vira a linha da tempestade se aproxirnando por trás deles, as ondas maiores, ameaçadoras.

— Como capitão do cúter Cloudette, da Struan, — disse ele, um pouco mais alto do que antes, para se sobrepor ao vento —, é meu dever e honra encomendar o espírito deste homem à guarda de Deus Todo-Poderoso, pedindo a Deus Todo-Poderoso que o perdoe por seus pecados, não que conhecêssemos algum, não pecados de verdade, lançando-o às profundezas de onde... de onde viemos para cá, desde a Inglaterra, do nosso lar, através dos mares. Ele era um homem de bem. Malcolm Struan foi um homem de bem, e nós o perdemos, sentimos saudade dele agora e sentiremos no futuro...

Ele olhou para Angelique, que segurava um espeque com as duas mãos, as articulações esbranquiçadas. Uma rajada de vento a atingiu, comprimindo o véu contra o rosto.

— Quer dizer alguma coisa, madame?

Ela sacudiu a cabeça, lágrimas silenciosas escorrendo. Os borrifos vinham de boreste, um pouco mais baixo, por causa do peso de todos e do caixão.

Desconsolado, Jamie fez um sinal para Skye e o foguista. Meio desajeitados, com um equilíbrio precário, eles soltaram as cordas que prendiam o caixão ao banco, empurraram-no com dificuldade para a amurada de boreste, a fim de lançá-lo ao mar. Jamie ajudou-os. Quando o caixão balançava na amurada, ele disse em voz alta, dominado por sua infelicidade:

— O pó voltará ao pó, o mar e o céu reivindicam o que é seu, e os ventos hão de sussurrar uns para os outros que este extraordinário jovem foi ao encontro de seu Criador cedo demais, cedo demais...

Com os outros dois homens, ele deu o empurrão final no caixão, que se inclinou e caiu no oceano.

O cúter adernou, corrigindo a perda de peso, uma rajada de vento atingiu o casco exposto, inclinando-o ainda mais. A amurada de bombordo alcançou o mar. Todos se seguraram, menos o contramestre e o foguista, que acompanharam o movimento. Angelique, fraca de tanto chorar, não conseguiu mais se segurar e escorregou. Já estava quase caindo ao mar quando Jamie a agarrou, puxando-a de volta, frenético, se segurando num apoio com a outra mão. O vento arrancou seu chapéu e o véu. O foguista, as pernas fortes de marujo, deslizou ao seu encontro, levantou-a, arrastou-a para a segurança da cabine, cambaleando por trás dela.

A temperatura caiu. A chuva começou. A tempestade desabou sobre o cúter. Jamie gritou:

— Contramestre, vamos voltar!

— Melhor ficar aí embaixo, senhor!

O contramestre já decidira o que fazer e como fazer. Esperou até que o foguista, soltando imprecações silenciosas, descesse pela escotilha para a casa de máquinas, fechando-a, e que Jamie, Hoag e Skye se encontrassem sãos e salvos na cabine. A chuva se tornou enviesada. O mar era mais violento.

O contramestre sinalizou “devagar, à frente”, virou o leme para bombordo, atenuando o impacto do vento. A proa desceu numa onda de rebentação. O cúter livrou-se bravamente, a água passando pelo convés para bater no vidro da cabine e casa do leme. Continuou a fazer a volta, enquanto o contramestre murmurava, com o cachimbo apertado na boca:

— Calma aí. Somos amigos, pelo amor de Deus, apenas viemos lhe entregar o neto do Demônio de Olhos Verdes.

Não foi fácil fazer a volta. As ondas empurradas pelo vento adernavam o cúter, e por mais que tentasse corrigir a posição, não lhe davam trégua, e arrastavam-no para mais longe ainda. Na cabine, os quatro se seguravam da melhor forma que podiam, qualquer coisa solta caindo. Angelique tornou a perder o equilíbrio, mas os outros a seguraram. No momento, ninguém pensava em qualquer outra coisa que não a tempestade. Hoag estava cinzento. Com um gemido cheio de bílis, ele estendeu-se no chão da cabine.

— É apenas a volta! — gritou Jamie, por cima do barulho e do vento, o cúter serpenteando, Angelique comprimindo a cabeça contra seu ombro, apavorada. — Já vai melhorar!

Ele constatou que o mar estava ruim, mas não agitado demais. Ainda não. Além disso, tinha confiança absoluta no contramestre e na embarcação... desde que o motor continuasse a fornecer potência.

— Não se preocupem!

O contramestre também já chegara a essa conclusão e decidira cair para sotavento, com bastante tempo para isso, se fosse necessário, e fazer a volta contra o vento, lançar uma âncora de tempestade — um balde na extremidade de uma corda, para manter a proa a favor do vento — e agüentar firme.

— Se ele resistir, vamos escapar — murmurou o contramestre, lutando com O leme contra a pressão das ondas.

O cúter completou a volta e se aprumou. A proa mergulhou, enquanto a onda seguinte passava, acelerada pelo vento, depois a embarcação subiu, vertiginosamente, alcançou a crista, e caiu no cavado. Todos a bordo estremeceram. Outra vez a mesma coisa, outra vez a descida estonteante, com muita água a bordo agora. Escendo e descendo, depois subindo e subindo, cada vez mais alto, a queda, a água espumante passando pelas janelas, cobrindo o convés. Angelique deixou escapar um pequeno gemido. Jamie tinha um braço em torno dela, a outra mão gurava uma alça. A chuva batia nas janelas da popa e na porta. Encolhido num canto Skye mantinha a cabeça baixa, vomitando. Hoag, estendido de bruços, também se encontrava desamparado.

Lá em cima, na casa do leme, o contramestre balançava de um lado para o outro, equilibrando-se no convés inclinado com alguma facilidade. A chuva e os borrifos eram intensos nas janelas, mas ele podia ver o suficiente e não permitia que as ondas atingissem o cúter diretamente pela popa, virando-o um pouco, a fim de que as subidas e descidas não acompanhassem toda a força do mar, fazendo-deslizar ao máximo possível... o que era terrível para os passageiros, “mas eles estão sãos e salvos, não é?” Ele estava radiante, divertindo-se, já vencera muita tempestades, haveria tempo suficiente para sentir medo quando estivesse em terra diante de um fogo alegre, tomando dois ou três grogues quentes, daqui a uma ou duas horas. Feliz, ele retomou seu canto jovial. E, de repente, seu coração pulou uma batida.

— Deus Todo-Poderoso! — exclamou ele.

O caixão se encontrava a boreste, ainda flutuando, na superfície, subindo e descendo com o cúter, as duas bandeiras ainda presas. Da cabine, Jamie também viu e compreendeu, igualmente chocado, que se uma onda grande alterasse o curso poderia jogar o caixão de volta a bordo, ou pior ainda, usá-lo como um aríete contra a frágil superestrutura, ou talvez, o pior de tudo, abrir um buraco no casco desprotegido.

Quanto mais o contramestre procurava se desviar, mais o caixão se aproximava. Chegou a bater no lado, depois se afastou, girando como uma piorra, mas permanecendo paralelo. Jamie praguejou por não ter se lembrado de aumentar o peso com uma corrente de âncora; o ar ou a flutuabilidade da madeira mantinha-o à tona.

Era difícil para Jamie observar, ao mesmo tempo em que amparava Angelique. Mas sentiu-se contente por ela estar com a cabeça comprimida contra o ombro de sua sobrecasaca. Ele tornou a virar o pescoço e avistou o caixão de novo, agora um pouco além da popa, boiando na água, dando a impressão de ser a embarcação macabra de uma mente doentia. O vento ou uma correnteza virou-o e agora, paralelo às ondas, começou a rolar, mas logo se endireitou, permaneceu estável por três ou quatro ondas, até que outra o virou e afundou-o, para alegria de Jamie. Ele voltou a respirar, concluindo que desaparecera para sempre, mas logo o caixão aflorou à superfície, a onda espumante seguinte envolveu-o, levantou-o, arremessou-o direto para cima do cúter. Numa reação involuntária, Jamie se abaixou. O caixão não caiu a bordo, apenas bateu de lado contra o casco, soando como se tivessem atingido um recife.

Por um momento, Hoag levantou a cabeça. O cérebro girava em seu crânio, pior do que o barco, e por isso ele nada viu, caiu de volta, gemendo, no miasma do enjoo. Angelique também olhou, mas Jamie a manteve apertada, afagando seus cabelos, para dissipar o medo.

— Apenas fragmentos flutuando, não há com que se preocupar...

Seus olhos continuavam fixados no caixão, a uns poucos metros de distância, paralelo ao cúter, as linhas definidas e letais, como um torpedo, as duas bandeiras ainda intactas. Ele se encolheu quando uma onda enorme se aproximou, e passou por cima do caixão. Depois que a onda se foi, o caixão desaparecera.

Ofegante, Jamie esperou, esquadrinhando o mar. Nada. Mais espera. Ainda nada. A tempestade amainou um pouco, o vento não mais uivava em torno da cabine. As ondas ainda eram altas e violentas, mas o contramestre fazia um trabalho magistral, recorrendo a toda à sua habilidade de marujo para atenuar a ameaça, o motor gritando estridente, enquanto o hélice saía da água de vez em quando.

— Vamos — murmurou Jamie —, continue assim, fácil e tranqüilo.

E depois seus olhos focalizaram. O caixão se encontrava a cinqüenta metros de distância, um pouco à popa, a frente pontuda apontada para o cúter. Acompanhava-os, subindo e descendo, como se ligado por algum cabo de reboque invisível. Horrendo e mortífero. Ele contou seis ondas, sem qualquer variação. E depois apareceu a sétima onda.

Era maior do que as outras. Pegou o caixão, transformou-o num míssil e arremessou-o para o cúter. Jamie percebeu que o ponto de impacto seria o meio do cúter, no lado de boreste, e que a inclinação exporia o casco ao dano máximo. E parou de respirar.

O contramestre devia ter chegado à mesma conclusão, pois no último momento o cúter desviou-se frenético, virando ligeiramente para boreste, a água passando agora por cima da amurada, e o violento caixão-míssil subiu na onda, projetou-se por cima da proa e foi se emaranhar nos cabos do gurupés, pendendo ali, meio dentro, meio fora da água, puxando a embarcação contra o leme.

O contramestre puxava o timão com toda a sua força, mas as ondas e o vento usavam o caixão para manter a embarcação instável. Em minutos, o contramestre compreendeu que iam afundar. Não havia mais nada que pudesse fazer para evitar. O tubo de comunicação soou, estridente. Com dificuldade, ele respondeu:

— O que é, Percy?

Mas sua voz foi abafada pelas imprecações do foguista, indagando que diabo ele estava fazendo lá em cima. O contramestre bateu com o tubo no suporte e redobrou seu esforço no timão, enquanto a proa era inexoravelmente forçada ao desastre.

Foi nesse instante que ele viu a porta da cabine se abrir. Jamie saiu para o convés aberto. Segurando-se onde podia, por sua vida, ele avançou pouco a pouco. O contramestre esticou a cabeça pela janela mais próxima, gritando e apontando:

— O machado de incêndio, o machado de incêndio...

Como se estivesse num sonho, Jamie ouviu-o, avistou o machado no suporte vermelho, no teto da cabine. O convés se inclinava e estremecia, a alma do barco sabendo que se encontrava num espasmo mortal. Um pé escorregou, mas ele colidiu com a amurada, descobriu que tinha o machado numa das mãos e estava seguro por enquanto. A água passou por cima da proa e engolfou-o. Outra vez ele sobreviveu, mas a onda deixou em sua esteira uma nauseante premonição. Numa reação involuntária, o estômago teve um espasmo e o vômito saiu por sua boca. Ele ficou estendido ali, no embornal, gelado e apavorado, segurando um espeque, e logo mais água o engolfou. Quando conseguiu respirar, tossiu, cuspiu a água salgada da boca e narinas, e isso o ajudou a passar do choque para a ação.

À frente, o bico do caixão estava preso pelo emaranhado de cabos, o resto jogado de um lado para outro, empurrado ou sugado pelas ondas. Ele contraiu os olhos para fitar o contramestre, contra o vento e a chuva, viu-o fazer o gesto de cortar.

— ...pelo amor de Deus, tome cuidado...

Nenhum machado poderá fazer com que esse desgraçado nos largue, pensou Jamie, desesperado, abraçando um pontalete no momento em que uma onda violenta avançou sobre a amurada em sua direção, jogando-o contra o caixão e depois puxando-o de volta para o embornal, sufocado, meio afogado. Depois que a onda passou, ele ficou atônito ao descobrir que ainda continuava a bordo. Não perca tempo, o cérebro lhe bradou de novo, a próxima ou a seguinte pode arrastá-lo e afogá-lo.

Por isso, ele deixou seu lugar seguro, adiantou-se, até ficar por cima do caixão odiando-o, detestando estar ali, ter se permitido participar daquela estupidez, arriscando a vida de Angelique e dos outros por nada, mas acima de tudo odiando o seu próprio medo. A onda seguinte puxou-o com força, mas ele sobreviveu, baixou o machado com toda força, escorregou, agarrou-se no lado do telhado da cabine, enquanto outra onda o alcançava, arremessava-o contra o lado do caixão. Ofegante, Jamie fez um tremendo esforço para se levantar, golpeou outra vez, acertando agora o próprio caixão, odiando a coisa maligna em que se transformara.

A lâmina cortou um dos cabos, mas não teve qualquer efeito nos aramados, uma massa emaranhada, e foi se cravar na tampa coberta pelas bandeiras ou no fundo — ele não sabia qual dos dois, nem se importava — abrindo uma rachadura. Mas, ainda assim, o caixão continuou pendurado. Nem mesmo usando toda a sua força ele conseguiu deslocar o caixão, empurrou-o, chutou-o, praguejando, a maior parte pendendo para fora, entrando na água, puxando-os.

Outro golpe, mais outro e mais outro, agora usando a cabeça do machado, como se fosse um malho, para arrebentar o caixão em pedaços, sempre praguejando. A madeira rachou, mas resistiu, depois um golpe violento esmagou o lado e o topo, ele escorregou, estatelando-se no chão. O machado escapuliu de seu controle e o dilúvio seguinte jogou-o contra o caixão, depois tornou a puxá-lo. Passada a espuma, ele conseguiu respirar, forçou os olhos a se abrirem. Ainda a mesma coisa. Ainda firme. Mais uma vez, ele se adiantou, mas agora perdera as forças, as mãos mal davam para se segurar.

E foi então que ele viu um cabo quase rompido. O emaranhado de cabos rangia sob a tensão, contorceu-se, ficou um pouco desembaraçado, mais um pouco, depois o caixão deslizou, a extremidade bateu no oceano, começou a se arrebentar. Por um instante, ainda manteve a extremidade na superfície, depois atundou, deixando espuma e bolhas em sua esteira. Um pedaço de pano, que era a bandeira da Struan, aflorou à superfície. O vagalhão seguinte varreu o mar, subiu a bordo, puxou suas pernas, arrastou-o contra a base do gurupés, depois sugou-o de volta, ao longo do convés, o contramestre lutando para recuperar o controle do cúter

Atônito por estar vivo, Jamie se descobriu ofegando na popa. No limite de suas forças, cambaleou até a porta da cabine e caiu lá dentro.

Skye continuava em seu canto, vomitando, semi-inconsciente, Hoag estendido de barriga para baixo, inconsciente, Angelique enroscada no banco em que a deixara, gemendo e soluçando, os olhos fechados. Estremecendo, Jamie arriou ao seu lado, o peito arfando, sem pensar, sabendo apenas que ainda se encontrava vivo e que eles ainda estavam seguros.

Depois de algum tempo, seus olhos clarearam. Avistou terra a cerca de um quilômetro e meio de distância, notou que a chuva diminuíra, tornar se acalmara um pouco. Agora, apenas uma ou outra onda passava por cima da amurada. Num armário por baixo do banco, ele encontrou cobertores, envolveu-se com um, passou o outro em torno de Angelique.

— Estou com muito frio, Jamie... onde você esteve? — balbuciou ela, como uma criança assustada, apenas meio consciente. — Estou com muito frio, solitária, me sentindo horrível, mas contente pelo que fizemos, muito contente, oh, Jamie sinto muito frio...

 

Quando encostaram no cais da Struan, havia umas poucas estrelas enevoadas cintilando. Ainda era cedo, a noite mal começava a cair. O céu limpara e prometia um bom dia para amanhã. Os navios mercantes e a esquadra continuavam ancorados, sãos e salvos, tranqüilos, as luzes de ancoragem acesas. Havia uma atividade intensa apenas no navio de correspondência, com muitos lampiões a óleo acesos, como vaga-lumes.

Com a maior agilidade, o foguista pulou para o cais com um cabo, amarrou o cúter e depois ajudou os outros a desembarcarem. Angelique foi a primeira, depois Skye e Hoag. Jamie subiu os degraus sem dificuldade, ainda envolto pelo cobertor, sentindo frio, mas não muito. Skye e Hoag estavam brancos, estômago e cabeça ainda doloridos, as pernas fracas. Mas Angelique parecia muito melhor agora. Sua dor de cabeça desaparecera. Não sentira qualquer enjoo. Mais uma vez, chorara tudo o que tinha para chorar. Na última meia hora, deixara o ar abafado e fétido da cabine e fora se juntar a Jamie na popa. Ali, virara o rosto para o vento e deixara que desanuviasse seu cérebro.

Por trás dela, Hoag tossiu, cuspiu o catarro na água, se chocando com os pilares do cais.

— Desculpem — murmurou ele, precisando desesperadamente de um trago. Notou a confusão na proa, algumas tábuas quebradas, o gurupés desaparecido, as adriças também, a maior parte da amurada. — O que aconteceu?

— Alguns detritos foram lançados para bordo, como se fossem um caixote respondeu Jamie. — O que me deixou apavorado por um momento.

— Tive a impressão de ouvir um estrondo... acho... acho que vou dar um pulo até o clube... antes de me deitar.

— Vou com você — declarou Skye, precisando de mais do que um drinque para assentar o estômago. — Jamie? Sra. Angelique?

Ela sacudiu a cabeça, e Jamie disse:

— Podem ir. Não há mais nada a fazer esta noite... e não se esqueçam do plano.

Haviam combinado que nada seria dito, e que se alguém perguntasse se limitariam a informar que haviam realizado um sepultamento simbólico no mar, só isso.

Por sorte, nenhum dos outros vira o caixão voltar ao cúter, nem a luta de Jamie para soltá-lo... exceto o contramestre. Assim que pudera, ele subira à casa do leme e dissera:

— Contramestre, sobre o caixão, os outros lá embaixo nada viram. Assim na sua cabeça, você também não viu, e nada dirá a respeito. É um segredo nosso.

— Como quiser, senhor. — O contramestre lhe entregara o frasco. — Obrigado. Se não fosse por sua ação, teríamos afundado, todos nós... junto com ele.

Quase não restava mais nada no frasco, mas ajudara.

— Pensei que nunca conseguiria. Mas vamos esquecer. Um juramento seu. hem?

— Como quiser, senhor. Mas antes de esquecermos, quando o caixão afundou e se rompeu, ele apareceu. Pensei que estava tentando voltar para bordo.

— Deus do céu! — balbuciara Jamie. — Você está imaginando coisas, não vi nada... é apenas sua imaginação.

— Não é, não, senhor. Eu estava mais alto e podia ver melhor, certo? E vi o patife, pedindo seu perdão, vi quando ele voltou à superfície, se debatendo, antes de afundar.

— Está imaginando coisas, pelo amor de Deus! Que coisa horrível para dizer!

— É a verdade de Deus, senhor! Claro que foi apenas por um instante, e o mar espumante o envolvia, mas vi muito bem!

O contramestre cuspira na direção do vento, batera na madeira, e fizera o sinal contra o mau-olhado e o diabo, puxara o lóbulo da orelha para reforçar, antes de acrescentar:

— A verdade de Deus, senhor, e que um raio caia na minha cabeça se estiver mentindo. Fez meus colhões pularem até o reino e voltarem. Juro que ele aflorou à superfície, antes de Davy Jones, o espírito do mar, puxá-lo para o fundo, completamente nu.

— Não diga bobagem! E pare de inventar coisas! — Jamie estremecera, batera também na madeira, por precaução. — Imaginou tudo isso, embora eu seja capaz de jurar por Deus que o maldito caixão parecia ter vontade própria... e maligna ainda por cima!

— O que estou querendo dizer, senhor, é que estava possuído pelo próprio diabo. — O contramestre tornara a cuspir a favor do vento, suando. — Ele se debateu para chegar à superfície, parecia diferente, os olhos abertos e tudo o mais e pensei que vinha nos buscar.

— Pelo amor de Deus, pare com isso! Malcolm jamais haveria de querer que alguma coisa ruim nos acontecesse — garantira Jamie, contrafeito. — Foi apenas sua imaginação.

— Eu estava vendo tudo de cima, senhor...

— Esqueça o que pensa que viu! Tem mais algum rum?

O contramestre tossira, inclinara-se, abrira um armário escondido, tirara outro frasco. Estava pela metade. Jamie tomara um gole grande, engasgara, tomara outro.

— Haverá dez caixas de rum para você pegar em nosso armazém, contramestre, com os meus agradecimentos. Fez um bom trabalho, assim como o foguista... quatro caixas para ele.

O contramestre agradecera, efusivo. O calor do rum no estômago de Jamie prevalecera sobre o frio. Fitara o rosto curtido, os astutos olhos azuis.

— Nunca fiquei tão apavorado em toda a minha vida. Pensei que ia morrer umas três ou quatro vezes.

— Não eu, senhor. — O contramestre sorrira. — Não com o senhor a bordo. Mas confesso que fiquei feliz quando o patife e seu caixão afundaram, nos amaldiçoando até o fundo...

Agora, apesar de são e salvo em terra, Jamie estremeceu, pensando nisso. Angelique disse:

— Você deve tirar essas roupas molhadas.

— Já estou indo — anunciou Hoag.

Angelique abraçou-o, beijou-o no rosto, fechando as narinas ao cheiro de vômito.

— Muito obrigada. Até amanhã.

Ela fez a mesma coisa com Skye. Os dois se afastaram, em passos trôpegos.

— Eles ficarão bem?

— Não têm nada que uns poucos uísques e uma noite de sono não possam curar — respondeu Jamie.

— Mas não estão em condições de discutir qualquer coisa, não é?

— Não. O que você quer discutir?

Angelique passou o braço pelo dele.

— Apenas decidir sobre amanhã.

— Podemos conversar enquanto andamos.

Despediram-se do contramestre e do foguista, ambos agradecendo de novo pelo rum. Foram andando de braços dados.

— Angelique... antes de você dizer qualquer coisa, quero que saiba que me sinto contente pelo que fizemos.

— Eu também, meu caro Jamie. Você é maravilhoso e me sinto contente e feliz por nada ter saído errado, ninguém ter se machucado. — Um tênue sorriso. — Apenas um pouco de enjoo.

— Não há com que se preocupar. E amanhã?

— Decidi não seguir no navio de correspondência... não, por favor, não diga nada, já decidi. Estou mais segura aqui. Até receber notícias de Tess formalmente.

É verdade, Jamie, estou mesmo mais segura aqui. E tenho certeza que Hoag e George concordariam que seria mais sensato, por motivos médicos. E acho que você também não deve ir.

— É meu dever contar tudo, Sra. Struan... à Sra. Tess Struan.

— Pode me chamar de Angelique. Afinal, sempre me tratou assim, e sou Sra. Struan há bem pouco tempo. — Ela suspirou, continuou a andar na direção do prédio da Struan. — É melhor eu ficar. Ela terá de declarar quais são as suas intenções e é melhor que seja por uma carta despachada para cá. Malcolm foi sepultado no mar e isso era tudo o que eu queria. Precisa mesmo ir?

— Com este vento — disse Jamie, pensando em voz alta — o Prancing Cloud pode desenvolver de quinze a dezessete nós e chegar a Hong Kong em cinco dias e ela ficará muito ocupada com uma notícia tão importante, a carga ainda mais importante.

Todos haviam concordado que em público — e agora também em particular — considerariam que o caixão continha o corpo do tai-pan.

— O navio de correspondência só conseguirá uma média de oito nós — continuou Jamie —, e assim só chegará no prazo habitual, dez dias e pouco. Quando atracar, o funeral já terá sido realizado, Tess saberá de tudo, de dezenas de pontos de vista diferentes... meu relatório está a bordo, assim como o de Sir William, e dezenas de outros, com toda certeza. Ela me dispensou ao final do mês, o novo homem chega dentro de poucos dias, e fui instruído a lhe mostrar tudo.

Havia ainda os motivos, que ele decidira não enunciar em voz alta. Deveria procurar outras hongs — como as grandes companhias eram às vezes chamadas —, em busca de um emprego. Mas o único emprego disponível, à altura de sua experiência, seria na Brock and Sons e certamente ele receberia uma oferta. Precisava também decidir sobre Maureen, e ainda tinha de pensar em Nemi. Jamie sorriu para Angelique, desolado.

— No final das contas, também não tenho nenhuma razão para ir, não é mesmo?

Ela aconchegou-se contra seu passo, indiferente aos que passavam.

— Fico contente por isso. Não vou me sentir tão sozinha se você ficar aqui.

— Jamie! — chamou Phillip Tyrer, da porta da legação britânica, pondo apressado a sobrecasaca e o chapéu, e se adiantando. — Boa noite, Angelique, Jamie. Sir William apresenta seus cumprimentos e pede que vocês dois... e os outros passageiros e tripulantes do cúter... façam a gentileza de procurá-lo amanha de manhã, antes da igreja, e antes de embarcarem no navio de correspondência. Deve zarpar às duas horas.

— Com que propósito, Phillip? — perguntou Jamie.

— Acho... acho que ele gostaria... merda! Desculpe, Angelique. É óbvio que ele deseja perguntar o que vocês estavam fazendo.

— Fazendo?

Tyrer suspirou.

— Desculpe, meu velho, mas a idéia não é minha. Estão metidos numa encrenca, apenas transmiti a mensagem, mais nada. Não se zanguem comigo. Sou apenas o mensageiro mais próximo.

Angelique e Jamie riram, a tensão se dissipando.

— Dez horas?

— Obrigado, Jamie. Deve ser tempo suficiente. — Tyrer olhou para o cúter. — Parece que vocês tiveram uma travessia difícil. O que aconteceu com a proa?

Jamie olhou para trás. Os danos eram claramente visíveis à luz do lampião no cais, e ele compreendeu que poderiam ser percebidos sem qualquer dificuldade das janelas da legação, por meio de um binóculo.

— Um caixote... ou o que parecia um caixote... foi jogado para bordo, e depois levado de volta pelas ondas. Não chegou a criar maiores problemas.

 

Domingo, 14 de dezembro:

— Não concordo, Jamie. é evidente que temos um problema. — Sir William sentava atrás de sua mesa, fitando-os, com Phillip ao lado. O clima na sala insípida era inquisitorial. — Vamos começar de novo. Como parece ser o porta-voz, vou me dirigir a você. Eu disse expressamente que não haveria funeral aqui, o corpo seria enviado para Hong Kong, e...

— E já partiu, Sir William, no Prancing Cloud — repetiu Jamie, o queixo empinado.

Discutiam há meia hora, ele e Sir William, os outros respondendo cautelosos, todos instruídos por Jamie e Skye a só falarem quando interrogados diretamente, e mesmo assim não oferecerem qualquer informação voluntária, apenas responderem ao que fosse indagado, da maneira mais simples possível: Hoag, Skye, o contramestre, o foguista, Angelique. Hoag era sem dúvida o elo mais fraco na corrente e, por duas vezes, quase revelara o motivo. Angelique usava um véu, vestido preto, pronta para ir à igreja.

— Fizemos um funeral simulado.

— Sei disso, e já perguntei, várias vezes, se era apenas simbólico, por que usar um caixão de verdade, com um cadáver de verdade, embora de um nativo, e jogá-lo pela amurada com uma cerimônia de sepultamento cristão no mar?

Jamie deu de ombros, embatucado com aquela pergunta inevitável. Naquela manhã, Skye lhe dissera:

— É melhor ignorar a questão, exibir a maior desfaçatez, manter a maior discrição, pois não há muito que ele possa fazer, a não ser cuspir fogo.

Agora, Jamie murmurou:

— O caixão estava ali e achei que seria uma boa idéia.

— Ah, quer dizer que foi tudo idéia sua?

— Foi, sim — respondeu Jamie, lançando um olhar furioso para Hoag, que já começava a abrir a boca. — Fiz a sugestão, e os outros apenas concordaram. Era o desejo do tai-pan... o desejo de Malcolm e da Sra. Struan. Não havia mal nenhum.

— Pois eu discordo. Toda a idéia é macabra, foram deliberadamente contra a minha decisão. Parece haver um espantoso colapso do pensamento racional e um desejo de todas as pessoas reunidas aqui para evitar me contar a verdade, a explicação simples, um conluio para ocultar... para ocultar o quê? Não concorda, Phillip?

Tyrer teve um sobressalto em sua cadeira.

— Hum... sim, senhor, se é o que diz.

— Por que usar um caixão de verdade, um corpo de verdade?

Hoag remexeu-se em sua cadeira, contrafeito. Todos sabiam que a qualquer momento ele perderia o controle. Angelique concluiu que o momento era agora e começou a chorar.

— Por que não nos deixa em paz? Não fizemos mal nenhum, apenas o que achávamos melhor, o que meu marido queria, o que eu queria para ele...

— Angelique, por favor, não cho...

— ...o que ele queria, e o senhor nos proibiu. A culpa é sua, Sir William. Pensei que era nosso amigo. Se fosse mesmo amigo, e se mostrasse... razoável, não teríamos todo esse problema, pois é claro que não foi nada agradável fazer uma coisa às escondidas, embora eu ache que o senhor estava errado, e...

— Sra. Struan, eu...

— ...é claro que foi horrível, nenhum de nós queria fazer aquilo, mas pelo menos fizemos de boa fé, diante de Deus, pelo menos estes amigos, amigos de verdade, ajudaram a fazer direito o que meu marido e eu... não era pedir demais...

Por um momento, ela pensou em sair correndo da sala, mas sensatamente não o fez, compreendendo que isso nada resolveria e deixaria os outros à mercê de Sir William. Por isso, continuou onde estava, desmanchando-se em soluços ainda mais desesperados, sabendo que não mentira, e dissera a verdade pura e simples, que tudo fora culpa dele.

Em segundos, todos se agruparam ao seu redor, tentando acalmá-la, todos se sentindo aflitos, exceto Skye, impressionado pela maneira brilhante como Angelique escolhera o momento certo, e Sir William, que no fundo se divertia com a situação, embora simulasse, para salvar as aparências, que se encontrava também perturbado. Ele se limitou a observar e a esperar, ainda irritado com as maquinações — quaisquer que fossem — que todos haviam concebido em conjunto. O que dera neles, quem seria o verdadeiro culpado? Não podia ter sido Jamie, não é mesmo? Fora uma tremenda estupidez o que fizeram. Uma coisa absurda. Não havia o menor sentido em arriscarem a vida daquele jeito.

As pessoas não prestam. Nem mesmo Angelique. Ah, mas que dama, que tesouro, que atriz... de onde será, em nome de Deus, que ela tira tudo isso? Como a maioria das moças dessa idade, sua instrução é mínima, e no seu caso ainda por cima a recebeu num convento, o que é muito pior. Heavenly a instruiu para o julgamento do século? Ou sou apenas um velho tolo e cético? De qualquer forma vou me sentir muito triste ao perdê-la.

O relógio na cornija da lareira bateu um quarto para a hora. Tempo de ir para a igreja, pensou ele, tempo de parar... iria ler a Bíblia durante o culto e ainda não tivera tempo de analisá-la.

— Calma, Sra. Struan, calma... — murmurou ele, como faria um pai bondoso, embora severo. — Não há necessidade de lágrimas. Todos já tivemos muito por que chorar, recentemente. Devo admitir que ainda desaprovo totalmente o que fizeram, uma coisa lamentável, mas nas circunstâncias emocionais creio que é melhor deixar as coisas como estão, pelo menos por enquanto.

Outra vez ele fingiu não notar o suspiro de alívio coletivo, nem a maneira como os soluços de Angelique se desvaneceram, e continuou:

— Agora, chegou o momento de irmos para a igreja, e depois embarcará no navio de correspondência, acompanhada por nossos desejos de bon voyage e uma vida longa. Para ser sincero, lamentaremos muito, ficaremos muito tristes, por vê-la partir de nossas praias.

— Eu... não vou embora agora, Sir William.

— Como?

Sir William e Tyrer ficaram atônitos. Entre soluços, a cabeça baixa, Angelique murmurou:

— O Dr. Hoag me aconselhou a não viajar pelo menos por mais uma semana. Hoag apressou-se em dizer:

— É isso mesmo. Por motivos médicos, não é uma boa idéia, Sir William, não é absolutamente uma boa idéia.

Naquela manhã, Skye, apoiado por Jamie, insistira que era melhor que Angelique não viajasse por algum tempo.

— O que ela precisa, doutor, é de um atestado médico, que possa ser aceito por Tess Struan. Com tanta emoção, não acha que ela não deveria viajar agora, nem tentar qualquer confrontação, enquanto não estiver mais forte?

Hoag concordara prontamente e dizia agora a Sir William:

— Como pode verificar, ela fica transtornada por qualquer coisa; dei-lhe um atestado médico, embora isso não seja necessário.

Por um momento, Sir William não sabia o que pensar. Por um lado, não a perderiam agora; por outro, havia o problema que ela já representava, e o espinho incômodo em que inevitavelmente se tornaria quando a ira de Tess Struan se abatesse sobre a sua pessoa e todos os outros, ainda em sua jurisdição.

— Acho realmente que deveria partir, madame. Pensei que era ímportante comparecer ao funeral.

— Bem que quero ir, mas... — A voz tremeu, um novo soluço sacudiu todo o corpo de Angelique. — O Dr. Hoag seguirá em meu lugar. Não me sinto em condições... é melhor...

— Mas você também vai, Jamie, não é?

— Não, senhor. Recebi ordens da Sra. Tess Struan para fazer determinadas coisas aqui.

— Que Deus abençoe minha alma! — Sem muito empenho, Sir William tentou dissuadi-la, acabou suspirando. — Muito bem, se é o Dr. Hoag quem diz, não há mais o que discutir. Afinal, ele é o médico da Struan.

Sir William levantou-se. Visivelmente aliviados, todos lhe agradeceram e começaram a se retirar.

— Espere um pouco, Dr. Hoag. Eu gostaria de lhe falar por um momento, por favor.

Ele escondeu sua satisfação por ver Jamie e Skye empalidecerem e acrescentou, incisivo, enquanto eles se afastavam:

— Bom dia, Jamie, Sr. Skye. Phillip, não precisa ficar.

A porta foi fechada. Hoag era como uma lebre diante de uma naja.

— E agora, doutor, diga-me a verdade. Como ela está?

— Está muito bem, na superfície, Sir William — respondeu Hoag, no mesmo instante. — É uma cura superficial. O que há por baixo, ninguém sabe. Pode durar dias, semanas, um ano, ou mais... e depois o pesadelo voltará. O que acontecerá então...

Ele deu de ombros.

— Vai conversar com Tess Struan?

— Assim que eu chegar.

Hoag esperou, trêmulo, receando o interrogatório, sabendo que cederia. Pensativo, Sir William levantou-se, serviu um uísque, entregou a Hoag. A bebida logo desapareceu.

— Não voltará a Iocoama por algum tempo, talvez nunca mais. Preciso saber, em termos confidenciais, de uma coisa: quais são as possibilidades médicas de que ela esteja esperando uma criança de Malcolm?

Hoag piscou, o uísque e a inesperada gentileza acalmando-o, mas também deixando-o atordoado, pois não previra aquela linha de interrogatório. Respondeu com a maior sinceridade:

— Claro que isso depende de Deus, senhor. Mas Malcolm era saudável, e ela também, duas excelentes pessoas, infelizmente marcadas pelo destino... muito triste. Eu diria que as possibilidades são grandes, pois não houve uma fantasia ociosa, o ato de amor entre os dois deve ter sido muito ardente, quase uma paixão arrebatada.

Sir William franziu o rosto.

— Ótimo. Quando se encontrar com Tess Struan... acho que a nossa Sra. Struan vai precisar de toda ajuda que puder obter. Não concorda?

— Pode ter certeza de que intercederei por ela.

Sir William balançou a cabeça, estendeu a mão para a gaveta. O envelope estava lacrado, com a indicação de Pessoal, Confidencial e Particular, a ser entregue em mãos, endereçado a Sir Stanshope, governador de Hong Kong, de Sir Wlliam Aylesbury, ministro para o Japão.

— Tenho uma missão oficial para você, secreta. Quero que entregue isto ao governador, pessoalmente, assim que chegar.

Ele escreveu no rodapé “Entregue pessoalmente pelo Dr. Hoag”. Decidira usá-lo no momento em que soubera que Jamie não viajaria no navio de correspondência e porque não havia ninguém a bordo do Prancing Cloud em quem pudesse confiar.

— Deve ser entregue pessoalmente, a mais ninguém, assim como ninguém deve saber que é um mensageiro da rainha. Entendido?

— Claro, Sir William — respondeu Hoag, orgulhoso.

Ele sabia que Hoag se tornara dócil e poderia lhe arrancar qualquer coisa que quisesse. Quem começara a maquinação, o que haviam pensado no mar, por que fizeram aquilo, o que acontecera de fato em Kanagawa. Sir William sorriu para si mesmo, desfrutando sua posição, mas motivos pessoais levaram-no a não insistir no assunto.

— Tenha boa viagem. Aguardo ansioso a oportunidade de revê-lo em Hong Kong.

— Obrigado, senhor.

Hoag se retirou, exultante por ter escapado com sua honra intacta. Jamie e Skye o aguardavam na High Street, ansiosos.

— Não houve nada, sinceramente — disse Hoag, excitado. — Ele só queria fazer perguntas médicas, particulares.

— Foi isso mesmo?

— Juro por meu coração e que um raio me caia na cabeça se estiver mentindo. Vamos depressa, pois dá tempo de tomar um trago antes da igreja. Ainda me sinto todo encharcado.

Eles se afastaram, felizes, sem notarem que Sir William os observava de sua janela. Eu me pergunto se esses canalhas continuariam tão felizes se pudessem ler minha carta para o governador, pensou ele, de cara amarrada. Ainda não se livraram da encrenca, nenhum de nós se livrou. Como se um caixão pudesse ter alguma importância com o mundo inteiro desmoronando, a Rússia à beira da guerra outra vez, a Prússia lambendo os beiços com as entranhas da Europa Central, os franceses com seu orgulho militante e exagerado, nosso império indiano e colônias asiáticas em perigo por causa de idiotas desnorteados no Parlamento; nós aguardando o iminente extermínio pelos japoneses.

Na superfície, a carta era inócua. Decifrada, dizia: Solicito urgente todos os reforços possíveis de esquadra e exército, pois espero que a colônia seja atacada a qualquer momento por legiões de samurais do Bakufu, talvez tenhamos de abandonar nossa base aqui.

 

A igreja católica estava iluminada por velas, o altar faiscando, a congregação escassa, e o padre Leo conduzia a litania da missa ao final, sua voz profunda de barítono melodiosa, em meio ao perfume familiar de incenso que envolvia a todos... o serviço mais curto do que o habitual, já que algumas pessoas embarcariam no navio de correspondência.

Angelique ajoelhava-se no primeiro banco, absorvida em oração, Seratard ao seu lado, André alguns bancos atrás, Vervene no fundo, com o resto do pessoal da legação, uns poucos mercadores, eurasianos portugueses, e alguns oficiais e marujos dos navios franceses de licença em terra. A maior parte dos marujos franceses assistia a outras missas, antes ou depois. Não havia padres nos navios, pois considerava-se que trazia má sorte tê-los a bordo, em qualquer navio, de qualquer bandeira.

O padre Leo inclinou-se para o altar, rezou e depois concedeu a bênção à congregação. Angelique respirou fundo, concluiu sua oração sem pressa e esperou que Seratard se levantasse.

Já fizera a confissão. Dissera no confessionário:

— Perdoe-me, padre, pois eu pequei.

— Que pecados cometeu esta semana, minha criança?

Ela percebera a impaciência maldisfarçada de saber de cada pensamento e ato que havia ocorrido, sendo aquela a primeira vez que se confessava desde o início de seus problemas.

— Esqueci de pedir perdão à Santa Mãe, certa noite, em minhas orações — dissera ela, com absoluta calma, persistindo em seu pacto, no plano e palavras que projetara. — Tive muitos pensamentos e sonhos ruins, senti medo, e esqueci que me encontrava nas mãos de Deus, e assim nada precisava temer.

— E que mais?

Um pequeno sorriso se insinuara no rosto de Angelique, ao constatar que a impaciência aumentara.

— Pequei no meu casamento, embora tenha sido legal aos olhos da gente de meu marido, de sua lei e sua Igreja. Mas não houve tempo para nós celebrarmos o casamento na verdadeira Igreja.

— Mas... mas isso, senhora, não é por si só um pecado, já que não foi responsável pelo que aconteceu, ele nos foi tirado abruptamente. Que outros pecados cometeu?

Ela mantivera as narinas fechadas ao máximo que podia, contra o cheiro de alho, vinho ordinário e roupas sujas, usando um lenço perfumado.

— Pequei por não conseguir persuadir Sir William a permitir que sepultasse meu marido conforme ele desejava e, portanto, eu desejava também.

— Isso... isso por si só não é um pecado, minha criança. O que mais?

— Pequei por não conseguir persuadir meu marido a se tomar católico antes de nos casarmos.

— Isso também não é um pecado, senhora. O que mais?

Ele começara a parecer exasperado. Como Angelique esperava. É estranho que eu não tenha mais medo desse homem e seja capaz de perceber as nuances que ele tenta esconder. Será outra dádiva de Deus?

— Cometeu... cometeu pecados da carne?

Os olhos de Angelique se contraíram, o sorriso congelara, e o desprezara ainda mais, ao mesmo tempo em que o perdoava em parte, por sua magnanimidade em abençoar o outro caixão.

— Tenho sido uma esposa correta, de acordo com os ensinamentos da Igreja.

— Sei disso, mas coabitou com ele, não sendo devi...

— Era devidamente casada de acordo com as leis do meu marido e agi de acordo com os ensinamentos da verdadeira Igreja — insistira ela, para acrescentar num tom um pouco incisivo: — E agora, padre, gostaria que me concedesse à absolvição.

Isso era contrário à prática aceita, e ela esperara, prendendo a respiração pronta para se retirar, se ele tentasse esmiuçar mais fundo contra a prática aceita.

— Como... como vai partir hoje, senhora, é necessário ter certeza, para conceder a absolvição...

— Não vou viajar no navio de correspondência, padre. Não hoje.

— Não vai? — murmurara o padre Leo, deixando que Angelique sentisse a exultação e o alívio. — Neste caso, minha criança, poderemos conversar mais, para a glória de Deus. Ah, como são maravilhosos os caminhos de Deus!

Ele concedera a absolvição, com uma penitência mínima, e Angelique deixara o confessionário para se juntar à congregação.

Gostara muito de superar esse obstáculo. Sua mente vagueava, mas estava normal. Agora podia relaxar, satisfeita consigo mesma. Conseguira tudo o que queria: Malcolm sepultado aqui, como ela desejava, Gornt lançado, Hoag a caminho, Tess neutralizada... com a ajuda de Deus.

Deus está do meu lado, tenho certeza. Ele aprova, tenho certeza. Exceto por Malcolm, ah, Malcolm, Malcolm, meu amor...

— Posso acompanhá-la até em casa, Angelique? — perguntou Seratard, interrompendo seus devaneios.

— Obrigada, monsieur — disse ela, formal —, mas não sou muito boa companhia neste momento e prefiro voltar sozinha.

— Temos muito o que conversar antes de sua partida.

— Oh... pensei que já sabia que não vou mais viajar no navio de correspondência... o Dr. Hoag proibiu, o que muito me entristece.

O sorriso de Seratard se alargou.

— Magnífico! É a melhor notícia que recebi em muitos dias! Gostaria de jantar na legação esta noite, apenas duas ou três pessoas... discretamente?

— Obrigada, mas também não. Talvez no final da semana, se eu me sentir melhor.

— Na quinta ou sexta-feira, quando achar melhor.

Seratard beijou-lhe a mão e Angelique saiu da igreja. O vento voltara a soprar. Ela sentiu-se contente pelo véu que a camuflava, pois assim não havia necessidade de se esconder por trás da fachada do rosto. As pessoas por quem passava a cumprimentavam, com tristeza, inclusive Nettlesmith.

— Lamento profundamente a sua partida, madame.

— Obrigada, Sr. Nettlesmith, mas não vou embarcar no navio de correspondência, não hoje. — Outra vez ela viu um rosto se iluminar à notícia e acrescentou, divertida: — O Dr. Hoag proibiu-me de viajar, o que muito me entristece.

— Oh! Posso compreender. Não vai mais, hem? Ah... Pode me dar licença, madame?

Ele correu para o clube. Dentro de poucos minutos, a notícia se espalharia por toda a colônia e não haveria necessidade de anunciá-la a mais ninguém. Ela avistou André mais adiante, esperando-a.

— Olá, André.

— Fico contente porque não vai mais viajar.

— Ah, as notícias circulam depressa.

— Boas notícias. Preciso conversar com você em particular.

— Sobre dinheiro?

— Sobre dinheiro. Você mudou muito, Angelique.

— Para melhor, espero. Como tem passado, meu velho amigo?

— Velho.

André sentia-se desanimado, hoje, cansado. Estivera com Hinodeh, noite passada, e sombras surgiram entre os dois. E violência. Enquanto ela o massageava, André estendera a mão, a fim de puxá-la pela gola do quimono e beijar seu seio, amando-a até a loucura. Mas ela se desvencilhara, fechando o quimono.

— Você prometeu não... — balbuciara ela.

A fúria contra si mesmo por ter esquecido — qualquer violação assim a mergulhava num pesar patético e abjeto, que o enfurecia ainda mais — se transformara em fúria contra ela e ele berrara:

— Pare de se comportar assim! Baka!

Nunca havia lágrimas quando André estava lá, apenas o constante e abjeto murmúrio “gomennasai, Furansu-san, gomennasai, gomennasai, gomennasai”, interminável, até deixarem-no enlouquecido, e ele tornara a gritar:

— Cale-se, pelo amor de Deus!

Hinodeh se calara. E permanecera ajoelhada, olhando para o tatame, as mãos no colo, imóvel, exceto por um tremor ocasional, como um cachorro açoitado.

Ele quisera pedir desculpas, abraçá-la, seu amor incessante, mas isso não o ajudaria, apenas faria com que perdesse a dignidade ainda mais. Por isso, levantara-se, mal-humorado, vestira-se e saíra da casa sem dizer mais nada. Deixando a Yoshiwara, e depois de atravessar a ponte, descera para a praia, chutara o barco de pesca mais próximo, praguejando, até ficar esgotado. Depois, sentara sobre os seixos frios, sufocado de frustração, sabendo que ela estaria chorando naquele momento, também furiosa por não ter contido o erro dele com mais habilidade, sabendo que no dia seguinte recomeçariam como se nada tivesse acontecido, mas André tinha certeza de que, não muito abaixo do comportamento doce e gentil, havia um vasto reservatório de ódio. Por ele.

— E por que não? — murmurou ele.

— Por que não o que, André? — indagou Angelique.

— Oh... nada, estava apenas divagando.

— Vamos procurar um banco vazio. Poderemos sentar ali, e conversar.

O banco era de frente para o mar. O navio de correspondência atraiu a atenção de Angelique e ela especulou sobre o que poderia acontecer se decidisse partir. Só conseguiria entrar no covil da leoa mais cedo do que o necessário, refletiu ela. Não havia necessidade de se preocupar com isso, não havia necessidade de se preocupar com qualquer coisa... apenas assumir meu novo ser, verificar seus limites e esperar. A fumaça começou a subir da chaminé. O navio de correspondência se preparav para zarpar. Apenas uns poucos tênderes continuavam a seu lado.

— Não sou uma companhia muito boa, André, desculpe.

— Pode me arrumar algum dinheiro?

— Só tenho um pouco. Quanto precisa?

— Mil guinéus.

— Para quê?

Ele respirou fundo.

— O nome dela é Hinodeh.

André contou que se apaixonara, queria-a só para si, não revelando o verdadeiro motivo, sua doença.

— É difícil contar tudo, é claro que não posso fazê-lo, mas não consigo viver sem aquela mulher, e o dinheiro é necessário para seu contrato. Preciso obtê-lo, de qualquer maneira.

— Não tenho a menor possibilidade de conseguir essa quantia, André — murmurou Angelique, chocada, mas também comovida. — O que me diz de Henri? Ele não poderia lhe dar um empréstimo?

— Ele recusou, até mesmo recusou a me dar um adiantamento sobre o meu salário. Acho que gosta da minha dependência...

— Se eu falasse com ele...

— Não, não deve fazer isso, seria pior. — Ele fitou-a de uma nova maneira. — Quando conseguir seu acordo de casamento, espero que seja rápido, trabalharei para que saia o mais depressa possível, quero que me empreste o dinheiro, mil guinéus.

— Se eu puder, André, pode contar.

— Pode me emprestar algum agora? Cem guinéus... isso manterá a mama-san sem me pressionar por uma semana... foi ela quem a ajudou.

Angelique deixou passar a farpa, sabendo muito bem que ele a ajudara por vários meios e que prometera não mencionar qualquer deles. Sua mente saltou em frente, novas conclusões: essa Hinodeh é uma segurança adicional para mim.

— Pedirei um adiantamento a Jamie.

— Há o dinheiro que Sir William disse que podia ficar com você, os duzentos e sessenta e três guinéus que estavam no cofre.

— É verdade, restou alguma coisa.

Ela contemplou o mar, a fim de evitar os olhos de André, com uma intensidade perturbadora, e se perguntou como ele soubera. Também queria disfarçar sua aversão àquele André diferente, com sua histeria latente. É uma tolice ser assim, será que ele não compreende que as Parcas estão unidas? Mas, por outro lado, ele está apaixonado, e assim posso perdoá-lo.

— Mandei algum para casa.

— Estou trabalhando por sua conta, Angelique, todos os dias, com Henri. A tutela do Estado, ele tem certeza de que vai conseguir. Henri é importante para o seu futuro, ele e o embaixador serão seus defensores na luta iminente, eu garanto. Foi sensata ao decidir ficar aqui e esperar. É mais seguro, melhor.

Ela recordou como, não muito tempo atrás, André lhe dissera que era vital que fosse para Hong Kong.

Ele a observava, era difícil ver claramente através do véu, lembrando o depoimento assinado que guardara, junto com seu testamento, no cofre do ministro britânico, não confiando em Seratard... contra qualquer “acidente” que lhe acontecesse. Relatava o ato de amor do assassino da Tokaidô e o estupro — quando e como ocorrera, o sepultamento da prova — e a verdade sobre a morte do assassino. Havia ainda a segunda página da carta que o pai de Angelique enviara meses antes, que ele rasgara na sua frente, mas depois juntara os pedaços, o documento que acabaria com qualquer acordo que Tess Struan pudesse conceder... tudo isso a ser usado quando fosse necessário, pois Angelique era seu único passaporte para a posse de Hinodeh e um futuro confortável.

Raiko e Meikin vendendo e comprando segredos? Um sonho irreal, disse ele a si mesmo, amargurado. Eu lhes entreguei todo o plano de campanha e o que recebi em troca? Promessas... e nenhuma chance para abater a minha outra dívida.

— Cem guinéus — repetiu André, muito cansado e furioso para dizer por favor.

Angelique não desviou os olhos do mar.

— Por quanto tempo teremos de esperar... para Tess agir?

— Depende da maneira como Tess receberá a notícia, ou a Hoag, o que ela fará no funeral. De qualquer forma, esperará trinta dias... para saber se você está ou não grávida... antes de decidir.

André falou no mesmo tom indiferente, insistindo no passado, querendo-a dependente de novo. Ela fitou-o agora, satisfeita pelo véu. Ele teve a impressão de que seus olhos eram amistosos... talvez com medo, talvez não.

— Acrescente dez dias para que a notícia chegue ao conhecimento dela, Angelique. Dez para pensar, dez para enviar uma mensagem de volta. Cerca de dois meses, talvez menos.

— Qual será a mensagem?

— Venenosa. — Os olhos de André se contraíram. — Mas tenho algumas idéias, planos. Posso ajudá-la a se tornar rica. Temos de esperar, não há nada a fazer por algum tempo, apenas esperar. Paciência, Angelique. Paciência e um Pouco de sorte... Tenho algumas idéias.

E eu também, André Chantagista. Muitas. E planos. Para você, para Tess e para o futuro. Ternamente, ela inclinou-se, tocou-o.

— Fico contente que você tenha um amor para acalentar. É abençoado.

Angelique falou com sinceridade. Depois, como só uma mulher era capaz ela pôs a ternura de lado para sempre e repôs seus planos no lugar.

— O dinheiro estará à sua espera às seis horas, André... fico contente porque você é meu amigo.

— Eu também me sinto contente... e obrigado pelo empréstimo.

— Portanto, devemos ser pacientes de novo e esperar? É isso o que devemos fazer, não é mesmo? Um pouco de sorte e paciência? Posso ser paciente. Um pouco de sorte e paciência. Muito bem. Que assim seja.

Ele observou-a se afastar, empertigada e confiante, e também, apesar de toda a sua esplêndida pequeneza, um tanto alta.

 

IEDO, Quinta-feira, 1O de janeiro de 1863:

Toranaga Yoshi chegara ao castelo de Iedo, procedente de Quioto, oito dias antes, cansado e furioso, a jornada desde a estação de posta de Hamamatsu em marcha forçada.

As linhas em seu rosto eram mais profundas. Onde os homens tinham medo dele antes, agora sentiam pavor. Sua ira se voltava contra eles como um açoite. Durante a jornada, exigira o máximo de si mesmo e deles, dormindo apenas umas poucas horas, desvairado com qualquer atraso, insatisfeito com as estalagens, os banhos, a comida, o serviço e o futuro. O capitão Abeh suportava o impacto, todos sabendo que era apenas frustração e dor pela morte de Koiko, a amada.

Abeh providenciara a cremação de Koiko, assim como a de Sumomo, e depois partiram, galopando por léguas, todos conscientes de que uma guerreira tão brava merecia uma reverência cortês do vencedor diante do fogo... ainda mais quando se tratava de uma mulher, shishi, que em breve seria o tema de canções e lendas, a mesma forma que o golpe que a partira ao meio. E Koiko, o lírio também, ela que se lançara no trajeto do primeiro shuriken, assim salvara a vida do lorde, e a quem ele concedera a dádiva da morte sem dor. Mas Yoshi, guardião do herdeiro, dissera tristemente:

— O poema de morte delas é o seguinte:

 

Do nada ao nada,

Um cadáver é um cadáver,

E nada mais —

O meu, o seu, até o delas,

Será que existiram? Nós existimos?

 

Dali por diante, a toda velocidade, até alcançarem o castelo. Mas nem ali houvera descanso, o castelo, Iedo e todo Kwanto em polvorosa pelos preparativos dos gai-jin para a guerra... precipitada pelo ultimato do tairo, como Yoshi esperava

— Era inevitável — declarara Yoshi, na reunião dos anciãos que convocara de imediato, acrescentando, para proporcionar a Anjo um meio de se livrar da situação: — Você foi mal aconselhado... afaste o idiota que fez a sugestão e elaborou a carta.

— Foi ordem do imperador e do xógum, para que todos os gai-jin fossem expulsos — protestara Anjo, furioso.

— Ordem? O xogunato é que ordena, não um menino menor de idade, que repete as palavras que o xogunato lhe diz... nem o imperador, que só pode nos solicitar para fazer alguma coisa!

— Como tairo, considerei que o ultimato era necessário.

— E pergunto de novo, o que propõe fazer quando a esquadra chegar aqui?

— Isso não vai acontecer, porque atacaremos primeiro — respondera Anjo, para depois estremecer com uma pontada de dor, comprimindo seu flanco. — Já os cerquei; Iocoama é como um peixe morto esperando para ser estripado. A força de ataque está quase pronta.

— E a esquadra dos gai-jin?

A ira de Yoshi era intensa por seu conselho ter sido mais uma vez descartado e por se meterem, de novo, numa armadilha que eles próprios haviam criado. Não adiantava recordar a Anjo e aos outros o plano que ele projetara de forma tão meticulosa, ganhando tempo para novas táticas protelatórias contra os gai-jin, enquanto o xogunato aumentava sua força e cuidava do problema mais específico e premente de destruir a coalizão hostil de Tosa, Choshu e Satsuma, que acabaria por derrubá-los, se permitissem que vicejasse.

— Primeiro, surpreendemos Iocoama, incendiamos tudo, como sugeri há meses — dissera Toyama, tremendo de excitamento. — Vamos queimá-los!

— E como afundaria a esquadra? — indagara Yoshi, desdenhoso.

Ele notara a dor de Anjo, e sentia-se contente por isso, recordando seu acordo com Ogama de Choshu, que deveria ser confirmado depressa, a fim de manter o inimigo desconcertado e neutralizado. Toyama dissera, veemente:

— Os deuses afundarão seus navios, Yoshi-dono, como fizeram contra Kublai Khan e seus mongóis. Esta é a terra dos deuses e eles não vão nos abandonar.

— E caso os deuses estejam ausentes ou dormindo — acrescentara Anjo — mandaremos nossos brulotes... tenho centenas já em construção, centenas. Se o inimigo passar por essa barreira para bombardear Iedo, só camponeses, mercadores, artífices e parasitas morrerão. Nossas legiões continuarão intactas.

— Isso mesmo, ficarão intactas — concordara Toyama, exultante.

Anjo continuou:

— Depois que Iocoama cair, a esquadra dos gai-jin deverá partir, porque não terá mais uma base aqui para se reagrupar. Seguirá para as colônias na China, por falta de uma posição segura aqui. Se eles voltarem, nós...

— Quando eles voltarem — corrigira Yoshi.

— Está certo, Yoshi-dono, quando eles voltarem, com mais navios, vamos afundá-los no estreito de Shimonoseki, Ogama cuidará disso ou, a essa altura, já teremos mais canhões, mais brulotes, e nunca permitiremos que desembarquem, nunca mais deixaremos que instalem outra base aqui. Não haverá mais tratados para protegê-los! Absolutamente nenhum! Fecharemos nossa terra, como antes. É isso o que planejo. — A expressão de Anjo era triunfante. — Rasguei os tratados, como quer o imperador!

— Você é divino, tairo, os deuses nos protegerão com um vento divino! — exclamara Zukumura, rindo, a saliva escorrendo pelo queixo.

— Os deuses não nos protegerão das granadas dos gai-jin, nem os brulotes — garantira Yoshi. — Se perdermos Iedo, perderemos a nossa cidadela de xogunato, e depois todos os daimios da terra se juntarão contra nós para partilharem os despojos... liderados por Ogama de Choshu, Sanjiro de Satsuma e Yodo de Tosa. Sem Iedo, nosso xogunato está liquidado. Por que não podem compreender isso?

Anjo se contorcera sob outra pontada de dor, e explodira:

— Compreendo muito bem que você pensa que é o lorde da terra e a dádiva dos deuses ao Nipão, mas acontece que não é, não é mesmo, está sob as minhas ordens, sob o meu comando. O tairo SOU EU!

— Você é o tairo, e... mas por que essa dor? — indagara Yoshi, simulando preocupação, como se tivesse acabado de notar, com a intenção de interromper a confrontação. — Há quanto tempo sente essa dor? O que diz o doutor?

— O que diz? Ele... — Anjo tomou outro gole do amargo extrato de ervas. O medicamento quase não atenuava a dor. Vinha se agravando e o novo doutor chinês se mostrava tão inútil quanto os outros, a tal ponto que ele até passara a considerar a possibilidade de um exame secreto pelo famoso doutor gigante gai-jin de Kanagawa. — Não importa minha dor. Eu conheço você.

Yoshi percebera o ódio de Anjo e sabia que o ódio era causado por sua juventude e força... e o idiota nem imagina como estou cansado da vida.

— Posso...

— Você não pode fazer nada! Atacaremos quando eu ordenar e chega de conversa! A reunião está encerrada!

Anjo saíra, mais furioso do que nunca. Agora que era o tairo, Anjo reinava autoritário, e tratava todos os outros com um profundo desdém.

Num acesso de raiva, Yoshi vagueara pelo castelo como um tigre enjaulado. Depois daquele primeiro dia terrível, relegara Koiko para um compartimento isolado e o trancara com firmeza. Mesmo assim, ela o espiava lá de dentro de vez guando, sorrindo. Irritado, ele a empurrava de volta... agora não havia como saber se Koiko se adiantara para salvar sua vida, como Abeh lhe assegurara, não havia como descobrir por que ela empregara uma assassina shishi, Sumomo Fujahit a um nome falso, sem dúvida, mas com certeza uma acólita de Katsumata.

E onde se encontra Katsumata agora?

Ele já dera ordens para que o descobrissem, onde quer que estivesse, oferecera vultosa recompensa por sua cabeça. Também ordenara a caçada e destruição de todos os shishi e seus protetores. Depois, mandara chamar Ineijn seu maior espião. O velho entrara claudicando, fizera uma reverência.

— Parece, Sire, que os deuses o protegeram como se fosse um dos seus.

— Permitindo que uma assassina shishi, armada com um shuriken, entrasse no santuário interior de minha cortesã, permitindo que minha cortesã se tornasse uma traidora, parte da conspiração?

Inejin sacudira a cabeça.

— Talvez não uma traidora, Sire, nem parte de uma conspiração, apenas uma mulher. Quanto à shishi, Sumomo, ela apenas serviu para demonstrar a sua capacidade de luta, Sire, que foi perfeita... para a qual foi treinado.

A força extraordinária daquele velho servidor despachara a raiva de Yoshi para a China.

— Não tão perfeita — murmurara ele, pesaroso —, já que a gata me arranhou. Mas o ferimento sarou.

— Devo arrastar Meikin, a mama-san, até aqui, Sire?

— Ah, o pivô. Não a esqueci. Em breve, mas ainda não. Continua a vigiá-la?

— Como se fosse a sua segunda pele. O que deseja de mim, Sire?

— Quero que encontre Katsumata, vivo, de preferência. Removeu o traidor ronin que trabalhava para os gai-jin, como eu ordenei? Qual era mesmo o seu nome? Ori Ryoma, um Satsuma, é isso.

— Esse homem está morto, Sire, mas tudo indica que não era o traidor. Os gai-jin mataram Ori há algumas semanas. Atiraram nele quando tentava arrombar uma de suas casas. Mas o homem que lhes fornecia informações... e continua a fazê-lo... é um ronin de Choshu chamado Hiraga.

Yoshi ficara surpreso.

— Aquele do cartaz? O shishi que comandava os homens que assassinaram Utani?

— Isso mesmo, Sire. No momento, não posso eliminá-lo, pois ele se encontra sob a proteção do chefe inglês, e não se afasta muito do prédio deles. Tenho um espião na aldeia, e poderei lhe dizer mais coisas dentro de uns poucos dias.

— Ótimo. O que mais? Toda essa conversa de guerra?

— Espero ter mais informações em poucos dias.

— Pois trate de se apressar — dissera Yoshi, dispensando-o. — Quanto tiver notícias mais sérias, volte a me procurar.

Inejin não vai me falar, pensara ele, e lamento ter sido tão rude. Os espiões, devem ser cortejados como nenhum outro... porque deles depende sua capacidade de se movimentar... Ah, Sun-tzu, que gênio você foi... mas nem mesmo o conhecimento mais profundo de seus preceitos me diz o que fazer em relação aos gai-jin, em relação àquele garoto idiota e minha arqui-inimiga, a princesa Yazu... os dois ainda se empanturrando com o mingau com mel servido pelos sicofantas da corte, obedecendo às ordens daquele cão, o lorde camarista. O que você faria para destruir os inimigos que me cercam? Anjo, os anciãos, a corte, Ogama, Sanjiro, a lista é interminável. E impossível. E por cima de todos, os gai-jin.

E fora então que ele se lembrara do convite para ir a bordo do navio de guerra furansu — francês. O empreendimento de venda de carvão que sua esposa, Hosaki, organizara em conjunto com a Gyokoyama e o garimpeiro gai-jin lhe permitira enviar Misamoto, seu falso samurai, o pescador-intérprete, para acertar os detalhes. Isso ocorrera no dia anterior.

Ele saíra de Iedo numa galé a remo, para um encontro no mar, sem fanfarras, logo além da vista de terra... com Abeh, vinte guardas e Misamoto. A experiência fora apavorante. O tamanho e a potência dos motores do navio, os canhões, a quantidade de pólvora, balas e carvão que podia transportar, e as histórias que haviam contado, mentiras ou verdades, ele ainda não era capaz de determinar a extensão do império furansu, sua riqueza e poder, as léguas de viagem que um navio assim podia cobrir, a quantidade de navios de guerra e canhões e o tamanho de seus exércitos, que eram inacreditáveis, pelo que diziam. Misamoto interpretara, junto com o intérprete que se intitulara Andreh Furansu-san. Embora eles tivessem sua própria língua, o encontro fora conduzido na maior parte em inglês.

Yoshi não entendera muito do que ele dissera. As palavras usadas eram estranhas e se consumira muito tempo explicando quilômetros e metros, pólvora, breu e êmbolos, vapores de roda contra vapores de hélice, blocos de culatra e fecharia de pederneira, fábricas e potência de fogo.

Mas tudo fora esclarecedor e certas informações da maior importância: a necessidade vital de suprimento de carvão e portos seguros — sem o que os navios de guerra a vapor não passavam de cascos inúteis — incapazes de transportar todo o carvão necessário para a viagem de ida, as operações navais e a viagem de volta. E, segundo, como ele já testemunhara na reunião do Conselho com os gai-jin, no castelo em Iedo, e achara difícil acreditar na verdadeira extensão, qualquer menção aos gai-jin ingleses, os ing’erish, provocara olhares desdenhosos nos gai-jin furansu, que não hesitavam em demonstrar a profundidade de seu ódio.

Isso o deixara satisfeito, porque confirmara o que Misamoto dissera antes, que os ing’erish eram odiados por quase todas as outras nações do mundo, porque possuíam o maior império, eram a nação mais forte e mais rica, com as maiores e mais modernas esquadras, os exércitos mais poderosos, disciplinados e bem equipados, além de terem ganhos com a produção de mais da metade das mercadorias do mundo. E ainda contando, o melhor de tudo, com uma ilha que era um reduto inexpugnável para guardar tudo.

Claro que eles são odiados. Como nós, os Toranagas, também somos odiados. Portanto, pensara ele, com uma ânsia nas entranhas por seu erro passado, são esses gai-jin ing’erish que devem ser adulados, cuja amizade devemos conquistar e tratá-los com o maior cuidado. As melhores esquadras? E as melhores armas. Como eu poderia tentá-los a me construírem uma esquadra? Ou me fornecerem uma? O carvão pagaria por isso?

— Misamoto, diga a eles que eu gostaria de aprender mais sobre esses maravilhosos artefatos furansu — ordenara ele, em tom afável. — Diga também que eu gostaria de ter amigos entre os gai-jin. Não me oponho ao comércio... talvez até possa transferir minha concessão de carvão para os furansu, tirando dos ing’erish.

Isso despertara o interesse imediato deles. Nessa ocasião, estavam lá embaixo na maior cabine na popa, que ele achara apertada e malcheirosa, com os odores de óleo, fumaça de carvão e refugos humanos, com uma camada de pó de carvão por toda parte. Sentavam ao redor de uma mesa comprida, meia dúzia de oficiais em uniformes com alamares dourados, e seu líder, Seratard — Serata, a pronúncia correta — no centro. Abeh e metade de seus guardas postavam-se por trás de Yoshi, os outros haviam ficado lá em cima.

No momento em que vira Seratard e ouvira seu nome, Yoshi gostara dele — era totalmente diferente do líder maior dos ing’erish, alto e de cara azeda, com um nome impronunciável. Serata, como o Furansu-san Andreh, era fácil de pronunciar. Na verdade, aqueles nomes eram japoneses. Serata era um presságio milagroso.

Afinal, Serata era o nome da aldeia ancestral de sua família, em que seu antepassado, Yoshi-shigeh Serata-noh Minowara, se instalara no século XII. No século XIII, o daimio guerreiro Yoshi-sada Serata levantara um exército contra seus suseranos, os Hojo, derrotando-os e capturando sua capital, Kamakura. Desde então, seus descendentes diretos, os Yoshi noh Toranaga noh Serata, ainda reinavam em Kamakura — o xógum Yoshi Toranaga fora sepultado ali, em seu grande mausoléu.

— Somos aparentados — gracejara ele, depois de explicar a coincidência a Seratard.

Seratard rira e depois explicara, interrompendo os outros, que não paravam de falar, como macacos em uniformes exóticos, que sua família também era antiga na terra dos furansu, mas não tão ilustre.

— Meu superior se sente honrado em ser amigo e da parte gai-jin de sua grande família, Sire — dissera Andreh, com uma reverência.

— Diga a ele que considero seu nome um bom sinal — declarara Yoshi, notando que aquele homem parecia muito mais do que um mero intérprete.

— Meu superior agradece e diz que tudo aquilo que os ing’erish oferecem os furansu oferecem melhor.

Misamoto informara, obsequioso:

— Lorde, ele está querendo dizer que farão um negócio melhor... mais dinheiro. Os furansu também fabricam canhões, como os ing’erish, mas não tantos.

— Diga a eles que considerarei uma proposta para lhes entregar a concessão de carvão. Devem me dizer quantos fuzis e canhões, com pólvora e balas, e quando posso receber, por quanto carvão. E quero um navio a vapor, com oficiais para treinarem meus oficiais e marujos. Na verdade — acrescentara ele, com um ar de inocente —, talvez eu pudesse conceder aos furansu o direito exclusivo de construir, vender e treinar uma marinha. Claro que eu pagaria. Se o preço fosse razoável.

Ele vira os olhos de Misamoto se arregalarem; antes que Misamoto tivesse tempo de começar a traduzir, o gai-jin Andreh, que estivera escutando com igual atenção, dissera:

— Meu superior certo que rei da terra de furansu terá maior honra em ajudar lorde Yoshi Toranaga em navios.

Fascinado, ele observara Andreh virar-se para líder Serata e começar a falar, os oficiais navais ouvindo e balançando a cabeça, logo ficando também excitados. Espantoso como era fácil manipular aqueles homens com comércio e promessa de dinheiro no futuro, pensara ele. Se os furansu reagiam tão depressa, era certo que o líder ing’erish faria a mesma coisa. Dois peixes brigando pelo mesmo anzol é melhor do que um só.

Haviam conversado também sobre outras coisas, não pelo tempo suficiente para cobrir tudo, mas ele aprendera o suficiente para querer aprender mais. Um detalhe mencionado por Andreh Furansu-san o deixara abalado. Falavam sobre os conhecimentos médicos modernos e como seria fácil treinar o pessoal e equipar um hospital.

— Chefe doutor medicina em Kanagawa bom, Sire. Ouvir tairo Anjo doente, Sire. Ouvir talvez tairo ver doutor-sama.

— Quando e onde esse encontro vai ocorrer?

— Meu superior diz: não certo se já acertado, Sire. Talvez chefe doutor medicina ajudar tairo.

— Se um encontro for acertado, quero saber. Diga a Serata que um hospital é também uma possibilidade interessante.

Ele decidira deixar o assunto por aí. Por enquanto. Mas era outra informação que seria melhor Misamoto esquecer. Como posso ter um intérprete pessoal em quem confie? É melhor arrumar um. Talvez deva treinar Misamoto, ele é meu seguidor submisso, dependente, sob o meu controle. Até agora se mostrou obediente. Não resta a menor dúvida de que cuidou direito dos garimpeiros. Uma pena que ele estivesse ausente, relatando os progressos a Hosaki, quando os dois ligaram... como bestas selvagens, informaram os samurais, nada mais apropriado! Se Misamoto estivesse na mina, talvez pudesse impedi-los. Não que isso tenha alguma importância, um está morto, é menos um problema com que me preocupar, e com certeza o sobrevivente não continuará por muito mais tempo neste mundo. Carvão! Portanto, temos uma abundância em carvão, diz Hosaki, e para esses gai-jin o carvão parece valer tanto quanto ouro. Deliberadamente, ele mudara de assunto.

— Pergunte a Serata-san por que os gai-jin disparam canhões e fuzis, e mandam os navios de guerra navegarem de um lado para outro, perturbando a n desta terra dos deuses. Eles se preparam para a guerra?

Houvera um momento de silêncio. E o clima na cabine mudara.

— Meu superior dizer não preparar guerra — dissera o gai-jin Andreh. Yoshi concluíra que era uma tradição meticulosa. — Preparar defesa apenas. Sinto muito, tairo dizer que todos gai-jin têm ir embora.

— Por que não se retirar por um ou dois meses e depois voltar?

Ele rira interiormente ao perceber a consternação que a sugestão gerara.

— Meu superior dizer tratado assinado lorde xógum e posto prática líder Bakufu tairo Li e nobre imperador permitir nós Iocoama, Kanagawa e Kobe em breve. Tratado ser bom para Nipão, gai-jin ser bom para Nipão. Tairo Anjo, sinto muito, errado ficar tão zangado.

— Muitos daimios não pensam assim. Tairo Anjo é o líder. Vocês devem fazer o que ele ordena. Esta é a nossa terra.

— Meu superior dizer Furansu querer ajudar Nipão ser grande nação no mundo... como aqui também.

— Diga a Serata-sama que o tairo é o líder, o que ele diz deve ser obedecido, embora às vezes até o tairo possa mudar de idéia, se receber o conselho correto.

Yoshi vira esse novo dado ser registrado e acrescentara:

— Sinto muito, já explicamos uma dúzia de vezes que as questões de Satsuma só podem ser resolvidas por Sanjiro, o daimio de Satsuma.

— Meu superior dizer esperar alguém possa dar conselho correto a tairo. Daimio Satsuma deve dizer desculpas, pagar indenização combinada reunião Iedo, punir assassino abertamente.

Ele balançara a cabeça, como se estivesse muito preocupado. Levantara-se abruptamente, provocando mais consternação... não havia sentido em continuar a conversar com aqueles subalternos, que podiam ser valiosos sob outros aspectos, mas era o líder ing’erish que ele tinha de procurar. E embora mantivesse uma atitude altiva e severa, ele demonstrara alguma cordialidade e concordara, com uma relutância simulada, em ter outro encontro.

— Misamoto, diga a eles que podemos nos reunir de novo daqui a dez dias, em Iedo. Eles podem ir a Iedo para uma reunião particular.

No momento em que ele deixava o navio de guerra, o gai-jin Andreh dissera:

— Meu superior deseja você bom ano-novo.

Aturdido, ele soubera que o mundo gai-jin tinha seu próprio calendário, totalmente diferente do calendário lunar dos japoneses — e chineses —, que fora a maneira de contar os dias, meses e anos desde o princípio do tempo.

— O primeiro dia de nosso ano, Serata-sama — explicara Misamoto — é entre o 169 dia do primeiro mês e o 229 dia do segundo mês, dependendo da lua-Este ano, o ano do cão, o primeiro dia, que inicia nossa temporada de festivais, e o 189 do primeiro mês. É quando toda a China diz Kung Hay Fat Choy.

Voltando para Iedo, na galé, Yoshi especulara sobre aqueles homens. De um modo geral, sentira-se consternado — os gai-jin eram como monstros sob a forma de homens que tinham vindo das estrelas, suas idéias e atitudes o lado errado de yin e yang.

Mas, para que possamos sobreviver como nação, o Nipão precisa ter navios maiores e canhões, mais poder, para nos protegermos desses demônios estrangeiros. E pelo menos por enquanto, concluíra ele, sentindo-se nauseado, o xogunato deve fazer um acordo com eles.

Nunca irão embora, não todos eles, por sua livre e espontânea vontade. Se não forem estes, outros virão para roubar nossa herança, chineses ou mongóis, ou os peludos das terras geladas da Sibéria, que nos contemplam como cães babando de portos roubados da China. E sempre os ing’erish estarão ao nosso redor. O que fazer com eles?

 

Isso acontecera no dia anterior. Ontem à noite e naquela madrugada ele estivera absorto em pensamento, quase sem comer, quase sem dormir, consciente também do vazio de sua cama e do vazio de sua vida, as juntas do compartimento de Koiko vazando, assim como as de Anjo, de Ogama e dos outros. Muitas vezes, durante a viagem desde Quioto, pensara na espada limpa, na pureza e paz da morte, o minuto, a hora e o dia escolhidos com um poder divino, pois escolher o momento da própria morte o transformava num deus: do nada ao nada. Não mais o pesar para dilacerá-lo em pétalas de dor.

Muito fácil.

O primeiro raio de sol do amanhecer passou pela janela, refletindo-se em sua espada curta. Estava ao lado da cama, junto com a espada longa, as duas ao fácil alcance de suas mãos, o fuzil ali também, carregado, o que ele chamara de Nori. A espada curta era uma herança de família, feita pelo mestre ferreiro Masumara, outrora possuída pelo xógum Toranaga. Ele olhou para a bainha velha e gasta, e através dela, em sua mente, contemplou a perfeição da lâmina. Estendeu a mão, acariciando o couro, depois subiu pelo cabo, foi pousá-la na pequena tranqueta presa ali. O pai instruíra seu ferreiro a prendê-la ali, antes de presenteá-lo com a espada, formalmente, na presença de seu círculo interno de servidores. Yoshi tinha quinze anos na ocasião e já matara seu primeiro homem, um ronin, que tivera um acesso de loucura perto do castelo de sua família, o Ninho da Águia.

— Isto é para lembrá-lo de seu juramento, meu filho: que empunhará esta lâmina com honra, que para cometer seppuku só usará esta lâmina, que só cometerá seppuku para evitar a captura no campo de batalha, ou se o xógum assim ordenar, e o Conselho de Anciãos confirmar a ordem por unanimidade. Todos os outros Motivos são insuficientes, enquanto o xogunato estiver em perigo.

Uma sentença terrível, refletiu Yoshi, e tornou a se estender na cama, a salvo no momento, naquele quarto no alto de seus aposentos no castelo, onde experimentara tanto prazer. Os olhos retornaram à espada curta. Sua necessidade hoje era intensa. Em sua imaginação, ensaiara o ato tantas vezes que seria suave, gentil e libertador. Muito em breve Anjo enviará homens para me prenderem, e essa será minha desculpa...

Seus ouvidos aguçados ouviram passos. Pés marchando. As mãos pegaram a espada curta e a espada longa, ele assumiu a posição de ataque-defesa.

— Sire?

Yoshi reconheceu a voz de Abeh. Isso não significava segurança, pois Abeh podia ter uma faca na garganta ou ser um traidor... depois de Koiko, todos eram suspeitos.

— O que é?

— O homem Inejin pede para vê-lo.

— Revistou-o?

— Revistei-o.

Yoshi usou a corda que prendera, permitindo-lhe puxar a tranca da porta sem se levantar. Inejin, Abeh e quatro samurais esperavam ali. Ele relaxou.

— Entre, Inejin.

Abeh e os outros de sua guarda pessoal fizeram menção de segui-lo e Yoshi acrescentou:

— Não há necessidade, mas fiquem ao alcance de serem chamados. Inejin fechou a porta, notou a corda para puxar a tranca, mas não fez qualquer comentário, e ajoelhou-se a dez passos de distância.

— Descobriu Katsumata?

— Ele estará em Iedo dentro de três dias, Sire. E irá direto para a casa da Glicínia.

— Aquele covil de escorpiões? — Yoshi não fechara a armadilha contra a mama-san Meikin, pois queria descobrir a verdadeira extensão da conspiração contra ele antes de se vingar... a vingança era melhor quando saboreada calmamente. — Podemos capturá-lo vivo?

Inejin exibiu um estranho sorriso.

— Duvido muito, mas posso lhe contar a história à minha maneira, Sire? — Ele ajeitou o joelho dolorido de forma mais confortável. — Primeiro, sobre os gai-jin: um fato esperado e encorajado desde o início aconteceu. Um espião gai-jin ofereceu os planos de batalha por dinheiro

O interesse de Yoshi foi imediato.

— Não são falsos?

— Não sei, Sire, mas foi sussurrado que continham movimentos de tropas e navios. O preço era modesto e mesmo assim o representante do Bakufu não comprou de imediato, começou a regatear, e a pessoa que estava vendendo se assustou. Com Anjo no comando... — Os lábios rachados se contraíram em repulsa ao nome. — Ele é baka, indigno! Se a cabeça é podre, o corpo é pior.

— Concordo. Uma estupidez.

Inejin acenou com a cabeça.

— Eles esquecem Sun-tzu outra vez, Sire: Permanecer na ignorância da disposição do inimigo, regateando o desembolso de algumas centenas de moedas de prata, é o cúmulo da inumanidade. Por sorte, um informante me comunicou a respeito.

Inejin tirou um pergaminho da manga, largou em cima da mesa Yoshi suspirou, satisfeito.

— So Ka!

— Com a ajuda do meu informante, comprei para lhe dar, Sire, um presente. E também, para grande risco de meu informante, substituí por um pergaminho falso que o Bakufu acabará comprando por uma ninharia.

Yoshi não tocou no pergaminho, apenas contemplou-o em expectativa.

— Por favor, permita que eu o reembolse.

Inejin procurou encobrir seu vasto alívio, pois tivera de penhorar sua estalagem para a Gyokoyama, a fim de obter o dinheiro.

— Procure meu caixa ainda hoje. As informações merecem confiança? Inejin deu de ombros. Ambos conheciam os preceitos de Sun-tzu: Um espião interno é o mais perigoso, aquele que vende segredos por dinheiro. É preciso um homem de gênio para avaliá-los.

— Meu informante jura que as informações merecem confiança, assim como o espião.

— E o que dizem?

— O plano dos gai-jin é assustadoramente simples. No dia da batalha, dez dias depois de apresentado seu ultimato... e se não for atendido... toda a esquadra se desloca contra Iedo. No primeiro dia, a área de ataque é mais distante da costa, Sire, o alcance máximo de seus canhões mais pesados, visando a destruir todas as pontes e estradas que saem de Iedo... que já foram localizadas, mais informações fornecidas a eles, com toda certeza, pelo traidor Hiraga. Nessa mesma noite, à luz dos incêndios que eles provocaram, o castelo é bombardeado. No dia seguinte, as áreas costeiras são dizimadas. No terceiro dia, eles desembarcarão mil soldados armados com rifles, que avançarão para os portões do castelo. Ali, montam um sítio com morteiros, destróem os portões e as pontes, e a maior parte do castelo que for possível. No quinto dia, eles se retiram para seus navios e vão embora.

— De volta a Iocoama?

— Não, Sire. O plano diz que evacuarão todos os gai-jin na véspera do dia da batalha e se retirarão para Hong Kong até a primavera. E depois voltarão com toda força. O custo da guerra... como aconteceu com as guerras chinesas, e é o costume deles... será dobrado, e exigirá reparações do xogunato e do imperador, assim como um acesso pleno a todo o Nipão, inclusive Quioto, e uma ilha cedida em caráter perpétuo, para cessar as hostilidades.

Yoshi sentiu um calafrio. Se aqueles bárbaros haviam conseguido humilhar toda a China, mãe do mundo, acabarão nos humilhando também, até a nós. Pleno acesso?

— Esse ultimato... o que é essa impertinência adicional?

— Não consta do pergaminho, Sire, mas o espião prometeu detalhes, assim como a data da batalha, e qualquer mudança.

— Qualquer que seja o custo, compre essas informações... se forem verdadeiras, podem fazer uma diferença no resultado.

— É bem possível, Sire. Parte das informações é sobre as contramedidas dos gai-jin. Contra nossos brulotes.

— Mas Anjo me disse que são secretos!

— Não é segredo para eles. O Bakufu é como uma peneira de arroz para os interessados, Sire, além de corrupto.

— Nomes, Inejin, e suas cabeças serão espetadas em chuços.

— A começar hoje, Sire. Começar do topo.

— Isso é traição.

— Mas a verdade, Sire. Gosta de verdades, não de mentiras, ao contrário de qualquer líder que já conheci. — Inejin ajeitou melhor os joelhos, a dor quase intolerável. — A questão do espião é complicada, Sire. Foi Meikin quem me falou a respeito dele...

Yoshi soltou um grunhido e Inejin continuou:

— Concordo, Sire. Mas Meikin me falou, Meikin que desviou o intermediário do Bakufu para mim, Meikin que substituirá o falso documento, com grande perigo, pois deve atestar sua veracidade, Meikin que deseja desesperadamente lhe provar sua lealdade.

— Lealdade? Quando sua casa é um santuário para os shishi, um ponto de encontro para Katsumata, um centro de treinamento para traidores?

— Meikin jura que a dama nunca participou de nenhuma conspiração, Sire. Nem ela.

— O que mais ela pode dizer... foi a criada, neh?

— Talvez ela esteja falando a verdade, talvez não, mas também é possível que, por causa de sua dor, Sire, ela agora perceba o erro passado. Uma espiã convertida pode ser muito valiosa.

— A cabeça de Katsumata me faria ter mais certeza. Se capturado vivo, mais ainda.

Inejin riu, inclinou-se para a frente e baixou a voz:

— Sugeri que ela lhe fornecesse o mais depressa possível detalhes sobre o traidor Hiraga, antes que solicite a cabeça dele.

— E a dela.

— A cabeça de uma mulher espetada num chuço não é uma coisa bonita, Sire, quer seja velha ou moça. Essa é uma verdade antiga. Melhor deixá-la em seus ombros e usar o veneno, sabedoria, astúcia ou simples corrupção que uma mulher assim possui em seu proveito.

— Como?

— Primeiro, entregando-lhe Katsumata. Hiraga é um problema mais complexo. Meikin diz que ele é íntimo de um importante ajudante ing’erish do líder ing’erish, chamado Taira.

Yoshi franziu o rosto. Outro presságio? Taira era outro nome japonês o significado, uma antiga família nobre relacionada com a linhagem de Yoshi Serata.

— E daí?

— Esse Taira é importante, um interprete em treinamento. Seu japonês já é muito bom — os ing’erish devem ter uma escola como o senhor propôs, e o Bakufu “considera”.

— Considera, hem? Taira? É um jovem feio, alto, olhos azuis, nariz imenso, cabelos compridos como palha de arroz?

— Isso mesmo, ele é assim.

— Lembro dele da reunião com os anciãos. Continue.

— Meikin soube que o conhecimento dele de nossa língua melhora depressa, com a ajuda de uma prostituta chamada Fujiko, mas ainda mais por causa de Hiraga, que cortou os cabelos ao estilo gai-jin e usa roupas de gai-jin. — O velho hesitou, adorando contar os segredos. — Parece que esse Hiraga é neto de um importante shoya de Choshu, que teve permissão de comprar a posição de goshi para seus filhos, um dos quais, o pai desse Hiraga, é agora hirazamurai. Hiraga foi escolhido para ingressar numa escola secreta de Choshu, onde se mostrou um estudante excepcional e aprendeu um pouco de ing’erish.

Ele suprimiu um sorriso ao ver a expressão de seu lorde.

— Quer dizer que o espião não é um gai-jin, mas esse Hiraga?

— Não, Sire, mas Hiraga pode ser uma valiosa fonte secundária de informações. Se pudesse ser explorado.

— Um shishi nos ajudando? — Yoshi soltou uma risada escarninha. — Impossível.

— Sua reunião ontem, a bordo do navio furansu... foi proveitosa, Sire?

— Foi interessante.

Era impossível manter uma coisa assim em segredo. Yoshi sentiu-se contente por Inejin ter obtido a informação tão depressa. Abeh e meia dúzia de seus homens haviam testemunhado o encontro. Quem falara? Não tinha importância. Era de se esperar. E ele nada dissera de comprometedor.

— Abeh! — gritou ele,

— Pois não, Sire?

— Mande uma criada trazer chá e saquê.

Yoshi não falou mais nada até que fossem servidos e aceitos de bom grado por Inejin. Aproveitou o tempo para avaliar as informações e formular novas perguntas e respostas.

— O que propõe?

— Não caberia a mim propor o que certamente já decidiu, Sire. Mas ocorreu-me que, quando e se o líder ing’erish enviar seu ultimato, o lorde sozinho seria a pessoa perfeita para mediar... sozinho, Sire.

— Hum... E depois?

— Entre outras coisas, poderia pedir para ver esse Hiraga. E assim poderia avaliá-lo, talvez persuadi-lo a vir para o seu lado. Virá-lo em seu proveito. O momento não poderia ser mais oportuno.

— É bem possível, Inejin. — Yoshi já descartara isso por uma idéia muito melhor, que se ajustava ao plano que discutira com Ogama em Quioto, e à sua própria necessidade de iniciar a execução de seu grandioso projeto.— Ou fazer desse Hiraga um exemplo. Capture Katsumata, ele é a cabeça da serpente shishi e se Meikin é o meio para capturá-lo vivo, tanto melhor para ela.

 

A alguns quilômetros de distância, na estrada Tokaidô, na estação de posta de Hodogaya, Katsumata esquadrinhava a multidão, de uma janela da casa de chá.

— Seja paciente, Takeda — disse ele. — Hiraga não deve chegar até a metade da manhã. Seja paciente.

— Detesto este lugar — murmurou Takeda.

A aldeia situava-se em campo aberto, com poucos lugares em que poderiam se esconder e a apenas cinco quilômetros da colônia de Iocoama. Estavam na casa de chá da Primeira Lua, a mesma em que Katsumata e o daimio Sanjiro haviam se hospedado, depois do ataque de Ori e Shorin aos gai-jin, na Tokaidô.

— E se ele não vier?

O jovem coçou a cabeça, irritado, não tendo raspado o queixo nem a cabeça desde a fuga de Quioto.

— Ele virá, se não hoje, amanhã. Preciso falar com ele.

Os dois escondiam-se ali há uma semana. A viagem desde Quioto fora difícil, com muitas fugas por um triz.

— Sensei, não gosto deste lugar, nem da mudança do plano. Deveríamos estar em Iedo, se queremos continuar a luta, ou talvez devêssemos fazer a volta e ir para casa.

— Se quer ir, pode ir. Se quer voltar para Choshu, pode voltar. E na próxima vez em que se queixar, receberá a ordem para partir!

Takeda desculpou-se no mesmo instante e acrescentou:

— Acontece apenas que perdemos homens demais em Quioto, e nem sequer sabemos como os shishi se saíram em Iedo. Sinto muito, mas não consigo deixar de pensar que deveríamos voltar para casa, como aqueles que sobreviveram, eu para Choshu, você para Satsuma, e nos reagruparmos mais tarde.

— Hodogaya é um lugar perfeito para nós e esta estalagem é segura. Avisado de que Yoshi oferecera um prêmio alto por sua cabeça, Katsumata decidira ser prudente e não continuar.

— Amanhã ou depois prosseguiremos a viagem — acrescentou ele, contente pelo valor do jovem como um escudo para suas costas. — Primeiro, Hiraga.

Fora difícil e perigoso entrar em contato com ele. Poucas pessoas podiam passar pelas barreiras de Iocoama ou ter acesso à Yoshiwara dos gai-jin. Novos passes eram emitidos a todo instante, novas senhas instituídas. As patrulhas de vigilantes vagueavam por toda parte. Bolsões discretos de samurais enxameavam em torno de Iocoama, quase isolando-a do resto da terra.

Três dias antes, Katsumata descobrira uma criada cuja irmã era parteira e de vez em quando visitava a Yoshiwara. Por um oban de ouro, a parteira concordara em levar uma mensagem à mama-san da casa das Três Carpas.

— Takeda, fique aqui e continue vigiando. Espere com paciência.

Katsumata foi para o jardim, passou pelos portões da frente, saindo para a Tokaidô, movimentada com os viajantes matutinos, palanquins, carregadores, divinhos, escribas, samurais e alguns pôneis, transportando mulheres ou cavalgados por samurais. Todos falando, gritando, ganindo. A manhã era fria, as pessoas usavam casacos acolchoados, esquentavam a cabeça com lenços ou chapéus. Uns poucos samurais fitaram Katsumata, mas não belicosamente. A maneira como ele andava, a penugem na cabeça e no rosto, a espada longa numa bainha as costas, a curta na cintura apregoavam cautela para os inquisitivos. Era evidente que se tratava de um ronin de algum tipo e que seria melhor evitá-lo.

Nos arredores da aldeia, na área da barreira bem guardada, de onde tinha bom campo de visão para o mar e Iocoama, ele sentou num banco, num estande de comida à beira da estrada.

— Chá, que seja fresco, e cuide para sair bem quente.

O assustado vendedor se apressou em obedecer.

 

Na colônia, um grupo de mercadores a cavalo passou ruidosamente pela ponte; todos ergueram os chapéus ou chicotes de montaria para os guardas no portão norte, que responderam com reverências superficiais. Outros mercadores, ajudantes, soldados, marujos e a gentalha da cidade dos bêbados estavam a pé, todos num passeio na manhã do feriado. Era o dia de ano-novo. Haveria uma corrida de cavalos naquela tarde e, depois, uma partida de futebol entre equipes da marinha e do exército. Fazia frio, mas não muito, o vento era mais uma brisa, mas o suficiente para soprar a maior parte do cheiro de inverno, algas em decomposição e refugos humanos para o interior.

Um dos homens a cavalo era Jamie McFay. Quase ao seu lado seguia Hiraga, um lenço cobrindo a maior parte do rosto, o gorro de montaria baixado sobre os olhos, os trajes de montaria bem cortados. Aquela excursão não era aprovada nem do conhecimento de Tyrer e Sir William, um presente em troca do serviço de intérprete entre Jamie e o shoya e, também, pela prestação de informações sobre os negócios.

Hiraga dissera no dia anterior:

— Eu responder mais perguntas durante viagem, Jami-sama. Precisar ir Hodogaya, encontrar primo. Por favor?

— Por que não, Nakama, meu velho?

McFay não visitava a aldeia há meses, embora estivesse dentro da área combinada na instalação da colônia, e sentira-se contente pela desculpa. Poucos merrcadores se aventuravam tão longe, agora, sem uma escolta militar, o assassinato de Canterbury e o destino de Malcolm Struan sempre presentes em seus pensamentos.

McFay sentia-se muito bem hoje. Na última correspondência, uma declaração de seus banqueiros em Edimburgo levara-o a descobrir que se encontrava em melhor situação do que imaginara, tinha mais do que suficiente para começar por conta própria, em pequena escala. A Casa Nobre estava em boas mãos e isso o agradava. O novo gerente da Struan, Albert MacStruan, chegara de Xangai. Ele o conhecera em Hong Kong, três anos antes, quando MacStruan ingressara na companhia. Depois de seis meses de treinamento em Hong Kong, sob o comando de Culum Struan, ele fora para Xangai, onde logo se tornara o vice-diretor.

— Seja bem-vindo a Iocoama — dissera Jamie, com sinceridade. Gostava dele, embora soubesse muito pouco a seu respeito, exceto que era competente no que fazia, e seu ramo do clã era Highlander, uma linhagem de sangue escocês e espanhol, de um dos milhares de espanhóis da Invencível Armada que haviam naufragado ao largo da Escócia e Irlanda, e sobreviveram, mas nunca retornaram a seu país.

Aqui ele seria considerado eurasiano, embora ninguém o afrontasse. Circulavam rumores de que era outro dos filhos clandestinos e ilegítimos de Dirk Struan enviado secretamente para a Escócia pelo pai, com um meio-irmão, Frederick MacStruan, ambos recebendo vultosos legados, pouco antes da morte de Dirk.

— Lamento muito revê-lo nestas circunstâncias terríveis, meu caro.

O sotaque de MacStruan era aristocrático, Eton e Universidade de Oxford, com um vestígio de escocês. Tinha vinte e seis anos, moreno, atarracado, pele dourada, malares salientes, olhos escuros. Jamie nunca o interrogara sobre o mito, nem MacStruan tomara a iniciativa de revelar qualquer coisa. Quando Jamie chegara a Hong Kong, quase vinte anos antes, fora advertido por Culum Struan, então o tai-pan, que ali não se faziam perguntas, em particular sobre os Struan.

— Temos muitos segredos, muitos atos tenebrosos que preferimos esconder. Ao receber o novo gerente da Struan em Iocoama, Jamie respondera:

— Está tudo em ordem, e não precisa se preocupar comigo, Sr. MacStruan. Sinto-me ansioso por uma mudança.

E embora não mais pertencesse formalmente à Casa Nobre, ainda o ajudava, pondo-o a par das operações e projetos, e apresentando-o, junto com Vargas, aos fornecedores japoneses. Os livros se encontravam em boa ordem, o negócio de carvão com Johnny Cornishman começara sem problemas, e deveria se tornar bastante lucrativo, carvão da melhor qualidade, com o acerto adicional de encher uma barcaça por semana, durante os três meses subseqüentes, como um período de experiência.

Generoso, MacStruan lhe concedera uma participação de vinte por cento dos lucros no primeiro ano e também aprovara o acordo que ele fizera com Cornishman.

— ...caso o patife ainda esteja vivo — comentara ele, com uma risada. Graças a Hiraga, as negociações secretas de Jamie com o shoya haviam desabrochado e fora formada, em princípio, a primeira companhia: I.S.K. Trading — Ichi Stoku Kompeni —, a esposa do shoya considerando que era mais prudente não usar seu próprio nome. A participação fora dividida em cem partes: o shoya tinha quarenta, McFay tinha quarenta, a esposa de Ryoshi quinze, e Nakama — Hiraga — cinco.

Na semana passada ele registrará sua própria companhia, amanhã abriria para negócios em escritório temporário no mesmo prédio que alojava o Guardian, de Nettlesmith. Há uma semana agora, o filho mais velho de Ryoshi, tímido, nervoso, com dezenove anos, apresentava-se para o trabalho às sete horas da manhã, todos os dias, e saía às nove horas da noite, ansioso em aprender tudo. O inglês em particular. E na última correspondência chegara um inesperado pagamento final de três meses, com um bilhete polido de Tess Struan, agradecendo nelos serviços prestados. Três meses não é tão ruim assim por dezenove anos, pensara ele, divertido.

Ainda não chegara notícias de Hong Kong, era cedo demais, embora o Prancing Cloud já devesse ter atracado ali há dez dias, ou mais, Hoag cerca de uma semana. Mais quatro ou cinco dias, no mínimo, para se ouvir qualquer coisa, talvez mais, e uma tremenda tempestade que se dizia estar acontecendo nos mares do sul da China podia atrasar ainda mais. Não adiantava tentar prever datas e tempo.

Um dia teremos telegrafia para Hong Kong e um dia, talvez, o fio se estenda até Londres. Por Deus, que vantagem para todo mundo poder enviar uma mensagem para Hong Kong e receber a resposta em poucos dias — e até Londres e de volta... em quanto tempo?... digamos doze a dezesseis dias —, em vez de quatro meses! Não será no meu tempo, mas aposto que a telegrafia chega a Hong Kong em mais dez ou quinze anos. Um hurra para Nakama e meu sócio Ryoshi, um hurra para minha nova companhia, a McFay Trading. E um hurra para Angelique.

Apesar do luto profundo, no dia de Natal ela concordara em participar do jantar que ele oferecera a Albert MacStruan, e que contara também com a presença de Sir William, Seratard, André e quase todos os outros ministros. Fora um discreto sucesso. Embora ela não exibisse sua jovialidade anterior, e pouco da sua personalidade antiga, ainda assim fora graciosa e doce, e todos comentaram que se tornara ainda mais bela em sua nova maturidade. Naquela noite haveria uma grand soirée na legação francesa, a que todos haviam sido convidados. André tocaria. Era duvidoso que Angelique dançasse; as apostas eram de dez contra um. Se ela estava grávida ou não, as apostas eram de igual para igual. Ninguém mencionava Hong Kong. Desde a aventura no mar, e da habilidade com que ela cuidara de Sir William, haviam se tornado amigos firmes, e jantavam juntos, em particular, quase todas as noites.

Um hurra para o ano-novo, que será maravilhoso!

Apesar de seu bom humor, ele sentiu uma pontada de aflição. Os negócios andavam difíceis, a guerra civil grassando outra vez em torno de Xangai, a peste em Macau, a guerra civil americana cada vez pior, fome na Irlanda, rumores de fome aqui no Japão, distúrbios nas Ilhas Britânicas por causa do desemprego e dos diários nas fábricas. E há também Tess Struan...

Droga! Prometi a mim mesmo que não me preocuparia com ela a partir de 1o de janeiro de 1863! Nem com Maureen...

Para escapar à ansiedade, ele usou as esporas. No mesmo instante, Hiraga fez a mesma coisa, os dois bons cavaleiros. Era a primeira vez que Hiraga cavalga em muito tempo, a primeira oportunidade de se movimentar em relativa liberdade pela colônia. Ele seguiu por algum tempo emparelhado com Jamie e depois se adiantou. Muito em breve os dois galopavam na maior felicidade. E logo se descobriram sozinhos, os outros tendo se desviado para a pista de corrida. Diminuíram o ritmo, desfrutando o dia.

Podiam divisar à frente a sinuosa Tokaidô, interrompida aqui e ali por rios na cheia, os carregadores nos dois lados esperando pelas barcas que transportariam as mercadorias e pessoas sobre as águas. Hodogaya ficava para o sul. Suas barreiras estavam abertas. Nos bons tempos antigos, antes dos assassinatos durante a primavera e outono, os mercadores visitavam a aldeia em busca de saquê e cerveja, levando cestos de piquenique, rindo e flertando com as levas de criadas que procuravam atraí-los para seus bares e restaurantes. Não eram bem-vindos nos muitos bordéis.

— Ei, Nakama, onde vai se encontrar com seu primo? — perguntou Jamie. Ele parou o cavalo nos arredores da aldeia, não muito longe da barreira, mais do que consciente da hostilidade dos viajantes. Mas não se sentia preocupado. Estava armado, ostensivamente, com um revólver num coldre no ombro... e Hiraga não levava nenhuma arma ou, pelo menos, ele assim pensava.

— Eu procurar ele. Melhor ir sozinho outro lado barreira, Jami-sama. Hiraga experimentara intensa alegria ao receber a mensagem de Katsumata, ao mesmo tempo em que sentia profundas apreensões, pois era perigoso deixar a proteção de Sir William e Tyrer. Mas precisava descobrir notícias sobre Sumomo e os outros, saber o que acontecera de fato em Quioto e qual era o novo plano dos shishi. Todos os dias, o shoya sacudia a cabeça:

— Sinto muito, Otami-sama, ainda não tenho notícias sobre Katsumata ou Takeda... nem sobre a moça Sumomo ou Koiko. Lorde Yoshi permanece no castelo de Iedo. No momento em que eu souber de alguma coisa...

Ainda com o rosto encoberto, Hiraga gesticulou para que Jamie seguisse na frente.

— Por favor. Depois eu descobrir bom lugar você esperar.

Os guardas na barreira observaram-nos desconfiados, fizeram uma reverência ligeira, aceitaram suas saudações. Hiraga estremeceu, vendo um cartaz muito parecido com ele afixado numa parede. Jamie não notou e Hiraga duvidava que ele — ou os outros — pudesse reconhecê-lo, com o bigode e o corte de cabelo europeu.

Hiraga parou na primeira estalagem. Usando um japonês precário e imitando a rispidez de outros mercadores, Hiraga foi se instalar a uma mesa no jardim, pediu chá, saquê e cerveja, alguns alimentos japoneses, dizendo à criada para providenciar que não o incomodassem, o que lhe valeria uma boa gorjeta. A criada manteve os olhos abaixados, mas Hiraga tinha certeza de que ela vira seus olhos, e sabia que se tratava de um japonês.

— Jami-sama, eu voltar poucos minutos — disse Hiraga.

— Não se demore muito, meu velho.

— Sim, Jami-sama.

Hiraga saiu para a estrada, encaminhou-se para o outro lado da barreira. Sentiu-se irritado com os maus modos e a hostilidade geral, uns poucos samurais beligerantes e alguns viajantes forçando-o a se desviar, o que ele fizera. Ao mesmo tempo, sentia-se satisfeito porque todos o tomavam por gai-jin e seu escrutínio de cada restaurante e bar como grosseira curiosidade gai-jin. A mensagem cifrada de Katsumata dizia: “Venha a Hodogaya, em qualquer manhã dos próximos três dias. Eu o encontrarei.”

Sentindo que atraía muita atenção, como de fato ocorria, ele passou por pessoas flanando, sentadas em bancos ou às mesas, inclinadas sobre braseiros, que sempre lhe lançavam olhares irados e insolentes. De repente, ouviu o assobio baixo, o sinal combinado. Era muito bem treinado para reconhecê-lo e experiente demais para não se virar. Parecia vir do lado esquerdo. Com cansaço simulado, ele escolheu um banco afastado da rua, no restaurante mais próximo, e pediu uma cerveja. A criada trouxe no mesmo instante. Nas proximidades, os camponeses que comiam tijelas matutinas de papa de arroz, junto com saquê quente, trataram de se afastar, como se ele fosse portador da praga.

— Não se vire ainda — murmurou Katsumata. — Não o reconheci. Seu disfarce é perfeito.

— O seu também deve ser, sensei — respondeu Hiraga, baixinho, mal mexendo os lábios. — Por duas vezes esquadrinhei este lugar com toda atenção.

A risada, bem conhecida e admirada.

— Largue alguma coisa no chão e, ao pegá-la, olhe ao redor por um instante. Hiraga obedeceu e por um instante viu o único homem ao alcance de sua voz, um ronin de aparência desvairada, barbudo, olhar venenoso, com uma cabeleira imunda, fitando-o com um olhar irado. Ele tornou a virar as costas e murmurou:

— Puxa, sensei!

— Não mais “sensei”. Há pouco tempo, Hodogaya pulula de vigilantes e espiões. Onde podemos nos encontrar em segurança?

— Na nossa Yoshiwara... casa das Três Carpas.

— Estarei lá em dois ou três dias... é vital criar um incidente com os gai-jin, depressa. Pense a respeito.

— Que tipo de incidente?

— Bem grave.

— Está bem. Fiquei aliviado ao receber sua mensagem... não sabíamos que viria para cá. Houve rumores incríveis sobre lutas em Quioto... Akimoto se encontra comigo, mas estamos sozinhos, e perdemos muitos shishi em nossos ataques em Iedo. Há muito que contar sobre Iedo e os gai-jin. Em poucas palavras, O que aconteceu em Quioto? Sumomo, como ela está?

— Quioto foi ruim. Antes de partir, entreguei Sumomo a Koiko, que voltava para cá, com Yoshi, a fim de espioná-lo, e descobrir quem nos traía... deve ser um dos nossos homens... uma oportunidade boa demais para perder e também para tirá-la de Quioto sã e salva. — Os olhos de Katsumata não cessavam de inspecionar os outros homens, embora não estivessem próximos, e evitassem olhar em sua direção. — Desfechamos dois ataques contra Yoshi, ambos fracassaram, nossa casa segura foi traída, Ogama e Yoshi, operando juntos, nos emboscaram. E nós...

— Puxa! — murmurou Hiraga, bastante preocupado. — Eles se tornaram aliados?

— Por enquanto. Perdemos muitos líderes e homens, darei os detalhes mais tarde, mas nós, Sumomo, Takeda, eu e alguns outros conseguimos escapar. Estou contente por vê-lo, Hiraga. Vou embora agora.

— Espere. Ordenei que Sumomo voltasse para Choshu.

— Ela me trouxe informações valiosas sobre a situação aqui e sobre Shorin e Ori. Sugeri que continuasse até Choshu, mas ela quis ficar, pensando que poderia ajudá-lo. Como está Ori?

— Morto. — Ele ouviu Katsumata praguejar, Ori fora o seu discípulo predileto. — Os gai-jin o fuzilaram quando tentava arrombar uma de suas casas.

Hiraga falava depressa, seu nervosismo aumentando.

— Há um rumor aqui de que houve um ataque shishi a Yoshi em Hamamatsu, que Koiko morreu na confusão e mais uma pessoa. Quem era?

— Sinto muito, mas foi Sumomo. — A cor se esvaiu do rosto de Hiraga, enquanto Katsumata acrescentava: — Koiko traiu-a, a prostituta denunciou-a a Yoshi e com isso traiu a sonno-joi e a nós. Mas ela morreu com o shuriken de Sumomo em seu peito.

— Como Sumomo morreu?

— Como uma shishi. Será lembrada para sempre. Lutou com Yoshi, usando o shuriken e a espada longa, quase o matou. Era essa a sua missão... se fosse traída.

Portanto, Sumomo tinha uma missão, pensou Hiraga, com súbita percepção, todo o seu ser um vulcão — você esperava que ela fosse traída e ainda assim a enviou para o perigo. Havia um aperto em sua garganta. Ele forçou-se a fazer a pergunta essencial:

— Como eles a sepultaram? Foi com honra?

Se Toranaga Yoshi não a tivesse honrado depois da luta e morte com bravura, então ele o caçaria, com a exclusão de todo o resto, até que um dos dois morresse. Hiraga era o líder dos shishi de Choshu, o contingente mais forte. Sumomo, embora de Satsuma, declarara sua fidelidade a ele e a Choshu.

— Por favor, tenho de saber, foi com honra?

Ainda não houve resposta. Hiraga olhou ao redor. Katsumata desaparecera O choque de Hiraga foi ostensivo. Os outros fregueses o fitavam em silêncio. Um grupo de samurais observava-o de um canto. Os cabelos de sua nuca se arrepiaram. Ele jogou algumas moedas na mesa, a mão na pistola escondida, e voltou pelo caminho por que viera.

 

Naquela tarde, havia um ar de premonição por todo o castelo de Iedo. Yoshi seguia apressado o doutor chinês por um corredor, acompanhado por Abeh e quatro guardas samurais. O doutor, alto e muito magro, usava uma túnica comprida, os belos grisalhos presos num rabicho. Subiram uma escada, avançaram por outro nedor, até que o doutor parou. Guardas hostis postavam-se à frente, as mãos em suas espadas, todos fitando Yoshi e seus homens.

— Sinto muito, lorde Yoshi — disse o oficial —, mas as ordens do tairo são para não deixar ninguém passar.

— E minhas ordens foram para ir buscar lorde Yoshi — disse o doutor, o medo lhe proporcionando uma falsa coragem.

— Pode passar, lorde Yoshi — decidiu o oficial, com um ar sombrio. — Mas seus homens não podem.

Embora inferiorizados, Abeh e seus homens estenderam a mão para as espadas.

— Parem! — disse Yoshi, muito calmo. — Espere aqui, Abeh.

Abeh sentia a maior preocupação, a adrenalina aumentando, a par dos rumores no castelo de que seu líder estava prestes a ser preso, rumores que Yoshi desdenhara.

— Por favor, Sire, desculpe-me, mas pode ser uma armadilha, os samurais do outro lado se empertigaram ao insulto.

— Se for, pode matar todos estes homens — respondeu Yoshi, com uma risada.

Ninguém mais riu. Ele gesticulou para que o doutor seguisse adiante, tendo decidido que, se tentassem desarmá-lo, tratariam de lutar e morrer agora.

Deixaram-no passar, sem ser molestado. O doutor abriu a porta no outro lado, fez uma reverência para que Yoshi passasse. Yoshi não tinha a mão no punho da espada, mas se preparou para um assassino por trás da porta. Não havia nenhum. Apenas quatro guardas, em torno dos futons, no cômodo grande. Deitado ali, encolhido de dor, estava Anjo.

— E então, guardião do herdeiro — disse ele, a voz fraca, mas impregnada de veneno —, tem informações?

— Para seus ouvidos apenas.

— Espere lá fora, doutor, até eu chamá-lo.

O doutor fez uma reverência e se retirou, contente por sair. Aquele paciente era insuportável, ele o desprezava, e como morria lentamente, só lhe restando umas poucas semanas ou meses, não haveria honorários. Na China, era esse o costume, não havia honorários sem cura, e o mesmo acontecia aqui.

Os guardas não haviam se mexido. Nem o fariam. Os quatro eram guerreiros famosos e de absoluta lealdade. Yoshi perdeu um pouco de sua confiança. Ajoelhou-se, fez uma reverência polida. Naquela manhã, depois que Inejin se se tirara, ele mandara uma mensagem a Anjo, pedindo uma reunião urgente, para lhe transmitir informações importantes.

— E então, Yoshi-dono?

— Estive ontem num dos navios de guerra dos gai-jin e...

— Eu já sabia. Acha que sou um tolo e não sei o que você anda fazendo. Disse que eram informações médicas.

— O doutor gai-jin em Kanagawa. Os furansu disseram que ele tem feito curas milagrosas; eu o trarei para cá, com sua permissão.

— Não preciso de você para isso. — Em agonia, Anjo soergueu-se num cotovelo. — Por que se mostra tão solícito, quando me quer morto?

— Não morto, mas com boa saúde, tairo-dono. É importante tê-lo com boa saúde.

Yoshi fazia um esforço para se controlar, abominando aquele homem e aquele aposento, com seu fedor de morte, diarréia e vômito... e ao mesmo tempo receando ter calculado errado. Aquilo podia muito bem ser sua armadilha fatal, caso o homem doente desse a ordem.

— Por que ficar doente, se pode ser curado? Além disso, eu queria lhe dizer que descobri o plano de batalha dos gai-jin, não no navio, mas na manhã de hoje.

— Que plano, hem? Como conseguiu?

— Não importa, exceto que eu sei, e assim você também sabe agora. Yoshi relatou a substância do plano, com precisão, mas deixou de fora a parte sobre os dez dias de graça depois do ultimato.

— Então devemos partir! — A voz de Anjo se tornou mais estridente. Os guardas se agitaram, nervosos. — Os roju devem ir embora em segredo, imediatamente. Fixaremos residência em... Hodogaya. Assim que estivermos sãos e salvos, incendiaremos a colônia à noite, surpreendendo-os em suas camas. Que cães! Eles merecem uma morte infame, sem honra. Vamos queimá-los, matar todos que escaparem, e voltar para cá, depois que a esquadra bater em retirada. E na primavera estaremos preparados. Incendiaremos Iocoama amanhã. — Os olhos de Anjo faiscaram, um filete de saliva molhou seu queixo. — Você terá a honra de comandar o ataque. Organize-o, desfeche a ofensiva amanhã ou no dia seguinte.

No mesmo instante, Yoshi fez uma reverência em agradecimento.

— Aceito a honra, com a maior satisfação, e enquanto estiver organizando, tenho uma idéia: primeiro, sua saúde. Traga o doutor gai-jin até aqui, os nossos são inúteis e os furansu juram que o homem é um curador milagroso. Posso ir buscá-lo depressa, na maior discrição, amanhã, se permitir. Por que sofrer uma dor desnecessária? O doutor gai-jin vai curá-lo. Uns poucos dias extras não vão interferir com sua sábia estratégia de ataque. Até que esteja bom, para comandar, devemos manter os gai-jin desconcertados. Posso fazer isso, enquanto preparamos o ataque.

— Como?

— Ao me pôr na armadilha deles.

— O quê?

O ligeiro movimento de Anjo, para ver Yoshi melhor, levou-o a morder o lábio para prevenir um grito de dor.

— Assumirei o risco de me entregar nas garras deles, promovendo um encontro, com apenas um de dois guardas. No navio, descobri que eles estão prestes a nos atacar, de maneira insensata. Devemos evitar isso, a qualquer custo, tairo. Eles são tão perigosos quanto um cardume de tubarões famintos.

Isso foi dito com toda a sinceridade que Yoshi podia exibir. Ele acreditava no oposto: que os gai-jin se mostravam dispostos a negociar, a fazer concessões, sem querer a guerra, a menos que fossem pressionados longe demais... como a loucura de atacá-los.

— O risco será meu — acrescentou Yoshi, balançando a isca, com uma simulação de medo. — Se me mantiverem como refém, isso fará com que todos os daimios corram em seu apoio. Se não o fizerem, não importa, pois de qualquer forma você esquece que sou refém e os ataca... tudo isso, é claro, com a sua permissão, tairo.

O silêncio se tornou opressivo. Outro espasmo. Depois, Anjo balançou a cabeça em concordância e acenou com a mão, dispensando-o.

— Vá buscar o doutor gai-jin sem demora e prepare o ataque imediatamente.

Yoshi fez uma reverência, humilde, e fez um esforço, muito difícil, para não gritar de alegria.

 

KANAGAWA, Sexta-feira, 2 de janeiro:

Enquanto Yoshi se aproximava a cavalo da entrada da legação em Kanagawa, à frente da pequena procissão, Settry Pallidar, o oficial no comando da guarda de honra, gritou:

— Apresentar armas!

Ele fez a saudação com sua espada. Os soldados tiraram os fuzis do ombro, assumiram a posição de apresentar armas, e permaneceram imóveis: trinta guardas, trinta highlanders de kilt e sua tropa de dragões montados, todos garbosos.

Yoshi retribuiu à saudação com o chicote de montaria, ocultando sua ansiedade por ver tantos soldados inimigos, com tantos fuzis impecáveis. Nunca, em toda a sua vida, estivera tão desprotegido. Só Abeh e dois guardas, também montados, o acompanhavam. Mais atrás vinha um palafreneiro a pé e uma dúzia de carregadores suados e nervosos, com pesados fardos pendurados em varas. Os outros guardas esperavam na barricada.

Ele vestia-se todo de preto: armadura de bambu, elmo leve, túnica de ombros largos, duas espadas... até mesmo seu pônei era preto. Mas os arreios, rédeas e manta eram deliberadamente vermelhos, realçando o preto. Ao passar por Pallidar, cruzando os portões, Yoshi notou que os frios olhos azuis pareciam de peixe morto.

Nos degraus por cima do pátio de terra batida ele avistou Sir William, flanqueado por Seratard e André Poncin num lado, o almirante, o Dr. Babcott e Tyrer no outro... assim como ele pedira. Todos se vestiam com os melhores trajes, de cartola, casacos de lã contra a manhã úmida, o céu nublado. Yoshi correu os olhos por todos, detendo-se por um momento em Babcott, impressionado com sua enorme altura, depois parou o cavalo, fez uma saudação com o chicote. Todos fizeram uma reverência, também casual, menos o almirante, que bateu continência.

No mesmo instante, Sir William, com Tyrer logo atrás, desceu os degraus para cumprimentá-lo, sorrindo... ambos disfarçando sua surpresa pela guarda mínima. O palafreneiro se adiantou para segurar a cabeça do pônei. Yoshi desmontou pelo lado direito, como era costumeiro na China, e, portanto, ali também.

— Seja bem-vindo, lorde Yoshi, em nome de sua majestade britânica —disse Sir William.

Tyrer traduziu no mesmo instante.

— Obrigado. Espero não estar lhes causando qualquer problema — respondeu Yoshi, iniciando sua parte do ritual.

— Não, Sire, a honra é nossa. Sua presença é uma grande satisfação para nós. Yoshi notou a melhoria no sotaque e no vocabulário de Tyrer e se sentiu ainda mais determinado a neutralizar o traidor Hiraga, que usava ali o pseudônimo de Nakama, como Inejin descobrira.

— Por favor, lorde Yoshi, aceita um chá? — acrescentou Tyrer.

Os dois já haviam fechado os ouvidos às frases sem importância, concentrando-se um no outro, procurando indicações que pudessem ajudá-los.

— Ah, Serata-dono, é um prazer tornar a vê-lo tão cedo — disse Yoshi, jovial, embora se sentisse irritado por estar de pé, tendo de erguer os olhos para fitá-los, já que eram em geral uma cabeça mais altos, e isso o deixava com uma sensação de ser inferior, embora olhasse de cima para a maioria dos japoneses. — Obrigado.

Ele acenou com a cabeça para André, depois para Seratard, que respondeu com uma reverência formal, Tyrer traduzindo.

— Meu superior Seratard o cumprimenta, Sire, em nome de seu amigo, imperador dos furansu, rei Napoleão III. Uma honra estar a seu serviço, Sire.

No momento em que deixara o tairo Anjo, Yoshi despachara Misamoto com uma carta para Seratard, pedindo-lhe que providenciasse reunião urgente e particular, embora formal, com Seratard, Sir William, o comandante-em-chefe da esquadra, o médico de Kanagawa e os intérpretes André e Tyrer... mais ninguém. Chegaria informalmente, com uma escolta mínima, e solicitava que as cerimônias fossem mínimas.

— O que acha disso, Henri? — indagara Sir William, quando Seratard o procurara, assim que André traduzira a carta.

— Não sei. Ele é um homem impressivo. Esteve a bordo de nosso navio durante quatro horas e, assim, tivemos a oportunidade de estudá-lo com a maior atenção... talvez você queira uma cópia do meu relatório.

— Obrigado. — Sir William sabia que o relatório seria recomposto, com a eliminação de todas as informações importantes... como ele próprio faria. Tinha ligeiro resfriado e espirrara. — Desculpe.

— Como guardião do herdeiro, um dos anciãos, de uma antiga família real Japonesa... até mesmo ligado ao micado, o imperador, cuja função, o que talvez não saiba, é religiosa... esse homem é muito bem relacionado e importante no xogunato. Por que não o recebemos?

— É o que farei — respondera Sir William, secamente, muito à frente das informações de Seratard, pois passara muitas horas pressionando Nakama por detalhes dos mais destacados soberanos e suas famílias, de Toranaga Yoshi em particular. — Atenderemos ao seu pedido. Parece interessante que ele queira a presença de Ketterer, hem? Isso cheira mal. Iremos de barco e levaremos algumas tropas de elite, como se fossem uma guarda de honra, além de mandarmos a Pearl se postar ao largo.

— Mon Dieu! Suspeita de uma armadilha?

— Pode ser uma manobra astuciosa, arriscando um cavalo para destruir a nossa estrutura de comando. Seria fácil infiltrar samurais... Pallidar diz que eles estão entrincheirados nos dois lados da Tokaidô, daqui até Hodoyama, e além. Não farejo uma armadilha, mas não custa nada nos precavermos. Nada de tropas francesas, meu velho. Sinto muito, Henri, mas não insista. Por que ele quer falar também com Babcott?

— Em nome da França, propus que instalássemos um hospital para eles, a fim de consolidar os vínculos. Ele ficou muito satisfeito... ora, William, isso não importa, você não pode pensar em tudo. Falamos sobre Babcott, que tem alguma reputação. Talvez Yoshi queira consultá-lo.

Seratard não vira motivo para divulgar a informação, que André descobrira, sobre os problemas de saúde do tairo.

O chá japonês foi servido na grande sala de audiência. Sentaram como o protocolo determinava e prepararam-se para a interminável polidez, que se prolongaria por uma hora. Um gole de chá e todos ficaram espantados ao ouvirem Yoshi declarar:

— O motivo para eu pedir esta reunião particular, com a ajuda de Serata-dono... naturalmente em nome do tairo e do Conselho de Anciãos... é porque chegou o momento de fazer algum progresso em nossas boas relações.

Ele parou e disse bruscamente para Tyrer:

— Por favor, traduza isso primeiro, depois continuarei.

Tyrer obedeceu.

— Primeiro, o doutor-sama, pois o resto de nossa reunião não o envolve. De propósito, Yoshi esperara três dias para procurar o médico. Não havia necessidade de se apressar, pensara ele, cínico: Anjo proclamou que não necessitava de mim para conseguir esse encontro, pois que se aflija agora!

Abruptamente, ele sentiu um frio no estômago ao pensar nos riscos desnecessários que assumira, pondo-se à mercê de Anjo, que a cada dia se tornava mais perigoso. Fora uma estupidez concordar em comandar o ataque e planejá-lo — essa parte feita com a maior facilidade — pois agora teria de levá-lo a cabo, a menos que tivesse astúcia, hoje, para levar os bárbaros a fazer o que queria.

— O doutor poderia fazer o favor de me acompanhar até Iedo, a fím de examinar um importante paciente, cujo nome não pode ser enunciado? Garanto o salvo-conduto.

Sir William disse:

— Uma pessoa tão importante como o doutor-sama não pode ir sem uma escolta.

— Compreendo isso, mas neste caso, sinto muito, não é possível. — Sentado agora no mesmo nível dos outros homens, a exceção de Babcott, Yoshi sentia-se mais à vontade. — Garanto o salvo-conduto.

Sir William fingiu franzir o rosto em preocupação.

— O que me diz, George?

Já haviam discutido essa possibilidade.

— Eu concordaria em ir sozinho, Sir William. Um dos meus assistentes me contou que circulam rumores que o tairo está doente. Pode ser ele.

— Se você pudesse curar aquele patife... ou envenená-lo... não sei qual das duas coisas é melhor. Estou brincando, é claro.

— Não é um risco, não para mim. Só sou valioso vivo e não sirvo como refém. E curar uma pessoa muito importante seria ótimo para nós.

— Concordo. Tocaremos de ouvido. Por falar nisso, soube que Angelique o procurou ontem.

— Parece que toda a colônia já soube. É o oitavo que me fala a respeito. Ela tinha um resfriado, você está resfriado, todo mundo tem um resfriado com este tempo... e mesmo que tivesse me consultado por qualquer outro motivo, é e sempre seria confidencial. Portanto, desista.

Sir William sorriu para si mesmo, ao recordar como fungara, e protestara que não queria saber de questões particulares, como uma possível gravidez. Não faltavam muitos dias agora, e a colônia toda se encontrava nervosa, ninguém disposto a apostar muito dinheiro em qual seria o “Dia G” ou se não haveria nenhum... e menos de cinco dias para chegar o primeiro despacho de Hong Kong sobre Malcolm, o funeral, e o que Tess Struan tencionava fazer.

Sir William forçou sua mente a voltar às questões imediatas. Babcott estava dizendo a Yoshi, num japonês titubeante:

— Sim, ir Iedo, lorde Yoshi. Quando ir, por favor?

Yoshi respondeu, a voz pausada:

— Quando eu partir, doutor-sama. Obrigado. Sou responsável por você. Garantirei sua volta são e salvo. Precisará de um intérprete, não é?

— Sim, por favor, lorde Yoshi — respondeu Babcott, sem precisar. Ele olhou para Tyrer. — Você é o escolhido, Phillip.

Tyrer sorriu.

— Eu ia me oferecer como voluntário.

— Pergunte a ele por quanto tempo ficarei lá.

— Ele diz que o tempo necessário para fazer um exame.

— Então isso está acertado — interveio Sir William

— Vou deixá-los agora. Tenho uma clínica para cuidar; saberão onde me encontrar, se precisarem de mais alguma coisa.

Babcott fez uma reverência para Yoshi, que retribuiu. O médico se retirou. Escolhendo suas palavras com todo cuidado, tentando falar da maneira mais simples possível, Yoshi continuou:

— Os carregadores lá fora trouxeram caixas com moedas de prata, no valor de cem mil libras. O dinheiro é oferecido pelo xogunato como aceito total da indenização que vocês exigiram do daimio responsável. Em princípio, o xogunato considera que é essa a quantia correta. — Ele escondeu sua diversão pelo choque de Tyrer e André. — Traduza exatamente o que eu disse.

Tyrer tornou a obedecer, não exatamente palavra por palavra desta vez, mas fez um relato verossímil, ajudado aqui e ali por André. Houve um silêncio aturdido na sala.

— Sire — murmurou Tyrer —, meu superior pergunta se ele responder agora ou Yoshi-sama dizer mais?

— Mais. O xogunato adianta esse dinheiro por conta de Sanjiro de Satsuma. Ele é o único responsável. Como já expliquei antes, ele não está sujeito ao controle do xogunato... em todas as coisas. Traduza.

O que foi feito de novo. Ele viu que os dois líderes ficaram desconcertados, como previra. O que era satisfatório, mas não dissipava sua ansiedade.

— Não podemos obrigar Sanjiro de Satsuma a cancelar quaisquer ordens que ele possa ou não ter dado a seus homens sobre os gai-jin... nem mesmo a pedir desculpas... ou forçá-lo a nos reembolsar o dinheiro que estamos adiantando para resolver esse problema, sem desfechar uma guerra contra ele. Não estamos preparados para isto.

A tradução exigiu tempo para ser acurada, outra vez com a ajuda de André, consciente da tensão, e da maneira como todos se concentravam.

— Sire?

— Diga isso com precisão e cuidado: querendo ter amizade com os ing’erish e os furansu, o xogunato resolveu o que o xogunato pode resolver... sem entrarem guerra.

Yoshi inclinou-se para trás, especulando se a isca seria bastante suculenta. Seus últimos comentários foram recebidos em silêncio. Ele notou que Sir William mantinha-se impassível agora, exceto por um grunhido quase inaudível. Mas Seratard balançou a cabeça e olhou para André.

Exultante por dentro, Sir William esperou que Yoshi continuasse. Como isso não acontecesse, ele disse:

— Phillip, pergunte a lorde Yoshi se ele quer continuar ou se posso responder agora.

— Ele diz que não deseja continuar, no momento.

Sir William limpou a garganta e falou com altivez... para consternação de Tyrer:

— Lorde Yoshi, em nome do governo de sua majestade e do governo francês, permita que eu lhe agradeça e ao xogunato pela solução de parte do problema entre nós. Agradecemos pessoalmente, desejando tornar nossa presença aqui feliz e lucrativa para seu país, o xogunato e nós mesmos. Este gesto, sem dúvida, inicia uma nova era de compreensão entre nossos países... e os outros representados no Japão.

Ele esperou enquanto sua declaração era traduzida, com Tyrer e André se desculpando e suplicando a indulgência de Yoshi, pondo a mensagem em termos mais simples, embora da forma mais acurada possível. Quando eles acabaram, Sir William acrescentou:

— Com a permissão dele, eu gostaria de fazer uma pequena pausa. Phillip, ou André, peçam a ele que me desculpe, tudo isso, e expliquem que minha bexiga precisa ser aliviada. É meu resfriado.

Os dois intérpretes apressaram-se em traduzir.

— Claro — respondeu Yoshi, no mesmo instante, mas sem acreditar.

Sir William levantou-se, e Seratard também pediu licença para se retirar. No corredor, a caminho do banheiro, que nenhum dos dois precisava, Sir William sussurrou, excitado:

— Por Deus, Henri, você o interpretou como eu? Ele está dizendo que nós mesmos podemos ajustar as contas com Sanjiro!

Seratard também se sentia exultante.

— É uma inversão completa da política deles, de que tudo deve passar pelo Bakufu e xogunato. Mon Dieu, ele está nos dando carta branca?

— Pas ce crétin — disse Sir William, passando a falar em francês, sem percebê-lo. — Se podemos ir para cima de Sanjiro, é um precedente para atacarmos qualquer outro daimio... como o patife do estreito de Shimonoseki. Mas qual é a compensação que o demônio vai querer, hem?

Ele assoou o nariz, ruidoso, antes de acrescentar:

— Tem de haver alguma.

— Não faço a menor idéia. Mas qualquer que seja, mon brave, será excepcional. É espantoso que ele tenha se colocado sob o nosso poder. Nunca pensei que viria com tão poucos homens. Será que não compreendeu que poderíamos tomá-lo como refém contra a atitude de Sanjiro?

— Concordo. Meu Deus, que grande passo à frente! É incrível que ele tenha ido direto ao ponto tão depressa, sem ficar peidando coisas irrelevantes. Nunca pensei que veria esse dia. Mas por quê? Alguma coisa cheira mal.

— Tem razão. Merde, é uma pena que ele não seja o tairo, não é?

Ah, foi o que pensei, meu velho, muito antes de você, disse Sir William a si mesmo. Um pequeno empurrão aqui, um puxão ali, e poderemos, como na índia, jogar uns contra os outros!

Ele se desabotoara e agora, olhando para o fluxo, os ouvidos fechados ao prognóstico adicional de Seratard, organizou seus pensamentos, considerando o que poderia negociar, até que ponto ir, e como levar Ketterer a concordar, sem a aprovação do almirantado ou do Ministério do Exterior. Ora, ele que se dane!

E que se dane Palmerston. Pedi aprovação urgente para impor a lei civilizada; por que ele não respondeu? Provavelmente já respondeu, refletiu Sir William. A mensagem cifrada de Londres seguiu pelo telégrafo até Basra e, agora, se encontra em algum lugar, num navio de correspondência, na mala diplomática. O fluxo cessou. Ele se sacudiu, como sempre, recordando a advertência que recebera como colegial, em Eton:

— Se sacudir mais de três vezes, estará se masturbando.

Apressado, deu um passo para o lado, abrindo espaço a Seratard, abotoando-se. Notou que Seratard era como um cavalo pequeno, em quantidade e potência. Interessante. Deve ser o vinho, pensou ele, voltando à sala de audiência.

O resto da reunião transcorreu na maior jovialidade. Com habilidade e cautela diplomática, contando com a competente ajuda de Seratard, Sir William estabeleceu, de forma indireta, que “se uma força por acaso encetasse alguma ação contra alguém, como Sanjiro, por exemplo, contra sua capital, por exemplo, seria uma ocorrência bastante lamentável, muito embora tal ação pudesse ser merecida, por causa de algum ato de assassinato inaceitável cometido contra cidadãos estrangeiros. Esse ato precipitaria um fluxo de protestos de Iedo, e mereceria um pedido de desculpas formal, se tal ação inconcebível fosse realizada...”

Absolutamente nada foi dito de forma direta, nada que insinuasse que a permissão fora concedida ou solicitada, Não haveria nada por escrito. Esse possível ato hostil, um “caso especial”, só poderia ser contido se o protocolo fosse seguido de modo rigoroso.

A esta altura, Tyrer e André sentiam uma dor de cabeça intensa e por dentro criticavam seus superiores pela quase impossibilidade de traduzir com a forma indireta necessária.

Yoshi mantinha um silêncio extasiado. Sanjiro podia se considerar um homem morto; a primeira barreira fora removida sem qualquer custo.

— Creio que nos compreendemos, e podemos passar para outros assuntos.

— Claro, claro...

Sir William recostou-se, preparando-se para a compensação. Yoshi respirou fundo, e iniciou a ofensiva seguinte:

— Traduzam o seguinte, frase por frase. Expliquem que será pela precisão. Digam também que, por enquanto, esta conversa deve ser considerada um segredo de Estado entre nós. — Vendo o olhar vazio de Tyrer, ele acrescentou: — Compreende segredo de Estado?

Depois de consultar André, Tyrer disse:

— Compreendo, senhor.

— Ótimo. Pois então traduza: estamos de acordo que será um segredo de Estado entre nós?

Sir William pensou: perdido por um, perdido por mil.

— Concordamos.

Seratard também concordou. Tyrer enxugou a testa.

— Pronto, Sire.

Com um controle cada vez mais firme, Yoshi declarou:

— É meu desejo modernizar o xogunato e o Bakufu. Para fazer isso, preciso de conhecimento. Traduzam. A terra dos ing’erish e a terra dos furansu são as acões mais poderosas do mundo exterior. Traduzam. Peço para prepararem diversos planos para ajudar o xogunato a formar uma moderna marinha, com um estaleiro e um moderno exército. Traduzam.

O almirante Ketterer empertigou-se, seu pescoço latejando, como se estivesse pegando fogo.

— Fique quieto — murmurou Sir William, pelo canto da boca. — E não diga nada!

— Também queremos um sistema bancário moderno e fábricas experimentais. Um país sozinho não pode fazer tudo. Vocês são ricos, o xogunato é pobre. Quando os planos forem aceitos, concordarei com um preço justo. Será pago em carvão, prata, ouro e arrendamentos anuais de portos seguros. Eu gostaria de uma resposta provisória em trinta dias, se for do interesse de vocês. No caso de um sim, um ano seria tempo suficiente para que planos detalhados fossem aprovados por seus soberanos?

Era difícil para Yoshi manter o controle externo, e ele especulou o que diriam se soubessem que não tinha autoridade para apresentar essa proposta, nem qualquer meio de implementá-la. A oferta era para persuadi-los a um ano de trégua de qualquer conflito exterior, um prazo de que ele precisava para suprimir a oposição interna ao xogunato, e lidar com seus principais inimigos, Ogama de Choshu e Yodo de Tosa, agora que Sanjiro seria removido.

Ao mesmo tempo, era um salto para o futuro, para o desconhecido, que o assustava e deixava exultante, de uma maneira que não podia compreender. Todas as idéias baseavam-se nas informações que o espião de Inejin obtivera do shoya Ryoshi, que de nada desconfiava, sobre os métodos dos gai-jin, e confirmadas pelo que vira e ouvira no navio de guerra, que era impressionante, mas nem de longe tão grande e mortífero quanto a nave capitânia dos ing’erish.

Odiando a realidade, mas aceitando-a, ele compreendera que a terra dos deuses, por autodefesa, tinha de se tornar moderna. Para isso, precisava negociar com os gai-jin. Abominava-os e desprezava-os, desconfiava deles, mas os gai-jin contavam com meios para destruir o Nipão, no mínimo para lançá-los de volta às guerras civis que haviam se prolongado por séculos, antes que o xógum Toranaga contivesse o bushido, o espírito guerreiro dos samurais.

Ele observou os dois líderes conversarem entre si. E depois viu o líder ing’erish falar para o jovem intérprete, Taira, que disse, em seu japonês exótico, mas compreensível:

— Meu superior agradece, Sire, pela... por confiança. Precisar cento e vinte dias enviar mensagem “Parlamento rainha” e “rei furansu”... e resposta voltar, Ambos líderes ter certeza resposta é sim.

Cento e vinte dias era melhor do que ele esperava.

— Está bem — disse Yoshi, com uma expressão solene, mas tonto de alívio por dentro.

Agora, a melhor parte do plano, pensou ele, vendo-os se prepararem para encerrar a reunião. Um olho por um olho, uma morte por uma morte.

— Por fim, tenho certeza que W’rum-sama não sabe que o homem que ele abriga, chamado Nakama, é um samurai renegado, um ronin e um revolucionário, cujo verdadeiro nome é Hiraga, às vezes chamado Otami. Exijo ele imediatamente. O homem é procurado por assassinato.

 

 

Naquele momento, no outro lado da baía, na Yoshiwara de Iocoama, Katsumata disse:

— Hiraga, pensou como podemos enfurecer os gai-jin, um incidente hostil para lançá-los contra o xogunato?

Os dois se achavam sentados frente a frente, numa casinha isolada, nos jardins da casa das Três Carpas.

— Incendiar uma das igrejas seria o mais fácil — respondeu Hiraga, mantendo sua ira bem reprimida, pois Katsumata era muito perceptivo. Ele acabara de chegar, chamado de seu refúgio na aldeia por um criado sonolento. Exceto por umas poucas criadas da cozinha, acendendo o fogo e limpando tudo, não havia mais ninguém de pé. Raiko e suas damas ainda dormiam e poucas acordariam antes de meio-dia. — Isso os deixaria furiosos, mas primeiro deixe-me contar o que consegui realizar aqui...

— Mais tarde. Primeiro, temos de formular um plano. Uma igreja? A idéia é interessante...

Katsumata exibia uma expressão dura e fria, não mais disfarçado, como se apresentara em Hodogaya. Parecia agora um bonzo, um sacerdote budista, o rosto raspado, a não ser por um bigode. A cabeleira era antes uma peruca e desaparecera. A cabeça tinha fios de cabelo curtos como a de um bonzo, ele usava a túnica laranja budista, sandálias e um cinto de contas de oração. A espada longa, com a bainha usada nas costas, estava ao seu lado, sobre os futons, e a mon, as cinco insígnias na túnica, proclamavam que era membro de uma ordem monástica militante.

Essas virtuais ordens militares eram constituídas por samurais que haviam renunciado a essa condição para servir a Buda, em caráter permanente ou temporário, para pregar e vaguear pela terra, fazendo boas ações, sozinhos ou em bandos, punindo assaltantes e bandidos, protegendo os pobres dos ricos e os ricos dos pobres... e alguns mosteiros. O Bakufu e a maioria dos daimios os toleravam, desde que mantivessem sua violência dentro de limites.

Ontem, ao crepúsculo, ele passara pela barreira, arrogante, os documentos falsos perfeitos. Estava um dia atrasado, não era esperado, mas Raiko, no mesmo instante, lhe dera o melhor bangalô disponível. Ao contrário dos outros shishi, o único entre eles, sua família era rica e ele sempre andava com numerosos oban de ouro.

— Uma igreja — repetiu ele, apreciando cada vez mais a idéia. — Eu não teria pensado nisso... deixaríamos uma mensagem, alegando que fora feito por ordem de Yoshi, o tairo Anjo e os roju, como uma advertência para que deixem nossas praias. Precisamos muito de vingança contra Yoshi.

Um pouco de espuma se concentrou nos cantos de sua boa, que ele logo limpou, irritado.

— Yoshi é o arqui-inimigo. Um de nós tem de ir contra ele. Yoshi matou muitos dos nossos guerreiros em Quioto, atirou em alguns pessoalmente. Se eu pudesse emboscá-lo, não hesitaria. Isso também, mais tarde. Portanto, a igreja será incendiada. Ótimo.

Hiraga sentia-se apreensivo, achando Katsumata estranho, diferente. Agora se mostrava impaciente, agindo como se fosse um daimio, e Hiraga um goshi a quem podia dar ordens. Sou o líder dos shishi de Choshu, pensou, irritado ainda mais, não um discípulo sob as ordens de um sensei de Satsuma, por mais renomado que ele seja.

— Isso converteria toda Iocoama num ninho de vespas. Eu teria de ir embora, o que seria péssimo no momento, já que o meu trabalho é muito importante para a nossa causa. A situação aqui é muito delicada, sensei. Concordo que devemos planejar... por exemplo, para onde escaparemos, se precisarmos escapar?

— Iedo. — Katsumata fitou-o nos olhos. — O que é mais importante, sonno-joi ou seu refúgio seguro entre os inimigos gai-jin?

— Sonno-joi — murmurou ele, acreditando. — Mas é importante aprendermos o que eles sabem. Conhecer seu inimigo como...

— Não preciso de citações, Hiraga, mas de ação. Estamos perdendo a luta, Yoshi está vencendo. Só temos uma solução: lançar esses gai-jin em ação violenta contra o Bakufu e o xogunato. Isso avançará sonno-joi como nada antes e tem precedência sobre tudo. Precisamos desesperadamente disso, pois assim recuperaremos apoios... e a honra... guerreiros virão em levas para o nosso estandarte, enquanto a vanguarda dos shishi se reagrupa, aqui e em Quioto. Pedirei reforços de Satsuma e Choshu e tornaremos a atacar os portões, para libertar o imperador. E desta vez teremos êxito, porque Ogama, Yoshi e o sórdido xogunato estarão distraídos, enfrentando os gai-jin hostis. Assim que dominarmos os portões, sonno-joi será um fato.

Não havia como duvidar de sua confiança.

— E o que acontecerá se provocarmos os gai-jin, sensei!

— Eles bombardeiam Iedo, o xogunato retalia, atacando Iocoama... e ambos perdem.

— Enquanto isso, todos os daimios correm a apoiar o xogunato, quando os gai-jin voltarem, o que é inevitável.

— Eles não voltariam antes do quarto ou quinto mês, se é que voltarão. Antes disso, teremos os portões e, por sugestão nossa, o imperador terá o maior prazer em entregar o culpado aos gai-jin, Yoshi ou seu chefe, Nobusada, Anjo, e quaisquer outros líderes de que eles precisarem para saciar a sede de vingança. E também por sugestão nossa, o filho do céu concordará em lhes permitir o comércio, sem mais guerra, mas apenas através de Deshima, na enseada de Nagasáqui, como ele fizeram por séculos. — A certeza de Katsumata era total. — É isso o que vai acontecer. Primeiro, a igreja... e que tal um navio?

Hiraga, surpreso, murmurou:

— Como assim?

Sua mente transbordava de argumentos contra as suposições de Katsumata convencido de que não aconteceria assim, ao mesmo tempo em que tentava encontrar um meio de desviá-lo, fazê-lo continuar a viagem até Iedo e retornar dentro de um ou dois meses... as coisas iam muito bem aqui, com Taira e Sir Wrum, Jami-sama e o shoya, e ele não queria arriscar tudo isso. Haveria bastante tempo para enfurecer os gai-jin mais tarde, com a igreja, quando um refúgio se...

— Afundar um navio de guerra os inflamaria, não é?

Hiraga piscou os olhos, aturdido.

— Como... como nenhuma outra coisa.

— Usamos a igreja como uma manobra diversionária, enquanto afundamos um navio, o maior de todos.

Atordoado, Hiraga observou Katsumata abrir uma mochila. Havia quatro tubos de metal, presos com um fio. E estopins.

— Estes tubos contêm explosivos, pólvora de canhão. Um deles, jogado por uma vigia de bombordo ou preso no casco do navio, abriria um rombo; dois seriam um golpe fatal.

Hiraga sentia-se paralisado, todo o resto esquecido. Pegou um tubo. Em sua mão, a bomba parecia pulsar com vida. Havia na extremidade uma pequena abertura para o estopim e, em sua imaginação, ele viu o estopim aceso, seu braço lançando a bomba por uma vigia de bombordo, depois outra... e em seguida se abaixando para o barco, oculto em grande parte pela neblina marinha, afastando-se em silêncio, para depois assistir, são e salvo, à tremenda explosão, as bombas acionando outras cargas, depois o enorme navio afundando.

E, com isso, todos os seus planos.

— É uma idéia incrível, Katsumata — murmurou ele, angustiado. — Precisaríamos escolher o momento da lua oportuno, assim como o mar certo, planejar tudo com o maior cuidado. As melhores épocas seriam a primavera ou início do verão. Depois disso, eu não poderia mais permanecer aqui e... Há muito o que lhe contar sobre o que descobri.

Hiraga quase revelou que sabia agora falar inglês muito bem, mas se conteve a tempo, e acrescentou:

— Só mais umas poucas semanas, e terei concluído tudo aqui. Depois, a igreja e o navio.

— Incendiaremos a igreja e afundaremos o navio amanhã de noite.

— Impossível!

Katsumata divertiu-se com seu choque, e refletiu que era uma pena que Ori estivesse morto e Hiraga vivo... pois Ori era muito superior. Mas também era Satsuma, não de Choshu.

— Quantas vezes devo dizer que a surpresa é a melhor arma dos shishi? Isso e a rapidez decidida. Onde está Akimoto?

— Na aldeia. Achei melhor não trazê-lo.

A mente de Hiraga era um turbilhão. Desde que voltara de Hodogaya, não partilhara seus pensamentos mais íntimos com o primo, apenas que Katsumata lhe dissera que Sumomo morrera, traída por Koiko a Yoshi, não que ele acreditasse que as duas haviam sido lançadas à perdição pelo acaso. Como seremos lançados inutilmente nesse plano delirante, e todo o meu trabalho terá sido em vão.

— Amanhã é cedo demais. Sugiro...

— A igreja será fácil para um homem só. Akimoto. Precisaremos de um barco. Pode arrumá-lo?

— Talvez. — A resposta de Hiraga foi automática, embaçada por incontáveis indagações e temores. — Talvez eu possa roubar um. Sensei, eu...

— Não está pensando com clareza. Um pescador sempre remove os remos quando não está usando seu barco. Não há necessidade disso. Compre um.

Katsumata tirou da manga uma pequena bolsa de seda e a largou na mesa, negligente.

— Hiraga, concentre-se! — exclamou ele, endurecendo a voz. — A vida com os gai-jin o contagiou até que ponto, com todos os demônios, que esqueceu o juramento a sonno-joi? Concentre-se! O plano é bom, o momento é perfeito. Pode comprar um barco?

— Posso... mas, sensei, para onde batemos em retirada?

— A retirada é simples. Três de nós, você, Takeda e eu, afundamos o navio de guerra. Depois, seguimos no barco até um ponto na praia o mais próximo possível de Iedo, e sumimos na cidade.

— E o outro homem, o que incendiará a igreja?

— Ele escapará a pé.

— Precisamos do apoio de mais shishi, pois se trata de grande missão, toda esta área se tornará letal.

— O que torna a fuga mais fácil. Quatro homens serão mais do que suficientes. Vou liderar o ataque ao navio e, se estiver ventando amanhã, o incêndio na igreja poderá destruir toda locoama, uma dádiva adicional. Volte esta noite, trazendo Akimoto, e definirei os planos finais.

— Mas... onde está Takeda?

— Deixei-o em Hodogaya. Chegará aqui esta tarde. Até de noite, Hiraga.

Bruscamente, Katsumata fez uma reverência, dispensando-o. Atordoado, Hiraga retribuiu, por muitos anos fora um discípulo reverente do sensei, mestre espadachim e tático, não podia agora deixar de aceitar a dispensa. Saiu, atravessou a ponte de volta à colônia, passou pela rua da aldeia, alcançou o passeio, foi andando por ali, sem ver nada, a cabeça um tumulto de pensamentos sinistros e impossibilidades, seu futuro liquidado, tudo porque o forasteiro Satsuma se mostrava determinado a forçar o destino.

Mas o sensei tem razão, remoeu ele. Esses dois atos deixariam os gai-jin desvairados, a esquadra investiria contra Iedo, Iedo arderia, Iocoama seria arrasada em retaliação. Dentro de poucos meses, as esquadras voltariam, desta vez com exércitos. Até lá, os shishi não controlariam os portões, mas todo o Nipão estaria em armas. E isso não faria a menor diferença para os gai-jin.

De um jeito ou de outro, teremos de nos abrir para o mundo deles. Os gai-jin já decidiram. Portanto, terão uma base em Iocoama, e também em outros lugares porque possuem o poder de dizimar nossas costas, de fechar nossos portos, para sempre, se assim desejarem, e nenhum Vento Divino nos ajudará.

— Olá, companheiro. Para onde vai?

— Ah... — Hiraga se descobriu diante da legação. — Bom dia, senhor sentinela. Eu ir a Taira-sama.

— Ele não está aqui, companheiro — informou o soldado, bocejando. — Mister Tyrer e o chefe foram a Kanagawa.

— É? — Hiraga olhou através da baía. A paisagem marinha era invernal. Mal dava para avistar Kanagawa. Uma fragata, que ele reconheceu como a Pearl, navegava lentamente ao largo, contra o vento, firme e mortífera. No estreito, a nave capitânia, com seus quarenta canhões de sessenta libras, se encontrava ancorada, a favor do vento. — Eu voltar mais tarde.

Desconsolado, ele se encaminhou para a aldeia, a fim de comprar um escaler. Por mais que desaprovasse, era um shishi acima de tudo.

 

 

                                                               CONTINUA

 

 

No início daquela tarde, na sala dos oficiais da Pearl, Seratard bateu seu copo no de Sir William, ambos se congratulando pela reunião.

— Um passo à frente maravilhoso, Henri, meu velho — disse Sir William, jovial. Ele pegou a garrafa, tornou a verificar o rótulo. — Nada mal para um 48. E excelente repasto também.

Na mesa, havia sobras do almoço providenciado pelo chefde Seratard: tortas de pombo frias, quiche, migalhas de pão francês e umas poucas fatias de um Brie devorado, trazido pelo último navio mercante que chegara de Xangai.

— Ainda não posso acreditar que Yoshi tenha oferecido tudo o que ofereceu, Henri.

— Concordo. E maravilhoso é a palavra certa. Nós treinaremos a marinha, vocês cuidam do exército, nós nos encarregamos do sistema bancário e alfândega.

— Sonhador! — interrompeu-o Sir William, com uma risada. — Mas não vamos discutir sobre a divisão. Londres e Paris cuidarão disso. — Ele arrotou, contente, antes de acrescentar: — Tudo se reduzirá ao “quanto”, no final das contas, pois é óbvio que teremos de emprestar os recursos para que comprem nossos navios, fábricas, ou qualquer outra coisa... por mais que eles digam que pagarão.

— É verdade, mas haverá as salvaguardas habituais, receitas de alfândega etc.

 

 

 

 

Os dois riram.

— Haverá mais do que o suficiente para nossos dois países — comentou Sir William, ainda não acreditando de todo. — Mas quero que me faça um favor, Henri: não provoque o almirante. Já temos problemas suficientes sem isso.

— Está bem, mas ele é tão... ora, não importa. O que me diz de Nakama? Espantoso! Acho que você teve sorte por ele não matá-lo numa noite qualquer, já que é o inimigo número um. O que deu em você para assumir tamanho risco?

— Ele não estava armado e ajudava Phillip a aprender japonês. — Até onde Sir William podia determinar, apenas os quatro, Tyrer, McFay, Babcott e ele próprio, sabiam que o homem falava inglês e não havia razão para partilhar esse segredo. — Além disso, era bem vigiado.

Sir William arrematou num tom de indiferença, embora sentisse uma pontada de angústia ao pensar no perigo que haviam corrido.

— O que fará com ele?

— O que eu disse a Yoshi.

Todos haviam ficado chocados com as revelações de Yoshi — Sir William quase tanto quanto Tyrer —, em particular ao saberem que Nakama era procurado pelo assassinato de Utani, um dos anciãos, entre outros crimes. No mesmo instante, ele dissera:

— Phillip, diga a lorde Yoshi que, tão logo retorne a Iocoama, iniciarei um inquérito formal, e se os fatos forem mesmo como ele diz, entregarei o homem imediatamente às autoridades. Phillip!

Mas Tyrer, mudo de incredulidade, olhava aturdido para Yoshi. André se recuperara depressa e traduzira para ele, tendo tido um sobressalto quando...

 

 

                                                                 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades